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CONKLIN, Beth A. 2001. Consuming grief. Compassionate cannibalism in an Amazonian society. Austin: Univer- sity of Texas Press. 285 pp. Els Lagrou PPGSA-IFCS-UFRJ O título do livro da antropóloga ame- ricana Beth Conklin, Consuming grief. Compassionate cannibalism in an Ama- zonian society, contém na sua primeira parte uma armadilha para o leitor e uma dúvida para o tradutor: deve-se traduzir consuming grief por “O luto (ou a dor) que consome” ou por “Con- sumindo o luto (a dor)”? A segunda par- te do título leva a supor que a segunda opção seja a mais correta, pois comple- ta o título explicitando que o livro tra- ta do “Canibalismo por compaixão em uma sociedade amazônica”. Só que a armadilha não parece ter sido colocada por engano; o livro quer exatamente mostrar que para o povo que se autode- nomina Wari’ (nós, gente) e que era co- mumente conhecido como Paaka Nova, a prática endocanibalística, de comer os próprios mortos, visava exatamente es- se efeito, o de transformar um luto de- vastador, um luto que consumia os vi- vos, em um consumo que ajudasse os enlutados e o próprio morto a lidar com a perda, a não se deixar levar pelo luto. A idéia expressa neste livro não deixa dúvida com relação à convicção RESENHAS MANA 9(2):201-222, 2003 wari’ de que era através da transforma- ção e aniquilamento ritualizado do cor- po do morto, vivenciado e visualizado por todos os parentes próximos e reali- zado como favor e com muita resistên- cia por afins próximos, que se operava antigamente (até o contato com os bran- cos, que se deu para alguns Wari’ so- mente a partir do final dos anos 50, iní- cio dos anos 60, para outros mais cedo) uma mudança profunda na relação en- tre o morto e os enlutados. Ver a pes- soa transformar-se em não-pessoa aju- daria os enlutados a aceitar a morte, pe- lo menos a encará-la como um fato in- contornável. Esse elaborado processo de fazer desaparecer o corpo da pessoa morta se situa em uma cosmologia que vê na destruição de um corpo morto a possi- bilidade de adquirir um novo corpo vi- vo. E não somente o corpo tinha que de- saparecer para a vida poder recomeçar, tanto para o morto quanto para os vivos, mas também todos os pertences do mor- to, todos os traços do morto, tudo que prenderia a memória dos vivos à antiga imagem do ente querido que se foi. Nesse sentido, o ritual funerário Wari’ pode ser lido como um exemplo extre- mo (mas não único, pois uma lógica si- milar informa o endocanibalismo gua- yaki, yanomami e pano) de uma regra generalizável para todos os ameríndios e que foi anunciada nos anos 70 por Pierre Clastres e Manuela Carneiro da Cunha: se o morto se torna Outro por-

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Page 1: RESENHAS - SciELO · 2003-11-26 · por todos os parentes próximos e reali-zado como favor e com muita resistên-cia por afins próximos, que se operava antigamente (até o contato

CONKLIN, Beth A. 2001. Consuminggrief. Compassionate cannibalism inan Amazonian society. Austin: Univer-sity of Texas Press. 285 pp.

Els LagrouPPGSA-IFCS-UFRJ

O título do livro da antropóloga ame-ricana Beth Conklin, Consuming grief.Compassionate cannibalism in an Ama-zonian society, contém na sua primeiraparte uma armadilha para o leitor euma dúvida para o tradutor: deve-setraduzir consuming grief por “O luto(ou a dor) que consome” ou por “Con-sumindo o luto (a dor)”? A segunda par-te do título leva a supor que a segundaopção seja a mais correta, pois comple-ta o título explicitando que o livro tra-ta do “Canibalismo por compaixão emuma sociedade amazônica”. Só que aarmadilha não parece ter sido colocadapor engano; o livro quer exatamentemostrar que para o povo que se autode-nomina Wari’ (nós, gente) e que era co-mumente conhecido como Paaka Nova,a prática endocanibalística, de comer ospróprios mortos, visava exatamente es-se efeito, o de transformar um luto de-vastador, um luto que consumia os vi-vos, em um consumo que ajudasse osenlutados e o próprio morto a lidar coma perda, a não se deixar levar pelo luto.

A idéia expressa neste livro nãodeixa dúvida com relação à convicção

RESENHAS

MANA 9(2):201-222, 2003

wari’ de que era através da transforma-ção e aniquilamento ritualizado do cor-po do morto, vivenciado e visualizadopor todos os parentes próximos e reali-zado como favor e com muita resistên-cia por afins próximos, que se operavaantigamente (até o contato com os bran-cos, que se deu para alguns Wari’ so-mente a partir do final dos anos 50, iní-cio dos anos 60, para outros mais cedo)uma mudança profunda na relação en-tre o morto e os enlutados. Ver a pes-soa transformar-se em não-pessoa aju-daria os enlutados a aceitar a morte, pe-lo menos a encará-la como um fato in-contornável.

Esse elaborado processo de fazerdesaparecer o corpo da pessoa morta sesitua em uma cosmologia que vê nadestruição de um corpo morto a possi-bilidade de adquirir um novo corpo vi-vo. E não somente o corpo tinha que de-saparecer para a vida poder recomeçar,tanto para o morto quanto para os vivos,mas também todos os pertences do mor-to, todos os traços do morto, tudo queprenderia a memória dos vivos à antigaimagem do ente querido que se foi.Nesse sentido, o ritual funerário Wari’pode ser lido como um exemplo extre-mo (mas não único, pois uma lógica si-milar informa o endocanibalismo gua-yaki, yanomami e pano) de uma regrageneralizável para todos os ameríndiose que foi anunciada nos anos 70 porPierre Clastres e Manuela Carneiro daCunha: se o morto se torna Outro por-

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que a pessoa se situa, antes de mais na-da, no seu corpo que deixou de existir enão em alguma essência interior e eter-na (a alma), insistir no luto significariauma ameaça à sociedade dos vivos. Poresta razão, é preciso ajudar o própriomorto e os vivos a realizarem a ruptura,tornando-a explícita, em vez de negá-laao enfatizar a continuidade, como fa-riam os cultos aos ancestrais nas socie-dades africanas.

Esta seria a interpretação clássica eválida até hoje do estatuto do morto en-tre os ameríndios. Se o morto se trans-forma em Outro e a Alteridade implicainimizade, o endocanibalismo não se-ria senão um caso específico do exoca-nibalismo (como sugerem Albert, Clas-tres, Viveiros de Castro e Vilaça). Comero outro seria o sinal e a afirmação da al-teridade entre quem come e o que é co-mido. É nesse contexto que se podeapreciar a originalidade da abordagemde Conklin e a contribuição inovadoraque ela traz ao debate. O livro vem emmomento oportuno retomar a possibili-dade de se pensar o endocanibalismoindependentemente do exocanibalis-mo. Os Wari’ praticavam os dois tiposde canibalismo e as diferenças entre otratamento ritual dado ao corpo do ini-migo e ao corpo do parente já tinhamsido elaboradas por Vilaça. Por essarazão, Conklin decide não trabalhar oexocanibalismo, a não ser de forma mui-to pontual para sinalizar o contrasteentre os dois fenômenos: onde se comeo inimigo com raiva e gula, come-se oparente chorando, com repulsa e segu-rando a carne desfiada entre pequenospalitos.

Esse tratamento independente dosdois fenômenos me parece extrema-mente fecundo, mesmo se for precisoem um outro momento retomar a rela-ção estrutural entre o ritual funeráriotradicional e o tratamento antigamente

dado pelos Wari’ aos outros, inimigos,mortos por eles. Poder-se-ia sugerir atéuma inversão de perspectivas segundoa qual, como entre os Tupinambá, seprestava um serviço ao inimigo (que nãoera outra coisa que um parente distante,de outra facção) quando este era mortoe consumido em mãos alheias. É estatambém a interpretação sugerida pelosnativos quando interrogados sobre anti-gas práticas canibalísticas: dizem prefe-rir ser comidos que o triste destino docorpo colocado embaixo da terra fria.

O que me parece mais importante,no entanto, é a atenção dada à qualida-de emocional que informa as ações. Aanálise do endocanibalismo como umritual funerário que lida com sentimen-tos de perda e apego era necessária eurgente porque a sombra da matriz ex-plicativa inspirada no exocanibalismonão permitia que se escutasse com maiscuidado o ponto de vista do nativo quediz comer por compaixão. Esta mesmaexplicação para o endocanibalismo foiregistrada pelo missionário Tastevin noinício do século XX com relação aos Ka-xinawa e foi reencontrada por mim nosanos 80 durante longas conversas como único habitante da aldeia que me dis-se ter tido experiências endocaniba-lísticas na adolescência, na década de40. O comer por compaixão também foio argumento usado pelos Guayaki aofalarem com os Clastres de sua reinci-dência no endocanibalismo por ocasiãoda morte de um bebê, nos anos 60. Pier-re Clastres, no entanto, não explorou opotencial explicativo dessa afirmaçãonativa.

Segundo Erikson, o endocanibalis-mo pano teria sido um antiexocaniba-lismo, ou seja, a preocupação em comero corpo de um parente seria informadapela lógica da guerra: comia-se o pró-prio morto para que outros não o co-messem. Esta interpretação parte da ló-

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gica de uma economia simbólica emque se supõe que o canibalismo é mo-tivado pelo interesse na incorporaçãode energias e forças vitais, evitando queestas passem para o inimigo, ou rein-corporando o que a sociedade perdeucom a morte de um membro ativo. Esteargumento, no entanto, não dá contadas motivações psicológicas e dos as-pectos existenciais da prática. Pois separecia absolutamente possível aos es-tudiosos acima citados imaginar que secomesse um inimigo como expressão deraiva, denotando um estado de alteri-dade, objetivação e aniquilamento doOutro, não se tinha avançado muitoainda na explicação do que moveria umparente a querer cortar, cozinhar e co-mer o corpo de um ser amado.

