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Repensando a Tradição e a Modernidade em Moçambique: uma abordagem conceitual. Fabiane Miriam Furquim (Universidade Federal do Paraná) Palavras chave: Modernidade; Tradição; Moçambique. Resumo O que se pretende nesta comunicação é trazer para discussão uma proposta de análise dos conceitos e práticas que envolvem o debate tanto historiográfico quanto sociológico sobre tradição e modernidade no continente africano, tendo um olhar mais apurado em relação a Moçambique. Dessa maneira, e a partir de uma perspectiva interdisciplinar, propõem-se discutir as questões sobre modernidade e tradição, entendendo-as não apenas como conceitos inflexíveis e já concebidos, mas sim como conceitos que podem ser operacionalizáveis e melhor analisados se pensados no contexto histórico deste país e do continente de maneira mais geral. A partir dessa perspectiva, será questionada a visão eurocêntrica que por muitas vezes coloca essas duas categorias como binômios antagônicos, pensando então como elas se constroem. Dessa forma, ao trazer para o debate uma perspectiva histórica que abrange sociedades muitas vezes submetidas a um processo de modernização forçada e cujas consequências ainda mostram as marcas indeléveis do seu passo, poderemos evidenciar aspectos históricos e sociais que justificam a permanência da tradição nesses locais não apenas como um elemento de resistência, mas sobretudo como um elemento dinamizador das práticas culturais e sociais destas sociedades. Práticas que transcenderiam o binômio discursivo e abririam novas possibilidades heurísticas para a compreensão destas categorias. Introdução Os estudos a respeito da África por muito tempo se concentraram mais nas suas relações a partir do colonialismo e com outros continentes, o que começou a se modificar a partir dos anos 1950, como explana P.D. Curtin (1982). Essa perspectiva é influenciada pela visão que os historiadores passaram a ter a partir desse período, encarando que são fruto do seu próprio tempo e que essa característica influi

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Repensando a Tradição e a Modernidade em Moçambique: uma abordagem

conceitual.

Fabiane Miriam Furquim

(Universidade Federal do Paraná)

Palavras chave: Modernidade; Tradição; Moçambique.

Resumo

O que se pretende nesta comunicação é trazer para discussão uma proposta

de análise dos conceitos e práticas que envolvem o debate tanto historiográfico quanto

sociológico sobre tradição e modernidade no continente africano, tendo um olhar mais

apurado em relação a Moçambique. Dessa maneira, e a partir de uma perspectiva

interdisciplinar, propõem-se discutir as questões sobre modernidade e tradição,

entendendo-as não apenas como conceitos inflexíveis e já concebidos, mas sim como

conceitos que podem ser operacionalizáveis e melhor analisados se pensados no

contexto histórico deste país e do continente de maneira mais geral. A partir dessa

perspectiva, será questionada a visão eurocêntrica que por muitas vezes coloca essas

duas categorias como binômios antagônicos, pensando então como elas se

constroem. Dessa forma, ao trazer para o debate uma perspectiva histórica que

abrange sociedades muitas vezes submetidas a um processo de modernização

forçada e cujas consequências ainda mostram as marcas indeléveis do seu passo,

poderemos evidenciar aspectos históricos e sociais que justificam a permanência da

tradição nesses locais não apenas como um elemento de resistência, mas sobretudo

como um elemento dinamizador das práticas culturais e sociais destas sociedades.

Práticas que transcenderiam o binômio discursivo e abririam novas possibilidades

heurísticas para a compreensão destas categorias.

