resenha de “eu sou o umbral da porta”, de stephen king · pdf fileaposentado...

5
Resenha de “Eu sou o umbral da Porta”, de Stephen King Melissa de Carvalho Neves Stephen King, escritor que, assumidamente, dedica-se ao trabalho de criar histórias que provocam o medo nas pessoas, no que há de mais profundo do ser humano, escreveu o conto “Eu sou o umbral da porta”, que se encontra no livro Sombras da noite. Este foi o primeiro livro de contos do autor, lançado em 1978 sob o título original “Night Shift”, e reuniu vinte contos (muitos deles com versões adaptadas para o cinema). O escritor, em seu livro crítico sobre a produção do horror tanto na literatura quanto no cinema, Danse Macabre, lançado em 1981, diz que “o horror não horroriza, a menos que o leitor ou expectador se sinta pessoalmente tocado”. O horror, para King, é um meio termo entre terror (que fica no nível da imaginação) e a repulsa (que reside no campo das reações físicas). Assim, o horror transpõe o campo cognitivo do leitor/expectador, para que este assuma o “trabalho sujo” de imaginar o que é somente sugerido pelo autor. Podemos entender que, na obra de King, o medo não é provocado em sua face mais explícita, e sim que ele vai sendo construído, sugerido durante a narrativa. Em “Eu sou o umbral da porta”, Stephen King deixa em suspenso alguns elementos que poderiam auxiliar o leitor a montar a cena completa da história. Por exemplo, há a descrição de que Arthur, o personagem que é hospedeiro do “ser” alienígena, passou a portar olhos na mão depois de uma viagem espacial para estudar a órbita de Vênus, e, por isso, esconde suas mãos com bandagens, impedindo a visão dos olhos alienígenas. Contudo, o autor não nos informa sobre a origem desses olhos ou quais são suas intenções em sua permanência na Terra através do corpo de Arthur. Isto é somente sugerido com a ajuda da descrição de que os olhos extraterrestres têm uma visão distorcida de tudo o que o personagem vivencia: “Via não um livro, mas uma coisa estranha, algo de forma monstruosa e intenção ominosa”, ou ainda em “Eu olhara no espelho para meu próprio rosto e vira um monstro”. A partir dessa leitura, já somos confrontados com a informação de que os olhos vêem tudo de forma distorcida e monstruosa, como em um filme de terror, mas, além disso, King descreve mais um elemento diferenciador: eles possuem visão em quatro dimensões. Assim, com sua visão alternativa, os olhos e a entidade a qual eles pertencem e que habita no corpo de Arthur sentem e percebem todas as coisas na Terra como algo a ser destruído. O título “Eu sou o umbral da porta” sugere o que o personagem Arthur sente ser: a passagem de comunicação entre dois mundos (a Terra e um mundo desconhecido). O astronauta

Upload: dinhanh

Post on 06-Feb-2018

216 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: Resenha de “Eu sou o umbral da Porta”, de Stephen King · PDF fileaposentado não sabe dizer em que ... Richard, pede para que ele lhe ... ser humano para reverter em ferramenta

Resenha de “Eu sou o umbral da Porta”, de Stephen King

Melissa de Carvalho Neves

Stephen King, escritor que, assumidamente, dedica-se ao trabalho de criar histórias que

provocam o medo nas pessoas, no que há de mais profundo do ser humano, escreveu o conto “Eu

sou o umbral da porta”, que se encontra no livro Sombras da noite. Este foi o primeiro livro de

contos do autor, lançado em 1978 sob o título original “Night Shift”, e reuniu vinte contos (muitos

deles com versões adaptadas para o cinema).

O escritor, em seu livro crítico sobre a produção do horror tanto na literatura quanto no

cinema, Danse Macabre, lançado em 1981, diz que “o horror não horroriza, a menos que o leitor

ou expectador se sinta pessoalmente tocado”. O horror, para King, é um meio termo entre terror

(que fica no nível da imaginação) e a repulsa (que reside no campo das reações físicas). Assim, o

horror transpõe o campo cognitivo do leitor/expectador, para que este assuma o “trabalho sujo”

de imaginar o que é somente sugerido pelo autor. Podemos entender que, na obra de King, o

medo não é provocado em sua face mais explícita, e sim que ele vai sendo construído, sugerido

durante a narrativa.

