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EPIDEMIA DE DOENÇA MENINGOCÓCICA, 1970/1977 APARECIMENTO E DISSEMINAÇÃO DO PROCESSO EPIDÊMICO Rita de Cássia Barradas Barata* BARATA, R. de C. B. Epidemia de doença meningocócica, 1970/1977. Aparecimento e disseminação do processo epidêmico. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 22:16-24, 1988. RESUMO: Estuda-se o aparecimento da epidemia de doença meningocócica e sua disseminação na Cidade de São Paulo, SP (Brasil), destacando-se a progressão no tempo (mês de início do processo) e no espaço (subdistritos e distritos). A análise dos diagra- mas de controle construídos a partir da experiência em anos endêmicos (1960/1969), por subdistritos e distritos da Capital, permite evidenciar a progressão da epidemia em ondas concêntricas, da periferia para as áreas centrais, a partir de janeiro de 1970. Os dados empíricos permitem mostrar a distribuição heterogênea dos casos nos diferentes segmentos da população. UNITERMOS: Meningite meningocócica, incidência. Epidemiologia descritiva. Fato- res socioeconômicos. * Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo Rua Dr. Cesário Motta Jr., 112 — 01221 — São Paulo, SP — Brasil. INTRODUÇÃO O contexto em que a epidemia de doença meningocócica floresce na cidade de São Paulo, é aquele da década de 70, quando o país vivia o chamado "milagre" econômico. A quebra do modelo desenvolvimentista populista, em abril de 1964, é seguida pela instalação de um novo modelo econômico e político caracterizado pela centralização; am- pliação da participação do capital estrangeiro na economia com a desnacionalização das empresas; política anti-inflacionária baseada no "arrocho salarial", diminuição, do déficit orçamentário, reforma tributária e restrição do crédito; e a criação de um novo pacto de poder que reforça e amplia os laços de dependência a nível internacional e exclui a participação política da maior parte da sociedade 6,8 . Apesar do crescimento econômico vertigi- noso, a política de "arrocho" salarial, a re- pressão política, os movimentos migratórios no sentido campo-cidade e norte-nordeste-sudeste, e o crescimento acelerado da periferia dos grandes centros urbanos compunham o pano de fundo das condições sócio-políticas e socio- econômicas favoráveis ao aparecimento e dis- seminação da epidemia. Por si só, tais condições não explicam o aparecimento da epidemia, entretanto, sem elas, acreditamos que a epidemia não teria assumido o vulto que assumiu. As condições miseráveis de vida a que estavam submetidas cerca de 2/3 da população do Município de São Paulo, residentes na periferia, favorece- ram a instalação e posterior difusão dos casos. As condições de vida e trabalho a que es- tavam sujeitas grandes parcelas da população podem ser inferidas a partir de alguns dados disponíveis para o período que precede o aparecimento da epidemia e para os anos iniciais do processo epidêmico. Em 1970, cer- ca de 72% da força de trabalho, em São Paulo, era constituída por trabalhadores assa- lariados. Destes, 88% trabalhavam 40 horas ou mais, por semana, e 55% ganhavam me- nos de 2 salários mínimos, enquanto 30% ganhavam entre 2 e 5 salários mínimos 3,8 . Outro dado importante para a análise desse contexto, em que o processo epidêmico se instala, é o padrão de crescimento populacio- nal da cidade de São Paulo. No período de 1940 a 1950, a população cresceu cerca de 5,2% ao ano, sendo que o crescimento migra- tório representou 79% do total. Na década seguinte, o crescimento foi da ordem de 5,6% ao ano com 3,8% de crescimento migratório (68%), refletindo o intenso processo de urba- nização e industrialização ocorrido na região metropolitana nessas duas décadas. Nos anos

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EPIDEMIA DE DOENÇA MENINGOCÓCICA, 1970/1977

APARECIMENTO E DISSEMINAÇÃO DO PROCESSO EPIDÊMICO

Rita de Cássia Barradas Barata*

BARATA, R. de C. B. Epidemia de doença meningocócica, 1970/1977. Aparecimento edisseminação do processo epidêmico. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 22:16-24, 1988.

