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1 Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 15-16: 000-000, 2005-2006. Lajeado: localização, caracterização ambiental e fontes de matéria prima A região do Lajeado situa-se no médio curso do rio Tocantins, um afluente da margem direita do rio Amazonas. Essa região encontra-se no ponto mais setentrional do que chamamos de Planalto Central Brasileiro, próximo à fronteira com a região Amazônica. A cobertura vegetal é marcada essencial- mente por áreas de campo aberto que caracteri- zam o cerrado, mas apresenta também todas as variações características dessa vegetação, com florestas de galeria próximas aos rios, áreas de cerrado fechado ( cerradão) e florestas de palmeiras. Apesar dessa variedade de formações vegetais, predominam, por toda a área, árvores de pequeno e médio porte e arbustos. O clima é marcadamente sazonal, apresentando uma estação seca com duração de três a quatro meses, entre junho e setembro. Do ponto de vista dos recursos disponíveis nesse ambiente, a área é rica em uma série de frutos, principalmente das palmeiras, e a fauna de pequeno e médio porte é abundante, sendo o cerrado o ecossistema brasileiro que apresenta a maior quantidade e diversidade de aves em seu território. Apesar de a duração da estação seca ser prolongada, não há problemas com relação à disponibilidade de água uma vez que há uma série de rios e córregos perenes bem distribuídos por toda a área (Mantovani s/d). Especificamente na área selecionada para estudo, a proximidade da serra em relação ao rio Tocantins cria um mosaico de micro-ambientes, responsáveis por uma grande diversidade de AS INDÚSTRIAS LÍTICAS DA REGIÃO DO LAJEADO E SUA INSERÇÃO NO CONTEXTO DO BRASIL CENTRAL* Lucas de Melo Reis Bueno** BUENO, L.M.R. As indústrias líticas da região do Lajeado e sua inserção no contexto do Brasil Central. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, 15-16: 000-000, São Paulo, 2005-2006. RESUMO: No presente artigo apresentamos as principais características da organização tecnológica das indústrias líticas identificadas na região do Lajeado ao longo do Holoceno. A partir das datações absolutas obtidas para uma série de sítios identificados nessa região foi possível definir quatro períodos de ocupação que abrangem todo o Holoceno de forma intermitente. A partir da caracterização da organização da tecnologia lítica relacionada aos sítios de cada um desses períodos procuramos repensar o contexto geral oferecido atualmente para explicar a variabilidade tecnológica das indústrias líticas do Brasil central. UNITERMOS: Indústria Lítica – Organização tecnológica – Design – Performance – Brasil Central. (*) Pesquisa financiada pela FAPESP. (**) Pós-doutorando-CNPq. Dep. de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG. [email protected]

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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 15-16: 000-000, 2005-2006.

Lajeado: localização, caracterização ambientale fontes de matéria prima

A região do Lajeado situa-se no médio cursodo rio Tocantins, um afluente da margem direita dorio Amazonas. Essa região encontra-se no pontomais setentrional do que chamamos de PlanaltoCentral Brasileiro, próximo à fronteira com a regiãoAmazônica.

A cobertura vegetal é marcada essencial-mente por áreas de campo aberto que caracteri-zam o cerrado, mas apresenta também todas asvariações características dessa vegetação, comflorestas de galeria próximas aos rios, áreas de

cerrado fechado (cerradão) e florestas depalmeiras. Apesar dessa variedade de formaçõesvegetais, predominam, por toda a área, árvoresde pequeno e médio porte e arbustos. O clima émarcadamente sazonal, apresentando umaestação seca com duração de três a quatromeses, entre junho e setembro.

Do ponto de vista dos recursos disponíveisnesse ambiente, a área é rica em uma série defrutos, principalmente das palmeiras, e a fauna depequeno e médio porte é abundante, sendo ocerrado o ecossistema brasileiro que apresenta amaior quantidade e diversidade de aves em seuterritório. Apesar de a duração da estação seca serprolongada, não há problemas com relação àdisponibilidade de água uma vez que há uma sériede rios e córregos perenes bem distribuídos portoda a área (Mantovani s/d).

Especificamente na área selecionada paraestudo, a proximidade da serra em relação ao rioTocantins cria um mosaico de micro-ambientes,responsáveis por uma grande diversidade de

AS INDÚSTRIAS LÍTICAS DA REGIÃO DO LAJEADO E SUAINSERÇÃO NO CONTEXTO DO BRASIL CENTRAL*

Lucas de Melo Reis Bueno**

BUENO, L.M.R. As indústrias líticas da região do Lajeado e sua inserção no contexto do BrasilCentral. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, 15-16: 000-000, São Paulo, 2005-2006.

RESUMO: No presente artigo apresentamos as principais características daorganização tecnológica das indústrias líticas identificadas na região do Lajeado aolongo do Holoceno. A partir das datações absolutas obtidas para uma série de sítiosidentificados nessa região foi possível definir quatro períodos de ocupação queabrangem todo o Holoceno de forma intermitente. A partir da caracterização daorganização da tecnologia lítica relacionada aos sítios de cada um desses períodosprocuramos repensar o contexto geral oferecido atualmente para explicar a variabilidadetecnológica das indústrias líticas do Brasil central.

UNITERMOS: Indústria Lítica – Organização tecnológica – Design – Performance– Brasil Central.

(*) Pesquisa financiada pela FAPESP.(**) Pós-doutorando-CNPq. Dep. de Sociologia eAntropologia da Faculdade de Filosofia e CiênciasHumanas, Universidade Federal de Minas Gerais, [email protected]

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coberturas vegetais e variações climáticas quepropiciam uma concentração de recursos variados,dentre os quais podemos incluir também asmatérias primas líticas.

Há basicamente três tipos de fonte dematéria prima lítica presentes na área de estudo:a) as cascalheiras formadas nas áreas decorredeira e praias do rio Tocantins – o queinclui as cascalheiras atuais e paleo-cascalheiras,posteriormente recobertas por sedimento, maseventualmente expostas em função da erosão;b) os afloramentos de veios de arenito silicificadoe quartzo; e c) os afloramentos de camadas deconglomerados relacionadas ao Arenito daFormação Pimenteiras, do período Devoniano,amplamente dispersa pela área, representando osubstrato sedimentar de diversas unidades dorelevo.

