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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE UERN CAMPUS AVANÇADO “Prof.ª MARIA ELISA DE A. MAIA” – CAMEAM DEPARTAMENTO DE LETRAS DL PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM LETRAS PPGL MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS DO DISCURSO E DO TEXTO Linha de Pesquisa: Discurso, memória e identidade Julio Neto dos Santos Renovação do discurso sobre o Nordeste e sobre a identidade nordestina através do sincretismo cultural em letras de músicas do Tropicalismo Pau dos Ferros 2012

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE –

UERN

CAMPUS AVANÇADO “Prof.ª MARIA ELISA DE A. MAIA” – CAMEAM

DEPARTAMENTO DE LETRAS – DL

PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL

MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS DO DISCURSO E DO TEXTO

Linha de Pesquisa: Discurso, memória e identidade

Julio Neto dos Santos

Renovação do discurso sobre o Nordeste e sobre a

identidade nordestina através do sincretismo cultural em

letras de músicas do Tropicalismo

Pau dos Ferros 2012

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Julio Neto dos Santos

Renovação do discurso sobre o Nordeste e sobre a

identidade nordestina através do sincretismo cultural em

letras de músicas do Tropicalismo

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras do CAMEAM - Campus Avançado “Profª. Maria Elisa de A. Maia” da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN como um dos requisitos para obtenção do título de mestre.

ORIENTADOR: Dr. Ivanaldo Oliveira dos Santos Filho

Pau dos Ferros 2012

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Santos, Julio Neto dos.

Renovação do discurso sobre o Nordeste e sobre a identidade nordestina através do sincretismo cultural em letras de músicas do Tropicalismo / Julio Neto dos Santos. – Pau dos Ferros, RN, 2012.

197 f.

Orientador(a): Prof. Dr. Ivanaldo Oliveira dos Santos Filho.

Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade do Estado do Rio

Grande do Norte. Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Discurso - Dissertação. 2. Intertextualidade - Dissertação. 3. Nordeste - Identidade - Dissertação. I. Santos Filho, Ivanaldo Oliveira dos. II. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III.Título.

UERN/BC CDD 401.41

Catalogação da Publicação na Fonte.

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

Bibliotecária: Elaine Paiva de Assunção CRB 15 / 492

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A dissertação Renovação do discurso sobre o Nordeste e

sobre a identidade nordestina através do sincretismo

cultural em letras de músicas do Tropicalismo, de autoria

de Julio Neto dos Santos, foi submetida à Banca

Examinadora, constituída pelo PPGL/UERN, como requisito

parcial necessário à obtenção do grau de Mestre em Letras,

outorgado pela Universidade do Estado do Rio Grande do

Norte – UERN

Dissertação defendida e aprovada em 30 de novembro de 2012.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________ Prof. Dr. Ivanaldo Oliveira dos Santos Filho (UERN)

(Presidente)

___________________________________________________________________ Prof. Dr. Elri Bandeira de Sousa (UFCG)

(1º Examinador)

___________________________________________________________________ Prof. Dra. Maria do Socorro Maia Fernandes Barbosa (UERN)

(2º Examinador)

___________________________________________________________________ Prof. Dr. Francisco Paulo da Silva (UERN)

(Suplente)

Pau dos Ferros 2012

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................09

1. O MÉTODO ARQUEOLÓGICO...........................................................................13

1.1 Por que enunciado e não frase ou proposição?..........................................20

1.2 Formação discursiva e a descrição arqueológica dos

enunciados...................................................................................................27

1.3 O arquivo.....................................................................................................30

1.4 A descrição arqueológica e as categorias de análise.................................33

2. ANÁLISE DO DISCURSO: um campo de múltiplas facetas...............................38

2.1 O sujeito e a história....................................................................................41

2.2 Discurso e formação discursiva...................................................................49

2.3 A ideologia...................................................................................................56

2.4 O enunciado................................................................................................61

2.5 Memória discursiva e interdiscurso.............................................................66

2.6 Os gêneros do discurso...............................................................................68

3. TROPICALISMO E A RETOMADA DA LINHA EVOLUTIVA DA MÚSICA

POPULAR BRASILEIRA.....................................................................................81

3.1 Sincretismo cultural e religioso...................................................................88

3.2 Tropicalismo e Ditadura Militar: carnavalização, paródia e a constituição de

novos efeitos de sentidos. ..........................................................................90

3.3 Antropofagia e Tropicalismo: intertextualidades.........................................94

3.4 Os manifestos: Antropofágico e Tropicalista..............................................99

4. A QUESTÃO DA IDENTIDADE: raça, meio e música popular..........................109

4.1 Identidade e pós-modernidade..................................................................112

4.2 Identidade nacional...................................................................................119

4.3 Identidade nordestina................................................................................123

5. RENOVAÇÃO DO DISCURSO SOBRE O NORDESTE E SOBRE A

IDENTIDADE NORDESTINA ATRAVÉS DO SINCRETISMO CULTURAL NAS

LETRAS DAS MÚSICAS DO

TROPICALISMO................................................................................................129 CONCLUSÃO....................................................................................................170

REFERÊNCIAS......................................................................................... .........176

ANEXOS........................................................................................... ..................181

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SANTOS, Julio Neto. Renovação do discurso sobre o Nordeste e sobre a identidade

nordestina através do sincretismo cultural em letras de músicas do Tropicalismo. 197

f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Letras) - Programa de Pós-Graduação em

Letras. Campus Avançado Profª Maria Elisa de Albuquerque Maia, Universidade do

Estado do Rio Grande do Norte, Pau dos Ferros, 2012.

RESUMO

O objetivo deste trabalho é mostrar um novo discurso sobre o Nordeste e os

nordestinos através da análise das músicas dos Tropicalistas. Sabe-se que o

Tropicalismo foi um movimento cosmopolita que abarcou muitas manifestações

culturais na época, mas foi na música que se teve maior êxito. Para empreender a

pesquisa recorremos a Análise do Discurso de vertente francesa (AD),

principalmente nos dispositivos da formação discursiva, da memória discursiva e do

interdiscurso. A formação discursiva para AD é um conjunto de enunciados e de

discursos que se referem a um dado objeto (FOUCAULT, 2008), dando a ele uma

configuração de objeto. A memória discursiva (BRANDÃO, 2004) e o interdiscurso

são as imagens que se resgatam no presente, de algo que já foi dito, mas que no

instante da produção do discurso é resgatado para novos efeitos de sentido. O

interdiscurso é o produto do intercruzamento da memória discursiva quando é

resgatada pelo sujeito em um contexto específico. O método utilizado foi o

arqueológico desenvolvido por Michel Foucault; nele a pesquisa é encarada sempre

como uma forma de pensar que segue um trajeto temático sobre determinado

objeto; também não é a verdade absoluta sobre um determinado fato ou objeto, mas

algo que sempre se pode dizer algo. Utilizamos também a intertextualidade e a

interdiscursividade na esteira de Julia Kristeva (KRISTEVA, 1969) para falar do

resgate e renovação do discurso e das identidades através da retomada de textos e

discursos. O discurso sobre o Nordeste sempre foi escrito, lido e cantado desde a

época de sua formação como um lugar de atraso, de fome, da saudade, de

messiânicos e cangaceiros. A identidade nordestina era vista a partir da região

geográfica em que habitava seu povo, constituídos a partir de um discurso que

configurou o nascimento dessa região (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999). Os

Tropicalistas não se limitaram a esse discurso saudoso e trágico e transportaram o

Nordeste nas letras de suas músicas para o mundo globalizado, cosmopolita e

moderno, fazendo com o discurso sobre o Nordeste e os nordestinos se renovassem

a partir do resgate de sua cultura para o sincretismo cultural dos Tropicalistas, no

qual sincretizava a maioria das manifestações artísticas do país, especialmente o

Nordeste. Podemos concluir que os Tropicalistas colocaram o Nordeste na

vanguarda da cultura, da literatura e da música para o Brasil e o mundo.

Palavras-chave: Discurso. Intertextualidade. Tropicalismo. Nordeste. Identidade.

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SANTOS, Julio Neto. Renovation of the discourse about the Norwest and the

northeastern identify through of the cultural syncretism in letters of music of the

Tropicalism. 197 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Letras) - Programa de Pós-

Graduação em Letras. Campus Avançado Profª Maria Elisa de Albuquerque Maia,

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Pau dos Ferros, 2012.

ABSTRACT

The objective of this work is to show a new discourse about the Northeast and the

Northeasterners through the analysis of the music of Tropicalists. It is known that

Tropicalism a cosmopolitan movement that embraced was many cultural

manifestations at that time, but it was in the music that larger success was had. To

undertake the research we went through the Discourse Analysis of French slope

(AD), mainly in the devices of the discursive formation, of the discursive memory and

of the interdiscourse. The discursive formation for AD is a group of statements and of

speeches that refer to a die object (FOUCAULT, 2008), giving to him an object

configuration. The discursive memory (BRANDÃO, 2004) and the interdiscourse are

the images that they are rescued in the present, of something that was said already,

but that is rescued for new sense effects in the instant of the production of the

speech. The interdiscourse is the product of the intersection of the discursive

memory when it is rescued by the subject in a specific context. The used method was

the archeological developed by Michel Foucault; in it researches is her faced always

as a form of thinking that it follows a thematic itinerary on certain object; it is not also

the absolute true on a certain fact or object, but something that always can one to

say something. We also used the intertextuality and the interdiscursivity in Julia

Kristeva's (KRISTEVA, 1969) mat to speak of the rescue and renewal of the speech

and of the identities through the retaking of texts and speeches. The speech on the

Northeast was always written, worked and sung from the time of its formation as a

place of delay, of hunger, of the longing, of messianic and bandits. The Northeastern

identity was seen starting from the geographical area in that it’s inhabited its people,

constituted starting from a speech that configured the birth of that area

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999). The Tropicalists were not limited to that nostalgic

and tragic speech and they transported the Northeast in the letters of their music for

the world globalized, cosmopolitan and modern, doing with the speech on the

Northeast and the Northeasterners rejuvenated starting from the rescue of the culture

to the cultural syncretism of the Tropicalists, in which syncretized most of the artistic

manifestations of the country, especially the Northeast. We can conclude that

Tropicalists put the Northeast in the vanguard of the culture, of the literature and of

the music for Brazil and the world.

Key-words: Discourse. Intertextuality. Tropicalism. Northeast. Identity.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por tudo que conquistei nessa jornada.

A minha família por me darem o fundamento material empírico para continuar

sempre sem pensar em desistir.

A minha mulher e aos meus filhos pelo amor incondicional que nos une. Isso me

motivou a continuar e ainda me motiva.

Ao meu orientador pelas prazerosas conversas sobre o trabalho de dissertação,

filosofia e música.

À UERN pelo acolhimento que me deu.

À professora Rosângela por sua excelente contribuição em Linguística Funcional e

em Semântica. Vou sentir saudades.

Ao professor Sebastião Cardoso pelas orientações sobre a antropofagia de Oswald

de Andrade.

Aos amigos de turma que muito nos proporcionaram alegria, entretenimento e

discussões calorosas sobre linguística.

Às professoras Edileuza e Socorro Maia pela ótima orientação que me deram na

qualificação.

E agradeço especialmente ao professor Elri Bandeira da UFCG pelas ideias que

motivaram a realização deste trabalho.

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LISTA DE ABREVIATURAS

AAD – Análise Automática do Discurso

AD – Análise do Discurso

AI – Ato Institucional

AIE – Aparelhos Ideológicos do Estado

ARE – Aparelhos Repressores do Estado

CLG – Curso de Linguística Geral

DCE – Diretório Central dos Estudantes

DELOPS - Delegacia de Ordem Política e Social

DEOPS - Departamento Estadual de Ordem Política e Social

DOPS - Departamento de Ordem Política e Social

MPB – Música Popular Brasileira

UNE – União Nacional dos Estudantes

USP – Universidade de São Paulo

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INTRODUÇÃO

O objetivo central desse trabalho é mostrar a renovação do discurso sobre o

Nordeste e sobre a identidade nordestina que está presente em algumas das

músicas dos Tropicalistas (Tropicália, No dia em que vim-me embora, alegria,

alegria, De onde é que vem o baião? Baião atemporal, e Procissão). Nelas se

discorreu sobre a forma como esse resgate é feito pelo discurso tropicalista,

levando-se em conta os recursos textuais, linguísticos e extralinguísticos que

contribuíram em sua constituição.

Para empreender esse trabalho recorremos ao Método Arqueológico

desenvolvido pelo filósofo francês Michel Foucault (2008). Esse método se

apresenta como um modo de pensar determinados objetos a partir de sua

constituição no mundo das ciências humanas. Não é um método com procedimentos

rigorosos e sistematicamente organizados e com resultados matematicamente

fechados em si como alguns métodos clássicos como o de Renée Descartes, por

exemplo.

Antes de tudo, o Método Arqueológico trabalha com a noção de trajeto

temático, no qual se delimita o objeto e se começa a discorrer sobre, partindo de um

ponto X a um ponto Y. Com esse método também não se chega a uma verdade

universal dos estados de coisas do mundo, mas a um resultado provisório, ou uma

resposta provisória ao problema proposto. Nesse método se pensa assim, porque se

supõe que não se diz tudo sobre determinado objeto, e que cada pesquisa contribui

com certa relevância para aclarar nossa vivência sobre determinado fato. Não se

tem a noção de que a pesquisa não foi acabada, mas sim de que há sempre algo a

dizer sobre determinada pesquisa com o passar dos tempos.

Utilizamos como modelo teórico a Análise do Discurso (Doravante AD) de

vertente francesa, na qual muitos dispositivos de análise nos foram úteis para a

investigação. Em primeiro lugar o conceito de formação discursiva que é o conjunto

de enunciados que formam um determinado objeto no mundo das ciências humanas

e é também todo o arsenal de conhecimentos e as influências que o sujeito recebeu

em sua vivência e que forma sua estrutura mental e social, tornando-o capaz de

absorver os conhecimentos sociais em acordo ou desacordo com suas experiências

pessoais e produzir algo que não seja a mera repetência de fatos e dados, mas uma

forma de pensar o mundo através de seu ponto vista pessoal.

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Ao lado da formação discursiva aparecem na AD a memória e o interdiscurso,

que é o que se produz quando se resgata algo já dito e o coloca em um ambiente

novo com a intenção de produzir novos efeitos de sentido. Nesse contexto, o sujeito

resgata uma memória de outra época para produzir seu trabalho ou literalmente ou

por meio de recursos linguísticos e discursivos. Ao ser resgatada, a memória não é

mais a mesma nem tem o mesmo sentido, pois ao se colocar numa enunciação

nova produz novos efeitos de sentido propostos pelo sujeito contemporâneo.

O Tropicalismo como movimento musical e literário do final da década de

1960, ao fazer o resgate de várias memórias e vários discursos inovaram a arte, a

cultura e a música brasileira ao sincretizar tudo isso em suas canções. O

Tropicalismo foi um movimento que colocou o Nordeste e os nordestinos na

vanguarda da música e da cultura do país e do mundo.

O Tropicalismo, que nasceu durante o período da ditadura militar e da pós-

modernidade, duas estruturas antitéticas, assim como o próprio Tropicalismo foi (se

ainda não é!), apesar de muitos acharem um movimento sem comprometimento

social, foi subversivo ao tipo de cultura e sociedade da década de 1960. Em suas

músicas renovaram a cultura e a música do Brasil, contestaram e lutaram contra a

ditadura militar e instaurou o carnaval tropicalista que misturou as várias

manifestações culturais do país em um sincretismo cultural que sincretizava a

antropofagia oswaldiana com poesia de vanguarda, cultura estrangeira com cultura

nacional, o moderno e o arcaico, mostrando que a diversidade cultural e musical do

Brasil é que era sua verdadeira identidade, fugindo aos conceitos de nacionalidade,

brasilidade e civilidade nos moldes da música de protesto.

Com relação à identidade nacional, mostraram através da antropofagia

cultural, da intertextualidade e da interdiscursividade novas formas de compor e

novos efeitos de sentido, ao resgatar o nosso passado antropológico e tropical e

renová-lo com tendências de vanguarda como o rock americano, o Cinema Novo de

Glauber Rocha, o teatro de Hélio Oiticica, a poética radical e o movimento

antropofágico de Oswald de Andrade e as tendências modernas da época.

Os Tropicalistas em suas canções resgataram o Nordeste brasileiro ao trazer

para a cena tropicalista os principais representantes da música e da cultura

nordestina. Caetano Veloso e Gilberto Gil viram no grande Luiz Gonzaga, seu baião

e sua forma de cantar traços de elementos modernos que poderiam dá continuidade

a linha evolutiva da música popular brasileira. Engajados em um projeto de

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renovação da música e da cultura nacional viram que a renovação se daria por meio

do resgate das principais figuras da música como o próprio Luiz Gonzaga com seu

baião, o João Gilberto com a Bossa Nova; na literatura o resgate da poética e do

Movimento Antropofágico de Oswald de Andrade e a poesia concreta dos irmãos

Augusto de Campos e Haroldo de Campos, o rock dos Beatles, dos Rolling Stones,

etc, tudo isso em uma salada antropofágica para renovar a cultura e a música do

Brasil.

A identidade nordestina manifestada na literatura de 1930 e da música de

Luiz Gonzaga foi recriada com processo de retomadas textuais ipsis litteris e pela

temática como bem atesta Samoyault em A Intertextualidade, pela memória

discursiva de Achard (1999) e pela interdiscursividade nos moldes da Análise do

Discurso de vertente francesa e pelos Gêneros do Discurso e pela carnavalização

de Bakhtin.

De acordo com Albuquerque Júnior, a renovação do discurso sobre o

Nordeste e sobre a identidade nordestina só foi contestada e renovada pelos

Tropicalistas, que sendo nordestinos recriam a música resgatando o que o Nordeste

tinha de valor: sua cultura, seu povo, sua música genuína de caráter moderna e as

tradições orais presentes nas manifestações de cunho popular.

Os Tropicalistas foi um dos únicos, senão o único dos movimentos musicais

que buscaram a renovação da música e da cultura do Brasil através do sincretismo

cultural, na tentativa de renovar a identidade do Brasil e do Nordeste e do nordestino

mesmo em face de discursos já sedimentados pelos discursos oficiais, mostrando

que é possível fazer o carnaval alegórico do Brasil, dessacralizando a arte da corte e

ao mesmo tempo denunciado os males da sociedade e por fim, pregando a

liberdade de expressão, a liberdade sexual e a desmitificação dos discursos sobre o

Brasil, mostrando nossa grandeza cultural e musical para o mundo moderno, tanto é

que hoje a MPB é uma das músicas mais ouvidas no mundo, graças ao carnaval

dessacralizador e desmitificador da arte musical dos Tropicalistas.

No primeiro capítulo tratar-se-á da descrição do método arqueológico

desenvolvido pelo filósofo francês Michel Foucault. Esse método de pesquisa

apresenta-se como uma forma de pensar o objeto pesquisado, traçando um trajeto

temático que dê conta da pesquisa. Não é um método infalível, rigoroso, nem

mesmo matematicamente exato, mas flexível e temporal, podendo ser

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empreendidas outras pesquisas ser sobre o mesmo objeto e nem por isso deixa de

ser um método científico.

No segundo capítulo há a apresentação da AD de vertente francesa que será

a teoria utilizada para analisar as letras de músicas do Tropicalismo. Diferentemente

de outras teorias linguísticas que tratavam o fato linguístico observando-se as

estruturas linguísticas para analisar suas partes constitutivas dentro de um sistema

abstrato, formal e imanente da língua como o Estruturalismo e o Gerativismo, a AD

investiga as práticas discursivas dentro da sociedade observando o uso da língua

em situações concretas de comunicação, traçando um perfil social, linguístico e

psicanalítico do sujeito, da sociedade e das instituições sociais.

No terceiro capítulo tem-se a história social do Tropicalismo e sua

contribuição musical para a formação cultural da identidade do Brasil. Nessa história

parecem os grandes festivais de música da década de 1960 pela TV Tupi, a

participação de Caetano Veloso e Gilberto Gil nesses festivais e o lançamento do

movimento tropicalista. São descritos também nesse capítulo as principais

influencias que motivaram o surgimento do movimento como a antropofagia cultural

de Oswald de Andrade, o rock americano, a bossa nova de João Gilberto, bem seus

embates com a ditadura militar.

No quarto capítulo se abordará a questão da identidade discorrendo sobre

como essa era vista no início Brasil do século XX. Iniciou-se a se falar em identidade

no Brasil ao se abordar a questão da raça e do meio, dizendo-se que isso

influenciava na formação cultural e social do Brasil. Depois a questão da identidade

passa a ser observada por meio da cultura. Ainda neste mesmo capítulo, se

discorrerá sobre a identidade e a modernidade, a formação da identidade nacional e

sobre a identidade nordestina.

No quinto capítulo será a análise das letras de música do Tropicalismo, com

vista à renovação do discurso sobre o Nordeste e sobre a identidade nordestina

através do sincretismo cultural observado em suas canções. Neste capítulo serão

aplicadas as teorias do método arqueológico, da AD de vertente francesa e a

questão da identidade.

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1. O MÉTODO ARQUEOLÓGICO

O método adotado neste trabalho é o arqueológico, como passível de análise

do nosso objeto de pesquisa, as letras das músicas do Tropicalismo. Esse método

foi desenvolvido pelo filósofo francês Michel Foucault e não é um método de análise

no sentido clássico que se tem dado ao termo, assim como o de Platão ou Marx,

buscando um padrão científico a partir da análise de dados seguindo padrões

rigorosos de pesquisa, segundo métodos sistematicamente e matematicamente

organizados, sejam eles empíricos ou construídos pelo conhecimento humano.

Foucault tentou estabelecer uma “possibilidade de pensar” (SANTOS, 2010, p. 108)

o objeto a partir de sua constituição para o pesquisador. Nesse caso, sua formação

é feita por uma série de enunciados sobre determinado campo de atividade

discursiva que o constitui como algo possível de análise. Portanto, mais importante

que criar teorias é estabelecer uma maneira de pensar e designar o objeto de

estudo. Segundo Santos (2010, p.108) “o método arqueológico é importante para

captar o não dito, o não pronunciado, ‘a transformação do descontínuo’ da

sociedade contemporânea.”.

Segundo Santos (2010) “A partir de uma perspectiva arqueológica não se

pode falar em método no sentido clássico do termo, como uma técnica de pesquisa

acabada, mas de uma ‘trajetória’” (SANTOS, 2010, p. 108). Para Santos a pesquisa

arqueológica não trabalha com noção que toda pesquisa esteja acabada, ou que

seus métodos sejam infalíveis, mas com a noção de trajeto temático, ou seja, a

análise nunca está pronta e acabada, assume uma posição provisória e relativa da

análise dos fatos, não se configurando, a arqueologia, portanto, como insuficiente

metodologicamente, mas sim buscando uma análise mais próxima possível do

objeto pesquisado, sem esgotar a possibilidade se empreender novas pesquisas no

mesmo campo de investigação. Para Machado apud Santos (2010, p.109) “Com

Michel Foucault a própria ideia de um método histórico imutável, sistemático

universalmente aplicável que é desprestigiada”.

A arqueologia não trata de fatos contínuos, nem trabalha com a noção de

verdade e falsidade, pretende explicitar os mecanismos que constituem os discursos

como saberes e dizeres que são constituídos pelos homens em suas práticas de

linguagem. Não é um saber instituído pela relação de poderes mantidos pelos

aparelhos ideológicos do Estado tal qual a filosofia marxista (esta é uma segunda

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fase da obra e da vida de Foucault) e posteriormente retomada por Althusser, mas

pelo saber/poder obtido pelas relações de micro poderes dentro da sociedade; não

é, portanto, interesse nesse caso, saber quem tem poder e sim saber como se

constrói poder e saber através da prática e manipulação de discursos.

A consistência de aplicabilidade do método se dá, inicialmente, pelo fato de

estarmos trabalhando com discursos produzidos em outra época, já que para

Foucault o objeto pode ser pensado no tempo, sem que isso traga prejuízos ao

pesquisador. Nossa referência será do final do ano de 1967 a dezembro de 1968,

que coincide com a publicação do famoso AI-51 da ditadura militar, que não cessa o

movimento musical tropicalista, porém degreda2 seus principais expoentes artísticos

Caetano Veloso e Gilberto Gil, no entanto, isso trará para a posteridade uma riqueza

infindável de ritmos e formas de compor e cantar que irão influenciar toda a música

nacional a partir de então. Para Araújo apud Santos (2010, p. 108) “Hoje a

arqueologia do saber tem a mais a dizer do que teve na década de 1960. Sua

capacidade heurística não se esgotou.”, ou seja, o método arqueológico é

1 O AI-5 foi o quinto decreto emitido pelo governo militar brasileiro (1964-1985). É considerado o mais

duro golpe na democracia e deu poderes quase absolutos ao regime militar. Redigido pelo ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva, o AI-5 entrou em vigor em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do então presidente Artur da Costa e Silva. O AI-5 foi uma represália ao discurso do deputado Marcio Moreira Alves, que pediu ao povo brasileiro que boicotasse as festividades de 07 de setembro de 1968, protestando assim contra o governo militar. A Câmara dos Deputados negou a licença para que o deputado fosse processado por este ato. Determinações mais importantes do AI-5: - Concedia poder ao Presidente da República para dar recesso a Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas, estaduais e Câmara de vereadores (Municipais). No período de recesso, o poder executivo federal assumiria as funções destes poderes legislativos. - Concedia poder ao Presidente da República para intervir nos estados e municípios, sem respeitar as limitações constitucionais. - Concedia poder ao Presidente da República para suspender os direitos políticos, pelo período de 10 anos, de qualquer cidadão brasileiro. - Concedia poder ao Presidente da República para cassar mandatos de deputados federais, estaduais e vereadores. - Proibia manifestações populares de caráter político. - Suspendia o direito de habeas corpus (em caos de crime político, crimes contra a ordem econômica, segurança nacional e economia popular). - Impunha a censura previa para jornais, revistas, livros, peças de teatro e músicas. Fim do AI-5 No ano de 1978, no governo de Ernesto Geisel, o AI-5 foi extinto e o habeas corpus restaurado. http://www.suapesquisa.com/ditadura/ai-5.htm - acessado em 11 de maio de 2012. 2 Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos, tiveram suas cabeças raspadas e sofreram agressões

pelos oficiais do DOPS. Logo após a prisão, os dois artistas foram obrigados a deixar o país e morar em Londres, onde permaneceram durante dois anos e meio. Tudo isso aconteceu logo após a publicação do AI-5.

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importante para desnudar o não dito e o não pronunciado nas relações sociais da

sociedade em qualquer tempo.

Por se tratarem de discursos produzidos numa época distante da atual, não

se pode, portanto, imaginar que a análise seja histórica, ou mesmo diacrônica. O

objetivo desse trabalho é proceder a uma análise mostrando uma nova história do

Nordeste e do nordestino a partir das letras do Tropicalismo através da análise das

letras das músicas no contexto em que elas foram produzidas.

Então, segundo Foucault realizar essa tarefa é:

Empreender a história do que foi dito [...] refazer, em outro sentido, o trabalho da expressão: retomar enunciados conservados ao longo do tempo e dispersos no espaço, em direção ao segredo interior que os precedeu, neles se depositou e aí se encontra (em todos os sentidos do termo) traído. Assim se encontra libertado o núcleo central da subjetividade fundadora, que permanece sempre por trás da história manifesta e que encontra, sob os acontecimentos, uma outra história, mais séria, mais secreta, mais fundamental, mais próxima da origem, mais ligada a seu horizonte último (e, por isso, mais senhora de

todas as suas determinações). (FOUCAULT, 2008, p. 137).

Nesta perspectiva teórica pretende-se mostrar um mapa arqueológico do

Tropicalismo, que não foi de certa forma dito, já que o sentido pode ser traído e, que

através de inferências pode-se analisar as dispersões enunciativas que formaram o

movimento em sua vertente de identidade sincrética que faz uma renovação do

discurso sobre a identidade nordestina e sobre o Nordeste. Essas inferências serão

feitas a partir teoria da AD francesa, na qual o discurso é um tema que se constitui

no nível social e o linguístico, constituindo, assim, do homem e a sociedade, ou

seja, não há uma verdade absoluta sobre o que é dito, nem mesmo a de seu autor

fundador, já que para a AD o sujeito não é dono de seu dizer. Existirá um autor em

um local social determinado que enuncia seu discurso em busca de novos efeitos de

sentido. Nesse sentido buscar-se-á o que se escondeu por traz da história do

Tropicalismo que não ficou explicitado devido às tramas do discurso traído e que

nesse trabalho se pretende revelar através da análise da história dos não ditos, dos

apagamentos, dos esquecimentos, etc.

Nesse recorte temporal irar-se analisar a arquitetura social e discursiva do

Tropicalismo nas músicas-discurso produzidas pelo movimento e mostrar através de

uma análise indutiva e inferencial, os saberes que o constituíram enquanto

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movimento musical que deu ao Brasil a configuração discursiva renovada sobre a

identidade nordestina e sobre o Nordeste, reagrupando as manifestações musicais

produzidas pelas camadas subalternas da sociedade da época, as influências da

bossa nova, do rock americano e das manifestações culturais oriundas do nordeste

brasileiro.

O método arqueológico não segue uma linearidade temporal, na verdade os

enunciados se justapõem uns aos outros para poder fazer sentido. Não significa que

haja uma linha temporal ou uma cronologia, mas sim um percurso temático

perseguido pelo pesquisador. Como o próprio Michel Foucault assinala, “a ordem

arqueológica não é nem a das sistematicidades, nem a das sucessões

cronológicas.” (FOUCAULT, 2008, p. 167). E afirma “A descrição arqueológica se

dirige às práticas a que os fatos de sucessão deve-se referir se não quisermos

estabelecê-los de maneira selvagem e ingênua, isto é, em termos de mérito”

(FOUCAULT, 2008, p. 167).