RESUMO: Estuda-se o aparecimento da epidemia de doença meningocócica e suadisseminação na Cidade de São Paulo, SP (Brasil), destacando-se a progressão no tempo(mês de início do processo) e no espaço (subdistritos e distritos). A análise dos diagra-mas de controle construídos a partir da experiência em anos endêmicos (1960/1969),por subdistritos e distritos da Capital, permite evidenciar a progressão da epidemia emondas concêntricas, da periferia para as áreas centrais, a partir de janeiro de 1970. Osdados empíricos permitem mostrar a distribuição heterogênea dos casos nos diferentessegmentos da população.

UNITERMOS: Meningite meningocócica, incidência. Epidemiologia descritiva. Fato-res socioeconômicos.

* Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo —Rua Dr. Cesário Motta Jr., 112 — 01221 — São Paulo, SP — Brasil.

INTRODUÇÃO

O contexto em que a epidemia de doençameningocócica floresce na cidade de SãoPaulo, é aquele da década de 70, quando opaís vivia o chamado "milagre" econômico.

A quebra do modelo desenvolvimentistapopulista, em abril de 1964, é seguida pelainstalação de um novo modelo econômico epolítico caracterizado pela centralização; am-pliação da participação do capital estrangeirona economia com a desnacionalização dasempresas; política anti-inflacionária baseadano "arrocho salarial", diminuição, do déficitorçamentário, reforma tributária e restrição docrédito; e a criação de um novo pacto de poderque reforça e amplia os laços de dependênciaa nível internacional e exclui a participaçãopolítica da maior parte da sociedade6,8.

Apesar do crescimento econômico vertigi-noso, a política de "arrocho" salarial, a re-pressão política, os movimentos migratórios nosentido campo-cidade e norte-nordeste-sudeste,e o crescimento acelerado da periferia dosgrandes centros urbanos compunham o panode fundo das condições sócio-políticas e socio-

econômicas favoráveis ao aparecimento e dis-seminação da epidemia.

Por si só, tais condições não explicam oaparecimento da epidemia, entretanto, sem

elas, acreditamos que a epidemia não teriaassumido o vulto que assumiu. As condiçõesmiseráveis de vida a que estavam submetidascerca de 2/3 da população do Município deSão Paulo, residentes na periferia, favorece-ram a instalação e posterior difusão dos casos.

As condições de vida e trabalho a que es-tavam sujeitas grandes parcelas da populaçãopodem ser inferidas a partir de alguns dadosdisponíveis para o período que precede oaparecimento da epidemia e para os anosiniciais do processo epidêmico. Em 1970, cer-ca de 72% da força de trabalho, em SãoPaulo, era constituída por trabalhadores assa-lariados. Destes, 88% trabalhavam 40 horasou mais, por semana, e 55% ganhavam me-nos de 2 salários mínimos, enquanto 30%ganhavam entre 2 e 5 salários mínimos3,8.

Outro dado importante para a análise dessecontexto, em que o processo epidêmico seinstala, é o padrão de crescimento populacio-nal da cidade de São Paulo. No período de1940 a 1950, a população cresceu cerca de5,2% ao ano, sendo que o crescimento migra-tório representou 79% do total. Na décadaseguinte, o crescimento foi da ordem de 5,6%ao ano com 3,8% de crescimento migratório(68%), refletindo o intenso processo de urba-nização e industrialização ocorrido na regiãometropolitana nessas duas décadas. Nos anos

60, o crescimento diminui um pouco, sendode 4,5% ao ano com taxa de crescimentomigratório de 2,9% (64%) ao ano3.

O intenso processo de absorção de migran-tes oriundos do interior do Estado de SãoPaulo e dos demais Estados do país é extre-mamente importante na configuração dos per-fis epidemiológicos, uma vez que os migrantesrepresentam grupo particular de risco, querseja por suas condições geralmente precáriasde inserção social, quer seja pela ausência deimunidade para as doenças existentes nasgrandes áreas urbanas dentre as quais, adoença meningocócica2.

