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Centro Universitário de Brasília Faculdade de Ciências Jurídicas e de Ciências Sociais FAJS Curso de Direito VILMAR GUIMARÃES JÚNIOR RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO Brasília 2015

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Centro Universitário de Brasília

Faculdade de Ciências Jurídicas e de Ciências Sociais – FAJS

Curso de Direito

VILMAR GUIMARÃES JÚNIOR

RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO

Brasília

2015

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VILMAR GUIMARÃES JÚNIOR

RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO

Monografia apresentada como requisito para a

conclusão do curso de bacharelado em Direito da

Faculdade de Ciências Jurídicas do Centro

Universitário de Brasília – UniCeub.

Orientadora: Professora Camila Bottaro Sales.

Brasília

2015

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VILMAR GUIMARÃES JÚNIOR

RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO

Monografia apresentada como requisito para a

conclusão do curso de bacharelado em Direito da

Faculdade de Ciências Jurídicas do Centro

Universitário de Brasília – UniCeub.

Orientadora: Professora Camila Bottaro Sales.

Brasília, _____ de _______________ de 2015.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________

Professora Camila Bottaro Sales

Orientadora

____________________________________________

Professor Gabriel Haddad Teixeira

____________________________________________

Professor Hector Luis Cordeiro Vieira

Brasília

2015

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RESUMO

O presente trabalho monográfico aborda a questão da responsabilidade civil pelo abandono

afetivo parental, situação cada vez mais frequente no âmbito das relações familiares atuais.

Doutrina e jurisprudência divergem acerca da possibilidade de que o abandono afetivo parental

seja caracterizado como dano moral, ensejador de reparação pecuniária à prole. A legislação

pátria prevê a possibilidade da perda do poder familiar como a medida extrema em caso de

abandono ou descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos filhos,

considerada a penalização mais grave na esfera civil aplicada ao genitor. Nesse sentido, a

presente pesquisa busca verificar se tal medida atende aos interesses da prole, ou se a

responsabilização civil deve ser considerada medida adequada no intuito de tutelar os interesses

de crianças e adolescentes face ao descumprimento de direitos e deveres por parte dos pais, bem

como se tal descumprimento é capaz de ensejar sequelas psíquicas e emocionais aos filhos. A

análise jurisprudencial se traduz fundamental para a observância do assunto, uma vez que a

possibilidade de responsabilização civil parental pelo dano moral afetivo somente será plausível

com a observância minuciosa do caso concreto, ou seja, se o abandono foi causado pelo

afastamento do genitor, por ato de livre e espontânea vontade, ou então se pode ser verificada

conduta da genitora que proíba a aproximação do pai com os filhos, tolhendo-lhe o direito de

convívio e atenção necessário ao correto desenvolvimento da criança. Certo é que o tema gera

grandes debates e questionamentos no âmbito social, motivo pelo qual sua análise é necessária e

desafiadora para os operadores do direito.

Palavras-chave: Direito de família. Responsabilidade civil. Abandono afetivo.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ______________________________________________________________ 7

1 A NOVA FAMÍLIA NO DIREITO CONTEMPORÂNEO _________________________ 9

1.1 CONCEITO DE FAMÍLIA ..................................................................................................... 9

1.2 FAMÍLIA NO CÓDIGO CIVIL DE 1916 ............................................................................ 14

1.3 FAMÍLIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 .......................................................................... 17

1.4 NOVOS MODELOS DE FAMÍLIA PÓS-CÓDIGO CIVIL DE 2002 .............................. 20

1.5 PRINCÍPIOS DO DIREITO DE FAMÍLIA ........................................................................ 29

1.5.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA ___________________________________ 30

1.5.2 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE __________________________________________ 31

1.5.3 PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE _ 32

1.5.4 PRINCÍPIO DA IGUALDADE E RESPEITO À DIFERENÇA _________________ 33

1.5.5 PRINCÍPIO DA PLURALIDADE DE FORMAS DE FAMÍLIA ________________ 35

2 DA RESPONSABILIDADE CIVIL E SUAS IMPLICAÇÕES NO DIREITO DE

FAMÍLIA __________________________________________________________________ 37

2.1 ELEMENTOS ESSENCIAIS DA RESPONSABILIDADE CIVIL ................................... 37

2.2 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO PARENTAL .............. 42

3 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL _____________________________________________ 47

3.1 DECISÕES DENEGATÓRIAS À RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL PELO

ABANDONO AFETIVO .............................................................................................................. 47

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3.2 DECISÕES FAVORÁVEIS À RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL PELO ABANDONO

AFETIVO ...................................................................................................................................... 50

CONCLUSÃO _______________________________________________________________ 57

REFERÊNCIAS _____________________________________________________________ 59

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INTRODUÇÃO

A responsabilidade civil pelo abandono afetivo é tema de grande controvérsia

doutrinária e jurisprudencial. O presente trabalho monográfico apresentará as noções gerais

acerca da responsabilidade civil focada no âmbito familiar, como base para o estudo mais

aprofundado sobre os danos causados pelo abandono afetivo, ou seja, seria possível ou não a sua

responsabilização.

Para tanto, no capítulo 1, será abordado o conceito de família, a visão que se tinha

do instituto familiar no Código Civil de 1916, as mudanças trazidas pela Constituição Federal de

1988 e os novos modelos de família surgidos após o advento do Código Civil de 2002. Serão

analisados, ainda, os princípios do Direito de Família, mormente os que estão intimamente

ligados à estrutura familiar propriamente dita.

Passada a conceituação de família, bem como os princípios norteadores do núcleo

familiar, serão analisados, no capítulo 2, os elementos essenciais à responsabilidade civil, com

foco principal em suas implicações no âmbito do Direito de Família. A responsabilidade civil

permeia-se por todos os ramos do direito civil, transitando pelo direito de família com importante

função. Nas relações familiares, diversas hipóteses de atos praticados resultam em lesões

suscetíveis de reparação, as quais podem ser de ordem pessoal ou material.

Nos dias atuais, o abandono afetivo tem se tornado cada vez mais frequente,

principalmente devido à perda de força da relação conjugal, mormente devido às dificuldades da

vida a dois em uma sociedade a cada dia mais individualista. As consequências à prole devem ser

sopesadas pelo Poder Judiciário, uma vez não ser permissível que os filhos sejam atingidos pelos

problemas afetivos dos pais.

Nesse sentido, deve-se ter presente a necessidade de responsabilização civil do

genitor pelos danos causados à integridade moral e psíquica dos filhos, em atendimento aos

preceitos constitucionais fundamentais referentes às crianças e adolescentes, bem como às

garantias previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.

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A proteção integral de crianças e adolescentes atende ao princípio da dignidade da

pessoa humana, motivo pelo qual o Poder Judiciário deverá estar atento para a devida

responsabilização civil dos genitores que causarem danos aos filhos pela privação de afeto e

convívio em sua formação.

Serão analisadas, no capítulo 3, decisões antagônicas proferidas pelo Superior

Tribunal de Justiça, de modo a demonstrar a corrente que não reconhece a possibilidade de

responsabilização civil do genitor pelo abandono afetivo, bem como aquela que vislumbra tal

possibilidade, demonstrando os fundamentos e divergências de ambas as correntes para a tomada

de decisão.

Na presente pesquisa será utilizada a metodologia bibliográfica a partir da análise

doutrinária, jurisprudencial e artigos científicos.

Devido à ausência de uniformização jurisprudencial acerca do tema, o Poder

Judiciário deverá atentar-se para a análise minuciosa do caso concreto, de modo a evitar

responsabilização civil parental equivocada, bem como coibir e punir a prática do abandono em

casos em que restar comprovado que o dano psíquico e emocional da criança se deve à atitude de

abandono afetivo por parte do genitor.

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1 A NOVA FAMÍLIA NO DIREITO CONTEMPORÂNEO

O instituto familiar apresenta, ao longo de toda a história da humanidade, diversas

alterações evolutivas. Nesse sentido, deve-se ter a conceituação como o ponto de partida para a

devida compreensão de tal instituto.

1.1 CONCEITO DE FAMÍLIA

A conceituação de família apresenta diferentes aspectos nos diversos ramos que a

buscam compreender, tais como a Sociologia e a Antropologia. Assevera Orlando Gomes que,

modernamente, o vocábulo família:

[...] perdeu o sentido etnológico de grupo das pessoas que vivem sob o mesmo teto, com

economia comum. Emprega-se, no entanto, com diverso significado. Em acepção lata,

compreende todas as pessoas descendentes de ancestral comum, unidas pelos laços do

parentesco, às quais se ajuntam os afins. Neste sentido, abrange, além dos cônjuges e da

prole, os parentes colaterais até certo grau, como tio, sobrinho, primo, e os parentes por

afinidade, sogro, genro, nora, cunhado. Stricto sensu, limita-se aos cônjuges e seus

descendentes, englobando, também, os cônjuges dos filhos. Designa a palavra família

mais estritamente ainda o grupo composto pelos cônjuges e filhos menores.1

No tocante ao conceito de família, Caio Mário da Silva Pereira destaca sua

diversificação:

Em sentido genérico e biológico, considera-se família o conjunto de pessoas que

descendem de troco ancestral comum. Ainda neste plano geral, acrescenta-se o cônjuge,

aditam-se os filhos do cônjuge (enteados), os cônjuges dos filhos (genros e noras), os

cônjuges dos irmãos e os irmãos do cônjuge (cunhados). Na largueza desta noção, os

civilistas enxergam mais a figura da romana Gens ou da grega Genos do que a família

propriamente dita.2

Assinala o supracitado autor que a família pouca relevância apresentava como

organismo jurídico, uma vez que não possuía efeitos imediatos, sendo, durante séculos, um

organismo extenso e hierarquizado, mas que, sob influência da lei da evolução, retraiu-se, para se

limitar aos pais e filhos. Nesse sentido, a família podia ser considerada, tradicionalmente, em

relação a:

[…] a) ao principio da autoridade; b) aos efeitos sucessórios e alimentares; c) às

implicações fiscais e previdenciárias; d) ao patrimônio. Em sentido estrito, a família se

1 GOMES, Orlando. Direito de Família. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 33. 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. V. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 25.

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restringia ao grupo formado pelos pais e filhos. Aí se exercia a autoridade paterna e

materna, participação na criação e educação, orientação para a vida profissional,

disciplina do espírito, aquisição dos bons ou maus hábitos influentes na projeção social

do indivíduo. Aí se praticava e desenvolvia em mais alto grau o princípio da

solidariedade doméstica e cooperação recíproca. Novos núcleos familiares foram

reconhecidos, a exemplo da união estável e a família monoparental.3

Leciona Orlando Gomes que a família deriva de três fontes, a saber, o casamento,

o concubinato e a adoção. Em consequência, aponta existir três espécies de família, a família

legitima, a família natural e a família adotiva. Para o referido autor:

De regra, porém o termo família usa-se para designar a família legitima. Entende-se que

somente o grupo oriundo do casamento deve ser denominado família, por ser o único

que apresenta os caracteres de moralidade e estabilidade necessários ao preenchimento

de sua função social. Mas é forçoso reconhecer que uniões constituídas fora do

casamento, à sua imagem e semelhança, também justificam a designação e merecem

proteção jurídica. Devem ser, no entanto, qualificadas, para não se confundirem com a

família legitima. Essa mesma expressão indica a existência de outras espécies de família.

A adoção não origina sempre uma família distinta, porque o vinculo de filiação pode ser

estabelecido em família preexistente. Nada impede, porém, a criação de família adotiva

pelo ato jurídico próprio. Nessa hipótese, a palavra tem acepção mais estreita.4

No desenvolvimento do conceito de família não é mais plausível a classificação

intimamente ligada à qualificação dos filhos, que distinguia a família “legítima”, baseada no

casamento, da “ilegítima”, surgida nas relações tidas como extramatrimoniais. Já a família

adotiva, oriunda da adoção tradicional, pela legitimação adotiva que vigorou até o ano de 1990.5

A descrição da estrutura jurídica da família, para Orlando Gomes, é considerada

tarefa de difícil realização, tendo presente a variedade de acepções do vocábulo. Nesse sentido,

apresenta três critérios para defini-la, a saber, a do direito das sucessões, o da legitimidade e o da

autoridade:

Pelo critério sucessoral a família constitui o grupo formado pelos cônjuges e parentes

próximos. Determina a lei que uns sucedem os outros, no pressuposto de que se acham

unidos pelo vínculo familiar. Compreenderia, nestas condições, todos os parentes em

linha reta, inclusive os afins e os colaterais, até o quarto grau.

Pelo critério da legitimidade, a família é o grupo composto pelo marido, mulher e filhos,

fundado no casamento. É indisputável que a lei estruture a família legítima, mas não

pode desconhecer a existência, a seu lado, da família natural, ainda que sem seus traços.

Dizer-se que não constitui juridicamente família é ignorar que a própria lei lhe atribui

efeitos jurídicos, como agregado social, posto que limitados.

3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. V. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 25. 4 GOMES, Orlando. Direito de Família. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 34. 5 PEREIRA, op. cit., p. 26.

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O grupo designado família no direito contemporâneo compreende apenas pais e filhos.

Não o formam, em verdade, outros parentes que, não raro, até se desconhecem.

Desenrola-se a tendência para caracterizá-lo pelas relações de fato entre essas pessoas,

notadamente a que se traduz no dever de sustento, opondo-se esse entendimento às

concepções individualista ou societária da família, sendo indiferente que se haja formado

legitimamente ou não. Tais relações não bastam, entretanto, para caracterizar a família,

porque não exprimem sua organização. Pelo critério da autoridade, distingue-se esse

pequeno grupo social de pessoas unidas pelos laços de parentesco e vida comum por

estar subordinado à mesma direção. A autoridade do chefe de família, a que se

submetem a mulher e os filhos menores, constituiria o traço característico, sob o ponto

de vista jurídico, do grupo que comanda. Por outro lado, a aceitação do critério

conduziria à definição exclusiva da família legítima e afastaria direitos e deveres de

outros parentes, instituídos no pressuposto de que integram a família.6

Nesse sentido, não se vislumbra, nos critério apresentados, elementos que

proporcionem a definição jurídica de família. Entretanto, a análise de suas falhas, possibilita

depreender-se seu sentido técnico, onde família é considerada um grupo fechado de pessoas,

composta pelos genitores e filhos, e, para limitados efeitos, outros parentes, unidos pela

convivência e comunhão afetiva, em igual economia, no mesmo direcionamento.7

A nova estrutura jurídica constituía-se em volta do conceito de família

socioafetiva, referida por alguns autores como família sociológica, identificadas, sobretudo, pelos

laços afetivos, pela solidariedade entre seus membros. Nesse tipo de família, os pais devem

assumir integralmente a educação e proteção da prole, independente do vínculo jurídico ou

biológico havido entre eles. Nesse sentido, a relação afetiva deve ser considerada, nos dias atuais,

prioritariamente em detrimento do fator estritamente biológico.8

Obervados os apontamentos dos doutrinadores clássicos, passa-se às conceituações

dos civilistas modernos. Nesse sentido, o Direito Civil moderno apresenta um conceito de família

mais restrito, no qual os membros são pessoas unidas por uma relação conjugal ou de parentesco,

havendo diversas legislações que definam, por sua vez, a relação de parentesco. Em síntese, a

relação de pessoas unidas pelo matrimônio, bem como das originadas em uniões sem casamento,

dos filhos e de suas relações com seus pais, a proteção por intermédio de tutelas e a proteção dos

incapazes por meio da curatela.9

6 GOMES, Orlando. Direito de Família. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 35. 7 Ibidem, id. 8 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. V. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 27. 9 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 1.