O mérito do trabalho de Conklin éde ter tocado, analisado e contextuali-zado essa questão tão sensível de umamaneira extremamente sutil na melhortradição antropológica de tornar o exó-tico familiar, só que dessa vez não atra-vés das razões impessoais de uma eco-nomia simbólica que tem razões que ocoração desconhece, mas partindo dotão invocado ponto de vista do nativopara propor uma outra explicação ana-lítica que também faz sentido dentro doscânones da nossa disciplina ameríndia,além de estar em total consonância comdados de outras pesquisas recentes, co-mo os que dizem respeito ao endocani-balismo kaxinawa (os Kaxinawa desco-nhecem o exocanibalismo e entre eleseram os próprios parentes mais próxi-mos, os que conviviam com o morto e‘partilhavam da sua carne’, que comiamo cadáver, e não somente os afins).

Assim, Conklin mostra que os Wari’não comem seus mortos apesar da im-portância que dão aos corpos que aju-daram a produzir, mas por causa dela.O corpo sofre um processo de transfor-mação na mão da comunidade que cor-

responde à violenta transformação quesua morte provocou. Essa operação, in-formada pela compaixão tanto pelo mor-to quanto pelos enlutados, não nega aconvicção ameríndia de que os mortosse tornam Outros e que, enquanto Ou-tros, podem representar um perigo paraos vivos, mas realça o caráter proces-sual desse tornar-se outro.

Também fica claro, através da exe-gese nativa dos processos de comer/sercomido, nutrir e ser nutrido, que existepara os Wari’ uma continuidade entrevivos e mortos expressa, em vez de ne-gada, mediante o processo de comer: osmortos nutrem os vivos por causa doamor que ainda sentem pelos seus, nãotanto durante o ritual funerário, quandosão os vivos que reverenciam os mor-tos comendo sua carne pútrida, masdepois de terem se transformado emhabitantes do mundo subaquático. Poisde lá sairão a pedido dos vivos na for-ma de queixadas para alimentar os pa-rentes com a abundância da sua carnealtamente apreciada por seu gosto, va-lor nutritivo e quantidade. E os Wari’afirmam que os que vêm, movidos pelocanto dos parentes, não são os ances-trais que há muito morreram e já se es-queceram dos seus, mas os recém-fale-cidos, que oferecem seus corpos dequeixada para continuar alimentandoos seus como o faziam antes, quandoainda estavam vivos.

Este é, portanto, um livro originalpor abordar o canibalismo sob a égidedo cuidar, da continuidade e da dor, docomer apesar de si e não apesar do ou-tro que é comido, em vez de tomar co-mo dado o pressuposto que comer hu-manos necessariamente tem a ver compredação.

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ERIKSON, Philippe e LENAERTS, Marc(orgs.). 2002. Idées à bouturer. Ethno-écologie amazonienne. Nanterre: Com-mission Européenne, Université Librede Bruxelles e Laboratoire d’Ethno-logie et de Sociologie Comparative.306 pp.

Diego VillarCONICET, Argentina

As mais de trezentas páginas de Idéesà bouturer. Ethno-écologie amazonien-ne reúnem os resultados finais do pro-jeto científico TSEMIM (Transmissionet Transformation des Savoirs sur l’ En-vironnement en Milieux Indigènes etMétis). Este empreendimento, levado acabo entre 1997 e 2001 na região defronteira entre Peru e Brasil, procurouapreender os diversos modos culturaisde transmissão e transformação do sa-ber sobre o meio ambiente amazônico.O TSEMIM pode ser acusado de qual-quer coisa, menos de não ser pluralis-ta. Participaram investigadores belgas,brasileiros, espanhóis, franceses e pe-ruanos. Ademais, etnólogos, botânicos,fitossociólogos e especialistas em geo-processamento esforçaram-se para su-perar oposições antigas e artificiais en-tre as ciências duras e as ciências hu-manas, procurando combinar a identifi-cação precisa das espécies botânicascom a sensibilidade antropológica parao exame da vida social.

Os escritos apresentados, com efei-to, procuram contextualizar as práti-cas produtivas e as representações so-bre o meio ambiente no quadro das cos-movisões e estruturas cognitivas queas acompanham. Fazem-no, é precisodestacar, documentando suas imensasvariações intra e intergrupais. A sele-ção de casos etnográficos é tão amplaquanto diversificada, compreendendo

grupos Amahuaca, Yawanawa, Shipi-bo, Yaminahua, Chacobo, Yora, Chito-naua e Ashaninka. Não obstante, tal-vez o mais interessante do volume sejaa incorporação na “amostra” de popu-lações mestiças do Peru e de seringuei-ros brasileiros. Com freqüência igno-rados, as práticas e os conhecimentosmestiços são protagonistas principaisda circulação e fluidez dos saberes ta-xonômicos e xamânicos; não somenteno diálogo entre grupos étnicos distin-tos, mas também diacronicamente nointerior do grupo, entre as distintas ge-rações. O fluxo instável mas contínuode influências e negociações recíprocasconstitui, pois, o circuito no qual deveser contextualizada qualquer reconstru-ção do caudaloso tráfico amazônico dealucinógenos e plantas medicinais.

Tanto a amplitude quanto a coerên-cia da temática são impressionantes.Idées à bouturer contém textos sobre fi-tossociologia (Valencia-Chacón e Bal-deón), narrativa (Baldeón, Malpartidae Beltrán) e etnobotânica comparativa(Albán Castillo e Salas-Zuluaga). Wig-dorowitz, de sua parte, descreve o con-texto político do xamanismo e traça umavívida resenha histórica dos Amahuaca,com seus contatos interétnicos, sua po-sição dentro do chamado “macrocon-junto pano”, suas turbulentas relaçõescom os brancos e seus vários etnólogos.Carid Naveira e Pérez Gil apresentam-nos aos perigos do xamanismo yamina-hua, à sua utilização de plantas e aluci-nógenos e à transmissão de suas doutri-nas. Tello Abanto compõe variações so-bre o tema da variabilidade e legitimi-dade sociológicas do conhecimento. Le-clerc, por sua vez, analisa os usos shi-pibo das plantas rituais, situando suastaxonomias em casos concretos de xa-manismo. Um dos organizadores do vo-lume, Philippe Erikson, utiliza uma a-nedota de campo para ilustrar a lógica

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das relações “sociais” que os Chacobomantêm com o meio ambiente, concei-tualizadas em termos de reciprocida-de; já o outro organizador, Marc Le-naerts, examina as relações da fauna eda flora com a mitografia, a cosmologia,a consangüinidade e a lógica da clas-sificação. Moore e Pariamanu discrimi-nam, em um caso concreto, os compo-nentes êmicos e éticos da biodiversi-dade. Bilhaut ocupa-se do conhecimen-to da corporalidade e sugere vínculosinéditos com o uso de certos minerais.Por último, o estudo de Lienard ocupa-se – de uma maneira que não desgosta-ria os fãs do Année Sociologique – dosmestiços brasileiros e sua administra-ção da territorialidade, da memória lo-calizada, da topografia e das variaçõessazonais, todos componentes do con-texto em que devem enquadrar-se suastaxas etnobotânicas e etnozoológicas.

Um dos principais méritos deste vo-lume está em sua contribuição para ocombate a dois tipos de preconceitomuito difundidos, que poderíamos qua-lificar quase que como complementares.O primeiro é a imagem do mestiço ávi-do e inescrupuloso, que se apodera deconhecimentos indígenas tão esquivosquanto esotéricos. Mostra-se, ao contrá-rio, que o saber mestiço se estrutura emtorno de uma lógica própria; lógica queé preciso documentar e que, seja ditode passagem, se revela mais sistemáti-ca no plano da etnozoologia e ecologiaanimal do que no da etnobotânica.

O segundo preconceito consiste naidealização cândida da vida indígena.Sem maior fundamentação, pressupõe-se freqüentemente uma espécie de con-comitância ou correlação inversamen-te proporcional entre a intensidade docontato com o mundo urbano e a sofisti-cação do conhecimento etnológico, et-nobotânico ou etnomedicinal; ou se sus-peita que o xamã ostenta o grau mais

alto e esotérico de conhecimento; ou sesupõe existirem intermediários nativosentre cada grupo indígena e os brancos.Pelo contrário, se há algo que este livrodemonstra amplamente, é a necessida-de de uma leitura mais atenta do querealmente ocorre na prática cotidianase se deseja contribuir para a conser-vação ativa da biodiversidade. Essa lei-tura se revela imprescindível, de fato,para o desenvolvimento de ferramentasconceituais e metodológicas que possi-bilitem uma maior participação das co-munidades aborígines ou mestiças naspolíticas de gestão e administração dosrecursos naturais. Nesse sentido, pois,os conhecimentos etnográficos “de ba-se” fornecem o ponto de partida inelu-dível para as reivindicações dos direitosindígenas de propriedade coletiva.