O processo de surgimento da epidemia ape-sar de permanecer desconhecido em seus me-canismos mais íntimos certamente está rela-cionado a esse quadro onde se somam cres-cimento desordenado, pobreza e intensa ex-ploração da força de trabalho.

O presente trabalho teve por objetivo ana-lisar a progressão crono-espacial da doençameningocócica na cidade de São Paulo du-rante a epidemia a fim de desvelar a lógicado processo de disseminação nas diferentescamadas da população.

MATERIAL E MÉTODOS

O número de casos de meningite meningo-cócica por subdistrito no Município de SãoPaulo, por mês, no período de 1960 a 1975,foi obtido através de levantamento de pron-tuários de todos os casos suspeitos internadosno Hospital Emílio Ribas e nos demais hos-pitais que compuseram a rede de atendimentodurante a epidemia.

Para cada caso suspeito foi preenchida umaficha pré-codificada contendo vários dadosinclusive o endereço completo. Este levanta-mento estendeu-se ao período pré-epidêmico,de 1960 a 1969, a fim de que os diagramasde controle fossem construídos com dadosobtidos segundo os mesmos critérios que aque-les utilizados para o estudo dos casos, duranteo período epidêmico.

O levantamento de dados foi financiadopelo Ministério da Saúde e realizado peloDepartamento de Medicina Social da Facul-dade de Ciências Médicas da Santa Casa deSão Paulo. Os dados foram coletados porestudantes de medicina e computados pelaDivisão de Informática da Fundação InstitutoBrasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Para fins do presente trabalho utilizamosalgumas das informações colhidas naquele le-

vantamento: o diagnóstico definitivo, a data deinternação e o local de residência.

Foram considerados casos de doença menin-gocócica aqueles que preenchessem uma dasseguintes condições: contra-imunoeletroforesedo líquor positiva para meningococo A, B, C,X, Y, ou outro; cultura do líquor positivapara meningococo; bacterioscopia do líquorpositiva para Diplococcus Gran negativo; cito-lógico do líquor apresentando aumento donúmero de células com predomínio de neutró-filos associado a quadro clínico de exantemapetequial e toxemia com início abrupto; lí-quor purulento associado a exantema pete-quial e toxemia de início súbito; necrópsiamostrando necrose de supra-renais; quadroclínico compatível com meningococcemia.

A data de internação foi utilizada como in-dicativa do início do caso. Tendo em vista ocurto período de incubação da doença (1 a 3dias) considerou-se adequada sua aproxi-mação.

Os casos com diagnóstico de doença menin-gocócica foram classificados, por meio deendereço, segundo subdistritos e distritos doMunicípio de São Paulo. O subdistrito foi es-colhido como unidade de classificação por sera menor unidade territorial para a qual dis-pomos de informação relativa à população.

A distribuição dos casos em distritos e sub-distritos foi feita partindo-se da informaçãode endereço constante do prontuário e verifi-cando-se em um mapa (Geomapas, 1973) alocalização do mesmo. Quando não foi pos-sível a localização da rua referida adotou-seo bairro indicado para proceder-se à classifi-cação. Nesses casos utilizamos a relação debairros da Prefeitura Municipal de São Paulo.Quando nem o bairro era localizado aceitá-vamos a informação do subdistrito ou distritoexistente no prontuário. Finalmente, quandonenhuma classificação era possível considerá-vamos o endereço ignorado.

Para verificar em que momento se deu oinício da incidência epidêmica em cada sub-distrito procedemos à construção de diagra-mas de controle adotando em sua construçãoa distribuição normal.

Os cálculos para a construção dos diagra-mas foram feitos por processamento eletrôni-co (HP 68/10), no Centro de Informações daSaúde da Secretaria de Estado da Saúde.