Em “Eu sou o umbral da porta”, Stephen King deixa em suspenso alguns elementos que

poderiam auxiliar o leitor a montar a cena completa da história. Por exemplo, há a descrição de

que Arthur, o personagem que é hospedeiro do “ser” alienígena, passou a portar olhos na mão

depois de uma viagem espacial para estudar a órbita de Vênus, e, por isso, esconde suas mãos

com bandagens, impedindo a visão dos olhos alienígenas. Contudo, o autor não nos informa sobre

a origem desses olhos ou quais são suas intenções em sua permanência na Terra através do corpo

de Arthur. Isto é somente sugerido com a ajuda da descrição de que os olhos extraterrestres têm

uma visão distorcida de tudo o que o personagem vivencia: “Via não um livro, mas uma coisa

estranha, algo de forma monstruosa e intenção ominosa”, ou ainda em “Eu olhara no espelho para

meu próprio rosto e vira um monstro”. A partir dessa leitura, já somos confrontados com a

informação de que os olhos vêem tudo de forma distorcida e monstruosa, como em um filme de

terror, mas, além disso, King descreve mais um elemento diferenciador: eles possuem visão em

quatro dimensões. Assim, com sua visão alternativa, os olhos e a entidade a qual eles pertencem e

que habita no corpo de Arthur sentem e percebem todas as coisas na Terra como algo a ser

destruído.

O título “Eu sou o umbral da porta” sugere o que o personagem Arthur sente ser: a

passagem de comunicação entre dois mundos (a Terra e um mundo desconhecido). O astronauta

Page 2: Resenha de “Eu sou o umbral da Porta”, de Stephen King · PDF fileaposentado não sabe dizer em que ... Richard, pede para que ele lhe ... ser humano para reverter em ferramenta

aposentado não sabe dizer em que momento da viagem ele foi infectado pela entidade alienígena,

nem mesmo se contraiu a estranha condição durante seu voo espacial. Contudo, Arthur diz ter

sentido muito medo durante a viagem espacial com o companheiro (que morreu após o regresso à

Terra), principalmente ao sobrevoar a órbita de Vênus, que, para ele, “era como circular em torno

de uma casa assombrada em pleno espaço exterior”. Stephen King, ao descrever a viagem na voz

de Arthur, narra também eventos históricos, mas que são ficcionais, ou seja, viagens espaciais que

não existiram na realidade:

De Borman, Anders e Lovell, que entraram na órbita ao redor da Lua

em ’68 e encontraram um mundo vazio e ameaçador que parecia

areia suja na praia, a Markhan e Jacks, que pousaram em Marte onze

anos depois para encontrarem uma vastidão árida de areia congelada

e uns poucos liquens raquíticos, o programa de profunda exploração

espacial fora um dispendioso fracasso.

A viagem à Lua é, para nós, algo verídico, apesar das controversas teorias existentes que

desmentem o fato, contudo, não foi realizada como descrita por King. A viagem a Marte sequer foi

realizada até o presente momento, apesar de já existirem projetos para, não só chegar lá, mas

para colonizar o planeta vermelho.

A partir dessas viagens espaciais fictícias, King acrescenta um elemento primordial ao

enredo do conto: um certo aparelho, o DESA. Nas palavras de Arthur: “Um experimento que não

deu certo. Jargão da NASA para designar Deep Space Antenna, uma antena para uso no espaço

longínquo – irradiávamos impulsos de alta freqüência para quem estivesse interessado em

escutar-nos”. Essa pode ser uma pista de como o ser alienígena chegou até Arthur.