Essas fontes apresentam certa diversidade comrelação ao tipo e à forma das matérias primasdisponíveis.1 As cascalheiras formadas no leito dorio Tocantins, junto à foz do rio Lajeado, são asque apresentam a maior diversidade de matériasprimas e, ao mesmo tempo, as que concentram aoferta do arenito silicificado fino na área depesquisa. É também nesse local que encontramosos maiores seixos de toda a região, tanto emarenito silicificado fino e médio, quanto em quartzo,quartzito e sílex.

Essa diversidade de matérias primas,associada à concentração de uma ampla gama derecursos e à presença de uma passagem naturalpara os contrafortes da serra do Lajeado –representada pelo vale do rio de mesmo nome(Fig.1) – fazem desse local uma referência napaisagem, como atestam as inúmeras gravurasencontradas nos matacões e afloramentos degranito e basalto presentes no leito do rioTocantins e os sítios rupestres presentes naescarpa da serra, tanto na entrada do vale comoao longo de toda sua extensão (De Blasis eRobrahn-González 1998; Berra 2003; Bueno2005). Outro aspecto que denota a importância

desse local na região é a concentração de sítiosarqueológicos a céu aberto. São mais de 50sítios dispostos em 24 km², o que representamais de um sítio por km².

Distribuição e cronologia dos sítios na área depesquisa

Para investigar os vetores de variabilidadeentre as indústrias líticas dessa região, foiselecionada uma área que abrange parte dosMunicípios de Miracema do Tocantins, Lajeadoe Palmas, englobando um total de 210 km².Nessa área encontramos mais de 110 sítios acéu aberto e cerca de 20 sítios em abrigos sobrocha (Fig.2).

Os sítios a céu aberto estão distribuídos nasduas margens do rio Tocantins e ocupam diversoscompartimentos da paisagem, desde a planície deinundação, terraços atuais e antigos desse rio e dealguns de seus afluentes, até áreas mais elevadas,assentadas sobre terrenos da Formação Pimentei-ras ou em Paleodunas. Entre eles há uma série devariações no que tange à extensão dos sítios, àdensidade de vestígios e à composição do conjuntoartefatual, havendo sítios líticos, sítios cerâmicos esítios com gravuras.

Os sítios em abrigo estão localizados nasescarpas da serra do Lajeado, tanto em suavertente oeste, voltada para o rio Tocantins,quanto em sua vertente leste, voltada para ovale do rio Lajeado. A maioria dos abrigos épequena, apresentando uma área abrigadabastante restrita. Por outro lado, esses abrigosapresentam extensas paredes, tanto no sentidohorizontal quanto vertical, invariavelmenterecobertas por uma série de registros rupestres.Alguns desses, no entanto, apresentam áreasabrigadas de maiores dimensões e foraminvestigados através da abertura de sondagens.Destes, alguns indicaram a presença de vestígi-os arqueológicos em sub-superfície possivel-mente relacionados a uma ocupação mais densae permanente. A maioria deles está localizada nabacia do córrego Água Fria (Berra 2003;Morales 2005), havendo, no entanto, um sítiobastante denso – Alto da Serra 2 –, próximo ànascente do córrego Mirindiba (De Blasis eRobrahn-González 2003).

O sítio Alto da Serra 2 tem paredões

(1) As matérias primas identificadas na área de pesquisasão Arenito Silificado Fino, Arenito Silicificado Médio,Sílex, Quartzo e Quartzito. Para distinguir os dois tipos dearenito citados utilizamos como critério o grau desilicificação e as dimensões das partículas de areia quecompõem o arenito, baseando-nos em Araujo (1992).

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totalmente ocupados por pinturas rupestres e, emsuperfície há uma grande quantidade de vestígioscerâmicos e líticos (De Blasis e Robrahn-González 1999). Nas sondagens realizadas nessesítio encontramos, sob os vestígios cerâmicos,níveis estratigráficos com a presença exclusiva dematerial lítico, levantando a possibilidade de osítio ter sido ocupado em dois momentosdistintos. No entanto, a análise desse materialrevelou as mesmas características tecnológicasdo material lítico associado à ocupaçãoceramista, apontando para uma continuidade na

ocupação do abrigo. Para o nível relacionado àocupação lítica, obtivemos uma datação de 1920+ 60 AP, que, por sua vez, parece muito antigapara estar associada à ocupação ceramista.Assim, o contexto encontrado nesse sítio apontapara um aspecto bastante interessante dessaregião, posteriormente reforçado pela análise domaterial lítico dos sítios a céu aberto, e queenvolve uma possível continuidade entre ocupa-ções de caçadores-coletores tardios e osprimeiros registros de ocupação ceramista daregião (Bueno 2005).

Fig. 1 – Imagem de satélite com parte da área de pesquisa, mostrando o rio Tocantins e a serra doLajeado. Fonte: EMBRAPA – Brasil visto do espaço.

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Fig. 2 – Mapa da distribuição dos sítios na área de pesquisa. Mapa: Marcos Brito.

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Fora a data acima apresentada, as demaisdatações obtidas pelo presente trabalho provêm desítios a céu aberto (Tabela 1). Apesar de predomi-narem na área de pesquisa os sítios de superfície,encontramos também alguns sítios estratificados acéu aberto. Esses sítios encontram-se majoritaria-mente em paleodunas, mas também estão presentesem áreas de primeiro e segundo terraços do rioTocantins. A partir das escavações realizadasnesses sítios, obtivemos amostras de carvãosuficientes para datações radiocarbônicas, permitin-do-nos, assim, definir quatro períodos de ocupaçãopara essa região.

Esses quatro períodos estão distribuídos aolongo do Holoceno, desde seu início até a épocado contato. Para cada um deles procuramosarticular sítios cronologicamente relacionados como intuito de definir e caracterizar a organização datecnologia lítica a eles associada, fornecendo assim

um quadro crono-cultural para as indústrias líticasem âmbito regional. A esses conjuntos de sítioscronologicamente associados denominamosHorizontes.