Na verificação da incidência epidêmica sur-giu um problema relativo àqueles subdistritos

com populações pequenas em cujo períodopré-epidêmico praticamente não ocorreram ca-sos de doença meningocócica. Para esses lo-cais, um aumento pequeno no número de ca-sos já se configura epidêmico. Sendo assim,observamos que durante um ou dois meses aincidência era epidêmica retomando em se-guida, ao normal, durante alguns meses.

No sentido de caracterizar a progressão daepidemia em ondas, consideramos como inícioda mesma, não a primeira incidência fora doslimites do diagrama mas o momento em quea incidência se mostrou epidêmica sem retornoimediato à faixa de flutuação endêmica.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A heterogeneidade das condições de vidada população de São Paulo, no início da epi-demia, pode ser constatada por alguns indi-cadores elaborados pela Fundação Sistema Es-tadual de Análise de Dados (SEADE), para as

zonas central, intermediária e periférica dacidade.

Há diferenças marcantes com relação, prin-cipalmente, à mortalidade infantil, à taxa decrescimento populacional anual, à percenta-gem de prédios com água encanada e esgotoe à percentagem de famílias com renda supe-rior a 10,68 salários mínimos.

Por trás da distribuição geográfica adotadaescondem-se as diferenças, de classes social.Desta diversidade de formas de inserção socialdecorrem diferentes perfis epidemiológicos declasses que, em última instância, irão se tra-duzir em diferentes riscos de adquirir doençasresultando em certos padrões de distribui-ção1,4,5,7.

A distribuição da doença meningocócicapelas áreas central, intermediária e periféricareflete, grosso modo, os padrões heterogêneosde sua ocorrência em São Paulo (Tabela).

Os dados mostram que apesar da epidemiaatingir fortemente todas as áreas da cidade, asáreas mais pobres, representadas pelos sub-distritos e distritos da periferia, sempre apre-sentam riscos mais altos comparativamente àsáreas central e intermediária.

Entretanto, é interessante notar que os au-mentos relativos, na incidência, são menoresna área periférica do que nas áreas central eintermediária. Este fato, talvez, esteja relacio-nado com o fenômeno de imunidade de mas-sas, isto é, as populações da área periférica,por terem contatos mais freqüentes com omeningococo (incidência bem maior no perío-do endêmico) sofrem, relativamente menos, oimpacto da epidemia, enquanto as áreas cen-tral e intermediária mostram-se mais vulnerá-

veis exatamente pela menor experiência coma doença. De qualquer sorte, as maiores inci-dências são encontradas nos bairros perifé-ricos.

Chama a atenção ainda, o forte aumento deincidência observado em todas as áreas, doano de 1973 para o ano de 1974, correspon-dendo à superposição de duas ondas epidê-micas; aquela provocada pelo meningococo Cque vinha crescendo desde 1970 e a produzidapelo meningococo A a partir de 1974, assu-mindo caráter explosivo. O meningococo Aque apresenta maior infectividade e maiorpatogenicidade do que o meningococo C, pro-duziu assim uma verdadeira explosão de casosem todas as áreas da cidade.

A falsa suposição, freqüentemente difundi-da de que a doença meningocócica incide"democraticamente" entre ricos e pobres pre-cisa ser revista. Se é verdade que tanto ricosquanto pobres são atingidos por ela, tambémé verdade que não são afetados com a mesmaintensidade ou com a mesma velocidade.

Em 1970 a área central apresentava taxaanual de crescimento populacional de 1,31%ao ano, renda média mensal de 10 a 12 sa-lários mínimos e 3,6 habitantes por domicílio.A área intermediária que inclui alguns bairrosantigos e em franco processo de deterioraçãoapresentava crescimento de 0,67% ao ano(vários subdistritos com crescimento negati-vo), renda média mensal de 6,8 a 8,0 saláriosmínimos e 4,1 habitantes por domicílio. Final-mente, a periferia tinha crescimento anual de7,65%, renda média mensal de 3 a 4 saláriosmínimos e 4,4 habitantes por domicílio2.

