reportagem orquestrasexta-feira | 15 de setembro de 2017 | negócios 10 11 reportagem...

6
Sexta-feira | 15 de Setembro de 2017 | Negócios 08 09 Como se transforma um grupo de músicos numa orquestra? Nesta viagem aos bastidores da Metropolitana, percebe-se como o rigor é a palavra de ordem de uma orquestra. O rigor ao serviço da arte faz-se de hierarquias, rituais e regras que passam despercebidas ao comum dos mortais. Orquestra É nos bastidores que se dá corda à música altam 20 minutos parao início do ensaio. Asalaestárepleta. Grande par- te dos sopros já ocupou o seu lugar, numa estrutura que replica a posição empalco. Trompistas e trompetistas vão tirando sons dos seus instrumen- tos, tal como as chamadas “madeiras” – flautistas, clarinetistas, oboístas e fagotistas – sentados à sua frente. Dispostos em forma de trapézio, estão os instrumentistas de cordas, a maioria violinistas, mas também violetistas, violoncelistas e contrabai- xistas. Outros músicos vão chegando e cumprimentam-se naquele que é o primeiro ensaio depois das férias. Poisam os estojos dos instrumentos, as malas e as mochilas e descontraidamente vão ocupando os seus luga- res. Aboa disposição é a nota dominante. O maestro entra na sala. Troca algumas palavras e, num ápice, às 10h emponto, horamarcadaparao início do ensaio, amúsicaarranca. Atrans- formação é impressionante: os músicos que antes se moviam e tocavam de formaindividual e desarticuladatransformam-se numúnico corpo so- noro. O maestro, minutos antes calmo e bemcomposto, parece agorapos- suído porumaforçamaior. Dele emanatodaaenergiadasala. Focados na partitura, os músicos espreitam regularmente o maestro, sem sombra de tensão. Entre sorrisos discretos e palavras em surdina, a cumplicidade é evidente. O resto é música. Numaorquestra, “é fundamental umequilíbrio entre aconcentração e adescontracção.Seapessoaestátensa,nãotocabem”,explicaPedroAma- ral. É ele quemdirige aOrquestraMetropolitanade Lisboa, aprincipal das três orquestras daMetropolitana(OML), umainstituição que albergaain- datrês escolas de músicae que é lideradaporAntónio MegaFerreira. Pedro Amaral, director artístico, é o homem ideal paraexplicar como se transforma um grupo de 37 músicos numa orquestra. Das suas pala- vras percebe-se que há uma pedra angular nesta construção humana: o rigor. Rigor nos horários; rigor na hierarquia, no papel e no lugar ocu- pado por cada um; e rigor na interpretação da partitura. Numa orques- tra, nada acontece por acaso. TIC-TAC, TIC-TAC “O horário é umacoisaquase sagrada”, diz Pedro Amaral. “Se marca- mos o ensaio para as 10h, está toda a gente a tocar às 10h. Se um músico não toca numa peça mas toca noutra, tem de saber as horas em que é en- F REPORTAGEM MANEL ESTEVES [email protected] BRUNO SIMÃO

Upload: others

Post on 29-Sep-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: REPORTAGEM OrquestraSexta-feira | 15 de Setembro de 2017 | Negócios 10 11 REPORTAGEM daapassaramensagem:“Omaestronãotem500braços, nãopodefazertudo”,explica,bem-disposta

Sext

a-fe

ira| 1

5de

Sete

mbr

ode

2017

| Neg

ócios

0809

Como se transforma um grupo de músicos numa orquestra? Nesta viagem aos bastidores da Metropolitana,percebe-se como o rigor é a palavra de ordem de uma orquestra. O rigor ao serviço da arte faz-sede hierarquias, rituais e regras que passam despercebidas ao comum dos mortais.

OrquestraÉ nos bastidores quese dá corda à música

altam20 minutos parao início do ensaio. Asalaestárepleta. Grande par-te dos sopros jáocupou o seu lugar, numaestruturaque replicaaposiçãoempalco.Trompistasetrompetistasvãotirandosonsdosseusinstrumen-tos, tal como as chamadas “madeiras” – flautistas, clarinetistas, oboístase fagotistas – sentados àsuafrente.

