requisito fundamental para melhorar a educaÇÃo · pelas instituições de ensino. do que se pode...

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ENTREVISTA Fabio Venturini O professor atualmente é o princi- pal elo e também o mais fraco no processo de ensino no Brasil, o que demanda mudanças na sua for- mação. Essa é a avaliação da professora Guiomar Namo de Mello, consultora edu- cacional e diretora da Escola Brasileira de Professores (Ebrap), em entrevista exclu- siva à Profissão Mestre sobre o tema fracas- so escolar ( assunto da reportagem de capa desta edição ), concedida pessoalmente, em sua residência, na capital paulista. Próxima ao ex-prefeito, governador e senador Mário Covas, Guiomar foi se- cretária de educação do município de São Paulo entre 1982 e 1985 e assesso- ra de Covas para assuntos educacionais durante os trabalhos da Constituição de 1988. Também atuou no Ministério da Educação (MEC) e, com um currículo de mais de 40 anos na educação, não tem “papas na língua” quando aponta pro- blemas que redundam em deficiência no aprendizado em todo o País, inclusive em trabalhos que fez parte. Profissão Mestre: A senhora é consulto- ra na área educacional e trabalha com formação de professores há muito tem- po. Viveu as transformações das insti- tuições nos períodos a que a maioria das estatísticas atuais sobre fracasso escolar se refere. Em primeiro lugar, o que é o fracasso escolar? Guiomar Namo de Mello: Analisando a partir do aluno, é a criança não apren- der. A ideia de fracasso que se fundamen- te a partir da visão da escola é obsoleta. Até pouco tempo atrás não havia ava- liações externas e os únicos dados exis- tentes eram de aprovação e reprovação. Contudo, há algumas décadas a Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] veri- ficou que no Brasil nasciam anualmen- te sete milhões de crianças. Numa con- ta direta, depois de sete anos, deveriam ser matriculados na 1ª série o mesmo nú- mero de alunos, isso sem contar a morta- lidade infantil. Porém o Brasil tinha em média 14 milhões de alunos nos primei- ros anos. De onde vinham essas outras crianças? Além dos ingressantes, havia os repetentes, contados como matricula- dos pela primeira vez. Quem demonstrou bem esse fenômeno foi o professor Sérgio Costa Ribeiro, nos anos 1990, no artigo “A Pedagogia da Repetência”. Ele mos- trou que a cada 100 alunos ingressantes no ensino fundamental, dois termina- vam o curso em oito anos, 10 concluí- am em nove anos e 53, em 11. A última pessoa da mesma turma a terminar o 1º grau o faria apenas 20 anos depois do in- gresso. Toda abordagem e forma de con- tabilizar o fracasso estavam erradas. Profissão Mestre: Como lidar com esse movimento livrando-se da ideia de fra- casso? Guiomar: Praticamente já nos livramos. Quase não se fala mais em fracasso es- colar nos termos em que se fazia há al- gumas décadas. Hoje existem avaliações que dizem se a criança aprendeu em vez de avaliar se ela fracassou. Antigamente, o aluno seria reprovado se a escola julgas- se que ele não dominou o conteúdo. A perspectiva hoje é que se não houve tal desempenho é porque a escola está com dificuldades de ensinar. Logo, não há fra- casso, existe apenas a constatação de que a criança não venceu uma etapa previs- ta para um determinado período e que é preciso fazer alguma coisa para que ela continue estudando. Profissão Mestre: Mas é, de qualquer forma, uma avaliação de ineficiência e mensurável. Guiomar: É uma avaliação que apon- ta a incompetência da escola para atin- gir o objetivo com um determinado alu- no. Você pode explicar de várias formas: porque a criança vem de uma família muito pobre, ou não tem pais coopera- tivos, ou chegou com vocabulário muito restrito, ou tem problemas psicológicos. As explicações são muitas, mas o resul- tado, olhando friamente, é que a esco- REQUISITO FUNDAMENTAL PARA MELHORAR A EDUCAÇÃO Para a consultora Guiomar Namo de Mello, a formação do professor é o ponto crucial para o bom desempenho do processo de ensino e aprendizagem 12 PROFISSÃO MESTRE ® agosto 2011 Segundo Guiomar Namo de Mello, “a maneira de ficar com o professor mais tempo dentro da escola é ele ser polivalente” Arquivo pessoal

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ENTREVISTA Fabio Venturini

O professor atualmente é o princi-pal elo e também o mais fraco no processo de ensino no Brasil,

o que demanda mudanças na sua for-mação. Essa é a avaliação da professora Guiomar Namo de Mello, consultora edu-cacional e diretora da Escola Brasileira de Professores (Ebrap), em entrevista exclu-siva à Profissão Mestre sobre o tema fracas-so escolar (assunto da reportagem de capa desta edição), concedida pessoalmente, em sua residência, na capital paulista.