Até onde podemos saber, a entidade alienígena pode ter infectado o companheiro de

viagem de Arthur também, Cory. Não há como ter certeza, já que o companheiro morreu. Mesmo

assim, é possível inferir que Arthur tenha sido infectado pela “praga interestelar” através do

próprio Cory, já que este saiu da nave para reparar um problema no DESA. Arthur conta a Richard

que a telemetria não acusou nenhuma infecção, mas, considerando que Cory morreu, é possível

supor que a causa de sua morte pode não ter sido o acidente ao aterrissar na Terra, e sim que

tenha sido a exposição direta à infecção espacial.

É possível perceber que, ao habitar no corpo de Arthur, os olhos querem conhecer os

elementos que para eles são desconhecidos. Arthur admite que os olhos estão cada vez mais

tomando o controle e diz: “Uma centena de vezes por dia eu me vejo diante de algum objeto

perfeitamente familiar – uma espátula, um quadro, até mesmo uma lata de ervilhas – sem fazer

ideia de como cheguei ali, estendendo as mãos, mostrando-o a eles, vendo-o como eles o veem,

como uma obscenidade, como algo monstruoso e grotesco...”. É interessante observar que,

Page 3: Resenha de “Eu sou o umbral da Porta”, de Stephen King · PDF fileaposentado não sabe dizer em que ... Richard, pede para que ele lhe ... ser humano para reverter em ferramenta

através dessa narração, o sentido de alienígena se inverte: somos nós os alienígenas na visão dos

olhos que, para nós, são os alienígenas.

Considerando, mais uma vez, a descrição que o narrador faz do personagem central,

Arthur, é possível perceber que o ex-astronauta não se mostra disposto a revelar suas mãos, que

ele sempre mantém envoltas em bandagens. Mesmo quando seu amigo, Richard, pede para que

ele lhe mostre as mãos, Arthur responde: “– Não – minha resposta foi muito rápida e áspera. Não

posso permitir que eles vejam. Já lhe disse”. Contudo, o motivo pelo qual Arthur esconde suas

mãos em bandagens pode ser tanto impedir a visão dos olhos alienígenas sobre a Terra, como

também pode ser para esconder o fato bizarro e repulsivo de ter olhos nas mãos. Arthur narra o

momento em que os olhos apareceram em suas mãos cinco anos após o seu retorno da tenebrosa

atmosfera de Vênus e do acidente da chegada na Terra (a aeronave se chocou por não ter tido

sucesso na aterrissagem devido a problemas com o paraquedas): “Apertei os dedos da mão direita

contra os lábios e retirei-os depressa, com repentino nojo”. Esse nojo é reiterado no momento em

que Richard vê os olhos nas mãos do amigo: “Ele recuou involuntariamente. Seu rosto foi invadido

por súbito e incrédulo pavor”. A reação de Richard, compreensivelmente, foi um misto de repulsa

e medo.

A visão dos olhos alienígenas nas mãos de Arthur é tão repulsiva que o próprio Arthur se

compara com sua avó. Ele lembra que, durante sua infância, sua mãe ia levar comida para a avó

dele, que vivia isolada no andar de cima de sua casa. Mencionar a avó em casa era proibido,

porque ela tinha a doença sobre a qual não se podia falar: a lepra. Arthur lamenta: “se não fosse

pela lembrança de minha avó, isolada, virtualmente encarcerada, sendo devorada viva pela

própria carne infectada”. Ao que tudo indica, sua condição inexplicável é, para ele, semelhante à

de sua avó, tão solitária e repulsiva quanto a lepra.

A repulsa é, muitas vezes, utilizada para causar o horror, tanto na literatura, quanto no

cinema. O próprio Stephen King diz, em seu Danse Macabre, que vai sempre tentar aterrorizar o

leitor. “Mas se eu perceber que não vou conseguir aterrorizá-lo, tentarei horrorizá-lo e, se

perceber, então, que não vou conseguir horrorizá-lo, vou apelar para o horror explícito. Eu não

tenho pruridos”. O elemento repulsivo não é o mais explícito que poderia chegar (como chega, por

exemplo, a descrição da personagem possuída Regan, em “O Exorcista”), mas também causa

efeito no leitor.