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A doutrina majoritária conceitua a família como uma instituição, a qual deve ser

compreendida como uma forma regular, formal e definida com o fim de realização de

determinada atividade. Assim, trata-se a família de uma coletividade humana em subordinação à

autoridade e condutas da sociedade, em outras palavras, deve ser compreendida como uma união

associativa de pessoas, uma instituição da qual a sociedade se vale no intuito de regular a

procriação e educação da prole.10

Assevera Maria Helena Diniz que o termo família apresenta diversos sentidos,

devido à plurivalência semântica do vocábulo. Encontram-se, na seara jurídica, três acepções

fundamentais para o vocábulo família:

a) No sentido amplíssimo o termo abrange todos os indivíduos que estiverem ligados

pelo vínculo da consanguinidade ou da afinidade, chegando a incluir estranhos. […]

b) Na acepção “lata”, além dos cônjuges ou companheiros, e de seus filhos, abrange os

parentes da linha reta ou colateral, bem como os afins (os parentes do outro cônjuge com

o companheiro). […]

c) Na significação restrita é a família (CF, art. 226, §§ 1º e 2º) o conjunto de pessoas

unidas pelos laços do matrimonio e da filiação, ou seja, unicamente os cônjuges e a prole

(CC, arts. 1.567 e 1.716), e entidade familiar a comunidade formada pelos pais, que

vivem em união estável, ou por qualquer dos pais e descendentes, como prescreve o art.

226, §§ 3º e 4º, da Constituição Federal, independentemente de existir o vínculo

conjugal, que a originou. […]11

A família, para a retrocitada autora, apresenta vários caracteres, a saber:

a) Caráter biológico, pois a família é, por excelência, o agrupamento natural. O

individuo nasce, cresce numa família até casar-se e constituir a sua própria, sujeitando-se

a varias relações, como: poder família, direito de obter alimentos e obrigação de prestá-

los a seus parentes dever de fidelidade e de assistência em virtude de sua condição de

cônjuge.

b) Caráter psicológico, em razão de possuir a família um elemento espiritual unindo os

componentes do grupo, que é o amor familiar.

c) Caráter econômico, por ser a família o grupo dentro do qual o homem e a mulher, com

o auxílio mútuo e o conforto afetivo, se munem de elementos imprescindíveis à sua

realização material intelectual e espiritual.

d) Caráter religioso, uma vez que, como instituição, a família é um ser eminentemente

ético ou moral, principalmente por influencia do Cristianismo, não perdendo esse caráter

com a laicização do direito.

e) Caráter político, por ser a família a célula da sociedade (CF, art. 226), dela nasce o

estado, como diz Ihering: “com o decorrer do tempo a família, baseada no principio do

Estado, se transforma em um Estado, baseado no princípio da família, isto é, a hierarquia

e o princípio de autoridade”. A família tem especial proteção do Estado, que assegurará

sua assistência na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismo, por meio

10 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 8. 11 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: direito de família. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

p. 23-25.

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de lei ordinária, para coibir a violência no âmbito de suas relações (CF, art. 226, § 8º),

impondo sanções aos que transgridem as obrigações impostas ao convívio familiar.

f) Caráter jurídico, por ter a família sua estrutura orgânica regulada por normas jurídicas,

cujo conjunto constitui o direito de família.12

Importante registrar que o conceito de família evoluiu com o passar do tempo, de

modo a acompanhar e enquadrar-se com os novos costumes e avanços sociais. Nesse sentido, o

alargamento do conceito das relações entre pessoas refletiu na conformação da família, não

possuindo um único significado. A mudança experimentada pela sociedade, bem como a

evolução dos costumes, trouxeram verdadeira reconfiguração da conjugalidade e da

parentalidade. Portanto, as antigas expressões como ilegítima, espúria, adulterina, dentre outras,

banidas foram do vocabulário jurídico, não sendo plausível sua utilização com referência às

relações afetivas, tampouco aos vínculos parentais. Não é mais permitida qualquer adjetivação à

família e aos filhos.13

O modelo de família convencional, formado por um homem, sua mulher e seus

descendentes, não é mais a realidade dos dias atuais. O pluralismo das relações familiares, outro

lado da nova ordem jurídica, gerou mudanças na estrutura social, observado no rompimento do

modelo de família restrito ao casamento, fato que ocasionou mudança profunda no conceito de

família. Além disso, a conquista da igualdade, bem como o reconhecimento de estruturas de

convívio diversas e a liberdade no reconhecimento de filhos havidos fora da relação conjugal,

trouxeram verdadeira transformação na família.14

Apresentado os principais elementos acerca da família, pode-se chegar à conclusão

de que sua conceituação dependerá do momento histórico de sua análise, uma vez que aspectos

sociais, morais, religiosos, dentre outros, ditam os parâmetros formalizadores do seio familiar.

Por tais fatores, os avanços jurídicos pertinentes ao instituto familiar deverão atender às mutações

estruturantes da sociedade contemporânea, de modo a possibilitar a criação de legislações que

estejam em concordância com os anseios sociais, bem como se coadune com as mais modernas

formas de caracterização da família.

12 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: direito de família. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

p. 27-29. 13 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 39. 14 Ibidem, id.

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1.2 FAMÍLIA NO CÓDIGO CIVIL DE 1916

O Código Civil brasileiro de 1916 apresenta, em sua parte especial, livro acerca do

direito de família. Para o legislador brasileiro à época a família somente poderia ser constituída

através do casamento.

O pretérito Código Civil brasileiro de 1916, na sua versão original, previa uma

estreita e discriminatória visão de família, a qual era limitada ao grupo decorrente do casamento.

Não era possível sua dissolução, havendo distinções entre os membros do núcleo familiar, bem

como discriminações às pessoas que mantinham relação sem casamento e aos filhos havidos

nessas relações. Além disso, havia punições aos filhos ilegítimos e aos vínculos

extramatrimoniais, com exclusão de direitos.15

Em sua obra sobre o Direito de Família, Silvio Rodrigues assevera que do exame

do Livro I da Parte Especial do revogado Código Civil de 1916, destinado ao direito de família,

verifica-se que ele continha três grandes temas, a saber:

O primeiro dizia respeito ao casamento, isto é, o instituto básico donde resultava a

família legítima. Nessa parte se disciplinava a celebração do matrimônio, seus efeitos

jurídicos, o regime de bens entre os cônjuges, a dissolução da sociedade conjugal etc.

[…]

Tratado o casamento, seus efeitos e dissolução do vínculo, o segundo grande tema

destinava-se às relações de parentesco.

[…]

Finalmente, numa terceira parte, encontrava-se aquilo que a muitos chamam de institutos

de direito protetivo, tais a tutela, a curatela e a ausência.16

Sobre a estrutura do Código Civil de 1916, Silvio de Salvo Venosa assinala que:

O Código de 1916 disciplinava o direito de família no Livro I, Parte Especial. Não era a

melhor colocação didática e técnica, pois a matéria deveria ser estudada não somente

após a parte geral, mas sim depois de conhecidos os princípios dos direitos reais e das

obrigações, que antecede o direito das sucessões. O direito de família pressupõe o

conhecimento dessas outras áreas. […] O Código de 1916 versava sobre três grandes

temas: a primeira parte regulava o casamento, a segunda, as relações de parentesco, e a

terceira, os denominados direitos protetivos (tutela, curatela e ausência).17

15 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 30. 16 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família, vol. 6. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. p.10-

11. 17 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 17.

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15

Analisando-se as legislações brasileiras pretéritas, é possível observar que o

casamento sempre foi considerado a parte central do direito de família, tendo as diversas

Constituições brasileiras do passado dado realce a tal instituto. Como exemplo, pode-se citar o

artigo 144 da Constituição de 1934, o qual previa que a família, constituída pelo casamento de

vínculo indissolúvel, estava sob a proteção do Estado, texto repetido pelas Constituições de 1946,

1967 e 1969.18

Verificado o conteúdo do direito de família previsto pelo Código Civil de 1916,

Clóvis Beviláqua define, de forma analítica, o direito de família como sendo:

[…] o complexo dos princípios que regulam a celebração do casamento, sua validade e

os efeitos que dele resultam, as relações pessoais e econômicas da sociedade conjugal, a

dissolução desta, as relações entre pais e filhos, o vínculo de parentesco e os institutos

complementares da tutela, curatela e ausência.19

No tocante ao direito de família no Brasil, leciona Silvio de Salvo Venosa que:

Os Códigos elaborados a partir do século XIX dedicaram normas sobre a família.

Naquela época, a sociedade era eminentemente rural e patriarcal, guardando traços

profundos da família da Antiguidade. A mulher dedicava-se aos afazeres domésticos e a

lei não lhe conferia os mesmos direitos do homem. O marido era considerado o chefe, o

administrador e o representante da sociedade conjugal. Nosso Código Civil de 1916 foi

fruto direto dessa época. Os filhos submetiam-se à autoridade paterna, como futuros

continuadores da família, em uma situação muito próxima da família romana.

O Estado, não sem muita resistência, absorve da Igreja a regulamentação da família e do

casamento, no momento em que esta não mais interfere na direção daquela. No entanto,

pela forte influência religiosa e como consequência da moral da época, o Estado não se

afasta muito dos cânones, assimilando-os nas legislações com maior ou menor âmbito.

Manteve-se a indissolubilidade do vínculo do casamento e a capitis deminutio,

incapacidade relativa, da mulher, bem como a distinção legal de filiação legítima e

ilegítima.20

Em relevante relato sobre a época de elaboração e vigência do Código Civil

brasileiro de 1916, Silvio Rodrigues registra que:

Pelas contingências sociais de sua época, o Código Civil de 1916 não dava maior relevo

à família então qualificada como ilegítima. O concubinato, que via de regra a gera, só

indiretamente era por ele mencionado. Tem-se mesmo a impressão de que, por amor à

ordem e com certa pudicícia, o legislador antes preferia ignorar o concubinato a

discipliná-lo como realidade inescondível. Com efeito, poucas eram as disposições que

se referiam à família surgida à margem do casamento; as mais importantes concerniam à

possibilidade de reconhecimento do filho natural.

18 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família, vol. 6. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. p.11. 19 BEVILÁQUIA apud Ibidem, p.11-12. 20 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 14-15.

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Todavia, mesmo aqui a sua antipatia ao ilegítimo era manifesta e se revelava na dureza

da regra do art. 358, de há muito ultrapassado, que vedava o reconhecimento dos filhos

incestuosos e adulterinos.

Entretanto, e num movimento de reação, o direito positivo brasileiro vinha evoluindo de

maneira acentuada, no sentido de conceder, cada vez mais, proteção à família

estabelecida fora do casamento. E nisso foi acompanhado pela ação renovadora da

jurisprudência.

Com efeito, entre outros casos, a legislação trabalhista e previdenciária conferiu à

companheira algumas prerrogativas que o direito tradicional só outorgava à esposa. A

Lei n. 833, de 21 de outubro de 1949, reflete o termo do desenvolvimento de uma

legislação tendente a conferir ao filho adulterino direitos que o Código expressamente

lhe negava, ou só timidamente, com enorme reservas, lhe concedia (CC/1916, art. 405)

Paralelamente, a jurisprudência, por meio de um número cada vez maior de julgados,

vinha atribuindo direitos à concubina, como a reconhecer que, mesmo sem os laços do

casamento, sua participação na vida familiar era importante e respeitável.21

A evolução social trouxe a real necessidade de modernização da legislação civil

brasileira, principalmente no âmbito das relações familiares. Institutos antes tidos como coerentes

com a cultura da época, passaram a receber críticas contundentes, mormente devido às alterações

legislativas experimentadas por outros países.

O avanço experimentado pela família acabou forçando sucessivas alterações na

legislação, sendo considerada a mais expressiva delas o Estatuto da Mulher Casada, Lei nº 4.121,

de 1962, pela qual foi restituída a plena capacidade à mulher casada, sendo deferidos a ela bens

reservados, além de ser assegurada propriedade exclusiva dos bens adquiridos com o fruto de seu

trabalho.22

O mencionado Estatuto eliminou a incapacidade da mulher casada, tendo

inaugurado a era da igualdade entre os cônjuges. Entretanto, não deixou de considerar, naquele

momento, a organização familiar como preponderantemente patriarcal, uma vez que diversas

prerrogativas foram mantidas exclusivamente ao varão.23

Os avanços legislativos necessários continuaram, e, em 1977, com a aprovação da

Emenda Constitucional nº 9/1977, bem como da Lei 6.515/1977, foi instituído o divórcio, pondo

fim à indissolubilidade do casamento. A instituição do divórcio fulminou a indissolubilidade do

casamento, prevista até então, eliminando o pensamento de que a família seria uma instituição

21 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família, vol. 6. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 12-

13. 22 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 30. 23 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 15.

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sacralizada. O novo enfoque dado pelo direito ao instituto familiar é voltado mais à identificação

do vínculo afetivo que abraça seus integrantes.24

Importantes avanços relacionados ao direito de família foram experimentados na

vigência do Código Civil de 1916. Entretanto, a revolução legislativa de maior relevo foi

inaugurada com a promulgação da Constituição Federal brasileira de 1988, a qual trouxe capítulo

dedicado à família.

1.3 FAMÍLIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A Constituição Federal brasileira de 1988 representou o encerramento da

discriminação contra a família. Importante consideração acerca da constitucionalização do direito

civil é feita por Gustavo Tepedino, no sentido de que:

Grande parte do direito civil era na Constituição, que acabou enlaçando os temas sociais

juridicamente relevantes para garantir-lhes efetividade. A intervenção do Estado nas

relações de direito privado permite o revigoramento das instituições de direito civil e,

diante do novo texto constitucional, forçoso ao intérprete redesenhar o tecido do direito

civil à luz da nova Constituição.25

Nesse sentido, a proteção à família está consagrada no artigo 226 da Carta Magna:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a

mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer

dos pais e seus descendentes.

§ 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente

pelo homem e pela mulher.

§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação dada Pela Emenda

Constitucional nº 66, de 2010)

§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade

responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado

propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada

qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a

integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.26

24 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 30. 25 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 1. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 21. 26 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2015.