Há, portanto, correspondência direta entrea incidência de doença meningocócica e nú-mero de habitantes por domicílio segundo asáreas consideradas, e indireta entre a incidên-cia e a renda mensal média nas mesmas áreas.Sabendo que a aglomeração intradomiciliar éfator importante na facilitação do mecanismode transmissão para as doenças de transmissãorespiratória por contato direto, em geral, adiferença de aproximadamente um habitantepor domicílio, existente entre a área central eperiférica, poderia ser considerada relevantena explicação do maior risco verificado nessaúltima. Além disso, vale lembrar que as di-mensões dos domicílios existentes na periferiae na área central são bastante diversos, de-vendo haver, conseqüentemente, aglomeraçãoainda maior, se consideramos o número depessoas por dormitório ou por área construída.

A taxa de crescimento nas diferentes áreaspode nos fornecer uma pista para compreen-der como os aumentos relativos podem sermaiores nas áreas central e intermediária, em-bora as mais altas taxas de incidência ocorramna periferia. Para tanto é necessário aliar acompreensão teórica do fenômeno de imuni-dade de massas, de um lado, ao crescimentomaior ou menor da população exposta. Assim,se por um lado os habitantes da periferia têmmaior experiência prévia com a doença, elestambém apresentam um crescimento alto, re-sultante do intenso fluxo migratório que for-nece grandes quantidades de expostos, o queirá se refletir em altos coeficientes de inci-dência. As áreas centrais, com um crescimentobem menor e pouca experiência prévia com adoença, apresentam coeficientes de incidência

mais baixos e aumentos relativos maiores. Asáreas intermediárias, que apresentam as me-nores taxas de crescimento e experiência pré-via semelhante a das áreas centrais, mostramcoeficientes de incidência e aumentos relativosmaiores do que os da área central, provavel-mente pela existência, em grande número, dehabitações coletivas em subdistritos maisvelhos.

O aparecimento da epidemia não se dá demodo simultâneo no município como um todo.Seu surgimento e posterior propagação "obe-dece a certa lógica" que deve refletir o modosocial de produção do processo epidêmico.

Nossa hipótese é que as populações subme-tidas às condições de vida piores devem apre-sentar incidência epidêmica mais precocemen-te do que aquelas com melhores condições devida.

Na zona sul o processo iniciou-se em maiode 1971 no subdistrito de Santo Amaro pro-gredindo em direção a subdistritos contíguos.O distrito de Parelheiros foi o último a seratingido, cerca de 36 meses após. Este distritoapresenta densidade populacional baixa (316hab/km2), comparativamente aos demais, ecaracterísticas rurais, o que poderia explicarhaver sido afetado apenas em outubro de1974.

Após 6 meses do início, a epidemia irrompeem São Miguel Paulista, na zona leste. Aí aprogressão também se faz para os subdistritose distritos contíguos sendo que o último sub-distrito, a Penha só foi afetado após 21meses.

A zona norte apresentou incidências epidê-micas 13 meses após o início na zona sul e7 meses após o início na zona leste. Aqui aonda epidêmica apareceu simultaneamente emSantana e Tucuruvi, avançando sobre os sub-distritos vizinhos, cobrindo todos eles em 19meses.

Na zona oeste, a epidemia apareceu 25 me-ses após seu surgimento na zona sul apesarda proximidade geográfica entre elas. Os pri-meiros subdistritos afetados foram Lapa e Pi-rituba. A progressão levou 10 meses, sendo odistrito de Perus o último a ser atingido. Rela-tivamente os distritos de Perus e Jaraguá apre-sentavam densidades populacionais menores,487 e 581 hab/km2, respectivamente.

A última área a ser atingida foi o centroexpandido. O primeiro subdistrito a apresen-tar incidência epidêmica foi a Liberdade em

setembro de 1973, isto é, 28 meses após oinício da zona sul, 22 meses após o apareci-mento na zona leste, 15 meses após o iníciona zona norte e 3 meses após o início na zonaoeste. A maioria dos subdistritos foi atingidasomente em 1974 durante o acme da epidemia.A progressão na zona central levou apenas11 meses.