Organização tecnológica numa perspectivadiacrônica

O Horizonte 1 foi o que forneceu o maiornúmero de amostras para datação, o que apresen-tou o maior número de sítios e a maior coleçãolítica. O período definido para esse Horizonteenvolve um intervalo de cerca de 1.600 anos, comdatas entre 10.500 e 8.900 AP. Os sítios a elerelacionados aparecem em todas as sub-áreas daárea de pesquisa, mas concentram-se na sub-áreado Lajeado. A maioria dos sítios está entre ospequenos e médios, sendo poucos os sítios

TABELA 1

identificaçãoTabela de datações

Água Suja 8Lajeado 6Miracema 1Mares 2Lajeado 7Alto da Serra 2Capivara 5Emas 2Mirindiba 7Capivara 5Miracema 1Miracema 1Miracema 1Capivara 5Miracema 1Capivara 5Miracema 1Miracema 1Miracema 1Capivara 5Miracema 2Mares 2Miracema 1Capivara 5Lajeado 18Miracema 1

AS8LJ6

MT1Ma2Lj7

AS 2Cap5Em2Mir7Cap5MT1MT1MT 1Cap5MT1Cap5MT1MT1MT1Cap5MT 2Ma2MT1Cap5Lj18MT1

510 550 1326 1440 1530 1920 2020 2450 3850 5010 5411 5650 5980 8980 9397 9410 9456 9670 9790 9850 9890 9940 9990100501030010530

6060506050406040607065705070806095607070806060806090

640-580

1420-1270

1920-17302130-18602730-23504420-40905920-5600

6630-63006920-6680

10240-9910

10750-10500

11190- 1075011270-1112011330-1116011350-1116011570-1121011670-1123012260-1225012630-1247012920-12060

Beta 160592Beta 118819

GIFBeta 160598Beta 118820Beta 190077Beta 160596Beta 190078Beta 200496Beta 179195

GIFBeta 148338Beta 190079Beta 160594

GIFBeta 179197

GIFBeta 190081Beta 148339Beta 160595Beta 190082Beta 160599Beta 168605Beta 179196Beta 179198Beta 190080

calibragem APsigmadatasiglasítio

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grandes,2 e apresentam um conjunto artefatualdiversificado, ocupando todos os compartimentosda paisagem.

A organização da tecnologia lítica associada àocupação do Horizonte 1 apresenta uma combi-nação entre estratégias de curadoria e expedien-tes3 na produção de seu conjunto artefatual. Aestratégia de curadoria está presente no processode apropriação das melhores matérias primaslíticas da região, relacionadas à produção de umconjunto de artefatos formais padronizados4 queseriam confeccionados em antecipação ao uso.Para a produção desses artefatos, foramselecionadas as matérias primas mais finas ehomogêneas, dando-se preferência para explora-ção das fontes onde essas são abundantes.Nessas fontes de matéria prima há um trabalhoprévio dos núcleos com vistas à produção desuportes que possam ser transportados e trabalha-dos em outro local. A característica básica dessessuportes é oferecer bordos laterais longos e umarelação entre comprimento, largura e espessuraque possibilite a definição e re-produção degumes em diferentes partes do artefato (Fig. 3). Aprodução desses artefatos envolve, também, umprocesso contínuo de definição, confecção ereavivagem de pequenos gumes (Fig.4), utilizadosbasicamente em atividades de produção emanutenção de outros conjuntos artefatuais,confeccionados em madeira. Esse processo dedefinição de gumes para realização de diversasatividades e de definição da parte passiva dosartefatos para possibilitar sua preensão, envolveuma constante reformulação da forma original dosuporte, mas que, devido à padronização dosgestos implicados nesse processo e à natureza dasatividades envolvidas, gera uma padronização naforma final do artefato (Fig. 5). Assim, a forma

final desses artefatos não envolve a materializaçãode uma idéia pré-concebida na mente do artesão ecompartilhada pelos membros do mesmo grupo,mas sim um processo específico de produção,utilização e reciclagem que define a estratégiaimplementada pelo grupo para gestão do seuconjunto artefatual.

Devido à distribuição desses artefatos entre ossítios, à variabilidade de composição de seusgumes, a suas dimensões e à relação entre vestígiosde produção/reestruturação e número de artefatos,podemos dizer que esses artefatos compõem oconjunto de artefatos transportados individualmentepelos caçadores-coletores que habitaram essaregião durante o período que define a ocupação doHorizonte 1 (Bueno 2005).

Associados ainda a essas indústrias encontra-mos outros tipos de artefatos, os quais estãorelacionados a uma estratégia expediente. Sãoartefatos produzidos numa variedade maior dematérias primas, com a definição de poucos gumes,elaborados de acordo com a necessidade. Entreesses artefatos distinguimos os informais e osformais não padronizados. Os primeiros apresen-tam, via de regra, apenas um gume e são produzi-dos sobre diferentes tipos de suporte. Normalmen-te, não há, nesses artefatos, retiradas relacionadas àdefinição da parte passiva do suporte, aproveitan-do-se uma superfície natural do mesmo. Essesartefatos não apresentam evidências de reavivagem,devendo envolver um descarte “imediato”, após suautilização e no mesmo local onde foi produzido eutilizado (Fig. 6). Já os artefatos formais nãopadronizados podem ser considerados comoartefatos informais reutilizados. São produzidos emuma grande diversidade de suportes e apresentammais de um gume. Esses gumes podem ou não tersido reutilizados, mas a sua produção envolvesempre uma modificação da forma original dosuporte (Fig. 7). Assim como entre os artefatosinformais, não encontramos, nesse caso, retiradasrelacionadas à preensão do artefato, sendo tambémutilizadas superfícies naturais do suporte. Talvezesses artefatos possam estar relacionados a um usocontinuado do mesmo local, sendo empregados ematividades diversas, para as quais os gumes sãoproduzidos de acordo com a necessidade, utiliza-dos e depois descartados, passando a compor umaespécie de conjunto artefatual do sítio.

Para esse Horizonte, a característica funda-mental que diferencia os tipos de artefato entre si

(2) Essa classificação entre sítios pequenos, médios egrandes levou em consideração o tamanho da amostracoletada em cada sítio e seguiu o seguinte parâmetro:pequeno – menos de 100 peças; médio – entre 100 e 1000peças; grande – mais de 1000 peças.(3) Para uma definição de estratégias de curadoria eexpediente ver Nelson (1991).(4) Artefato Formal Padronizado é um “fragmento dematéria prima cuja morfologia inicial é transformada apartir de retoques que seguem uma orientação e seqüên-cia continuada, envolvendo uma repetição na escolha dossuportes utilizados” (Bueno 2005:467).

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Fig. 3 – Suportes para produção de artefatos formais padronizados - sítio Serrinha; todos artefatos sãode arenito silicificado fino. Desenho: Lucas Bueno.

diz respeito às restrições de design5 envolvidas naprodução de cada um deles, que, por sua vez,decorrem da sua inserção numa estratégia geral deapropriação e uso das matérias primas líticas. Osartefatos formais padronizados, por estaremassociados à realização de diferentes atividades

(cujas características de performance requerem umcerto limite de variação e envolvem cuidado eprecisão) e serem transportados, apresentam certasrestrições de design que levam a uma seleção damatéria prima e do suporte utilizado e a umapadronização no encadeamento das etapas detransformação desse suporte. Já os outros doistipos de artefatos apresentam, como única restriçãode design, a formação de gumes aptos a realizarema função desejada, não acarretando assim emmodificações articuladas e padronizadas do suporteinicial.