Para Foucault é preciso rever a história das ideias que:

Em sua forma mais geral, podemos dizer que ela descreve sem cessar - e em todas as direções em que se efetua - a passagem da não-filosofia à filosofia, da não-cientificidade à ciência, da não-literatura à própria obra. Ela é a análise dos nascimentos surdos, das correspondências longínquas, das permanências que se obstinam sob mudanças aparentes, das lentas formações que se beneficiam de um sem-número de cumplicidades cegas, dessas figuras globais que se ligam pouco a pouco e, de repente, se condensam na agudeza da obra. Gênese, continuidade, totalização: eis os grandes temas da história das ideias, através dos quais ela se liga a uma certa forma, hoje tradicional, de análise histórica. (FOUCAULT, 2008, p. 156).

Então, para Foucault, empreender uma nova visão dos estados de coisas é

necessário abandonar a “histórias das ideias” (FOUCAULT, 2008, p. 156) que é vítima

das continuidades ingênuas 3 do passado como sedimentação das ideias e como se

tudo se estabelecesse em um terreno firme. Para Foucault tudo que foi dito se

assenta em um terreno pantanoso e tudo pode afundar e emergir ao mesmo tempo

causando mudanças que antes não foram percebidas aos olhos e sentidos dos

3 Quando Foucault fala da ingenuidade não está dizendo que todas as ideias contínuas e

cronologicamente organizadas são, de fato ingênuas, mas que há algo a mais para ser lido dentro das descontinuidades históricas, ou seja, encarar os fatos históricos como meras representações de uma época como algo dito e posto dogmaticamente, isso sim é ingenuidade.

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homens que viveram em determinadas épocas. A história das ideias é cega e surda,

nesse sentido, aos acontecimentos e nascimentos mais obscuros da história,

deixando de lado coisas essenciais no aprofundamento para o reconhecimento de

uma história ou várias histórias ao lado de uma história linear.

De um modo geral, a história das ideias se assenta na gênese, continuidade e

totalização dos fatos, obscurecendo outras formas de conhecimento, saber e poder

que estão por trás dessa forma de encarar a história. Empreender uma nova visão

da história é abandonar a história das ideias que toma tudo pela totalidade e

esquece as menores e significativas partes.

Nesse sentido a descrição arqueológica:

É precisamente abandono da história das ideias, recusa sistemática de seus postulados e de seus procedimentos, tentativa de fazer uma história inteiramente diferente daquilo que os homens disseram. O fato de que alguns não reconheçam nessa tentativa a história de sua infância, que a lamentem e que invoquem, numa época que não é mais feita para ela, a grande sombra de outrora, prova certamente o extremo de sua fidelidade. (FOUCAULT, 2008, p. 156).

Descrever arqueologicamente um acontecimento é abandonar a ideia de que

tudo já foi dito de forma absoluta, recusa-se esse postulado e buscam-se nos

enunciados obscuros da história novas formas de sentido que ainda não foram ditas

e, que necessitam ser explicitadas, para mostrar que os discursos são traídos em

sua constituição e sempre se mostram possíveis de novos efeitos de sentido. Não se

está, portanto, querendo desmentir a história das ideias, mas dizer que ao lado dos

discursos oficialmente ditos sobre o Tropicalismo há outros que não foram

explicitados ou não ditos e que, deles podem surgir outras formas de explicar os

fatos sem se basear numa história linear.

Para empreender a descrição arqueológica Foucault propõe que não se

interprete o discurso apenas como documento opaco e obscuro, signo ou

representação de ideias e de pensamentos, mas o discurso como monumento, ou

seja, a arqueologia não é disciplina meramente interpretativa que busca outros

discursos no discurso, mas procura os discursos que constituíram o próprio

monumento como acontecimento. Nesse sentido a arqueologia busca descobrir a

forma como determinados discursos vieram à tona na construção de um

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acontecimento e como outros foram eclipsados e procura justamente descobrir

porque se tornaram discursos oficiais e outros não oficiais.

Para o autor francês, a arqueologia deve:

definir os discursos em sua especificidade; mostrar em que sentido o jogo das regras que utilizam é irredutível a qualquer outro; segui-los ao longo de suas arestas exteriores para melhor salientá-los. Ela não vai, em progressão lenta, do campo confuso da opinião à singularidade do sistema ou à estabilidade definitiva da ciência. (FOUCAULT, 2008, p. 157).

Os discursos não são caracterizados por sua identidade4 estável e

estabilizada pelas práticas do discurso, no sentido de acabamento, mas sim com a

ideia de analisá-los em sua própria especificidade constitutiva, observando como ele

funciona em seu exterior, configurando-se num campo delimitado de enunciados que

caracterizam uma teoria ou uma ciência que:

é aquilo que transforma documentos em monumentos, e que lá onde se decifraram esses traços deixados pelo homens [...], desdobra-se uma massa de elementos que se trata [...] de colocar em relação, e de constituir em conjuntos. Houve um tempo em que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos [...] dos objetos sem contexto [...], tendia a história e apenas fazia sentido pela restituição de um discurso histórico; poderíamos dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história, hoje em dia, tende à arqueologia – à descrição intrínseca do monumento. (DREYFUS & RABBINOW, 1995, p. 57).

A arqueologia parte de problemas metodológicos, no sentido de buscar nos

documentos pesquisados uma forma de analisá-los segundo suas especificidades

constitutivas, ou seja, cada documento como monumento possui características que

lhe são inerentes e que requerem uma pesquisa pertinente a ele. Foucault recusa a

ideia de que métodos rígidos com padrões pré-fixados sejam possíveis a

determinados objetos pesquisados. Cada objeto requer uma pesquisa específica

dependendo do seu grau de profundidade de análise. A arqueologia não trata o

4 A identidade no discurso caracteriza-se por um conjunto de enunciados que se referem a um

determinado objeto, tornando-o um campo semântico relativamente estável e visível aos olhos do pesquisador. Por exemplo: quando se observa que os Tropicalistas usavam a cultura musical nordestina explícita nas suas letras de músicas, dizemos que há aí a constituição de um novo discurso, da renovação, da contestação, da afirmação de uma identidade. A identidade neste sentido se apresenta como sendo a regularidade discursiva sobre determinado objeto.

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monumento como um documento deixado pelos homens, mas estuda as próprias

especificidades constitutivas do objeto, suas relações com a história e suas

implicações na construção dos saberes da sociedade. A arqueologia trata de

conhecer como os objetos são constituídos pelo saber histórico, procurando as

relações que os caracterizam na constituição desses monumentos como discursos

possíveis de serem analisados.

Nessa perspectiva do método arqueológico procura saber por que certos

enunciados são mais evidenciados que outros na constituição dos monumentos e

que o caracterizam como objeto e porque outros enunciados foram rejeitados e

excluídos da relação com esse objeto. Nesse sentido procura-se saber por que esse

e não aquele enunciado foi selecionado na constituição de certos objetos e não

outros; é isso que a arqueologia busca: o não dito e o não pronunciado. A

arqueologia é a descrição dos objetos.

O objeto da arqueologia é o saber. Definir como se estruturam e se

constituem os sistemas de saber pelo discurso é uma tarefa árdua, já que requer a

rejeição a qualquer tipo de epistéme clássica que lida com objetos contínuos e

perenes. Na arqueologia o objeto é mutável e a análise é constante e sujeita a

modificações para acompanhar as transformações sofridas pelos objetos que são

constituídos a partir das manipulações dos saberes sociais e históricos, ou seja, a

análise não é fixa porque os objetos não são fixos nem a história é estanque, mas

sempre sujeita a modificações constantes. Não queremos dizer com isso que o

método arqueológico seja um método anarquista e que esteja acima de todos os

métodos. A ideia central é que nem tudo foi dito sobre determinado objeto e que

nenhuma análise por mais profunda que seja irá dizer tudo sobre determinado

objeto; portanto cada pesquisa arqueológica dá de conta de uma parte do objeto,

sob determinado ângulo de pesquisa.

Na constituição dos objetos e saberes sociais, Foucault enfatiza a questão da

relação e do efeito disciplinar dos discursos. Para ele os saberes e os objetos não se

constituem a seu bel-prazer, mas por um sistema de relações disciplinares que

comandam o que se pode dizer e o que não se pode dizer em determinados lugares

sociais e em determinados campos do saber. Cada ciência e teoria têm seus objetos

definidos a partir das relações estabelecidas por seus enunciados, ou seja, há

enunciados que são pertinentes a certas teorias e ciências e outros enunciados que

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são excluídos. Essas exclusões são feitas pela própria seleção daquilo que pode ser

dito e não dito em um determinado campo do saber.

Nesta perspectiva os saberes são constituídos por campos de enunciados

específicos que configuram a identidade discursiva da teoria ou saber. Cada campo

do conhecimento tem suas particularidades que são delimitadas pelas categorias

enunciativas que formam seus objetos de pesquisa. Dessa forma, pode-se dizer que

a arqueologia para não ser tachada de sem método e objeto trabalha com a noção

de recorte e limite. O recorte e o limite são rupturas com os métodos classificatórios,

rígidos e universais, descartando um método eficaz a toda e qualquer análise. O

importante para a arqueologia é fazer um recorte do campo a ser trabalhado ou

analisado e estabelecer limites para análise ao especificar elementos e categorias

de análise que podem desnudar e fazer emergir os sentidos de um dado campo do

conhecimento.

Recortar e dar limites são imperativos na análise dos saberes na arqueologia.

Significa que toda pesquisa deve ter um recorte do tempo e dos elementos

analisados, assim como limites específicos que configuram sua identidade numa

formação discursiva, mostrando como os enunciados se relacionam uns com os

outros, ao mesmo tempo em que excluem outros enunciados que não fazem parte

ou não têm relação com o objeto analisado.

1.1 Por que enunciado e não a frase ou proposição?

Diferentemente de outras disciplinas como a gramática, que trabalha com a

noção de frase um tipo de manifestação escrita e oral que se relacionada ao sistema

linguístico e só fazendo sentido dentro desse mesmo sistema, ou mesmo da lógica

que tem a proposição como seu objeto de análise e obedece aos critérios de

verdade/falsidade, uma representação figurativa do mundo5, cujas particularidades

restritivas se situam no mundo formal, o enunciado se constrói em bases empíricas e

formais, ficando mais no campo da constituição dos objetos.

Assim, com relação a frase e a proposição, Foucault assinala que:

chamaremos frase ou proposição as unidades que a gramática ou a lógica podem reconhecer em um conjunto de signos: essas unidades

5 A esse propósito ver o Tratactus logico-philosophico do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein.

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podem ser sempre caracterizadas pelos elementos que aí figuram e pelas regras de construção que as unem; em relação à frase e à proposição, as questões de origem, de tempo e de lugar, e de contexto, não passam de subsidiárias; a questão decisiva é a de sua correção (ainda que sob a forma de ‘aceitabilidade’)” (FOUCAULT, 2008, p. 121).

Para o método arqueológico adota-se a noção de enunciado que não é nem

frase e nem proposição, mas uma unidade linguística ou não que tem regras

próprias em sua constituição, relacionadas, não com ponto fundamental, a contexto

ao sujeito e a positividade de cada época na constituição das ciências humanas.

O enunciado, segundo Foucault (2008, p. 121):

Chamaremos enunciado a modalidade de existência própria desse conjunto de signos: modalidade que lhe permite ser algo diferente de uma série de traços, algo diferente de uma sucessão de marcas em uma substância, algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser humano; modalidade que lhe permite estar em relação com um domínio de objetos, prescrever uma posição definida a qualquer sujeito possível, estar situado entre outras performances verbais, estar dotado, enfim, de uma materialidade repetível.

O enunciado em si não descarta a possibilidade de ser constituído de signos,

que é próprio da linguagem, mas se apresenta como uma unidade concreta, não um

signo, mas um conjunto de signos que possui traços com as marcas da enunciação

e do sujeito falante. Ele se permite relacionar com os objetos os quais descreve em

sua visibilidade e dizibilidade, manifestando não apenas o que se é perceptível, mas

também mostrar as vicissitudes que permitem ao analista verificar sua consistência

discursiva. Sua materialidade é repetível, não idêntica a uma frase, mas repetível no

sentido de que cada ocorrência idêntica é diferente, e possui outros efeitos de

sentidos. “O enunciado é, ao mesmo tempo, não visível e não oculto” (FOUCAULT,

2008, p. 121). Nesse sentido, o enunciado pode se referir dentro linguagem6 ao dito

e ao não dito, isso porque para Foucault o que ainda não ganhou uma materialidade

está também no campo do dizível.

6 A linguagem no sentido aqui utilizada é toda e qualquer manifestação da língua pelo homem e em

qualquer situação comunicativa. A linguagem tanto se refere ao mundo da escrita e da fala como a imagens, quadros, pinturas etc.

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Para Foucault:

O enunciado não é, pois, uma estrutura (isto é, um conjunto de relações entre elementos variáveis, autorizando assim um número talvez infinito de modelos concretos); é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles "fazem sentido" ou não, segundo que regras se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita). Não há razão para espanto por não se ter podido encontrar para o enunciado critérios estruturais de unidade; é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço. (FOUCAULT, 2008, p. 98).

Na perspectiva, o enunciado não se confunde com a combinação de

elementos linguísticos referentes aos signos, mas funções e domínios específicos

que se entrecruzam na constituição dos sentidos formando unidades e blocos

heterogêneos, nos quais se realizam sentidos.

Uma das características fundamentais do enunciado, segundo Foucault, é sua

materialidade. A materialidade se refere ao fato do enunciado ter um suporte no

sentido de poder aparecer e não aparecer, seja em um quadro, em um outdoor, em

uma pintura, em uma letra de música. Segundo Foucault “não é simplesmente

princípio de variação, modificação dos critérios de reconhecimento, ou determinação

de subconjuntos linguísticos. É constitutiva do próprio enunciado. É preciso que o

enunciado tenha uma substância, um suporte, um lugar e uma data” (SANTOS,

2010, p. 120). O enunciado tem sua manifestação na vida cotidiana em sua forma

mais peculiar e substancial, seja como ele acontece nas diversas instituições sociais

e nas disciplinas como a medicina, o direito, a psiquiatria e a história, que é pensada

a partir da manifestação do enunciado em sua materialidade.

Como Foucault diz:

A linguagem parece sempre povoada pelo outro, pelo ausente, pelo distante, pelo longínquo; ela é atormentada pela ausência. Não é ela o lugar de aparecimento de algo diferente de si e, nessa função, sua própria existência não parece se dissipar? Ora, se queremos descrever o nível enunciativo, é preciso levar em consideração justamente essa existência; interrogar a linguagem, não na direção a que ela remete, mas na dimensão que a produz; (FOUCAULT, 2008, p. 126).

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Neste ponto Foucault defende que na linguagem há sempre a presença

perceptível (mesmo que não escrito e falado) do outro, da instância produtiva do

discurso e suas intenções quando o produziu. É uma função particular de o

enunciado estar sempre povoado de outros enunciados. A existência material de um

enunciado pode ser, neste sentido, a presença não dita, mas perceptível de outro

enunciado que foi ocultado, cujo aparecimento se detecta pela emergência de um

discurso sobre determinado objeto. Então, o enunciado não vai ao encontro de quem

produz, ou seja, seu autor, mas na direção de seu interlocutor em busca de novos

efeitos de sentido, não está para a fonte e sim para a relação locutor e interlocutor.

O enunciado é uma categoria do discurso. Ele se estrutura a partir de sua

interioridade e exterioridade, no qual ambos são passíveis de análise. O primeiro

refere-se ao fato de ser escrito ou falado em uma dada língua natural, com sua

ordem gramatical própria, seu léxico e sua estrutura sintática. O segundo por seu

sentido e sua relação com o mundo das ideias, podendo ser um produto ideológico

produzido por homens em uma dada época. Constitui um tesouro que se arquiva

nas conversas orais, em documentos oficiais, prontuários clínicos, livros, teses,

dissertações etc. Essa forma de encarar o enunciado explicita uma preocupação

com o sentido sem descartar, entretanto, a sua forma e sua escritura em uma dada

língua natural ou artificial. O que se pretende afirmar é que tem que se observar o

enunciado em sua forma geral e não apenas na sua imanência como faziam os

estruturalistas.

A exterioridade do enunciado revela o tratamento que o analista dá a ele. É a

apreensão daquilo que foi dito por um enunciado dito ou não na história. Todo o

trabalho exterior do enunciado se volta para descobrir a interioridade dos

enunciados para desvendar seus segredos. “Empreender a história do que foi dito é

refazer, em outro sentido, o trabalho da expressão: retomar enunciados conservados

ao longo do tempo e dispersos no espaço, em direção ao segredo interior que os

precedeu, neles se depositou e aí se encontra (em todos os sentidos do termo)

traído.” (FOUCAULT, 2008, p. 137).

Quanto a isso, Foucault (2008, p. 139) afirma:

o conjunto das coisas ditas, as relações, as regularidades e as transformações que podem aí ser observadas, o domínio do qual certas figuras e certos entrecruzamentos indicam o lugar singular de um sujeito falante e podem receber o nome de um autor. ‘Não

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importa quem fala’, mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar. É considerado, necessariamente, no jogo de uma exterioridade.

A questão da exterioridade para o enunciado leva em conta a instância

produtora do saber, enquanto que uma análise linguística se preocupa com os

elementos internos do sistema. A exterioridade permite observar as transformações

ocorridas no tempo e no espaço e analisar sua formação discursiva e a partir disso,

interpretar a história em determinado ponto de dispersão.

Essa unidade à qual o filósofo francês chama de enunciado será um dos

dispositivos de análise, visto que, considera-se as letras de música do Tropicalismo

como enunciados. Nossa análise não é gramatical, e, portanto, não se interessa por

frases e sim enunciados organizados em uma determinada formação discursiva que

possuem efeitos de sentido. A análise em questão vai discorrer sobre a identidade

nordestina sincrética e a renovação do discurso sobre o Nordeste através de

músicas do Tropicalista.

O enunciado é uma unidade do discurso que deixa transparecer sua

identidade de sentido. Através dele se pode procurar sua atuação no campo da

linguagem e descobrir suas várias formas de produção de sentido.

Quanto à identidade do enunciado, Foucault (2008, p. 117) afirma: “A

constância do enunciado, a manutenção de sua identidade através dos

acontecimentos singulares das enunciações, seus desdobramentos através da

identidade das formas, tudo isso é função do campo de utilização no qual ele se

encontra inserido.” Segundo o autor o que forma uma identidade do enunciado são

as suas regularidades constantes, ou seja, cada enunciado está dentro de um

campo específico que o configura como pertinente àquele tipo de discurso. Um

discurso sobre política terá enunciados com seu conteúdo semântico voltado para o

núcleo desse discurso. No mesmo discurso, enunciados que se refiram

especificamente ao campo da psiquiatria não serão mais discurso político, e sim

discurso psiquiátrico. Dessa forma, a identidade está na dispersão desse enunciado

e não em sua sistematicidade cronológica, já que um mesmo enunciado pode viajar

de uma época a outra sem necessariamente pertencer àquela época. O que importa

é sua estabilidade no campo de sua utilização.

Dessa forma, pode-se dizer que os elementos da análise aqui proposta, no

caso as letras de música do Tropicalismo, serão nosso objeto de estudo. Esses

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objetos são bastante heterogêneos não pelo simples fato da linguagem em si só já

ser heterogênea, mas porque a disposição desses objetos é heterogênea em sua

organização textual. A disposição dos enunciados que compõem as músicas é

bastante eclética, no sentido de sua organização interna não obedecer à sintaxe dita

normal. São palavras e enunciados superpostos uns aos outros com a sintaxe

quebrada, com o plano linguístico alterado e com a criação frequente de

neologismos. Embora os enunciados estejam dispostos de maneira aleatória7, eles

se permitem ser organizados em blocos compactos que formam redes de

significação que permitem formular conceitos sobre determinado objeto.

Entretanto, mesmo com essa disposição, esses objetos não são aleatórios,

pois essa suposta desorganização é justamente uma forma de procurar novos

efeitos de sentido através dos enunciados que compõem a música. Todos os

elementos possuem em sua configuração externa elos que os fazem constituir uma

formação discursiva. A disposição dos enunciados obedece à maneira subjetiva do

seu produtor com técnicas inovadoras em busca de novos efeitos de sentido. Essa

disposição remete sempre para o exterior, ou seja, havia nessas ideias Tropicalistas

uma preocupação com a realidade contemporânea relativa à própria história que

eles estavam vivendo, defendendo, interpretando e reconstruindo.

Sobre isso Foucault assinala:

Os enunciados podem estar ligados uns aos outros em um tipo de discurso; tentamos estabelecer, assim, como os elementos recorrentes dos enunciados podem reaparecer se dissociar, se recompor, ganhar em extensão ou em determinação, for retomado no interior de novas estruturas lógicas, adquirir, em compensação, novos conteúdos semânticos, constituir entre si organizações parciais. Esses esquemas permitem descrever não as leis de construção interna dos conceitos, não sua gênese progressiva e individual no espírito de um homem, mas sua dispersão anônima através de textos, livros e obras; dispersão que caracteriza um tipo de discurso e que define, entre os conceitos, formas de dedução, de derivação, de coerência, e também de incompatibilidade, de entrecruzamento, de substituição, de exclusão, de alteração recíproca, de deslocamento etc. Tal análise refere-se, pois, em um nível de certa forma pré-conceitual, ao campo em que os conceitos

7 Esse termo aqui usado não pressupõe uma desorganização da linguagem musical do Tropicalismo

no sentido ser algo caótico; Essa suposta desorganização é a forma que os Tropicalistas encontraram de renovar a música em termos estéticos. Assim, as palavras não estão dispostas em sintagmas e paradigmas, mas são palavras que remetem a outros textos e outras formas de conhecimento e da arte para produzir o efeito desejado.

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podem coexistir e às regras às quais esse campo está submetido. (FOUCAULT, 2008, p. 66).

As letras das músicas do Tropicalismo são elementos heterogêneos pelo fato

de uma mesma música retomar por intertextualidade ou por uma relação

interdiscursiva elementos de outras formações discursivas. A canção - manifesto do

Tropicalismo8, Tropicália, sincretiza, sozinha, os vários “brasis” da época e suas

várias identidades, principalmente, figuras populares e ilustres no meio social,

musical e artístico. Quando se vê o enunciado:

“Viva a bossa Sa, sa Viva a palhoça Ca, ça, ça, ça... (2x)”. (VELOSO, Caetano, 1968, faixa 1).

Observa-se nesse pequeno trecho de Tropicália, é uma espécie de estrebilho

que acompanha a música até o final, além dos efeitos sonoros de repetição das

sílabas finais, dois substantivos: um que representa a Bossa Nova de um lado como

sendo um movimento eminentemente urbano dos centros culturais do Rio de

Janeiro, fortemente influenciada pelo cool e jazz norte-americano que representa a

modernidade do país. Do outro lado o substantivo “palhoça” que representa o Brasil

rural, do atraso, tipo de habitação do norte e do nordeste brasileiro. No entanto, os

dois nomes merecem sucessivamente “viva”, mostrando um sincretismo fortíssimo

da canção tropicalista.

O discurso tropicalista tem uma caracaterística marcante que é a retomada de

outros discursos para “os elementos recorrentes dos enunciados poderem

reaparecer, se dissociar, se recompor, ganhar em extensão ou em determinação,

ser retomados no interior de novas estruturas lógicas, adquirir, em compensação,

novos conteúdos semânticos” (FOUCAULT, 2008, p. 66). Isso era uma forma bem

8 Quando se fala em canção - manifesto está se remetendo por meio da memória discursiva à poética

de Oswald de Andrade, na qual sempre era introduzida por uma espécie de carta ou discurso introdutório de um movimento assim como foi o Manifesto Antropofágico, o Manifesto Pau- Brasil, etc, Então dessa forma a música Tropicália é o discurso introdutório do Movimento Tropicalista. Celso Favaretto (2007, p. 63) diz que “Tropicália é a música inaugural; constitui a matriz estética do movimento”. Pressupõe um projeto de intervenção cultural e um modo de construção que são de ruptura. Em linguagem transparente, configura um painel histórico que resulta em metaforização do Brasil. Desenha uma situação contraditória, um contexto de desarticulação, presentificando as indefinições do país, em que indiferenciadamente convivem os traços mais arcaicos e os mais modernos.

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peculiar do Tropicalismo juntar elementos, às vezes até opositivos, mas que na

formação discursiva por fatores diversos ganhavam novos contornos semânticos. A

ideia era justamente juntar nesta salada discursiva elementos de diversas esferas

discursivas e tentar reagrupá-los em uma mesma formação discursiva. Essa ideia de

sincretizar a cultura musical nas letras do Tropicalismo era uma tentativa de mostrar

o Brasil de norte a sul unidos uma identidade frente a outras nações.

Nesse sentido se fará uma análise do discurso Tropicalista, encarando as

letras das músicas como enunciados que apenas fazem sentido dentro de uma

formação discursiva específica. As formações discursivas do Tropicalismo serão

vistas com relação a uma nova identidade nordestina sincrética e reinvenção do

Nordeste. Entendo que cada forma de expressão dos enunciados se organiza em

formações que, embora dispersas reforçam sentidos de identidade e renovação da

música e da identidade nordestina.

1.2 Formação discursiva e descrição arqueológica dos enunciados

Todo enunciado está inserido em um determinado campo de utilização da

linguagem, ou seja, o discurso não é continuo nem cronologicamente organizado,

mas possui um núcleo comum ao qual se agregam todos os enunciados. Segundo

Foucault (2008, p. 36) “os enunciados diferentes em sua forma, dispersos no tempo,

formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto”.

Todo o saber do homem se constitui a partir dos discursos que o homem

registra ao longo de sua existência. Cada campo de atuação do homem é composto

por enunciados que pertencem a um dado objeto, ou seja, o objeto, que neste

sentido arqueológico, não existe a priori: o objeto nasce a partir do enunciado e sua

configuração dentro de uma determinada formação discursiva.

A formação discursiva permite que se descrevam os enunciados a ela

pertinentes. Ela é um conjunto de enunciados que forma um objeto que é passível

de análise observando sua constituição de sentidos. Essa constituição não obedece

a um sistema cronológico e contínuo de enunciados, mas sim enunciados

descontínuos, ou seja, é na descontinuidade que se analisam a constituição dos

objetos e das identidades do enunciado. Nessa perspectiva se entende que é na

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dispersão que se encontram os sentidos dos enunciados, rejeitando-se, dessa

forma, qualquer tipo de saber acumulado e sedimentado pela filosofia clássica.

O objeto letras de músicas do Tropicalismo é um conjunto heterogêneo de

enunciados que se formam numa formação discursiva que aglomera vários tipos de

discurso. Nesses enunciados pode-se perceber que há uma renovação da

identidade nordestina e uma nova configuração de Nordeste. A formação discursiva

do Tropicalismo tem como elemento integrador as várias intertextualidades e

interdiscursividades que se fundam numa sincretude, ou seja, o Tropicalismo

organizou toda sua temática musical em torno de uma identidade sincrética para

mostrar várias manifestações culturais do Brasil de forma renovada e reinventada.

Várias tendências fazem parte da formação discursiva do Tropicalismo como

o Cinema Novo e suas inovações, a música erudita do maestro Rogério Duprat, o

teatro de Hélio Oiticica, a radicalidade da poesia de Oswald de Andrade, a poesia

concreta dos irmãos Campos, a música de Luiz Gonzaga e Jackson do pandeiro e o

rock dos Beatles.

Neste sentido a formação discursiva é:

melhor compreendida como um jogo de princípios reguladores que formam a base de discursos efetivos, mas que permanecem separados deles. Essa formulação sugere então que palavras, expressões e proposições adquirem seus significados a partir de determinadas formações discursivas nas quais são produzidas (os elementos linguísticos selecionados, como eles são combinados) e, assim o sentido se torna um efeito sobre um sujeito ativo, e não uma propriedade estável. (SARGENTINE & NAVARRO-BARBOSA, 2004, p. 54).

A formação discursiva compreendida nestes termos é uma regularidade em

que os enunciados são aglutinados por dispersão. São enunciados pertencentes a

outros discursos e domínios discursivos que se entrelaçam numa mesma regra,

formação de uma identidade através de um dado de sentido. Como se pode

observar os elementos dispersos só adquirem um sentido efetivo quando estão

dentro de uma mesma formação discursiva, ou seja, um conjunto de elementos que

compartilham limites de sentido. No caso Tropicalista o Cinema Novo traz as noções

de movimentos não lineares das imagens e postas no discurso do Tropicalismo, as

retomadas de elementos de outras formações cinematográficas do cinema italiano e

a constante atualização dos elementos temporais. Nas letras e no áudio de músicas

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há marcas evidentes do visual e do movimento corporal. A formação discursiva

sugere a seleção de certos enunciados e a exclusão de outros que não façam parte

da constituição de sentidos dentro do campo de atuação dos enunciados.