Introdução

Os estudos a respeito da África por muito tempo se concentraram mais nas

suas relações a partir do colonialismo e com outros continentes, o que começou a se

modificar a partir dos anos 1950, como explana P.D. Curtin (1982). Essa perspectiva

é influenciada pela visão que os historiadores passaram a ter a partir desse período,

encarando que são fruto do seu próprio tempo e que essa característica influi

diretamente na sua escrita da História. Nesse sentido, os historiadores passaram a

rever as categorias silenciadas anteriormente pela historiografia, como as mulheres,

questões do cotidiano e também a África, encarando então o discurso de poder que

está envolvido nas escolhas pelos temas historiográficos. Essa quebra de narrativa,

inclui pensar a África a partir de novos métodos de construção do conhecimento, sobre

as pessoas e os povos que eram anteriormente deixados de lado. É a partir dessa

perspectiva que se desenvolve os estudos africanistas que, como aponta Feiermam

(1993), buscam questionar e abarcar essas novas categorias não apenas para

adicionar novas informações para a História, mas também para rever as narrativas e

a forma como são construídos, buscando então quebrar com um pensamento

exclusivamente linear, característico do eurocentrismo e das categorias

metodológicas ocidentais. Nas palavras do autor:

O estudo da história africana nos leva para além das formas de representação histórica, nas quais, a energia que conduz a narrativa tem sua origem na Europa, enquanto a história africana (ou latino-americana) fornece uma cor local, estabelecendo um cenário pitoresco para o drama central. Não há outro modo de se entender a história de Narwimba sem que se penetre profundamente nas raízes da longa história do desenvolvimento das formas sociais na África. (Feiermam, 1993:22)

Foi então a partir desse período que se passou a analisar a África a partir de

seus próprios processos, podendo assim amplificar os conceitos e pensá-los melhor

de acordo com a realidade africana. Entretanto, a maioria dos estudos sobre os

aspectos tradicionais africanos, mesmo com essa guinada nos estudos históricos

estão mais restritas às áreas da antropologia e a ciências jurídicas e políticas, e não

tanto na área histórica. Dessa forma é necessário analisar a tradição e modernidade

sob um olhar interdisciplinar perpassando não apenas a História, mas relacionando-a

com as Ciências Sociais, visto que essa perspectiva interdisciplinar é extremamente

necessária para se estudar temas africanos.

A ampliação dos espaços de pensamentos e criação intelectual abriu

possibilidades para que não apenas a História enquanto um conceito linear e uniforme

fosse revista, mas também possibilitou que conceitos amplamente utilizados tais como

modernidade e tradição fossem criticados e repensados, de forma a aceitar os

processos históricos nos quais foram construídos, bem como a ideologia de

superioridade racial e o eurocentrismo dos quais estavam cercados. O caso de

Moçambique é pertinente para este trabalho, visto que após a independência do país

em meados dos anos 70, houve uma política de modernização da sociedade através

de preceitos baseados no marxismo leninismo que visavam a emancipação dos

homens através da razão, de modo a deixar o obscurantismo1 para trás bem como as

práticas tradicionais, que, na visão do partido, eram obstáculos para a igualdade e

consolidação da revolução. Dessa forma é importante analisar de que maneira os

conceitos de modernidade e tradição são/foram operacionalizados em Moçambique.

Discussão

As políticas modernas não ficaram apenas no campo do pensamento, mas

foram levadas para além da Europa através do Imperialismo. Terence Ranger

(RANGER,1984) aponta que para a imposição da colonização a ideia construída de

“Império” foi culminante no processo de invenção de tradições na própria Europa para

a consolidação de suas próprias identidades. Os colonizadores se baseavam em

tradições inventadas europeias, principalmente em relação aos costumes e da cultura

dita erudita, para formar e se definir enquanto europeus e dessa maneira justificar a

sua posição hierárquica baseada em uma superioridade em relação às outras

sociedades. Assim, justificam através do discurso progressista as atitudes e violências

tanto físicas quanto morais em relação à colônia, bem como reforçavam a intenção

em fornecer um modelo hegemônico que se legitimasse em relação ao resto do

mundo. Da mesma forma, Ranger aponta que ao se depararem com a realidade

africana e não encontrarem semelhanças em relação a imagem (preconceituosa e

racista) que possuíam do continente, os administradores construíam tradições

africanas para a própria sociedade africana, e também europeia, de forma a

diferenciar e diminuir o valor dos modos de viver das sociedades localizadas no

continente. Uma forma de operacionalizar essas ideias era fomentar que nesses locais

os costumes eram rígidos e pouco flexíveis, cercados de misticismo. O que se percebe

é que para colocar em prática os projetos de dominação e exploração, não seria

suficiente somente o uso da força física, mas também se fazia necessário o uso de

1Para a FRELIMO o obscurantismo eram as práticas tradicionais, que utilizavam de elementos como

feitiços para resolver conflitos.

dispositivos que pudessem penetrar na subjetividade das pessoas, de forma a guiar e

regular não só as práticas, mas também as formas de pensar a sociedade.