A articulação dessas duas estratégias deapropriação e uso das matérias primas líticas,associada à composição e distribuição dos sítios na

(5) Segundo Schiffer e Skibo (1997:29), o design de umartefato é sempre guiado pelas características deperformance associadas a esse artefato, o que implica emque o comportamento do artesão ao efetuar umaseqüência de atividades seja também guiado pelascaracterísticas de performance de cada uma delas,incluindo aí todas as atividades pelas quais o artefatopassa ao longo de sua vida útil.

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Fig. 4 – Artefatos formais padronizados em produção: diferentes estágios de produção/ utilização –sobreposição e reavivagem de pequenos gumes. Desenho: Lucas Bueno.

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Fig. 5 – Artefatos unifaciais formais padronizados sobre lasca – pequenos gumes dis-tribuídos na parte distal e em ambos os bordos laterais de cada artefato. Desenho:Lucas Bueno.

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Fig. 6 – Artefatos informais. Desenho: Lucas Bueno.

paisagem indicam a existência de um padrão demobilidade baseado numa organização logística deexploração dos diversos recursos localizados emdiferentes pontos da paisagem. Essa organizaçãoenvolveria a exploração de outros locais, certamen-te as áreas de encosta e topos da serra do Lajea-do, além de poder englobar também os contrafor-tes da serra e o vale do rio Lajeado. Dessa forma,a área pesquisada representa apenas uma pequenafração do território ocupado por esses grupos decaçadores-coletores, podendo estar associada auma exploração sazonal relacionada a períodos demaior escassez de água – períodos estes sugeridospelos dados paleoambientais disponíveis atualmente(Bueno 2005).

A principal ruptura encontrada na região noque tange à organização tecnológica estaria entre osHorizontes 1 e 2. Apesar de haver algumasdiferenças com relação ao conjunto de artefatos

produzidos nas indústrias líticas associadas aosHorizontes 2, 3 e cerâmico, no que tange àorganização tecnológica, parece haver entre essesHorizontes muito mais indicadores de continuidadedo que de mudanças.

Um dos aspectos mais contundentes encontra-do no registro arqueológico dessa região, e jámencionado em diversos locais do Brasil Central, éa desaparição dos artefatos formais plano-convexos do registro arqueológico a partir dos9.000 AP. As indústrias dos Horizontes 2 e 3apresentam apenas artefatos informais e formaisnão padronizados, não há mais uma escolha dematéria prima em função da qualidade (definidaaqui como aptidão ao lascamento), com osvestígios líticos sendo compostos majoritariamentepelas matérias primas mais amplamente disponíveisna região, principalmente o quartzito. Os suportesutilizados para produção dos artefatos continuam a

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Fig. 7 – Artefatos formais não padronizados. Desenho: Lucas Bueno.

apresentar uma grande variabilidade, mas, entreaqueles utilizados no Horizonte 2 e no Horizonte 3há uma certa diferença. No Horizonte 2 os suportessão preferencialmente constituídos por lascasgrandes, robustas e corticais, com predomínio dosartefatos informais. No Horizonte 3, os suportesdiminuem de tamanho, ao mesmo tempo em queaparecem artefatos produzidos sobre grandesseixos, definidos como machados unifaciaislascados sobre seixo (Fig. 8). Ainda uma outradiferença entre esses Horizontes é a produção depontas-de-projétil. Apesar de pouco representati-va, em um dos sítios associados ao Horizonte 2encontramos um fragmento distal de ponta emquartzo hialino (Fig.9).

Essa diferenciação na composição do conjuntode artefatos pode indicar uma diferença entre osHorizontes que envolva atividades, mas nãonecessariamente estratégias de aproveitamento damatéria prima lítica. Em ambos os casos, prevale-cem uma estratégia expediente para apropriação damatéria prima e produção do conjunto artefatual. Onúmero de sítios relacionados especificamente a umou outro desses Horizontes diminui, o que certa-mente dificulta nossa caracterização a respeito dasformas de uso e ocupação do espaço em cada umdeles. Mas a distribuição dos sítios e a presença, namaioria deles, de grandes estruturas de combustão(Fig.10), podem ser indicadores de uma permanên-cia mais prolongada em um mesmo local, mas que, no

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Fig. 9 – Fragmento de ponta de projétil encontra-da no nível 10 da quadra T4.4b do sítio Miracemado Tocantins 1. Desenho: Lucas Bueno.

Fig. 8 – Artefatos do Horizonte 2 (A, B, C ,G, H, F) e do Horizonte 3 (D, E, I).

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entanto, não envolva um período muito longo deocupação da região. Ou seja, a permanência nos sítiosseria maior quando comparada aos sítios do Horizonte1, no entanto, a região seria “rapidamente” abandona-da, sendo reocupada apenas muito tempo depois.

Por fim, um último aspecto que parecebastante interessante e característico da ocupaçãoda região envolve o processo de re-ocupação dos

sítios arqueológicos nos diferentes períodos. Emfunção de uma certa estabilidade dos processosnaturais de deposição e erosão característicos dealguns locais da paisagem ocupados durante oHorizonte 1, uma série de sítios arqueológicosrelacionados a esse Horizonte permaneceramexpostos em superfície durante os períodos deocupação subseqüentes. Obviamente com

Fig. 10 – Foto do nível 10 da quadra T4.4c no sítio Miracema do Tocantins 1. Foto: Lucas Bueno.

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diferentes graus de visibilidade (devido à cobertu-ra vegetal), esses sítios foram responsáveis porcompor e redistribuir recursos na paisagem queparecem ter influenciado diretamente as formas deocupação da região nos demais Horizontes. Aoocupar e se apropriar dos recursos numa determi-nada região, esses grupos de caçadores-coletoresinseriram novos recursos e modificaram a distri-buição de outros já existentes, construindo umanova paisagem. Esta construção, por sua vez,influenciou de forma direta as formas de percep-ção, ocupação e modificação da paisagem pelosgrupos que ocuparam a região em períodossubseqüentes, construindo assim novas paisagens.6

Esse processo, que chamamos de contato indiretoentre os grupos que ocuparam a região, é tam-bém, certamente, um dos principais vetores devariabilidade no processo de formação do registroarqueológico e um exemplo disso são os sítiosassociados aos Horizontes 2 e 3 nos quaisaparecem, compondo o conjunto artefatual, osartefatos formais padronizados característicos doHorizonte 1.7

Como adiantamos acima, para comprovaçãodesse modelo precisaremos dar continuidade aostrabalhos, escavando e datando um maior númerode sítios para obtermos um controle cronológicomais refinado e uma caracterização mais precisa daorganização tecnológica das indústrias associadas acada um desses períodos.