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Nos dizeres de Maria Berenice Dias:

A Constituição Federal de 1988, como diz Zeno Veloso, num único dispositivo,

espancou séculos de hipocrisia e preconceito. Instaurou a igualdade entre o homem e a

mulher e esgarçou o conceito de família, passando a proteger de forma igualitária todos

os seus membros. Estendeu igual proteção à família constituída pelo casamento, bem

como à união estável entre o homem e a mulher e à comunidade formada por qualquer

dos pais e seus descendentes, que recebeu o nome de família monoparental. Consagrou a

igualdade dos filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, garantindo-lhes os

mesmos direitos e qualificações. Essas profundas modificações acabaram derrogando

inúmeros dispositivos da legislação então em vigor, por não recepcionados pelo novo

sistema jurídico. Como lembra Luiz Edson Fachin, após a Constituição, o Código Civil

perdeu o papel de lei fundamental do direito de família.27

O fim da discriminação contra as famílias não enquadradas à época como a família

legítima ocorreu, a princípio, com advento da Constituição de 1988. Em seu artigo 226, parágrafo

3º, a união estável entre homem e mulher foi proclamada como entidade familiar, protegida pelo

Estado, independente do matrimônio. Adiante, no parágrafo 4º do mesmo dispositivo

constitucional, foi atribuída a qualidade de entidade familiar à comunidade formada por um dos

pais e sua prole.28

A Constituição de 1988 consagrou, em seu artigo 226, proteção tanto à família

fundada no casamento, como à união de fato, à família natural e à família adotiva.29 A Carta

Magna trouxe novos horizontes ao instituto jurídico da família, com relevância a três pontos, a

saber, a entidade familiar, o planejamento familiar e a assistência direta à família.30

No tocante ao planejamento familiar, assevera Caio Mário que:

[…] a Carta de 1988 enfrentou o problema no propósito de dirimir contendas até então

existentes entre os que são favoráveis e os adversários da “limitação da natalidade”.

E o fez fundado nos princípios da dignidade humana e da paternidade responsável,

competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício

desse direito. Levou, portanto, em consideração o crescimento populacional

desordenado, entendendo, todavia, que cabe à decisão livre do casal a escolha dos

critérios e dos modos de agir, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições

oficiais ou particulares (art. 226, § 7º). Cabe à legislatura regulamentar o preceito, e aos

organismos privados ou públicos orientar, esclarecer e cooperar. Trata-se de inovação

relevante, a ser devidamente desenvolvida sob aspecto jurídico como técnico-científico.

27 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 30-31. 28 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família, vol. 6. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 12-

13-14. 29 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 16. 30 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. V. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 42.

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Como iniciativa de regulamentação cite-se a Lei nº 9.263, de 12.01.1996, que transfere

ao Sistema Único de Saúde (SUS) a responsabilidade de sua implementação e

desenvolvimento.31

No que se refere à assistência direta à família, a Constituição Federal de 1988

trouxe significativa incumbência aos órgãos, instituições e categorias sociais conscientes no

intuito de envidas esforços e empenhar recursos para a efetivação das políticas voltadas às

entidades familiares, uma vez que milhões de brasileiros vivem condições classificadas como de

“miséria absoluta”.32

Entretanto, inovação de maior interesse e debates trazida pela Carta da República

de 1988 diz respeito à expressão “entidade familiar”, contida no § 3º do referido artigo 226, o

qual prevê que, para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e

a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Sobre a referida previsão constitucional, Caio Mário registra que:

Com efeito, o § 3º do art. 226 considera a existência de união entre homem e mulher,

estatuindo que, se dotada de estabilidade, a lei “facilitará” a sua “conversão em

casamento”. É óbvio que, se ao legislador compete editar regras neste sentido, está

simultaneamente negando à entidade familiar a condição de “status nupcial” por mais

longa que seja a duração e por mais que esteja consolidada.33

Era real a necessidade nacional acerca do reconhecimento de entidade familiar

independentemente da existência de matrimônio. Nesse sentido é o entendimento de Francisco

José Ferreira Muniz, ao expressar que:

A família à margem do casamento é uma formação social merecedora de tutela

constitucional porque apresenta as condições de sentimento da personalidade de seus

membros e à execução da tarefa de educação dos filhos. As formas de vida familiar à

margem dos quadros legais revelam não ser essencial o nexo família-matrimônio: a

família não se funda necessariamente no casamento, o que significa que casamento e

família são para a Constituição realidades distintas. A Constituição apreende a família

por seu aspecto social (família sociológica). E do ponto de vista sociológico inexiste um

conceito unitário de família.34

Com os avanços sociais experimentados pela sociedade brasileira, surgiram novas

formas de grupamento humano, marcados por interesses comuns e pelos cuidados e

31 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. V. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 42. 32 Ibidem, p. 42-43. 33 Ibidem, p. 43. 34 MUNIZ apud VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 16.

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compromissos mútuos, devem receber a denominação de “entidade familiar”, merecendo,

portanto, tutela do direito.35

Em conclusão às novas previsões elencadas no texto constitucional, Paulo Luiz

Netto Lôbo expressa que:

[…] embora o art. 226 da Constituição Federal reconheça um número ampliado de

entidades familiares, estas são meramente exemplificativas, sem embargo de serem as

mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. Elas são tipos implícitos,

incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família

indicado no caput. Todo conceito indeterminado depende de concretização dos tipos, na

experiência de vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e

adaptabilidade.36

Maria Berenice Dias assinala que:

A Constituição Federal, rastreando os fatos da vida, viu a necessidade de reconhecer a

existência de outras entidades familiares, além das constituídas pelo casamento. Assim,

enlaçou no conceito de família e emprestou especial proteção à união estável (CF 226 §

3º) e à comunidade formada por qualquer dos pais com seus descendentes (CF 226 § 4º),

que começou a ser chamada de família monoparental. No entanto, os tipos de entidades

familiares explicitados são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais

comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. Mas não só nesse limitado

universo flagra-se a presença de uma família. Não se pode deixar de ver como família a

universalidade dos filhos que não contam com a presença dos pais. Dentro desse

espectro mais amplo, não cabe excluir os relacionamentos de pessoas do mesmo sexo,

que mantêm entre si relação pontificada pelo afeto a ponto de merecerem a denominação

de uniões homoafetivas. Dita flexibilização conceitual vem permitindo que os

relacionamentos, antes clandestinos e marginalizados, adquiram visibilidade, o que

acaba conduzindo a sociedade à aceitação de todas as formas que as pessoas encontram

para buscar a felicidade.37

Com a evolução trazida pela Constituição Federal de 1988, considerada pela

doutrina como a lei fundamental do direito de família, a despeito do Código Civil de 1916, nada

mais premente que a análise e aprovação de um novo Código Civil, cujo projeto original era

datado de 1975, anterior, inclusive, à Lei do Divórcio, aprovada em 1977.

1.4 NOVOS MODELOS DE FAMÍLIA PÓS-CÓDIGO CIVIL DE 2002

35 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. V. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 44. 36 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. In

PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Família e

Cidadania. Novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 95. 37 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 39-40.

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A Constituição Federal brasileira de 1988 trouxe inovações ao Direito de Família,

merecendo destaque a igualdade jurídica plena entre os cônjuges, o fim da desigualdade dos

filhos, bem como reconhecimento daqueles havidos de relação extramatrimonial, a reforma no

poder familiar e a possibilidade de colocação em família substituta, através dos institutos da

adoção, tutela ou guarda.

Nesse sentido, o Código Civil brasileiro, promulgado pela Lei 10.406, de 10 de

janeiro de 2002, foi gestado por projeto datado de 1975, antes mesmo da Lei do Divórcio, de

1977. O projeto original necessitou sofrer profundas modificações, de modo a adequar-se às

novas diretrizes trazidas pela Constituição Federal de 1988.

Como crítica a tal fato, pode-se dizer que diversos remendos foram feitos ao texto

legal, não trazendo, ainda assim, a clareza necessária para reger a sociedade atual. Para o autor, a

desordem estrutural tem origem na inclusão retalhada da nova concepção adotada do direito das

famílias, tendo sido agregado, sem a devida técnica legislativa, na fase final de elaboração, regras

de direito material já existentes.38

Por tal razão, Maria Berenice Dias assinala que:

Não se pode dizer que é um novo código – é um código antigo com um novo texto.

Tenta, sem muito sucesso, afeiçoar-se às profundas alterações por que passou a família

no século XX. Talvez o grande ganho tenha sido excluir expressões e conceitos que

causavam grande mal-estar e não mais podiam conviver com a nova estrutura jurídica e

a moderna conformação da sociedade. Foram sepultados todos aqueles dispositivos que

já eram letra morta e que retratavam ranços e preconceitos discriminatórios. Assim as

referências desigualitárias entre o homem e a mulher, as adjetivações da filiação, o

regime dotal etc.

Mas esse não foi o único mérito do codificador. Alguns avanços foram significativos, e

os exemplos são vários. Corrigiu alguns equívocos e incorporou orientações pacificadas

pela jurisprudência. […] No entanto, perdeu a nova consolidação uma bela oportunidade

de promover alguns avanços. Não trouxe a guarda compartilhada, não consagrou a posse

de estado de filho, a filiação socioafetiva, nem mesmo normatizou as relações de pessoas

do mesmo sexo, agora nominadas uniões homoafetivas.

[…]

Também ao tratar desigualmente as entidades familiares decorrentes do casamento e da

união estável gerou o Código Civil diferenciação sem respaldo constitucional. A

Constituição não estabelece qualquer hierarquia entre as entidades às quais o Estado

38 CAHALI apud DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 31-32.

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empresta especial proteção (CF 226). E, o que o constituinte não distinguiu, não pode

diferencias a lei ordinária.39

Assim, o direito brasileiro contemporâneo indica novos elementos que formam as

relações familiares, transcendendo, inclusive, os limites fixados pela Constituição Federal de

1988. Novos modelos de família foram gerados, com flexibilidade em seus componentes e suas

formas.

O novo modelo de família, nos dizeres de Maria Berenice Dias:

[…] funda-se sobre os pilares da responsabilização, da afetividade, da pluralidade e do

eudemonismo, impingindo nova roupagem axiológica ao direito de família. Agora, a

tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação

familiar. A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe

e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para

o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, sua proteção pelo

Estado.40

O matrimônio, forma conservadora de família instituída Igreja, reproduzida pelo

Estado, tem por objetivo a preservação de uma dita moralidade familiar. Nesse sentido, Maria

Berenice Dias assinala que:

A Igreja consagrou a união entre um homem e uma mulher como sacramento

indissolúvel: até que a morte os separe. A máxima crescei e multiplicai atribuiu à família

a função reprodutiva com o fim de povoar o mundo de cristãos. Daí a origem do débito

conjugal como obrigação à prática da sexualidade. A inclusive a possibilidade de o

casamento religioso ser anulado se algum dos cônjuges for estéril ou impotente. Para o

cristianismo, as únicas relações afetivas aceitáveis são as decorrentes do casamento entre

um homem e uma mulher em face do interesse na procriação. Aliás, outro não é o

motivo para vedar o uso de contraceptivos. Essa conservadora cultura, de larga

influencia no Estado, acabou levando o legislador, no início do século passado, a

reconhecer juridicidade apenas à união matrimonial.41

Para a referida autora, o Estado:

[…] solenizou o casamento como uma instituição e o regulamentou exaustivamente. Os

vínculos interpessoais passaram a necessitar da chancela estatal. É o Estado que celebra

o matrimônio mediante o atendimento de inúmeras formalidades. Reproduziu o

legislador civil de 1916 o perfil da família então existente: matrimonializada, patriarcal,

hierarquizada, patrimonializada e heterossexual. Só era reconhecida a família

constituída pelo casamento. O homem exercia a chefia da sociedade conjugal, sendo

merecedor de respeito e obediência da mulher e dos filhos. A finalidade essencial da

39 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 32-33. 40 Ibidem, p. 41. 41 Ibidem, p. 42.

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família era a conservação do patrimônio, precisando gerar filhos como força de trabalho.

Como era a fundamental a capacidade procriativa, claro que as famílias necessitavam ser

constituídas por um par heterossexual e fértil.42

O Estado consagrou, como princípio basilar do casamento, sua indissolubilidade,

uma vez que o rompimento do vínculo conjugal somente poderia ser possível com a morte de um

dos cônjuges, conforme preconizado pela Igreja. Além disso, o Estado considerava outras formas

de vínculos de convivência como entidade familiar, por não possuir o selo da oficialidade.

Até a entrada em vigor da Constituição Federal brasileira de 1988, leciona Maria

Berenice Dias:

[…] o casamento era a única forma admissível de formação da família. Foi o constituinte

de 1988 quem emprestou especial proteção a entidades familiares outras. Esse prestígio à

família atende aos interesses do Estado, pois delega a ela a formação dos seus cidadãos,

tarefa que acaba quase sempre onerando exclusivamente a mulher. Há um certo

descomprometimento tanto do homem como das entidades públicas e entes

governamentais em assumir o encargo de formar e educar crianças e jovens, único meio

de assegurar o futuro da sociedade. Por isso é que a Carta Constitucional consagra (CF

226): A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Em face disso,

procurou o Código Civil deixar expressa essa proteção ao proibir qualquer pessoa, de

direito público ou privado, de interferir na comunhão de vida instituída pela família (CC

1.513). Desnecessária e pleonástica essa vedação, pois, se fosse necessário impedir

interferências, deveria dirigir-se a todas as pessoas, fossem naturais ou jurídicas, sem

qualquer limitação.43

A partir do reconhecimento constitucional, outras formas de formação familiar

foram constituídas. Pode-se citar, assim, a estrutura familiar informal, que é considerada a família

constituída fora de um matrimônio legal. Os filhos de relacionamentos adulterinos começaram a

conquistar reconhecimento legal, saindo da invisibilidade até então vivida. As mulheres tidas

como concubinas pouco conquistaram, pois o Poder Judiciário ainda possuía dificuldades de

reconhecê-las como “esposas”. Decisões esporádicas concediam às concubinas, em analogia ao

direito comercial, indenizações por serviços prestados, não havendo menção à concessão de

pensões ou ao recebimento de herança.

No tocante à “família informal”, assevera Maria Berenice Dias que:

Essas estruturas familiares, ainda que rejeitadas pela lei, acabaram aceitas pela

sociedade, fazendo com que a Constituição albergasse no conceito de entidade familiar o

42 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 43. 43 Ibidem, p. 43-44.

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que chamou de união estável, mediante a recomendação de promover sua conversão em

casamento, norma que, no dizer de Giselda Hironaka, é a mais inútil de todas as

inutilidades. A legislação infraconstitucional que veio a regular essa nova espécie de

família, acabou praticamente copiando o modelo oficial do casamento. Igualmente, o

Código Civil impõe requisitos para o reconhecimento da união estável, gera deveres e

cria direitos aos conviventes. Assegura alimentos, estabelece o regime de bens e garante

ao convivente direitos sucessórios. Aqui também formou-se um casamento por

usucapião, ou seja, o decurso de prazo confere o estado de casado. A exaustiva

regulamentação da união estável a faz objeto de um dirigismo não querido pelos

conviventes. Como são relações de caráter privado, cabe questionar a legitimidade de

sua publicização coacta. Não só em relação ao casamento ocorre a interferência estatal

na vida afetivas das pessoas. São igualmente regulamentos os relacionamentos que

escolhem seus próprios caminhos e que não desejam qualquer interferência.44

A união estável tem origem na convivência, mero fato jurídico que evolui para a

constituição de ato jurídico, devido aos direitos que brotam de tal relação.45

Importante destacar a lição de Maria Berenice Dias, segundo a qual:

O casamento e a união estável são merecedores da mesma e especial tutela do Estado.