Outro ensinamento de Idées à bou-turer… é que o olhar antropológico, adespeito de uma familiaridade às ve-zes imperfeita com a língua indígena ecom a lógica taxonômica nativa, devepermanecer muito atento ao contextode enunciação do dado. Metodologi-camente, é preciso “situar” o conheci-mento de cada informante em seu subs-trato social correspondente, compreen-dendo sua representatividade, seu va-lor, seu prestígio relativo. É necessáriodiscriminar matizes sutis, variações,graus, diferenças entre o saber dos in-formantes comuns e o dos – quando oshá – “especialistas”. A etnografia, emsuma, deveria situar em seu contextocorrespondente de representativida-de o valor epistemológico da informa-ção. Ao mesmo tempo, deve ajudar oobservador naturalista a não recortararbitrariamente seu objeto de estudo,limitando sua investigação às “plantasmedicinais” ou ainda à “Flora” consi-derada como um todo, espécie de mô-nada auto-suficiente, discreta e homo-gênea. Pelo contrário, devem ser inte-

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grados à análise os dados relativos aosdiscursos simbólicos, às práticas de pro-dução e às relações sociais, que em nãopoucos casos fornecem as chaves inter-pretativas das lógicas taxonômicas.

Mas não é só a etnobotânica que sebeneficia do contato com outras disci-plinas. Vários trabalhos neste volumenos mostram como as relações “assimé-tricas” de transmissão de conhecimento– por exemplo, de “mestre” a “discípu-lo” – não se fundam em diferenças ob-jetivas nos níveis de conhecimento. En-tre o dado antropológico, provenientedo imaginário ou de uma representaçãosocial mais “subjetiva” das coisas, e odado etnobotânico rigoroso, existemcontradições, dissonâncias e tensões.Trata-se de desajustes – algumas vezessutis, outras clamorosos – entre a auto-percepção simbólica e a realidade cog-nitiva que apenas uma perspectivarealmente interdisciplinar pode eluci-dar adequadamente.

No terreno propriamente etnológi-co, para finalizar, esta obra corroboracertas proposições de numerosos pes-quisadores, os quais, com o correr dosanos, se cristalizaram em torno de umaespécie de dogma da antropologia a-mazonista: que o Eu se define não ape-sar mas por meio do Outro. Para alémdos tumultuados processos históricos,desde os ocasionais empréstimos tec-nológicos até os resultados desiguaisobtidos pelo trabalho missionário aolongo dos anos, o estudo do imaginá-rio e os simbolismos sobre o meio am-biente revelam uma trama fascinante ecomplexa, em que muitas vezes sobres-sai o papel desempenhado pelo Outro,o estrangeiro, o afim ou o branco. Sím-bolos de alteridade, fontes de dádivas etambém de perigo, o Inca dos Shipibo,os sacacaras dos Piro, os nawa dos pa-no ou o pishtaco de reminiscências an-dinas evidenciam dramaticamente o

fato de que o estranho e o estrangeirosão “bons para pensar”: figuras atrati-vas e maleáveis em termos simbólicos,mas ao mesmo tempo mantidas a dis-tância dada a sua natureza inquietante,muitas vezes opaca e sempre ambiva-lente.

FRADIQUE, Teresa. 2003. Fixar o movi-mento: representações da música rapem Portugal. Lisboa: D. Quixote. 225 pp.

Ruy Llera BlanesInstituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

Fixar o movimento, de Teresa Fradi-que, é o resultado de uma pesquisa rea-lizada no âmbito do Mestrado em An-tropologia: Patrimónios e Identidades,do ISCTE. Realizada entre 1994 e 1998,teve como objetivo uma análise apro-fundada das representações e discursosconstruídos à volta da música rap e do“movimento” hip-hop durante aqueleperíodo em Portugal.

Prefaciada por Gilberto Velho, estaobra representa não só um passo emfrente no que diz respeito à análise decontextos e expressões musicais e cul-turais urbanas em Portugal – e um ex-celente ponto de comparação para aná-lises de outros contextos musicais e ur-banos –, mas também um desafio aosprocessos de construção epistemológi-ca das ciências sociais, às suas metodo-logias e conceitualizações. Reconhecen-do a multiplicação de discursos e inter-pretações publicitados, veiculados pelofluxo crescente de canais de comuni-cação e intercâmbio (media), a autoraobriga-nos a refletir sobre o papel doantropólogo na construção e partilha deconhecimentos sobre os fenômenos cul-turais da contemporaneidade (urbana,

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globalizada). Noutras palavras, reco-nhecendo que a produção das ciênciassociais é em si um discurso, a autorasubmete essa produção (e a si própria)à produção e circulação cultural, infor-mativa e publicitada que rodeia (des-creve, transforma) o objeto de análisenuma “polifonia de significados”.

Nesse contexto, o estudo da “músi-ca” enquanto “cultura”, ou seja, inseri-da em lógicas de ação, produção e sig-nificação que lhe transcendem, é parti-cularmente ilustrativo: dada sua dimen-são coletiva, pública e performatizada,ela encontra-se cada vez mais sujeita,por um lado, a discursos de identidadee legitimação, e, por outro, a processosglobais e industrializados de mercado-rização (commodification) e etiqueta-gem. No entanto, como sugere TeresaFradique (na linha de Simon Frith), a“música” também é veículo de expe-riências, construtora de alianças, gera-triz de narrativas individuais de desejoe emoção, criadora de espaços sociais,estilos de vida (:19-30)... É nesse entre-cruzamento de processos e realidadesque a antropologia da música deverá si-tuar-se de forma a poder proporcionarreflexões socialmente relevantes.

Portanto, Fixar o movimento procu-ra não uma análise técnica, musico-lógica, de um determinado “gêneromusical” num contexto geográfico cir-cunscrito – o rap em Portugal –, massim uma reflexão sobre os discursos,representações públicas, práticas, con-sumos e produções que o conformaramnum período específico, entre os anosde 1994 e 1998, quando se verificouuma “explosão” musical, cultural e co-mercial do “rap português” (com a pro-liferação de edições, acontecimentos egrupos) e, sobretudo, uma explosão desua visibilidade, exposição midiáticae posição como objeto discursivo e pu-blicitado.

Assim sendo, Teresa Fradique pro-cura – através de uma multisited ethno-graphy que acompanhava espaços deprodução cultural multifocalizados –pensar o “movimento” rap e hip-hoppor meio de várias problemáticas: osprocessos por intermédio dos quais orap foi, no período em questão, legiti-mado por políticas socioculturais maisvastas que lhe conferiram visibilidadee “hegemonia” momentânea; nesta ló-gica, os discursos e práticas que foramconsiderados socialmente pertinentes(ou “consumíveis”); os processos, con-dições, estratégias e critérios que trans-formaram o rap num produto culturalde consumo “mercadorizado” e assimi-lado pelo main stream; o contexto so-cial, cultural, econômico e político por-tuguês que envolveu esses processos(:31-35).

Portanto, esta abordagem, tempo-ralmente situada, mas territorialmentemultifocalizada (embora centrada nocontexto português), remete para a di-mensão processual, criativa e dinâmicaque caracteriza o seu objeto de estudo –daí a necessidade de fixar o movimentoatravés das suas várias vertentes e ei-xos, reconhecendo abertamente o cará-ter fluido e polifocal da “música” en-quanto fenômeno “observável”.

Com esta abordagem, a autora optainicialmente por uma revisão crítica daprodução literária e teórica que acom-panhou o desenvolvimento da músicarap, desde a sua origem no Bronx nova-iorquino até sua expansão globalizada,confrontando aspectos musicais, espe-cificidades técnicas, personagens, prá-ticas e dimensões expressivas, projetosideológicos e mediatizações com umaprodução teórica “cristalizadora”, cons-trutora de temas recorrentes, historio-grafias e análises contextuais (Capítulo1) – narrativas que antecedem e contex-tualizam o aparecimento do “rap portu-

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guês” inserido numa cultura suburbanaportuguesa pós-colonial, marcada porexperiências quotidianas (a street...) eopções pessoais negociadas, dinami-zadas e “sincretizadas”, na qual a cul-tura hip-hop (e a música rap) aparececomo fenômeno diaspórico, pluriter-ritorializado, interclassista, multiétni-co e transnacional (Capítulo 2).

A seguir, a autora percorre os espa-ços públicos de performance, consumoe produção do rap em Portugal – dinâ-micas de ação, tempo e espaço que, porum lado, fomentam momentos de vi-sibilidade pública e “polissemias comu-nicativas” (:89) e, por outro, constituempossibilidades experienciais, reflexivi-dades e representações –, partilhan-do com o leitor o seu “diário de bordo”(Capítulo 3). São precisamente essaspossibilidades experienciais (trajetosbiográficos, vivências, redes de sociabi-lidade, projetos identitários etc.) que aautora procura retratar, discursos refle-xivos, afetivos e de auto-representaçãoque os “atores” partilham e cuja hete-rogeneidade ajuda a ultrapassar cate-gorias essencialistas freqüentementeassociadas à música rap (negritude,africanidade etc.) (Capítulo 4).

Numa “segunda parte” do livro, aautora procede a uma desconstruçãodos discursos públicos e políticas socio-culturais hegemônicas que enquadra-ram o “aparecimento” do rap na esferapública e comercial portuguesa: as re-tóricas da multiculturalidade, racismo eetnicidade (“minoria étnica”) que ca-racterizaram as agendas e linguagenspolíticas, assim como um importante se-tor da produção das ciências sociais (Ca-pítulo 5); os media como veículos decultura, criadores de padrões de repre-sentação cultural, prescritores de rea-lidades (com a “circulação circular dainformação”, tal como defendia PierreBourdieu) através de agendas jornalís-

ticas e processos de newsmaking, pro-duzindo associações superficiais entrerap e criminalidade, violência, raça ne-gra, juventude, subúrbios etc. (Capítulo6); a indústria musical portuguesa (edi-toras, músicos, imprensa), encarada co-mo “promotora” de culturas e produtosnacionais e nacionalizados, construtorade “gêneros musicais”, partícipe deprocessos globais e comercializadorade práticas musicais (Capítulo 7).

