resenha de capitalismo global: histÓria econÔmica e polÍtica do sÉculo xx

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Resenha: FRIEDEN, Jeffry A. Capitalismo Global: história econômica e política do século XX. Tradução Vivian Mannheimer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. 573 pp. 1 Empolgante e concisa, contudo polêmica. A obra do professor Frieden é empolgante e concisa quanto ao capitalismo e seu dinamizador, o comércio internacional, mas é polêmica quando relata um difícil período vivido pela população do Congo sob tutela do rei Leopoldo II e também quando se refere a Lord Keynes em uma comparação com Schacht, economista alemão. Realmente teria sido mister fazê-la em ambos os casos? Suprimindo, momentaneamente, uma resposta para essa questão, faz-se, sim, necessário dar os devidos créditos ao autor de Capitalismo Global. Professor titular da Harvard University, Jeffry A. Frieden, além de poliglota (fluente em francês, espanhol, italiano, português e marginally competent em russo, como destacado em seu curriculum vitae), é especialista em economia política internacional. Frieden traz em sua obra um ponto de vista diferenciado da história econômica e política do século XX. O autor busca a gênese do capitalismo global através da explicação e detalhamento dos desdobramentos históricos do comércio internacional. Comércio global que praticamente se iniciou no século XVIII, com o declínio do mercantilismo e a erupção da Revolução Industrial e das novas tecnologias (transporte, comunicação) dela decorrente, e estende-se até este início de século XXI. Em Capitalismo Global, no início, o autor coloca a seguinte passagem: “A velha ordem defendida com armas em Waterloo terminou e fora substituída por um novo capitalismo global. A força dominante passou a ser o mercado, não [mais] o monarca.” (p. 21) Destaca ainda: “A previsibilidade do padrão ouro [adotado pelas principais nações durante a reestruturação do capitalismo na década de 1870 resultante da Grande Depressão (1873- 1896)] facilitou o comércio, os empréstimos, os investimentos, a migração e os pagamentos internacionais.” (p. 23) E arrebata dizendo que “No fim do século XIX, os acontecimentos pareciam ameaçar a essência do capitalismo global.” (p. 26) Assim, tendo esse fio o comércio internacional como condutor, que tem seu primeiro grande “surto” durante a Era do Ouro, mas que se contraiu durante as grandes guerras e também entre elas, ele diz: As vitórias econômicas do fim do século XIX e início do XX foram impressionantes, mas essa etapa do desenvolvimento do capitalismo global não 1 Orientado pelo docente de História Econômica Contemporânea da FCL/Unesp/Araraquara (1o. sem. 2010), Henrique Pavan Beiro de Souza.

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Resenha de CAPITALISMO GLOBAL: HISTÓRIA ECONÔMICA E POLÍTICA DO SÉCULO XX (Jeffry A. Frieden. Tradução Vivian Mannheimer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. 573 p.)

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Page 1: Resenha de CAPITALISMO GLOBAL: HISTÓRIA ECONÔMICA E POLÍTICA DO SÉCULO XX

Resenha: FRIEDEN, Jeffry A. Capitalismo Global: história econômica e política do

século XX. Tradução Vivian Mannheimer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. 573 pp.1

Empolgante e concisa, contudo polêmica. A obra do professor Frieden é empolgante e

concisa quanto ao capitalismo e seu dinamizador, o comércio internacional, mas é polêmica

quando relata um difícil período vivido pela população do Congo sob tutela do rei Leopoldo II

e também quando se refere a Lord Keynes em uma comparação com Schacht, economista

alemão. Realmente teria sido mister fazê-la em ambos os casos? Suprimindo,

momentaneamente, uma resposta para essa questão, faz-se, sim, necessário dar os devidos

créditos ao autor de Capitalismo Global.

Professor titular da Harvard University, Jeffry A. Frieden, além de poliglota (fluente

em francês, espanhol, italiano, português e marginally competent em russo, como destacado

em seu curriculum vitae), é especialista em economia política internacional. Frieden traz em

sua obra um ponto de vista diferenciado da história econômica e política do século XX. O

autor busca a gênese do capitalismo global através da explicação e detalhamento dos

desdobramentos históricos do comércio internacional. Comércio global que praticamente se

iniciou no século XVIII, com o declínio do mercantilismo e a erupção da Revolução Industrial

e das novas tecnologias (transporte, comunicação) dela decorrente, e estende-se até este início

de século XXI.