Todavia, em que pesa a equiparação constitucional, a lei de forma retrógrada e

equivocada outorgou à união estável tratamento notoriamente diferenciado em relação

ao matrimônio. Em quatro escassos artigos (CC 1.723 a 1.726), disciplina seus aspectos

pessoais e patrimoniais. Fora do capítulo específico, outros dispositivos fazem referência

à união estável. É reconhecido o vínculo de afinidade entre os conviventes (CC 1.595),

autorizada a adoção (CC 1.618 parágrafo único e 1.622) e assegurado o poder familiar a

ambos os pais (CC 1.631), sendo que sua dissolução não altera as relações entre pais e

filhos (CC 1.632). É deferido o direito a alimentos (CC 1.694) e de instituir o bem de

família (CC 1.711), assim como é admitido um companheiro ser curador do outro (CC

1.775). O direito sucessório dos companheiros foi tratado – e muito mal tratado – em um

único dispositivo (CC 1.790).

O Código Civil limitou-se a reproduzir a legislação que existia, reconhecendo como

estável (CC 1.723) a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e de uma

mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família. Socorre-se o legislador da

ideia de família como parâmetro para conceder-lhe efeitos jurídicos. Ainda que

concedido direito a alimentos e assegurada partilha igualitária de bens, outros direitos

são deferidos somente aos cônjuges. O convivente não está incluído na ordem de

vocação hereditária, tendo somente direito à concorrência sucessória quanto aos bens

adquiridos na vigência do relacionamento. Também é subtraída do parceiro sobrevivente

a garantia da quarta parte da herança, quota mínima assegurada ao cônjuge sobrevivo, se

concorrer com os filhos comuns (CC 1.832). A disparidade prossegue quanto ao direito

real de habitação, outorgado somente ao cônjuge (CC 1.831). Em todas essas hipóteses,

a ausência de uniformidade levada a efeito, além de desastrosa, é flagrantemente

inconstitucional.46

Conforme se observa, a Constituição Federal de 1988 apenas deu segurança

jurídica às relações estáveis heterossexuais, ou seja, à relação formada entre um homem e uma

44 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 45. 45 PEREIRA apud Ibidem, p. 158. 46 Ibidem, p. 158-159.

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mulher. Ocorre que as relações homossexuais em nada se diferenciam das relações

heterossexuais, motivo pelo qual a discriminação daquela não se coaduna com o atual momento

vivido pela sociedade contemporânea.

Apesar de tal incongruência legislativa, Maria Berenice Dias assinala que:

[…] Felizmente, começa a surgir uma nova postura. Reconhecidas as uniões

homoafetivas como entidades familiares, as ações devem tramitar nas varas de família.

Assim, nem que seja por analogia, deve ser aplicada a legislação da união estável,

assegurando-se partilha de bens, direitos sucessórios e direito real de habitação.

Se a negativa de emprestar direitos às uniões homoafetivas tinha por fundamento a

ausência de lei, esta desculpa já não serve mais. A Lei Maria da Penha, de forma até

repetitiva (LMP 2º e 5º parágrafo único), ressalva a orientação sexual de que se sujeita a

violência doméstica. Como a lei veio proteger a mulher vítima da violência doméstica e

familiar, definiu família e albergou no seu conceito as uniões homoafetivas.47

A omissão legislativa sobre o tema é grave e, nos dias atuais, inadmissível. Por

muitos anos, devido à referida omissão do legislador pátrio, a Justiça se negava à prestação

jurisdicional, fato gerador de graves prejuízos materiais e morais às relações homoafetivas.

Importante registro merece decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto da

Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental (ADPF) 132, que reconheceram a união estável para casais do mesmo sexo.

O relator, ministro Ayres Britto, expressou entendimento no sentido de que o

artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988 veda qualquer espécie de discriminação em

virtude de sexo, raça, cor e que, assim, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função

de sua preferência sexual. A ação recebeu a seguinte ementa:

1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF).

PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE,

COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO

HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO.

CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA.

JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela

ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação conforme à Constituição”

ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação.

2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO,

SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO

PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO

PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL.

HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-

47 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 45-46.

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26

CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE,

INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO,

EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE

E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição

constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de

desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da

Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de

“promover o bem de todos”. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto

uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a

qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente

permitido”. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do

princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto

da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição

do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da

sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da

sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas.

Autonomia da vontade. Cláusula pétrea.

3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA.

RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA

AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA

PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-

CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR

FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à

família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à

instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo

doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada

por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-

se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a

formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição

privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e

a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal

lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição

designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais

heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se

desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família

como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da

interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se

forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no

plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-

cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o

Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela

eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas.

4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E

MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA.

FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES

JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS

TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS

CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. A referência

constitucional à dualidade básica homem/mulher, no §3º do seu art. 226, deve-se ao

centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas

horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo

a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros.

Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de

1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo

terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”, não pretendeu

diferenciá-la da “família”. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica

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entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico.

Emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito de família. A

Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo.

Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito

ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se

dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua

não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do §2º do art.

5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não

expressamente listados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela

adotados”, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem

outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados

internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO.

Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso

convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento

da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem

embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma

de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do

reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição.

6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE

COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO

CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO

FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em

sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à

luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à

Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que

impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do

mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras

e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.48

Após a importante decisão tomada pelo Supremo, o Conselho Nacional de Justiça,

por meio da resolução n. 175, de 14 de maio de 2013, determinou proibição às autoridades

cartoriais competentes de se recusarem a habilitar ou celebrar casamento civil ou, até mesmo, de

converter união estável entre pessoas do mesmo sexo.

Importantes passos foram dados pelo Poder Judiciário em reconhecer a entidade

familiar homoafetiva, porém árduas batalhas deverão ser travadas no âmbito do Poder

Legislativo, considerado um dos mais conservadores dos últimos tempos.

Outra forma de família a ser considerada é a monoparental, constituída por apenas

um dos pais na titularidade do vínculo familiar. A Constituição brasileira de 1988 consagrou no

48 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4277/DF. Relator: Ministro Ayres

Britto. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28ADI%24%2ESCLA%2E+E+4277%2E

NUME%2E%29+OU+%28ADI%2EACMS%2E+ADJ2+4277%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=Erro

>. Acesso em: 11mai.2015.

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artigo 226, parágrafo 4º, que a comunidade familiar é formada por qualquer dos pais e seus

descendentes. Nesse sentido, Maria Berenice Dias leciona que:

A monoparentalidade tem origem na viuvez, quando da morte de um dos genitores, ou

na separação ou no divórcio dos pais. A adoção por pessoa solteira também faz surgir

um vínculo monoparental. A inseminação artificial por mulher solteira ou a fecundação

homóloga após a morte do marido são outros exemplos. A entidade familiar chefiada por

algum parente que não um dos genitores, igualmente, constitui vínculo monoparental.

Mesmo as estruturas de convívio constituídas por quem não seja parente, mas que tenha

crianças ou adolescentes sob sua guarda, podem receber a mesma denominação. Basta

haver diferença de gerações entre um de seus membros e os demais e que não haja

relacionamento de ordem sexual entre eles para se ter configurada uma família

monoparental. Não é a presença de menores de idade que permite o reconhecimento da

família como monoparental. A maioridade dos descendentes não descaracteriza a

monoparentalidade como família – é um fato social.49

A família anaparental é aquela em que inexiste hierarquia entre gerações e no

convívio não há interesse sexual, como na família constituída por irmãos, surgida em decorrência

da morte dos pais.

Já as famílias pluriparentais caracterizam-se pela complexa estrutura que decorre

de uma multiplicidade de vínculos, com funções ambíguas dos novos casais e grau elevado de

interdependência. Além disso, a administração de interesses visam o equilíbrio e assumem

relevância indispensável à estabilidade familiar.50

Outra hipótese de família considerada pela doutrina é a tida como paralela, que

decorre de relacionamento concomitante de uma pessoa com duas, ou mais, ao mesmo tempo.

Não há como se negar a existência de famílias paralelas, quer por um casamento e uma união

estável, que por duas ou mais uniões estáveis, de modo que, não sendo tal fato vislumbrado e

reconhecido, corre-se o risco da ocorrência de grandes injustiças.51

O não reconhecimento da família paralela como entidade familiar pode levar à

exclusão dos direitos reconhecidos no âmbito do direito das famílias e das sucessões, ou seja, a

companheira não teria direito a receber alimentos, herdar, ter participação automática na meação

dos bens adquiridos em comum. A jurisprudência ainda não reconhece a existência de tal

49 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 193-194. 50 GROSSMAN e ALCORTA apud Ibidem, p. 48. 51 Ibidem, p. 49.

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relacionamento, não os identificando como união estável. Em alguns raros casos ainda se

reconhece uma sociedade de fato, ao amparo do direito societário, havendo tão somente a partilha

dos bens adquiridos na sua constância, mediante indispensável prova da participação efetiva para

a aquisição do patrimônio.52

Uma nova identificação para família, tendo por base seu envolvimento afetivo, é a

denominada família eudemonista, a qual, nos dizeres de Belmiro Pedro Welter, “busca a

felicidade individual vivendo um processo de emancipação de seus membros”.53 Maria Berenice

Dias assinala que:

O eudemonismo é a doutrina que enfatiza o sentido de busca pelo sujeito de sua

felicidade. A absorção do princípio eudemonista pelo ordenamento altera o sentido da

proteção jurídica da família, deslocando-o da instituição para o sujeito, como se infere da

primeira parte do § 8º do art. 226 da CF: O Estado assegurará a assistência à família na

pessoa de cada um dos componentes que a integram. A possibilidade de buscar formas

de realização pessoal e gratificação profissional é a maneira que as pessoas encontram de

viver, convertendo-se em seres socialmente úteis, pois ninguém mais deseja e ninguém

mais pode ficar confinado à mesa familiar.

A família identifica-se pela comunhão de vida, de amor e de afeto no plano da igualdade,

da liberdade, da solidariedade e da responsabilidade recíproca. No momento em que o

formato hierárquico da família cedeu à sua democratização, em que as relações são

muito mais de igualdade e de respeito mútuo, e o traço fundamental é a lealdade, não

mais existem razões morais, religiosas, políticas, físicas ou naturais que justifiquem a

excessiva e indevida ingerência do Estado na vida das pessoas.54

Essas são as formas atuais de família consideradas pela doutrina, com reflexos já

observados na jurisprudência. Deve-se ter presente, contudo, que a evolução do direito de família

deve ser constante, diante dos avanços sociais. Nesse sentido, consideração deve ser feita ao fato

de que a legislação nacional muito tem a evoluir no sentido de possibilitar o reconhecimento de

direitos a uniões, entidades familiares, até o momento omitidas e ignoradas pelo legislador pátrio.

1.5 PRINCÍPIOS DO DIREITO DE FAMÍLIA

Os princípios norteadores do direito de família estão baseados principalmente nos

avanços experimentados pelo seio familiar, com o surgimento de paradigmas e novos formatos de

52 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 51. 53 WELTER apud Ibidem, p. 52. 54 Ibidem, p. 52-53.

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família, primando pela dignidade da pessoa humana e na solidariedade familiar, bem como

visando a realização integral de seus membros.

1.5.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA

O princípio da dignidade da pessoa humana está esculpido no artigo 1º, inciso III,

da Constituição Federal brasileira de 1988. Sobre o presente princípio, Rodrigo da Cunha Pereira

assinala tratar-se, na realidade, de “um macroprincípio sob o qual irradiam outros princípios e

valores essenciais como a liberdade, a autonomia privada, cidadania, igualdade, alteridade e

solidariedade, uma coleção de princípios éticos”.55

Maria Berenice Dias leciona que:

Na medida em que a ordem constitucional elevou a dignidade da pessoa humana a

fundamento da ordem jurídica, houve uma opção expressa pela pessoa, ligando todos os

institutos à realização de sua personalidade. Tal fenômeno provocou a

despatrimonialização e a personalização dos institutos jurídicos, de modo a colocar a

pessoa humana no centro protetor do direito. O princípio da dignidade humana não

representa apenas um limite à atuação do Estado, mas constitui também um norte para a

sua ação positiva. O Estado não tem apenas o dever de abster-se de praticar ator que

atentem contra a dignidade humana, mas também deve promover essa dignidade através

de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu

território.56

O princípio da dignidade humana, na realidade, de tão extensa conceituação, deve

ser evitada, para não limitar o seu campo de incidência. Portanto, deve-se ter presente que, como

macroprincípio, não é permissível que sofra qualquer tipo de relativização, mas tão somente a dos

subprincípios que compõem seu conteúdo.57

No âmbito familiar, o princípio da dignidade humana significa, em última análise,

nos dizeres de Maria Berenice Dias:

[…] igual dignidade para todas as entidades familiares. Assim, é indigno dar tratamento

diferenciado às várias formas de filiação ou aos vários tipos de constituição de família,

com o que se consegue visualizar a dimensão do espectro desse princípio, que tem

contornos cada vez mais amplos.

55 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do Direito de Família. 1. ed. Belo

Horizonte:Del Rey, 2006. p. 68. 56 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 60. 57 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. V. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 63.

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A dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer. A

ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente de sua origem. A

multiplicação das entidades familiares preserva e desenvolve as qualidades mais

relevantes entre os familiares – afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o

amor, o projeto de vida comum –, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social

de cada partícipe com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e

humanistas.58

Demonstra-se, portanto, ser a dignidade da pessoa humana, atualmente, princípio

norteador do direito de família.

1.5.2 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE

O princípio da afetividade é tido como consequência direta do princípio da

dignidade da pessoa humana, possuindo caráter norteador das relações familiares e da

solidariedade familiar.59

Apesar de não estar positivado na Constituição Federal brasileira de 1988, Caio

Mário da Silva Pereira assinala que:

[…] pode ser considerado um princípio jurídico, à medida que seu conceito é construído

por meio de uma interpretação sistemática da Constituição Federal (art. 5º, § 2º, CF). O

princípio é uma das grandes conquistas advindas da família contemporânea, receptáculo

de reciprocidade de sentimentos e responsabilidades. Pode-se destacar um anseio social

à formação de relações familiares afetuosas, em detrimento da preponderância dos laços

meramente sanguíneos e patrimoniais. Ao enfatizar o afeto, a família passou a ser uma

entidade plural, calcada na dignidade da pessoa humana, embora seja, ab initio,

decorrente de um laço natural marcado pela necessidade dos filhos de ficarem ligados

aos pais até adquirirem sua independência e não pode coerção de vontade, como no

passado. Com o decorrer do tempo, cônjuges e companheiros se mantêm unidos pelos

vínculos da solidariedade e do afeto, mesmo após os filhos assumirem suas

independências. Essa é a verdadeira diretriz prelecionada pelo princípio da afetividade.60

O afeto não é alvo das ciências biológicas. Ao contrário, os laços afetivos se

originam da convivência familiar, não do sangue.61 Ademais, o princípio jurídico da afetividade

traz uma igualdade entre irmãos biológicos e adotivos, bem como o respeito aos direitos

58 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 60. 59 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: direito de família. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

p. 38. 60 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. V. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 65-

66. 61 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. In:

Revista de Direito de Família. n. 19. Porto Alegre: Síntese, ago-set/2003. p. 141.