Para concluir, a análise de um fenô-meno musical específico como é o dorap revela-se extremamente pertinente,não apenas pela abordagem compreen-siva, interpretativa e contextualizado-ra de um fenômeno sociocultural – umfenômeno que nos é “familiar”, reco-nhecido nos discursos públicos –, mastambém pelo reconhecimento (atravésde uma capacidade reflexiva notável)de uma contemporaneidade social ecultural nos fenômenos musicais queobriga, como afirma a autora, a uma in-versão do processo antropológico clás-sico (:210): não cabe já ao antropólogosistematizar e construir representaçõesde lógicas culturais “outras”, mas simaos indivíduos que ele observa, queproduzem discursos, definições e mani-pulações em relação às suas própriasideologias e práticas, discursos essesque são freqüentemente publicitados,chegando aos ouvidos do antropólogo,e muitas vezes veiculados como maissocialmente pertinentes (pelo seu ime-diatismo, pela “autoridade” conferidaao músico ou artista enquanto “figurapública”) do que os do cientista social.

Nesse contexto, uma obra como Fi-xar o movimento representa um passoem frente no que diz respeito à (escas-sa) produção das ciências sociais emPortugal sobre a música (pelo menosno que se refere a publicações até estadata) e os seus contextos, constituindouma nova e necessária proposta meto-

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dológica nesse sentido, e ainda ofere-cendo um contexto de análise e um con-teúdo teórico pertinentes e também ne-cessários, sobretudo no que diz respeitoà descrição pormenorizada do “fenô-meno rap”, à abordagem crítica dosmedia portugueses e da indústria musi-cal e à descrição dos contextos urba-nos que constituíram focos de produ-ção cultural.

Por último, Fixar o movimento im-plica também o “preencher de uma la-cuna” no que diz respeito à produçãodas ciências sociais sobre o rap e o hip-hop, dando a conhecer um contexto queem termos globais será “periférico”,mas que encontra raízes na transnacio-nalidade, irmanando-se assim em ter-mos de praxis e experiência com a ex-pressividade de outros contextos nacio-nais, tal como o brasileiro, que a autoratem como referência pertinente: pelacarreira desenvolvida por Gabriel oPensador no seio da indústria musicalmundial (:194), pelo enquadramento ediscussão conceitual sobre raça, identi-dade e produção cultural, pela reflexãosobre música e cultura juvenil, tomandocomo exemplo o “baile funk” carioca…

GOMES, Denise Maria Cavalcante.2002. Cerâmica arqueológica da Ama-zônia: vasilhas da Coleção TapajônicaMAE-USP. São Paulo: FAPESP/EDUSP/Imprensa Oficial de São Paulo. 355 pp.

Francisco Silva NoelliUniversidade Estadual de Maringá

A análise de coleções arqueológicas éum campo promissor de trabalho ar-queológico no Brasil, por dois motivos.O primeiro é a necessidade imperio-sa de se conhecer inúmeros acervosacumulados nas instituições, esqueci-

dos há décadas. O segundo é o baixocusto dessa modalidade de pesquisa,especialmente para a iniciação científi-ca, quando os recursos para ir a camposão escassos. Os dois motivos somadoscontribuem para a preparação de expo-sições, divulgação acadêmica e abremespaço para abordagens interdisci-plinares envolvendo a antropologia e ahistória, podendo ainda criar novos pon-tos de partida para a continuação ou re-tomada do trabalho em determinadasregiões.

Este é o caso do livro em questão,um estudo bem-sucedido de Denise Go-mes sobre as vasilhas e os fragmentosda Coleção Tapajônica do Museu deArqueologia e Etnologia da Universida-de de São Paulo. A análise da coleção,em paralelo com a pesquisa das fonteshistóricas e a revisão crítica da biblio-grafia produzida por arqueólogos des-de o século XIX, serviu para buscar“subsídios para a discussão dos princi-pais problemas e abordagens neste li-vro: a cronologia da área Tapajós-Trom-betas e as hipóteses de complexidadesocial em Santarém” (:71). Além disso,a autora procurou realizar outras incur-sões sobre a Coleção, especialmente nocaso do “acesso privilegiado a um tipode cultura material, possivelmente as-sociada a funções ideológicas e religio-sas” (:16). Com essa perspectiva, Deni-se Gomes realizou uma análise tecno-lógica, tipológica, dos estilos decorati-vos e iconográficos de uma coleção de8.516 peças adquirida de colecionis-tas amadores em 1971 pela USP, cujamaior parte foi coletada entre Santaréme o rio Xingu ao longo de vinte anos.

O resultado mais significativo do li-vro, além da brilhante análise da Co-leção, é a mais completa síntese do quese pensou sobre a ocupação do baixoAmazonas por populações ceramistasentre 400 e 1500 antes do presente. A

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obra inicia com a história da aquisiçãodo acervo e da seqüência das pesquisasarqueológicas realizadas na área Ta-pajós-Trombetas. Pode-se observar oque fizeram, onde trabalharam e comoos pesquisadores construíram a pré-his-tória da região. O segundo capítulo dis-corre sobre os modelos teóricos de de-senvolvimento cultural na amazônia,propiciando uma compreensão objetivae cabal de todas as idéias, interpreta-ções, perspectivas e debates gerados.Esses dois capítulos convergem para acontextualização da área Tapajós-Trom-betas na arqueologia da região amazô-nica. O grande mérito dessa primeiraparte é a maneira como o intenso deba-te sobre a ocupação humana na Ama-zônia, muitas vezes publicado de formaemocional, foi apresentado com habi-lidade e didatismo para informar o lei-tor, especialmente aquele que desco-nhece o contexto acadêmico da históriadessas pesquisas. Ao mesmo tempo, sãoexpostas reflexões e críticas a respeitodos temas e pontos mais importantes dadiscussão entre os especialistas, acom-panhadas de várias e pertinentes su-gestões para futuras investigações.

O terceiro capítulo apresenta a me-todologia e os resultados da análise daColeção, em que a autora identifica osestilos tecnológicos das cerâmicas, clas-sificadas como Santarém, InfluênciaSantarém, Konduri, Influência Konduri,Globular, Barrancóide, estilos não defi-nidos pertencentes à Tradição Inciso ePonteada e, por fim, exemplares intru-sivos. Denise Gomes sugere que se em-pregue “estilo” em vez de “cultura” Ta-pajônica e Santarém, em razão da faltade resultados publicados que propiciema contextualização acurada das evidên-cias. A partir de um rigoroso tratamentoestatístico, a Coleção foi analisada sobdiversos aspectos, tais como a composi-ção do antiplástico, a classificação das

formas, o tratamento de superfície, vi-sando classificar as técnicas decorativase iconográficas, acompanhados de umareflexão sobre a função das vasilhas. Pa-ra tanto, a autora seguiu a metodologiasugerida por Shepard e por Rye e a “ter-minologia arqueológica brasileira paraa cerâmica”, bem como revisou e atua-lizou os esquemas classificatórios para37 formas propostas anteriormente.

Com essa classificação, seu trata-mento estatístico e uma revisão biblio-gráfica erudita, a autora elaborou noquarto capítulo uma análise interpreta-tiva das técnicas decorativas e da ico-nografia, visando compreender o de-senvolvimento histórico dos “modos”(“conjunto de atributos com sentido cro-nológico”), estilos e correlações em re-lação a aspectos culturais, políticos e degênero, mas sobretudo no que se refereà hierarquização entre os produtoresdessas cerâmicas. É apresentada umaseqüência hipotética da área Tapa-jós-Trombetas, com a presença de doze“modos decoração” consecutivos, emque se propõe o desenvolvimento cro-nológico dos estilos decorativos e ico-nográficos. São fornecidas datações porAMS, que não deram certo, apesar dediversas tentativas, e por TL, que resul-taram em nove datas; a ausência de in-formações contextuais e de amostras desolo, “não permitiram uma avaliaçãocompleta sobre a precisão destas data-ções, consideradas tentativas” (:131).

O capítulo 5 expõe informações his-tóricas sobre o baixo Amazonas no pe-ríodo colonial, tanto para retratar váriosaspectos da sociedade tapajó em dife-rentes momentos quanto para discutircom densidade e pertinácia a questãodos cacicados. Ao mesmo tempo, exa-mina a relação entre as abordagens ar-queológica e etno-histórica e faz umadetalhada exposição das fontes histó-ricas conhecidas, além de uma análise

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das relações culturais na área Tapajós-Trombetas com base nos diferentes es-tilos cerâmicos. Ainda nesta parte, sãodiscutidas as tendências interpretativasdo conteúdo simbólico da cerâmica eseus possíveis nexos com aspectos ideo-lógicos. É aduzida uma curta, mas per-tinente, discussão sobre os limites im-postos pela ausência de informaçõescontextuais da coleção tapajônica, es-pecialmente a conclusão sobre a exis-tência de uma “grande cultura tapajô-nica” que, segundo a autora, precisaser questionada.

O livro encerra com um catálogo de163 pranchas coloridas, com fotogra-fias de vasilhas e fragmentos de vasi-lhas e apêndices mais representativosda coleção tapajônica, acompanhadasda ficha técnica descritiva. Digna denota é a excelente editoração da obra,que, além de muito bem redigida e or-ganizada, é uma das mais belas e bemapresentadas da bibliografia arqueoló-gica sobre o Brasil. Estas qualidades,somadas ao alto nível científico da pes-quisa, transformam Cerâmica arqueo-lógica da Amazônia em obra de refe-rência obrigatória para arqueólogos,antropólogos e historiadores e em guiaindispensável para iniciantes, inscre-vendo Denise Gomes entre os princi-pais especialistas da arqueologia ama-zônica.