Lendo o conto, o medo que é provocado não é o de que também sejamos possuídos por

uma entidade alienígena que tem a capacidade de nos obrigar a cometer crimes e tem visões

horríveis e distorcidas de tudo o que vemos. O medo que sentimos é baseado no temor da

Page 4: Resenha de “Eu sou o umbral da Porta”, de Stephen King · PDF fileaposentado não sabe dizer em que ... Richard, pede para que ele lhe ... ser humano para reverter em ferramenta

possibilidade de isso acontecer. É a velha frase “E se fosse verdade?”. Em dois momentos do conto

“Eu sou o umbral da porta”, King tenta buscar a identificação do leitor. Uma delas é:

Imagine sua mente transportada para uma mosca caseira, uma mosca que olhasse para seu rosto com mil olhos. Então talvez você consiga começar a entender por que motivo eu mantinha minhas mãos envoltas em bandagens, mesmo quando não tinha ninguém por perto para vê-las.

E o outro momento:

Se você já passou pelo sofrimento da cicatrização de um corte profundo ou de uma incisão cirúrgica, talvez você faça alguma ideia do tipo de coceira a que me refiro, tinha a impressão de que coisas vivas rastejavam e me perfuravam a carne.

Dessa forma, King parece nos convidar a entrar e a participar do ambiente e situações por

ele descritas e vividas pelo astronauta aposentado, Arthur.

No final do conto, Arthur diz: “o corpo humano é capaz de adaptar-se a quase tudo”. A

porta que separa o mundo terrestre e o misterioso mundo dos alienígenas está se abrindo cada

vez mais, a entidade alienígena domina Arthur podendo fazer com que ele, apesar de estar em

uma cadeira de rodas, possa se levantar e cometer assassinatos, sem perceber. Até mesmo os

seus pensamentos se fundem. Ao mostrar os olhos para Richard, Arthur pensa: “Como ele era

hediondo! Como podia eu ter convivido com ele, falado com ele? Não era uma criatura, mas uma

pestilência. Ele era...”. Percebendo isso e temendo o que mais poderia acontecer, Arthur toma

uma atitude radical. Ele diz: “Antes que a porta se abrisse ainda mais, tinha que ser trancada”.

Após ter assassinado um menino das redondezas de onde morava e o seu grande amigo, Richard,

Arthur decide queimas as próprias mãos. Stephen King, mestre em sua arte, elabora um final

aterrorizante para seu conto: os olhos voltam a brotar, dessa vez, no peito de Arthur, que começa

a planejar seu suicídio.

Como já foi dito, não há a descrição plena dos elementos caracterizadores da entidade

alienígena, sua origem e intenções, mas há o suficiente para nos aterrorizarmos. O “monstro” não

é totalmente delineado, mas é fortemente sugerido. Ele não se esconde atrás de uma porta, como

em “A pata do macaco”, de W. W. Jacobs, mas se revela por um único elemento, os olhos

dourados em Arthur.

Assim, o conto “Eu sou o umbral da porta” funciona como o que Stephen King explica em

Danse Macabre: procuramos e inventamos o horror em livros e em filmes para escaparmos do

horror presenciado na vida real. O autor faz uso dos “elementos mais polêmicos e destrutivos” do

Page 5: Resenha de “Eu sou o umbral da Porta”, de Stephen King · PDF fileaposentado não sabe dizer em que ... Richard, pede para que ele lhe ... ser humano para reverter em ferramenta

ser humano para reverter em ferramenta causadora de medo. O conto “Eu sou o umbral da porta”

pode não provocar medo em todos os leitores, já que cada um tem características próprias e é

muito difícil encontrar um tema que atinja a todos, mas é inegável que, no conto, temos várias

ferramentas provocadoras de medo, culminando em um final espetacular, como não poderia

deixar de ser uma obra literária de Stephen King.