Esse processo é melhor debatido na obra de Aníbal Quijano quando o autor

discorre sobre o conceito de colonialidade do poder, que aponta para uma

continuidade dos processos de colonização mesmo após as independências

(QUIJANO,2000). O autor se utiliza dessas balizas de conceitualização para as ex-

colonias da América Latina. É evidente que os processos de independência e até

mesmo de colonização dos dois continentes se deram de forma distintas, entretanto

pode-se perceber alguns aspectos de ordem subjetiva que são semelhantes tanto nas

colônias americanas quanto nas colônias africanas. O processo de imposição de

modos de viver e de organização da sociedade é visto em ambos os continentes, o

que tornaria pertinente o uso do conceito de colonialidade do poder.

Dessa forma, vemos que em ambos os continentes o discurso

desenvolvimentista, alimentado pela ideia de progresso e inovação, construído sob a

base de uma teleologia evolutiva, foi muito utilizado como um termo econômico e

simplificado, mascarando o impacto nas questões de relacionamentos político-sociais

dessa forma de ordenamento. Nesse sentido Quijano aponta que quando a partir do

século XIX, a ideia de desenvolvimento culmina com o fortalecimento do capitalismo

pensado como padrão de poder econômico e social desenvolvido mundialmente

revela três categorias de países: desenvolvidos, em desenvolvimento e

subdesenvolvidos, e coloca como característica definidora desses estágios não

somente as práticas comerciais, mas também as práticas culturais. Os diferentes

modos de organizações sociais que não sejam necessariamente pautados no modelo

de Estado-nação centrado em um poder positivo separados por instâncias oficiais de

representação (tribunais, parlamentos e etc.) eram vistos como atrasados e de menor

complexidade. Assim, a instabilidade que os países possuíam eram encaradas como

decorrência das práticas culturais que divergiam das europeias. Essa visão não

contempla os processos históricos que os diferentes países passaram para chegar

nessas configurações de organização social que foram impostas através do

colonialismo. Esse tipo de baliza gera e reforça discursos racistas e preconceituosos

que não contemplam os países fora do eixo europeu, vendo os diferentes tipos de

organização como tribais, regionais, atrasados e autoritários.

O que Quijano assinala, é a necessidade de pensar historicamente a

constituição dos países e de suas configurações sociais. Para isso, o autor levanta

algumas categorias de análise da formação da dita cultura europeia, tendo uma

atenção mais detalhada em relação à constituição dos Estados- Nação modernos na

Europa. Isso se deve ao fato de que o autor aponta que a sociedade capitalista é mais

desenvolvida em países que passaram pelo estágio moderno (aqui se pensa o período

histórico, e não o conceito), e que acabaram por culminar na centralização do Estado-

Nação2. Assim, o Estado- Nação é visto como um processo específico onde a

sociedade capitalista assume determinadas características democráticas

(relativamente limitadas) dentro de um espaço de dominação. Esse processo se deu

na França, por exemplo, com o combate ao Antigo Regime para a instauração de um

governo democrático e dito igualitário. Já em Moçambique essa relação entre Estado-

Nação e desenvolvimento ocorreria pela intermediação do colonialismo, e não como

um “processo natural” da própria sociedade. Dessa forma não se vê um processo de

democratização propriamente dito, mas uma imposição de uma forma de pensamento

sobre outra. Com isso, a elite dos países colonizados tanto no período colonial quanto

do período pós-colonial assume esse discurso de necessidade de centralização e

delimitação territorial e, ao invés de realmente democratizarem o poder, acabam por

reproduzir as antigas estruturas mesmo que sob a capa de uma retórica modernizante.