LABATE, Beatriz C. e ARAÚJO, Wladi-mir S. (orgs.). 2002. O uso ritual da aya-huasca. Campinas, SP: FAPESP/Merca-do das Letras. 686 pp.

Marco TromboniDoutorando, PPGAS-MN-UFRJ

Esta bem-vinda coletânea organiza-da por Beatriz C. Labate e Wladimir S.

Araújo reúne uma produção expressivade pesquisadores dedicados ao estu-do da ayahuasca. São abordados seusaspectos farmacológicos, biomédicos epsicológicos; o uso tradicional da bebi-da por povos indígenas da Amazôniaocidental, curandeiros mestiços do so-pé andino e comunidades de seringuei-ros no Brasil; ou ainda as novas reli-giões que projetaram seu emprego ri-tual para várias capitais brasileiras emuitos outros países. Trata-se de nadamenos que 25 artigos, distribuídos por686 páginas, envolvendo o trabalho dequarenta pesquisadores de diversasáreas do conhecimento: farmacologia,medicina, psicologia e, predominante-mente, antropologia, em um projetoeditorial ambicioso que pretendeu co-brir praticamente todo o espectro deabordagens contemporâneas do fenô-meno. O propósito principal dos organi-zadores, de fato, foi fornecer uma visãode conjunto dessa produção de modo arevelar o “estado-da-arte”.

O livro está dividido em três partes:I) “Ayahuasca entre os povos da flores-ta”, com artigos atinentes às popula-ções indígenas e a contextos “mesti-ços”; II) “As religiões ayahuasqueirasbrasileiras”, isto é, a União do Vegetal,o Santo Daime e a Barquinha; e III) “Osestudos farmacológicos, médicos e psi-cológicos da ayahuasca”. A organizaçãoda primeira e terceira partes parece,no entanto, pensada em função de suarelação indireta com o tema da segun-da, que ocupa metade do volume. Comefeito, sua temática, na qual reside amaior contribuição do livro, fora até omomento a menos favorecida em ter-mos de publicação; os artigos aqui con-tidos derivam, em sua grande maioria,de dissertações e teses produzidas nosvinte últimos anos, facultando a um pú-blico mais amplo o acesso ao resultadode trabalhos até agora inéditos.

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Se o livro de fato atinge plenamenteo objetivo de revelar o estado-da-arte nocampo, fá-lo porém ao custo de sacrifi-car um pouco a unidade e homogenei-dade do conjunto. O desequilíbrio resul-tante reflete o desigual investimento depesquisa despendido nos subcamposcobertos pelas diferentes partes. Na-quela voltada para os povos da floresta,os quatro artigos dedicados à utiliza-ção da ayahuasca por grupos indígenas(Luz, Langdon, Keifenheim e Zaluaga)figuram sobretudo como uma pequenaamostra de uma produção etnológicaque, embora ainda longe de esgotada,é certamente mais numerosa e antigado que todas as demais – se pensarmosnos conhecidos trabalhos de GerardoReichel-Dolmatoff, Stephen Hugh-Jo-nes ou Pierre Chaumeil, entre outros.Trata-se de uma discussão de longa da-ta, beneficiária do diálogo com toda amassa crítica acumulada pela etnologiaindígena sul-americana, especialmenteaquela dedicada ao estudo do xamanis-mo, apenas discretamente representa-da no livro. Aparentemente, a intençãodos organizadores ao incluir esses arti-gos foi a de, didaticamente, ofereceruma perspectiva mais ampla para osleitores primariamente interessados nasreligiões descritas na segunda parte,obviamente o público-alvo principal dolivro, por suposto pouco conhecedor dosusos indígenas e mestiços da bebida.

Com efeito, o primeiro artigo, de Pe-dro Luz, oferece convenientemente umaespécie de resenha dessa produção, pro-curando classificar especificidades dosimbolismo associado ao uso da aya-huasca segundo se trate de povos delíngua pano, aruak ou tukano, o que lheimpôs um grau elevado de generaliza-ção. O artigo de Esther Jean Langdonfigura dentro da estratégia geral do li-vro como um exemplo de uso xamâni-co indígena da ayahuasca. O texto de

Barbara Keifenheim, que oferece umaperspectiva teórica bastante inovadora,procura mostrar aspectos do uso da be-bida ligados não diretamente ao xama-nismo, mas sim a toda a cosmovisão dosKaxinawa, entendida enquanto uma ex-periência sensorial do mundo intima-mente associada às alterações percep-tuais induzidas pela ingestão da aya-huasca. Já o artigo de Germán Zaluaga,médico colombiano, destoa bastante doconjunto, exibindo porém uma preocu-pação que atravessa praticamente todoo volume, qual seja, a questão da legiti-midade do uso da bebida. O que lhe pa-rece ser uma apropriação indevida doconhecimento indígena constitui o focode sua preocupação, vazada em uma es-pécie de discurso antiassimilacionistaque, em contradição com o propósito ge-ral dos organizadores, revela uma maldisfarçada rejeição pela utilização dabebida fora dos contextos indígenas.

Os três artigos seguintes dessa par-te enfocam as tradições mestiças. O tex-to do também médico Jacques Mabitcaracteriza aspectos interessantes daprodução visionária da bebida, apon-tando suas potencialidades terapêuti-cas, e propõe o diálogo entre a medici-na e psicologia clínicas e as técnicastradicionais dos curandeiros mestiços.Algo contraditoriamente, porém, pros-segue na linha de condenação dos usosmais recentes, embora em tom maisdiscreto e mais generoso que Zaluaga,reservando aos médicos e outros profis-sionais de saúde o privilégio da inova-ção inspirada nas práticas e conceitostradicionais amazônicos, em detrimentodo que lhe parece um esvaziamento deseus fins terapêuticos por parte das re-ligiões que perseguem, através da aya-huasca, novos caminhos espirituais. LuizEduardo Luna retoma a perspectiva an-tropológica ao sustentar o diálogo coma literatura etnológica sul-americana,

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voltando sua atenção, porém, para ouso da bebida pelos “vegetalistas”, ter-mo que designa os curandeiros mesti-ços dos sítios urbanos da Amazônia pe-ruana. Sua preocupação particular émostrar o trânsito operado pelo vegeta-lista entre o mundo natural e o humano,apoiado em dados iconográficos antro-pomórficos. O artigo de Mariana C. P.Franco e Osmildo S. da Conceição fazmuito bem a transição para a segundaparte: tratando do uso da ayahuasca porseringueiros do Alto Juruá, aborda umcontexto muito próximo social e cultu-ralmente daquele em que se originaramas religiões ayahuasqueiras brasileiras,proximidade esta que tem ensejado in-clusive um processo recente de introdu-ção do Santo Daime na região.

Na segunda parte, o claro desequi-líbrio na quantidade de artigos dedica-dos ao Santo Daime, largamente favo-recido em relação à União do Vegetal eà Barquinha, reflete a realidade da pro-dução contemporânea. Abre-se com umartigo de Beatriz Labate, que procurafazer o inventário mais completo possí-vel da literatura dedicada a essas reli-giões, publicada ou não, incluindo tan-to a produção acadêmica, classificadae comentada segundo os temas do sin-cretismo, xamanismo, cura e históriadas origens desses cultos, quanto umaflorescente literatura nativa, classifi-cada segundo a vertente religiosa aque pertence. Assim, o artigo funcionacomo uma espécie de segunda intro-dução, desta feita à Parte II.

Os sete artigos seguintes tratam doSanto Daime, a mais antiga e visíveldentre as três religiões ayahuasqueirasbrasileiras, ocupando volta e meia es-paços na mídia. Os textos seguem apro-ximadamente o processo de sua expan-são, desde a fundação, pelo migrantemaranhense Raimundo Irineu Serra,Mestre Irineu, da comunidade religiosa

do Alto Santo, em Rio Branco, no Acre,na primeira metade do século passado,e depois ao longo da história da disse-minação, no Brasil e no exterior, do CE-FLURIS (Centro Eclético da FluenteLuz Universal Raimundo Irineu Serra),dissidência do Alto Santo, liderada porSebastião Mota Melo, o Padrinho Se-bastião, que introduziu algumas modi-ficações mas manteve os principais ele-mentos doutrinários e rituais da reli-gião criada por Mestre Irineu. A pers-pectiva dos artigos dessa parte é emi-nentemente antropológica, abordan-do, sucessivamente: os rituais entendi-dos como técnicas corporais no sentidomaussiano (Arneide B. Cemin); a rela-ção entre o tipo de comunidade forma-da em torno dessa religião e seu calen-dário ritual com o catolicismo popular eo estilo e estética das festas de santos(Sandra L. Goulart); a caracterizaçãodesses rituais como uma inovadora for-ma de “xamanismo coletivo”, pensadoem termos de performance ritual (Fer-nando de la Rocque Couto); e uma ten-são latente entre a possessão como umaespécie de proto-influência afro-brasi-leira sobre a formação desse culto e a“miração”, associada ao vôo da alma,enquanto duas modalidades do xama-nismo clássico (Clodomir Monteiro daSilva). Inclui também um relato fenome-nológico, em primeira pessoa, do conta-to do antropólogo Walter Dias Jr. com oSanto Daime, com o sugestivo título“Diário de viagem”, no qual o autorprocura refletir sobre as possibilidadese os questionamentos abertos pelas ex-periências místicas induzidas pelo usode substâncias psicoativas sobre os pa-radigmas aceitos pela ciência conven-cional.