A formação discursiva dentro do contexto Tropicalista é um aglomerado de

enunciados que são remetidos a vários discursos do contexto social da época como

elementos da cultura pop, do rock americano, da literatura poética concretista, da

cultura hippie, dentre outros. É como se as letras do Tropicalismo juntassem

elementos consonantes e ao mesmo tempo díspares para criar novos efeitos de

sentido. Nessa perspectiva de sincretizar vários elementos, os Tropicalistas

buscaram unir o norte e sul do país em suas canções, fazendo surgir uma unidade

de sentido que fazia emergir uma nova identidade para o nordestino dentro e fora de

sua terra e ao mesmo tempo mostrava o Nordeste com outro olhar. A dizibilidade de

um Nordeste que se urbanizava, balançava as estruturas hierárquicas do

coronelismo, desestruturava as antigas bases familiares como o patriarcalismo que

“parece obedecer a duas injunções contraditórias: trabalhar sobre sistemas e, no

mesmo processo, desfazer toda unidade ou trabalhar sobre as regularidades da

dispersão.” (SARGENTINE & NAVARRO-BARBOSA, 2004, p. 55).

Nessa linha de raciocínio, a formação discursiva se assemelha aos gêneros

do discurso de Bakhtin (1998), ou seja, entidades relativamente estáveis que fazem

parte de um determinado conjunto de enunciados particulares dentro de um mesmo

gênero. Os gêneros do discurso não são materializáveis, não possuem um suporte

específico, mas dão origem a todos os outros gêneros. No entanto Foucault não se

preocupou com a noção de ideologia, tal qual os marxistas, nem mesmo em

diferenciar os diferentes gêneros e as esferas de onde eles emergiam, mas apenas

em dizer que os vários domínios da linguagem, seja ela ordinária ou não, podiam se

manifestar em blocos heterogêneos e dispersos, mas que comungavam com uma

unidade de sentido.

Nessa perspectiva, os enunciados são como se fossem gêneros textuais

materializáveis que se materializam em algum gênero de texto e a formação

discursiva como formações discursivas instáveis e imaterializáveis, mas que se

organizam, segundo princípios próprios em campo específicos do conhecimento

como a economia, a política, a publicidade, etc., assim como os gêneros do

discurso.

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As formações discursivas do Tropicalismo serão analisadas como identidades

a partir de enunciados-letras de música que se aglomeram em conjuntos específicos

que buscam novos efeitos de sentido. A forma como essas formações discursivas se

organizam em torno do tema da identidade e renovação do discurso sobre o

Nordeste é emblemática no sentido de que cada uma delas se reporta a um discurso

especifico, assim como resgatam certos tipo de discurso para causar novos efeitos

de sentido, como é, por exemplo, o resgate da poesia oswaldiana e da bossa nova

de João Gilberto.

1.3 O arquivo

Para AD de linha francesa é muito importante à noção de arquivo. O arquivo

não se confunde com o conjunto de textos deixados pelos homens ao longo da

história vivida, não é o rastro deixado pelas gerações para que as gerações

posteriores possam estudar.

Para Foucault o arquivo não é:

a soma de todos os textos que uma cultura guardou em seu poder, como documentos de seu próprio passado, ou como testemunho de sua identidade mantida; não entendo, tampouco, as instituições que, em determinada sociedade, permitem registrar e conservar os discursos de que se quer ter lembrança e manter a livre disposição. Trata-se antes, e ao contrário, do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não sejam simplesmente a sinalização, no nível das performances verbais, do que se pôde (sic) desenrolar na

ordem do espírito ou na ordem das coisas; mas que tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo. (FOUCAULT, 2008, p. 146).

Em Foucault a noção de arquivo não é a materialidade deixada pelos homens

e pelas instituições, mas as regras segundo as quais fizeram emergir esses

discursos sobre determinado objeto, ciência ou teoria. O arquivo surge, nesse

sentido, através de um jogo de performances verbais que atuam regidas por

determinadas leis ou ordens do discurso que apareceram segundo relações

manifestadas no nível do discurso.

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Então, segundo Foucault:

O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas. (FOUCAULT, 2008, p. 146).

Para a noção de arquivo é imperativo a dispersão, porque o arquivo não é

algo que é dito e se sedimenta em forma de algum tipo de documento. Ele é

formado por enunciados que surgem a partir de regras específicas, por isso não

permanecendo inerte e parado no tempo. A noção de arquivo explica o porquê de

certos enunciados aparecerem de forma singular como um acontecimento e por que

outros são ocultados. Essa noção de acontecimento e singularidade é que torna o

arquivo como um monumento a ser estudado em qualquer época, já que ele não se

confunde com um documento, ele é percebido através de sua dispersão,

aparecimento e ocultamento, como um acontecimento singular.

O arquivo não se acumula como uma massa amorfa e empoeirada pelo

tempo; ele surge a partir de relações estabelecidas segundo ordens estabelecidas

pela sociedade. Não permanece igual, mas como algo passível de desvelamento de

seus não ditos, já que o sentido escapa às formas e às formações discursivas e, é

regido segundo regularidades específicas.

Para Sargentini & Navarro-Barbosa, o conjunto de regras que definem o

aparecimento de um enunciado num arquivo é a priori histórico [itálico do original]

que é desenvolvido graças à positividade, um campo que estabelece as identidades

e formas de continuidades temáticas e jogos de conceitos polêmicos. Para ela a

priori histórico são “as condições de emergência dos enunciados, a lei de sua

coexistência com outros, a forma específica de seu modo de ser, os princípios

segundo os quais subsistem, se transformam e desaparecem. O que chamo de a

priori histórico é o conjunto das regras que caracterizam uma prática discursiva.”

(SARGENTINE & NAVARRO-BARBOSA, 2004, p. 40). Para os autores o a priori

histórico é um conjunto de regras específicas que fazem surgir os enunciados no

arquivo, ou seja, seu aparecimento e desaparecimento, graças a princípios que

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regulam sua coexistência com outros enunciados caracterizados pela prática

discursiva.

O conceito de arquivo para AD é o termo que pode unir todos os outros

conceitos de enunciado, conjunto de enunciados, formações discursivas, discurso,

prática discursiva criando uma hierarquia que regula os espaços discursivos e as

práticas discursivas dentro de um discurso na história.

Para Foucault:

O domínio dos enunciados assim articulado por a priori históricos, assim caracterizado por diferentes tipos de positividade e escandido por formações discursivas distintas [...] é um volume complexo em que se diferenciam regiões heterogêneas e em que se desenrolam, segundo regras específicas, práticas que não se podem superpor. Ao invés de vermos alinharem-se, no grande livro mítico da história, palavras que traduzem, em caracteres visíveis, pensamentos constituídos antes e em outro lugar, ternos nas práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização). São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que proponho chamar de arquivo. [...]. Trata-se do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, ha tantos milênios [...] tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo. (FOUCAULT, 2008, p. 147).

Dentro dessa perspectiva, o arquivo é constituído na história pelos a priori

históricos, ou seja, um conjunto de regularidades específicas que determinam cada

campo do saber constituído. Os saberes no arquivo são constituídos pela

positividade da época e pelos jogos de memória e identidade que caracterizam cada

formação discursiva com seu objeto. Nessa linha de raciocínio, o arquivo se constitui

nas relações de saber e poder que aparecem e desaparecem graças às relações da

utilização dos discursos por homens de cada época, não como fonte e origem do

saber e poder, mas como autores sociais que falam a partir de uma da formação

discursiva.

O arquivo, para este trabalho serão algumas músicas do movimento

Tropicalista, no período de 1967 ao final de 1968, e outras de períodos posteriores,

mas que tem a ver com a temática aqui defendida como “Sampa” “Baião atemporal”

e “De onde é que vem o baião”. Do total serão analisadas seis músicas: três de

Caetano Veloso, executados por ele mesmo e, três de Gilberto Gil, sendo uma

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delas, “De onde é que vem o baião” é interpretada por Gal Costa. Há ainda outras

músicas que serão submetidas a paralelos e comparações com as músicas

tropicalistas como “Triste Partida” de Patativa do Assaré e cantada por Luiz

Gonzaga, “Baião” de Luiz Gonzaga, dentre outras que serão citadas nas categorias

de análise.

Essas músicas serão tratadas como enunciados que foram produzidos por

autores sociais da época supracitada e que se caracterizaram como parte de um

movimento em busca de renovação e experimentação no campo das artes e que,

apesar das atitudes de rebeldia relativas às identidades, pode-se inferir, a partir do

discurso e da formação discursiva, que hoje os saberes produzidos não são

aleatórios e ao devir dos falantes, mas se caracterizam por um jogo de identidades

constituídas pelo discurso nas relações de saber e poder.

Nesse arquivo musical serão selecionadas algumas músicas que

caracterizaram o movimento com relação à renovação do discurso sobre o Nordeste

e sobre a identidade nordestina, bem como o envolvimento social deste movimento

com relações ideológicas que o fomentaram.

1.4 A descrição arqueológica dos enunciados e as categorias de

análise

Para análise arqueológica do Tropicalismo selecionamos as músicas que

passaremos agora a explicitar o seu como e o porquê.

Será tomada como ponto inicial para análise do Tropicalismo com relação à

renovação do discurso sobre o Nordeste e sobre a identidade nordestina através do

sincretismo cultural a música Tropicália. Nessa música os Tropicalistas sincretizam

de forma brilhante o seu projeto tropical: mostrar que as produções culturais

refletidas na música do Brasil se organizam em blocos heterogêneos de formações

discursivas que integram todas as partes do país. A análise vai mostrar que não há

nenhuma manifestação cultural superior uma a outra, mas que todos produzem

cultura a partir de dados de sua realidade simbólica e em consonância com outros

elementos de fora para caracterizar sua identidade. Nessas músicas se juntam

semanticamente os vários brasis em sua produção musical, mostrando que o

Nordeste tropical não é aquele do atraso, da fome, da miséria e de gente rude,

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ignorante e atrasada, mas um Nordeste realimentado pela urbanidade e pela

industrialização com requintes da cultura estrangeira, mostrando que as identidades

não se constituem pela cor nacional como queriam os romancistas da década de

19309, mas justamente pela junção de elementos de outras culturas que influenciam

diretamente na forma de falar, vestir, comportar-se e de produzir música.

A outra música será Procissão de Gilberto Gil. Nela destacaremos a

religiosidade nordestina da qual o compositor irá destacar como sendo Deus quem

manda, protege e dá coisas ao povo, ao lado da versão dos Tropicalistas de que

quem vive no Nordeste tem que fazer um jeitinho para viver, ou seja, deve procurar

maneiras de cultuar a Deus e buscar melhoras para si, tirando um pouco dessa

visão teológica da vida no Nordeste. Há na música inclusive o enunciado que diz

que não se deve esperar a morte para viver melhor, que aqui na Terra temos que

arrumar um jeito de viver melhor, explicitando que a visão católica de paraíso é

equivocada e que serve apenas para alimentar aqueles que almejam se manter no

poder: “Eu também tô do lado de Jesus/ só que acho que ele se esqueceu/ de dizer

que na terra a gente tem/ de arranjar um jeitinho pra viver” (GIL, Gilberto, 1967, faixa

10). Nessa música Gil mostra que esse “jeitinho de viver” é uma nova maneira de

mostrar um Nordeste não livre de suas tradições religiosas, mas sincretizando

religiosidade e revolução social de cunho mais urbano e cosmopolita para

desintegrar esse tema como sendo determinante da vida do nordestino, ao mesmo

tempo em que mostra um nordestino não como vítima do destino e sim como

controlador de sua vida e sem esquecer suas tradições religiosas.

Em Baião atemporal e No dia em vim-me embora há uma referência explícita

à noção daquela saída do nordestino de seu torrão natal que é bem caracterizada na

música Triste partida de Patativa do Assaré, na qual há uma dose exageradíssima

de saudosismo ao sair de sua terra. Na versão Tropicalista essas coisas não têm

9 Albuquerque Junior em Invenção do Nordeste e outras artes afirma que o regionalismo foi mais que

um conceito ideológico para categorizar o Nordeste como espaço da fome, da miséria e, por conseguinte, da saudade. Houve uma sedimentação imagético-discursiva dos discursos e dizibilidades sobre a região Nordeste em muitos romances regionais como são os casos mais significantes como Vidas Secas de Graciliano Ramos, O Quinze de Rachel de Queiroz, dentre outros. O importante a se destacar nessas obras é que além de uma resposta aos movimentos sulistas de modernidade, e das discussões retóricas em torno da identidade nacional e regional, elas representaram a sedimentação de uma identidade para a região Nordeste tal qual mostravam seus personagens mais representativos e suas obras. Hoje essa é uma ideia ainda tão bem concebida que mesmo com toda produção cultural do Nordeste em termos de modernidade, é assim que ainda somos vistos: como Fabianos e Sinhás famintos, magros e secos de sede, sem instrução, estando esses personagens mais próximos de animais que seres humanos.

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mais razão de existir, nem mesmo os paus-de-arara, porque tudo muda e se

transforma de uma época para outra sem necessidade de ficar batendo em um

sentido que já se esvaiu, o lamento da saída de sua terra. Tudo se transforma com o

tempo, mas mantendo intacta a sua consciência, mas com uma nova roupagem que

pode estar ou não de acordo com a globalização do mundo.

Outras músicas que serão exploradas com a ideia de renovação do discurso

sobre o Nordeste e os nordestinos são De onde é que vem o baião, de autoria de

Gilberto Gil e cantada por Gal Costa. Alegria, alegria e Sampa, esta apenas como

elemento de comparação. Ambas compostas e cantadas por Caetano Veloso.

As músicas citadas acima constituem o arquivo de análise. Os elementos a

seguir são as categorias de análise que serão exploradas neste trabalho.

CATEGORIAS DE ANÁLISE

A formação discursiva: será descrita a formação discursiva de cada autor e

como se deu a construção das músicas, levando-se em conta a positividade

de cada época, bem como o tipo de arquivo selecionado por cada compositor

dentro da memória discursiva. Nessa perspectiva, serão analisados os

aspectos sociais e ideológicos que os levaram a pensar na hora de compor

suas canções e nelas detectaremos a presença da renovação do Nordeste

através da música. A formação discursiva é a formação de cada autor,

levando-se em conta os processos sociais e psicossociais que influenciaram

na constituição do movimento tropicalista.

A intertextualidade e a interdiscursividade: serão dois elementos

imprescindíveis, pois é através deles que se pode ver a presença de um texto

no outro, a retomada de um texto através de outro, assim como a retomada

de discursos através da memória discursiva que compõe o arquivo de cada

autor e época. Através da formação discursiva será descrita também a

interdiscursividade, que é o intercruzamento dos vários discursos que cruzam

as formações discursivas para poder se fazer comparações entre as

composições tropicalistas e de outros artistas ligados ao mesmo tema. A

intertextualidade é uma renovação dos discursos através das retomadas de

texto, as quais podem ser atribuídas têm muitos sentidos, já que podem ser

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recriadas em forma de deboche, paródia, pastiche, etc. Importante que a

retomada ao mesmo tempo em que renova o discurso, também o faz de

acordo com as predisposições da formação discursiva de cada autor. São

esses processos, a intertextualidade e a interdiscursividade, o impulso criador

que renova a linguagem e o discurso com o passar dos tempos.

A ditadura militar: será uma categoria analisada levando em conta os

deslizamentos de sentido, os ocultamentos, as ironias, metáforas e muitas

outras formas de pensar que os Tropicalistas usavam para fugir da censura.

Nesta também explicitaremos a ideologia dominante representada pelos

militares e a ideologia das classes universitárias pensantes que idealizavam

um Brasil renovado sem a intervenção da base patriarcal, arcaica que

tentavam dar ao Brasil a cara de um país atrasado culturalmente. O golpe

militar representou um atentado terrorista à cultura do país. Seus censores

proibiam qualquer tipo de manifestação em prol da democracia. Para fugir da

censura os Tropicalistas e outros artistas da época precisavam trabalhar bem

a linguagem. O processo de criação era uma verdadeira obra de arte e

verdadeiros labirintos para os que buscavam nas músicas algo que tentasse

falar mal da ditadura militar. Foi um elemento muito importante para o impulso

criativo dos Tropicalistas. Para fundamentação desse item utilizaremos os

textos do escritor Elio Gaspari.

A antropofagia cultural: nas músicas iremos mostrar a presença da

modernização do Brasil e, consequentemente, do Nordeste nas músicas dos

Tropicalistas, com a incorporação de elementos estrangeiros e

contemporâneos à época em que o movimento aconteceu. Uma das formas

de incorporação será a antropofagia oswaldiana, segundo a qual se deglutia a

cultura estrangeira conjugada com a cultura nacional, em oposição àqueles

que pensavam o Brasil apenas sob a forma de protestos e com elementos

musicais característicos do Brasil, rejeitando-se as inovações do mundo

moderno e do mundo exterior. A antropofagia previa a junção das culturas

sem preconceito, ao mesmo tempo em que promovia o renascimento do país.

O Tropicalismo também representou o nascimento do Brasil para as artes

contemporâneas, mostrando nossa cultura através de procedimentos

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antropofágicos, em que não se separavam os elementos de nossa cultura e

de outras culturas, mas sim os reunia em um único bloco heterogêneo

renovado e moderno.

Renovação pela carnavalização: a carnavalização dilui o discurso oficial

traduzindo-o em formas cotidianas, mostrando suas fraquezas e ao expor a

cultura oficial, a carnavalização tem o poder de dessacralizá-la e desmitificá-la

para depois renová-la. Essa foi uma das formas mais marcantes do

Tropicalismo: mostrar o carnaval da cultura brasileira, dessacralizando a arte

e a cultura para um mundo moderno e sincrético. Sua postura mostrava a

face de um país rural e em vias de desenvolvimento que resistia aos

elementos da pós-modernidade. O Tropicalismo representou a renovação da

cultura e da sociedade através da carnavalização.

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2. ANÁLISE DO DISCURSO: um campo de múltiplas facetas

Durante o século XX, surgiram muitas teorias para explicar o fenômeno

linguístico e seus desdobramentos e suas aplicações no campo das ciências sociais

e humanas. Essas teorias pretendiam separar o estudo da linguagem do âmbito da

filosofia, da matemática e da lógica, dando ao estudo da linguagem um objeto de

estudo definido.

A primeira das grandes teorias linguísticas que deu ao estudo da linguagem

um status científico e com objeto de estudo definido foram os estudos do suíço

Ferdinand de Saussure. Para Saussure a língua devia ser estudada sob a forma de

dicotomias, ou seja, cada parte deveria ter duas partes indissociáveis. Assim foi que

com a publicação póstuma do Curso de linguística Geral, doravante CLG,

apareceram os termos diacronia/sincronia, langue/parole, sintagma/paradigma,

significante/significado, mutabilidade/imutabilidade. Pela primeira vez aparece,

também, a noção de signo linguístico com uma definição de cunho científico

baseado no conceito de arbitrariedade10 e aplicado à descrição do sistema

linguístico. No CLG a língua é um sistema abstrato de signos linguísticos, ou seja,

para Saussure importava o estudo da língua enquanto sistema de signos, o que

ocasionou a primeira delimitação de estudos da linguagem.

Neste ínterim do sistema, Saussure, ao delimitar a língua como objeto da

linguística, exclui o sujeito, a história e a política, sob a alegação de que esses

elementos não eram essenciais ao sistema, visto que eram exteriores ao sistema

linguístico e não intervinham no estudo sistemático deste. A língua era

autossuficiente, não necessitando de nada que fosse externo. De fato, a maioria das

teorias linguísticas surgidas depois do CLG ou retomavam os postulados

saussurianos ou o refutavam. A principal justificativa das grandes teorias linguísticas

surgidas depois de Saussure para retomar/refutar sua metateoria é que o mestre

genebrino ignorou, grosso modo, a fala, a cultura e a sociedade. Baseadas nisso, as

grandes teorias se engajaram em por no centro das discussões linguísticas esses

componentes que Saussure não havia colocado.

10

A arbitrariedade não é algo novo no campo da linguagem. Entre os gregos já havia grande discussão sobre a natureza e a origem da linguagem. No entanto essa noção convenção aparece pela primeira vez no livro O Crátilo do filósofo grego Platão, no qual aparece a linguagem como natural, convencional e por último, a posição de Platão, de que a linguagem comporta elementos que lhe são naturais e, ao mesmo tempo, convencionais.

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39

No estudo da fala surge a teoria dos Atos de fala e a Análise da Conversação.

A Etnografia reconhecia a cultura e a língua como elementos imprescindíveis na

análise linguística; A Sociolinguística trabalha com a noção de que língua e

sociedade são elementos indissociáveis e, portanto, não podendo um existir sem o

outro, etc.

Todas as teorias pós-saussurianas, embora incluam em sua análise um

componente extra como a sociedade e a cultura, todas trabalham com a noção de

língua e fala. A língua como sistema regulador11 das atividades de linguagem e a

fala como manifestação individual da língua na sociedade. Ambos essenciais e

indissociáveis na produção dos saberes e dizeres.

Surge no meio dessas teorias supracitadas uma disciplina chamada de

Análise do Discurso que, embora considere e reelabore a noção de fala postulada

por Saussure, assume um caráter múltiplo, já que não leva em conta apenas a fala,

mas também, o social e o linguístico e em sua última fase a Psicanálise. O termo

central da análise agora se chama discurso, que não é nem língua e nem fala, mas o

discurso como elemento constitutivo proferido por um sujeito socialmente

representado pela linguagem e atravessado por outros vários discursos sociais.

Ao lado do social e do linguístico surgem outros termos da epistéme

discursiva como a noção de sujeito, a formação discursiva, a psicanálise fruto do

inconsciente freudiano, a ideologia, a heterogeneidade discursiva, a memória

discursiva e o interdiscurso.

A AD pretende ser uma disciplina ampla e multidisciplinar onde os vários

discursos são estudados de forma interdiscursiva, mostrando que a sociedade,

assim como o sujeito são construções representadas pela linguagem em forma de

discursos que são produzidos socialmente. Essas noções fazem de alguma forma, a

AD ser uma disciplina dispersa e sem objeto de estudo delimitado, dado a

diversidade de procedimentos e conceitos que manipula no trabalho com a

linguagem e o simbólico.

A AD surge como centro das preocupações com o estudo científico da

linguagem a partir dos formalistas russos que, tentando superar as análises que se

11

Na verdade preferimos o termo regularidade por ser mais abrangente e plausível para dizer que o sistema linguístico nunca foi abandonado, porém não foi também prioridade e ferramenta única de análise linguística. É preciso não esquecer que o sistema linguístico de uma língua é o responsável por manter a identidade dessa língua e não retardar os processos de dialetização e inclusive, novos estados federados e separações dentro de um mesmo país.

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pautavam somente sobre a estrutura da frase tal qual a linguística inaugurada por

Saussure, operavam sobre o texto, buscando neles encadeamentos transfrásticos

que superassem abordagens de cunho impressionística e filológica, mas ainda se

pautando ao estudo interno do texto e não indo ao encontro da exterioridade do

mesmo, ou seja, partindo para uma análise mais social, do sujeito falante e das

formações linguageiras.

Embora haja uma ruptura dos formalistas russos quanto ao estudo da

linguagem em relação ao estruturalismo que basicamente estendia suas análises à

frase, eles não ultrapassam os limites do texto, se preocupando com os elementos

que interligam as partes internas do texto e, embora seus trabalhos sejam muito

importantes, não se pode falar em uma análise do discurso tal qual será concebida

posteriormente. Estes só se detiveram ao estudo interno, sua forma de encarar o

fenômeno literário deu margem aos primeiros analistas que investigando os

processos exteriores ao texto puderam perceber que tudo estava em forma de

discursos, e que a sociedade como um todo era constituída de discursos, fato este

que levou esses analistas a acreditarem numa forma de estudo que ultrapassasse a

frase e o texto, chamando agora tudo de discurso.

A palavra discurso aparece pela primeira vez na década de 1950 em um

trabalho de Harris (Discourse analysis, 1952) de um lado ligado à corrente

americana dos estudos sobre a distribuição dos constituintes imediatos da frase e

tem cunho imanente, já que se limitava ao estudo da estrutura interior do texto, sua

constituição interna e uma preocupação com o sistema linguístico. E embora muito

frutífero seu trabalho sobre os constituintes imediatos da frase e do texto, ele se

prende muito ao sistema linguístico, operando com variantes internas ao texto. De

outro lado a AD de linha francesa que não descarta o estudo do texto, mas amplia

este estudo colocando também como preocupação os fatores exteriores ao texto

que devem ser levados em conta na hora da análise linguística. Esses fatores levam

em conta tanto o social como o linguístico na análise de textos, bem como seu

produtor e as condições de produção dos enunciados.

Como assinala Brandão (2004, p. 16) a AD “Inscreve-se em um quadro que

articula o linguístico e o social, a AD vê seu campo estender-se para outras áreas do

conhecimento e assiste a uma verdadeira proliferação dos usos da expressão

‘análise do discurso’”, ou seja, a AD tenta unir em seu esboço teórico o linguístico

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em termos saussurianos e o social, isto é, incluir em sua análise as construções

sociais que usam a linguagem no seu dia a dia.

O termo discurso sugere não só um sistema linguístico regido por regras que

lhe são próprias, mas por um conjunto complexo e multifacetado de elementos de

outras disciplinas como a sociologia, a história, o direito, a medicina, a psicanálise,

dentre outros. A ideia central é conjugar os elementos linguísticos do sistema

defendido por Saussure com a teoria social do discurso, ou seja, investigar como os

discursos produzidos por meio da língua na sociedade influenciam na constituição

da própria sociedade, do sujeito e da própria evolução da língua.

2.1 O Sujeito e a história

O sujeito é uma das preocupações centrais da AD. Pensar em sujeito para AD

é rever um quadro bem amplo de teorias que refutando postulações da linguística

imanente bem ao gosto dos estruturalistas, principalmente nos trabalhos de

Ferdinand de Saussure, introduziram nas análises linguísticas o sujeito produtor do

discurso, que é ao mesmo tempo produtor e constituído pelo discurso. Ao refletir

sobre o sujeito se põe em xeque a questão da língua; não a língua da epistéme

clássica de representação da realidade e de estados de coisas como na metáfora do

espelho de Wittgenstein, mas numa visão demonstrativa da língua. A língua como

representação da realidade existe por si só e determina os estados de coisas do

mundo, inclusive o sujeito.

Não é que nas reflexões sobre a língua numa epistéme moderna descarte-se

o valor da língua, mas de certa forma abandona-se a ideia da língua como sistema

abstrato de signos linguísticos, no qual se estabelecem relações lógico-semânticas

dentro desse mesmo sistema e, se abre para uma visão mais demonstrativa da

língua, na qual emerge a função do sujeito produtor de discurso, ou seja, há certa

relação entre a língua, o homem e a sociedade; a língua é o meio de interação entre

esses elementos.

Um dos precursores da noção de sujeito rumo a uma análise para o exterior

linguístico, nesse percurso do sujeito caminhando para firmar o terreno da AD, foi o

francês Èmile Benveniste. A partir de seu trabalho aparece o sujeito da língua.

Segundo esse teórico havia na língua elementos gramaticais que apontavam para

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um sujeito. Nasce a partir dessas ideias o sujeito individual através dos atos de

enunciação.

No interior da língua Èmile Benveniste se preocupou em demonstrar que

através dos atos individuais de apropriação da língua, o enunciado, surgia o sujeito

na marcação do EU e do TU. Ao enunciar o sujeito se faz sujeito da língua dirigindo-

se de um EGO para um TU. Nessa relação biunívoca demonstrada por Benveniste,

embora ainda na língua, aparece de alguma forma o sujeito. É uma relação

contraditória, já que o autor explora as possibilidades de existência do sujeito a partir

do ato de enunciação. Para ele só existia sujeito a partir do momento em que este

se apropriava da língua e enunciava de uma dada posição, fazendo-se um TU ou

um EU.

Para Benveniste:

O ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala sua fala. Este é um dado constitutivo da enunciação. A presença do locutor em sua enunciação faz com que cada instância de discurso constitua um centro de referência interno. Esta situação vai se manifestar por um jogo de formas específicas cuja função é de colocar o locutor em relação constante e necessária com sua enunciação. (BENVENISTE, 1989, p. 84).

Em Aparelho formal da enunciação Benveniste acentua que para haver

enunciação é preciso colocar como centro aquele que produz a enunciação, ou seja,

o próprio sujeito e o outro num princípio de alteridade. Essa emergência de por o

sujeito no centro das discussões sobre linguagem e, especificamente, a fala, é a

constituição da própria enunciação que sem o referente produtor não seria ela

mesma. É uma situação que põe em jogo as instâncias discursivas que remetem ao

próprio sujeito, sem o qual não teríamos nem referentes, nem enunciação.

O mérito de Benveniste é o de colocar o sujeito no centro das relações

discursivas como dono de seu ato de fala, seja ele determinado ou não pelo outro ou

pela situação de comunicação, o que era uma necessidade urgente para abrir novos

horizontes nas discussões a respeito da linguagem. Para ele (Benveniste) as formas

assumidas pelos pronomes pessoais de primeira e segunda pessoa são o indício da

presença do sujeito na linguagem, pois toda vez que ele se enuncia instaura o status

de sujeito, bem como as marcas de tempo e espaço marcadas pelos modalizadores,

os quais instauram a presença latente espaço-temporal do sujeito na linguagem.

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mas cada um sabe que, para o mesmo sujeito, os mesmos sons não

são jamais produzidos exatamente, e que a noção de identidade não

é senão aproximativa mesmo quando a experiência é repetida em

detalhe. Estas diferenças dizem respeito à diversidade das situações

nas quais a enunciação é produzida. (BENVENISTE, 1958, p. 82-83).

Dentro da enunciação o sujeito se apropria da linguagem fazendo dela sua

identidade discursiva. Nela os enunciados são únicos e irrepetíveis, pois nem os

sons nem qualquer outra espécie de manifestação se realizam da mesma forma,

visto que nesse sentido o discurso é dinâmico e permite ao manipulador dele uma

infinidade de realizações e experiências que não se assemelham umas com as

outras. Nesse sentido há uma manifestação individual do sujeito enunciativo

decorrente das diversas situações enunciativas.