Lajeado em contexto: repensando o BrasilCentral

Como já indicamos, há uma série de aspectosdo contexto arqueológico da região do Lajeadoque apresentam similaridades com os de outroscontextos do Brasil Central. Esse é o caso dapresença dos artefatos formais padronizados noHorizonte de ocupação mais antigo da região, e é ocaso também do “súbito desaparecimento” dessesartefatos nos períodos de ocupação posteriores(Fogaça 2001; Prous 1991; Prous et al. 1996/97;Schmitz et al. 2004). A aparente homogeneidadeexistente entre a organização tecnológica dasindústrias associadas aos Horizontes 2 e 3, aparecetambém em outros contextos do Brasil Central,assim como indícios de continuidade entre asindústrias líticas de caçadores-coletores tardios e asprimeiras ocupações ceramistas (Schmitz et al.2004; Wust 1990).A distribuição cronológica dosHorizontes de ocupação é outro desses aspectos,com a indicação de hiatos de ocupação ao longodo Holoceno (Araújo et al. 2003). Mas, alémdessas similaridades, a distribuição dos sítios e acaracterização da organização tecnológica relacio-nada à ocupação do Horizonte 1 aponta paraaspectos bastante importantes na interpretação ecaracterização da variabilidade tecnológicaencontrada entre as indústrias líticas de diferentesregiões do Brasil Central.

Como já mencionamos, o que definimos comoartefatos formais padronizados corresponde, demodo geral, às chamadas lesmas. Esses artefatosaparecem em diferentes locais do Brasil Central,normalmente associados a contextos de ocupaçãoque remetem ao início do Holoceno e, dessamaneira, são comumente utilizados como fósseis-guia. A partir dos trabalhos realizados com aindústria lítica dos sítios do Lajeado (Bueno 2005)identificamos algumas características nesse conjuntode artefatos que podem ser assim resumidas:

- Há uma seleção de matéria prima para suaprodução, que envolve a escolha das matériasprimas mais finas e homogêneas da região.

- Existe uma grande variabilidade emtermos de contorno formal entre os artefatosdessa categoria, decorrente da vida útil decada um deles; ou seja, o contorno formal finalestá relacionado com as etapas de utilização,re-utilização, descarte e possível reestruturaçãodesses artefatos.

(6) Apesar de haver uma série de contextos no BrasilCentral que apontam para a recorrência desse fator naformação dos sítios líticos de superfície (Barbosa 1981/82;Martin 1996; Souza et al. 1981/82; Schmitz et al. 1997),isso tem sido ainda pouco explorado nos trabalhos comindústrias líticas no Brasil Central. No entanto, esseaspecto de re-ocupação e escolha por locais anteriormen-te ocupados vem sendo investigado em outros suportesda cultura material, como é o caso, por exemplo, da arterupestre (Horta 2004).(7) Não pretendemos utilizar esse tipo de artefato comoum fóssil-guia, fazendo com que sua presença no sítioseja o suficiente para relacioná-lo cronologicamente, mas,como vimos na região do Lajeado a partir do estudo deuma série de sítios não há em nenhum dos Horizontesmais recentes evidências da produção desses artefatos.Daí não se conclui, por sua vez, que isso não sejapossível de acontecer em outras regiões, fazendo com queseja necessária a realização de estudos contextuais para oestabelecimento de qualquer relação cronológica entretipos de artefatos.

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- Existe uma padronização nos suportesutilizados para produção desses artefatos,cujos requisitos básicos envolvem a existênciade pelo menos uma face (superior ou inferior)totalmente plana, a obtenção de dois bordosparalelos ou sub-paralelos longos, e umarelação entre comprimento, largura e espessuracapaz de assegurar a realização de reavivagensde gume e/ou reestruturações do volumedesses artefatos.

- Em função desses dois últimos aspectos,podemos dizer que o que é compartilhadopelos artesãos em termos de projeto mental éa forma de exploração dos núcleos e deobtenção dos suportes, ao invés da forma finaldo artefato que é, por sua vez, decorrente dapadronização da transformação dessessuportes que compartilham característicasformais comuns.

- Durante a produção desses artefatos háuma orientação contínua para a definição earticulação entre partes ativa e passiva, sendoque a parte ativa é constituída por uma sériede pequenos gumes e a parte passiva podeenvolver tanto preensão manual quantoencabada.

- Esses artefatos estão relacionados a umaestratégia de manutenção e prolongamento desua vida útil, o que é evidenciado pelascontínuas etapas de reavivagem e reestruturaçãoneles identificadas.

- Esses artefatos são elaborados comvistas à realização de uma gama variada deatividades, associadas à produção e manuten-ção de conjuntos artefatuais transportáveis econfeccionados em madeira,8 desempenhando,dessa maneira, performances que requeremversatilidade, precisão e transportabilidade.

- Esses artefatos compõem o conjunto deartefatos líticos individuais e transportadospelos caçadores-coletores que ocuparam aregião do Lajeado durante o Horizonte 1.

Apesar dessa caracterização, é importantesalientar que a utilização desses artefatos comofósseis-guia deve ser relativizada. Em primeirolugar, há uma série de aspectos pós-deposicionais,tanto naturais quanto culturais que podem influenci-ar a distribuição dos vestígios arqueológicos noespaço. Em segundo lugar, porque esses artefatosfazem parte de estratégias implementadas paraobtenção e apropriação das matérias primasempregadas por uma determinada organizaçãotecnológica e, como tais, têm um sentido específicoapenas quando analisados em contexto. Dessaforma, o que caracteriza as indústrias não ésimplesmente a presença desses artefatos, mas acombinação das estratégias utilizadas para apropri-ação das matérias primas, dentre as quais aprodução de artefatos com essas características éapenas uma delas. Ou seja, esses artefatosdesempenham um papel específico nessas indústri-as. O que temos que comparar não é a presença ouausência desse artefato, mas sim o papel desempe-nhado por esse tipo de artefato em cada organiza-ção tecnológica ou, mais do que isso, as estratégiasque compõem essa organização tecnológica. Issopode ser feito, por exemplo, através de uma análiseda cadeia operatória de produção, da distribuiçãodos vestígios das diferentes etapas e dos artefatosdescartados entre os diversos sítios que compõemo mesmo sistema de assentamento.