Dispostos em forma de trapézio, estão os instrumentistas de cordas,amaioriaviolinistas, mas também violetistas, violoncelistas e contrabai-xistas. Outros músicos vão chegando e cumprimentam-se naquele que éo primeiro ensaio depois das férias. Poisam os estojos dos instrumentos,as malas e as mochilas e descontraidamente vão ocupando os seus luga-res. Aboadisposição é anotadominante.

O maestro entranasala. Trocaalgumas palavras e, num ápice, às 10hemponto,horamarcadaparaoiníciodoensaio,amúsicaarranca.Atrans-formação é impressionante: os músicos que antes se moviam e tocavamdeformaindividualedesarticuladatransformam-senumúnicocorposo-noro.Omaestro,minutosantescalmoebemcomposto,pareceagorapos-suídoporumaforçamaior.Deleemanatodaaenergiadasala.Focadosnapartitura, os músicos espreitamregularmente o maestro, semsombrade

tensão. Entre sorrisos discretos e palavras em surdina, a cumplicidade éevidente. O resto é música.

Numaorquestra,“éfundamentalumequilíbrioentreaconcentraçãoeadescontracção.Seapessoaestátensa,nãotocabem”,explicaPedroAma-ral.ÉelequemdirigeaOrquestraMetropolitanadeLisboa,aprincipaldastrêsorquestrasdaMetropolitana(OML),umainstituiçãoquealbergaain-datrêsescolasdemúsicaequeélideradaporAntónioMegaFerreira.

PedroAmaral,directorartístico,éohomemidealparaexplicarcomose transforma um grupo de 37 músicos numa orquestra. Das suas pala-vras percebe-se que há uma pedra angular nesta construção humana:o rigor. Rigor nos horários; rigor nahierarquia, no papel e no lugar ocu-pado por cadaum; e rigor nainterpretação dapartitura. Numaorques-tra, nada acontece por acaso.

TIC-TAC, TIC-TAC“O horário é umacoisaquase sagrada”, diz Pedro Amaral. “Se marca-

mos o ensaio para as 10h, está toda a gente a tocar às 10h. Se um músiconão toca numa peça mas toca noutra, tem de saber as horas em que é en-F

REPORTAGEM

MANEL [email protected]

BRUNO SIMÃO

Page 2: REPORTAGEM OrquestraSexta-feira | 15 de Setembro de 2017 | Negócios 10 11 REPORTAGEM daapassaramensagem:“Omaestronãotem500braços, nãopodefazertudo”,explica,bem-disposta

saiadaapeçaem que participa. Aprogramação é feitaao milímetro.Numa orquestra, os efeitos nefastos dos atrasos fazem sentir-se de

formaimediata,explicaAnaPereira,concertinodaOML.“Imaginequeo primeiro oboé chegava atrasado, nós não tínhamos com quem afinar.Se pensarmos bem, numa empresa é igual. Só que aí sente-se no longoprazo e numa orquestra é imediato. Numa empresa, se o director demarketing se atrasar na entrega de um trabalho de publicidade, isso sóirásentir-se um mês depois.” Em todas as organizações, cadaum tem oseu papel e, uns mais do que outros, todos são necessários. Adiferençanumaorquestraé que são todos necessários ao mesmo tempo.

Estaprecisãohoráriaéválidaparatodaatemporada,queédefinidaao detalhe com muita antecedência. “Aplanificação tem de ser absolu-tamente rigorosa, ao minuto, e todos os maestros têm imenso respeitopor isso.” O ensaio pode acabar um pouco mais cedo do que ahorapre-vista, mas nuncase prolongaum minuto paraládahorafinal.