Na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo. A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibilidade de co-referir identicamente, no consenso pragmático que faz de cada locutor um co-locutor. (BENVENISTE, 1958, p. 84).

Em Benveniste temos a noção de sujeito linguístico, aquele que está

marcado na própria língua através de traços de subjetividade evidenciados por

formas gramaticais como os pronomes pessoais, certos advérbios e locuções

adverbiais, as marcas de tempo e espaço. Estas formas não especificam uma

gramática em si, mas a subjetividade daquele que produz enunciados utilizando os

mesmos para se situar no mundo e referir-se a ele. O fato de o locutor dizer, por

exemplo, “Nossa, como está quente hoje!”, não é simplesmente a constatação de

uma ideia de que esteja realmente fazendo calor, mas um ponto de instauração de

um discurso que diz algo que está quente, e que alguém utilizando a língua disse

que estava quente, e mais ainda, quando disse se dirigiu a alguém, ou para manter

um contato, realizando um ritual, ou mesmo tentando falar de outras coisas, onde o

tempo e o lugar são sempre o ponto de partida. Nesse sentido há um contrato

pragmático no qual o locutor é também um co-locutor, pois sua manifestação

discursiva inaugura, no momento da fala, o EU e o TU, criando sua identidade, ao

mesmo tempo em que se identifica com o processo enunciativo.

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Para Benveniste, a enunciação nada mais é de que a possibilidade da

língua, isto é, que a língua em si (sistema) só atinge àquilo que é possível no plano

linguístico/gramatical, as noções do uso do sistema abre uma série de possibilidades

que esse não possibilita em termos de discurso, sujeito e situação de comunicação.

Como se pode perceber há em Benveniste uma supremacia do eu sobre o

tu, não havendo possibilidade de negociação dos saberes. O fato de haverem

apenas o eu e o tu, dá a ideia de um discurso homogêneo, sem conflitos e com

sujeitos bem comportados. Além disso, fica fora de todo esse jogo enunciativo a

questão da histórica e ideológica que é constitutiva do sujeito no discurso. Para o

referido autor as marcas do sujeito estão na língua a partir do momento que ele se

apropria da língua e enuncia. Nesse ponto não se fala dos esquecimentos, de

memória e consciência e inconsciência, pois o sujeito é uma possibilidade da língua.

O sujeito do discurso não está nem na língua nem mesmo em categorias

gramaticais específicas. Ele se encontra na linguagem enquanto relação de

discursos e formações discursivas específicas, se configurando como o produto das

relações linguageiras, atravessado por outros discursos, interpelado pela ideologia

e, dessa forma, assumindo a forma de sua incompletude.

Na segunda metade do século XX, muitos filósofos e estudiosos da

linguagem mostraram que o sujeito é constituído de linguagem e pela linguagem e,

segundo essa perspectiva não há, de forma absoluta, a presença do indivíduo

enquanto pessoa física, mas um sujeito marcado pela linguagem e pela ideologia.

Segundo Garcia:

somos vítimas de uma traiçoeira ilusão egocêntrica quando acreditamos ser donos de nossos discursos e quando consideramos a linguagem como simples instrumento que se encontra nossa disposição para ser manipulado à nossa vontade. Na verdade, é a própria linguagem que manda em nós, causando, modelando, constrangendo e provocando nosso discurso, a tal ponto que bem se poderia dizer que é a linguagem que fala através de nós. (GARCIA, 2004, p. 36).

Segundo Garcia (2004), há uma supremacia da linguagem sobre o sujeito.

Segundo ele a linguagem fala da linguagem, ou seja, a linguagem é quem manda no

sujeito. Acreditar que se fala conscientemente a linguagem é uma ilusão, já que a

linguagem fala por si só e o sujeito como mero portador de um dispositivo de

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linguagem. Pode-se, assim, falar de uma morte do sujeito, já que ele não é dono de

seu dizer, mas um mero artefato produto da linguagem.

Segundo Orlandi (2007) o sujeito não é a sua forma empírica que coincide

com o status de pessoa, mas algo constituído de linguagem e como a linguagem é

incompleta e não transparente, sendo, portanto, uma forma em constantes

deslocamentos de construção e reconstrução e construção de sentidos.

Foucault (1979) decreta a morte do sujeito quando diz que com a morte da

filosofia consciente, morre também o sujeito que fica reduzido a efeito de linguagem.

Em seu livro A ordem do discurso o pensador francês assegura que o grande poder

emanado pela linguagem prende o sujeito em suas redes, reduzindo-o a uma malha

do discurso, uma peça discursiva de um enorme quebra-cabeça que é a linguagem

(GARCIA, 2004).

Nesse sentido o sujeito apresenta em sua formação discursiva uma relação

com a língua e a história. A história em AD é aquela que se inscreve na língua e esta

como portadora de sentidos não constituídos a priori, mas sim, nas relações que se

estabelecem no discurso da história. Pensando dessa forma, temos, então, o sujeito

não como dono de seu dizer, mas como algo a ser dito pelas relações e posições

assumidas nas diversas atividades de linguagem na sociedade.

Nessa trajetória é que a história, assim como o sujeito e a linguagem não são

transparentes, mas o espaço vazio para o agendamento de novos saberes que

foram esquecidos e que fazem sentido justamente por retomar aquilo que não foi

dito.12

Essa relação do sujeito com a história é o que Foucault vai chamar de sujeito

assujeitado. Esse termo não implica numa total relativização do sujeito à história e à

ideologia. Ele tem seu papel quando assume uma posição social nas relações de

poder e conhece, por assim dizer, as relações sociais que nela está engajada,

embora isso gere um conflito com a ideologia marxista de que o mascaramento da

realidade cegue os sujeitos sociais.

Na perspectiva da AD de linha francesa, os sujeitos, a história e a ideologia

são fundamentais já que analisam a sociedade a partir da exterioridade da língua,

observando que é na prática da linguagem que surgem os sentidos e suas

12

O não dito não se refere à originalidade, mas a novas formas de dizer o que já tinha sido dito e que de uma época para outra muda seu sentido devido aos lugares históricos em que os enunciados podem aparecer.

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produções através das relações de poder que foram renegados ao esquecimento

pelas teorias linguísticas de cunho estruturalista. Nesse quadro teórico o termo

sujeito e discurso são vistos como relação, entendendo a relação como uma prática

constitutiva do discurso e do sujeito.

Para Fairclough, Michel Pêcheux trabalhando com a noção de uma teoria

social do discurso com a teoria de análise do texto, analisando o discurso político

dos partidos comunista e socialista, percebe que o sujeito aparece a partir de suas

relações com o discurso social e as instituições. Essa posição de Pêcheux dita por

Fairclough (2001) é uma retomada da teoria marxista e da ideologia de Althusser

que enfatiza a relatividade da ideologia nas práticas sociais e, as contribuições

dessas teorias no campo econômico.

Segundo Pêcheux apud Fairclough (2001, p. 53):

os sujeitos sociais são constituídos em relação a FDs (Formação discursiva - grifo nosso) particulares e seus sentidos; essas FDs são, de acordo com Pêcheux, faces de ‘domínios de pensamento... sociohistoricamente constituídos na forma de pontos de estabilização que produzem o sujeito e simultaneamente junto com ele o que lhe é dado ver, compreender, fazer, temer e esperar’

Nessa perspectiva em que Fairclough analisa a teoria de Pêcheux, o sujeito é

constituído pelo discurso dentro de uma formação discursiva particular, que segundo

Pêcheux são pontos de estabilização que se constituem sociohistoricamente com a

sedimentação dos saberes sociais na formação discursiva. Dentro de uma formação

discursiva ocorrem formações de discursos que com o sujeito determinado pela

ideologia contribuem para constituí-lo enquanto uma materialidade discursiva.

Uma posição importante em Pêcheux segundo as formações discursivas é

que elas são afetadas pelo seu exterior, contribuindo, dessa forma, para a

constituição do sujeito. Nessa concepção as formações discursivas mantêm

relações com outras formações discursivas através da interdiscursividade, algo que

é afetado pela ideologia conforme Althusser. Essa determinação exterior às

formações discursivas afetam o sujeito sem que ele tenha consciência disso,

fazendo com que os sujeitos criem a ilusão de que são fontes de sentido, quando na

verdade eles são efeitos de sentido (FAIRCLOUGH, 2001). Segundo essa tendência

são as relações exteriores à formação discursiva que determinam o lugar social dos

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sujeitos e imprimem neles o que pode e o que não pode ser dito em uma dada

formação discursiva.

No entanto, pode ser que aconteça que o sujeito não se identifique com uma

dada formação discursiva por não ser compatível com aquilo em que o sujeito

pretensamente acredita13 e surge. Dessa forma, surgem outras práticas discursivas

diferentes da formação discursiva original14. Nesse ponto surge o que se

convencionou chamar de identidade discursiva, ou identidade da formação

discursiva, na qual o conjunto de enunciados que a formam convergem para a

formação de um mesmo objeto e efeitos de sentido.

A história, nesse sentido não aparece como aquela que tradicionalmente

contínua, mostra os grandes feitos a partir de discursos bem constituídos como o

das identidades nacionais. Segundo Foucault (2008), a história se caracteriza por

sua descontinuidade, vista a partir dos objetos constituídos pela linguagem, as

reações de poder atravessados pela ideologia e o sujeito como deslocado, disperso,

um dado de linguagem.

A noção de sujeito em Foucault difere daquele sujeito cartesiano dono do seu

saber e consciente de suas ações. O sujeito deixa de ser um artefato mecânico e

autônomo no sentido de conhecer sua função na representação do mundo e passa a

se constituir pela linguagem e pelas relações de poder, ou seja, um sujeito

descentrado e disperso. À noção de descentramento e de dispersão operada por

Foucault, se entende que o sujeito é um efeito de linguagem e constitutivo, ou seja,

não é completo e está sempre em constituição pelo fato de assumir sua

subjetividade a partir de lugares sociais diferentes. Nessa concepção o sujeito só se

completa na linguagem e pelas posições sociais que ele assume enquanto um ser

constituído de discurso. Nesse sentido o discurso se configura como o espaço da

constituição do sujeito nas diversas relações que se estabelecem na sociedade.

Segundo Foucault:

as diversas modalidades de enunciação, em lugar de remeterem à síntese ou à função unificante de um sujeito, manifestam sua

13

Nesse ponto pode se pensar que o sujeito seja momentaneamente livre para escolher o tipo de discurso que quer seguir, mas não pode escolher não ser o discurso. 14

Nesse ponto convém ressaltar que uma formação discursiva nunca está totalmente pronta e acabada, nela operam transformações de diversas ordens e que modificam suas práticas, ao mesmo tempo em que o sujeito pode pertencer a outras formações discursivas que inconscientemente pela relação com o interdiscurso fazem com certas formações discursivas sejam abandonadas.

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dispersão: nos diversos status, nos diversos lugares, nas diversas posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na descontinuidade dos planos de onde fala. Se esses planos estão ligados por um sistema de relações, este não é estabelecido pela atividade sintética de uma consciência idêntica a si, muda e anterior a qualquer palavra, mas pela especificidade de uma prática discursiva. (FOUCAULT, 2008, p. 61).

Na prática discursiva, nas diversas modalidades enunciativas, o sujeito não é

unificante no sentido de todo o saber e poder, mas ao contrário, é justamente no

discurso que se opera sua dispersão que é a posição assumida pelo sujeito nos

diversos lugares sociais. Nesse sentido o sujeito é constituído pelo discurso e

também dele, não há uma linearidade que determina quem vem de quem, é uma

atividade dialógica.

Segundo Fairclough (2001, p. 74-75) “O trabalho de Foucault é uma grande

contribuição para o descentramento do sujeito social nas recentes teorias sociais

para a visão do sujeito constituído, reproduzido e transformado na prática social e

por meio dela, e para a visão do sujeito fragmentado.” Nessa concepção de

Fairclough a grande contribuição de Foucault é na descentralização do sujeito

cartesiano da filosofia clássica. Foucault dá uma nova visão não só ao sujeito, mas

também às novas formas de ver e sentir a sociedade em suas relações de poder e

saber. Nesta perspectiva, a prática discursiva é quem é constitutiva do sujeito e é

nessa prática que ele se constitui.

Nesse sentido a prática discursiva é:

antes um campo de regularidade para diversas posições de subjetividade. O discurso, assim concebido, não é a manifestação, majestosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: é, ao contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo. (FOUCAULT, 2008, p. 61).

Para Foucault (2008), a prática discursiva é o campo de regularidades e

possibilidades de dispersão do sujeito e não um campo homogêneo que

determinaria sua unidade. A unidade, nesse sentido é um mito cartesiano, já que

dependendo do lugar social de onde o sujeito fala irá determinar qual tipo de sujeito

ele está exercendo, por isso ele é disperso e não único.

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Na concepção foucaultiana, o sujeito é tanto sujeito como objeto do

conhecimento. Sujeito porque é uma constituição a partir do discurso e das relações

de saber e poder, o sujeito é constitutivo. Objeto porque obedecem as mesmas

regras de formação de objetos constituídos pela linguagem. A materialidade do

discurso não separa os objetos, suas formações levam em conta os discursos que

são produzidos socialmente. Para uma autonomia do sujeito sobre o objeto, como foi

dito anteriormente, o sujeito precisaria ser autônomo e consciente, mas para

Foucault o sujeito é descentrado e disperso, sua constituição deriva do fato de ele se

constituir a partir de um lugar social determinado, assim como os objetos. Nesse

sentido há uma supervalorização do discurso como constitutivo do conhecimento,

saber e poder.

A relativa autonomia do sujeito vai surgir tanto nos trabalhos arqueológicos

quanto genealógicos de Foucault com relação ao desejo. O discurso vai ser o objeto

de desejo do sujeito e, embora o discurso seja constitutivo do sujeito em termos de

uso da linguagem em suas mais diversas práticas, o sujeito vai desejar se apropriar

de certos discursos para poder se fazer sujeito de outro lugar social. Então o desejo

como fonte de saber e poder é quem vai dá ao sujeito essa pseudo-autonomia de

desejar objetos e sujeitos.

Na constituição do sujeito, o desejo se torna um elemento central. Diante

dessa categoria que Foucault expõe, do sujeito cartesiano para o sujeito do

conhecimento e do saber, o desejo é o impulso criador e constitutivo de sua

autonomia. Há no sujeito a vontade de saber que nas relações sociais ele se

transforma no sujeito do poder. O desejo então vai ser o elemento que irá

protagonizar a vontade de saber e poder.

2.2 Discurso e formação discursiva

A AD de linha francesa não trabalha com a noção de língua como sistema

homogêneo e arbitrário de signos linguísticos, nem mesmo com a noção de

proposição oriunda da filosofia cartesiana, tentando mostrar o mundo como uma

representação pela linguagem com suas noções de verdade e falsidade. Pouco

importa para AD, em termos gerais, se algo é falso ou deixa de ser, ou se a língua é

social porque é dividida como dicionários por todos os seus falantes, importa o

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discurso proferido por falantes de lugares sociais distintos e que através de sua

exterioridade constrói elementos que são constitutivos do homem e da sociedade

em geral.

Como assinala o próprio Foucault:

colocamos a questão no nível do próprio discurso, que não é mais tradução exterior, mas lugar de emergência dos conceitos; não associamos as constantes do discurso às estruturas ideais do conceito, mas descrevemos a rede conceitual a partir das regularidades intrínsecas do discurso; não submetemos a multiplicidade das enunciações à coerência dos conceitos, nem esta ao recolhimento silencioso de uma idealidade metaistórica; estabelecemos a série inversa: recolocamos as intenções livres de não-contradição em um emaranhado de compatibilidade e incompatibilidade conceituais; e relacionamos esse emaranhado com as regras que caracterizam uma prática discursiva. (FOUCAULT, 2008, p. 68).

Para Foucault é preciso descobrir no discurso elementos intrínsecos a ele

mesmo para criar objetos e conceitos para não se caracterizar falta de método.

Segundo ele, há regularidades no discurso que o caracterizam como passível de

uma análise mais fecunda no sentido se reconhecer a relação entre o discurso e sua

exterioridade relacionada com o sujeito e a história construídos pela prática

discursiva. Nessa trajetória, o discurso é constitutivo no sentido de não estar pronto

e acabado tal qual a gramática normativa de uma língua, nem mesmo com a

identidade dos vários discursos sociais como a política, a psiquiatria ou mesmo o

direito. O discurso é o espaço vazio a ser preenchido pelas práticas discursivas que

em sua materialidade irão constituir conceitos e elementos possíveis.

Para Brandão:

Foucault [...] concebe os discursos como uma dispersão, isto é, como sendo formados por elementos que não estão ligados por nenhum princípio de unidade. Cabe a AD descrever essa dispersão, buscando o estabelecimento de regras capazes de reger a formação dos discursos. (BRANDÃO, 2004, p. 32).

O discurso, na perspectiva foucaultiana, não é algo estável regido por um

núcleo centralizador e único, mas é concebido em sua dispersão, ou seja, os

elementos não estão ligados por um princípio de unidade. Descrever o discurso é

buscar o que Foucault chama de regras de formação, regras que possibilitam o

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aparecimento e a coexistência de objetos em um espaço comum, onde aparecem

certos tipos de enunciação que são pertinentes aos discursos e que são capazes de

estabilizar15 conceitos e formas dentro de um campo enunciativo.

Nessa perspectiva o discurso é constitutivo. Ele não é uma formação

apriorística, mas uma espécie de elemento que é constituído pela prática discursiva

num dado espaço de uso da linguagem. O surgimento de uma estabilidade do

discurso como o político, religioso, psiquiátrico, tropicalista não é algo estável do

ponto de vista do próprio conceito de estabilidade, mas algo com possibilidades de

transformações dentro de um determinado campo de enunciação. Dessa forma

podíamos falar de uma estabilidade momentânea, já que com a dinâmica da

linguagem os discursos podem se transformar continuamente em busca de novas

possibilidades de efeitos de sentido.

Então para Foucault o discurso é:

Um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva; ele é constituído de um número limitado de enunciados, para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência; é, de parte a parte, histórico — fragmento de história, unidade, e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade (FOUCAULT, 2008, p. 135-36).

Não há sujeitado sem história, nem discurso sem sujeito (Orlandi, 2007), nem

enunciado que não se apoie numa formação discursiva, que limita a linha discursiva

dos enunciados, que são recortes históricos impostos pela própria relação da língua

com o sujeito e sua ideologia. Ela impõe o que pode e o que não pode ser dito pelos

sujeitos dentro de um campo específico de existência material dos enunciados. Para

isso surge o conceito de descontinuidade e dispersão dos enunciados, que são as

relações não uniformes dos enunciados que encontram na formação discursiva sua

identidade e regularidade. As relações discursivas dos enunciados são sempre

eventos históricos dispersos na descontinuidade da história.

Para Foucault, o discurso não é constitutivo, mas sim socialmente

constitutivo. Para Fairclough, há uma relação entre o discurso e as estruturas sociais

15

Essa estabilidade não implica na imobilidade dos conceitos quando formados. Pode-se, inclusive sugerir o termo regularidade que seria a estabilização dos conceitos e objetos constituídos por regras de formação. Essas regras determinariam dentro de um campo enunciativo essa suposta estabilidade do discurso.

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das quais o discurso se constitui e de quem é construído, ou seja, há uma relação

dialética em que discurso e sociedade se interligam e se entrecruzam, não sendo

apenas o discurso uma relação da linguagem com o sujeito e o sentido. Segundo o

autor “Aqui está a importância da discussão de Foucault sobre a formação discursiva

de objetos, sujeitos e conceitos. O discurso contribui para a constituição de todas as

dimensões da estrutura social que, direta ou, indiretamente, o moldam e o

restringem: suas próprias normas e convenções, como também relações,

identidades e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma prática, não

apenas de representação. do mundo. mas de significação do mundo, constituindo e

construindo o mundo em significado.” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). Para o autor, o

trabalho de Foucault sobre o discurso é de essencial valor para o entendimento das

sociedades modernas, nas quais o discurso é a ferramenta central para a

constituição do sujeito, da sociedade e dos objetos sociais. Da mesma forma, o

discurso também é moldado pela sociedade cognoscente, não como uma relação

de dominância, mas como uma relação constitutivamente dialética, de relação. Este,

não é a representação do mundo pela linguagem, discurso significa significar o

mundo pela linguagem, ou seja, o mundo só adquire sentido por meio do discurso. O

mundo só adquire significado através do discurso.

Segundo Fairclough, o discurso como prática social implica:

uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação. Trata-se de uma visão do uso de linguagem que se tornou familiar, embora frequentemente em termos individualistas, pela Filosofia linguística e pela Pragmática linguística [...] implica uma relação dialética entre o discurso e a estrutura social, existindo mais geralmente tal relação entre a prática social e a estrutura social; a última é tanto uma condição como um efeito da primeira. Por outro lado, o discurso é moldado e restringido pela estrutura social no sentido mais amplo e em todos os níveis: pela classe e por outras relações sociais em um nível societário, pelas relações específicas em instituições particulares, como o direito ou a educação, por sistemas de classificação, por várias normas e convenções, tanto de natureza discursiva como não discursiva, e assim por diante. Os eventos discursivos específicos variam em sua determinação estrutural segundo o domínio social particular ou o quadro institucional em que são gerados. (Por outro lado, o discurso é

socialmente constitutivo). (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91).

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Para Fairclough essa relação dialética entre o discurso e as estruturas sociais

é um efeito gerado pelas ideologias gerais e particulares, principalmente aquelas

ligadas à ideologia defendida por Althusser16, segunda a qual as ideologias

particulares são moldadas ou reproduzidas pelas microideologias que Foucault

chama de microfísica do poder. Nessa relação tanto os discursos gerais quanto os

particulares oriundos de disciplinas específicas que trabalham com enunciados

próprios, sejam eles discursivos e não discursivos, são moldados e transformados

pelas estruturas sociais que influenciam e são influenciadas pelo discurso.

Segundo Fairclough:

a relação entre discurso e estrutura social seja considerada como dialética para evitar os erros de ênfase indevida: de um lado, na determinação social do discurso e, de outro, na construção do social no discurso. No primeiro caso, o discurso é mero reflexo de uma realidade social mais profunda; no último, o discurso é representado idealizadamente como fonte do social. O último talvez seja o erro mais imediatamente perigoso, dada a ênfase nas propriedades constitutivas do discurso em debates contemporâneos. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 92).

Essa relação dialética entre discurso e estruturas sociais, é uma análise

cuidadosa pelo fato de não se cair num campo muito fechado de determinação de

quem vem primeiro ou quem tem primazia sobre os outros. O discurso influencia a

constituição das estruturas sociais que são efeitos de linguagem e ao mesmo tempo

sofrem transformações porque essas estruturas são formadas por sujeitos que estão

atuando sobre a linguagem e nela buscando novos efeitos de sentido.

Por ser de caráter disperso e não possuindo uma unidade de sentido

específico é que Foucault lança o termo formação discursiva. Para ele havia uma

unidade na dispersão, ou seja, os conjuntos de dispersões a que se encontravam os

enunciados formam unidade na formação discursiva, não como uma forma

homogênea como diz Orlandi: “A noção de formação discursiva, ainda que polêmica

é básica da Análise de Discurso, pois permite compreender o processo de formação

dos sentidos, a sua relação com a ideologia e também dá ao analista a possibilidade

de estabelecer regularidades no funcionamento do discurso” (ORLANDI, 2007, p.

43)”. Segundo Orlandi é a passagem do não-sentido para o sentido, ou seja, na

16

Aparelhos ideológicos do estado. (Orlandi, 2007).

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formação discursiva é que o sujeito interpelado pela ideologia dá novos sentidos ao

mundo e o significa a partir de uma posição social dada.

Nesse sentido o discurso só faz sentido por aquilo que é dito ou não dito por

um sujeito inscrito em uma formação discursiva e isso não pode ser de outra forma,

já que as palavras não fazem sentido sozinhas ou por elas mesmas, mas quando

estão inscritas dentro de um conjunto de regularidades que caracteriza a formação

discursiva. Segundo Orlandi, “As palavras falam com outras palavras” (ORLANDI,

2007, p. 43). As palavras só adquirem sentido porque fazem parte de um discurso

específico, e é isso que caracteriza a formação discursiva e a produção de sentidos

do mundo.

A formação discursiva que faz parte dos trabalhos arqueológicos de Foucault

foi amplamente usada pelos teóricos franceses que deram a esse conceito outras

reformulações e usos. Para ele “Uma formação discursiva será individualizada se se

puder definir o sistema de formação das diferentes estratégias que nela se

desenrolam; em outros termos, se se puder mostrar como todas derivam (malgrado

sua diversidade por vezes extrema, malgrado sua dispersão no tempo) de um

mesmo jogo de relações”. (FOUCAULT, 2008, p. 76). Segundo Sargentini e Navarro-

Barbosa (2004) o conceito de formação discursiva aparece pela primeira vez em

Pêcheux17 (apud, FAIRCLOUGH, 2001) que conjugou formação discursiva com o

conceito de ideologia de Althusser, por exemplo.

A formação discursiva para Foucault são:

os enunciados, diferentes em sua forma, dispersos no tempo, formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto. Assim, parece que os enunciados pertinentes à Psicopatologia referem-se a esse objeto que se perfila, de diferentes maneiras, na experiência individual ou social, e que se pode designar por loucura. Ora, logo percebi que a unidade do objeto "loucura" não nos permite individualizar um conjunto de enunciados e estabelecer entre eles

17

Para Roberto Leiser Baronas desenvolve a ideia de que há contradições de onde o termo tenha surgido nas ciências sociais. Segundo Sargentini e Navarro-Barbosa o conceito de formação discursiva aparece pela primeira vez em Michel Pêcheux no seu artigo ‘A semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem e discurso’. Ao criticar os linguistas pós-saussurianos - estruturalistas e gerativistas - por terem de alguma maneira trazido o modelo fonológico saussuriano para o domínio do sentido, produzindo uma espécie de filos fonema que caracterizaria toda a linguística. Por outro lado, Fairclough afirma que “Pêcheux sugere que cada posição incorpora uma 'formação discursiva' (FD), um termo que tomou emprestado de Foucault. Uma FD e “aquilo que em uma dada formação ideológica” [...] determina o que pode e deve ser dito’. Isso e compreendido em termos especificamente semânticos: as palavras mudam seu sentido de acordo com as posições de quem as 'usa'" (FAIRCLOUGH, 2001, p. 52).

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uma relação ao mesmo tempo descritível e constante. (FOUCAULT, 2008, p. 36).

O conceito de Foucault, embora muito filosófico e não aplicado à teoria de

textos, entende que os enunciados diferentes na forma e no sentido encontram uma

suposta unidade de sentido na formação discursiva. Essa é a relação com o objeto e

os enunciados, já que a mesma é formada por enunciados e que ao mesmo tempo

aglomera enunciados pertinentes a ela. Nessa perspectiva, a formação discursiva

não será uma unidade homogênea, dada a formação dos objetos e enunciados, mas

heterogênea pelo fato de manter relações dentro da própria formação discursiva e

também com outras formações discursivas com as quais estabelece relações de

diferenças e de identidade de sentido.

é preciso renunciar a todos os temas - tradição; influência; desenvolvimento e evolução; mental idade ou espíritos tipos e gêneros; livro e obra; ideia da origem; já-dito e não-dito -que tem por função garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência sempre reconduzida. É preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade e dispersão temporal, que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado... Não remetê-lo a longínqua presença da origem; é preciso tratá-lo no jogo da sua instância (FOUCAULT, 2008, p. 28).

Nessa citação, Foucault assinala que o discurso deve ser percebido a partir

da noção de acontecimento, descartando a ideia antropológica de que o sujeito seja

dono de seu dizer18. O discurso pode aparecer como um já-dito e um não dito e até

esquecido num jogo contínuo de ausência e presença, configurando sua dispersão

no curso da história como elemento constitutivo e a ser constituído. É preciso livrar-

se de toda ideia pré-concebida para cair no terreno de sua instância constitutiva.

Segundo Sargentini e Navarro-Barbosa:

é nesse sistema que internamente se produz um conjunto de regras as quais definem a identidade e o sentido dos enunciados que o constituem. Em outros termos, é a própria formação discursiva como uma lei de série, princípio de dispersão e de repartição dos

18

Essa noção de sujeito dono do discurso é posta pela AD com apropriação do discurso pelo sujeito, já que tudo já foi dito, não havendo uma entidade ou uma origem para os discursos. O discurso como sendo constitutivo não tem dono. Para isso a AD, na esteira de Foucault desenvolve a ideia de autor, na qual o sujeito assume o discurso através da posição social que assume: o pai em relação ao filho; o médico em relação ao paciente, etc.

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enunciados que define as regularidades que validam os seus enunciados constituintes; por sua vez, tais regularidades instauram os objetos sobre os quais elas falam, legitimam os sujeitos para falarem sobre esse objeto e definem os conceitos com os quais operarão e as diferentes estratégias que serão utilizadas para definir um ‘campo de opções possíveis para reanimar os temas já existentes [...] permitir, com um jogo de conceitos determinados, jogar

diferentes partidas’ (SARGENTINI E NAVARRO-BARBOSA 2004,

p. 51).