Já o texto seguinte, de Maria Cristi-na Pelaez, também médica, retorna àargumentação terapêutica, desenvol-vendo a noção de “cura espiritual”. Re-

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corre, para tanto, a conceitos da chama-da psicologia transpessoal, vendo nadoutrina e nos rituais do Santo Daimeum substituto religioso e legal para osexperimentos dos anos 60 e 70 com ouso terapêutico de drogas psicodélicas,desde então coibidas pelo establis-hment médico e proibidas pelo Estado.Exceto talvez por seu tom “alternati-vo”, esse artigo também poderia figu-rar na parte III do livro. A questão daproibição das drogas pelo Estado é opano de fundo do artigo do antropólogoEdward MacRae, que trata da ameaçarepresentada por esse contexto socio-político para a manutenção da legalida-de da prática dos rituais das religiõesayahuasqueiras brasileiras. Ele apontapara os pontos de tensão existentes en-tre essas práticas e os valores éticos emorais dominantes – tensão para cujasolução pouco ajudam as dissensõesentre os grupos religiosos ayahuasquei-ros, sempre tendentes à exacerbação deseus sectarismos doutrinários – e tam-bém, por outro lado, para as faláciasculturalistas contidas no discurso da-queles que defendem a restrição dapermissão do uso da ayahuasca apenasaos índios e curandeiros mestiços dossopés andinos, supostamente mais “tra-dicionais”. Com efeito, esse artigo sin-tetiza a linha argumentativa implíci-ta na estruturação de todo o livro pelosorganizadores, embora estes tenhamaberto também espaço, como vimos,para vozes dissonantes. Essa dissonân-cia reaparece no artigo de Carsten Bal-zer, um estudo de caso de uma das ten-tativas de introdução do Santo Daimena Alemanha, a partir do contexto das“feiras esotéricas” e “workshops” deterapias “alternativas” no estilo NewAge, o único que aborda a introduçãorecente dessa religião em países com-pletamente estrangeiros a suas origensindígenas e caboclas.

O artigo de Wladimir S. Araújo é oúnico no livro a tratar da Barquinha, amenor das três religiões ayahuasquei-ras em termos de adeptos (umas pou-cas centenas), praticamente restrita àcidade de Rio Branco. Eminentementedescritivo e próximo das categorias na-tivas, funciona muito bem como primei-ra apresentação a uma religião até ago-ra praticamente desconhecida, porémmuito peculiar na combinação de ele-mentos do catolicismo popular, da reli-giosidade afro-brasileira e da mítica ca-bocla amazônica. Três artigos tratam daUnião do Vegetal, que, embora muitomenos exposta à opinião pública que oSanto Daime, é mais difundida e contacom maior número de adeptos. De fato,seus dirigentes, ao longo de seus cercade quarenta anos de existência, pare-cem ter feito uma opção deliberada pe-la discrição, cautela que se refletiu tam-bém em um controle muito estrito sobreatividades de pesquisa independentes,uma política que só agora parece estarmudando de rumo. Este é precisamenteo problema do primeiro desses artigos,que, embora informativo, é excessiva-mente marcado por um tom de docu-mento doutrinário oficial, ainda que opertencimento religioso de seus autoresnão devesse em princípio constituir im-pedimento para um estudo mais impar-cial. O artigo seguinte, “José Gabriel daCosta: trajetória de um brasileiro, mes-tre e autor da União do Vegetal”, deSérgio Brissac, por outro lado, não sofredesse tipo de limitação, procurando ex-trair da biografia do fundador elemen-tos que permitem situar histórica e cul-turalmente o processo de constituiçãode seus fundamentos doutrinários e ri-tuais. De fato, a recente dissertação demestrado da qual deriva esse artigo é,sem dúvida, o primeiro estudo indepen-dente mais aprofundado acerca dessareligião, sendo contudo fundamental

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que novos investimentos de pesquisasejam feitos para que se possa conhecermelhor essa que é, dentre as três reli-giões ayahuasqueiras brasileiras, amaior, mais organizada e de cresci-mento mais consistente. Por fim, o últi-mo artigo dessa parte, de Afrânio P. deAndrade, perde-se infelizmente em umemaranhado de perorações teológicas ejuízos de valor acerca do etnocentrismodoutrinário da União do Vegetal, comose esta não fosse a virtude mais bem re-partida entre todas as religiões.

A parte III do livro compreende es-tudos farmacológicos, médicos e psico-lógicos da ayahuasca. Os três primeirostextos derivam de um mesmo grandeprojeto de pesquisa encomendado pelaUnião do Vegetal e desenvolvido poruma equipe internacional de pesqui-sadores pertencentes a quinze institui-ções brasileiras, americanas e finlande-sas, cujo objetivo maior foi apontar, pre-liminarmente, os possíveis benefíciose/ou malefícios físicos e psicológicosdo consumo contínuo e prolongado daayahuasca. De interesse lateral para aantropologia, esses artigos corroborama mencionada preocupação implícitados organizadores com a questão da le-gitimidade e legalidade do uso ritual daayahuasca. O quarto artigo dessa parte,“A ayahuasca e o estudo da mente”, deBenny Shanon, estuda a produção vi-sionária decorrente da ingestão da aya-huasca sob a ótica da psicologia cogni-tiva, e pretende estabelecer um domí-nio específico, qual seja, o das experi-ências pessoais sob efeito da bebida,para a abordagem psicológica, questio-nando os limites das abordagens pre-dominantes até o momento, isto é, a an-tropológica e a das ciências naturais.Embora seja duvidoso que o domíniodas experiências pessoais esteja forado âmbito das ciências sociais, assimcomo pareça um tanto apressado o pro-

posto universalismo dos parâmetroscognitivos baseados em pressupostosbiológicos, o artigo tem o mérito de in-dicar algumas contribuições possíveisda ayahuasca para o estudo da mente,particularmente a possibilidade da e-xistência do que o autor chama de “co-munhões suprapessoais no conteúdodas visões”. Finalmente, encerrando olivro, está o artigo de Jonathan Ott, oqual aborda a farmacodinâmica de di-versos compostos produzidos a partirde dezenas de diferentes plantas quecontêm os mesmos princípios ativos (einclusive de compostos de plantas jun-tamente com substâncias sintetizadasem laboratório) capazes de produzir o“efeito ayahuasca”, isto é, presumida-mente, o mesmo efeito visionário pro-duzido pela combinação das plantastradicionalmente usadas na preparaçãoda ayahuasca utilizada pelos gruposdescritos no restante do livro.

No conjunto, o volume traz uma ava-lanche de informações relevantes so-bre as temáticas de suas diferentes par-tes, capaz de interessar leitores em vá-rios domínios de conhecimento, consti-tuindo-se como uma obra de referênciasobre os usos rituais da ayahuasca, degrande utilidade para um público di-versificado.

MONTEIRO, Simone. 2002. Qual pre-venção? Aids, sexualidade e gêneroem uma favela carioca. Rio de Janei-ro: Editora Fiocruz. 148 pp.

José Carlos RodriguesPUC-Rio

O ponto de partida fundamental destetrabalho foi uma investigação de camposobre representações e práticas associa-das à sexualidade. A pesquisa envolveu

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rapazes e moças de uma favela carioca,Vigário Geral, e teve por foco principala questão da proteção à saúde.

Na busca do entendimento de taismanifestações, a autora procurou iden-tificar os núcleos simbólicos do siste-ma de proteção “nativo”, almejandoobter informações que contribuíssempara uma reflexão sobre os parâmetrosa partir dos quais seria possível esperara adesão dos jovens pesquisados ao dis-curso preventivo oficial.

Os resultados da investigação reve-laram um apreciável descompasso en-tre esse discurso preventivo, que nor-malmente é orientado por um ideário“moderno” no qual se sustenta uma re-lação simples e direta entre conheci-mento e prática, por um lado, e os da-dos do contexto etnográfico analisado,por outro, em que se observa o peso deuma visão de mundo “tradicional”, ba-seada na localidade, nas relações de vi-zinhança e no parentesco.

Segundo Simone Monteiro, as cam-panhas educativas de prevenção contraa AIDS inspiram-se em geral na idéiade igualdade de direitos individuais.Esta idéia se materializa em propostasde planejamento e de negociação igua-litária entre os parceiros a respeito daprática de sexo seguro, visando produ-zir acordo quanto ao uso de preservati-vos e/ou sexo sem penetração. Contu-do, os dados da pesquisa apresentaramum quadro governado por valores bas-tante contrastantes com essas premis-sas: revelou-se um panorama de cren-ças e práticas associadas ao conheci-mento do e à confiança no outro, alémde baseadas no vínculo amoroso, na cu-riosidade e na oportunidade.

Pelos discursos dos informantes,prevaleceram as assimetrias de gênero.A maternidade e a paternidade mostra-ram-se valores extremamente impor-tantes, cruciais mesmo, para a definição

das identidades de ‘mulher’ e de ‘ho-mem’. Na prática, essas concepções cor-respondem a relações heterossexuais,em geral genitalizadas e desprotegidas.Materializam-se também, de modo coe-rente, em críticas ao auto-erotismo e emcondenações à homossexualidade, es-pecialmente feminina.

Uma das teses centrais do trabalhoé a de que no campo da saúde as práti-cas cotidianas não decorrem apenas dedecisões individuais racionais, contro-ladas pelos indivíduos – como pressu-põe o discurso preventivo oficial –, masdas condições simbólicas e materiaisda existência. Apoiando-se em conhe-cida distinção sustentada por RobertoDaMatta, a autora afirma que a lógicade proteção “nativa” se ancora na com-binação das categorias ‘casa’, ‘outromundo’ e ‘rua’ – que atuam na defini-ção geral dos cuidados da saúde, assimcomo na prevenção de infecção porHIV em particular.