Muito da análise anterior demonstra a necessidade de se pensar historicamente

as configurações sociais dos países. Entretanto, as balizas temporais utilizadas ainda

se conformam dentro de um padrão eurocêntrico. Assim é necessário repensar essas

questões que dizem respeito da ideia de modernidade. Enrique Dussel, filósofo

argentino, aponta que existe uma diferença entre a modernidade e o mito da

modernidade (DUSSEL, 1994). Para ele, o primeiro se concentra em mostrar o sentido

emancipador da razão moderna articulando os conceitos de progresso, civilização e

domínio de tecnologia; artifícios esses que foram desenvolvidos devido ao processo

histórico o qual a Europa passou, tais como o Iluminismo, a Revolução Francesa e a

2 Aqui é necessário ressaltar que existiam incontáveis processos de centralização de poder estatal em

África mesmo antes do colonialismo. Entretanto essas questões foram por muitas vezes apagadas da

História do continente ou então reduzidas pejorativamente à ideia de conflitos étnicos e tribais deixando

a característica de Estados fortes e centralizados apenas para os processos de unificações europeus.

Revolução industrial que possibilitaram a consolidação dessa ideia específica de

modernidade. Entretanto, o filósofo aponta que essas questões acabavam por ocultar

os processos de dominação e violência que esse pensamento acabava exercendo

sobre as outras culturas, justificando-as a partir do discurso civilizatório. O segundo

conceito, o de mito da modernidade, apresenta a questão do pensamento da cultura

europeia como mais desenvolvida em relação as outras o que justificaria a sua ação

doutrinaria, inocentando a figura do europeu da violência que comete. Dessa forma, o

mito da modernidade seria a justificação das práxis irracional e violenta e não o

processo histórico temporal que alguns países do continente passaram. O que

devemos apreender não é uma dicotomia entre modernidade e mito da modernidade,

mas sim a questão que a modernidade é construída sobre o mito. Assim, ele não critica

a modernidade em si, nem a nega, mas critica a violência física, psicológica e

estrutural que foi exercida através dos dispositivos de dominação europeus, tais como

a escravidão, a diferenciação social pelo racismo e a colonização forçada que

destituía representantes locais de poder e também deslocava populações inteiras de

suas terras originais; políticas essas que foram implantadas nas colônias e ao mesmo

tempo que foram negadas e escondidas devido ao discurso justificatório da

modernidade e do progresso para estabelecer e legitimar as práticas do colonialismo.

Aqui é interessante levantar uma pergunta importante. Se a modernidade é um

fenômeno exclusivo europeu como dito anteriormente, como podemos pensá-la em

outras sociedades que não compõem este espaço e não percorreram este

“preâmbulo” histórico? Para refletir as diferentes realidades é necessário fazer um

exercício de deslocamento conceitual que permita pensar esses conceitos,

trabalhados a décadas por historiadores, sociólogos entre outros intelectuais, como

conceitos sem sentidos fixos. Vemos a possibilidade de deslocá-los temporalmente

para podermos discutir outras realidades. Enrique Dussel aponta para a ideia de que

a modernidade não nasceu necessariamente do processo histórico que vimos

anteriormente relacionado a Europa, mas sim desde a “descoberta” da América, em

1492. O que ele propõe com esse deslocamento é que a modernidade e a

colonialidade são projetos que acontecem simultaneamente, onde a modernidade é

um reflexo da colonialidade e da necessidade de diferenciação em relação ao outro

para poder então dominar e explorar esse outro entendido como inferior. Com isso, a

modernidade passa a ser também um fenômeno diretamente ligado com as colônias

e, principalmente, vemos que o imaginário em torno do mito possui ecos e influências

nos casos de violências e segregações raciais que ainda são visíveis nas ex-colônias.