Estaquaseobsessãocomoplaneamentohoráriojustifica-seemgran-de medida pelo facto de os músicos das orquestras acumularem geral-mente outras actividades, tais como aulas ou ensaios de música de câ-mara. Mas háoutrarazão mais profunda: “Resultatambém do facto dea nossa arte se passar no tempo. Não há muitas artes que se passem notempo.Aarquitectura,apintura,asartesvisuaisemgeral,nãosepassamno tempo. Jáadança, sim, passa-se no tempo.”

UMA HIERARQUIA BEM DEFINIDAOritualrepete-sedecadavezqueumaorquestraentraempalco.Os

músicos estão jásentados quando o maestro entrae, sob os aplausos daplateia, cumprimenta o primeiro violino (concertino) e o seu assisten-te.Aumsinaldoconcertino,oprimeirooboétocaolácentral,queopri-meiro violino em pé retoma, paraque todaaorquestraafine de igual.

Umavez mais, nadaacontece poracaso. Este ritual demonstrabema hierarquia que existe numa orquestra. Aseguir ao maestro, o concer-tino é o elemento mais importante. É ele que substitui o maestro quan-doesteestáausente.E,estandopresente,éoprimeiroviolinoqueoaju-

página 10

É nos ensaios que Pedro Amaral molda o som que quer tirar da orquestra,mantendo-se sempre fiel à escrita do compositor. “O que podemosmudar é ao nível dos tempos e das intensidades”, conclui o maestro.

Page 3: REPORTAGEM OrquestraSexta-feira | 15 de Setembro de 2017 | Negócios 10 11 REPORTAGEM daapassaramensagem:“Omaestronãotem500braços, nãopodefazertudo”,explica,bem-disposta

Sext

a-fe

ira| 1

5de

Sete

mbr

ode

2017

| Neg

ócios

1011

REPORTAGEM

da a passar a mensagem: “O maestro não tem 500 braços,não pode fazer tudo”, explica, bem-disposta, Ana Pereira,nointervalodolongoensaioquemarcouoarranquedotra-balhoconjuntodaorquestraparaatemporada2017/2018.

“O primeiro violino é hierarquicamente a peça funda-mentaldaorquestra.Éextremamenteimportante.Naver-dade, ele é o parceiro do maestro porque é o primeiro exe-cutante e é ele que, muitas vezes, transmite à orquestra aideiado maestro”, reforçaPedro Amaral.

Como é possível comunicar com todos os músicos emplenoconcerto?“Eunãotenhodecomunicarcomtodososmúsicos,comunicocomcadachefedenaipe[deinstrumen-tos],quedepoisgereasuasecção.”Essacomunicaçãoésub-tilepassadespercebidaaoolhar.Éfeitaporgestos.“Éoquenós chamamos de ‘body language’. Nós entendemo-nosbem, jános conhecemos”, diz AnaPereira.

“Há uma hierarquia perfeitamente definida que se es-pelhanaformadetrabalhar,nocontextodetrabalho,naar-ticulação laboral e até nafolhasalarial”, explicao maestro.No topo está o concertino, que é o músico com maior res-ponsabilidadeetambémomaisbemremunerado;seguem--se os chefes de naipe que têm aresponsabilidade de coor-denarcadasecçãodeinstrumentos;amaiorpartedelestemacategoriadesolistasA.Descendoapirâmidehierárquica,surgem os solistas B e, finalmente, os tutti, que só existemnascordas(violinistas,violetistas,violoncelistasoucontra-baixistas).Ossopros,poroposição,sãosempresolistas,com

acategoriaAouB, conforme o seugraude responsabilida-de, seguindo linhas individuais napartitura.

Jáaescritaparaostuttié,namaiorpartedotempo,co-lectiva, pelo que podem ser vistos como o povo da orques-tra.Mesmosemoprotagonismoindividual,merecemtodaaconsideraçãodomaestro:“Tenhomuitaadmiraçãopelosmeus colegas que são instrumentistas de cordas tutti, pormanteremo brio semseremprotagonistas. Têmumsenti-do quase gregário, é admirável.”

