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  • 8/11/2019 Resenha da Obra - Para Abrir as Cincias Sociais - Comisso Gulbenkian para Reestruturao das Cincias Sociais

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    Novas propostas metodolgicasem Cincias Sociais:

    os desafios da histria oral

    Fundao Calouste Gulbenkian

    Para Abrir as Cincias Sociais

    So Paulo, Cortez Editora, 1996

    Resenhado por Luclia de Almeida Neves*

    RESENHAS

    O SCULOXX,como j amplamente reconhecido pela comunidade dehistoriadores, foi marcado por profunda renovao metodolgica no

    que se refere produo de conhecimentos histricos. Impulsionadosprincipalmente pelas propostas revolucionrias da Escola dosAnnales,pesquisadores de diferentes pases do mundo, em um movimento con-tnuo e crescente, foram se deixando seduzir por novos objetos e te-mas, por novas formas de abordagem da realidade histrica, por reno-vados procedimentos metodolgicos e pela fascinante contribuio dainterdisciplinaridade.

    A revoluo que atingiu a Histria, entretanto, no chegou a ter o

    mesmo impacto em reas de conhecimentos afins, especialmente Socio-logia e Cincia Poltica, que muitas vezes ainda tm resistido em romper

    * Professora Titular de Metodologia da Histria e do Mestrado em Cincias Sociaisda PUC-MG; presidente da Associao Brasileira de Histria Oral.

    1 A presidncia da Comisso Gulbenkian para Reestruturao das Cincias Soci-ais, quando da publicao do livro objeto da presente resenha, era exercida por

    Immanuel Wallerstein (EUA; Diretor do Centro Fernand Braudel da Universidade deBinghamton e presidente da Associao Internacional de Sociologia).

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    com frmulas dualistas da ortodoxia cartesiana que insistem na distin-o fundamental entre natureza e seres humanos, entre matria e men-te, e entre mundo fsico e mundo espiritual. Outros postulados que semantm vivos em muitas das produes dessas reas so os do positi-vismo racionalista, que relegam a um segundo plano, ou mesmo ne-gam, as contradies inerentes vida humana, em especial convivn-cia dos homens em sociedade. Alm disso, a inspirao do modelonewtoniano tambm se faz forte, atravs da sobrevivncia de uma con-cepo que estabelece uma relao temporal simtrica e linear entrepassado, presente e futuro.

    Propor um novo caminho para a produo do saber nas diferen-tes reas de conhecimento que compem as usualmente denominadasCincias Sociais, um caminho renovador e condizente com a comple-xidade do mundo contemporneo, foi a motivao que levou Portugala promover amplos investimentos no projeto Portugal 2000. Atra-vs da Comisso Gulbenkian para Reestruturao das Cincias Sociais, sobauspcios da prpria Fundao Gulbenkian, esse pas reuniu um grupointerdisciplinar, composto por cientistas de reconhecidas instituiesde diferentes pases, todos com elevada titulao e destacada compe-tncia em diferentes reas de conhecimento. Tais pesquisadores eramoriginrios, por exemplo, da Frana, Qunia, EUA, Blgica, Alemanha,Japo, Haiti, Reino Unido e Zaire. Sua incumbncia era desenvolverreflexes e proceder a um exame das cincias sociais e do papel queelas desempenham, no que se refere tanto s relaes entre as discipli-nas, como a relao com as humanidades e com as cincias naturais,com objetivo de contribuir para solues que se considerem cruciaispara busca comum de um futuro melhor para sociedade (FundaoGulbenkian, 1996, p. 9).

    Como resultado do encontro, foi produzido um belo e instigantelivro, intitulado Para Abrir as Cincias Sociais. Sua redao, realizada amltiplas mos, contou com a colaborao de pessoas vinculadas sseguintes reas de conhecimento: Histria da Cincia e da Filosofia, Qu-mica, Histria das Civilizaes, Cincia Poltica, Relaes Internacio-nais, Economia, Antropologia, Geografia, Sociologia, Literatura Com-parada e Lnguas Romnicas.