Ao encararmos essa questão, pode-se pensar no conceito de Trans-Modernidade

usado por Dussel, que aponta para a superação do pensamento moderno. Nele a

violência colonial solapada no mito de modernidade é revelada levando em

consideração tanto as questões físicas quanto subjetivas que interferiram na

sociedade colonial. Ele nega a inocência do caráter civilizador do discurso e insere a

História das colônias dentro da História tida como geral, e não mais como um apêndice

desta. Para ele então é na subsunção dessas categorias que se pode superar o

discurso moderno (DUSSEL, 1994, p. 31).

Assim como o moderno, a questão da tradição e as conceituações feitas em

volta do termo também são rodeadas de ideologias. Muitas vezes esses dois aspectos

(moderno x tradicional) são vistos como duas categorias conflitantes, ainda mais

reforçadas pelo pensamento de progresso da modernidade. Como foi exposto

anteriormente com a junção histórica e co-realização de que acaba por incluir outros

agentes históricos na modernidade, podemos abrir espaço para se pensar na

modernização da tradição, pensamento esse explanado por Peter Geschiere

(GESCHIERE, 2006). Essa questão da modernização da tradição é vista como uma

possível saída para poder se estudar a modernidade africana. Nesse pensamento, a

resistência e permanência das tradições, tais como o lobolo3, a centralidade dos

chefes tradicionais e aos ancestrais, no caso de Moçambique por exemplo, podem ser

encarados como a própria modernidade africana, novamente aqui deslocando o

sentido fixo de modernidade e inserindo-o em outras realidades. Entretanto o autor

alerta para que ao pensar em uma modernidade característica africana, não haja um

processo de excepcionalização dos países e exclusão da História mundial, dessa

forma, ele aponta que ao pensar em uma modernização da tradição não significa

necessariamente pensar em uma retradicionalização da sociedade, mas sim repensar

3 O Lobolo, a grosso modo, consiste na cerimônia de casamento onde o noivo paga para a família da

noiva uma quantia em dinheiro ou em bens para “ressarcir” a família da noiva pela perda de um

integrante.

as categorias que a compõe. Analisando historicamente, percebe-se que a tradição

se adéqua às novas características, tais como a monetarização e os processos de

individualização como símbolos da modernidade, mas com a percepção sobre os bens

e o indivíduo permanecendo ambivalentes. Ao utilizar o conceito de

retradicionalização acaba-se por negar o esforço da população em participar das

mudanças modernas e controlá-las pensando apenas em uma visão vista de cima (os

novos agentes) para baixo, sem inserir as modificações e usos que as populações

criam. Assim, os novos imaginários que misturam aspectos relacionados ao entendido

como tradicional e ao concebido como moderno, não revelam uma saudade ou um

apego irracional, mas demonstram o esforço e pragmatismo da população em lidar

com as mudanças estruturais da sociedade. O autor aponta que este processo não é

exclusivo do continente africano, e que é passível de ser visto nas mais diversas

sociedades do mundo, inclusive na sociedade europeia, reforçando a necessidade de

pensar os trajetos históricos dos países para entender qual a razão de terem

desembocado nas configurações que se encontram.

O caso específico de Moçambique:

De forma prática, e pelo que é possível observar na revista Justiça Popular que

circulou por Moçambique durante a década de 80 como um boletim periódico do

ministério da Justiça, que, segundo os autores, buscava trazer as questões jurídicas

para a população, onde é possível perceber os preceitos do projeto modernizador da

Frelimo; o partido busca se organizar juridicamente, para a aplicação das leis com a

criação de Tribunais Populares, havendo então um maior controle da regulamentação

das práticas e das resoluções de conflito. Esse passo é importante de ser analisado,

visto que usualmente tais conflitos eram resolvidos principalmente pela figura dos

chefes tradicionais, que em alguns casos recomendavam a utilização de rituais, que

eram vistos pelo partido como atrasados e perigosos para a população, visto que

haviam sentenças de morte, amputações e exclusão social. Além do que, os chefes

aplicavam sentenças eles mesmos sem consultar o tribunal, devido o costume usual.