ESCRITO NA PEDRAEstá escrito. Agora leia-se e cumpra-se a vontade do

compositor. É desta forma que a maioria dos maestros emúsicos de hoje encara e interpreta as composições. “Pelaprecisão da nossa linguagem escrita, a interpretação temuma margem perfeitamente definida.” Não é assim, porexemplo,noteatro,ondeumtextodeShakespearepodeserviradodecabeçaparabaixo.Masjáéassimnapoesia,ondenão se tira uma palavra do sítio. “Amargem de interpreta-çãodomaestroépequena.Ofundamentalédarmosaobracomo ela está escrita e como nós entendemos essa escrita.Mas é o entendimento que temos, estritamente, daqueleobjecto e não de umaqualquermetáforaque construamosnanossacabeça”,continua.“Oquepodemosmudaréaoní-vel dos tempos e das intensidades”, conclui.

Pedro Amaral recusa a ideia de que existe um conser-vadorismo na forma como hoje em dia se interpretam os

textos,masadmiteque“háumacertasacralizaçãodaobra”.Nemsemprefoiassim.“Durantemuitosanos,nãosóalgunsmaestrosmudavamainterpretaçãodasobrasenriquecen-doaorquestraçãooriginal,comoalgunseditoresalteraramcoisas que os compositores tinham escrito.” Em respostaaos exageros, no século XX surgiu um movimento na Ale-manha,chamadoUrtext,quedefendiaqueseeditassemostextostalcomohaviamsidoescritospeloscompositores.Eassimchegámosaopresenteemqueorespeitopelaobrasesobrepõe àcriatividade do intérprete. O rigor, sempre.

PAM, PAM, STOPPassa pouco das dez. A orquestra toca a abertura de

Beethoven Egmont e vai tocá-la até ao fim, sem interrup-ções do maestro. “No primeiro ensaio, gosto de pôr a or-questraatocar do princípio ao fim.”

Apedrapreciosabrilhaaindaembruto.Étempodeali-mar:“Inícioporfavor”,ordenaomaestro,quandoosmúsi-cosacabamdetocaracélebrepeçadeBeethoven.Agora,asinterrupçõesdomaestrosucedem-se:“Ouve-semuitascor-das,deveouvir-seumsóbloco,comosefosseumsóinstru-mento”, queixa-se. Logo a seguir: “Vamos fazer a colcheia[figuramusical]maislonga.Ossenhoresestãoatocarexac-tamentecomoestáescrito,eugostariaqueatocássemosli-geiramente mais longa”, numa das raras situações em quese afastado texto do compositor.

“Agora só os primeiros [violinos]. Pam, pam, stop” e os

página 9

Ana Pereira, com 32 anos, é oconcertino da Orquestra Metropolitanade Lisboa. Funciona como braço-direitodo maestro, ajudando-o a passar a suamensagem aos músicos. Ao lado, emcima, vêem-se os violinistas ao fundo,com um contrabaixista em primeiroplano, desfocado. Em baixo, em cimade uma estante, a partitura onde osmúsicos anotam as sugestões domaestro. A tocar violoncelo, um dosvários rostos jovens desta orquestra,muitos deles formados nas escolas daMetropolitana.

página 12

Page 4: REPORTAGEM OrquestraSexta-feira | 15 de Setembro de 2017 | Negócios 10 11 REPORTAGEM daapassaramensagem:“Omaestronãotem500braços, nãopodefazertudo”,explica,bem-disposta

Sext

a-fe

ira| 1

5de

Sete

mbr

ode

2017

| Neg

ócios

1213

violinosarrancam,lideradospeloconcertino.Maisàfrente,vira-se para os trompistas: “Há uma trompa que está a en-trar tarde.” Os músicos corrigem. “Isso, obrigado.” Por ve-zes,PedroAmaralentoaamelodia,enquantomarcaocom-passocomabatuta.Voltaainterromper:“Imaginemumban-do armado que está a arrombar uma porta”, diz, dirigindo-se de novo às trompas e trompetes. “Está quase, quase. Ocrescendo uma vez mais” e lá vai a orquestra por ali acima.“Bravo, bravo. Obrigado. Paramos dez minutos antes deBrahms [segue-se a1.ª sinfoniado compositoralemão]”.