A fim de inserir o contexto arqueológico daregião do Lajeado numa perspectiva mais ampla,especificamente no que se refere ao período deocupação mais antigo da região, podemos compa-rar os dados obtidos a dois contextos bastanteconhecidos da arqueologia do Brasil Central, jámencionados anteriormente: a região de Serranópolis,GO, e do vale do Peruaçu, mais especificamentedo sítio Lapa do Boquete, MG.

No contexto de Serranópolis há uma série deaspectos que apontam para a implementação dasmesmas estratégias identificadas no Lajeado, noque se refere à apropriação das matérias primaslíticas no Horizonte 1. Em primeiro lugar, essaregião apresenta uma abundância de matériasprimas, amplamente disponíveis pela área pesquisada(Schmitz et al. 2004:169). Em segundo, para aprodução das lesmas foram utilizadas as melhoresmatérias primas da região. As lesmas apresentamuma série de variações no seu contorno formal,sendo compostas por pequenos gumes, decorrentesdo processo de utilização e reavivagem, apresen-

(8) Embora não tenhamos realizado análises de traceologianos artefatos líticos da região do Lajeado, a composição,forma e distribuição dos gumes nesses artefatosapresenta as mesmas características que aquelaspresentes nos artefatos de outras regiões do BrasilCentral nos quais essa análise foi realizada e foramidentificados sinais de utilização relacionados à atividadede raspar madeiras.

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tando ainda sinais de preensão indireta e indícios depreensão direta (Schmitz et al. 2004:187 e 188).As dimensões desses artefatos indicam a presençade bordos laterais longos, com comprimento pelomenos duas vezes superior à largura.

Quanto à distribuição dos sítios, apesar de sóhaver sítios em abrigo sob rocha, há entre osconjuntos de abrigos uma relação diferencial queenvolve duas escalas diferentes. Primeiro há umadiferenciação entre cada conjunto, com relação aovolume e à densidade (calculada por m³) devestígios encontrados nos sítios. No que tange àdensidade se destaca o Grupo D, onde aparece oabrigo GO-JA-03, com 13.016 peças por m³.Com relação ao volume, mas não à densidade,aparece em seguida o Grupo A, onde se encontra ogrande abrigo GO-JA-01 (Schmitz et al. 2004:165).Em segundo lugar, para cada conjunto há um abrigogrande, circundado por outros abrigos menores eque concentra boa parte dos vestígios de cadaconjunto (Schmitz et al. 2004:164). Entre essesabrigos há ainda uma diferença bastante grande noque se refere à proporção de artefatos formais emcada conjunto (Schmitz et al. 2004:191-193) e àdistribuição das lascas possivelmente relacionadasao seu processo de retoque e reavivagem (Schmitzet al. 2004:56). Um único sítio desses complexosde abrigos (GO-JA-01) responde por mais de 50%das lesmas.9

Outro aspecto importante para compararmosas duas áreas diz respeito à disponibilidade derecursos. Em Serranópolis, como no Lajeado, háuma ampla gama de recursos disponíveis, concen-trados em função da diversidade de ambientespresentes na região. Apesar de não dispormos deinformações mais precisas acerca da cadeiaoperatória de produção dos artefatos líticos, todosesses aspectos apontam para a predominância deuma mesma estratégia de ocupação e uso doespaço em ambos os locais – Lajeado e Serranópolis.Assim, mais do que a presença do mesmo tipo deartefato, outros aspectos mais significativos econtextuais são compartilhados nessas duas

regiões. Há, no entanto, variações: em Serranópolisas ocupações se restringem aos abrigos; em algunsdesses abrigos há indicações de uma ocupaçãoestável e duradoura (Schmitz et al. 2004:43); aárea pela qual os vestígios se distribuem é bemmaior;10 os núcleos de abrigos são mais discretos edefinidos na paisagem e a coleção de material líticorecuperada é muitas vezes superior à do Lajeado.11

Ou seja, entre esses dois contextos há tantoindicadores de continuidade como de mudanças.

Passando para o contexto da Lapa doBoquete, associado também a esse mesmo períodode ocupação, encontramos uma situação um poucodiferenciada em termos das informações disponíveis(Fogaça 2001, 1995; Fogaça et al. 1997). Emprimeiro lugar, porque, ao contrário de Serranópolis,onde as informações provêm de vários sítios, aquielas estão relacionadas a apenas duas camadas deocupação de um único sítio. Segundo porque, seem Serranópolis os dados sobre a cadeia operató-ria de produção dos artefatos mereceram menosatenção do que os aspectos quantitativos edistributivos dos diferentes tipos de vestígios, otrabalho realizado com o material lítico nas duascamadas da Lapa do Boquete teve como principalobjetivo caracterizar e definir as cadeias operatóri-as de produção do conjunto artefatual a fim deinvestigar a variabilidade da ocupação do abrigoem termos tecnológicos ou funcionais (Fogaça 2001).

Segundo Fogaça, o conjunto lítico da Lapa doBoquete associado a essas duas camadas deocupação aponta para a caracterização desse sítiocomo um local de atividade específica, relacionadoà obtenção de um determinado recurso ou umponto estratégico no deslocamento através do valedo Peruaçu (Fogaça 2001:406). Uma das questõeslevantadas pelo autor com relação à composiçãodesse conjunto artefatual diz respeito à baixarepresentatividade de artefatos típicos no sítio emcomparação com a grande quantidade de lascasrelacionadas ao processo de reavivagem e

(10) Em Serranópolis essa área abrange uma extensão de600 km² (Schmitz et al. 2004:7) enquanto no Lajeado ossítios líticos associados a esse período de ocupação estãodispersos por cerca de 200 km².(11) A coleção de artefatos relacionada apenas à faseParanaíba chega a mais de 3.000 peças e a coleção total devestígios relacionados a essa fase atinge mais de 164.000peças (Schmitz 2004:193 e 195).

(9) De acordo com os dados das tabelas dispostas naspáginas 191-193, calculamos um total de 741 lesmas nacoleção apresentada. Destas, 481 (65%) estão no GO-JA-01 e 130 (18%) estão no GO-JA-03, restando para osoutros nove abrigos mencionados apenas 17% das lesmasda coleção.