Os chefes tradicionais durante o período colonial permaneceram muitas vezes com

seus cargos, dessa forma a FRELIMO via neles não só a permanência do

obscurantismo, mas também das políticas coloniais. As ações eram vistas pelo

partido como:

Um problema de mentalidade, um problema de falta de esclarecimento, um problema de obscurantismo e ignorância. Um problema de sequelas da sociedade tradicional-feudal (encorajados pelo colonialismo português). (Revista Justiça Popular, 3, 1980:06)

A partir desse trecho, fica evidente que o processo modernizador da FRELIMO4

era baseado em formas de pensamento que se alinhavam com uma visão linear da

História, visando sempre o progresso da sociedade que culminaria em uma civilização

emancipada pela razão. Ao mesmo tempo, se observa a crítica ao sistema colonial,

que também era visto como atrasado, pois oprimia e explorava a população.

Baseado nesse contexto, é necessário discutir de que forma o conceito de

modernidade que influenciou as políticas da FRELIMO e a maioria das

conceptualizações, muitas vezes racistas e eurocêntricas, foram concebidas,

observando as devidas diferenças pensando na questão racial entre as duas políticas.

Também é necessário pensar o porquê da escolha da FRELIMO por esse discurso,

que reforçava e perpetuava o caráter opressor do discurso progressista em relação a

população. Se antes era a dicotomia do colonizador versus colonizado, agora se

observa o Homem Novo moderno versus o Homem tradicional. Em um primeiro

momento, pensaremos a modernidade a partir da visão dos europeus, e

posteriormente, de que forma ele foi aplicado e vivido nas colônias.

Ao pensar a Revista Justiça Popular, observa-se que mesmo com o discurso

de caráter legislativo sobre resolução dos conflitos pelos meios legais em

Moçambique, as pessoas ainda recorriam às práticas de ordem tradicional para

responder os seus conflitos sociais e pessoais muitas vezes misturando os dois

aspectos, o direito positivo e o consuetudinário. Dessa maneira, percebe-se que assim

como a modernidade a tradição também é um conceito flexível e que deve ser

pensando na sua configuração histórica e não atemporalmente como uma teoria

desligada das práxis. Como ex colônia, o país foi diretamente afetado pelo discurso

4 A Frelimo é a Frente de Libertação de Moçambique e foi fundada em 1962, com o título de movimento

nacionalista, a fim de combater o colonialismo português e alcançar a independência moçambicana. Ela permanece no poder até a contemporaneidade, sendo o atual presidente Filipe Nyusi. Sobre a história da Frelimo vide Obarrio (2014), Cabaço (2009) Mondlane (1969), Machel (1977), entre outros.

da modernidade debatido anteriormente e, durante o período socialista, o projeto foi

instaurado pela FRELIMO. Na revista Justiça Popular os discursos proferidos pelo

governo em suas matérias são extremamente explícitos no que diz respeito as ideias

de conduta baseadas na modernidade, principalmente na questão de civilizar e de

guiar os homens através da razão e da ideia de indivíduo em detrimento dos aspectos

tradicionais tidos como atrasados sempre priorizando o discurso de uma só nação,

um só povo que não seria ser dividido em “tribos”.

O discurso latente sobre a nação leva a alguns questionamentos: Como poderia

ser formada em um país recentemente saído da guerra de independência e que

passaria por uma guerra interna nos primeiros anos de independência? Na Revista

Justiça popular a unidade nacional é uma pauta recorrente para reforçar o projeto

homogeneizador de um só povo, que vai contra as “questões tribais” que segundo a

FRELIMO são inimigas do Estado moderno. Michel Cahen (CAHEN, 1994) discorre

apontando que a micro-elite moçambicana moderna foi um produto das características

da colonização portuguesa do século XX. Dessa forma, nos primeiros anos de

governo o plano não foi socializar o poder, mais sim nacionalizar e modernizar a

população vinculando a nação com um processo de modernização conservadora.