Segundo Sargentini e Navarro-Barbosa, os enunciados se relacionam com

outros enunciados e são condicionados por um conjunto de regularidades internas,

constituindo um sistema relativamente autônomo, denominado de formação

discursiva. O conjunto de enunciados dentro de um mesmo conjunto produz uma

regularidade no sentido de serem regido por regras próprias e específicas a cada

objeto: é o que os autores chamam de formação discursiva. O termo regularidade

sugere não uma homogeneidade, mas um conjunto de regras de formações

dispersas que caracterizam um mesmo objeto.

Para AD o conceito de formação discursiva é fundamental. É ela que

estabelece, para a linguagem, o sujeito e a ideologia, a noção de sentido a partir da

interpretação da realidade simbólica demonstrada pela linguagem. Na formação

discursiva a regularidade dos enunciados e do discurso faz surgir em suas relações

à constituição dos efeitos de sentidos. Será a formação discursiva que irá dar, de

certa forma, um objeto passível de análise para AD que é o discurso. Na formação

discursiva o discurso encontra sua materialidade e seu poder de significar o mundo.

Dessa forma, a formação discursiva será o agrupamento de vários enunciados que

formam os objetos e os conceitos formadores dos elementos constitutivos do sujeito,

da ideologia e constituição/significação da sociedade.

2.3 A ideologia Um dos elementos centrais da AD francesa é o conceito de ideologia. Para

essa disciplina, a ideologia são as relações de poder que são estabelecidas através

das formas de discurso na sociedade. Para ideologia há regras a serem jogadas na

prática discursiva que, são realizadas pelos sujeitos na prática social de seu

discurso. Isso implica dizer que a ideologia é uma teia que está envolta em todo o

tecido social, disciplinando e combinando regras para manter a sociedade e os

sujeitos uma complexa rede disciplinar.

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57

Segundo Brandão:

Na reprodução das relações de produção, uma das formas pela qual a instância ideológica funciona é a da “interpelação ou assujeitamento do sujeito como sujeito ideológico”. Essa interpelação ideológica consiste em fazer com que cada indivíduo (sem que ele tome consciência disso, mas, ao contrário, tenha a impressão de que é senhor de sua própria vontade) seja levado a ocupar seu lugar em um dos grupos ou classes de uma determinada formação social. (BRANDÃO, 2004, p. 46-47).

Na teia ideológica, há uma transformação, uma interpelação, pelo discurso,

do indivíduo em sujeito. Segundo a AD, o sujeito nasce por sua relação com a

história e com o discurso atravessado pela ideologia. Dessa perspectiva abandona-

se a ideia de um sujeito autônomo e dono de seu dizer, já que as coisas já foram

ditas e inscritas na história das ideias.

O termo ideologia, amplamente usado pela AD para se falar da relação da

língua com a história e do sujeito com as relações de poder, nasceu como sinônimo

de analisar faculdade de pensar em contraste com as coisas naturais como o corpo

humano e os fenômenos da natureza. Ele é gerado no discurso que constitui a

sociedade com suas relações com os sujeitos em posições distintas nas diversas

instituições.

Em Marx e Engels a ideologia é símbolo do embate das relações de produção

entre o proletariado e as classes dominantes. A ideologia sustenta o poder da

hegemonia através de mecanismo de controle dos meios de produção da grande

massa. Tem para Marx e Engels um sentido pejorativo, já que a ideologia é uma

forma de manter o poder dos dominantes sobre os dominados ao manipular não

apenas os meios de produção e consumo, mas também os bens culturais

produzidos pelo homem.

Segundo Marx e Engels, apud Brandão (2004):

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade e, ao mesmo tempo, sua força espiritual. A classe que tem a sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual. [...] Na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, e evidente que o façam em toda a sua extensão e, consequentemente, entre outras coisas, dominem também como pensadores, como produtores de ideias; que regulem a produção e

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distribuição de ideias de seu tempo e que suas ideias sejam, por isso mesmo, as ideias dominantes da época (BRANDÃO, 2004, p. 47)

A classe dominante de uma época não é somente a que comanda a força

material de produção, mas também aquela que pensa e cria ideias para que sejam

perpetuadas ao longo do tempo. A classe dominante domina tanto a força de

trabalho como também as ideias espirituais de uma época. Nessa perspectiva

descrita pelos marxistas, o controle sobre os meios culturais não é uma

consequência, mas uma extensão do domínio da força de trabalho dos indivíduos.

Para os marxistas, a ideologia é um conjunto ordenado de representações

simbólicas que fingem desvincular as condições materiais de produção do trabalho

da produção das ideias, em um jogo que elimina as contradições de classes, as

relações sociais e de consciência para legitimar a dominação de classe. Nesse

sentido é uma ilusão que inverte a realidade, já que tornam suas ideias as ideias de

todos.

Então, segundo Brandão:

Para criar na consciência dos homens essa visão ilusória da realidade como se fosse realidade, a ideologia organiza-se como um sistema lógico e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar, o que devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. (BRANDÃO, 2004, p.22).

De acordo com Brandão, a classe dominante, que mantém uma ideologia, cria

uma falsa realidade, fazendo crer que os sistemas de representações simbólicos por

ela elaborados são comuns a todos e são criados socialmente, mascarando os reais

interesses de quem quer se manter no poder e, dessa forma, ditando normas sobre

o que deve e o que não se deve fazer, impõe para isso, inclusive mecanismos

institucionais para garantir essa ordem. Nesses termos quem se mantém no poder

assegura, para não explicitar claramente, os objetivos das ideias criadas para

manter certa ordem. O que há, na verdade, são lacunas, e silêncios para assegurar

a ideologia dominante a coerência do seu sistema.

Embora Marx e Engels tenham elaborado sua teoria como crítica ao sistema

capitalista burguês, suas ideias não deixam de contribuir para uma visão social da

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linguagem, mesmo que eles tenham se pautado muito num empirismo tecnocrático,

numa visão de mundo analisado sobre o material histórico.

Althusser (apud, Orlandi, 2007) amplia e dá novas conotações ao termo

ideologia proposto por Marx e Engels (apud, Orlandi, 2007). A ideologia não é

apenas um embate de classes e um mascaramento da realidade pelo uso da

linguagem, nem que ela se restrinja somente a análise empírica das condições de

produção da grande massa e das condições de produção do discurso intelectual dos

dominadores. Para ele a ideologia é mantida e perpetuada pelos aparelhos

ideológicos do estado (AIE), ou seja, quando houve a constituição dos estados

nacionais, não só na Alemanha de Marx e Engels, mas em todo mundo, houve uma

apropriação dos discursos para legitimar a dominação.

Na organização dos estados nacionais, quase sempre mantido pelas classes

dominantes há mecanismos que legitimam a dominação e ao mesmo tempo

repreendem as práticas anárquicas que ameaçam o discurso dominante. Segundo

Althusser apud, Orlandi, (2007), há os aparelhos ideológicos do estado que

perpetuam a dominação por instituições como a igreja, a política, o direito, o

sindicato, a escola, a família, etc, que reproduzem inconscientemente seus

discursos e fazem todos pensarem que ele é legítimo, justo e probo. Quando essas

forças institucionais se mostram falhas, entram em campo os Aparelhos

Repressores do Estado (ARE) que, utilizando da força e da repreensão, mantém

intactos seus mecanismos de dominação das massas.

Assim, assinala Althusser apud, Orlandi, (2007) “todo funcionamento da

ideologia dominante está concentrado nos AIE. A hegemonia ideológica exercida

através deles é importante para se criarem as conduções necessárias para

reprodução das relações de produção”, ou seja, todo o controle se faz pela

repressão, embora seus defensores assegurem que os ARE sejam utilizados

apenas em situações-limite e são secundárias as condições de reprodução dos AIE.

Na verdade um mantém o outro numa relação mutua de mascaramento e imposição

de uma dada realidade constituída. Segundo essa autora, o que diferencia um do

outro são as suas formas de funcionamento.

Para Orlandi (2007) a ideologia é constitutiva, ela faz parte do fazer histórico e

constitutivo do sujeito. O indivíduo só se torna sujeito quando faz uma leitura do

mundo constituído ideologicamente para a partir daí tomar sua posição interpretativa

da realidade enquanto linguagem em ação. Para a autora a ideologia é constitutiva

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do sujeito e dos sentidos, já que interpelam os indivíduos a se tornarem sujeitos. A

posição defendida pela autora é que nos jogos de linguagem entram outros

mecanismos que são desconhecidos pela consciência dos sujeitos como a

inconsciência, o esquecimento e as estruturas sociais que sustentam os discursos.

Orlandi defende que “Não há discurso sem sujeito. E não há sujeito sem

ideologia” (ORLANDI, 2007, p. 47). Trabalha com a noção de que a sociedade é

feita de discursos e que esses discursos refletem uma ideologia que são o conjunto

de normas que regulam o dizer e o saber dos sujeitos nas posições sociais por eles

ocupadas. Nesse sentido há uma relação dinâmica entre língua, discurso e história,

no qual o indivíduo é chamado a ser sujeito.

Para Althusser (apud, Orlandi, 2007) em sua segunda parte do ensaio sobre

ideologia, há uma ideologia geral gerada socialmente pelo discurso dos AIE e que

são aplicados às ideologias particulares. Nesse ponto o autor defende que todos

comungam com as mesmas normas de manutenção de uma dominância. Embora o

sujeito possa ser constituído pela ideologia enquanto discurso, ele está sujeito às

normas gerais da ideologia dominante. Quando o autor se refere a ideologias

particulares, está dizendo que a ideologia é quem assegura a existência do homem

comum em sua prática social, garantindo a ele uma legitimação de sua vida e ao

mesmo tempo em que, o interpela a participar da ideologia geral, ou seja, a

ideologia é o norte do sujeito nas práticas sociais cotidianas

Neste ponto Orlandi (2007) fala da não transparência da linguagem que,

atuando sobre os sujeitos constituídos pela linguagem, dão a falsa impressão de que

somos donos dos nossos dizeres. Isso se concretiza na materialidade do discurso

que trabalha língua, história e ideologia conjuntamente. Tudo está inscrito na língua

e na história de forma ilusória e seus sentidos são constituídos a partir do momento

da interpretação. A realidade não é dada transparentemente a priori, é interpretável.

A ideologia é um efeito de discurso.

Nessa linha de raciocínio, Foucault (1979) descarta a ideologia como sendo o

mascaramento e ocultamento da realidade pelos discursos da classe hegemônica.

Para ele ideologia é prática discursiva e relação entre as várias formações

discursivas, no sentido de que nenhum discurso é igual um ao outro, mas se opõem

naturalmente, já que são produzidos por sujeitos diferentes e em formações

discursiva diferentes, não sendo apenas um mascaramento ou ocultamento da

realidade, mas a manipulação do poder e do saber dos sujeitos na constituição dos

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sujeitos, das identidades e das instituições. Essa forma de encarar a ideologia está

presente nos trabalhos genealógicos do autor que não é o foco dessa pesquisa.

2.4 O enunciado

O conceito de enunciado, assim como o de sujeito, ideologia, o de discurso e

formação discursiva são também fundamentais para AD. Definir enunciado na

perspectiva da AD não é uma tarefa das mais fáceis, já que o mesmo não funciona

isoladamente, sem o sujeito e a formação discursiva, nem mesmo se não for

comparado com outros elementos da gramática e da retórica. Para podermos definir

o que é enunciado, melhor é saber o que ele não é.

Como já foi dito no capítulo sobre o método arqueológico, o enunciado não é

como uma proposição no plano dos estados de coisas do mundo no sentido de

Wittgenstein (1961). Ele está no plano do discurso, o que equivale dizer que os

enunciados não precisam nem necessitam ser submetidos a provas de verdadeiro e

falso, nem se referir às coisas do mundo de modo representativo; ele está mais para

o campo demonstrativo da linguagem.

O enunciado também não se confunde com a frase, que é própria da

gramática de normas, na qual os elementos constitutivos significam dentro de um

sistema fechado, homogêneo e fora do contexto extralinguístico. Nesse sentido há

uma distinção entre sentido e significação. A significação está para a frase com suas

regras dentro de um sistema linguístico organizado segundo seus constituintes

imediatos e divididos em partes constitutivas e exaustivamente identificados

segundo sua função linguística: sujeito, predicação, objeto direto, complementos.

“Um enunciado - qualquer que seja e por mais simples que o imaginemos - não tem

como correlato um indivíduo ou objeto singular que seria designado por determinada

palavra da frase” (FOUCAULT, 2008, p. 102). O sentido é para o enunciado aquilo

leva que conta as condições de produção, do sujeito e dos jogos de linguagem que

são postos em prática pelos falantes de uma determinada língua. “Entre o enunciado

e o que ele enuncia não há apenas relação gramatical, lógica ou semântica; há uma

relação que envolve os sujeitos, que passa pela história, que envolve a própria

materialidade do enunciado.” (SARGENTINI E NAVARRO-BARBOSA, 2004, p. 26-

27).

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Segundo Foucault:

Se não houvesse enunciados, a língua não existiria; mas nenhum enunciado é indispensável à existência da língua (e podemos sempre supor, em lugar de qualquer enunciado, um outro enunciado que, nem por isso, modificaria a língua). A língua só existe a título de sistema de construção para enunciados possíveis; mas, por outro lado, ela só existe a título de descrição (mais ou menos exaustiva) obtida a partir de um conjunto de enunciados reais. Língua e enunciado não estão no mesmo nível de existência; e não podemos dizer que há enunciados como dizemos que há línguas. (FOUCAULT, 2008, p. 96).

Na perspectiva do pensador francês, o enunciado é a condição de existência

de uma língua, não como um sistema homogêneo e fechado em si mesmo, mas a

língua como possibilidade de acontecimento19, ou seja, a possibilidade de aparecer

e poder reaparecer em novos jogos de linguagem e em novos efeitos de sentido.

Essa condição de possibilidade remete às condições reais de produção de uma

língua, diferentemente das condições ideais da língua dentro de um sistema fechado

de signos.

Nessa perspectiva de possibilidade e acontecimento, a existência do

enunciado está associada às condições reais de uso da língua como repetência20 e

incompletude. Um enunciado é repetível no sentido de poder o mesmo enunciado

ser utilizado com outro efeito de sentido e, incompletude no sentido de nunca estar

pronto e acabado, mas sempre a serviço de novas configurações semânticas.

Nesse sentido, Foucault diz:

Um enunciado existe fora de qualquer possibilidade de reaparecimento; e a relação que mantém com o que enuncia não é idêntica a um conjunto de regras de utilização. Trata-se de uma relação singular: se, nessas condições, uma formulação idêntica reaparece - as mesmas palavras são utilizadas, basicamente os mesmos nomes, em suma, a

19

A noção de acontecimento aparece nesse sentido como possibilidade de existência e aparecimento. A existência de um enunciado é sua possibilidade de acontecimento para a língua; além disso, o enunciado não pode ser considerado apenas em relação à linguagem escrita ou falada, ele pode se configurar em outras possibilidades que ultrapassam os limites da língua. Nesse sentido o enunciado é qualquer manifestação que se ligue a uma dada formação discursiva. 20

Essa questão significa que o enunciado é irrepetível porque o sentido poderá nunca ser o mesmo; repetível no sentido de que se pode usar as mesmas palavras em qualquer situação, mas o sentido sempre é modificado pelas condições de produção do enunciado em situações reais de uso da língua.

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mesma frase, mas não forçosamente o mesmo enunciado. (FOUCAULT, 2008, p. 101).

O enunciado, a depender de sua possibilidade de reaparecimento e

acontecimento, pode ser utilizado em outras situações reais de uso da língua em

novos jogos de linguagem buscando novos efeitos de sentido. Segundo Foucault

(2008), o enunciado com a mesma forma pode aparecer em outras possibilidades de

acontecimento sem que este seja o mesmo enunciado nem o mesmo sentido. Isso

explica o fato de o enunciado ser ao mesmo tempo repetível e irrepetível. Este no

sentido de sua forma linguística se repetir em outras situações de uso e com novos

sentidos e, aquele quando o enunciado possui significação única, ou seja, cada vez

que um enunciado aparece, ele possui sentido único.

Nessa perspectiva os objetos são constituídos pelo ponto de vista do analista.

Por exemplo, a caracterização de uma doença é feita por vários enunciados que são

pertinentes a ela. Na caracterização da loucura os enunciados do tipo: quadro de

fobias, pouco cuidado com os hábitos higiênicos, são prescritos na caracterização

de um louco. Já os enunciados que remetem, por exemplo, a conhecimento de seu

quadro clínico são tidos como não pertinentes e, portanto, não se enquadrando

nessa formação discursiva.

A formação dos objetos, dentro de uma formação discursiva específica, e os

discursos que cruzam essa superfície discursiva depende das regras de formação

dos enunciados dentro da formação discursiva. Da mesma forma podem aparecer

regras de formação diferentes para as formações discursivas particulares. Isso por

que as regras de formação dos discursos, dos objetos dependem do tipo de

enunciado que está envolvido no seu processo de formação.

Então a história não é contínua, é fragmentada e montada através de

enunciados e formações discursivas ideologicamente específicas dentro de um dado

campo enunciativo. Os objetos são formados dentro de uma formação discursiva

específica que os constitui e transformam em elementos de uma mesma categoria

discursiva, portanto, pertinente aos objetos em questão.

Segundo Foucault:

os enunciados, diferentes em sua forma, dispersos no tempo, formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto. Assim, parece que os enunciados pertinentes à Psicopatologia

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referem-se a esse objeto que se perfila, de diferentes maneiras, na experiência individual ou social, e que se pode designar por loucura. Ora, logo percebi que a unidade do objeto "loucura" não nos permite individualizar um conjunto de enunciados e estabelecer entre eles uma relação ao mesmo tempo descritível e constante. (FOUCAULT, 2008, p. 36).

De acordo com Foucault, essa operação permite ver a história não como uma

constituição a priori, mas em constante construção e reconstrução. A formação dos

objetos depende dos enunciados que são utilizados para categorizá-lo, no sentido

não da homogeneidade, mas da dispersão como fundação dos objetos históricos.

Dentro desta perspectiva a história não é nem linear nem sucessiva, mas

atravessada por vários enunciados que não foram inscritos na história como

arquivos oficiais. Assim é que se permite revisitar antigos arquivos que não estavam

na história oficial e desvendar outros sentidos aos que foram propostos inicialmente.

A análise de Foucault difere da linguística porque não trabalha com frases

nem proposições, analisando sua gramaticabilidade, inteligibilidade e suas noções

de verdade e falsidade, mas com discursos/enunciados que estando fora das

concepções de língua imanente, tornam possível o aparecimento de certos

enunciados em lugares sociais e institucionais diferentes. A essas formulações

pode-se chamar de formação discursiva ou identidade discursiva dos enunciados.

Portanto é necessário se perguntar o porquê da aparição de certos enunciados e

outros não. Por que aconteceram certos jogos de linguagem e não outros?

Segundo Sargentini e Navarro-Barbosa (2004), há uma relação intrínseca

entre o enunciado e o sujeito. O sujeito está para o enunciado assim como o

enunciado está para o sujeito, é uma relação de constituição. No entanto, Foucault

assegura que, embora o sujeito seja o produtor do discurso, ele não é seu dono

como já foi mencionado anteriormente em ideologia e formação discursiva.

Para Foucault:

não é preciso, pois, conceber o sujeito do enunciado como idêntico ao autor da formulação, nem substancialmente, nem funcionalmente. Ele não é causa, origem ou ponto departida do fenômeno de articulação escrita ou oral de uma frase; não é, tampouco, a intenção significativa que, invadindo silenciosamente o terreno das palavras, as ordena com o corpo invisível de sua intuição; não é o núcleo constante, imóvel e idêntico a si mesmo de uma série de operações que os enunciados, cada um por sua vez, viriam manifestar na superfície do discurso. É um lugar determinado e vazio que pode ser

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efetivamente ocupado por indivíduos diferentes; mas esse lugar em vez de ser definido de uma vez por todas e de se manter uniforme ao longo de um texto, de um livro ou de uma obra, varia - ou melhor, é variável o bastante para poder continuar idêntico a si mesmo, através de várias frases, bem como para se modificar a cada uma (FOUCAULT, 2008, p. 109).

Na perspectiva arqueológica de Foucault, o enunciado não se confunde com

seu autor, nem em substância nem mesmo em sua função, porque atividade

significativa da linguagem é um espaço vazio a ser preenchido por qualquer sujeito

socialmente localizado. Por isso a dificuldade de definir o enunciado e poucos

comentadores se arriscam em enfrentar tal tarefa. Esse espaço a ser preenchido

pelo sujeito é a própria relação de sentido entre o sujeito e o enunciado. Não há

como definir enunciado por si só, é preciso reforçá-lo com o conceito de sujeito que

já foi explicitado anteriormente, com discurso e formação discursiva. É por isso que

não há como falar de enunciado sem falar em seus elementos constitutivos, há uma

relação de coexistência e concomitância. É nesse sentido que Foucault assegura

que “uma sequência de elementos linguísticos só é enunciado se estiver imersa em

um campo enunciativo em que apareça como elemento singular” (SARGENTINI E

NAVARRO-BARBOSA, 2004, 30).

É nesse sentido que Foucault reforça:

não há enunciado em geral, livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo. (FOUCAULT, 2008, p. 114).

Desta perspectiva, o enunciado só faz sentido numa relação material de

existência de outros enunciados, ou seja, um enunciado só existe a partir de outro

enunciado ou outros enunciados pertencentes a um mesmo campo enunciativo.

Nessa relação é que aparece o conceito de formação discursiva e identidade dos

enunciados. Essa identidade é limitada pela imposição dos próprios enunciados, ou

seja, os próprios enunciados vão limitar a atuação desses enunciados no campo

discursivo.

Portanto, para Foucault (2008), enunciado é a possibilidade de existência da

língua, uma escolha a ser feita pelo sujeito que é uma lacuna a ser preenchida pela

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presença do outro, o que caracteriza uma condição material especificada pela

escolha do tipo de discurso que pode ser dito e não dito, uma escolha ideológica

fomentada e controlada pelos discursos que são veiculados socialmente.

2.5 Memória discursiva e interdiscurso

A memória, segundo Orlandi (2007), é determinante na constituição dos

sentidos historicamente construídos. É ela que aciona a cada momento de utilização

dos discursos os efeitos de sentido desejados pelos falantes. Ao enunciar, não são

proferidos apenas enunciados socialmente localizados e instituídos pelas relações

sociais de poder e saber. A memória ativa e reativa no discurso elementos que

remetem a discursos já concebidos e que na discursivização fazem emergir novos

efeitos de sentido.

Nesse sentido há uma relação da memória com o discurso, que nesse caso

chama-se interdiscurso, ou seja, aquilo que se fala antes e em outro tempo e lugar e

que é recuperado pela memória discursiva. A memória discursiva comporta saberes

e dizeres de enunciados já ditos e que numa situação específica de comunicação

reativa novos efeitos de sentido através do material simbólico histórico e já

sedimentado socialmente, como por exemplo, o significa do símbolo da cruz para os

cristãos, etc. Quando algo como essa simbologia é reativado pela memória

discursiva, ela já traz consigo o seu significado contextual e esse mesmo significado

é recriado em um contexto atual de uso da língua.

Para Orlandi a memória discursiva é:

O saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada. (ORLANDI, 2007, p. 31).

Para autora, o que torna possível a construção do sentido é o interdiscurso,

ou seja, a relação entre a memória e o discurso e a história, que traz a tona os

sentidos almejados pelos sujeitos numa situação de comunicação específica. Cada

palavra é tomada pela memória discursiva que retoma outros saberes já construídos

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para estabelecer as relações de sentido para o sujeito e a história. Nesse sentido a

memória é constitutiva do discurso.

A memória discursiva é a condição de produção do discurso, uma vez que no

contexto imediato, e, mais amplo que incluem o contexto sócio histórico, onde os

sujeitos estão engajados produzindo efeitos de sentido que são manipulados pelas

condições de produção do discurso em situações reais de uso da linguagem é a

condição de surgimento do discurso. Dessa forma, o discurso é o acionamento da

memória discursiva em um contexto real de uso da língua, por um sujeito

socialmente situado.

Essa relação da memória e do interdiscurso como fatores primordiais na

constituição dos discursos traz a noção de que não se pode dizer nada novo e

original e que tudo já foi dito, no entanto o sentido feito através das retomadas por

meio da memória discursiva já é um novo significado. No entanto, essa relação

estabelece que a originalidade seja um mito, enquanto que a criatividade é genuína,

ou seja, através da relação da memória com o discurso socialmente produzido pode-

se acionar antigas formas de saberes já concebidos em outras épocas e situações

distintas conjugadas com novas formas de dizer materializando no discurso e pelo

discurso novas formas de conhecimento. Nesse sentido o discurso é a junção da

memória como elemento constitutivo e da atualidade como elemento de formulação.

Para se produzir o discurso é necessário acionar o já-dito com a formulação dos

dizeres atuais.

Segundo Achard (1999) a memória é analisada em sua materialidade

complexa enfatizando a relação do texto com a imagem e o discurso na sua

passagem do dizível ao nomeado, ou seja, a memória deve ser objeto de análise na

sua materialidade, quando ela nomeia a partir de sua possibilidade de

materialização em algum discurso reminiscente. Dessa forma, a memória não pode

ser provada, se enquadra no discurso concreto já-dito.

Nesse caso da memória como um dos fundamentos do discurso

O que funcionaria então seriam operadores linguageiros imersos em uma situação, que condicionariam o exercício de uma regularidade enunciativa. Haveria deste modo, a colocação de uma série dos contextos e das repetições formais, numa oscilação entre o histórico e o linguístico. Através das retomadas e das paráfrases, produz na memória um jogo de força simbólico que constitui uma questão social. (ACHARD, 1999, p. 08).

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Para que a memória seja um dado do discurso é necessário, segundo o autor,

que jogos de linguagem imersos numa situação enunciativa para retomar outros

discursos, fazendo emergir uma regularidade que em contextos diversos são

repetidos e recuperados por interdiscursos através de jogos de força do poder

simbólico. Em outras palavras, é necessário o uso da linguagem em suas mais

variadas formas manipulando os jogos linguageiros do simbólico para que com os

resgates se possam sentir e ver a memória fazendo sentido.

Na pós-modernidade os objetos culturais são ferramentas manipuladoras de

memória, já que entrecruzam a memória coletiva e a história. Esses objetos são

operadores sociais de memória, uma vez que a memória passa a ser transferida da

cabeça das pessoas para os objetos da imprensa: computadores, pendrives, CDs

etc., e dessa forma pode-se falar de uma memória fabricada para fins específicos,

guardar o conhecimento humano para que futuras gerações possam desposar deles.

A produção de sentido para AD é o cruzamento do discurso com a memória e

a história através do interdiscurso. O interdiscurso é a emergência do discurso

recalcado na memória que vem a tona quando utilizado em outras situações

comunicativas, ou seja, cada discurso é ativado graças à memória que se fixou com

seus sentidos, e que nessa nova utilização ganha novos efeitos de sentido através

do interdiscurso. O discurso não é repetível na memória, ele é reorganizado

utilizando formas e estruturas da memória inconsciente na busca de novos efeitos

de sentido. A repetição do discurso em AD não existe, existem novos efeitos de

sentido a partir do dito e do não dito.

2.6 Os gêneros do discurso

A palavra gênero referindo-se a atividades relacionadas a textos, obras sejam

elas escritas, orais, encenadas e cantadas surge pela primeira vez na obra A

Poética de Aristóteles. Nessa obra o autor descreve as principais características dos

gêneros literários utilizados e cultuados e produzidos na época, mostrando suas

partes constitutivas e as maneiras mais corretas de se escrever, encenar ou

declamar um determinado gênero, já que dentre eles havia aqueles que tinham essa

natureza.

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Para o pensador grego, a constituição de um gênero se dava pela mimesis,

ou seja, pela imitação das ações dos homens. Essa imitação não era qualquer uma,

já que assim como os homens havia as ações que eram consideradas superiores e

as ações inferiores. As ações superiores e inferiores eram caracterizadas pela índole

dos homens que a praticavam e a positividade dessa índole pelo tipo de ação que a

sociedade grega considerava inferior e superior, ou seja, havia uma relação

mimética entre as ações e os gêneros que as representavam.

Assim como os gêneros, os poetas eram caracterizados pelo tipo de gênero

que escreviam. Os poetas superiores escreviam em gêneros que tratavam das

ações superiores, como os poemas épicos e as tragédias. Já os poetas inferiores

escreviam em gêneros menos nobres como as comédias, que imitavam as ações

cômicas e grotescas dos homens. Essa categorização de criava gêneros complexos

e simples. Os complexos não só tratavam das ações superiores dos homens, mas

tinham sua narrativa mais complexa com elementos caracterizadores como a

catarse, a peripécia e o reconhecimento, etc. Os gêneros simples imitavam ações

mais simples, tinham a narrativa com menos tramas e amarras menos complexas e

tinham a finalidade de divertir e entreter o povo. Todos esses elementos,

especialmente os dos gêneros complexos, deveriam desembocar num desfecho de

felicidade e infortúnio, sendo o mais apreciado pelos gregos fins trágicos e ações

não lineares, com personagens altamente complexados e enredo intrigante.

Segundo Aristóteles:

Essas distinções se podem encontrar na dança, na arte da flauta ou da cítara; assim também na prosa e na poesia não musicada. Homero imitava homens superiores; Cleofonte iguais; Hegêmon de Tasos, o primeiro a escrever paródias, e Nicócares, o autor da Dilíada, os inferiores; o mesmo se aplica aos ditirambos e nomos como o provam, nos Ciclopes, Timóteo e Filóxeno. (ARISTÓTELES,

1999, p. 38-39).