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reestruturação destes. Se associarmos a essecontexto a idéia de que esses artefatos desempe-nham nessa ocupação o mesmo papel que propuse-mos para as indústrias líticas do Horizonte 1 doLajeado, ou seja, artefatos multifuncionais transpor-tados pelos caçadores-coletores em diferentestipos de deslocamento, essa dicotomia entrepoucos artefatos típicos e muitos vestígios de suareestruturação assume um outro significado. Nessecaso, essa dicotomia seria decorrente do fato deesses artefatos estarem sendo produzidos em outrolocal e transportados e utilizados nesse abrigo ouao seu redor, ali reavivados para serem novamentetransportados e utilizados em outros locais. Assim,a maioria dos artefatos típicos presentes nessesconjuntos poderia ser considerada como artefatosdescartados em função de quebra, intensidade deuso ou até mesmo esquecidos.

Uma indicação bastante importante que,segundo o autor, caracteriza esses artefatos é seualto grau de reestruturação volumétrica. Segundoessa perspectiva a intensidade de reestruturaçãonão seria uma estratégia relacionada apenas àocupação do abrigo, mas relacionada a todo opadrão de uso e ocupação do espaço por essegrupo. Assim, a oposição apresentada pelo autorentre uma estratégia de fornecimento constante dematéria prima no abrigo e de aproveitamento ereestruturação de um conjunto de suportes inicialestaria relacionada à forma de ocupação do espaçoe à utilização específica do abrigo nesse sistema deassentamento. Os artefatos estão reciclados nãoporque não há um abastecimento constante dematéria prima de fora do abrigo, mas porquerepresentam parte do conjunto artefatual transpor-tado pelos grupos de caçadores-coletores durantea realização de expedições específicas e queforam descartados no abrigo, sendo re-utilizadosem diferentes episódios de ocupação deste. Ouseja, alguns artefatos são descartados e/ouperdidos nesse local e tornam-se uma espécie demobília do abrigo, podendo ser reutilizados ereestruturados em diferentes momentos deocupação do mesmo. Por outro lado, o própriorefugo do processo de reestruturação é reutilizadocomo artefato expediente para utilização numagama de funções relacionadas a esse uso tempo-rário do abrigo. Isso explica a oposição entrequantidade de refugo e de artefato e a cadeiaoperatória de produção dos artefatos informaisdefinida por Fogaça (2001).

Um outro ponto interessante diz respeito àcadeia operatória específica descrita pelo referidoautor no abrigo para os artefatos típicos. Uma vezque os artefatos representam apenas uma pequenagama do total de artefatos formais produzidos poresse grupo e que estão associados a um contextoespecífico onde deixaram de ser transportados parase tornarem uma espécie de mobília do sítio,apresentam aspectos específicos que podemexplicar as diferenças encontradas com relação aoLajeado. No caso da Lapa do Boquete o autormostra que os artefatos típicos encontrados nascamadas VII e VIII do abrigo representamdiferentes estágios de produção e indica umacadeia operatória onde há uma transformação deum artefato em outro, todos relacionados aomesmo tipo de suporte original e às mesmasfunções. Essa cadeia operatória, segundo nossaproposta, poderia estar relacionada ao fato de queum dos vetores de variabilidade principal nessecaso seria o próprio papel do sítio no sistema deocupação regional – a reestruturação se dá sobreitens descartados e esses itens passam a ser a fontede matéria prima, o suporte que será (re) trabalha-do. No Lajeado, onde há uma maior variabilidadede contextos e um número muito maior de artefa-tos, há variações nessa cadeia operatória, há umamaior variedade de suportes utilizados e hádiferenças quanto ao grau de reciclagem dosartefatos que, por sua vez, geram artefatos decontorno formal distintos. No entanto, podemosdizer que em ambos os casos a estratégia de gestãoda matéria prima lítica é a mesma, combinandoestratégias expedientes e de curadoria, mediadaspela matéria prima, na produção dos artefatosutilizados. As variações acima apontadas sãocircunstanciais e estão relacionadas à configuraçãoda paisagem em cada um dos dois contextos, o queenvolve não só a distribuição dos recursos, mastambém a leitura, identificação, conhecimento eculturalização da paisagem.

Por fim, outro vetor de variabilidade possívelpara explicar as variações encontradas entre oLajeado e a Lapa do Boquete envolve asespecificidades do processo de ensino-aprendiza-gem. Poderíamos ter diferentes grupos comparti-lhando a mesma estratégia de gestão do conjuntoartefatual, mas exibindo particularidades na cadeiaoperatória decorrentes de escolhas individuais erelações contextuais envolvidas no processo deensino-aprendizagem.

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Homogeneidade x Regionalização:um modelo interpretativo sobre a variabilidadedas indústrias líticas no Brasil Central

Articulando os dados apresentados sobre oLajeado, Serranópolis e a Lapa do Boquete,podemos repensar alguns aspectos da TradiçãoItaparica, definida por Schmitz (1980). Há umasérie de aspectos comuns a essas três áreas, que,como vimos, estão relacionados aos seguintesfatores: 1) composição dos conjuntos artefatuais, 2)estratégias implementadas para apropriação dasmatérias primas líticas, 3) processo de produçãodos artefatos formais padronizados (chamadas de“lesmas” ou “típicos”), 4) distribuição dos sítios napaisagem e 5) distribuição dos conjuntos artefatuaisentre os diferentes sítios. Em suma, entre ocontexto encontrado nas regiões do Lajeado, deSerranópolis e da Lapa do Boquete há uma sériede características que apontam para uma continui-dade de aspectos tecnológicos relacionados àsestratégias de uso e ocupação do espaço e deapropriação dos recursos. Ao mesmo tempo, comovimos anteriormente, há características específicasem cada uma dessas áreas que podem estarrelacionadas a aspectos contextuais decorrentes dadistribuição dos recursos, mas também a aspectosculturais mais específicos, como redes de ensino-aprendizagem, que seriam responsáveis pelasvariações encontradas nas cadeias operatórias deprodução desses artefatos.

No entanto, uma Tradição Tecnológica nãoenvolve apenas o compartilhamento de certos tiposde artefato ou de certos traços tecnológicos. UmaTradição envolve também o compartilhamento dasrazões que motivaram as escolhas responsáveispela definição das hierarquias de performance quecaracterizam o sistema tecnológico de cada grupocultural (Bueno 2005). Contudo, apesar de osdados atualmente disponíveis para a interpretaçãoda variabilidade tecnológica das indústrias líticas doBrasil Central no início do Holoceno apontarempara a existência de certas escolhas comuns,podemos dissociar desse repertório uma série deoutras escolhas relacionadas a distintas prioridadesde performance.