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considerados fundamentais, não devendo ser maior relevância aos interesses patrimoniais,

evitando-se incômodos ao sentimento solidário.62

Leciona Ricardo Lucas Calderón que o princípio da afetividade possui duas

dimensões, uma objetiva e outra subjetiva:

A dimensão objetiva envolve a presença de fatos tidos como representativos de uma

expressão de afetividade, ou seja, fatos sociais que indiquem a presença de uma

manifestação afetiva. A dimensão subjetiva trata do afeto anímico em si, do sentimento

do afeito propriamente dito. Esta dimensão subjetiva do princípio certamente escapa ao

Direito, de modo que é sempre presumida, sendo que constatada a dimensão objetiva da

afetividade restará desde logo presumida a presença da dimensão subjetiva. Dito de

outro modo, é possível designá-lo como princípio da afetividade jurídica objetiva, o que

ressalta o aspecto fático que é objeto da apreensão jurídica.63

Pelas razões expostas, tem-se no princípio da afetividade a diretriz para a entidade

familiar, uma vez que a família somente será saudável com a prática do afeto recíproco de seus

membros, expresso na máxima do dar e receber amor.

1.5.3 PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

O princípio do melhor interesse da criança deve ser efetivado como princípio

basilar do Direito de Família contemporâneo, pois encontra assento constitucional preceituado no

artigo 227 da Carta Magna de 1988.64

Para Luiz Edson Fachin, o princípio do melhor interesse do menor é identificado

como um “critério significativo na decisão e na aplicação da lei. Isso revela um modelo que, a

partir do reconhecimento da diversidade, tutela os filhos como seres prioritários nas relações

paterno-filiais e não mais apenas a instituição familiar em si mesma”.65

Caio Mário da Silva Pereira assinala que:

Sua implantação não pode se resumir a sugestões ou referência; deve ser a premissa em

todas as ações concernentes à criança e ao adolescente.

62 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 67. 63 CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. p.

402. 64 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. V. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 67. 65 FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 125.

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No campo do planejamento familiar, o princípio do melhor interesse da criança ganha

relevo, diante da priorização dos seus interesses e direitos em detrimento dos interesses

de seus pais, a impedir, assim, que a futura criança venha a ser explorada econômica ou

fisicamente pelos pais, por exemplo. Pode-se considerar que o espectro do melhor

interesse da criança não se restringe às crianças e adolescentes presentes, mas abrange

também as futuras crianças frutos do exercício consciente e responsável das liberdades

sexuais e reprodutivas de seus pais. Trata-se de uma reformulação do conceito de

responsabilidade jurídica para abranger as gerações futuras, e, nesse contexto, é

fundamental a efetividade do princípio do melhor interesse da criança no âmbito das

atuais e próximas relações paterno-materno-filiais.66

É possível verificar no Estatuto da Criança e do Adolescente elementos que

permitem identificar e qualificar o princípio do melhor interesse da criança não apenas como

princípio geral, mas igualmente como forma de normatização específica em alguns setores que

envolvam a criança. Como exemplo tem-se o artigo 23, caput, o qual prioriza os interesses e

valores existenciais em detrimento de valores patrimoniais, prevendo que a falta ou carência de

recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do pátrio poder, em

consonância com os valores e princípios constitucionais que valorizam a pessoa em detrimento

do patrimônio.67

Em análise da aplicação do princípio do melhor interesse da criança pelo Poder

Judiciário, Cario Mário assevera que:

A Jurisprudência tem utilizado o melhor interesse como princípio norteador, sobretudo,

em questões que envolvem: adoção, priorizando os laços afetivos entre a criança e os

postulantes; competência, entendendo que a apreciação das lides devem ocorrer no local

os interesses do menor estejam melhor protegidos, mesmo que isso implique em

flexibilização de outras normas; guarda e direito de visitação, a partir da premissa de que

não se discute o direito da mãe ou do pai, ou ainda de outro familiar, mas sobretudo o

direito da criança a uma estrutura familiar que lhe dê segurança e todos os elementos

necessários a um crescimento equilibrado; e alimentos, buscando soluções que não se

resultem prejudiciais à pessoa em condição peculiar de desenvolvimento.68

A utilização do princípio do melhor interesse do menor deve atentar para

relatividades e subjetividades a serem verificadas no caso concreto, visando sempre a proteção da

parte menos favorecida na relação, a criança e o adolescente.

1.5.4 PRINCÍPIO DA IGUALDADE E RESPEITO À DIFERENÇA

66 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. V. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 68. 67 Ibidem, p. 69. 68 Ibidem, id.

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O princípio da igualdade é uma dos pilares de sustentação do Estado Democrático

de Direito. A Constituição Federal brasileira de 1988 proclamou o princípio da igualdade em seu

preâmbulo, tendo reafirmado o direito à igualdade em seu artigo 5º, afirmando que todos são

iguais perante a lei.

Maria Berenice Dias assevera que a Carta Magna de 1988:

[…] De modo enfático, foi até repetitiva ao afirmar que homens e mulheres são iguais

em direitos e obrigações (CF 5º, I), decantando mais uma vez a igualdade de direitos e

deveres de ambos no referente à sociedade conjugal (CF 226, § 5º). Assim, é a carta

constitucional a grande artífice do princípio da isonomia no direito das famílias. A

supremacia do princípio da igualdade alcançou também os vínculos de filiação, ao ser

proibida qualquer designação discriminatória com relação aos filhos havidos ou não da

relação de casamento ou por adoção (CF 227, § 6º). Em boa hora o constituinte acabou

com a abominável hipocrisia que rotulava a prole pela condição dos pais. Também em

respeito ao princípio da igualdade é livre a decisão do casal sobre o planejamento

familiar (CC 1.565, § 2º e CF 226, § 7º), sendo vedada qualquer tipo de coerção por

parte de instituições privadas ou públicas. É limitada a interferência do Estado, que deve

propiciar s recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito.69

Maria Helena Diniz leciona que:

[…] com esse princípio desaparece o poder marital, e a autocracia do chefe de família é

substituída por um sistema em que as decisões devem ser tomadas de comum acordo

entre os conviventes ou entre marido e mulher, pois os tempos atuais requerem que a

mulher e o marido tenham os mesmos direitos e deveres referentes à sociedade

convivencial ou conjugal (CF, art. 226, § 5º; e CC, arts. 1.511, in fine, 1.565 a 1.570,

1.631, 1.634, 1.643, 1.647, 1.650, 1.651 e 1.724). O patriarcalismo não mais se coaduna

com a época atual, nem atende aos anseios do povo brasileiro; por isso, juridicamente, o

poder do marido é substituído pela autoridade conjunta e indivisa, não mais se

justificando a submissão legal da mulher. Há equivalência de papéis, de modo que a

responsabilidade pela família passa a ser dividida igualmente entre o casal.70

O principio da igualdade jurídica entre os filhos, nos dizeres de Maria Helena

Diniz, acatado pelo direito positivo brasileiro preceitua que:

[…] (a) nenhuma distinção se faz entre filhos legítimos, naturais e adotivos, quanto ao

nome, direitos, poder familiar, alimentos e sucessão; (b) permite o reconhecimento de

filhos havidos fora do casamento; (c) proíbe que se revele no assento do nascimento a

ilegitimidade simples ou espuriedade; e (d) veda designações discriminatórias relativas à

filiação. De modo que a única diferença entre as categorias de filiação seria o ingresso,

69 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 62-63. 70 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: direito de família. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

p. 33-34.

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35

ou não, no mundo jurídico, por meio do reconhecimento; logo só se poderia falar em

filho, didaticamente, matrimonial ou não matrimonial reconhecido e não reconhecido.71

O legislador do Código Civil de 2002, ao prever em seu artigo 1.593 que o

parentesco é natural ou civil, conforme resulte da consanguinidade ou outra origem, reconheceu a

possibilidade da filiação socioafetiva, já considerado pela Doutrina e Jurisprudência como

conquistas efetivas.72

A desigualdade de gêneros, seguindo o entendimento, foi banida. Nesse sentido

Maria Berenice Dias expressa que:

[…] depois de séculos de tratamento discriminatório, as distâncias vêm diminuindo. A

igualdade, porém, não apaga as diferenças entre gêneros, que não podem ser ignoradas

pelo direito. O desafio é considerar saudáveis e naturais as diferenças entre homens e

mulheres dentro do princípio da igualdade. Já está superado o entendimento de que a

forma de implementar a igualdade é conceder à mulher o tratamento diferenciado que os

homens sempre desfrutaram. O modelo não é masculino, e é preciso reconhecer as

diferenças, sob pena de ocorrer a eliminação das características femininas. Em nome do

princípio da igualdade é necessário reconhecer direitos a quem a lei ignora. Preconceitos

e posturas discriminatórias, que tornam silenciosos os legisladores, não podem levar

também o juiz a se calar. Imperioso que, em nome da isonomia, ele reconheça direitos às

situações merecedoras de tutela. O princípio da igualdade não vincula somente o

legislador. O intérprete também tem de observar suas regras. Assim como a lei não pode

conter normas que arbitrariamente estabeleçam privilégios, o juiz não deve aplicar a lei

de modo a gerar desigualdades.73

O princípio da igualdade e respeito às diferenças possui importante papel no

âmbito das relações familiares, trazendo inovações igualitárias na relação entre os cônjuges e

entre os filhos, além de por fim a desigualdades que tanto foram prejudiciais à sociedade

brasileira.

1.5.5 PRINCÍPIO DA PLURALIDADE DE FORMAS DE FAMÍLIA

O princípio do pluralismo familiar tem por objetivo salvaguardar as diferentes

formas de entidades familiares. Maria Berenice Dias leciona que:

Desde a Constituição Federal, as estruturas familiares adquiriram novos contornos. Nas

codificações anteriores, somente o casamento merecia reconhecimento e proteção. Os

71 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: direito de família. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

p. 36-37. 72 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. V. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 64. 73 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 63.

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demais vínculos familiares eram condenados à invisibilidade. A partir do momento em

que as uniões matrimonializadas deixaram de ser reconhecidas como única base da

sociedade, aumentou o espectro da família. O princípio do pluralismo das entidades

familiares é encarado como o reconhecimento pelo Estado da existência de várias

possibilidades de arranjos familiares.74

Apesar da norma constitucional abranger a família matrimonial e as entidades

familiares (união estável e família monoparental), o Código Civil de 2002 trouxe pouca previsão

legal para a união estável, deferindo-lhe alguns efeitos jurídicos, não prevendo, ademais,

qualquer norma que discipline a família monoparental, não reconhecendo que aproximadamente

26% de brasileiros vivem nessa modalidade de entidade familiar.75

A omissão legislativa no Código Civil de 2002 deve ser considerada uma

conivência com a injustiça, a exclusão, do âmbito da juridicidade, daquelas entidades familiares

compostas pelo elo de afetividade, geradoras de comprometimento mútuo e envolvimento pessoal

e patrimonial, fato gerador de uma chancela ao enriquecimento injustificado.76

Nesse sentido, necessária se faz a observância ao princípio da pluralidade de

entidades familiares, de modo a buscar salvaguardar os interesses das diferentes formas de

família, mormente devido aos avanços sociais e as novas formas de caracterização do seio

familiar.

74 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007. p. 64. 75 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: direito de família. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

p. 37. 76 DIAS, op. cit., id.

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37

2 DA RESPONSABILIDADE CIVIL E SUAS IMPLICAÇÕES NO DIREITO DE

FAMÍLIA

Na vida social, a responsabilidade tem por objetivo a restauração, trazer equilíbrio

moral e patrimonial causado por eventual dano. A responsabilidade civil pressupõe a ocorrência

de um dano, bem como do nexo de causalidade entre ele, o efeito e a conduta, como causa. Sem

sua ocorrência não há que se falar em ilícito civil e indenização.

2.1 ELEMENTOS ESSENCIAIS DA RESPONSABILIDADE CIVIL

A responsabilidade civil possui importante papel na vida social. Em suma, visa

restaurar danos morais e patrimoniais causados por ilícitos civis, passíveis de indenização. Na

lição de Caio Mário da Silva Pereira:

A responsabilidade civil consiste na efetivação da reparabilidade abstrata do dano em

relação a um sujeito passivo da relação jurídica que se forma. Reparação e sujeito

passivo compõem o binômio da responsabilidade civil, que então se enuncia como o

princípio que subordina a reparação à sua incidência na pessoa do causador do dano.

Não importa se o fundamento é a culpa, ou se é independente desta. Em qualquer

circunstância, onde houver a subordinação de um sujeito passivo à determinação de um

dever de ressarcimento, aí estará a responsabilidade civil.77

O Código Civil brasileiro de 2002 consagra, em seu artigo 186, regra universal no

sentido de que todo aquele que causa dano a outrem é obrigado a repará-lo. Assim, estabelece o

referido dispositivo legal:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,

violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato

ilícito.78

A análise do artigo permite identificar que quatro são os pressupostos essenciais da

responsabilidade civil, a saber, ação ou omissão, culpa ou dolo do agente, relação de causalidade

e o dano experimentado pela vítima. Sem a prova do dano não é possível que haja a

responsabilização civil do sujeito ativo. O dano pode ser considerado material ou somente moral,

em outras palavras, pode não ter repercussão alguma na órbita financeira do ofendido. O Código

Civil de 2002 apresenta um capítulo específico sobre a liquidação do dano, com identificação dos

77 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 11. 78 BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.403, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>.