Na perspectiva aristotélica as distinções entre o que era inferior e superior se

davam tanto nas artes da música e da escrita em verso ou prosa. Para o pensador,

as artes eram imitações dos homens e por isso seguia os critérios de inferioridade e

superioridade, pois havia, entre os gregos, ações que eram consideradas mais

nobres como as ações desenvolvidas nas tragédias em que havia intervenções de

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divindades21 ou ações que imitavam ou estavam de acordo com a tradição22 de

compor. Outras, porém menos nobres, eram ações corriqueiras do povo, ou

imitações de homens de péssima índole, ou ações que discordavam da tradição

grega de compor nas artes.

No livro A Poética, se tem uma teoria sobre a arte literária grega dedicada

exclusivamente aos gêneros literários. Nele se pode perceber a categorização sobre

os diferentes gêneros literários produzidos na sociedade grega da época de

Aristóteles, que nesse trabalho não tem a intenção de esmiuçar a obra do autor

grego referente aos gêneros literários, mas mostrar o quão longínqua é a relação do

homem com a linguagem e com a organização da linguagem pelos gêneros, embora

em Aristóteles os gêneros fiquem exclusivamente reduzidos aos gêneros literários.

Para Brait:

Para a clássica teoria dos gêneros, a definição das formas poéticas se manifestava em termos de classificação. A obra de Aristóteles é muito clara nesse sentido. Em sua Poética, classifica os gêneros como obras da voz tomando como critério o modo de representação mimética. Poesia de primeira voz é a representação lírica; a poesia de segunda voz, da épica, e a poesia de terceira voz, do drama. Trata-se de uma classificação paradigmática e hierárquica, facilitada pela observação das formas no interior de um único meio: a voz. (BRAIT, 2008, p. 151).

Segundo Brait (2008), os gêneros na poética de Aristóteles foram uma forma

de classificar as formas nas quais os gêneros se manifestavam. Para a autora essa

representação mimética classifica os gêneros segundo suas vozes, ficando cada

gênero restrito a um tipo de manifestação específica. A intenção de Aristóteles,

nesse sentido, segundo a autora era fazer uma classificação hierárquica dos

gêneros, explicitando inclusive seu grau de inferioridade e superioridade graças à

relação que esses gêneros tinham com a cultura grega.

Segundo a mesma autora, Platão já havia classificado os gêneros numa

classificação binária definidos pelas esferas de domínios desses gêneros. Para

21

Para os gregos, as divindades possuíam os mesmos desejos e caracteres dos humanos: eram invejosos, traiçoeiros, covardes, etc., e podiam se manifestar entre o povo de qualquer ser para conviver entre os homens. 22

Essa tradição teórica que foi criada pelo próprio Aristóteles, assim como boa parte das teorias mais abrangente de todos os tempos no campo da poesia, vindo a ser menos valorizada com o surgimento e, posteriormente, valorização da prosa.

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Platão havia os gêneros sérios que circulam restritamente nas esferas mais

elaboradas da sociedade grega como a epopeia e a tragédia, que se opunham em

termos de seriedade ao burlesco, como a comédia e a sátira, que circulavam para

outras camadas da sociedade grega.

No livro A República, Platão muda seu foco para uma elaboração triádica dos

gêneros a partir da relação entre realidade e representação bem explicitadas

também no Mito da caverna. Nessa reconfiguração o gênero dramático ou mimético

pertenceria à tragédia e a comédia, o gênero expositivo, narrativo, ditirambo e

nomos à poesia lírica e, o gênero misto à epopeia. Toda essa classificação de

Platão se fundava no conceito de mimesis que vai ser retomado por Aristóteles

como paradigma para a tragédia que o mesmo irá denominar de poesia, ou seja,

para Aristóteles o conceito de poesia é a própria tragédia, assim como a epopeia e o

ditirambo.

O trabalho de Aristóteles sobre os gêneros se consagrou na literatura,

principalmente no campo da Poética e da Retórica. Sua obra será um paradigma

para o estudo dos gêneros literários no campo letrado durante os séculos que se

seguem até o surgimento da prosa comunicativa desenvolvida por Mikhail Bakhtin.

Os estudos de Bakhtin (1997) sobre o romance irão

marcar a época da prosificação da cultura, uma vez que o autor dará grande

importância aos gêneros prosaicos comunicativos, principalmente, aos gêneros

surgidos no cotidiano. A intenção de Bakhtin é fazer uma revisão e reviravolta de A

Poética de Aristóteles, não simplesmente descartando-a, mas mostrando seu lado

prosa sobre o qual o pensador grego não escreveu.

Como assinala Brait:

Os estudos que Mikhail Bakhtin desenvolveu sobre os gêneros do discurso considerando não a classificação das espécies, mas o dialogismo do processo comunicativo, estão inseridos no campo dessa emergência. [...] as relações interativas são processos produtivos de linguagem. Consequentemente, gêneros e discurso passam a ser focalizados como esferas de uso da linguagem verbal ou da comunicação fundada na palavra. (BRAIT, 2008, p. 152).

Os estudos de Bakhtin centravam-se na palavra em uso. Todo o processo de

uso da palavra estava ligado ao seu universo cultural e social, mostrando não uma

classificação exaustiva de configuração dos gêneros do discurso, mas a sua

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emergência e agência em meio a processos interativos e produtivos de usos da

linguagem. Esses processos levam em conta o fato de a linguagem ser entendida

em seu processo comunicativo, no qual há interação entre seus locutores e

interlocutores de forma dialógica, ou seja, não há uma fonte única e responsável

pelo discurso, mas sujeitos com as mesmas atitudes responsivas frente aos atos

comunicativos dentro de um determinado gênero do discurso. O dialogismo vai ser

para a teoria de Bakhtin um dos conceitos fundamentais que irá fundamentar a ideia

de discurso, sujeito e ideologia.

Embora se concentre, inicialmente, nos estudos dos gêneros de texto dentro

da literatura, mostrando uma grande riqueza de análises de personagens, enredo e

trama, baseados em conceitos como dialogismo, polifonia, enunciado etc., Bakhtin

vai paulatinamente se dedicando ao estudo dos gêneros da linguagem ordinária,

mostrando nela também a emergência de gêneros com outras categorias

expressivas que diferem dos outros gêneros mais bem elaborados da cultura, assim

como Aristóteles, pelo grau de complexidade, pelas esferas de circulação e

produção desses gêneros e pelos novos tipos de gêneros que se originam a partir

de outros já existentes, ou seja, os gêneros híbridos.

Esse hibridismo visto inicialmente por Bakhtin, irá mostrar que nenhum

gênero é puro, mas que sofre influência de outros gêneros. Seja eles do cotidiano ou

das esferas sociais mais elaboradas, ou seja, a cultura e o uso da língua em

situações concretas de comunicação rompem com as antigas barreiras ditas por

Aristóteles e se entrelaçam uns aos outros. Em sua análise e teoria do romance, o

pensador russo mostra que um simples diálogo do cotidiano vem a ter outra função

dentro de um romance polifônico. Os romances se tornam vulgares ao fazer parte

das esferas mais imediatas da comunicação e vice-versa, ou seja, há um movimento

constante de diálogo entre a infraestrutura e a superestrutura.

Um conceito fundamental na obra de Bakhtin é o de interação. Tomando por

base os estudos de Ferdinand de Saussure23 sobre a língua enquanto sistema

abstrato de signos linguísticos, ela mostrou que a linguagem é a interação e o

plurilinguismo (não monolinguismo), a ferramenta necessária ao estudo efetivo da

linguagem.

23

Bakhtin chamará de objetivismo abstrato a tendência saussuriana ao descartar o sujeito, a história e a cultura, centrando-se somente no sistema linguístico.

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Sobre o que foi dito anteriormente no livro de 1929, intitulado Marxismo e

filosofia da linguagem assinado com o pseudônimo de Volochinov24, a interação:

é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função

da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.). Não pode haver interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado. Se algumas vezes temos a pretensão de pensar e de exprimir-nos urbi et orbi, na realidade é claro que vemos “a cidade e o mundo” através do prisma do meio social concreto que nos engloba. Na maior parte dos casos, é preciso supor, além disso, um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a criação ideológica do grupo social e da época a que pertencemos (BAKHTIN, 2006, p. 106).

Na perspectiva bakhtiniana da interação verbal a enunciação, que é o

momento da produção da fala, exige locutores (locutor e interlocutor) que estejam

socialmente organizados numa situação comunicativa. Segundo esse pensamento

não há um locutor irreal, abstrato ou imaginário, mas locutores e interlocutores reais

numa situação concreta interagindo por meio da linguagem. Essa interação pode-se

dar com pessoas do mesmo grupo social, ou de grupos sociais distintos, o que

categoriza e organiza um determinado gênero do discurso. Além disso, cada grupo

social é organizado segundo seus discursos, que de certa forma restringe os usos

que se fazem da linguagem em determinadas situações. Essa forma de encarar os

gêneros dentro de uma determinada esfera do conhecimento é semelhante ao

conceito de formação discursiva em Foucault (2008), segundo a qual os discursos

são organizados em torno de um discurso cujos enunciados a ele se referem de

maneira relacionada e associada mostrando que o sentido é constituído a partir de

um conjunto de enunciados que se referem a um objeto específico, igual os gêneros

do discurso. Bakhtin trabalha com a ideia de esfera de produção do discurso,

Foucault com a ideia de campo de formação de unidades enunciativas, conceitos

bem semelhantes. Esses dois conceitos de pertinência e relação são bem

24

Seus comentadores explicam que esses pseudônimos eram pessoas ligadas ao circulo de Bakhtin que, por o autor viver constantemente se deslocando de um lugar para o outro devido às perseguições, lançava seus escritos no nome de amigos.

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evidenciados na obra dos dois pensadores supracitados. Embora Bakhtin e Foucault

se refiram às formas de organização do pensamento em gêneros do discurso e

formação discursiva, ambos divergem nos dispositivos aplicados a cada categoria do

discurso e formulam suas hipóteses de ângulos diferentes: pela interação de

indivíduos socializados numa situação concreta de uso da língua, pela relação do

sujeito com a língua e a sociedade e o assujeitamento e morte do homem por meio

da linguagem.

A descoberta25 dos gêneros do discurso foi uma guinada para os estudos do

homem e das sociedades modernas. Bakhtin formula a teoria dos gêneros do

discurso, não, naturalmente, pensando no ensino, mas sim em demonstrar uma

nova forma de encarar os gêneros desde Aristóteles, já que a linguagem era

estudada em face apenas dos gêneros retóricos, em que predominava o estudo da

forma e do conteúdo com fins meramente estilísticos26. Ele mostrou a emergência

de gêneros discursivos no campo da prosa em todos os seguimentos da sociedade.

Mais do que forma e conteúdo, Bakhtin demonstrou que os gêneros eram

produto da atividade humana. “A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são

infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera

dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai

diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica

mais complexa” (BAKHTIN, 1997, p. 280), e estavam intrinsecamente ligadas às

práticas sociais, e que por isso, sua circulação e produção emergia da infraestrutura

à superestrutura em um movimento dialógico, em que, o segundo reelaborava o

primeiro e utilizava deste para fins pragmáticos e ideológicos. Os gêneros são tão

inesgotáveis quanto as atividades humanas e variam de acordo em que se

desenvolve sua esfera de produção e circulação desses gêneros.

Os gêneros do discurso surgem não como uma revolução (não deixa de ser

também), mas como um novo olhar sobre o estudo e produção da linguagem. Ao

levar em conta sua produtividade, Bakhtin traz para cena, não só o discurso bem

elaborado como o discurso científico e o romance de muitos volumes etc., mas

também os discursos que são produzidos nas esferas mais imediatas da população

como o diálogo face a face, a conversa de esquina, as discussões entre vizinhos, as

25

Na verdade o termo descoberta é usado no sentido de que somente há poucos anos o gênero começou a ser estudado, enquanto que sua aparição como teoria fundamentada já faz muitos anos. 26

O estilo deve ser entendido nesse período com referência a estilística clássica.

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letras de músicas, mostrando que embora cada um com suas particularidades, todos

são simplesmente gêneros que pertencem a uma dada esfera discursiva. Isso, de

certa forma, serve para diminuir os preconceitos sobre a linguagem popular que

impera, por exemplo, nos estudos de gramática normativa. A essa nova

configuração de usos da linguagem em situações concretas de uso Bakhtin chamou

de “tipos relativamente estáveis” (BAKHTIN, 1997, p. 280), ou seja, os gêneros do

discurso.

É possível, com a teoria dos gêneros do discurso, perceber que a linguagem

não é simplesmente forma e conteúdo, mas que é constitutiva, ou seja, não importa

de onde e por que sujeito ela é produzida, importa que ela é constitutiva dela e do

sujeito que a produz; nesse ponto, a linguagem é constitutivamente constitutiva. A

linguagem é vista em sua realização concreta com enunciados concretos com

sujeitos reais em situações reais de uso da língua.

Portanto, a teoria dos gêneros discursivos é uma abertura às várias

manifestações da linguagem sem prescrições gramaticais e com interesses

pragmáticos de saber que ela é constitutiva do ser humano e por ele produzida. Os

gêneros, nesse caso, são a organização da linguagem humana nas esferas da

produção no campo em que é produzida.

Aparecem na obra de Bakhtin os termos infraestrutura e superestrutura como

o suporte teórico-metodológico para explicar a emergências dos gêneros

discursivos. O primeiro nível, chamado de infraestrutura, constitui a base econômica

(que é determinante, segundo a concepção materialista). Engloba as relações do

homem com a natureza, no esforço de produzir a própria existência, e as relações

dos homens entre si. Ou seja, as relações entre os proprietários e não proprietários,

e entre os não proprietários e os meios e objetos do trabalho. O segundo nível,

político-ideológico, é chamado de superestrutura. É constituído pela estrutura

jurídico-política representada pelo Estado e pelo direito: segundo Marx, a relação de

exploração de classe no nível econômico repercute na relação de dominação

política, estando o Estado a serviço da classe dominante, pela estrutura ideológica

referente às formas da consciência social, tais como a religião, as leis, a educação,

a literatura, a filosofia, a ciência, a arte etc. Também nesse caso ocorre a sujeição

ideológica da classe dominada, cuja cultura e modo de vida reflete as ideias e os

valores da classe dominante.

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Bakhtin traz esses conceitos para o campo da linguagem, explicitando que

tanto a infraestrutura como a superestrutura são produtoras de discurso. Esses

discursos não são apenas uma produção aleatória, mas um discurso que mostra

tanto do ponto de vista da infraestrutura como da superestrutura sua ideologia. Essa

produção também se organiza dependendo da esfera de uso da língua onde é

produzida, ou seja, cada esfera da comunicação elabora seus “tipos relativamente

estáveis” (BAKHTIN, 1997, p. 280), de gêneros discursivos com propósitos

definidos.

Segundo Bakhtin (1997):

Classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um único e mesmo código ideológico de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Consequentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve

a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir. O signo, se subtraído às tensões da luta social, se posto à margem da luta de classes, irá infalivelmente debilitar-se, degenerará em alegoria, tornar-se-á objeto de estudo dos filólogos e não será mais um instrumento racional e vivo para a sociedade. A memória da história da humanidade está cheia destes signos ideológicos defuntos, incapazes de constituir uma arena para o confronto dos valores sociais vivos. (BAKHTIN, 2006, p. 45).

Os gêneros do discurso são produzidos numa mesma comunidade linguística,

e mesmo que seus usuários sejam diversos, não importa por quem os produziu, pelo

menos em termos de produção, importa que essa produção engloba todos os

usuários da língua em condições diversas. Dessa forma, os gêneros emergem das

esferas mais imediatas da comunicação até serem organizados pelas esferas

discursivas mais complexas, entrecruzando, assim, gêneros de várias modalidades

de usos da língua, ou seja, do cotidiano às esferas mais elaboradas da sociedade.

Isso é que Bakhtin chamou de ideologia. Ela não é simplesmente o embate de

classes no campo da política e da economia e nem simplesmente um mascaramento

da realidade pela classe dominante. Cada esfera da comunicação elabora seus tipos

de discursos relativamente estáveis; o cotidiano elabora gêneros mais imediatos

próximos da realidade concreta e tem certa instabilidade, que é moldada pelas

esferas mais elaboradas como a política, a economia e a publicidade etc., que é

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transformada em ideologia dominante pela sua estabilidade de formas e conceitos.

Em suma a ideologia nasce nas classes subalternas, onde é moldada e modificada

constantemente e possui relativa instabilidade. Ao chegar às esferas hegemônicas

essa ideologia ganha relativa estabilidade.

Os gêneros do discurso refletem e refratam entre si. Cada gênero por si só,

depende da esfera discursiva onde é produzido, já é um reflexo e uma refração de

discursos já produzidos. Entenda-se que a realidade é mediada por discursos, nada

vem a fazer sentido a não ser pela linguagem, e o gênero é o que dá forma a essa

linguagem, ou seja, o gênero é o passaporte para o conhecimento da realidade

imediata. Essa concepção de Bakhtin é outro fator importante que é a alteridade.

Através da alteridade os sujeitos refletem e refratam uma realidade linguística. Ao

absorver e negar certas vicissitudes da vida o sujeito se constrói em relação ao

outro. Tanto na constituição do sujeito quanto do discurso o outro tem papel

fundamental.

Os gêneros do discurso são produtos da atividade humana e cada esfera

social produz seus tipos relativamente estáveis com fins e propósitos definidos e por

isso eles emergem de uma esfera mais imediata como a conversação face a face, a

conversa de botequim, as cartas pessoais, as anedotas etc., a gêneros mais

elaborados da esfera discursiva como o próprio romance, o artigo científico, os

discurso jornalístico, isto é, há um dialogismo entre a infraestrutura e a

superestrutura, uma e outra refletem e refratam os discursos que circulam entre

ambas. A reprodução de um diálogo por meio do discurso direto no meio de um

romance tem fins e propósitos que não são os mesmos de um diálogo espontâneo

entre dois locutores.

Desta perspectiva, Bakhtin diz que:

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e

escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou

daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as

condições específicas e as finalidades de cada referido campo não

só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja,

pela seleção de recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da

língua, mas acima de tudo, por sua construção composicional. Todos

esses três elementos [...] estão indissoluvelmente ligados no todo do

enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um

determinado campo da comunicação [...] cada enunciado particular é

individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus

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tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos

gêneros do discurso. (BAKHTIN, 1997, p. 261-262).

De acordo com Bakhtin (BAKHTIN, 1997) os gêneros do discurso são

entidades relativamente estáveis, produtos da atividade humana e que se

caracterizam por seu estilo, conteúdo temático e construção composicional. Dessa

forma, cada esfera27 da atividade humana elabora tipos de discurso com relativa

durabilidade, ou seja, a cada momento a produção humana de discursos se amplia e

evolui produzindo novos gêneros e substituindo ou renovando os antigos gêneros.

Implica, portanto dizer que todo gênero (para o Bakhtin enunciado em seu sentido

amplo) deve obrigatoriamente possuir conteúdo, estilo28 e composição.

Além disso, Bakhtin classifica os gêneros do discurso em primários e

secundários. Ele diz que:

Aqui é de especial importância atentar para a diferença entre os

gêneros discursivos primários (simples) e secundários (complexos) –

não se trata de uma diferença funcional. Os gêneros discursivos

secundários (complexos- romances, dramas, pesquisas cientificas de

toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas

condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente

muito desenvolvido e organizado (predominantemente escrito). [...].

No processo de sua formação eles incorporam e reelaboram diversos

gêneros primários (simples) que se formaram nas condições da

comunicação discursiva imediata. Esses gêneros primários, que

integram os complexos, aí se transformam e adquirem um caráter

especial: perdem o vínculo imediato com a realidade concreta e os

enunciados alheios. (BAKHTIN, 1997, p. 263).

O autor dá extrema importância à questão da produção dos gêneros do

discurso, tanto que faz a diferença entre os gêneros primários, aqueles que são

produzidos nas esferas mais imediatas da comunicação, ou seja, na infraestrutura e

os complexos que são produzidos em condições mais elaboradas, ou seja, na

superestrutura. No entanto é importante salientar que essa divisão não é estática no

processo de produção dos gêneros discursivos – os gêneros complexos absorvem e

modificam os gêneros primários, dando-lhes um caráter específico dentro de sua

27

Preferimos aqui o termo “esfera” por ser mais predominante na obra do círculo bakhtiniano. 28

Brait 2007.

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esfera de circulação e os utilizam para fins pragmáticos, tanto que até uma conversa

entre amigos sobre um fato da vida cotidiana, ou qualquer fato insignificante, pode

se transformar em uma dissertação filosófica.

Há ainda outra característica dos gêneros do discurso que é a hibridização.

Um gênero de conteúdo, estilo e composição próprios pode configurar em outro de

natureza diversa, isto é, um gênero pode se manifestar funcionalmente em outro, por

exemplo, um poema escrito em forma de uma receita de bolo; uma bula de remédio

escrita em forma de um poema, etc.

Para Bakhtin:

A modelagem das enunciações responde aqui a particularidades

fortuitas e não reiteráveis das situações da vida corrente. Só se pode

falar de formulas específicas, de estereótipos no discurso da vida

cotidiana quando existem formas de vida em comum relativamente

regularizadas, reforçadas pelo uso e pelas circunstancias. Assim,

encontram-se tipos particulares de formulas estereotipadas servindo

às necessidades da conversa de salão, fútil e que não cria nenhuma

obrigação, em que todos os participantes são familiares uns aos

outros e onde a diferença principal é entre homens e mulheres.

(BAKHTIN, 1997, p. 125).

Em Marxismo e filosofia da linguagem, no capítulo sobre a interação verbal,

há uma defesa implícita e explicita sobre os gêneros do discurso. Nessa obra

Bakhtin discorre sobre o gênero como sendo uma atividade humana que é produto

da interação entre indivíduos na sociedade. Ao defender a ideia de que todo produto

da atividade humana parte do social para o individual e deste para o social, defende

que a expressão do pensamento se dá sob formas de interação entre indivíduos seja

qual for seu lugar e os sujeitos envolvidos. Essas formas vêm a se concretizar em

enunciados reais que se organizam em um dado gênero discursivo, seja na infra ou

na superestrutura.

Todo conjunto da obra de Bakhtin se organiza em função dos gêneros do

discurso. Vejam-se os termos enunciados, texto, discurso, que aparecem em sua

obra. De alguma forma todos caminham juntos com a ideia de que toda produção da

atividade humana, em termos de linguagem, acontece por meio de um gênero

específico, seja na infra ou na superestrutura.

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Os termos intertextualidade e interdiscursividade não estão presentes,

explicitamente, na obra de Bakhtin. Eles são inferências feitas a partir de estudos

feitos por Julia Kristeva em que todo texto é um intertexto, outros textos estão

presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis.

A função da intertextualidade e interdiscursividade no campo da linguagem é

mostrar a construção de sentidos é um processo dialógico, onde tudo já foi dito,

apenas escolhemos outras maneiras de dizer o dito, porém por meio desses

processos aparecem novos sentidos através do uso de recursos de retomada de

textos e discursos, e da memória discursiva. Dependendo do ponto de vista, ambos

os termos são a mesma coisa.

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3. TROPICALISMO E A RETOMADA DA LINHA EVOLUTIVA DA

MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

A Tropicália, Tropicalismo ou Movimento Tropicalista foi um movimento

cultural brasileiro que surgiu sob a influência das correntes artísticas de vanguarda e

da cultura pop nacional e estrangeira, como o pop-rock e o concretismo, que

misturou manifestações tradicionais da cultura brasileira junto às inovações estéticas

radicais como a poética de Oswald de Andrade e o rock.

Esse movimento tinha objetivos comportamentais, que encontraram eco em

boa parte da sociedade, sob o regime militar, no final da década de 1960. O

movimento manifestou-se em várias correntes artísticas, principalmente, na música

cujos maiores representantes foram Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa,

Torquato Neto, Os Mutantes e Tom Zé. Um dos maiores exemplos do movimento

tropicalista foi uma das canções de Caetano Veloso, denominada exatamente de

Tropicália. Todos esses elementos da música e das artes plásticas estavam

engajados num movimento de renovação das artes em geral. Pretendia-se

experimentar novas formas de fazer arte diante da exigência social pós-moderna e

da cultura pop, pelo fato de querer tornar popular a arte nacional.

O movimento surgiu da união de uma série de artistas baianos, no contexto

do Festival de Música Popular Brasileira de 1967, promovida pela Rede Record, em

São Paulo, e Globo, no Rio de Janeiro. Esse foi um momento crucial para a

definição da Tropicália, o Festival de Música Popular Brasileira, no qual Caetano

Veloso interpretou Alegria, Alegria e Gilberto Gil, ao lado dos Mutantes, Domingo no

Parque. No ano seguinte, o festival foi integralmente considerado tropicalista (Tom

Zé aí apresentou a canção São Paulo). No mesmo ano foi lançado o disco Tropicália

ou Panis et circensis, considerado quase como um manifesto do grupo. Embora não

tenha surgido com esse nome, Tropicalismo, seus principais expoentes, Caetano e

Gil, defendem que esse nome foi muito conveniente por sermos um país tropical. A

ideia tropical sugere também uma salada de culturas, um liquidificador de acarajés

(termos usados por Caetano Veloso em Verdade Tropical, capítulo sobre a música

Tropicália).

Falar em Tropicalismo não é só reviver o passado, nem muito menos se

lembrar da época dos festivais e de Caetano Veloso e Gilberto Gil. O Tropicalismo

foi muito mais que isso. Foi uma época de rupturas, de inovação, de provocação, de

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experimentação do novo e contestação radical da cultura, assim como a

reelaboração dessa mesma cultura.

A década de 1960 foi uma época de grande efervescência cultural, política e

luta pela liberdade de expressão, marcada pelo golpe militar e pela implantação da

Ditadura Militar e, antagonicamente, pela conservação de uma cultura acadêmica e

anacrônica que buscava na cultura nacional por si só uma consagração de uma

identidade nacional na música, no cinema, nas artes plásticas. O Tropicalismo surge

como um movimento de vanguarda, de ruptura e enfrentamento desse contexto

social imediato. Ele vai ser uma revolução para a sociedade da época.

O Tropicalismo consegue filtrar todas essas inovações e experimentações da

década de 1960 e transmiti-las através de uma música rica em contrastes de formas

e sentidos, cores, luzes e som. Muitas inovações do campo social e artístico da

época cabem no Tropicalismo, sejam elas a cultura hippie, o kitsch, o rock

americano, poesia concreta, filosofia niilista, cultura de massa (pop arte), liberdade

sexual e religiosa, novas técnicas de trabalhar a linguagem como a paródia, o

pastiche, a intertextualidade, colagens, plágio, etc.

Nesse sentido amplo podemos falar não apenas de Tropicalismo, mas sim de

tropicalismos. Como foi um movimento cosmopolita baseado em várias correntes

artísticas de cunho social e cultural, podemos também citar o Tropicalismo como arte

alienante baseada na cultura urbana e cultura de massa sem preocupações

estéticas e sociais. Tropicalismo como resgate da música popular brasileira com o

declínio do samba do morro e da Bossa Nova. Tropicalismo como arte importada

como mero exibicionismo calcado no poderio das novas estéticas e formas de

compor do rock americano, do cinema de Hollywood com seus artistas mascando

chicletes e usando jaquetas de couro. Movimento literário radical apoiado na poesia

de Oswald de Andrade e na poesia concreta dos irmãos Campos. E, por último, a

que se pretende esboçar neste texto, movimento musical de cunho estético que de

forma sincrética junta vários elementos da cultura nacional fundindo-os com

elementos da cultura internacional, especialmente os da cultura americana. Vale

salientar que todos os artistas do Tropicalismo tiveram ampla experiência na terra do

“Uncle Sam”

Os maiores expoentes do Tropicalismo foram, ambos baianos e nordestinos,

inclusive é válido dizer movimento tropical baiano, tinham tendências artísticas e

sociais se enquadravam no novo cenário do mundo pós-moderno. Cultivavam uma

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perspectiva musical nacional que viesse resgatar a Bossa Nova de João Gilberto

que se encontrava em declínio, e ao mesmo tempo, mostrar um Brasil renovado pela

tecnologia, pela televisão e pelo rádio e com a constante urbanização de suas

cidades e alargamento dos grandes centros como o Rio de Janeiro e São Paulo,

eixo da cultura da década de 1960.

A forma de compor e cantar dos Tropicalistas trouxe para a cena o Nordeste e

o nordestino. Eles entendiam o Nordeste recriado por José Lins do Rego, Jorge

Amado, Gilberto Freire e, mais recentemente Ariano Suassuna, e outros expoentes

da literatura de 1930, estava ultrapassado. Esses autores mostram aqueles quadros

de pobreza, fome e seca e o nordestino como matuto, atrasado, violento e fiel aos

coronéis e santos do povo. Tentou-se mostrar que a modernização das cidades deu

uma nova configuração a essa gente, que na cidade grande tinha trabalho

assalariado, a mulher podia sair para trabalhar e dividir as despesas de casa, os

filhos podiam ir à escola, perdendo-se, assim, o regime patriarcal e

consequentemente o coronelismo com a saída do nordestino para a cidade.

O Tropicalismo foi um movimento musical radical de ruptura e muita polêmica,

que congrega de forma sincrética, vários elementos e tendências sociais, como por

exemplo, roupas extravagantes e coloridas, guitarras elétricas, letras de música com

sintaxe deslocada de um lado e de outro, a adoção de uma postura niilista e

existencialista, que junta Freud e Sartre, cultura popular e cultura erudita, cultura

nacional e internacional etc.