Em Capitalismo Global, no início, o autor coloca a seguinte passagem: “A velha

ordem defendida com armas em Waterloo terminou e fora substituída por um novo

capitalismo global. A força dominante passou a ser o mercado, não [mais] o monarca.” (p. 21)

Destaca ainda: “A previsibilidade do padrão ouro [adotado pelas principais nações durante a

reestruturação do capitalismo na década de 1870 – resultante da Grande Depressão (1873-

1896)] facilitou o comércio, os empréstimos, os investimentos, a migração e os pagamentos

internacionais.” (p. 23) E arrebata dizendo que “No fim do século XIX, os acontecimentos

pareciam ameaçar a essência do capitalismo global.” (p. 26)

Assim, tendo esse fio – o comércio internacional – como condutor, que tem seu

primeiro grande “surto” durante a Era do Ouro, mas que se contraiu durante as grandes

guerras e também entre elas, ele diz:

As vitórias econômicas do fim do século XIX e início do XX foram

impressionantes, mas essa etapa do desenvolvimento do capitalismo global não

1 Orientado pelo docente de História Econômica Contemporânea da FCL/Unesp/Araraquara (1o. sem.

2010), Henrique Pavan Beiro de Souza.

Page 2: Resenha de CAPITALISMO GLOBAL: HISTÓRIA ECONÔMICA E POLÍTICA DO SÉCULO XX

terminou bem. A ordem econômica internacional se dissolveu na carnificina da

Primeira Guerra Mundial e não pôde ser reconstituída. O padrão ouro se despedaçou

de forma a nunca mais se restabelecer completamente. O consenso global quanto ao

movimento de bens, capitais e pessoas fora rejeitado ou seriamente questionado à

medida que os países fechavam suas fronteiras ao comércio, à imigração e aos

investimentos. (p. 140)

A depressão econômica destruiu a ordem estabelecida. O sistema pré-1930 tinha

base na ortodoxia internacionalista do padrão ouro, no papel limitado do governo na

economia e na predominância política dos empresários. A calamidade da década de

1930 baniu o comprometimento da ordem clássica com a economia internacional e

com o mercado. A Alemanha, a Itália e seus companheiros fascistas rejeitaram a

integração global e o mercado em favor da autarquia, da intervenção estatal e da

repressão aos trabalhadores. No Ocidente industrial, uma coalização entre

trabalhistas, produtores agrícolas e capitalistas progressistas substituiu o laissez-faire

pela nova socialdemocracia, que intervinha na macroeconomia e oferecia uma

variedade de serviços e seguros sociais. (p. 270)

O comércio global retorna mais vigoroso e intenso, atingindo seu apogeu no pós-

guerra, estabelecido e organizado pelo acordo (unilateral) de Bretton Woods, favorendo o

hegemon – os Estados Unidos da América –, e com este financiando, através do Plano

Marshall, a reconstrução das principais economias afetadas pela guerra. Além disso, os

diversos processos de industrialização são analisados, tais como Industrialização por

Substituição de Importações (ISI), nos países em desenvolvimento/pobres da América Latina,

África e Ásia, e a industrialização orientada para exportações, nos tigres asiáticos.

Segundo o autor:

A ordem do pós-guerra havia atingido o objetivo de seus arquitetos. Os países

capitalistas avançados alcançaram a integração econômica combinada com Estado

de bem-estar sociais e intervenção macroeconômica. Os países em desenvolvimento

conseguiram a intensificação da industrialização combinada com proteção contra a

influência econômica do exterior. Os países socialistas alcançaram um rápido

desenvolvimento industrial e crescimento econômico, combinados com distribuição

de renda eqüitativa. No entanto, em todos os três grupos de países, a obtenção

simultânea de todos esses objetivos tornava-se mais difícil com o passar do tempo. A

integração econômica impôs desafios à intervenção macroeconômica; a ISI gerou

crises periódicas e mais desigualdade; e a planificação econômica socialista

desacelerou o crescimento. (p. 383)

Contudo, as crises da década de 1970, principalmente a crise do petróleo, energia

barata que sustentou o crescimento das nações no após Segunda Guerra Mundial, fizeram com

que o ritmo de crescimento diminuísse consideravelmente, em alguns casos houve retração do

Produto Interno Bruto, o que se estendeu até o fim da década de oitenta.

Nesse interím:

Nacionalistas e internacionalistas, defensores do livre mercado e intervencionistas,

esquerda e direita se confrontavam sobre o curso das políticas econômicas nacionais

e internacionais. As posições políticas se polarizaram: os empresários se opunham

de maneira veemente aos sindicatos trabalhistas e ao Estado de bem-estar social; e o

operariado adotava posições firmes contra os empresários. O consenso centrista das

décadas de 1950 e 1960 havia se desintegrado. Ditaduras se democratizaram,

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democracias foram arruinadas, socialistas tomaram o poder em países

tradicionalmente conservadores e, em outros, foram substituídos pelos

conservadores. O equilíbrio de forças se deslocou do comprometimento com a

economia global para as limitações à integração econômica internacional, ou mesmo

para o seu retrocesso. Infelizmente, o período entre 1970 e o início da década de

1980 foi semelhante aos anos 1930, algo como uma sala de espera para a autarquia e

até hostilidades militares, diante da deterioração das relações entre os Estados

Unidos e a União Soviética. (pp. 387-8)

Por conseguinte, a recuperação do sistema capitalista cosmopolita ressurge nos anos

noventa, mas:

(...) os desafios à globalização persistiam. Alguns eram instrínsecos à operação dos

mercados internacionais, tais como a volatilidade do sistema financeiro, que

ameaçava o ritmo e a natureza da integração econômica. Outros eram externos,

provenientes de grupos onde a globalização não era consenso, ativistas lutando pelos

direitos humanos, pelos direitos dos trabalhadores e pelo meio ambiente. A história

mostrou que o apoio à integração econômica internacional era dependente da

prosperidade. Se o capitalismo global deixasse de promover o crescimento

econômico, seu futuro seria incerto. (p. 498)

Desse modo, o autor enfaticamente conclui: “O desafio do capitalismo global no

século XXI é combinar integração internacional com governos politicamente reativos e

socialmente responsáveis.” (p. 502)

Além do que foi mencionado até aqui, o professor Frieden faz uso de histórias um

tanto insólitas, normalmente não abordadas por outros autores. Por exemplo, quando narra os

terríveis métodos de extração da borracha in natura impostos pelo rei Leopoldo II da Bélgica

à população do Congo, durante a era do imperialismo europeu no final do século XIX e início

do XX. Afirmando sobre isso: “(...) um escândalo global que expôs um dos mais sangrentos

regimes coloniais dos tempos modernos.” (p. 97) E, ainda para acentuar a polêmica em sua

obra, Jeffry A. Frieden referencia-se a J. M. Keynes como sendo “(...) o inglês, um

homossexual heterodoxo (...)” (p. 271) na comparação com o economista alemão Hjalmar H.

G. Schacht.

Em ambos recortes – sobre o Congo e Keynes –, esse julgamento de valor é demasiado

delicado, pois pode esconder certo preconceito. Portanto, como sugestão, o autor de

Capitalismo Global poderia ter suprimido tais colocações e exposto melhor a história de

países que hoje estão se destacando, como China, e/ou em dificuldades, como Japão, bem

como outros temas pertinentes.

Episódios mais pontuais não são explorados na obra, como a Primeira e a Segunda

Guerra Mundial e a Revolução Russa, tendo sido aprofundado tão somente no que tange ao

comércio exterior. Entretanto, deu-se razoável importância para “O sociólogo marxista”

latino-americano, Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do Brasil, analisando de perto

Page 4: Resenha de CAPITALISMO GLOBAL: HISTÓRIA ECONÔMICA E POLÍTICA DO SÉCULO XX

sua trajetória política-social-econômica.

Em tempo, outras duas percepções são quanto a não especificação de qual rei da

Bélgica, Leopoldo I ou II, esteve envolvido na tragédia do Congo, e ao período compreendido

entre 1896-1914, no qual o padrão ouro, além dos transportes, mais baratos e rápidos, e das

comunicações, praticamente instantâneas, possibilitaram a expansão do comércio mundial. Na

primeira percepção, o correto seria ter especificado o rei Leopoldo II, como adotado ao longo

deste trabalho. Na segunda, o período – 1896-1914 – foi intitulado pelo autor como “Era de

Ouro” (ou, no original, em inglês, Golden Age). Período que poderia ter sido chamado de “Era

do Ouro" (Age of Gold), visto que aquele título leva a uma interpretação do período como o

melhor do capitalismo global. Quando, na verdade, o apogeu do capitalismo global ocorreu no

após Segunda Guerra Mundial.

Como simples comparação, o historiador Eric Hobsbawm, em “Era dos Extremos”,

intintula perfeitamente o período do pós-guerra como “Os anos dourados” (The Golden

Years). Termo, aliás, bem diferente do usado em Capitalismo Global, “Juntos novamente,

1939-1973”.

Afinal, em um livro onde o Brasil figura como a estrela-d'alva da América Latina,

indentifica-se um verdadeiro mosaico de bonanças, principalmente países da região Norte, e

dificuldades (de tantos outros), mais especificamente, países da região Sul.

Todavia, a obra está muito bem divida em quatro partes, com periodização bem

delimitada, e com capítulos bem elaborados. Ela, diferente dos trabalhos de Eric Hobsbawm

ou de Paul Johnson (Tempos Modernos), tem uma leitura não maçante, é muito bem

fundamentada, com estatísticas de boa qualidade, além de “fugir” da história convencional,

tratando de países que são totalmente marginalizados por outros autores.

Destarte, é sabido a grande e complexa tarefa de (re)construir um longo período como

o do século XX e tão intrínseco como é o ponto de vista do autor. Ademais, o professor Jeffry

A. Frieden o faz num estilo único, além de muito bem estruturado, com leitura leve e

simpática e honesto intelectualmente. Outrossim, a obra poderia ser recomendada para leitores

de outras áreas, que não sejam necessariamente os de Economia ou de Relações

Internacionais.

Marcelo Fernando Mazzero

Bacharelando em Ciências Econômicas - FCL/Unesp/Araraquara

Especialista em Gestão e Negócios - FGN/UNIMEP/Piracicaba

Tecnólogo em Processamento de Dados - FATEC/Americana