Próxima ao ex-prefeito, governador e senador Mário Covas, Guiomar foi se-cretária de educação do município de São Paulo entre 1982 e 1985 e assesso-ra de Covas para assuntos educacionais durante os trabalhos da Constituição de 1988. Também atuou no Ministério da Educação (MEC) e, com um currículo de mais de 40 anos na educação, não tem “papas na língua” quando aponta pro-

blemas que redundam em deficiência no aprendizado em todo o País, inclusive em trabalhos que fez parte.

Profissão Mestre: A senhora é consulto-ra na área educacional e trabalha com formação de professores há muito tem-po. Viveu as transformações das insti-tuições nos períodos a que a maioria das estatísticas atuais sobre fracasso escolar se refere. Em primeiro lugar, o que é o fracasso escolar?Guiomar Namo de Mello: Analisando a partir do aluno, é a criança não apren-der. A ideia de fracasso que se fundamen-te a partir da visão da escola é obsoleta. Até pouco tempo atrás não havia ava-liações externas e os únicos dados exis-tentes eram de aprovação e reprovação. Contudo, há algumas décadas a Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] veri-

ficou que no Brasil nasciam anualmen-te sete milhões de crianças. Numa con-ta direta, depois de sete anos, deveriam ser matriculados na 1ª série o mesmo nú-mero de alunos, isso sem contar a morta-lidade infantil. Porém o Brasil tinha em média 14 milhões de alunos nos primei-ros anos. De onde vinham essas outras crianças? Além dos ingressantes, havia os repetentes, contados como matricula-dos pela primeira vez. Quem demonstrou bem esse fenômeno foi o professor Sérgio Costa Ribeiro, nos anos 1990, no artigo “A Pedagogia da Repetência”. Ele mos-trou que a cada 100 alunos ingressantes no ensino fundamental, dois termina-vam o curso em oito anos, 10 concluí-am em nove anos e 53, em 11. A última pessoa da mesma turma a terminar o 1º grau o faria apenas 20 anos depois do in-gresso. Toda abordagem e forma de con-tabilizar o fracasso estavam erradas.

Profissão Mestre: Como lidar com esse movimento livrando-se da ideia de fra-casso?Guiomar: Praticamente já nos livramos. Quase não se fala mais em fracasso es-colar nos termos em que se fazia há al-gumas décadas. Hoje existem avaliações que dizem se a criança aprendeu em vez de avaliar se ela fracassou. Antigamente, o aluno seria reprovado se a escola julgas-se que ele não dominou o conteúdo. A perspectiva hoje é que se não houve tal desempenho é porque a escola está com dificuldades de ensinar. Logo, não há fra-casso, existe apenas a constatação de que a criança não venceu uma etapa previs-ta para um determinado período e que é preciso fazer alguma coisa para que ela continue estudando.

Profissão Mestre: Mas é, de qualquer forma, uma avaliação de ineficiência e mensurável.Guiomar: É uma avaliação que apon-ta a incompetência da escola para atin-gir o objetivo com um determinado alu-no. Você pode explicar de várias formas: porque a criança vem de uma família muito pobre, ou não tem pais coopera-tivos, ou chegou com vocabulário muito restrito, ou tem problemas psicológicos. As explicações são muitas, mas o resul-tado, olhando friamente, é que a esco-

REQUISITO FUNDAMENTAL PARA MELHORAR A EDUCAÇÃOPara a consultora Guiomar Namo de Mello, a formação do professor é o ponto crucial para o bom desempenho do processo de ensino e aprendizagem

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Segundo Guiomar Namo de Mello, “a maneira de ficar com o professor mais tempo dentro da escola é ele ser polivalente”

Arquivo pessoal

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ENTREVISTA

la não consegue ensinar a essa criança o que ela precisa aprender.