É interessante notar como à medida que a"onda" epidêmica se espalha, foram encurtan-do os intervalos de tempo entre o acometi-mento do primeiro distrito ou subdistrito e oúltimo, em cada zona. Tratando-se de doençade transmissão respiratória podemos suporque houve aumento progressivo do número deportadores à medida que o processo foi dis-seminado, tornando cada vez mais freqüentesos contatos entre portadores e susceptíveis.

Para facilitar a visualização da progressãoespacial construímos cartogramas semestrais,para o período de janeiro de 1971 a dezembrode 1974, onde, por semestre, estão represen-tados os subdistritos e distritos afetados, ea direção da progressão da onda epidêmica.(Figs. 1-8).

No primeiro semestre considerado, apenaso subdistrito de Santo Amaro apresentou in-cidência epidêmica. No segundo nota-se a pro-gressão da epidemia na zona sul e seu iníciona zona leste. O terceiro mostra o prossegui-mento do processo nas duas zonas já citadase seu início na zona norte continuando aprogressão no quarto semestre. O início daepidemia na zona oeste pode ser visto noquinto semestre e na zona central no sexto.Ao final do período, julho a dezembro/1974,todo o Município de São Paulo encontrava-setomado pela epidemia.

Da observação, ainda que estática dessescartogramas, é possível apreender que a partirde pontos extremos na periferia (excluindo-sedistritos predominantemente rurais), a epide-mia foi-se espalhando, geralmente em ondasconcêntricas.

Esse padrão de distribuição temporal es-pacial, que a epidemia apresentou, mostra, arelação entre as condições sociais de existên-cia e a determinação dos padrões epidemioló-gicos de ocorrência de doenças. Afetando,inicialmente, as áreas de maior concentraçãoda pobreza (quantitativa e qualitativamente)e, por último, as áreas onde as condições devida são, em média, melhores, ou onde a baixaconcentração de habitantes — por exemplono subdistrito da Sé — constituiu um obstá-culo à sua disseminação, a epidemia de doen-

ça meningocócica segue um traçado nadacasual.

Na presente análise não podemos omitir umfato que pode obscurecer a relação entre con-dições de vida e produção de doença. Trata-seda distribuição heterogênea das classes e fra-ções de classe, bem como das doenças dentrode cada subdistrito. Embora haja subdistritose distritos relativamente homogêneos com re-lação às frações de classe que os habitam,muitos apresentam composição bastante hete-rogênea.

Para o Município de São Paulo, como umtodo, a incidência foi epidêmica a partir deabril de 1971. Se consideramos a primeiraincidência epidêmica em cada distrito e sub-distrito, mesmo que a seguir ela tenha retor-nado aos níveis endêmicos temporariamente,em abril de 1971, cerca de 31 distritos e sub-distritos já haviam apresentado número ex-cessivo de casos, pelo menos durante um mês.

Já em janeiro de 1970, 4 subdistritos apre-sentaram incidência epidêmica para a doençameningocócica.

Na zona sul os primeiros subdistritos aapresentarem excesso de casos foram SantoAmaro e Ibirapuera. Em 25 meses todos osdistritos e subdistritos apresentaram incidên-cia anormal, sendo que o último distrito a serafetado foi novamente Parelheiros.

Na zona norte, o primeiro subdistrito aapresentar a epidemia foi o Tucuruvi e oúltimo novamente a Vila Guilherme que sófoi afetada após 29 meses.

Na zona oeste, o processo apareceu inicial-mente em Pirituba. O último subdistrito a seratingido foi o de Vila Taguara, 19 mesesdepois.

Na zona leste, o primeiro subdistrito comincidência epidêmica foi Cangaíba, seguindo-seos demais em 24 meses. O último subdistritoa apresentar incidência excessiva foi a VilaPrudente.