PedroAmaralterminalavadoemsuor.“Venhacomigo,precisodemehidratar”,comentacomummúsicoqueten-tafalarcomele.Todosdescansam:unssaemparafumarnoterraço, outros aproveitam para comer uma coisa rápida,muitos conversam. O ambiente é familiar e descontraído.

Passados os dez minutos, o ensaio recomeça e, ao lon-go de três horas, a história repete-se: à concentração se-guem-seabruptasinterrupções,numcansativopára-arran-ca. Os músicos não dão sinal de fadiga e calmamente vãoanotando nas partituras as observações do maestro. Dequandoemvezcolocamumadúvidae,aquieali,surgeumasugestão. “Ok, vamos experimentar”, acede o maestro. Oensaio prossegue.

Não se pense que o esforço dos músicos se esgota nosensaiosenopalco.Hámuitotrabalhodecasa,“atéporobri-gação contratual”, diz o maestro. “Não é de modo nenhumfiscalizado, mas acaba por sobressair”, sublinha, admitin-do contudo que apressão sobre um músico solistaé maiordoquesobreumtutti.Aformacomotrabalhamemcasava-ria muito, explica Ana Pereira: “Há músicos que preferemolharparaapartituraemsilêncio, háoutros que, ao ouviramúsica,vãoestudandoeconseguemreconhecerotextomu-sical através da audição, mas claro que tem de haver sem-pre um contacto com a partitura. Todos os dias de manhã,eu oiço as obras em que estou atrabalhar.”

QUEM É O PATRÃO?E quando o maestro tem de trabalhar com um solista

convidado, quem manda? Sobre essa questão, há um epi-sódio que ficou para a história. Estamos a 6 de Agosto de1962.OfamosomaestroLeonardBernsteinprepara-separadirigir a sua Orquestra Filarmónica de Nova Iorque, quetemnessediaumconvidadoespecial:oexuberantepianis-ta Glenn Gould, que se prepara para interpretar o concer-to parapiano n.º 1 de Johannes Brahms.

“Nãotenhammedo,osenhorGouldestáaquievaiapa-recerdentrodemomentos”,dizBernsteinaopúblico.“Nãotenho o hábito de falar nos concertos, como sabem, mashouve uma situação curiosa que merece uma palavra ouduas.Vãoouvirumaperformanceheterodoxadoconcertopara piano em si menor de Brahms, uma performance to-talmente diferente de qualquer outraque tenhaouvido ousonhado […]. Não posso dizer que esteja de acordo com aconcepção do sr. Gould [começam a ouvir-se risos discre-tos na audiência] e isto levanta uma importante questão:porque estou eu a conduzi-la? [risos mais sonoros do pú-blico].Euestouafazê-loporqueosr.Gouldéumartistatãovalioso que eutenho de levarasério qualquercoisaque eleconcebadeboa-fé[…].Masaquestãomantém-se:numcon-certo, quem é o patrão? O solista ou o maestro [gargalha-das]. Aresposta é: às vezes um, outras vezes outro, depen-dendo das pessoas envolvidas. Mas quase sempre os doisconseguemchegarumentendimentopelapersuasão,char-me ou mesmo… ameaças [gargalhadas] para atingir umaperformance unificada. Só uma vez na minha vida tive deme submeter a uma visão totalmente nova e isso foi da úl-

tima vez que acompanhei o sr. Gould [novas gargalhadas].Mas, desta vez, a discrepância entre as nossas visões é tãogrande que eu sinto que devo fazer este ‘disclaimer’.”