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modos de apuração dos prejuízos e consequente indenização cabível. Assim, a inexistência de

dano deve ser considerada óbice à pretensão de uma reparação.79

O primeiro pressuposto da responsabilidade civil é a conduta humana de ação ou

omissão. As condutas humanas podem ser classificadas em positivas, traduzidas pela prática de

comportamento ativo, citando como exemplo o dano causado pelo sujeito que, embriagado,

arremessa seu veículo contra o muro do vizinho, ou condutas negativas, considerada como uma

atuação omissiva, que cause dano, porém de compreensão mais sutil.80

A conduta humana deve ser revestida de ilicitude, de modo a configurar a

responsabilização civil. Nesse sentido, o ato de vontade deve ser revestido de ilicitude, traduzido

por um comportamento voluntário que viola determinado dever.81

O segundo pressuposto previsto na legislação civil é a culpa ou dolo do agente,

estando o dolo contido na expressão ação ou omissão voluntária, sendo a culpa referida na

menção à negligência e imprudência. Na lição de Carlos Roberto Gonçalves, “o dolo consiste na

vontade de cometer uma violação de direito, e a culpa, na falta de diligência”.82

Para Sérgio Cavalieri Filho:

Tanto no dolo como na culpa há conduta voluntária do agente, só que no primeiro caso a

conduta já nasce ilícita, porquanto na vontade se dirige à concretização de um resultado

antijurídico – o dolo abrange a conduta e o efeito lesivo dele resultante -, enquanto que

no segundo a conduta nasce lícita, tornando-se ilícita na medida em que se desvia dos

padrões socialmente adequados. O juízo de desvalor no dolo incide sobre a conduta,

ilícita desde a sua origem; na culpa, incide apenas sobre o resultado. Em suma, no dolo o

agente quer a ação e o resultado, ao passo que na culpa ele só quer a ação, vindo a atingir

o resultado por desvio acidental de conduta decorrente de falta de cuidado. 83

O dano é tido como outro pressuposto da responsabilidade civil. Sem que haja

prova do dano, não há que se falar em responsabilização civil. Sérgio Cavalieri Filho considera o

dano como o grande vilão da responsabilidade civil, conceituando-o como sendo:

79 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 4: responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo:

Saraiva, 2011. p. 54. 80 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, v. 3: responsabilidade

civil. 12. ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 75. 81 VENOSA, Sílvio de Salvo. Responsabilidade civil, 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 22. 82 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 66. 83 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 45-46.

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[…] a lesão a um bem ou interesse juridicamente tutelado, qualquer que seja a sua

natureza, quer se trate de um bem patrimonial, quer se trate de um bem integrante da

personalidade da vítima, como a sua honra, a imagem, a liberdade etc. Em suma, o dado

é lesão de um bem jurídico, tanto patrimonial como moral, vindo daí a conhecida divisão

do dano em patrimonial e moral.84

Para a configuração do dano, Pablo Stolze Gagliano e Rodolgo Pamblona Filho

elencam três atributos inerentes ao dano reparável, a saber, “a) violação de um interesse jurídico

– patrimonial ou moral; b) a efetividade ou certeza; c) subsistência.”85

O dano pode ser classificado em patrimonial ou moral. O dano patrimonial pode

ser traduzido como aquele em que se verifica lesão a bens e direitos economicamente apreciáveis

do seu titular. Entretanto, o dano poderá atingir bens da vítima considerados de cunho

personalíssimos, sendo considerado como dano moral.

No dano moral a lesão atinge direitos da personalidade, como o direito à vida, à

integridade física, psíquica e moral. Assim, o artigo 186 do Código Civil de 2002 dispõe que a

indenização por ato ilícito é devida ainda que o dano seja exclusivamente moral.

Por fim, deve-se analisar o nexo de causalidade como elemento de configuração da

responsabilidade civil. Diversos doutrinadores, a exemplo de Caio Mário da Silva Pereira,

consideram o nexo causal como um dos mais delicados elementos da responsabilidade civil,

sendo o mais complexo de ser determinado. Sem a relação de causalidade, não existe a obrigação

de indenizar.

O Código Civil brasileiro adotou a teoria da causalidade direta ou imediata, a qual,

segundo lição de Sérgio Cavalieri Filho, “considera como causa jurídica apenas o evento que se

vincula diretamente ao dano, sem interferência de outras condições sucessivas”.86 Dentre as

diversas teorias sobre o nexo causal, o Código Civil de 2002 adotou, de forma indiscutível, a do

dano direto e imediato, tal qual expresso no artigo 403. Já das várias escolas doutrinárias que

84 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 93. 85 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, v. 3: responsabilidade

civil. 12. ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 90. 86 CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 67.

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explicam o dano direto e imediato, considera a mais autorizada aquela que reporta à consequência

necessária.87

Parte da doutrina, entretanto, considera a teoria da causalidade adequada como a

mais satisfatória para a responsabilidade civil. Segundo a lição de Martinho Garcez Neto:

A teoria dominante na atualidade é a da causa adequada, segundo a qual nem todas as

condições necessárias de um resultado são equivalentes: só o são, é certo, em concreto,

isto é, considerando-se o caso particular, não, porém, em geral ou em abstrato, que é

como se deve plantar o problema. […]88

A jurisprudência tem adotado ambas as teorias, a depender da análise do caso

concreto. O legislador, no artigo 403 do Código Civil de 2002, expressa que ainda que a

inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os

lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, a respeito da aplicação das teorias da

causalidade, asseveram que:

[…] não se trata de uma regra geral e amplamente admitida – até porque, como dito, vai

de encontro às teorias tradicionais que exigem a demonstração do efetivo nexo causal –

muito embora, na prática, em determinadas situações, não seja raro encontrarmos

decisões que a aplicam como um recurso empregado, com menor frequência, para a

extensão do remédio ressarcitório a domínios que a exigência da demonstração do nexo

de causalidade mantinham imunes tanto à responsabilidade subjetiva quanto à objetiva.89

O Código Civil de 2002 prestigia a responsabilidade civil objetiva, em

modificação à forma em que era disciplinado no Código Civil de 1916. Apesar da evolução

experimentada pelo novo Código Civil brasileiro, nos dizeres de Sérgio Cavalieri Filho:

[…] não significa dizer que a responsabilidade subjetiva tenha sido banida. Temos no

Código atual um sistema de responsabilidade prevalentemente objetivo, porque esse é o

atual sistema que foi modelado ao longo do século XX pela Constituição e leis especiais,

sem exclusão, todavia, da responsabilidade subjetiva, que terá espaço sempre que não

tivermos disposição legal expressa prevendo a responsabilidade objetiva. 90

87 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 480. 88 GARCEZ NETO apud CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo:

Atlas, 2014. p. 66. 89 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, v. 3: responsabilidade

civil. 12. ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 150. 90 CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 6.

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No tocante à responsabilidade objetiva, o novo Código Civil consagra três

clausulas gerais. A primeira pode ser encontrada no artigo 927, combinado com o artigo 187, que

prevê o abuso de direito como ato ilícito, desde que ocorra sempre que o direito for exercido com

excesso manifesto aos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos

bons costumes.

Sobre essa primeira cláusula, assinala Sérgio Cavalieri Filho que:

[…] Aquele que, no exercício de qualquer direito subjetivo, exceder os limites impostos

pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, e causar dano a

outrem, terá que indenizar independente de culpa. Filiou-se nosso Código à doutrina de

Saleilles, a quem coube definir o abuso do direito como exercício anormal do direito,

contrário à destinação econômica ou social do direito subjetivo. O fundamento principal

do abuso do direito é impedir que o direito sirva como forma de opressão, evitar que o

titular do direito utilize seu poder com finalidade distinta daquela a que se destina. O ato

é formalmente legal, mas o titular do direito se desvia da finalidade da norma,

transformando-o em ato substancialmente ilícito.91

A segunda cláusula geral de responsabilidade está prevista no parágrafo único do

artigo 927, o qual prevê que haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa,

nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do

dano implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem. Pode-se considerar, assim, que

a responsabilidade será objetiva para todos aqueles que exercerem habitualmente atividades de

risco e vieram a causar dano a outrem.

A terceira cláusula geral de responsabilidade objetiva está prevista no artigo 931

do Código Civil de 2002, o qual estabelece que ressalvados outros casos previstos em lei

especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos

danos causados pelos produtos postos em circulação. O presente artigo cuidou de estender a

proteção pelo fato do produto aos casos envolvendo empresários individuais e às empresas nos

casos em que não se caracterizar relação de consumo, não sendo incluído, portanto, no campo de

incidência do artigo 12 do Código de Defesa do Consumidor.

A responsabilidade civil possui importante função no âmbito das relações

familiares, como forma de reparar o sofrimento experimentado em relações de forte conteúdo

afetivo, geradoras de grandes traumas.

91 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 7.

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2.2 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO PARENTAL

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, restou expressa, no artigo

1º, inciso III, a cláusula geral da dignidade da pessoa humana. Para Theodureto de Almeida

Camargo Neto, “os danos suscetíveis de indenização se expandiram, alcançando a obrigação de

indenizar tanto os de ordem moral quanto os chamados transindividuais”.92

A dignidade da pessoa humana, consagrada como condição de fundamento da

República Federativa do Brasil, pode ser entendida, nos dizeres de Gustavo Tepedino, como

“verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo

pelo ordenamento”.93

Nesse sentido, leciona Nelson Rosenvald que:

[…] a dignidade da pessoa humana é um princípio que inspira todo o ordenamento

jurídico, de modo a dotá-lo de um sentido de integração e a orientar o intérprete a

encontrar a exata medida dos direitos fundamentais e dos direitos da personalidade,

atuando ainda como justificativa autônoma e imediata para o exercício de situações

jurídicas existenciais fundadas no personalismo.94

Assevera Rodrigo da Cunha Pereira que a dignidade:

[…] é o atual paradigma do Estado Democrático de Direito, a determinar a

funcionalização de todos os institutos jurídicos à pessoa humana. Está em seu bojo a

ordem imperativa a todos os operadores do Direito de despir-se de preconceitos –

principalmente no âmbito do Direito de Família -, de modo a se evitar tratar de forma

indigna toda e qualquer pessoa humana, principalmente na seara do Direito de Família,

que tem a intimidade, a afetividade e a felicidade como seus principais valores.95

Segundo entendimento generalizado pela doutrina, consagrado nas legislações,

conforme lição de Yussef Said Cahali:

[…] é possível distinguir, no âmbito dos danos, a categoria dos danos patrimoniais, de

um lado, dos danos extrapatrimoniais, ou morais, de outro; respectivamente o verdadeiro

92 CAMARGO NETO, Theodureto de Almeida. A responsabilidade civil por dano afetivo. In: SILVA, Regina

Beatriz Tavares da & CAMARGO NETO, Theodureto de Almeida (Coords.). Grandes temas de direito de família e

das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 20. 93 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento Civil-Constitucional Brasileiro. In: Temas de

Direito Civil. 3. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro : Renovar, 2004. p. 50. 94 ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 50-51. 95 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. Belo Horizonte: Editora

Del Rey, 2005. p. 106.

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e próprio prejuízo econômico, o sofrimento psíquico ou moral, as dores, as angústias e

as frustrações infligidas ao ofendido.96

O dano afetivo é enquadrado no âmbito dos danos morais, ou ainda, na subespécie

dos danos à pessoa. Para Theodureto de Almeida Camargo Neto:

[…] o dano afetivo é aquele que atinge a criança ou o adolescente, em consequência do

descumprimento do direito-dever de visita do pai – e às vezes da mãe -, fixado de

comum acordo entre marido e mulher na separação consensual, ou imposto coativamente

pelo juiz nas sentenças de separação e divórcio litigiosos, investigação de paternidade,

regulamentação de visitas etc.97

Nesse sentido, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka levanta importante

questionamento acerca da possibilidade de responsabilização civil dos pais pelos danos causados

aos filhos pelo abandono afetivo. Para a autora:

A procura pelo fundamento da resposta a essa pergunta levaria à seguinte indagação: a

denominada responsabilidade paterno-filial resume-se ao dever de sustento, ao

provimento material do necessário ou do imprescindível para manter a prole, ou vai além

dessa singela fronteira, por situar-se no campo do dever de convívio, a significar uma

participação mais integral na vida e na criação dos filhos, de forma a contribuir em sua

formação e subsistência emocionais.98

Preceitua o artigo 1.589 do Código Civil de 2002 que “o pai ou a mãe, em cuja

guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que

acordar com o outro cônjuge, ou fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e

educação”.99

Assinala Theodureto de Almeida Camargo Neto que:

Esse dever consiste não apenas na prerrogativa do respectivo titular de se avistar com a

criança ou adolescente, mas também de com ela ou ele se comunicar por meio de

correspondência, e-mail, telefone celular etc., assegurando-lhe, ainda, o poder de

fiscalizar a manutenção e a educação.

Pressupõe, assim, que haja convivência entre ambos, para que, conforme o caso, o

vínculo se estabeleça ou se consolide, gradativamente e que a criança ou o adolescente

possa receber o afeto, a atenção, a vigilância e a influência daquele ou daquela que não

96 CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. 4. ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 18. 97 CAMARGO NETO, Theodureto de Almeida. A responsabilidade civil por dano afetivo. In: SILVA, Regina

Beatriz Tavares da & CAMARGO NETO, Theodureto de Almeida (Coords.). Grandes temas de direito de família e

das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 22. 98 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Os contornos jurídicos da responsabilidade afetiva na relação

entre pais e filhos – além da obrigação legal de caráter material. São Paulo, 2005. p. 2. 99 BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.403, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>.

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detém sua guarda, de modo a alcançar a plena higidez física, mental, emocional e

espiritual, que, como se sabe, depende, entre outros fatores, do contato e da comunicação

recíproca e permanente com seus dois progenitores.100

O descumprimento dos deveres parentais geram sequelas psíquicas e emocionais,

fatos ensejadores de condenação ao pagamento de indenização por esses danos. Por tal razão, o

Código Civil brasileiro de 2002 prevê no artigo 1.638, II, que perderá o poder familiar o pai ou a

mãe que deixar o filho em abandono.

Leciona Maria Berenice Dias que:

[…] a figura do pai é responsável pela primeira e necessária ruptura da intimidade mãe-

filho e pela introdução do filho no mundo transpessoal, dos irmãos, dos parentes e da

sociedade. Nesse outro mundo, imperam ordem, disciplina, autoridade e limites. A

omissão do genitor em cumprir os encargos decorrentes do poder familiar, deixando de

atender ao dever de ter o filho em sua companhia, produz danos emocionais merecedores

de reparação. Se lhe faltar essa referência, o filho estará sendo prejudicado, talvez de

forma permanente, para o resto de sua vida. Assim, a falta da figura do pai desestrutura

os filhos, tira-lhes o rumo de vida e debita-lhes a vontade de assumir um projeto de vida.

Tornam-se pessoa inseguras, infelizes.101

Nesse sentido, assevera a referida autora que:

A grande evolução das ciências que estudam o psiquismo humano veio a escancarar a

decisiva influência do contexto familiar para o desenvolvimento sadio de pessoas em

formação. Não mais se podendo ignorar essa realidade, passou-se falar em paternidade

responsável. Assim, a convivência dos filhos com os pais não é direito do pai, mas

direito do filho. Com isso, quem não detém sua guarda tem o dever de conviver com ele.

Não é direito de visitá-lo, é obrigação de visitá-lo. O distanciamento entre pais e filhos

produz seqüelas de ordem emocional e reflexos no seu sadio desenvolvimento. O

sentimento de dor e de abandono pode deixar reflexos permanentes em sua vida. A falta

de mecanismo legal para impor ao pai o cumprimento do dever de visita deixava,

exclusivamente, à mercê da sua vontade a forma e a periodicidade dos momentos de

convívio. Aos filhos só sobrava aguardar pacientemente que o pai resolvesse vê-los.