    A pergunta principal feita pelos autores do ensaio metodolgico a seguinte:Que tipo de Cincias Sociais construir em um mundo marcado

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    pela complexidade inerente heterogeneidade das mais variadas ordens (tnicas,sociais, nacionais, religiosas, regionais, culturais, dentre outras)?Desta ques-to desdobraram-se outras indagaes tericas e metodolgicas, relativas,por exemplo, s relaes tempo/espao, objetividade/subjetividade,singularidade/pluralidade, ser humano/natureza. Todas so questesque remetem a uma rica reflexo, realizada pelos autores, sobre a his-tria do conhecimento e da evoluo das Cincias Sociais desde o sculoXVIII at a segunda metade do sculo ora encerrado. Para desenvolv-la, revisitaram os sculos XVII e XVIII, nos quais filosofia e cincia,segundo sua interpretao, estavam unidas na busca da verdade. Che-garam ao sculo XIX, no qual ocorreu o triunfo da cincia positivistae racionalista e o predomnio marcante das chamadas cincias exatas ecincias naturais como paradigmas para a produo de conhecimento,inclusive na prpria rea das humanidades.

    Constatando, portanto, que no sculo XIX predominaram idiasde que a cincia exata triunfara sobre a filosofia e sobre o imaginriona construo do saber, sintetizaram uma srie de consideraes sobrea produo do conhecimento naqueles anos. Entre estas destacaram-se as seguintes:

    predomnio de uma concepo nomotcnica e no interdisci-plinar das reas de conhecimento, o que contribuiu para uma compar-timentao rgida e uma disciplinarizao, muitas vezes estanque, nouniverso produtor do saber;

    revitalizao das universidades, orientadas por pressupostosracionalistas, pela valorizao da especializao, pelo retalhamento dosramos de conhecimento, por um pragmatismo instrumentalizado doato de conhecer e pela negao da especulao;

    no campo da Histria: convico de que possvel comprovara verdade dos acontecimentos e processos, negando-se a realizao deinterpretaes e anlises e supervalorizando-se a narrativa seca e oempirismo.

    Alternativa proposta

    s concepes acima expostas, os autores propem uma alter-nativa de produo de conhecimento e de difuso do saber. Trata-se

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    de uma nova concepo epistemolgica, renovada, marcadamenteinterdisciplinar, no compartimentada e, principalmente, revitali-zadora da filosofia.

    Concluem que preciso romper com o vu protetor das estrutu-ras disciplinares, ignorando as rgidas fronteiras que impedem a produ-o compartilhada do saber, inclusive entre as cincias exatas, cinciasnaturais e cincias humanas e sociais. Alm disso, ousam propor umanova perspectiva pluralista e, portanto, universalista de difuso do co-nhecimento, para alm das fronteiras acadmicas e universitrias.

    Para tanto, sugerem: ligao mais slida entre ensino, investigao e sociedade; maior liberdade dos pesquisadores em relao a cnones pr-

    estabelecidos; vinculao umbilical entre os investigadores e a realidade a que

    esto integrados; rompimento com idias que afirmam a possibilidade da neutra-

    lidade no terreno da epistemologia; ultrapassagem das divises estanques de domnios supostamen-

    te autnomos do poltico, do social, do econmico e do cultural.Apresentam ainda as seguintes proposies, como desdobramen-

    tos necessrios das propostas nucleares que integram sua viso episte-molgica acima discriminada: adoo de uma perspectiva transdisci-plinar; recusa da distino ontolgica entre ser humano e natureza;rompimento com moldes analticos presos aos estados nacionais (visoestadocntrica), atravs da afirmao de uma nova lgica, traduzidapelo seguinte postulado: Pensar globalmente; agir localmente; rompi-mento com frmulas de pensamento endocntricas, como, por exemplo,o eurocentrismo; adoo de posturas de ndole mais multicultural ouintercultural; respeito aos particularismos, atravs da conscincia deque o universal apresenta-se amalgamado por um conjunto de plura-lidades; rompimento com a viso dicotmica que contrape objetivi-dade a subjetividade.