Profissão Mestre: Até que ponto a ine-ficiência está na escola ou em outras di-mensões, como na organização escolar, nos sistemas de ensino e no professor?Guiomar: Grande parte do desempenho da criança é explicada pela sua origem social e familiar, aspectos incontroláveis pelas instituições de ensino. Do que se pode controlar, do ponto de vista das po-líticas educacionais, o professor é a mais decisiva entre todas as variáveis controlá-veis pelas instituições para o sucesso do ensino e da aprendizagem. A origem da criança determina 60% do processo, en-quanto todas as outras partes são 40%. Dentro dessa segunda parcela, o profes-sor responde por 90%, em função do mo-do como ele administra o processo de en-sinar e aprender dentro de sala de aula, como gerencia o conhecimento e o domí-nio do que será ensinado, o que sabe so-bre a própria criança e suas condições de vida, o modo como ele administra o tem-

po e o espaço que lhe são dados, como es-tabelece o vínculo com o aluno e como se relaciona com ele.

Profissão Mestre: Boa parte dos profes-sores tem que formar um “cardápio” de instituições em que trabalha para so-breviver. Na rede pública, mesmo os que estão em apenas uma escola têm dificuldade para realizar pesquisas e atividades extraclasse. Qual é a influ-ência dessas condições de trabalho nes-sa atuação do docente?Guiomar: Todos esses aspectos são ine-rentes ao fator professor: suas condições pessoais e de trabalho, o salário que ga-nha, a carreira que tem. Por isso, mexer no que se refere ao professor é prioritário. Muitas pesquisas e estudos foram feitos baseados nas avaliações externas inter-nacionais dos últimos 20 anos, especial-mente nos Estados Unidos, e esclarece-ram algumas coisas. Por exemplo, em duas escolas numa mesma região, que re-cebem os mesmos recursos, alunos com origens sociais semelhantes e onde os

professores têm condições iguais de sa-lário e carreira, o desempenho dos estu-dantes foi diferente. Verificou-se nesses casos que alguns professores ensinavam e outros não. Naquele país, comparando os professores 5% mais bem preparados com os 5% menos preparados, os alunos do primeiro grupo aprenderam o equiva-lente a um ano e meio a mais do que os do segundo. Independentemente de ori-gem social do aluno, há algo que produz essa diferença. É o professor.

Profissão Mestre: O que permite ou causa a existência do professor que en-sina e daquele que não ensina?Guiomar: Esta é a nossa grande pergun-ta, decifra-me ou devoro-te. O que é um bom professor? Todos sabem o que é um bom médico, um bom engenheiro ou um bom operário, mas ninguém consegue responder o que é um bom professor. Se existem o bom e o ruim, como é que eu capto isso numa avaliação? Além do ren-dimento do aluno, quais outras variáveis eu posso levar em conta para verificar o

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professor? Quando você diz que o docente tem que trabalhar em várias escolas pa-ra garantir a sua sobrevivência é reflexo de como estão a sua formação e o currí-culo. A maneira de ficar com o professor mais tempo dentro da escola é ele ser po-livalente. Em vez de dar aula apenas de História, ele pode dar aulas também de Geografia, Literatura. Com um currículo todo picado, ou você tem muitos alunos, e a escola fica gigantesca, ou o professor tem que correr atrás de outras escolas pa-ra cumprir a sua jornada de trabalho.

Profissão Mestre: Não há circunstân-cias na escola ou nos sistemas de en-sino que permitem a existência de pro-fessores que não ensinam?Guiomar: A boa escola faz com que todos os professores sejam, no mínimo, satisfa-tórios. Isso implica o bom desempenho nos seus papéis da liderança escolar, de direção, coordenação, gestores e, obvia-mente, a provisão que o poder público, no caso da escola pública, dá em termos de insumos básicos, que são material, tempo e espaço para essa instituição funcionar adequadamente. Tem docente que não gosta de preparar aula, pode ser até por-que não goste ou não saiba. Para o pro-fessor ser criativo e bom por si deve ter uma preparação absolutamente excep-cional. Temos a obrigação de dar todos os insumos estruturados da melhor ma-neira para ele ensinar. Se o professor não aprendeu como é que se ensina, não sa-berá fazê-lo. Algumas pessoas têm apti-dão quase natural para a docência, mas a grande maioria não tem e não se po-de contar apenas com a exceção. O nos-so professor não tem condições de fazer um planejamento e um trabalho como o que ele recebe pronto em sistemas es-truturados de ensino e que fazem sucesso – seja porque fez um curso de formação ruim, por não ter tempo, por ganhar pou-co. Porém, o gestor público precisa cuidar do aluno dele hoje, agora.