No centro, a epidemia manifestou-se inicial-mente no subdistrito de Vila Mariana e em30 meses os demais subdistritos também apre-sentaram excesso de casos. O último subdis-trito a apresentar a epidemia foi o Bom Retiro.

Essas incidências epidêmicas iniciais seapresentam como "manchas" que vão se alas-trando nas diferentes zonas até tomar todo omunicípio. Os subdistritos e distritos cujaprimeira incidência epidêmica ocorreu no ano

de 1970, tinham, em média, taxa de cresci-mento anual de 4,1% e densidade de 10.208hab/km2. Naqueles em que a incidência anor-mal ocorreu em 1971, a taxa de crescimentoanual foi de 4,2% e a densidade demográfica9.325 hab/km2. Finalmente, os que apresenta-ram valores epidêmicos apenas em 1972 tinhamtaxa de crescimento anual de 3,4% e densi-dade demográfica de 6.965 hab/km2. Aparen-temente houve relação inversa entre a taxa decrescimento e a densidade demográfica e ofato de a primeira incidência epidêmica haversido mais ou menos precoce. Esta relação sóse verifica com as medias, não havendo a mes-ma correspondência quando cada distrito ousubdistrito é analisado separadamente.

O intervalo entre o primeiro mês com inci-dência epidêmica e a instalação definitiva daepidemia, sem retorno aos valores endêmicos,variou de 4 a 53 meses, para o subdistrito deJabaquara e de Vila Mariana, respectiva-mente.

Com intervalos entre 4 e 12 meses estavamos subdistritos do Jabaquara, Vila Prudente,Saúde e Vila Maria e os distritos de São Mi-guel Paulista e Itaquera. Esses locais apresen-tavam renda média mensal de 4,8 salários mí-nimos, crescimento anual de 8,6% e 8.178hab/km2; valores estes que sugerem intensocrescimento populacional, provavelmente, àscustas de migrações, alta concentração popu-lacional com provável aglomeração intradomi-ciliar e renda baixa. Todos esses fatores alia-dos às más condições de vida e ao fato depertencerem à área periférica poderiam faci-litar a propagação mais rápida da epidemia.

Entre 13 e 24 meses de intervalo ficaramos subdistritos de Capela do Socorro, VilaMatilde, Santo Amaro, Butantã, Ipiranga, Ta-tuapé, Santana e Bom Retiro e o distrito deErmelino Matarazzo. Essas localidades tinhamrenda média mensal de 4,4 salários mínimos,crescimento anual de 7,3% e densidade de-mográfica de 6.452 hab/km2. Neste grupo, arenda foi inferior a do grupo anterior assimcomo a taxa de crescimento e a densidadeque, entretanto, apresentaram valores bem al-tos. Estão incluídos naquele grupo, 4 subdis-tritos da área periférica e 4 da área inter-mediária.

O intervalo de 25 a 36 meses foi observadoem 17 locais sendo 5 da área central, 5 daárea intermediária e 7 da área periférica. Arenda média mensal dessas localidades era de5,8 salários mínimos, crescimento anual de2,9% e densidade 9.469 hab/km2. Este grupo

tinha, portanto, renda média maior do que osanteriores e crescimento bem menor. A densi-dade maior deve estar refletindo predomíniode edifícios nas áreas centrais.

Entre 37 e 48 meses estavam os intervalosobservados em 19 localidades. Destes, 8 eramda área central, 4 da intermediária e 7 daperiférica. Para essas localidades a renda mé-dia era de 7,2 salários mínimos, o crescimentoanual 2,7% e a densidade demográfica 10.356hab/km2. Novamente observa-se renda maiorque nos grupos anteriores, crescimento menore densidade maior.

Finalmente, entre 49 e 53 meses encontra-ram-se 4 subdistritos: Bela Vista (área cen-tral), Vila Mariana (área intermediária), Limãoe Vila Nova Cachoeirinha (área periférica).Neste grupo a renda média mensal era de 6,6salários mínimos, o crescimento anual de1,7% e a densidade 14.679 hab/km2.