Essas categorias definem a hierar-quia dos riscos. Nas relações com al-guém da ‘rua’, os métodos preventivosencontram chance maior de se fazerempresentes. Naquelas com alguém da‘casa’ (namorada, moça de família, co-nhecido), tornam-se praticamente ne-gligenciáveis. Assim, a camisinha e ou-tros métodos de proteção se fazem in-dispensáveis no grupo pesquisado ape-nas quando o sexo é concebido comoextremamente perigoso – isto é, quan-do praticado com alguém muito distan-te da ‘casa’. Entretanto, mesmo nestecaso arriscado, será sempre possívelcontar com a proteção das forças do ‘ou-tro mundo’.

Estrategicamente, Simone Montei-ro optou pelo método etnográfico. Cer-tamente, este era o mais indicado e,mesmo, o mais necessário, para o en-frentamento das questões que se colo-cou. Contudo, a exemplo do que se po-

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de ver em muitos e muitos textos antro-pologicamente inspirados que derivamde teses sustentadas em instituições tra-dicionalmente pertencentes às áreascientíficas “duras” ou “verdadeiras”(no caso, de doutoramento apresentadaà Escola Nacional de Saúde Pública),constata-se aqui a dificuldade da auto-ra em levar o método etnográfico e, so-bretudo, a observação participante àssuas últimas conseqüências.

Uma resultante disso é que a pes-soal, única e insubstituível experiênciado pesquisador – em sua relação direta,face a face e na primeira pessoa comseus informantes – termina por se apre-sentar no texto disfarçada como objeti-vidade neutra e distante e mascaradarepetidamente sob as formas lingüísti-cas da voz passiva (“descrevem-se aquias trajetórias...”) e do sujeito indetermi-nado (“constata-se que...”). Desse mo-do, em vez de aproveitá-la em sua posi-tividade, maquiam-se, mas apenas re-toricamente, os riscos de a subjetivida-de do pesquisador se insinuar.

Não obstante, muito além dessa ob-servação pontual, de abrangência bemmais ampla do que o texto em questão,as páginas de Qual prevenção? nos fa-zem meditar sobre o alcance efetivo denossos métodos e técnicas de pesquisapara desvendar temas e problemas con-cernentes à relação entre representa-ções e práticas. Penso sobretudo nas di-ficuldades que encontramos quandotentamos investigar assuntos que arti-culam os universos do público, repre-sentado pelo pesquisador, e do privado,relativo a pensamentos, sentimentos eações de seus informantes. Por exem-plo, no caso específico do trabalho empauta – para efeitos de compreensão et-nográfica do grupo pesquisado e mes-mo para a eficácia dos projetos preven-tivos –, até que ponto se pode conside-rar a ausência de relatos de homoerotis-

mo pelos informantes como significan-do inexistência de práticas efetivas?Ou, quanto de credibilidade devemosatribuir às declarações dos rapazes so-bre o número de suas parceiras sexu-ais? Ou às informações verbais sobre afreqüência de suas relações? Ou, ainda:que grau de realidade fornecer às a-firmativas dos jovens pesquisados quecondenam as práticas masturbatórias?

Ao mesmo tempo, podemos fruirdeste livro como uma bela apreensãosociológica de um problema técnico es-pecífico de intervenção social. Por estecaminho, Simone Monteiro nos leva aespecular sobre dilemas interessantes,relativos aos limites éticos, técnicos epolíticos das ciências sociais aplicadas.Sua leitura será certamente de granderelevância para estudantes e profis-sionais que se dedicam ao estudo daantropologia do corpo, bem como paraaqueles voltados para a investigaçãodas questões atinentes à comunicaçãono campo da saúde coletiva.

RIVAL, Laura M. e WHITEHEAD, Neil L.(orgs.). 2001. Beyond the visible andthe material: the amerindianizationof society in the work of Peter Riviè-re. Oxford: Oxford University Press.301 pp.

Marcela Coelho de SouzaPPGAS-MN-UFRJ

Os treze artigos reunidos neste volumesão um tributo a Peter Rivière. O prefá-cio de David Parkin salienta as contri-buições do homenageado à antropolo-gia em geral, mas o livro apresenta-sesem rodeios como uma exploração dasveredas abertas por seus trabalhos naselva sul-americanista. Como indica otítulo, trata-se de uma antropologia cu-

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ja maior contribuição “teórica e meto-dológica” tem sido mesmo o “amerin-dianizar” – entenda-se, deformar etno-graficamente – a “sociedade” – enten-da-se, o conceito antropológico de so-ciedade.

É apropriado que este livro tenhacomo um de seus temas centrais o sig-nificado da afinidade e da consangüini-dade para os povos das terras baixassul-americanas. Poucos fizeram tantoquanto Rivière para que compreendês-semos o quanto a “amerindianização dasociedade” passava por uma investiga-ção profunda dessas categorias. O de-safio é encarado de frente pelos doisprimeiros capítulos, o de E. Viveiros deCastro e o de A.-C. Taylor.

Estes autores convergem em ver naafinidade o esquema privilegiado da re-lação no universo ameríndio e na con-sangüinidade, uma não-relação (:25, 51,53). Essa proposição se enraíza, no casode Viveiros de Castro, em um projeto deamplo escopo, do qual seu capítulo nes-te livro representa uma apresentaçãomuitíssimo compacta. Resumir projeto ecapítulo tomaria, no mínimo, toda estaresenha. Atenho-me a duas indicações.Primeiro, quanto à relação com a pro-dução anterior do autor, faz-se aqui aponte entre a reflexão sobre o parentes-co e aquela sobre a cosmologia pers-pectivista dos ameríndios, reformulan-do o conceito de afinidade (potencial)como uma dimensão de virtualidade – odado –, cuja atualização é o que produz– constrói – o parentesco ou consangüi-nidade. A segunda indicação refere-seàs possibilidades que este trabalho abrepara investigações futuras: a metaes-trutura proposta é feita para ser lida emduas direções – a da atualização da afi-nidade e construção do parentesco,aqui enfatizada, mas também na dire-ção inversa, a de um “contrafluxo […]guiado pelo princípio dominante da afi-

nidade” (:29), a que se podem conectarrelações, eventos e processos que reme-tem à ordem do ritual (ver várias dasaplicações da estrutura sugeridas peloautor). A dinâmica da conexão entre es-sas “duas linhas” aqui esboçada ilumi-na muito a relação entre, de um lado, aconstrução da comunidade de parentesna vida diária e, de outro, o ritual, o xa-manismo e o mito – entre o ‘ordinário’ eo ‘extraordinário’, em suma, questão emtorno da qual os americanistas adora-mos polemizar.

O artigo de Taylor expressa um pon-to de vista semelhante, mas a partir deuma análise extremamente original dasconceitualizações jívaro da conjugali-dade e da germanidade, da parentali-dade e da procriação (filiação). Focali-zando as representações das formas re-lacionais subjacentes aos laços vividosdo parentesco, ela conduz uma discus-são fina e densa das atitudes ou dispo-sições afetivas (“sedução”, “predação”)subjacentes a esses laços, bem como domodo como se articulam a uma concep-ção “dividida” da pessoa. Pessoa que serevela constituída a partir de uma rela-ção interna com uma figura de alterida-de – um inimigo, no caso masculino, umanimal, no feminino –, um desdobra-mento que informa igualmente os mo-delos reprodutivos e a concepção da fi-liação. Da análise decorrente, a autoraextrai a conclusão de que a consangüi-nidade só se torna propriamente social,isto é, só deixa de ser uma auto ou umanão-relação (clonagem), quando se ar-ticula à afinidade (:53). Não se trata deque as relações de procriação não se-jam por si mesmas reprodutivas no sen-tido estrito, mas o que faz delas repro-dução de novas entidades, o que “astorna dinâmicas e introduz diferencia-ção em um processo que de outra formaseria a replicação do mesmo [à l’iden-tique]” (:53), é a afinidade.

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O capítulo seguinte, de Laura Rival,contrapõe-se aos dois precedentes. Con-siderando a consangüinidade amazô-nica menos bem compreendida que aafinidade, a autora explora as noçõesde procriação depreensíveis das práti-cas agrícolas makuxi. A conexão queela procura assim fazer é inegavelmen-te interessante, e sua descrição bastan-te rica. Mas seu esforço de mobilizá-laspolemicamente não é tão bem-sucedi-do. O objetivo é claramente restabele-cer a dignidade ferida da consangüi-nidade, salvá-la da “nothingness” aque teria sido reduzida pelos “estrutu-ralistas”, restituir a centralidade das re-lações de procriação (“em pelo menosum sistema de pensamento indígenaamazônico” [:77]), reconhecer seu “po-der de criar uma nova vida em vez deapenas replicar a do próprio sujeito”(:77). Evitando o ar rarefeito em queplana Viveiros de Castro, Rival opta porenfrentar o problema contestando a as-sociação simbólica proposta por Taylorentre a propagação da mandioca porclonagem e o modelo de engendramen-to do Mesmo que constituiria o “resíduonão-afim da consangüinidade”, argu-mentando que as práticas agrícolas ma-kuxi envolvem uma clara ênfase napreservação e fomento da diversidadeda mandioca via a fertilização periódicadas linhas clonadas por plantas repro-duzidas a partir de sementes. O proble-ma é que sua descrição da maneira co-mo os Makuxi asseguram essa diversi-dade pode ser lida no sentido contrárioao pretendido, i.e., como uma demons-tração da distinção entre dois modelosreprodutivos e da necessidade de fazerintervir um princípio “afim” – plantasselvagens vistas como o “afim sem pa-rentes, improdutivo, infértil que perdeutodo o potencial para a socialidade”(:74), que devem ser devidamente do-mesticadas antes de poderem produzir

alimentos –, para que as plantas domes-ticadas (às vezes domesticadas demais,dizem os índios) possam continuar ge-rando mais de si mesmas…

Enfim, talvez estejamos diante datradicional dificuldade de tradução en-tre as línguas teóricas faladas nos doislados da Mancha. A diferença não estána interpretação mais ou menos corretaque nos é oferecida dos fatos, mas, pa-rece-me, no quanto se permite que es-tes venham amerindianizar nosso voca-bulário. Mesmo nesses termos, possi-velmente, o julgamento das posiçõesem confronto depende de, digamos, gos-to. Permanece todavia o fato de que,diante do ataque conjunto dos dois pri-meiros artigos, a defesa de Rival revela-se insuficiente. Mas a bola continua emcampo.