O discurso de Bernstein continua, como continuarampelo mundo fora as pequenas (ou grandes) guerras entremaestrosesolistas.PedroAmaraltambémjácedeu.“Quan-do convido um solista, respeito a leitura dele. Eu gabo-medeserapessoaquemelhorconheceapartituradeumaobraquando entro nasala, mas aparte do solista, ele conhece-amelhor do que eu, sempre”, explica. “Eu sei segui-lo e seiguiá-lo,masosolistatocaumconcertodeMozartdesdeos10 anos de idade. Não tenho qualquerproblemaemconci-liar com o solista a minha visão da obra e em abdicar delaquando tal se afigura essencial para ele. Em casos raros eideais, as nossas sensibilidades convergem e construímosalgo novo. Mas se vejo que o solista não tem essa abertura,essa capacidade de diálogo ou a cultura e imaginação ne-cessárias, preparo a orquestra para a visão dele, sem ne-nhum estado de alma. A minha primeira função é levar o

concerto abom termo”, explica.Como se impõe a autoridade do maestro entre os mú-

sicos da orquestra? “Pela competência. Não há outra ma-neira.”Domaestro,osmúsicosesperamumavisão.Talcomose esperade um encenador ou de um realizador.

Mas, na Orquestra Metropolitana de Lisboa, a autori-dadedomaestronãoseesgotanacomponentemusical.Pe-droAmaraléchefeartísticoemtodosossentidos.Todososmúsicossetratamportu,exceptoum:omaestro.“Nãotra-to nenhum dos músicos da minha orquestra por tu. Eu te-nho também um papel administrativo, o que levanta umequilíbrio difícil. Hámuitas decisões que tenho de tomareque não podem ter em contao afecto pessoal.”

E não se pense que a componente administrativa é se-cundária no seu trabalho. “Na minha vida diária, 20% domeutempoéparaotrabalhodemaestro,demúsico,e80%sãoparaaparteadministrativa,sejaelacomporumprogra-ma, preparar um programa para um determinado concer-to,prepararatemporada.Eaindaestabelecertodooplanolaboraldaorquestra–gestãodostemposdetrabalho,orga-nização dos ensaios, férias, respostas a pedidos de licença,etc.”Eissonãoénenhumsacrifício:“Divido-mebementreasduascoisas.Háunstempos,estiveseissemanasseguidasem que só dirigi. Paramim, foi umabênção acabar e voltarao trabalho administrativo”, desabafacom um sorriso.

Maisdifíciléconciliarcomotrabalhodecompositor.Otrabalho artístico só pode ser um de cada vez: maestro oucompositor.“Ocompositorestáviradoparadentro.Omaes-troestáviradoparafora,sãoestadosdeespíritoopostos.”Porisso,conseguemantersempreotrabalhoadministrativo,masvai alternando acomposição comadirecção de orquestra.

REPORTAGEM

página 11

Quem manda mais, o maestro ouo solista convidado? Na orquestra,manda o maestro, mas por vezeseste abdica da sua visão, dandoa primazia ao instrumentista.Nem sempre se entendem.

Page 5: REPORTAGEM OrquestraSexta-feira | 15 de Setembro de 2017 | Negócios 10 11 REPORTAGEM daapassaramensagem:“Omaestronãotem500braços, nãopodefazertudo”,explica,bem-disposta

Senoladoartísticocontacom37músicos,nafrenteadmi-nistrativatemumadezenadepessoasatrabalharconsigo.Sãomenos, mas sem elas não haviaorquestra, assegura.

UMA MICRO-SOCIEDADE“Umaorquestraé umamicro-sociedade, não dáparaviver

uns sem os outros. De nada me vale tocar sozinha. Nós traba-lhamos para o resultado conjunto da equipa”, diz, orgulhosa,AnaPereira.“Nós,músicos,conhecemosperfeitamenteanos-sa função. Eu não quero tocar flauta, aquele espaço é inteira-mentedoflautista,maseletambémsabequeoespaçodedirec-çãodaobraéinteiramentedomaestro”,explicaPedroAmaral.

Tambémporisso, as orientações do maestro não são ques-tionadas.“Émuitoraro,masmuitoestimulante,quandoummú-sico me pergunta se podemos fazer uma leitura diferente.” Omaestrocumprefielmenteaobradocompositor,mas“afideli-dade, por máxima que seja, deixa sempre uma margem para ainterpretação.Ainterpretaçãodeumaobraorquestralédefini-da pelo maestro e é por isso que os músicos seguem rigorosa-menteassuasorientações:paratornaraudível,emtodososseusínfimos detalhes, umainterpretação coerente, una, daobra.”