Profissão Mestre: O que na formação do professor é ruim e precisa ser feito de forma diferente?Guiomar: Ele faz o ensino básico no sis-tema público, sai com uma formação pre-cária e sem um estofo adequado, quando deveria ter excelente domínio da própria

língua, grande capacidade de ler, anali-sar e interpretar, além de se expressar pe-la escrita, com uma cultura geral razoável. Essa mesma pessoa, como não consegue entrar numa universidade pública, faz o curso de formação de professores nas fa-culdades privadas mais baratas. A mensa-lidade de um curso bom nessa área custa, numa visão otimista, R$ 600. Mas o alu-no pode pagar apenas R$ 250. Ele terá au-la com professores mal remunerados, sem dedicação exclusiva e com infraestrutu-ra precária. Colocam-se floreios teóricos, mas, no final das contas, ninguém ensi-na a esse docente a prática, a abrir a por-ta da sala, identificar seu espaço, verificar a disposição da turma. Depois de formado vai dar aula onde? Na escola pública. Com sorte terá uma direção ou coordenação que auxiliem. No entanto, hoje é muito di-fícil encontrar no Brasil bons coordenado-res pedagógicos, pois gerenciar um grupo de pessoas com competências muito diver-sas e um conjunto de insumos nem sem-pre suficiente é uma tarefa muito comple-xa. A fórmula está equacionada para ser um fracasso. Forma um ciclo que se retro-alimenta.

Profissão Mestre: A senhora enfatiza que a formação de professores nas instituições públicas de ensino supe-rior também não é boa. Por quê? Guiomar: Elas têm a parte teórica de-senvolvida com muito mais solidez, com um “pedagogês” muito bem articulado. Mas a parte prática não é correta. A didá-tica na USP [Universidade de São Paulo], por exemplo, hoje é igualzinha a quan-do estudei lá, na década de 1960. Os indi-víduos fazem Física, Química, Geografia, Inglês, História e depois se juntam to-dos na faculdade de Educação para es-tudar didática e práticas de ensino. Isto é o maior despropósito. O curso deveria ser formação do professor, não um curso de física em que depois se completa com licenciatura. Este modelo é totalmente equivocado e sempre repetido.

Profissão Mestre: Considerando que 90% dos fatores de sucesso do proces-so de ensino giram em torno do pro-fessor, mas os obstáculos não são cau-sados por ele pessoalmente, ou seja, resultam de um conjunto de condições

que aparecem no docente porque é ele que está na ponta da linha, em sala de aula, quem está sendo negligente? Guiomar: As políticas públicas. Peda-gogos e educadores que formulam is-so tudo com um viés inadequado, de achar que a teoria (na verdade pala-vras concatenadas) vai resolver o pro-blema do professor. E não vai! Porque quando ele está na frente do aluno pre-cisa de ações concretas, observáveis. Teorias piagetianas ou construtivistas, por exemplo, são importantes como es-tofo, mas para chegar à sala de aula é necessário um trabalho didático, práti-co. Fiz parte da equipe que formulou as diretrizes do ensino médio. Discutimos com muitas pessoas nos fóruns devidos e depois foi transformado em resolução. Trabalhamos em uma regulação ampla, para não engessar escola ou sistema de ensino algum, em qualquer ponto do País. Essas diretrizes foram recebidas nos Estados e municípios e não se fez mais nada, ficaram todos com os parâ-metros do MEC e ninguém verificou o mundo que existe entre o Ministério da Educação e cada cidade ou escola des-se País. Tem gente fazendo diretriz em secretaria municipal, quando deveriam elaborar currículo, estruturar conteú-do, atividades e estabelecer objetivos. Não fazem porque dizem que a escola perderia autonomia. Mas que autono-mia é essa? Com tudo isso dando erra-do, quando chega ao professor, ele pen-sa: “Sou eu que não presto”. Quando o professor se sente culpado, alguém es-tá mandando o recado errado para ele.

Profissão Mestre: Isso não é resultado da falta de definição do papel da escola e da sua função?Guiomar: A função política da escola é ensinar, fazer com que a criança apren-da. Não tem nada mais político do que a aprendizagem, mas não é todo mun-do que concorda com isso. Quando fa-lo que é preciso ensinar ao professor co-mo fazer, tem gente que diz: “Isso tira a autonomia”. É muito cômodo, porque se lavam as mãos. Acredito que se de-ve mostrar como fazer e, se ele não qui-ser, tem toda liberdade para optar por outro caminho. A autonomia é escolher fazer ou não.

ENTREVISTA

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