O movimento tropicalista ganhou força com os movimentos estudantis da

USP, da UNE e do DCE, que na efervescência do regime militar, tentavam romper

com algumas posturas muito presentes aqui no Brasil como a arcaização da cultura

através dos centros de cultura, do militarismo e da manutenção da cultura nacional e

do populismo. Esse movimento buscava uma ruptura com os padrões sociais

vigentes na época relativos à sociedade e à cultura, pregando a liberdade sexual, a

livre expressão do pensamento e que terá na música o seu ápice.

O Tropicalismo tentava unir o popular, o pop e o experimentalismo estético.

As ideias tropicalistas acabaram impulsionando a modernização não só da música,

mas da própria cultura nacional, numa tentativa de sincretizar a identidade nacional,

inclusive a nordestina e a renovação do discurso sobre o Nordeste de forma

discursiva, reunindo seus principais elementos representativos no campo musical.

Dessa forma, mostram em suas músicas um Brasil moderno ao lado de formas

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musicais consideradas arcaicas pelos tropicalistas, retiradas das cantigas de roda,

do folclore e da música nordestina, especialmente de Luiz Gonzaga e Jackson do

Pandeiro, deixando explícito que a identidade do Brasil reunia de forma sincrética

todos os elementos da música nacional. Teve-se, nesta perspectiva, uma nova

visão da identidade nordestina constituída não apenas pelo discurso regionalista,

mas pela junção de vários elementos que congregavam em suas descontinuidades

saberes que poderiam ser sincretizados para criar novos efeitos de sentido.

No tocante à reinvenção do Nordeste, o Tropicalismo renovou no sentido de

mostrar as visibilidades e dizibilidades de um Nordeste que se urbanizava e rompia

com as velhas tradições de formas inventadas pelos romancistas da década de

1930. O movimento Tropicalista veio mostrar através de suas músicas que o

Nordeste defendido na literatura era uma invenção construída sobre a memória do

povo saudosista que brutalmente resistia às mudanças que afloravam na

modernidade tardia.

Nesse movimento musical sincrético com canções que compunham um

quadro crítico e complexo do País – uma conjunção do Brasil arcaico e suas

tradições, segundo Favaretto (2007), do Brasil moderno e sua cultura de massa e

até de um Brasil futurista, com astronautas e discos voadores, elas sofisticaram o

repertório de nossa música popular, instaurando em discos comerciais

procedimentos e questões até então associados apenas ao campo das vanguardas

conceituais.

A forma sincrética adotada pelos tropicalistas pretendia modernizar a música

brasileira conjugando vários elementos dessa música, como o arcaico e o moderno

convivendo juntos, formando uma só identidade sincrética. Essa modernização era a

retomada da linha evolutiva da música popular brasileira iniciada pela Bossa Nova

de João Gilberto, com elementos novos tirados da própria tropicalidade do Brasil.

Nesse sentido os Tropicalistas buscavam na música uma inovação que fosse

sincrética e inovadora e ao mesmo tempo aberta e incorporadora. O Tropicalismo

misturou rock, bossa nova, samba, rumba, bolero e baião. A festa tropicalista

quebrou o dualismo que permanecia no país como os pares idealísticos: Pop x

folclore, alta cultura x cultura de massas, tradição x vanguarda. Essa ruptura

estratégica aprofundou o contato com formas populares ao mesmo tempo em que

assumiu atitudes experimentais para a época.

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O movimento Tropicalista não trabalhava apenas com uma noção de música,

no sentido de mostrar a identidade nacional através do monopolismo da música

popular brasileira, mas sincretizava várias formas de manifestação da música

nacional e internacional, desde as mais cultivadas como a bossa nova que naquele

momento estava em decadência, o baião de Luiz Gonzaga, o pop rock americano,

até manifestações orais da cultura popular como as modinhas de cegos de feira,

manifestações, principalmente as vindas do Nordeste brasileiro, dos quais Luiz

Gonzaga e Jackson do Pandeiro eram os expoentes máximos.

O Tropicalismo é ao mesmo tempo um movimento de inovação e

experimentação. No campo da criatividade os tropicalistas buscaram quebrar com a

linearidade das letras de suas canções, adotando uma postura concretista, ao

mesmo tempo em que no ritmo e melodia incorporavam elementos diversos, desde

o mestre violão tão cultivado pelos bossa-novistas até as guitarras elétricas29, que

eram uma inovação do rock’n’roll americano. Contra a guitarra, houve inclusive

passeatas e quebras de guitarra em plena praça, como se fosse uma verdadeira

inquisição a esses instrumentos. Isso demonstrava um apego à cultura nacional que

na época tinha deixado, muitas vezes, os Tropicalistas não sendo bem vistos pela

sociedade, ante sua proposta de renovação da cultura e da música do Brasil.

No campo da experimentação, o movimento Tropicalista buscou incorporar

várias formas de expressão em suas letras. Acontece que para muitos essas

misturas pareciam algo ingênuo, mas para eles era totalmente proposital. As

cantigas de roda colocadas no meio de uma canção tinham propósitos bem

específicos, assim como colocar “Dadá”30, tentando misturar a poesia dadaísta com

a música de Luiz Gonzaga. Em “verde dos teus olhos”, “verde mata31” se tinha um

objetivo que não era captado à primeira vista e muito menos pelo leitor comum. E

nesse sentido havia uma grande contradição quanto ao pop tão discutido pelos

Tropicalistas, já que se era para fazer uma música de massa voltada para o grande

público, eles estavam na direção oposta.

29

Vale salientar que houve na década de 1960 passeatas de protesto contra a adoção da guitarra elétrica nas músicas produzidas no Brasil, passeata das quais Gilberto Gil participou, segundo ele a pedido de Elis Regina. (Ver Nelson Motta em: Google.com/group/digitalsource/noitestropicais) 30

Movimento dadaísta. 31

Luiz Gonzaga “A volta da Asa Branca”

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O Tropicalismo sofreu muitas influências dos movimentos de vanguarda da

época. Um dos mais marcantes são as teses do cinema novo encabeçado por

Glauber Rocha. O cinema novo tinha como pressuposto a quebra da linearidade dos

cinemas americano e italiano. Outra influência marcante foi a da poesia concreta,

movimento estético32 eclodido com os irmãos Campos.

Tudo isso era chocante para a época, quando as artes no geral, e em

especial a música, tendiam para uma uniformidade, ignorando de forma proposital

as vanguardas da época. Esse movimento que ficou conhecido como música de

protesto foi encabeçado por Chico Buarque, Geraldo Vandré, dentre outros,

buscava na cor local uma identidade nacional que representasse o Brasil lá fora

eram contrários ao movimento tropicalista. Esses artistas não concordavam com os

elementos de vanguarda iniciados pelo movimento Tropicalista, que queria

justamente opor-se a essa forma de encarar a realidade nacional e mostrar outras

formas de manifestar o Brasil na era da modernidade tardia.

O movimento da cultura pop da época vinha ao encontro justamente com as

ambições de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Havia grande contestação da arte

acadêmica, buscando-se nos movimentos de massa outras manifestações culturais

que fomentassem e abastecessem os intelectuais, principalmente os filósofos da

escola de Frankfurt. A base da filosofia moderna se pautava da filosofia do

imediatismo, o niilismo nietzschiano e a total descrença nas coisas do mundo.

Essa virada para as massas era uma forma de ver o mundo não como

representação ideológica, mas algo empírico a ser testado, consumido, dilacerado.

As coisas tinham, agora, cor, forma e sabor que não se tinha antes de forma tão

explica com o jogo de cores e formas que tumultuava o cinema, a pintura, as artes

plásticas e, principalmente, a música. Esses elementos, agora, encarados como arte

tinham uma organização que seguia a atitude do seu criador, eram objetos

superpostos, materiais reciclados empilhados em paredes, músicas como Tropicália

de Caetano Veloso símbolo do manifesto tropicalista, tinham uma organização

icônica, no qual som e letra eram uma coisa só e, quando não isso, a desarmonia

proposital, à procura de novos efeitos de sentido no espectador.

Nesse sentido a letra da música era um emaranhado de temas e figuras que

caminhavam para uma mesma arquitetura textual, na organização do texto musical,

32

Poesia Concretista dos irmãos Haroldo de Campos e Augusto de Campos.

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que para produzir efeitos de sentido fazia-se necessário realizar vários

procedimentos como raciocínios dedutivos, inferências dos enunciados buscando

uma convergência no campo geral da formação discursiva. Essa superposição dos

elementos que compunham a música, embora seja uma nova forma de dizibilidade

do saber, também é uma forma concreta de assimilar formas tão díspares das letras

tropicalistas. Nessa perspectiva os elementos que davam harmonia ao enunciado no

sentido da produção do sentido desejado ou partilhado pelos ouvintes se davam

pelo tema, pela remissão intertextual a outros enunciados do mesmo campo do

saber ou da mesma formação discursiva, pela paródia etc.

Primeiro com a noção de ruptura, ou seja, romper com os padrões culturais

da época como, por exemplo, a identidade que os governos totalitários tentavam

incansavelmente sedimentar no país, como o governo de Getúlio Vargas e dos

militares que assumiram o Brasil depois do golpe de 1964. Esses governantes de

base arcaica tentavam mostrar o Brasil arcaico com suas tradições culturais típicas

de país subdesenvolvido, insurgindo-se contra toda e qualquer manifestação que

aceitasse ideias estrangeiras no Brasil, algo muito contraditório, já que o capital

estrangeiro já estava bem avançado na área portuária, automobilística e na

construção de navios, ou seja, permitia-se o avanço científico e tecnológico, mas

pretendia-se deixar a mentalidade do povo séculos atrás.

Os Tropicalistas contestavam radicalmente a identidade daquele Brasil muitas

vezes, atrasado, cafona e servil ao capitalismo selvagem, mas ao mesmo tempo

almejavam mostrar um Brasil culturalmente misto com produções musicais e

literárias do norte e do sul sem excluir sob a noção da pseudo-academia brasileira

de letras o que era produzido na espontaneidade do povo nordestino que se

aglomerava as vilas de São Paulo. Sincretizar ideias da vanguarda cultural com

elementos primitivos da origem do homem com elementos tecnológico importados foi

a grande visão Tropicalista: misturar elementos de diferentes origens e encontrar

neles uma unidade de sentido, para que este trabalho de dessacralização da cultura

conseguisse renovar o discurso sobre o Nordeste e a identidade nordestina.

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3.1 Sincretismo cultural e religioso

O termo sincretismo (do grego συγκρητισμός, originalmente "coalização dos

cretenses", composto de σύν "com, junto" e Κρήτη "Creta") “é uma fusão de

doutrinas de diversas origens, seja na esfera das crenças religiosas, seja nas

filosóficas” (www.google.com.br). Foi utilizado inicialmente por Plutarco em sua obra

Opera Morales, capítulo VII, amor fraterno, se referindo aos habitantes de ilha de

Creta que tendo inimigos comuns, deixaram suas divergências de lado, religião,

deuses, ideologias e território pra juntar-se para vencer seus inimigos.

Embora a origem do termo remonte, originalmente, a Ilha de Creta e a

posição assumida por seus habitantes durante certo período de dificuldade, o termo

sincretismo pode designar outras formas de dizer que, uma cultural ou religião ou

mesmo partidos políticos, podem assumir postural distintas e juntar elementos

dispares em nome de sua organização.

Para o dicionário Michaelis online “sin.cre.tis.mo s.m (gr

sygkretismós) 1 Filos Sistema que combinava os princípios de diversos

sistemas. 2 Amálgama de concepções heterogêneas; ecletismo. 3 Gram Fenômeno

de uma forma linguística ou de uma desinência acumular várias

funções. 4 SociolFusão de dois ou mais elementos culturais antagônicos num só

elemento, continuando, porém, perceptíveis alguns sinais de suas origens diversas.”

(www.michaelisonline.com.br).

Apesar da várias concepções sobre o vocábulo sincretismo, a acepção 4

parece-se a mais viável para a defesa aqui defendida. Sincretismo é juntar

elementos culturais distintos para formar um terceiro elemento. Este, embora seja a

fusão de várias formas sincretizadas, permite-se observar os sinais perceptíveis dos

elementos sincretizados.

Através dos conceitos expostos acima, observa-se que o sincretismo é uma

maneira de se juntar elementos em várias correntes de pensamento, seja na

religião, seja na cultura, na filosofia, na Linguística, etc. O sincretismo, dessa forma,

apresenta-se como uma síntese de várias formas de encarar a realidade ao juntar

de forma harmoniosa elementos heterogêneos.

O sincretismo é também uma forma de dizer que não há puritanismo nas

coisas do mundo, seja na religião, nas artes, na filosofia, porque cada forma de

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pensamento está contaminada por diversas outras correntes de pensamento e/ou

doutrinas, que fazem com que nada se mostre como sendo puro. Pensando dessa

forma, pode dizer que nenhuma cultura ou religião sejam originais ou puros, porque

em algum ponto do passado houve a fusão de outros elementos que se agregaram

de forma sincrética no que se tem sincronicamente.

Exemplificando o sincretismo dentro da religião: a Religião católica Apostólica

Romana realiza celebrações anuais como o São João, Natal, que na sua origem

eram festas pagas, realizadas antes da oficialização do cristianismo por Constantino.

Em nome das tradições, sincretizou-se muitas festas e rituais pagãos e católicos

como o Natal, por exemplo, que celebram o nascimento de Jesus Cristo, quando na

verdade o dia 25 de dezembro é em homenagem ao deus Sol dos latinos, enquanto

que Cristo tenha nascido provavelmente entre março e abril. A festa de São João

está ligada à fertilidade da terra que era celebrada em homenagem a Apolo, na

Grécia, e a Minerva em Roma. Ambas as festas foram sincretizadas e adotadas

pelo cristianismo como festas sagradas, quando em sua origem eram festas pagãs

em homenagem aos deuses pagãos.

Muitas religiões, como os Testemunhas de Jeová temem ao sincretismo

cultural de modo que não celebram nenhuma festa que não seja citada na bíblia, por

entenderem que boa parte das festa e rituais, são cultos a deuses pagãs da

mitologia grega e romana.

Na cultura o sincretismo atua como um catalisador de manifestações

culturais, ao juntar elementos distintos em sua forma de representação e

homogêneo em sua forma de ligação com outras manifestações culturais. No Brasil

especificamente, o sincretismo é uma forma de juntar as diversas manifestações da

cultura, seja ela popular ou erudita, letrada ou iletrada, do sul o do norte em um

único bloco compacto e sincretizado. Isso ocorre devido á heterogeneidade da

cultura brasileira e a dimensão territorial do Brasil.

O Tropicalismo foi um movimento musical e cultural que trabalhou o

sincretismo com mais profundidade, ao juntar elementos culturais de várias partes

do país em suas canções, tentando mostrar que a cultura e a música do Brasil não

de uma única região, mas que todas contribuem à sua maneira para o

enriquecimento da cultura do país. Ao fazerem isso, os Tropicalistas renovaram a

música e a cultura do Brasil, já que o elemento sincretizado é sempre algo novo em

relação às partes que o constituíram.

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3.2 Tropicalismo e Ditadura Militar: carnavalização, paródia e a

constituição de novos efeitos de sentidos.

A Ditadura Militar foi um período que se iniciou com o famoso Golpe de 1964,

ano em que os militares, provisoriamente, assumiram os destinos políticos do Brasil.

O país na época enfrentava problemas internos na política, na economia e no

conjunto de valores que o mundo depois da Segunda Guerra Mundial trouxe para os

países. O sistema político da época já não atendia às expectativas de determinados

segmentos da sociedade como os militares, alguns setores mais conservadores, o

empresariado, os latifundiários, setores da classe media e da Igreja Católica, se

aproveitando dessas fraquezas da política nacional, iniciaram um boicote que

culminou com o golpe de 1964. Toda essa perspectiva gerada nesses momentos de

tensão na política se baseava, primeiro, na retomada do desenvolvimento e

investimento no Brasil, inclusive com capital e empresas estrangeiras e na

manutenção da nossa cultura e de nossa identidade nacional.

A ideia do Golpe Militar era se manter um grupo de lideres militares pergunta

provisoriamente assumindo no comando do país até que aparecesse alguém capaz

de governar o país. Na realidade a intenção era governar o Brasil com mãos de

ferro, restringindo vários setores da sociedade sob uma pretensa e aparente

censura, que mais tarde serão os porões da morte e do sofrimento dos cidadãos que

aspiravam um país melhor.

A ditadura militar representou não um dos períodos mais negros da história do

Brasil em termos sociais, no sentido restritivo, da opressão, assassinatos, sumiço de

pessoas, mas também um retrocesso no processo de alavancamento da cultura e da

liberdade de expressão.

Foi nesse período que artistas de muitas áreas tiveram sua cidadania e sua

nacionalidade cassadas. Os AIs eram publicados sempre que algumas situações

fugiam ao controle dos militares, a maioria deles para conter as guerrilhas de

cidadãos que não aceitavam o golpe e dos supostos atentados terroristas que se

dizia que iam acontecer no Brasil e que, no entanto, não passaram de álibi para

conter situações arriscadas, tudo isto porque não permitiam serem criticados, nem

sequer questionados em suas posturas autoritárias e de moral inquestionável. A

censura bloqueava qualquer manifestação até mesmo as mais ingênuas sejam no

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campo das artes plásticas, no cinema e principalmente na música, já que com a

cultura de massa que estava sendo gerada pela televisão, a música era uma arma

muito perigosa.

O Brasil da época se encontrava numa situação em que se lutava muito com

as ideias de moderno e o arcaico, ou seja, havia um grupo de pessoas que

aspiravam manter a cultura nacional intacta, produzindo apenas do que fosse

nacional em termos culturais, e outro grupo, como, por exemplo, os Tropicalistas

queriam renovar a cultura e arte do país através do sincretismo cultural e da mistura

de cultural. De um lado estavam aqueles que queriam que o Brasil entrasse na era

moderna copiando e consumindo os frutos da modernidade e, ao mesmo tempo

assimilando as novas ideias do mundo globalizado, renovado pela tecnologia,

liberdade de expressão, liberdade sexual, libertação das classes menos favorecidas

e industrialização e deixando de ser um país meramente agrário. Do outro lado

estavam alguns generais e aristocratas que ansiavam manter o Brasil com suas

tradições locais e nacionais, fugindo da globalização e da importação de cultura, e

ao mesmo tempo, tentando acelerar o crescimento industrial, que para muitos

representou o chamado milagre econômico que hoje se traduz como “endividamento

do país”. Era uma situação ambígua: os militares ao mesmo tempo em que tentavam

manter o país fora das influências da globalização, abria espaço para as indústrias

se instalarem para fortalecer a economia do país.

Se por um lado alguns militares e políticos queriam manter nossa cultura

intacta e sem as influências dos meios internacionais, do outro lado havia

intelectuais que estavam bem acomodados com isso, apenas não aceitavam a

questão da censura dos meios de comunicação, do fechamento de universidades e

diretórios estudantis. A questão é que tudo girava em torno de um certo arcaísmo e

saudosismo por parte da ditadura e de alguns intelectuais.

De alguma forma a ditadura se instaurou no Brasil para salvação econômica

do país, no entanto é com ela de quebra surgiram algumas restrições à liberdade de

expressão, embora isso por si só não tenha sido o fim dos direitos individuais e

coletivos dos cidadãos, mas incomodou bastante uma legião de artistas, músicos,

políticos de esquerda e direita e os universitários, etc. O milagre se converteu em

tortura e perseguição política, prisão de jovens artistas e universitários, inclusive

incêndio do diretório da UNE e da USP.

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Segundo Elio Gaspari:

No Brasil, os órgãos de segurança provinham da desordem e do terrorismo, eram parte de um complexo projeto subversivo, derivado da anarquia militar. A tortura sancionada pelos oficiais-generais a partir de 1968 tornou-se inseparável da ditadura. Não há como entender os mecanismos de uma esquecendo-se a outra. De um lado a tortura dá eficácia à ordem ditatorial, mas de outro condiciona-a, impondo-lhe adversários e estreitando-lhe o campo de ação política. Quando a hierarquia se dá conta de que o custo dos porões é maior que seus benefícios, ela vai ao manual e decide desativar a engrenagem. Recebe de volta a conta do seu erro. (GASPARI, 2002, p. 24)

A tortura se tornou uma ferramenta para correção dos subversivos dentro do

aparelho da ditadura militar. Essa ferramenta foi implantada sob a suposta ameaça

terrorista que, segundo os militares, tinha se implantado no Brasil. Toda a força

utilizada pela ditadura sob forma de tortura era um aparelho que pretendia manter a

ordem para os subversivos, satisfazer as altas autoridades da manutenção de seu

poderio bélico e manter o país sob pressão por meio da brutalidade e dos

assassinatos de lideres de movimentos subversivos. Na maior parte das vezes era

só uma forma de controle, já que não havia nada de ameaça terrorista, a tortura era

uma forma cruel de manter-se no poder a qualquer custo.

Havia nesse ínterim, uma relação muito íntima entre o porão, a delegacia e o

quartel, o torturador, o torturado e as forças armadas. No geral se dizia que não

sabiam de nada e se acontecia tortura era de forma escondida e muito esporádica.

Ao torturador, normalmente, lhe era apagada a identidade, ninguém sabia quem era;

podia ser um doente da corporação, um sóciopata cuja identidade ninguém

conhecia, onde e como vivia. “O torturador maluco, vítima de uma perversão, é em

geral um produto da fantasia política. Para a ditadura, funciona como álibi. Permite-

lhe ter em mãos a tese da insanidade do agente para salvar a honra do regime se

algum dia a oposição conseguir provar os suplícios e identificar os torcionários.”

(GASPARI, 2002, p. 21).

Muitos generais negaram criteriosamente conhecer o que acontecia nos

porões das delegacias e, realmente, alguns desconheciam. No entanto, é pouco

provável que eles realizassem a tortura, mas se sabiam é outra coisa. “Um exemplo

da dissimulação dos hierarcas pode ser encontrado numa explicação do ex-

presidente João Baptista Figueiredo, em 1996: ‘Se houve a tortura no regime militar,

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ela foi feita pelo pessoal de baixo, por que não acredito que um general fosse capaz

de uma coisa tão suja, não aceito isso’ Ou ainda nas memórias do ministro Jarbas

Passarinho: ‘Praticaram-na clandestinamente’”. (GASPARI, 2002, p. 20-21).

A ditadura chegou ao seu ápice com a publicação do AI-5 de 1969. Com ele

foram cassados todos os direitos individuais e coletivos dos cidadãos, o estado se

torna superior ao indivíduo e se legaliza a tortura, que na maior parte das vezes

ficava acanhada nos porões e nos lugares mais sórdidos e fétidos do país. Ao lado

das alegrias da Copa do Mundo de 70, da entrada dos televisores a cores no país e

da crescente taxa de emprego, aparecem os chamados anos de chumbo33, que

foram mais chumbo do que milagre econômico.

Caetano foi preso em um desses quartéis sob a suspeita de subversão e

participar de uma guerrilha secreta. Foi humilhado, tendo que cantar para o quartel

com o cano do fuzil nas costas; teve que mentir para proteger Gilberto Gil, das

garras do DOPS34 e foi exilado. Sua prisão e sua deportação foram devido à censura

que em posse de seu material escrito e fonográfico acreditavam estar ali o incentivo

à subversão contras as forças armadas. Não era totalmente mentira, pois as

músicas realmente falavam de elementos que lembravam ditadura, só que de forma

bem elaborada e bem discreta. Na música Tropicália aparecem alguns termos como

fuzil, O monumento não tem porta/A entrada é uma rua antiga/Estreita e torta/E no

joelho uma criança/Sorridente, feia e morta/Estende a mão...” “E no jardim os urubus

passeiam/A tarde inteira.

Embora o projeto Tropicalista fosse a retomada da linha evolutiva da Música

Popular Brasileira e a renovaçao da culttura e da identidade do país como um todo,

eles não fugiram à briga política, gastando muito de suas energias no combate à

33

A expressão anos de chumbo foi inicialmente pronunciada na Europa com a guerra fria e a tensão bélica entre países de regimes políticos e econômicos distintos, como os países capitalistas e os países socialistas. Essa expressão também foi bastante utilizada durante o período mais repressivo da Ditadura Militar no Brasil no Governo de Médici, que vai do final de 1968 a 1974. Embora seja uma expressão generalizada que marca uma época, no Brasil ela é atribuída ao general Médici devido à feracidade com que combateu as guerrilhas de extrema esquerda e extrema direita, que praticavam ações revolucionarias, inclusive assassinatos e assaltos em prol da libertação do país. Fizeram parte dessa militância pessoas hoje muito importantes como a Presidente Dilma Rousseff, José Genoíno e José Dirceu. 34

O Departamento de Ordem Política e Social foi criado em 1924, mas foi de grande utilidade durante o Estado Novo e a Ditadura Militar. Era o órgão responsável pela represália contra à subversão a ordem social e politica do país. Recebeu várias denominações como DEOPS e DELOPS , mas foi a

sigla DOPS que ficou consagrada. Esse departamento foi extinto em 1983, pelo então Presidente João Baptista Figueiredo.

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repressao militar que se intaurou no Brasil a partir de 1964. Com um discurso

polissêmico e carnavalizado35, os Tropicalistas conseguiram mexer politicamente

com os militares, através de uma música nova, recheada de metáforas e palavras de

múltiplos sentidos, que embora fosse difícil de ser interpretada pelos agentes da

censura, era perfeitamente compreeensível ao público estudantil e universitário da

época.

As músicas tropicalistas, além de seu caráter subversivo ao regime militar

ainda conseguiam denunciar as injustiças sociais de algumas regiões como o

Nordeste, o que representa uma retomada do ideário do Cinema Novo de Glauber

Rocha no filme Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe. Suas denúncias

não só instigaram um olhar diferente ao Nordeste, mas também renovaram as artes,

a cultura e a identidade do nordestino ao trazê-lo para o debate ideológico na

música moderna, tecnologizante e de cunho cosmopolita e como parte integrante de

uma nação arcaica e rural que resistia ao desenvolvimento tecnológico e os

movimentos de vanguarda do mundo exterior.

3.3 Antropofagia e Tropicalismo: intertextualidades

O termo intertextualidade ou relação entre textos, aparece pela primeira vez

na obra do filósofo russo Mikhail Bakhtin, através dos estudos de Julia Kristeva.

Inicialmente, este trabalho surge no âmbito da literatura como o “Cruzamento num

texto de enunciados tomados de outros textos” (SAMOYAULT, 2009, p. 15), uma

noção um pouco vaga e imprecisa dada às várias formas de intertextualidades e da

complexidade deste termo. Isto porque a intertextualidade como simples retomada

de outros textos já era algo bem recorrente antes do surgimento desse termo, já

que em tese nenhum texto surge do nada, sendo, portanto, fruto da leitura e

retomada de qualquer texto que lhe sirva de base, inspiração ou cópia.

A intertextualidade toma liames mais amplos quando se observa que a

simples retomada do autor, do texto e do estilo do autor e da relação deste com seu

leitor vai ser também uma forma de intertextualidade. Desta forma, a interseção do

35

O discurso carnavalesco quebra as leis da linguagem censurada pela gramática e pela semântica e, por este motivo, é uma contestação social e política: não se trata de equivalência, mas de identidade entre a contestação do código linguístico oficial e a contestação da lei oficial. (KRISTEVA, 1969, p. 63.)

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leitor com a obra lida e retomada de sua memória (lúdica, melancólica, social

individual, etc.) também é uma forma de intertextualidade.

Segundo Kristeva:

a palavra (o texto) é um cruzamento de palavras (de textos) onde se

lê, pelo menos uma outra palavra (texto). [...] todo texto se constrói

como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de

um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a

de intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como

dupla. (KRISTEVA, 1969, p. 64)

Segundo a autora, todo texto, por mais simples que seja, incorpora outros

textos, já que a ideia de um texto único, autêntico e original inexiste, pelo fato da

cultura ser uma interpretação da realidade, que nos é mostrada através de signos,

isto é, a cultura é mediada pelo simbólico. Nessa perspectiva, se tem o texto não

apenas como absorção ingênua de outros textos, mas uma intencionalidade que

transforma o texto-fonte, buscando-se novas formas de dizer e de significar. A

intertextualidade para autora é de mão dupla.

Para Brait, a intertextualidade é “Qualquer referência ao Outro, tomando como

posição discursiva: paródias, alusões, estilizações, citações, ressonâncias,

repetições, reproduções de modelos, de situações narrativas, de personagens,

variantes linguísticas, lugares comuns, etc.” (BRAIT, 2008, p. 165). A

intertextualidade, neste sentido, não é simplesmente retomar um texto tal qual sua

fonte, ou citá-lo indiretamente, mas qualquer forma de retomada, a simples remissão

pode ser um efeito de intertextualidade.

Para Samoyault:

O termo intertextualidade foi tão utilizado, definido, carregado de sentidos diferentes que se tornou uma noção ambígua do discurso literário; com frequência, atualmente, dá-se preferência a esses termos metafóricos, que assinalam de uma maneira menos técnica a presença de um texto em outro texto: tessitura, biblioteca, entrelaçamento, incorporação ou simplesmente diálogo. Ele apresenta, no entanto, a vantagem, graças a sua aparente neutralidade, de poder agrupar várias manifestações dos textos literários, de seu entrecruzamento, de sua dependência recíproca. A literatura se escreve certamente numa relação com o mundo, mas também apresenta-se numa relação consigo mesma, com sua história, a história de suas produções, a longa caminhada de suas

origens. (SAMOYAULT, 2009, p. 9)

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A intertextualidade, nesse sentido vai além da simples retomada ipsis litteris;

ela representa todo um conjunto de textos que são retomados por outros, sua

arqueologia, e seus processos de retomada. No campo literário se manifesta como

uma dependência que pode se referir a si, à história e as suas fontes originais. No

campo da linguagem ordinária apresenta-se sob a forma de retomadas textuais que

podem ser mais explícitas e menos explícitas.