A questão dos significados da afini-dade e da consangüinidade atravessapraticamente todos os capítulos do volu-me, cuja diversidade de temas atesta avariedade de interesses do homena-geado. A dimensão simbólica da culturamaterial (e a fecundidade do idioma bo-tânico) é explorada por Chaumeil eErikson a partir das zarabatanas yaguae matis, respectivamente. O primeironos conduz da zarabatana a outros “tu-bos” – ossos, flautas, palmeiras e, em úl-tima instância, pessoas –, conectandocaça, guerra, xamanismo e iniciação pa-ra revelar um modelo “pneumático” da(pro)criatividade, baseado na propaga-ção de uma energia auto-reprodutivae em um princípio de clonagem, rele-vante para a compreensão da visão in-dígena da ancestralidade como uma ‘re-lação’ de auto-identidade. Esse modelose opõe a um modelo (heterossexual) dareprodução como uma exteriorizaçãode energia que envolve a abertura dostubos e a exposição a riscos exógenos(:97-98). Vê-se como essa descrição po-de ser conectada à discussão anterior.

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O objetivo de Erikson é explicar aretenção pelos Matis de uma tecnologiaabandonada por outros Pano seus vizi-nhos, e o uso da zarabatana é examina-do em relação ao complexo da caça, daclassificação animal e de suas armas.Somos confrontados, mais uma vez, coma conexão zarabatana-palmeiras-an-cestrais, nos quadros de um dualismo(expresso no sistema de metades) queassocia esses valores ao interior e aomasculino e os opõe ao exterior e ao fe-minino a que remetem os arcos e as re-lações com inimigos-estrangeiros. Maisuma vez, diferentes modos de relação ecriatividade: filiação/consangüinida-de, conjugalidade/afinidade.

As contribuições de Århem e Lea si-tuam-se em um registro mais imediata-mente sociológico, tratando de compo-sições e histórias residenciais. Lançammão também, direta ou indiretamente,da noção lévi-straussiana de Casa. Paraanalisar a emergência de uma catego-ria social e forma de organização localnova entre os Makuna, a comunidadede aldeia, Århem, evocando as duas lei-turas da “maloca” ou casa-grande ba-rasana, a Descent House e a Consan-guineal House, identificadas por Ste-phen Hugh-Jones, supõe a alternânciade dois modelos indígenas de sociali-dade, o da descendência (patrilineari-dade, hierarquia, exogamia), cuja pre-valência seria subjacente à forma de or-ganização centrada na maloca, e o daaliança (aliança simétrica, competiçãoigualitária, endogamia local), que, rea-lizado tradicionalmente na forma dosgrupos locais de malocas aliadas, seconcretizaria hoje na comunidade dealdeia. A análise da evolução e compo-sição de diferentes comunidades maku-na permite ao autor demonstrar a cres-cente importância dessa nova forma.

Lea, por sua vez, reafirma o argu-mento de que as casas uxorilocais ka-

yapó consistem em entidades de cará-ter corporado, detentoras dos nomes,ornamentos e prerrogativas rituais queconstituiriam os “aspectos partíveis” dapessoa; sua complementaridade defi-ne a sociedade kayapó como totalidadeideal e sua interdependência matrimo-nial e ritual solda empiricamente as al-deias. Esse argumento, resolutamenteancorado nas preocupações da antro-pologia feminista, se pretende uma crí-tica de interpretações que – como a deTerry Turner – lêem a uxorilocalidadecentro-brasileira em termos da domi-nância exercida pelos sogros sobre osgenros através das respectivas filhas eesposas e procura restituir à agência fe-minina o lugar que essas perspectivaslhe teriam recusado. Vale sublinhar otrabalho diferente que a Maison é cha-mada a desempenhar nos dois contex-tos, Noroeste Amazônico e Brasil Cen-tral. No primeiro caso, tratava-se depossibilitar a descrição do modo como aidentidade categorial de um “nós ex-clusivo” (descendência) é temperada(pela alternância ritual e substituiçãohistórica) por um “nós inclusivo” (alian-ça) que opera dissolvendo fronteiras es-sencializadas. No caso de Lea, é quaseo oposto: constituintes da pessoa sãoerigidos em propriedade de grupos aque se quer restituir não apenas o cará-ter “corporado” mas o estatuto de par-tes discretas de uma totalidade predefi-nida que seria a “sociedade” ideal. Emoutras palavras, a função do conceito é,lá, dissolver fronteiras; aqui, estabilizá-las – ambigüidade que aliás pode serremetida ao desenvolvimento que opróprio Lévi-Strauss dá ao conceito demaison, como notara aliás Rivière ao to-mar a idéia de Casa para pensar as so-ciedades das Guianas.

Menos do que a adequação ou ina-dequação do conceito, interessa notarcomo sua mobilização, sobretudo na

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forma das “leituras alternativas” pro-postas pelos tukanólogos, responde ànecessidade de conceitualizar o modocomo consangüinidade e afinidade o-peram articuladamente na constituiçãode coletivos na Amazônia. A questãosubjaz aos capítulos seguintes, centra-dos no ritual. Chernela discute uma for-ma de diálogo praticado em cerimôniasde troca entre grupos locais (nos Wana-no e outros grupos tukano orientais) li-gados seja por afinidade, seja agnati-camente, para revelar como frontei-ras grupais concebidas como essenciaise permanentes são redefinidas por meiodesses ritos. Henley, abordando o papelque, no rito de iniciação masculina dosPanare (Guianas), desempenham os pa-nakon, visitantes de outra aldeia carac-terizados por um comportamento e pa-rafernália específicos (e selvagem), mos-tra-nos o modo como a construção dapessoa depende das operações rituaissobre o corpo, a centralidade dessesprocessos do ponto de vista da repro-dução social e, particularmente, a suadependência da intervenção de diver-sas figuras da alteridade.

Entre estas últimas emergem, alhu-res nas Guianas, os feiticeiros homici-das kanaima ou itoto. O capítulo de ButtColson é centrado no modo como os ho-micídios perpetrados por esses perso-nagens (em corpo ou espírito) operamna dissolução de laços políticos e de pa-rentesco. Whitehead descreve o com-plexo dos Kanaimà mais como um cultoxamânico da morte, do qual ele exploradois aspectos: primeiro, sua “endose-miose”, o simbolismo dessa forma demorte ritual e a desconstrução física docorpo que implica, como aspecto deuma economia política da morte que li-ga a sociedade a seus inimigos exter-nos; segundo, sua “exosemiose”, o mo-do como o culto remete a um campomais amplo de significação que envolve

outros grupos amazônicos assim comoas sociedades nacionais que os cercam,revelando-o como sintoma da “localiza-ção da modernidade” e permitindo versua violência não apenas como destru-tiva, mas como constitutiva de um cer-to tipo de corpo político.

O capítulo de Thomas Griffiths, so-bre as relações entre cosmologia e tra-balho entre os Uitoto, penetra um terri-tório relativamente pouco explorado: se,como ele mostra, as dimensões políti-cas e sociológicas das atividades produ-tivas têm sido bastante tematizadas pe-la etnologia tropical, o modo como otrabalho (work) envolve as relações en-tre humanos e não-humanos e os pro-cessos de diferenciação que sustentama identidade dos primeiros carece ain-da de maior atenção – e sobretudo amerece. Tomando seriamente as afir-mações indígenas sobre o papel do tra-balho na manutenção e reprodução dascondições metafísicas e físicas (ambien-tais) para a existência humana, bem co-mo na criação e retenção de um corpo ede uma identidade humanas, sua dis-cussão é um bem-vindo exemplo do ti-po de abordagem exigido pela adapta-ção da noção de uma economia políticade pessoas a um universo como o ame-ríndio, onde, como advertira no iníciodo volume Viveiros de Castro, há maispessoas no céu e na terra do que so-nham nossas antropologias (:23).

A contribuição de Lorrain, por fim,igualmente salutar, reflete sobre algu-mas questões epistemológicas suscita-das pelo confronto do que chama o“viés hierárquico” e o “viés igualitário”nas análises das relações de gênero naAmazônia. O esforço por limpar um ter-reno tão conturbado quanto já o foiaquele que vimos percorrendo até aquimerece ser continuado, para que aquestão do englobamento da hierar-quia pelo igualitarismo ou vice-versa,

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levantada pela autora ao final, possa re-ceber uma resposta mais sofisticada,quer dizer, uma formulação mais inte-ressante, do que as disponíveis até aqui.

O capítulo introdutório dos organi-zadores, nem balanço da obra de Riviè-re – o que aliás seria mesmo inapropria-do, uma vez que esta continua em de-senvolvimento – nem reflexão originalsobre o estado atual do campo, poucotem a acrescentar. De todo modo, comonão pode haver melhor testemunho dafecundidade de uma obra que a ampli-tude e riqueza dos interesses desperta-dos pelos objetos e conexões que pro-põe, esta coletânea contribui decidida-mente para ilustrar e manter vivo o im-pulso que o americanismo tropical re-cebeu e recebe da atividade incansávelde Peter Rivière.

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