As escolhas compartilhadas estão relacionadasà implementação de determinadas estratégias deuso, ocupação do espaço, apropriação dasmatérias primas e gestão do conjunto artefatual,normalmente associadas a ambientes que apresen-

tam uma diversidade de recursos, dentre os quais,abundância e variedade de matérias primas líticas,água, recursos vegetais e fauna de pequeno emédio porte. Por outro lado, percebemos apresença de escolhas específicas relacionadas àseleção dos suportes, ao processo de produção,grau de reavivagem e reestruturação dos artefatos eà localização e distribuição dos sítios na paisagem,no que diz respeito, por exemplo, à duração dosassentamentos e à ocupação de abrigos ou de sítiosa céu aberto.

Nesse sentido, poderíamos pensar o contextode ocupação do Brasil Central segundo a propostaapresentada por Torrence (2001) a respeito devariações decorrentes da escala de análise, macroou micro-regional.

Em um nível macro-regional teríamos ocompartilhamento, por diferentes grupos, deestratégias adaptativas diretamente relacionadas àsformas de apropriação e ocupação do meio-ambiente, que poderia envolver, como propõeKipnis, a existência de territórios compartilhadoscomo estratégia para redução do risco em contex-tos de instabilidade climática e imprevisibilidade nadistribuição dos recursos (Kipnis 2003:222). Já onível micro-regional compreenderia especificidadeslocais na forma de implementação dessas estratégi-as compartilhadas. Essas especificidades seriamdecorrentes de fatores que envolvem não só adistribuição dos recursos, mas também formas decompreensão e culturalização da paisagem, através,por exemplo, da designação de aspectos simbóli-cos a determinados pontos que serviriam comomarcos na paisagem e a incorporação de aspectoscontextuais na definição da cadeia operatória deprodução dos conjuntos artefatuais. Esses aspetospodem incluir, por exemplo, especificidades noprocesso de ensino-aprendizagem ou no processode negociação de poder e estabelecimento deidentidades sociais.

Há que se ressaltar ainda que a homogeneidadetecnológica apontada está associada apenas àsindústrias relacionadas ao que se convencionouchamar de Tradição Itaparica, não podendo, assim,ser estendida para todo o Brasil Central. Nessamacro-região, composta majoritariamente pelocerrado, mas apresentando também variaçõesregionais e locais, há contextos que apontam para aexistência de um padrão tecnológico distinto.Embora os dados disponíveis não sejam conclusi-vos, esse parece ser o caso, por exemplo, de

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Lagoa Santa, na região central de Minas Gerais, ede Santa Elina, na região central do Mato Grosso.Esses dois contextos além de apresentaremindústrias líticas diversificadas, marcadas essencial-mente por uma estratégia expediente na apropria-ção da matéria prima e produção dos artefatos,apresentam também datações recuadas paraocupação do Brasil Central.

Dessa forma, o contexto macro-regional doBrasil central associado ao Holoceno Inicial apontapara um mosaico de ocupações, com a produçãode diferentes indústrias líticas, associadas a distintospadrões de mobilidade e envolvendo diversos tiposde relacionamento social entre os grupos culturaisque habitaram essa região. Além disso, a distribui-ção dos sítios, as datações e a composição dosconjuntos artefatuais apontam também paradiferentes territórios, cujas dimensões e delimita-ções, por sua vez, são também variáveis.

Assim, no nível macro-regional, teríamos, noinício do Holoceno no Brasil Central, um “núcleo”no qual diferentes grupos compartilhariam asmesmas estratégias adaptativas, indicadas pelaexistência de semelhanças na organização datecnologia lítica, dos padrões de mobilidade e nasformas de uso do espaço e, ao mesmo tempo,grupos que apresentam a implementação dediferentes estratégias adaptativas relacionadas aáreas mais específicas dessa macro-região, nasquais percebemos a presença de distintas formasde organização da tecnologia lítica, padrões demobilidade e uso do espaço. Já no nível micro-regional, esse núcleo apresentaria especificidadescontextuais, indicando a existência de diferenças emcertos aspectos da cadeia operatória de produçãodos artefatos formais e ocupação da paisagem.

Nesse sentido, o contexto atualmente disponí-vel para o Planalto Central Brasileiro no início doHoloceno indica uma ocupação já bastante intensae diversificada de toda a região, possivelmenterelacionada a diferentes momentos do processo depovoamento da América do Sul (Dillehay 2000),indicando, assim, um processo de ocupação jábastante recuado nesse continente.

Segundo essa perspectiva, surge uma hipótesebastante interessante para pensarmos as modifica-ções identificadas no registro arqueológico dediferentes partes do Brasil Central, a partir dos9.000 ou 8.000 anos AP. A desaparição dosartefatos que caracterizamos como toolkit, associa-da a modificações na forma de uso e ocupação doespaço pode indicar uma alteração ou uma fragmen-tação nas relações sociais dos diferentes grupos quehabitaram essa região no início do Holoceno e queseria responsável pela homogeneidade tecnológicacaracterística desse período. Essa fragmentação, porsua vez, estaria relacionada a um processo deregionalização, para o qual um dos indicadores seriaa variabilidade presente entre diferentes regiões noque tange à indústria lítica, mas que seria, em todosos casos, essencialmente expediente.

Assim, poderíamos dizer que a transição doHoloceno Inicial para o Holoceno Médio envolveum processo de grande mobilidade dos grupos quehabitavam a região, talvez com a re-definição deterritórios e das redes de contato e aliança entre osgrupos, associado à fragmentação de um padrãotecnológico de ampla dispersão geográfica queparece ficar circunscrito a áreas específicas, dandolugar a uma diversidade de padrões tecnológicosintimamente relacionados à distribuição e explora-ção dos recursos em âmbito local.

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ABSTRACT: In this article we present the main characteristics of the technologicalorganization of the lithic industries in the Lajeado region through the Holocene period.Radiocarbone dates obtained for a series of sites identified in this region allowed us todefine four periods of ocupation perpassing the whole Holocene in a intermitent form.Based on the characterization of the lithic technology organization related to the sites ofeach one of these periods we sought to re-think the general context accepted nowadaysto explain the technological variability of the lithic industries in central Brazil.

UNITERMS: Lithic assemblage – Technological organization – Design – Performance– Central Brazil.

Referências bibliográficas

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Recebido para publicação em 30 de março de 2006.