Com isso, o slogan “de Rovuma a Maputo, uma só nação” aludindo às fronteiras

físicas extremas do país (Norte a sul), não é só um discurso de unicidade, mas uma

negação das diferenças regionais da população que não são necessariamente

estabelecidas geograficamente pelas fronteiras do país marcadas no período colonial.

Assim, o discurso de união e de modernização da sociedade acabou por não criar

uma identificação da população com o projeto e muito menos uma democratização do

poder e das formas políticas de controle social, mas sim uma nova forma de opressão.

Essa forma de opressão se dá pelo fato do caráter eurocêntrico do debate sobre o

desenvolvimento e os parâmetros da ideia de progresso assumidos pela elite no

poder.

Considerações Finais

Após pensar brevemente a questão do processo autoritário que envolveu a

construção da nação em Moçambique, podemos retomar as elaborações teóricas de

Aníbal Quijano. Para ele, esses parâmetros de desenvolvimento que apontamos

anteriormente configurados com o capitalismo, gerou uma diferenciação entre raças

que foi utilizada como um instrumento de dominação associada a produção cultural e

intelectual nas quais naturalizam como mais desenvolvidas as práticas provenientes

da Europa e como subdesenvolvidas as provenientes de outras regiões. Em

Moçambique a diferenciação entre raças não pode ser pensada da mesma maneira

como Quijano pensou para a América Latina. Dessa forma, foram utilizadas outras

diferenças, tais como a escolaridade, o poder aquisitivo entre outras que são

alimentadas pelo padrão de colonialidade. Para esse autor, o colonialismo foi o

cenário histórico para a constituição da ideia de raça como instrumento de

classificação e serviu como um eficaz mecanismo de dominação juntamente com a

ideia de progresso, de valor do trabalho, meritocracia e outros. Esse pensamento se

mantém mesmo com o fim do período colonial, visto que foi naturalizado nas práticas

cotidianas da população das regiões afetadas pelo colonialismo.

A conjuntura do governo moçambicano era formada por uma elite, que, em sua

maioria, havia vivido algum tempo no exterior e que assumiram esse discurso de

desenvolvimento e progresso. Esse é o movimento de incorporação e de

naturalização do discurso eurocêntrico que Quijano define, entre outros, como

colonialidade do poder importante para entender a permanência do discurso moderno

colonial mesmo após o colonialismo.

A partir dessa discussão, observa-se de que forma a modernidade e a tradição

se configuram tanto no discurso historiográfico, quanto na própria práxis incorporada

pela FRELIMO e que pode ser vista nas diversas matérias que compõem a Revista

Justiça Popular, perpassando, de alguma maneira, esta ideia de colonialidade do

poder a partir da qual podemos problematizar a modernidade e seu discurso mítico e

a permanência após o período colonial, quanto a própria tradição e os discursos que

a compuseram como negativa e atrasada. Sendo assim, a pequena bibliografia

brevemente discutida aqui pode ajudar a procurar respostas se pensarmos em um

deslocamento temporal e numa maior flexibilidade dos conceitos de modernidade

incorporadas a uma crítica ao eurocentrismo e a violência negada do processo

colonial que, por sua vez, não tiram a responsabilidade da elite moçambicana no

processo histórico do país.

Referências

Fonte

Revista Justiça Popular- Boletim do Ministério da Justiça de Moçambique.

Exemplares do 1 ao 13. Disponível em:

http://www.mozambiquehistory.net/justica_popular.php. Acessado em 29 de junho de

2016.

Bibliografia

CAHEN, Michel. Os Outros: Um historiador em Moçambique, Basel, 1994.

CURTIN, P.D. “Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição

à história em geral”. In: KI-ZERBO, Joseph. (coord). História Geral de África: I

Metodologia e pré-história de África. SP: Ática [Paris]: Unesco, 1982

DUSSEL, Enrique. El encubrimiento del otro: hacia el origen del mito de la

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FEIERMAN, Steven. “African histories and the dissolution of world history”. In: BATES,

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GESCHIERE, Peter. Feitiçaria e modernidade nos camarões: alguns

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