Das variáveis disponíveis, a única que re-velou relação inversamente proporcional, cons-tante, com a duração do intervalo foi a taxade crescimento, sugerindo que nas localidadesonde o crescimento populacional foi mais ace-lerado, o "estoque" de susceptíveis era maior,facilitando a disseminação da doença. Comexceção do primeiro e do segundo grupos, nosdemais a densidade demográfica mostrou-se di-retamente proporcional à duração do inter-valo. Para compreender tal relação é neces-sário lembrar que na transmissão das doençasrespiratórias a aglomeração intradomiciliar éimportante e poderia ser avaliada pelo núme-ro de pessoas por dormitório.

A densidade demográfica, embora retrate aconcentração especial das pessoas, pode estarrefletindo a presença predominante de edifí-cios de apartamento em várias áreas, sem comisso estar implicando maior aglomeração do-miciliar.

A despeito das limitações que os dados re-gistrados, assim como as informações censi-tárias e de eventos vitais impõem a uma aná-lise que busque tornar clara a determinaçãosocial na produção e distribuição das doenças,permitem demonstrar, ainda que de formapouco precisa, as desigualdades existentes nadistribuição das doenças e suas relações comindicadores indiretos (ainda que insuficientes)das condições de classe.

Se quisermos apreender o fenômeno dadeterminação social na produção e distribui-ção das doenças e, em especial, nas situaçõesepidêmicas, teremos que proceder a levanta-

mentos de campo, utilizando categorias deanálise que permitam trabalhar realmente como conceito de classe.

De qualquer modo, resta o problema dacaracterização da população, segundo as clas-ses sociais, o que está longe de ser conseguidonas estatísticas oficiais.

No caso de epidemias, a complexidade defatores envolvidos torna difícil a compreensãodo fenômeno na sua intimidade. Entretanto, épossível tornar evidente as desigualdades nadistribuição, seja quanto à magnitude dos coe-ficientes de incidência, seja quanto à precoci-dade de aparecimento da epidemia, seja quan-to à rapidez com que o processo evolui nosdiversos grupos populacionais.

Acreditamos que se fosse possível estudaro aparecimento e a difusão da epidemia se-gundo as classes sociais que compõem a so-ciedade, estas diferenças seriam ainda maisevidentes.

CONCLUSÕES

1 — A epidemia não se distribuiu homoge-neamente pelos diferentes segmentos dapopulação da cidade de São Paulo.

2 — O início do processo epidêmico na ci-dade de São Paulo foi em abril de 1971,entretanto, se considerarmos os distritose subdistritos, a primeira incidência epi-dêmica ocorreu em janeiro de 1970.

3 — A epidemia progrediu em ondas concên-tricas da periferia para a área central dacidade levando, nesse processo, cerca de25 meses.

4 — Uma vez iniciado o processo, a progres-são nas zonas da cidade se fez cada vezmais rapidamente.

5 — A epidemia teve início na zona sul, sur-gindo a seguir na zona leste, norte, oestee finalmente atingindo o centro expan-dido.

BARATA, R. de C. B. [The epidemics of meningococcal disease, 1970/1977. Its appea-rance and spread]. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 22:16-24, 1988.

ABSTRACT: The beginning of the epidemics of meningococcal disease and its spreadwithin the City of São Paulo is studied with emphasis given to its advance in time (monthwhen it began) and space (quarters and districts of the city). The analysis of the controlcharts that were built up from the data of the endemic years (1960 to 1969) for thequarters and districts of the city, gives evidence that the epidemics spread in concentricwaves from the outskirts of the city into the central areas, and began in January, 1970.The empirical data also show that the cases were heterogeneously distributed in the diffe-rent strata of the population.

UNITERMS: Meningits, meningococcal, occurrence. Epidemiology, descriptive. Socio-economic factors.

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Recebido para publicação em: 5/8/1987

Aprovado para publicação em: 14/10/1987