Comprovado que a falta de convívio pode gerar seqüelas, a ponto de comprometer seu

desenvolvimento pleno e saudável, a omissão do pai gera dano moral susceptível de ser

indenizado.102

Para Arnaldo Rizzardo:

Embora não caiba se falar em coesão familiar, e oferecer aos filhos uma estrutura regular

da convivência com o pai e a mãe, o mínimo que se impõe como ditame fundamental da

consciência, da moral, da natureza e da lei consiste na convivência regular com os

100 CAMARGO NETO, Theodureto de Almeida. A responsabilidade civil por dano afetivo. In: SILVA, Regina

Beatriz Tavares da & CAMARGO NETO, Theodureto de Almeida (Coords.). Grandes temas de direito de família e

das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 22-23. 101 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito civil das famílias. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 406. 102 Ibidem, p. 408.

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progenitores, mesmo que espaçada, de modo a satisfazer o impulso natural de senti-los,

de haurir sua presença e de se fortalecer com o seu acompanhamento.

Impedir a efetivação desse impulso que emana do próprio ser traz graves prejuízos e

frustrações na realização da afetividade, com irreparáveis efeitos negativos que

repercutirão na vida afora, ensejando inclusive a indenização pelo dano moral que se

abate sobre o filho. Realmente, a ausência de um dos pais resulta em tristeza,

insatisfação, angústia, sentimento de falta, insegurança, e mesmo complexo de

inferioridade em relação aos conhecidos e amigos. Quase sempre se fazem sentir efeitos

de ordem psíquica, como a depressão, a ansiedade, traumas de medo e outras afecções.

Se a morte de um dos progenitores, em face da sensação de ausência, enseja o direito a

reparação por dano moral, o que se tornou um consenso universal, não é diferente no

caso do irredutível afastamento voluntário do pai ou da mãe, até porque encontra repulsa

pela consciência comum e ofende os mais comezinhos princípios de humanidade.103

Relevante questão foi levantada na lição de Rui Stoco, ao discorrer sobre o dano

pelo abandono afetivo, no sentido de que:

A dor sofrida pelo filho em razão do abandono afetivo e desamparo dos pais, privando-o

do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral, psíquico e material é não só terrível,

como irreversível. A mancha é indelével e o trauma irretratável.

O direito de proteção efetiva em circunstâncias tais tem fulcro no princípio da dignidade

da pessoa humana. Aliás, nosso ordenamento jurídico – e não só a Constituição Federal

– é pleno de preceitos de proteção, afirmando o dever dos pais de cuidar e proteger os

filhos, seja no plano material, educacional, afetivo ou psíquico.

[…]

Mas tal reconhecimento não poderá dar ensancha a abusos e criação de verdadeira

indústria de ações judiciais de filho, supostamente ofendidos, contra os pais.

Cada caso deverá merecer estudo e atenção redobrada, só reconhecendo o dano moral

em caráter excepcional e quando os pressupostos da reparação se apresentarem estreme

de dúvida e ictu oculi, através de estudos sociais e laudos técnicos de equipe

interdisciplinar.104

Leciona Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, acerca da indenização por

abandono afetivo, que:

[…] se for utilizada com parcimônia e bom senso, sem ser transformada em verdadeiro

altar de vaidades e vinganças ou em fonte de lucro fácil, poderá converter-se em

instrumento de extrema importância para a configuração de um Direito de Família mais

consentâneo com a contemporaneidade, podendo desempenhar, inclusive, um importante

papel pedagógico no seio das relações familiares.105

Assevera Carlos Roberto Gonçalves, observando as decisões judiciais pátrias

acerca da responsabilização civil pelo abandono afetivo, que:

103 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005. p. 692-693. 104 STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 946. 105 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Os contornos jurídicos da responsabilidade afetiva na relação

entre pais e filhos – além da obrigação legal de caráter material. São Paulo, 2005. p. 24.

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[…] a jurisprudência consolidou-se no sentido de que o abandono afetivo, por si só, não

constitui fundamento para ação indenizatória por dano moral. Eventual pretensão, de

caráter econômico, deve fundar-se na prática de ilícito civil, consistente na infração ao

dever constitucional de cuidar dos filhos. Necessárias se mostra, então, a comprovação

dos requisitos da responsabilidade civil subjetiva decorrente da prática de ato ilícito,

quais sejam, ação ou omissão, culpa, relação de causalidade e dano.106

Assim, pode-se concluir que a configuração do dano afetivo deve ser caracterizada

com a observância de ilícito civil cometido pelos pais ante a ausência do dever constitucional do

dever de cuidado e amparo aos filhos. Sua verificação deve observar, outrossim, os pressupostos

da responsabilidade civil subjetiva, de modo a possibilitar a devida indenização pelos danos

sofridos ante o abandono afetivo parental.

106 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 565.

Page 47: RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO · RESUMO O presente trabalho monográfico aborda a questão da responsabilidade civil pelo abandono afetivo parental, situação cada

47

3 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL

A partir dos elementos apresentados, importante se faz a análise de decisões

judiciais pátrias sobre o tema, mormente nas instâncias superiores, tanto naquelas em que não se

reconhece o direito à responsabilização pelo abandono afetivo, como nas em que se vislumbra tal

possibilidade.

3.1 DECISÕES DENEGATÓRIAS À RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL PELO

ABANDONO AFETIVO

A análise de decisões dos tribunais superiores na matéria de responsabilização

civil pelo abandono afetivo tem, como ponto de partida, o julgamento do Recurso Especial nº

757.411-MG, de relatoria do Ministro Francisco Gonçalves. A ementa do presente julgado

recebeu a seguinte redação:

RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS

MORAIS. IMPOSSIBILIDADE.

1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo

à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo,

incapaz de reparação pecuniária.

2. Recurso especial conhecido e provido.107

O caso em apreço refere-se a ação ordinária proposta por A. B F. contra seu

genitor, V. DE P. F. DE O., pleiteando indenização por danos morais decorrentes do abandono

afetivo por ele perpetrado. Sustenta o autor ter sido descurado pelo genitor o dever de assistência

psíquica e moral, evitando-lhe o contato, apesar de cumprir a obrigação alimentar. Aduz não ter

tido oportunidade de conhecer e conviver com a meia-irmã, além de ignoradas todas as tentativas

de aproximação do pai, que por seu não comparecimento em ocasiões importantes, quer por sua

atitude displicente, situação causadora de extremo sofrimento e humilhação, restando

caracterizada a conduta omissa culposa a ensejar reparação.

O genitor, por sua vez, esclarecer ser a demanda resultado do inconformismo da

genitora com a ação revisional de alimentos, na qual foi pretendida a redução da verba alimentar.

107 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 757.411-MG. Relator: Ministro Francisco Gonçalves.

Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=2114211&num_registr

o=200500854643&data=20060327&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 15jul.2015.

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48

Assevera ter visitado regularmente o filho, trazendo-o em sua companhia nos finais de semana,

até o momento em que as atitudes da mão, com telefonemas insultuosos e instruções ao filho de

agredir a meio-irmão, tornaram a situação doméstica durante o convívio quinzenal insuportável.

Em primeira instância, o Juiz de Direito da 19ª Vara Cível da Comarca de Belo

Horizonte/MG julgou improcedente o pedido inicial, ressaltando que o laudo psicológico não

estabeleceu exata correlação entre o afastamento paterno e o desenvolvimento de sintomas

psicopatológicos no filho, não tendo detectado sinais de comprometimento psicológico ou

qualquer sintomatologia associada a eventual malogro do laço paterno filial. Além disso, não foi

colhido no conjunto probatório descaso intencional do genitor para com a criação, educação e a

formação da personalidade do filho, de molde a caracterizar o estado de abandono, tampouco

para determinar a perda do pátrio poder.

Em grau de apelação, a Sétima Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Estado de

Minas Gerais deu provimento ao recurso para condenar o genitor ao pagamento de indenização

por danos morais no valor de R$ 44.000,00, entendendo configurado nos autos o dano sofrido

pelo autor em sua dignidade, bem como a conduta ilícita do genitor, ao deixar de cumprir seu

dever familiar de convício com o filho e com ele formar laços de paternidade.

A ementa do julgamento da apelação foi redigida nos seguintes termos:

INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS - RELAÇÃO PATERNO-FILIAL - PRINCÍPIO

DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE.

A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à

convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no

princípio da dignidade da pessoa humana.108

Em seu voto, o Ministro Relator Fernando Gonçalves, divergindo do entendimento

adotado pela Turma Recursal mineira, assinala que:

No caso de abandono ou do descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e

educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder familiar,

antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 24, quanto no

108 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação n. 408.555-5. Relatora Juiz Unias Silva.

Disponível em:

<http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do;jsessionid=A6C4104631C2A6927

E72B651B5A00060.juri_node1?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=4085505-

54.2000.8.13.0000&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar>. Acesso em: 18jul.2015.

Page 49: RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO · RESUMO O presente trabalho monográfico aborda a questão da responsabilidade civil pelo abandono afetivo parental, situação cada

49

Código Civil, art. 1638, inciso II. Assim, o ordenamento jurídico, com a determinação

da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai, já se

encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando eficientemente

aos indivíduos que o Direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do

abandono, como que cai por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a

indenização pelo abandono moral.109

Por fim, o Ministro Fernando Gonçalves assevera que "escapa ao arbítrio do

Judiciário obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade

positiva seria alcançada com a indenização pleiteada".110 Portanto, considerou inexistir a

possibilidade de reparação a que aludia o artigo 159 do Código Civil de 1916, não tendo sido

reconhecido o abandono afetivo como dano passível de indenização.

No julgamento do presente Recurso Especial, o Ministro Barros Monteiro, em

voto vencido, expressou sua divergência no sentido de que, deixando o genitor de cumprir seu

dever familiar de convívio e afeto com o filho, bem como o de preservar os laços da paternidade,

pratica uma conduta ilícita, passível de reparação. Nesse sentido, considera o Ministro que:

[...] a destituição do poder familiar, que é uma sanção do Direito de Família, não

interfere na indenização por dano moral, ou seja, a indenização é devida além dessa

outra sanção prevista não só no Estatuto da Criança e do Adolescente, como também no

Código Civil anterior e no atual.111

Já o Ministro Cesar Asfor Rocha, acompanhando o entendimento do Relator,

assinala que:

[...] tudo quanto se disser respeito às relações patrimoniais e aos efeitos patrimoniais das

relações existentes entre parentes e entre os cônjuges só podem ser analisadas e

apreciadas à luz do que está posto no próprio Direito de Família. Essa compreensão

decorre da importância que tem a família, que é alçada à elevada proteção constitucional

como nenhuma outra entidade vem a receber, dada a importância que tem a família na

formação do próprio Estado. Os seus valores são e devem receber proteção muito além

da que o Direito oferece a qualquer bem material. Por isso é que, por mais sofrida que

tenha sido a dor suportada pelo filho, por mais reprovável que possa ser o abandono

praticado pelo pai – o que, diga-se de passagem, o caso não configura – a repercussão

que o pai possa vir a sofrer, na área do Direito Civil, no campo material, há de ser

109 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 757.411-MG. Relator: Ministro Francisco Gonçalves.

Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=2114211&num_registr

o=200500854643&data=20060327&tipo=5&formato=PDF>. p. 6-7. 110 Ibid., p. 9. 111 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 757.411-MG. Voto Ministro Barros Monteiro.

Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=2179177&num_registr

o=200500854643&data=20060327&tipo=52&formato=PDF>. p. 2.

Page 50: RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO · RESUMO O presente trabalho monográfico aborda a questão da responsabilidade civil pelo abandono afetivo parental, situação cada

50

unicamente referente a alimentos; e, no campo extrapatrimonial, a destituição do pátrio

poder, no máximo isso.112

No presente caso o autor chegou a interpor Recurso Extraordinário, sob o número

RE 567164, perante o Supremo Tribunal Federal, porém foi arquivado pela Ministra Ellen

Gracie, uma vez ter aquela Corte fixado entendimento segundo o qual a análise de indenização

por danos morais é limitado ao âmbito de interpretação de matéria infraconstitucional, inatacável

por recurso extraordinário. Para a Ministra, todavia, para o ato contestado, a legislação pertinente

prevê punição específica, a saber, a perda do poder familiar, nos casos de abandono do dever de

guarda e educação dos filhos.

Demostra-se, assim, que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, à época,

era da impossibilidade de reparação de danos devido ao abandono moral, sendo considerada

apenas a punição da perda do poder familiar.

3.2 DECISÕES FAVORÁVEIS À RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL PELO ABANDONO

AFETIVO

O Superior Tribunal de Justiça, em decisão paradigma, no julgamento do Recurso

Especial nº 1.159.212-SP, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, asseverou inexistir restrição

legal à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil, com o consequente dever de

indenizar, no âmbito do Direito de Família. A ementa do presente julgamento foi redigida nos

seguintes termos:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO

AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade

civil e o consequente dever de indenizar⁄compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico

brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas

diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF⁄88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se

reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non

facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação,

educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal,

112 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 757.411-MG. Voto Ministro Cesar Asfor Rocha.

Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=2173192&num_registr

o=200500854643&data=20060327&tipo=2&formato=PDF>. p. 1.

Page 51: RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO · RESUMO O presente trabalho monográfico aborda a questão da responsabilidade civil pelo abandono afetivo parental, situação cada

51

exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por

abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de

um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais

que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à

afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores

atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de

reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em

recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem

revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido.113

O caso em análise diz respeito à ação de indenização por danos materiais e

compensação por danos morais ajuizada por Luciane Nunes de Oliveira Souza, em desfavor do

seu genitor, sob a alegação de ter sofrido abandono material e afetivo durante sua infância e

juventude. Em primeiro grau, o Juiz julgou improcedente o pedido, ao fundamento de que o

distanciamento entre pai e filha deveu-se, primordialmente, ao comportamento agressivo da

genitora em relação ao genitor, nas ocasiões em que houve contato entre as partes, após a ruptura

do relacionamento ocorrido.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em grau de apelação, reconheceu o

abandono afetivo da filha, por parte de seu genitor, tendo fixado a compensação por danos morais

no montante de R$ 415.000,00 (quatrocentos e quinze mil reais). O presente julgado recebeu a

seguinte ementa:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. FILHA HAVIDA DE

RELAÇÃO AMOROSA ANTERIOR. ABANDONO MORAL E MATERIAL.

PATERNIDADE RECONHECIDA JUDICIALMENTE. PAGAMENTO DA PENSÃO

ARBITRADA EM DOIS SALÁRIOS MÍNIMOS ATÉ A MAIORIDADE.

ALIMENTANTE ABASTADO E PRÓSPERO. IMPROCEDÊNCIA. APELAÇÃO.

RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.114

Inconformado com tal decisão, o genitor interpôs Recurso Especial perante o

Superior Tribunal de Justiça, alegando não ter abandonado sua filha, conforme afirmado pelo

113 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.159.212-SP. Relatora: Ministra Nancy Andrighi.

Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=15890657&num_regis

tro=200901937019&data=20120510&tipo=5&formato=HTML>. Acesso em: 18jul.2015. 114 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação n. 361.389.4/2-00. Relatora Daise Jacot.

Disponível em:

<http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=3393292&cdForo=0&vlCaptcha=iurmW>. Acesso em:

18jul.2015.

Page 52: RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO · RESUMO O presente trabalho monográfico aborda a questão da responsabilidade civil pelo abandono afetivo parental, situação cada

52

Tribunal de origem e, ainda que assim tivesse procedido, tal fato não se reveste de ilicitude,

sendo a única punição legal cabível para o descumprimento das obrigações relativas ao poder

familiar, notadamente o abandono, a perda do respectivo pátrio poder, conforme previsão contida

no artigo 1.638 do Código Civil de 2002.

A Ministra Nancy Andrighi, em seu brilhante voto, inicialmente asseverou não

haver restrições legais à aplicação das regras de responsabilidade civil, com o consequente dever

de indenizar/compensar, no Direito de Família. Para a relatora:

Ao revés, os textos legais que regulam a matéria (art. 5º, V e X da CF e arts. 186 e 927

do CC-02), tratam do tema de maneira ampla e irrestrita, de onde é possível se inferir

que regulam, inclusive, as relações nascidas dentro de um núcleo familiar, em suas

diversas formas.115

Ainda em análise preliminar, a relatora assinalou que a perda do poder familiar

não suprime, nem afasta, a possibilidade de indenizações ou compensações, haja vista que, na

realidade, a perda do pátrio poder “tem como objetivo primário resguardar a integridade do

menor, ofetando-lhe, por outros meios, a criação e educação negada pelos genitores, e nunca os

prejuízos advindos do malcuidado recebido pelos filhos”.116

A caracterização do dano moral, nas relações familiares, é tarefa de extrema

complexidade, tendo presente o elevado grau de subjetividade existente neste tipo de

relacionamento, fato que dificulta a configuração o trinômio da responsabilidade civil subjetiva, a

saber, o dano, a culpa do agente e o nexo causal. Diante de tal dificuldade, a Ministra Nancy

Andrighi ressalta que:

[…] indiscutível o vínculo não apenas afetivo, mas também legal que une pais e filhos,

sendo monótono o entendimento doutrinário de que, entre os deveres inerentes ao poder

familiar, destacam-se o dever de convício, de cuidado, de criação e educação dos filhos,

vetores que, por óbvio, envolvem a necessária transmissão de atenção e o

acompanhamento do desenvolvimento sócio-psicológico da criança.117

115 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.159.212-SP. Voto Relatora: Ministra Nancy

Andrighi. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=14828610&num_regis

tro=200901937019&data=20120510&tipo=51&formato=PDF>. p. 3. 116 Ibidem, p. 4. 117 Ibidem, p. 5.

Page 53: RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO · RESUMO O presente trabalho monográfico aborda a questão da responsabilidade civil pelo abandono afetivo parental, situação cada

53

A partir da análise de tais parâmetros, resta clara a obrigação legal dos genitores

no tocante à manutenção de sua prole. Corroborando tal fato, deve-se levar em conta que o

descumprimento pelos genitores, sem justa causa, da responsabilidade de manutenção dos filhos,

poderá gerar inclusive a prisão civil.

A análise da responsabilidade civil subjetiva do genitor no caso, passa pela

perquirição da existência de ação ou omissão, juridicamente relevante, que pudesse permitir sua

responsabilização, e, ainda, eventual causa de excludente de culpabilidade incidente à espécie.

Para a relatora, a obrigação legal de cuidado é considerada dever jurídico dos genitores, pois,

diferentemente do amor:

[…] é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de

verificação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença;

contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações

entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas

possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes.118

Assim, em caso de comprovação do descumprimento de tal imposição legal,

caracterizada estará a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma omissiva, atingindo bem

juridicamente tutelado, no caso o dever de criação, educação e cuidado. Porém, além de tal

comprovação, deverá ser verificada a existência de dolo ou culpa comprovada do agente em

relação ao evento danoso. Nesse sentido, esclarece a Ministra Nancy que:

Eclipsa, então, a existência de ilicitude, situações que, não obstante possam gerar algum

tipo de distanciamento entre pais e filhos, como o divórcio, separações temporárias,

alteração de domicílio, constituição de novas famílias, reconhecimento de orientação

sexual, entre outras, são decorrências das mutações sociais e orbitam o universo dos

direitos potestativos dos pais – sendo certo que quem usa de um direito seu não causa

dano a ninguém (qui iure suo utitur neminem laedit).

De igual forma, não caracteriza a vulneração do dever do cuidado a impossibilidade

prática de sua prestação e, aqui, merece serena reflexão por parte dos julgadores, as

inúmerar hipóteses em que essa circunstância é verificada, abarcando desde a alienação

parental, em seus diversos graus – que pode e deve ser arguida como excludente de

ilicitude pelo genitor/adotante que a sofra –, como também outras, mais costumeiras,

como limitações financeiras, distâncias geográficas etc.119

118 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.159.212-SP. Voto Relatora: Ministra Nancy

Andrighi. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=14828610&num_regis

tro=200901937019&data=20120510&tipo=51&formato=PDF>. p. 9. 119 Ibidem, p. 9-10.

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Pelas razões expostas, caberá ao magistrado a minuciosa análise do caso concreto,

mormente para se evitar a prática de injustiças, devendo sempre observar o preceito

constitucional de proteção aos menores, bem como as necessidades da prole, considerando o

binômio necessidade e possibilidade.

Verificada a assertiva de que a negligência em relação ao objetivo dever de

cuidado é ilícito civil, para que seja caracterizado o dever de indenizar, deverá ser estabelecida a

existência do dano e do nexo causal. A Ministra relatora assevera que uma forma simples de

verificar a ocorrência desses elementos é “a existência de laudo formulado por especialista, que

aponte a existência de uma determinada patologia psicológica e a vincule, no todo ou em parte,

ao descuido por parte de um dos pais”.120

Entretanto, ressalta a Ministra Nancy que “não se deve limitar a possibilidade de

compensação por dano moral a situações símeis aos exemplos, porquanto inúmeras outras

circunstâncias dão azo à compensação”.121 E conclui, no caso analisado, que “impende

considerar existente o dano moral, pela concomitante existência da tróica que a ele conduz:

negligência, dano e nexo”.122

Em voto vista no julgamento do presente Recurso Especial, o Ministro Sidnei

Beneti, que deu parcial provimento ao recurso, para conhecer da responsabilidade civil do

recorrente, porém reduzindo o montante da indenização fixada na origem, asseverou ser possível,

em princípio:

[…] a indenização por dano moral, decorrente do abandono de filho, agravado por

tratamento discriminatório em comparação com outros filhos, não importando seja, o

filho lesado, havido em virtude de relacionamento genésico fora do casamento, antes ou

depois deste, nem importando seja o reconhecimento voluntário ou judicial, porque a lei

não admite a distinção, pelos genitores, entre as espécies de filhos – naturais ou

reconhecidos.

Nesse sentido a interpretação dos dispositivos legais anotados pelo voto da E. Relatora

(CF, arts. 1º, III, 5º, V e X, e CC/2002, arts. 186 e 827, e ECA, art. 227), não podendo

ser erigida como eximente indenizatória a sanção constituída pela perda do poder

familiar (CC/2002, art. 1.638, II c.c art. 1634, II), porque de uma sanção, de natureza

120 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.159.212-SP. Voto Relatora: Ministra Nancy

Andrighi. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=14828610&num_regis

tro=200901937019&data=20120510&tipo=51&formato=PDF>. p. 11. 121 Ibidem, p. 12. 122 Ibidem, id.

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55

familiar, por ação ou omissão reprováveis do genitor, a perda do poder familiar, não será

congruente extrair o despojamento de direito a outra sanção, de consequências

patrimoniais, consistente na indenização por dano moral, até porque o contrário

significaria impor ao lesado a perda de direito (indenização por dano moral) devido a

haver sido vítima de ação ou omissão do mesmo ofensor (abandono), ao mesmo tempo

em que isso ensejaria dupla vantagem ao ofensor, com o despojamento de

responsabilidades familiares e indenizabilidade de dano moral (tornando-se verdadeiro

incentivo ao abandono familiar).123

Já o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em seu voto vista, expressou

entendimento no sentido de que:

Não se pode olvidar que as frustrações experimentadas no seio familiar, além de

contribuírem para o crescimento e para o desenvolvimento do indivíduo, são, em parte,

próprias da vida e, por isso mesmo, inevitáveis.

Sendo assim, entendo que o reconhecimento de dano moral em matéria de família é

situação excepcionalíssima, devendo-se admitir apenas em casos extremos de efetivo

excesso nas relações familiares.124

No presente caso, o Ministro Sanseverino entendeu que o caso em análise situa-se

dentro dessa excepcionalidade, merecendo ser reconhecida a ocorrência de ato ilícito causador de

dano moral. Importante destacar trecho do voto vista em que é assinalado ser imprescindível:

[…] apoiar-se sobre firme substrato e esclarecer que o abandono afetivo ocorre apenas

quando o progenitor descumpre totalmente seu dever de cuidado, infringindo

flagrantemente as mais comezinhas obrigações para com seu filho.

Evita-se, desse modo, eventual abuso por parte de filhos que, insatisfeitos com episódios

específicos de sua criação, pleiteiam a indenização por danos supostamente sofridos.

O recorrente apresentou embargos de divergência contra a presente decisão da 3ª

Turma. A 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça rejeitou o cabimento dos embargos, fato que

impossibilitou uniformização da jurisprudência da Corte, haja vista existirem divergências em

relação à apreciação da matéria em julgamentos anteriores. Para a maioria dos Ministros da

referida Seção, as peculiaridades dos fatos que instruíram os respectivos autos não possibilitaram

a configuração de comparação para efeito de uniformização de jurisprudência.

123 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.159.212-SP. Voto Vista Ministro Sidnei Beneti.

Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=19387353&num_regis

tro=200901937019&data=20120510&tipo=3&formato=PDF>. p. 2-3. 124 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.159.212-SP. Voto Vista Ministro Paulo de Tarso

Sanseverino. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=21199377&num_regis

tro=200901937019&data=20120510&tipo=3&formato=PDF>. p. 2.

Page 56: RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO · RESUMO O presente trabalho monográfico aborda a questão da responsabilidade civil pelo abandono afetivo parental, situação cada

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Por tal razão, a configuração da possibilidade de responsabilização civil pelo

abandono afetivo deverá ser verificada no caso concreto, merecendo análise minuciosa por parte

magistrado eventual descumprimento dos genitores do necessário dever de cuidado da prole.

Page 57: RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO · RESUMO O presente trabalho monográfico aborda a questão da responsabilidade civil pelo abandono afetivo parental, situação cada

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CONCLUSÃO

O presente trabalho monográfico procurou demonstrar o atual estágio da

responsabilização civil pelo abandono afetivo na doutrina e jurisprudência nacional. Para tanto,

deve-se ter presente o avanço experimentado na conceituação de família. O núcleo familiar, que

outrora era formado pelo pai, mãe e filhos, nos dias atuais foi radicalmente modificado. A

proteção familiar não pode ser restringida tão somente aos casais heterossexuais, deve ser

estendida igualmente à família monoparental, caracterizada quando apenas um dos genitores se

responsabiliza pela prole, bem como aos casais homoafetivos, formas modernas de entidade

familiar e que merecem atenção do Estado.

A nova caracterização do seio familiar atende aos princípios do Direito de Família

da pluralidade de formas de família, da igualdade e respeito à diferença, e visa tutelar o melhor

interesse do menor. Resguarda, ademais, os princípios da afetividade e da dignidade da pessoa

humana. Todos os princípios são consagrados, ainda que implicitamente, na Carta Magna de

1988.

A responsabilidade civil tem por objetivo restaurar o equilíbrio moral e

patrimonial causado pelo dano causado por determinada pessoa. Assim, possui como pressuposto

a ocorrência de um dano, bem como do nexo de causalidade entre ele, o efeito e a conduta, como

causa. Sem sua ocorrência não há que se falar em ilícito civil e indenização. Por tal razão, no caso

do abandono afetivo, de suma importância será a demonstração, através de exames e laudos

periciais, que o dano causado à criança possui como fato gerador o abandono parental, ato ilícito

civil que deverá ser reparado mediante indenização.

A Constituição Federal de 1988 preceitua, em seu artigo 227, a proteção integral

da criança e do adolescente, salvaguardando seus direitos integralmente, inclusive de toda a

forma de negligência, tanto pelo Estado quanto pela família. Corroborando o texto constitucional,

o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê princípios reguladores das relações familiares, em

especial o convívio entre pais e filhos, o direito de possuírem desenvolvimento sadio e

harmonioso e de serem criados e educados pela sua própria família.

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O abandono afetivo pode ser caracterizado quando os filhos são privados de

conviver com os seus genitores, seja por imposição de um dos pais, seja pela vontade própria de

um deles em se abster de cumprir com os deveres da paternidade. Com tal abstenção, tem-se a

configuração de dano na formação psicológica da prole, fato violador do princípio da dignidade

da pessoa humana, passível de compensação por dano moral.

Deve-se ter presente que, para configuração do dano moral, passível de reparação,

deverá ser observada a existência, em concomitância, da negligencia parental, caracterizada

principalmente pelo abandono afetivo, bem como que tal fato gere um dano à prole, apurado

através de perícia médico-psicológica, fato que demonstrará o nexo entre a conduta e o resultado,

gerador da necessária responsabilização civil.

O afeto é considerado como delineador do caráter de uma pessoa, motivo pelo qual

a família é considerada a base da sociedade, recebendo, por isso, especial atenção por parte do

Estado. Por tal razão, a omissão parental no cumprimento dos deveres do seu poder familiar é

capaz de gerar graves traumas à vida dos filhos, motivo pelo qual merece severa punição por

parte do Poder Judiciário, de modo a que se iniba tal prática, bem como haja uma maior

responsabilidade ante o descumprimento do dever de cuidado.

Certo é, porém, que cada caso deverá ser analisado minunciosamente pelas

autoridades competentes, de modo a evitar o desvirtuamento e a banalização do instituto do dano

moral pelo abandono afetivo. A jurisprudência pátria demonstra tal fato, uma vez que em

determinados casos a culpa pelo afastamento de um dos genitores é causada pelo outro, por

problemas no rompimento da relação, que trazem prejuízos graves à formação dos filhos. A

configuração do dano deverá ser verificada de forma cabal, onde o genitor de fato abandona sua

prole, não demonstra interesse em cumprir com suas responsabilidades parentais, fato repugnante

e que merece punição, não apenas com a perda do pátrio poder, mas também com a reparação

civil pelos graves danos causados aos filhos.

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