    Desafios metodolgicos da histria oral

    Tomando como referncia as proposies metodolgicas apresen-tadas pelos autores reunidos pela Fundao Gulbenkian, consideramos

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    pertinente desenvolver algumas anlises, especialmente no que tange adoo da histria oral como recorrente procedimento metodolgico.Esta adoo tem sido hoje bastante disseminada, em mltiplas facetas:tem se desdobrado na publicao de livros de memria em dilogocom a Histria; subsidiado a produo de teses universitrias; alimenta-do grupos de pesquisa; finalmente, tem aberto perspectivas para produode conhecimentos inovadores sobre a Histria de temas e sujeitos his-tricos usualmente relegados a um segundo plano pela historiografiamais tradicional.

    Na verdade, a histria oral, que pode ser definida como procedi-mento metodolgico estreitamente vinculado metodologia qualitativa,coaduna-se com a renovao epistemolgica proposta pelos autores dolivro Para Abrir as Cincias Sociais.Talproximidade situa-se no campode objetivos e procedimentos, e refere-se a seu carter eminentementeinterdisciplinar, pois se movimenta em terreno pluralista, no perten-cendo a nenhum ramo de conhecimento de forma exclusiva e imper-mevel. Em decorrncia, a maior parte dos grupos de pesquisa, de di-ferentes instituies, que se dedicam produo de fontes orais, temse caracterizado por um perfil mltiplo, heterogneo, reunindo profis-sionais de reas de conhecimento afins, tais como: Histria, Antropo-logia, Sociologia, Lingstica, Cincia Poltica e, no raramente, Psico-logia e Psicanlise, pois o trabalho do pesquisador que lida com arelao memria/histria, na verdade, no pode dispensar um referen-cial terico complexo e multifacetado.

    So muitas as potencialidades da histria oral. Atuando no terre-no da singularidade e da contrageneralizao, possibilita ampliar erenovar a produo do saber sobre diferentes temas: tnicos, religio-sos, sociais, polticos, regionais, nacionais, familiares, biogrficos, urba-nos, rurais. Portanto, ao contribuir para a abertura de novas perspecti-vas temticas, integra-se aos princpios de renovao metodolgicapropostos pela Comisso Gulbekian para Reestruturao das Cinci-as Sociais, atravs de um frtil dilogo da Histria com reas afins deconhecimento.

    Nesse sentido, os pesquisadores que se propem a enfrentar a ta-refa de trabalhar no terreno multifacetado da histria e da memria,

    tanto coletiva como individual, deparam-se cotidianamente com poten-cialidades, limites e especificidades que fazem da histria oral (que se

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    constitui em extraordinrio processo de construo de documento,com interferncia do historiador) um rico e atualizado desafio intelec-tual um desafio prximo revoluo metodolgica proposta pelosautores da Comisso Gulbenkian: abrir as cincias sociais, e traduzi-do pelas caractersticas abaixo discriminadas:

    singularidade como caracterstica peculiar e essencial aos pro-cessos histricos narrados por sujeitos histricos especficos;

    potencialidade para revelao de novos campos para a pesqui-sa, novas hipteses de trabalho, novas verses sobre processos histri-cos e adoo de interpretaes alternativas s j consolidadas pelahistoriografia oficial;

    possibilidade de recuperao de informaes que no se encon-tram registradas em outros tipos de documentos, especialmente no quetange histria de movimentos sociais e tnicos, esfera da vida priva-da, a movimentos de articulao do poder, entre outros;

    dimensionamento de uma temporalidade mltipla, no linear,atravs da relao presente/passado e da considerao da categoria tem-po segundo a experincia temporal dos entrevistados e entrevistadores.

    A leitura do livro que se apresenta em traos gerais por esta rese-nha, portanto, estimulante e fundamental para a comunidade de pes-quisadores que tm buscado inovar e construir de forma criativa e con-sistente novos conhecimentos na rea da Histria e das Cincias Sociais.