E existe competição? Claro que sim, como na sociedadeem geral. “Há dois tipos de competição”: dentro do grupo dostutti, na medida em que eles estão realmente a fazer a mesmacoisa e são o mesmo instrumento. E existe competição entredois solistas A, um grande flautista e um grande clarinetista,porexemplo,quetentammostraromelhordecadaumporquesentemque o outro atingiuumnível de excelênciaartísticadoqual não querem ficar atrás. Este segundo tipo de competiçãoé claramente benéfico parao conjunto.”

E se na sociedade os ofícios moldam as pessoas, também

naorquestraissoacontece.Háumarelaçãoentreoinstrumen-to e o perfil do músico? “Sim, absolutamente”, reconhece omaestro. “E nunca se sabe se é a personalidade que se adaptaaoinstrumentoouseestaagiunaescolhadoinstrumento.Veja--se o caso do oboísta. O oboé temumapalhetadupla, pelo quetiraroprimeirosoméumacoisadelicadíssima,queexigeumaenormeconcentração,porissoénormalooboístaserumapes-soamuitometiculosa,umpoucoreceosa,muitoatenta.Outrosestereótipossãoosmúsicosdosmetais,tipicamentebonachei-rões, mais fortes fisicamente.”

Também o género parece interferir. Por exemplo, “é mui-to mais frequente ver homens nos metais”. “Tem muito a vercomoimagináriosocialsexista,queconduzaqueaescolhasejamais delicada para as meninas e mais embrutecedora para oshomens. Mas averdade é que esse condicionamento existe e épor isso que se lutacontraisso.”

E é recorrendo à mesma metáfora que Ana Pereira reagequando questionadasobre as dificuldades de relacionamentodentro de umaorquestra. “Se pensarmos numasociedade, é a

mesmacoisaquenumaorquestra.Éóbvioquenemtodaagen-te se dábemnumaorquestra, tal como numasociedade”, afir-ma,ressalvandoquenaMetropolitanaoambienteémuitosau-dável e, jáagora, marcadamente jovem– elatem32 anos. “Te-mos muitas afinidades, saímos juntos com frequência, mas énormal que surjamalguns conflitos entre pessoas que passamtantotempojuntas,masnadaquenãoseresolva.E,quandoen-tramos em palco, isso não se reflecte porque sabemos que te-mos todos um objectivo comum.”

“GOSTAMOS MUITO DE OUVIR OS ‘BRAVOS’”Quando o maestro sobe ao palco, o essencial do seutraba-

lhovemjáfeitodosensaios.Masissonãodiminuiapressãoquesente: “Para mim, é sempre muito stressante. No dia do con-certo, revejo o concerto todo, passo-o de memória o tempotodo.”Semprequepode,dirigedecor,semestante.Porquê?“ÉadiferençaentreumactorquelêummonólogodeShakespea-re ou um que o representa de cor. E é também a diferença en-treoépicoeodramático.Umacoisaénarrar,outracoisaépar-ticipar naacção”, explica, envolvido, Pedro Amaral.

As mãos movem-se incansáveis durante todo o concerto.Adireita, que seguraabatuta, indicaageografiado compasso.Amãoesquerdatratadaexpressividade.E,nofinal,estáláparacolheroslourosouasbalas.“Omaestroéoresponsávelprimei-ro e último por aquilo que acontece em palco. Parao melhor eparaopior.”Eaítrocam-seospapéis.Nopalco,osmúsicospa-ram de tocar. O maestro vira-se e olha o seu público. Os intér-pretes desviam os olhos da partitura e tentam agora, com ex-pectativa, interpretar o público, areacção do público. E PedroAmaral não esconde, comumsorriso inocente, quase infantil:“Nós gostamos muito de ouvir os ‘bravos’.” W

Durante o ensaio, a entregade Pedro Amaral é absoluta.Em cima, o destaque vai parao espanhol Fernando Llopis, otimpaneiro da orquestra. Em baixo,vê-se a dupla de oboístas a tocar,com Sally Dean e Joel Vaz.

A orquestra é uma micro-sociedadeonde cada um desempenha o seupapel e em que este acaba por moldaros próprios músicos. “Trabalhamospara o resultado conjunto da equipa”,diz o concertino Ana Pereira.

Page 6: REPORTAGEM OrquestraSexta-feira | 15 de Setembro de 2017 | Negócios 10 11 REPORTAGEM daapassaramensagem:“Omaestronãotem500braços, nãopodefazertudo”,explica,bem-disposta

Há várias formas de distribuir os naipes de instrumentos de uma orquestra e estas foram evoluindo ao longo do tempo, à medida que eramintegrados novos instrumentos. Mas o que não muda é a cadeia de comando: o maestro no centro tem ao seu lado esquerdo o concertinoque, por sua vez, tem o campo de vista aberto para cada um dos chefes das restantes secções de instrumentos.

A geografia da orquestra pode variar, mas existe sempre a preocupação de garantir que a cadeia de comando e transmissão da mensagem do maestro funcionadevidamente. Além dos sinais que o maestro vai dando com a batuta e todo o movimento corporal, há um outro trabalho de coordenação menos visível que é feito entreos chefes de naipe. A peça fundamental nessa linha de comunicação é o concertino (primeiro violino), que funciona como uma espécie de braço-direito do maestro.Ele comunica directamente com os chefes de naipe dos vários instrumentos, que depois passam a mensagem aos músicos da sua secção. Os músicos de cordas quenão estão sentados na primeira estante são conhecidos como os tutti e a sua disposição na orquestra vai alternando. Já os músicos de sopro (madeiras e metais) sãodesignados como solistas, para quem os compositores escrevem linhas individuais na partitura. Estes dividem-se entre solistas A e solistas B.

Os violinos dividem-se entre osprimeiros e os segundos. No período

clássico, os primeiros violinosasseguram a melodia, ao passo queos segundos tratam sobretudo doacompanhamento. À excepção dos

músicos da primeira estante, osrestantes cordas são conhecidoscomo tutti e a sua disposição empalco é rotativa semanalmente.

É o elemento mais importante de umaorquestra a seguir ao maestro. Tem

um papel central na transmissão dasideias do maestro, comunicando

directamente com os chefes de naipedos vários instrumentos, através

de linguagem corporal.

É o primeiro oboé que, a um sinaldo concertino, dá a primeira nota (lá)que este retoma e devolve a toda a

orquestra para a última afinação antesdo concerto.

As trompas fazem parte do grupo demetais e têm um papel central. Em

algumas orquestras, a primeiratrompa lidera todos os instrumentosde metais. É um dos instrumentosmais exigentes do ponto de vista

físico, sobretudo labial.

A secção de madeiras é pequenaquando comparada com as cordas,mas é essencial na definição das

linhas melódicas. Frequentemente,os músicos formam um rectângulo,que incorpora um quadrado com

os solistas A de cada instrumento.

Na secção de percussão, há uminstrumento que se destaca que éo tímpano. De tal maneira que, nas

orquestras, há um músicoespecializado que se chama

timpaneiro. Os restantesinstrumentos ficam ao cuidado

dos percussionistas.

O papel do maestro joga-sesobretudo nos ensaios de uma

orquestra. A leitura que os maestrosfazem das obras dos compositores

pode variar, mas a sua intervenção faz--se mais ao nível dos tempos e das

intensidades. Quando em palco,também ajudam o público a sentir

e a compreender a peça.

Além dos violinos, as cordasdecompõem-se entre as violas (nocentro), os violoncelos à direita domaestro e os contrabaixos atrás

destes. Algumas orquestras, como aMetropolitana actualmente, optam por

vezes por colocar os segundosviolinos à direita do maestro.

A geografia da orquestra

Infografia: José Tiny