A intertextualidade explícita é aquela em que seu autor cita textualmente a

fonte de seu trabalho, seja como confirmação de sua tese, segurança em alguém

que estudou melhor o assunto. A intertextualidade implícita está mais no campo da

literatura, em que o autor, com certa autonomia poética mistura sua visão de mundo

às de determinado autor produzindo um novo texto que é a junção de um ou mais

textos e que só são percebidos por especialistas da área. Por meio da criatividade,

algumas formas e discursos ficam, muitas vezes, imperceptíveis36. Esse tipo de

recurso é muito utilizado pela mídia e pela propaganda publicitária.

De forma análoga, a referência propriamente dita como a citação, a paródia, a

colagem e o plágio se tornam um tipo de intertextualidade, já que estes recursos

estão disponíveis, muitas vezes, na alma da criatividade do escritor/leitor na hora de

escrever/ler uma obra literária. Desta forma, a intertextualidade não estaria apenas

no campo meramente da chamada cópia, ou simplesmente da citação de tal autor,

mas ela se tornou um elemento imprescindível, na verdade uma ferramenta do

leitor/escritor e a atribuição de sentidos a sua obra e ao texto lido.

Neste sentido, qualquer obra literária e os textos em geral são todos

intertextos já que nenhum texto nasce do nada, mas da relação com algo já

existente, seja no mundo textual, seja o mundo extratextual, todos servem de

hipotexto para a elaboração do hipertexto.

A intertextualidade só se torna possível graças ao dialogismo que é a vida da

linguagem e um dos processos de produção de textos e ideias. Esse processo é a

força motriz que move a constituição dos sentidos na linguagem, “O dialogismo é

inerente à própria linguagem [...] ‘o diálogo é a única esfera possível da vida de

linguagem’” (KRISTEVA, 1969, p. 66). Para a autora a intertextualidade só se torna

36

Na música Tropicália, Caetano Veloso faz referência explícita à música Luar do Sertão de Catulo da Paixão Cearense, quando retoma os trechos o monumento/é de papel crepom e prata/os olhos verdes da mulata/a cabeleira esconde/atrás da verde mata/o luar do sertão.

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possível graças ao poder de diálogo entre as obras e entre os autores; sem isso a

linguagem seria morta e sem processos de recriação do mundo das ideias.

Para que as relações de significados se tornem lógicas e possuam sentido, é

necessário que ela ganhe corpo num tipo de discurso, ganha uma existência de

modo que nela apareçam às relações dialógicas e de efeitos de sentido e seu autor,

e embora este último seja tão importante para a vida da linguagem, precisa do

estatuto do outro, pela qual é povoada a linguagem. Sem o outro a linguagem

também não existe, e se existisse seria monológica.

Embora o dialogismo seja o elemento principal para renovação da linguagem,

dos processos de retomada, ele sempre acontece entre discursos, “O dialogismo é

sempre entre discursos. O interlocutor só existe enquanto discurso.” (BRAIT, 2008,

p. 166), ou seja, pelo dialogismo um discurso retoma o outro, ou um discurso cita o

outro. Dessa forma podemos falar em interdiscursividade como um processo mais

amplo que a intertextualidade. “A noção de alteridade é decisiva para estabelecer

esse movimento dos textos, esse movimento da linguagem que carrega outras

palavras, as palavras dos outros.” (SAMOYAULT, 2009, p. 20).

Para Samoyault:

Esta (intertextualidade) propõe uma árvore com galhos numerosos, com um rizoma mais do que uma raiz única, onde as filiações se dispersam e cujas evoluções são tanto horizontais quanto verticais. É impossível assim pintar um quadro analítico das relações que os textos estabelecem entre si: da mesma natureza, nascem uns dos outros; influenciam uns aos outros, segundo o princípio de uma geração não espontânea; ao mesmo tempo na há nunca reprodução pura e simples ou adoção plena. (SAMOYAULT, 2009, p. 9)

Segundo a autora, a intertextualidade é uma árvore com várias ramificações

que se dispersam em filiações horizontais e verticais. Através dela é possível se ter

um quadro analítico das gerações de textos que influenciaram o surgimento de

outros textos e movimentos culturais e literários. Isso por que essa retomada não é

uma simples colagem ingênua, mas um amplo processo de trabalho sobre o material

histórico que compôs e compõe a obra dos escritores.

É dessa forma que a obra poética do escritor modernista Oswald de Andrade

representa um marco na literatura brasileira, dada a sua alta frequência de

intertextos com outros textos literários da época e também de outras, como é o caso

da Carta de Caminha A retomada de outros textos, parodiando autores, fazendo

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pastiche, deboche e crítica são os recursos do autor modernista na elaboração de

sua obra. Ele não só copiou, mas inaugurou uma nova forma de escrever e pensar

sobre a literatura. Para Kristeva "Esta dinamização [...] só é possível a partir de uma

concepção, segundo a qual a “palavra literária” não é um ponto (um sentido fixo),

mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de diversas escrituras: do

escritor, do destinatário (ou da personagem), do contexto cultural atual ou anterior”.

(KRISTEVA, 1969, p. 62)

A radicalidade de Oswald de Andrade, mais especificamente, no campo da

linguagem, fez o precursor de várias correntes de pensamento em termos estéticos,

tanto na literatura como nas artes em geral. A forma de compor poemas desde os

menores a uns poucos extensos, a exploração de outras formas de ver, ler e

escrever poemas utilizando recursos sensoriais na busca de uma linguagem mais

simples, primitiva, mas também altamente significativa.

Buscando romper com uma tradição discursiva, elitista e parnasiana e

acadêmica, Oswald de Andrade inaugura uma nova forma de fazer literatura,

mesclando elementos da cultura nacional com elementos da cultura estrangeira. Sua

ideia não era simplesmente a absorção ingênua do elemento exterior, mas segundo

o poeta uma devoração da cultura do colonizador para obter os “poderes que o seu

inimigo dispunha”, (MALTZ; TEIXEIRA; FERREIRA, 1993, p. 58) semelhante a um

ritual antropofágico; entenda-se, antropofágico, não como mero artefato canibalista,

na devoração nua e crua dos inimigos capturados pelos índios. Nesta perspectiva

Oswald pretendia chegar à alma primitiva do homem, fazer um tipo de poesia

natural, “a língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição

milionária de todos os erros” (ANDRADE, 1928), que viesse sem enfeites retóricos,

mas brotasse da própria linguagem natural do homem. Algo que, metaforicamente,

viesse do inconsciente freudiano, brotando tal qual nascia sem necessidade de

arrumação da linguagem.

Os movimentos das ideias oswaldianas tomaram corpo num outro movimento

iniciado em 1967 por um grupo de universitários, que, cansados das velhas formas

da arte e da cultura do país, desta vez, as musicas (embora esses músicos se

considerassem tanto poetas quanto músicos) pelo qual foi conhecido como

Tropicalismo, propuseram a renovação da cultura e das artes do Brasil por meio da

deglutição cultural e mistura de culturas de outras partes do mundo.

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Esse movimento pretendia a retomada da linha evolutiva da música popular

brasileira, calcada na bossa nova de João Gilberto, no Cinema Novo de Glauber

Rocha, no teatro de Hélio Oiticica, nas manifestações da cultura oral, em Luiz

Gonzaga e, principalmente, na poética radical de Oswald de Andrade.

Os Tropicalistas iam apoiar-se tanto no Movimento Pau-Brasil, como no

Movimento Antropofágico, este último tomado com mais vigor, dado o contexto

social da época: o contraste entre um Brasil rural decadente e uma industrialização

de massa emergente, ou seja:

estão em geleia geral à sugestão (e aqui a apropriação do estilo: um discurso descritivo ou narrativo é substituído pelo imagístico) da favela, da cultura de massa, do folclore, da natureza tropical, do mestiço, da arte colonial brasileira, da psicologia do povo (alegria e cordialidade, resíduo das virtudes naturais de que fala o primitivismo e o matriarcado de Pindorama) e da sociedade industrial. Imagens, à maneira oswaldiana, articulada por uma sintaxe fragmentada, telegráfica, de versos e imagens justapostos, responsável pela

desorganização do discurso linear. (MALTZ; TEIXEIRA; FERREIRA,

1993, p. 36).

A proposta dos Tropicalistas, como afirmam Teixeira e Ferreira, era a de se

apropriar de um discurso imagístico em que aparecessem as mais distintas camadas

sociais, como uma geleia ou mesmo uma mistura antropofágica de vários elementos

da cultura, na tentativa de renovar o discurso acadêmico e formal por um que

falasse a língua do povo, que fosse ao primitivismo das formas e das cores do

mundo empírico. Além disso, pretendiam misturar essas formas da sociedade, tanto

as eruditas como aquelas de caráter popular com a sociedade industrial. Essas

imagens propostas pelos Tropicalistas na mesma esteira discursiva de Oswald de

Andrade gerariam uma linguagem concreta, fragmentada e cheia de vícios do povo,

numa tentativa de desorganizar o discurso linear e oficial para renovar o campo da

cultura e das artes do país.

3.4 Os manifestos: Antropofágico e Tropicalista37

37

Não há um manifesto tropicalista por ele mesmo, assim como o Manifesto Comunista, o Manifesto Antropofágico, apenas fazendo uma analogia através da memória discursiva que, já que os Tropicalistas retomaram a poética de Oswald de Andrade, também fizeram um manifesto em prol da música e da cultura do Brasil, que acredita-se que seja Tropicália, inclusive para a defesa deste trabalho. Como o manifesto era em prol da música, interessante é que ele também seja uma música.

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Oswald de Andrade lança o manifesto antropofágico como o símbolo do

nascimento da história do Brasil. No dia 1º de maio de 1928, Oswald dizia que nossa

história tinha se iniciado há 374 quando nesse ano o Bispo de sobrenome Sardinha

havia sido devorado por índios aqui no Brasil.

Segundo Maltz, Teixeira e Ferreira:

A palavra Antropofagia evoca desse modo toda uma ideia trazida das raízes brasileiras do parente índio, a cerimônia de apropriação do outro, uma não submissão, um introduzi-lo e degluti-lo. Sabe-se que o ritual Antropofágico faz parte da ideia de apropriação do outro, “comer” o inimigo para dele abastar-se, assimilar o Outro para dele aproveitar suas virtudes, e nesse sentido, os modernistas foram pontuais na valorização desse conceito e criam a problemática da Antropofagia no sentido da assimilação da arte que vem das vanguardas europeias, propondo absorvê-la e recriá-la, não na acepção de “engoli-la” e reproduzi-la. Era essa a chave da ideia modernista na semana de 22, embutir em nosso país uma “nova” maneira do fazer arte; era a concepção de encarar, conhecer e recriar que gostariam que se mantivesse nos trabalhos produzidos

por quem representava a cena da vanguarda brasileira. (MALTZ; TEIXEIRA; FERREIRA, 1993, p. 23).

Este marco datado por Oswald vem de sua radicalidade em querer pegar as

coisas pela raiz, ou seja, marcar a história do Brasil a partir de um ritual simbólico38

entre muitas tribos do Brasil Tupiniquim, devorar o inimigo, não por simples

devoração, mas para absorver os seus poderes. Oswald também pretendia a uma

devoração só que em termos culturais e linguísticos, ou seja, deglutir a cultura

europeia e a partir disso produzir a nossa “O canibalismo de Oswald de Andrade

teria ainda, segundo alguns autores, nítido compromisso especialmente com a

tendência mais destrutiva das vanguardas europeias Dadá.” (MALTZ; TEIXEIRA;

FERREIRA, 1993, p. 19). E a destruição de Oswald de Andrade, neste sentido, está

em “destruir para depois construir em cima” e não uma mera atitude puritanista de

eliminar a cultura europeia em prol de uma cultura eminentemente nacional. O que

estava em jogo era apropriar-se desse material estético- ideológico e dele fazer uma

geléia geral com a cultura nacional e a partir daí produzir algo dignamente,

renovado.

38

Fala-se aqui em simbólico porque não está se falando de antropofagia no sentido antropológico das coisas, mas sim em termos de linguagem e cultura.

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Maltz, Teixeira e Ferreira, (1993, p. 11), alertam:

Há que se cuidar, portanto, para não cair na interpretação ligeira de senha antropofágica adotada por Oswald como sinônimo de festival canibalista – em que se matava e comia o inimigo por gula ou vingança -, o que reduziria a metáfora antropofágica ao simples ato literário de destruição, quando, na verdade, opera-se nesse ato um processo dialético. Destruir para construir em cima. Deglutir para, de posse do instrumental do “inimigo”, poder combatê-lo e superá-lo. Deglutir o velho saber, transformando-o em matéria-prima de novo.

As ideias desse movimento, que é uma continuação do Movimento Pau-

Brasil, era absorver a cultura estrangeira e a acadêmica do parnasianismo (como

paródia, deboche, etc.) e adaptá-la ao Brasil da época39. No entanto, a cena

antropofágica de Oswald de Andrade não era um ritual canibalista onde os índios

comiam seus inimigos. Há que se ver essa perspectiva oswaldiana como um

fenômeno da destruição da cultura estrangeira por meio da assimilação ativa e

depois construir uma identidade nacional. O que se pretendia para Oswald de

Andrade era transformar o velho em novo, ou seja, assimilar tudo o que foi dos

antepassados e transformar junto com o novo a matéria-prima da obra poética e da

identidade nacional.

Numa das partes escritas do Manifesto Antropofágico Oswald inicia com “Só a

antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do

mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os

coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi

that is the question.” (ANDRADE, 1928). Parodiando Hamlet “To be, or not to be,

thatisthequestion” 40 de Shakespeare num ato de pôr em questão, o fato de nossa

religião e de todos os nossos costumes vindos do além-mar, Oswald põe em xeque

a cultura indígena sobre a letrada, no fato de que, o tupi enquanto povo e língua

remetem-nos ao passado antropofágico da língua original do Brasil. O Tupi seria a

língua que nos uniria “Socialmente. Economicamente. Filosoficamente” (ANDRADE,

1928), metonimicamente, a língua pelo todo. E neste sentido o modernismo logrou

“encurtar a distância entre a linguagem oral e escrita e instituir do ponto de vista

39

A poética de Oswald de Andrade continua mais atual do que nunca, aliás, esta é justamente a época em que a poesia de Oswald tem seu campo de aplicação e divulgação com as novas aberturas comerciais e culturais para outros países. 40

Ser ou não ser, eis a questão.

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temático o progresso, a velocidade e a banalidade cotidiana da vida moderna,

expressos numa linguagem fragmentária, de estilo enxuto, telegráfico” MALTZ;

TEIXEIRA; FERREIRA, 1993, p. 30).

Com uma única língua41 seríamos unidos por uma mesma cultura original (um

grande idealismo poético!), sendo esta como hipotexto da literatura nacional.

Deglutiríamos a cultura do europeu, extrairíamos dela sua essência e aí teríamos

uma literatura eminentemente nacional. Sobre essa questão, Maltz, Teixeira,

Ferreira afirmam:

O indianismo de Oswald reverte tal projeto [o de Rousseau], resultado de um projeto nacionalista que avalizava o branqueamento e a cristianização de cunho redentor, ratificando o racionalismo e a ideologia da Metrópole, e que tematizava o índio em nome da tese da miscigenação. Em vez do índio travestido de valores racionais-burgueses, Oswald absorve o indígena como elemento de construção. O símbolo nacional não era mais Peri ou I-Juca Pirama, bem-comportados e de sentimentos nobres, mas o canibal (MALTZ; TEIXEIRA; FERREIRA; 1993, p. 21).

Oswald define a antropofagia como:

A formação de uma arte nacional, que se há de extrair, sem dúvida, da obra dos “antepassados”, mas que contemplasse as conquistas do século XX, como o triunfo do telefone, do avião, do automóvel. Há, aliás, toda uma correspondência viva e direta entre as artes de hoje e o nosso tempo tão diverso dos tempos idos. (ANDRADE, 1928, p. 36-38).

Enquanto Oswald marca a origem da nossa literatura no antropofagismo,

reelaborando nossa arte nacional a partir do nosso passado e das conquistas da

sociedade da Semana de 1922, o Tropicalismo se inicia justamente na poesia de

Oswald de Andrade. Oswald seria o marco da poesia eminentemente nacional, de

onde o Tropicalismo beberia em seus mananciais: poesia visual, poemas com

palavras justapostas que aparentemente não significavam nada, enfim uma profunda

mudança na linguagem poética. Ambos foram brutalmente radicais.

41

Vale lembrar que linguisticamente o Tupi era um hipônimo linguístico que designava o Tupi e suas variações, veja-se o termo Tupi-guarani.

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103

Nesse sentido, é que Campos afirma:

Ser radical é tomar as coisas pela raiz. E a raiz, para o homem, é o próprio homem. [...] A radicalidade da poesia oswaldiana se afere, portanto, no campo específico da linguagem, na medida em que esta poesia afeta, na raiz, aquela consciência prática, real, que é a linguagem. Sendo a linguagem, como a consciência, um produto social, um produto do homem como ser de relação (CAMPOS, 1965, p. 07).

Aproveitando dessas formas de escrever poemas, os Tropicalistas resgatam a

forma de compor dos concretistas e em suas composições musicais transformando

essas formas músicas que mais parecem poemas concretos, pela combinação

semântica de elementos díspares e sem nenhuma conexão. O material discursivo

eram as manifestações modernas junto com as manifestações culturais locais e a

cultura estrangeira como em Tropicália 42, música - manifesto do movimento

Tropicalista.

A música é toda composta, fora a métrica já moderna, com construções que

dizem quase nada à primeira vista. Essa ideia de trazer essa linguagem natural que

Oswald defendia (primitivismo)43, no plano semântico é uma das formas tropicalistas

de crítica à música tradicional de Geraldo Vandré, Chico Buarque, onde havia uma

linearidade rítmica e semântica.

Os Tropicalistas, na esteira oswaldiana, enveredaram pela não linearidade e

pela combinação semântica de palavras sem nenhum nexo. O sentido estava

justamente na desconstrução das construções para depois construir, no confronto ao

velho e o “cafona”, termo muito usado por Caetano para caracterizar a música de

teatro elitizada. Essa forma de compor música envolvendo a narrativa urbana, as

frases-síntese e os aforismos remetem diretamente ao manifesto Pau-Brasil

(OSWALD, 1928):

Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. [...] Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtoras, nas questões cambais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil. Obuses de elevadores, cubos de

42

Veloso, 1968, BMG 43

Não interpretar primitivismo como sendo aqueles homens das cavernas vivendo numa sociedade nômade e que falavam resquícios de uma linguagem propriamente dita. O primitivismo de Oswald remete a linguagem natural saindo de suas entranhas, sem enfeites, sem organização linguística padronizada gramaticalmente, mas uma linguagem próxima da fala natural e espontânea.

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arranha-céus e a sabiá preguiça solar. A reza. O carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa.

Matz, Teixeira, Ferreira reforçam que:

A saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-Brasil [...]. A floresta e a escola. O Museu nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação Pau-Brasil. Tudo isso poderia ser material temático para música, assim como tudo isso foi material poético para Oswald de Andrade. (MALTZ; TEIXEIRA; FERREIRA; 1993, p. 36).

Enquanto a ideia de Oswald era buscar na nossa origem histórica, os

alicerçes de nossa literatura, os Tropicalistas buscaram na cultura estrangeira, na

época a cultura americana, um reforço no combate ao puritanismo musical que

imperava no Brasil da época. Ambos ambicionavam por algo genuinamente novo no

campo da produçao identitária do Brasil. Oswald de Andrade com seus movimentos:

Pau-Brasil e Antropofágico na literatura e, os Tropicalistas na música. Oswald

inaugurou uma poesia que sobreviveu ao tempo. O Brasil abre novas fronteiras para

a importação e, principalmente, a exportaçao de produtos, serviços e cultura. Os

Tropicalistas inauguraram um movimento musical que até hoje influencia músicos de

todo país, a maneira de compor músicas da chamada Música Popular Brasileira

(MPB) é um reflexo tropicalista.

Tudo isso junto ganhou proporções gigantescas. As letras das músicas eram

poemas concretos, já uma herança oswaldiana trabalhada pelos irmãos Campos44.

Na melodia contrastavam instrumentos cultuados nacionalmente (se é que eram

nacionais) como a flauta, o piano e o violão, com guitarras elétricas do rock ‘n’ roll

americano e baterias de percussão, também adotadas pelo rock e os ritmos

americanos, como o próprio rock, o jazz, o blues etc.

No plano discursivo, tal qual Oswald, buscavam o resgate dos elementos

nacionais e os misturavam a elementos estrangeiros. Os Tropicalistas buscavam dar

continuidade à linha evolutiva da música popular brasileira que se perdera desde

João Gilberto. Aliados a isso, os Tropicalistas trouxeram para a cena Luis Gonzaga,

Jackson do Pandeiro e muitas cantigas regionais de manifestação oral,

principalmente, as do Nordeste, para se juntar a essa salada Tropicalista.

44

Augusto de Campos e Haroldo de Campos.

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105

Semelhante, tambem fez Oswald de Andrade ao juntar o novo e o velho, o antigo e o

moderno, o popular e o erudito como no poema O capoeira45, no qual se vê traços

da linguagem oral, mesclados com o confronto de ideologias como os negros e a

polícia. Fato semelhante se vê também no poema O gramático 46e em tantos outros.

Segundo Samoyault (2008), não somente a retomada ipsis, litteris de um

autor ou uma obra é o sinal da intertextualidade, mas a retomada do estilo do autor,

de dados de sua ideologia é um determinado tipo de intertextualidade. Os

Tropicalistas, na realidade, retomaram o projeto oswaldiano para renovação

nacional da música e da literatura, já que trazem para a cena os poetas Haroldo de

Campos, Augusto de Campos, dentre outros. Sem contar o fato de que, os

Tropicalistas eram adeptos de certos recursos de intertextualidade como o plágio, a

referência, a paródia de músicas de Luis Gonzaga, Jackson do Pandeiro etc. É

comum na música Tropicalista expressões, como, por exemplo, os olhos verdes da

mulata, a verde mata, fogueira de São João, das músicas de Luiz Gonzaga.

Caetano Veloso disse certa vez que quando encontrou Oswald de Andrade47,

quando na época assistiu à peça O Rei da vela48 encenado pelo Teatro Oficina,

havia se encontrado. “Fico apaixonado por sentir, dentro da obra de Oswald, um

movimento que tem a violência que eu gostaria de ter contra as coisas de

estagnação, contra a seriedade. Uma outra importância muito grande de Oswald

para mim é a de esclarecer certas coisas, de me dar argumentos novos para

continuar criando, pra conhecer melhor a minha própria posição. Todas aquelas

ideias dele sobre poesia pau-brasil, antropofagismo, realmente oferecem

argumantos atualíssimos que são novos mesmo diante daquilo que se estabeleceu

como novo (MALTZ, TEIXEIRA, FERREIRA, 1993, p. 33), “A percepção, pelo leitor

de relações entre uma obra e outras que a precederam ou a seguiram”

(SAMOYAULT, 2009, p. 28).

Para Caetano Veloso, o autor de Antropofagia permitia fazer coisas que ele

gostaria fazer, embora fosse com uma ferocidade menor, tanto é que seu ideário

para a música nacional começou com a leitura de Oswald de Andrade. Também é

45

ANDRADE, 1928. 46

ANDRADE, 1928. 47

A esse respeito ver o livro do próprio Caetano “Verdade Tropical”. 48

Peça encenada pelo Teatro Oficina em 1967.

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considerado uma forma de intertextualidade quando o autor se reconhece e inserido

na obra de alguém segundo Samoyault.

Segundo Samoyault:

A intertextualidade torna-se verdadeiramente um conceito para a recepção, permitindo impor modelos de leitura fundados sobre fatos retóricos captados em espessura, nas suas referências a outros, presentes no corpus da literatura. O intertexto – que o autor distingue da intertextualidade, caracterizado como ‘o fenômeno que orienta a leitura do texto, que governa eventualmente sua interpretação, e que é

o contrário da leitura linear. (SAMOYAULT, 2009, p. 25). [...] O intertexto é antes de tudo um efeito de leitura, nada deve impedir um leitor de hoje de interpretar uma figura presente no monologo de Molière, a partir de uma figura semelhante, presente no teatro de Brecht. A continuação da obra pelo leitor é uma dimensão importante

da intertextualidade. (SAMOYAULT, 2009, p. 25).

Observando os Tropicalistas na perspectiva da intertextualidade, a retomada

da poesia de Oswald de Andrade pelos Tropicalistas foi uma questão, também, de

recepção. Ao entrar em contato com a obra oswaldiana, os Tropicalistas

encontraram o seu calcanhar de Aquiles, ou seja, o projeto, ou melhor, a retomada

do projeto Oswald que guiaria o projeto Tropicalista.

A retomada da linha evolutiva da música popular brasileira é uma retomada

também da poética oswaldiana. Os Tropicalistas retomaram não só a forma de

compor suas músicas como se fossem poemas, nem sua linguagem renovada e

radical, mas também a ideologia oswaldiana de deglutição da cultura estrangeira

intercalada com a cor local. Disto resulta uma nova forma de ver e sentir o estado de

coisas, tanto em Oswald de Andrade como nos Tropicalistas, uma identidade

nacional.

De acordo com Bauman (2005), a identidade é constitutiva, ou seja, não

deixa de ser algo e passa, instantaneamente, a ser outro, mas a identidade é

construída sobre outra. Neste caso, a identidade brasileira vista a partir de

elementos nacionalmente constituídos sem a intervenção de outros elementos

externos e que caracterizavam a identidade nacional da época foi posta em xeque

por Oswald de Andrade e pelos Tropicalistas. Tanto é que, falar em identidade para

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os modernistas assim como para Oswald de Andrade e os Tropicalistas é algo muito

complicado, porque eles negaram haver uma identidade nacional, embora se

perceba nas entrelinhas que, o que eles realmente pretendiam era dar uma nova

roupagem à identidade nacional, ou seja, uma nova identidade para o Brasil

construída em cima de nossa história, mas vista a partir de outros ângulos como o

processo de urbanização das regiões mais afastadas, os investimentos feitos aqui

no Brasil por indústrias estrangeiras e as correntes de vanguarda que no aspecto

cultural estavam movimentando o mundo.

De uma forma ou de outra, Oswald de Andrade e os Tropicalistas romperam

com a tradição. Oswald de Andrade na poesia e os Tropicalistas na música. Em um

e outro se percebe a valorização da cultura nacional e deglutição da cultura

estrangeira. Ambos utilizaram de vários recursos de intertextualidade para produzir

suas obras, e ao absorver todo esse arsenal cultural, ambos, Oswald de Andrade e

os Tropicalistas compuseram sua arte e sua forma de ver e encarar a realidade.

Aqui não se pretende esgotar o tema, seria muita pretensão, já que Oswald

de Andrade e os Tropicalistas, apesar da distância de produção literária e musical no

tempo, continuam mais atuais do que nunca. Também, a literatura sobre Oswald de

Andrade e os Tropicalistas é bem ampla, carecendo, ainda, de muitos estudos na

área.

Pode-se afirmar que, os recursos intertextuais são bastante variados. A

escolha de uso de um ou de outro recurso intertextual depende da maneira como o

produtor de discurso encara o fenômeno. No caso de Oswald de Andrade e os

Tropicalistas esses recursos foram usados conscientes e intencionalmente, já que a

ideia principal era mostrar que uma coisa puxa a outra e que nada é feito a partir do

nada, e que para se trabalhar algo “novo” é preciso buscar fontes para conciliar

formas para se produzir discursos.

Neste sentido, observando as produções de Oswald de Andrade e dos

Tropicalistas, a novidade não está no novo propriamente dito, já que o novo no

sentido original se configura como mito (O mito da originalidade), mas na maneira

como o escritor faz a interseção de teorias e produções acadêmicas, literárias, etc.,

e faz disso sua originalidade. Assim a palavra correta seria criatividade.

Pode-se afirmar que entre a poesia de Oswald de Andrade e a música dos

Tropicalistas há muitas intertextualidades. Declaradamente, estas bem explicitam, já

que os próprios Tropicalistas assumem essa postura, primeiro de resgate da música

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108

popular brasileira e segundo que essas ideias vinham diretamente da poética da

radicalidade do poeta modernista Oswald de Andrade. Tanto em um como em outro

se percebe o questionamento de uma identidade já estabelecida e a renovação

desta identidade a partir da junção de elementos da cultura nacional mesclados com

requintes da cultura estrangeira para a constituição de uma nova identidade

nacional.

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4. A QUESTÃO DA IDENTIDADE: raça, meio e música popular.

No campo cultural, muitos debates se travaram em torno do que seria

identidade, identidade nacional, identidade cultural etc. Inicialmente há um conceito

bem amplo que acredita no casamento indissociável entre o indivíduo e sua nação,

sua cultura e seu modus vivendi. A questão colocada é que quando se tenta forjar

uma identidade, seja ela nacional ou regional aparecem como topo das

preocupações a raça e o meio como elementos primordiais e categorizadores de um

povo.

Muitos sociólogos, filósofos, poetas e prosadores tentaram descrever a

identidade de um povo por meio daquilo que se considerava nacional, adotando

como ponto de partida a constituição dos povos que habitavam um determinado

território e o estado como catalisador das manifestações dessa identidade. Nesse

sentido, o estado tinha o poder de decidir sobre a identidade ou identidades de uma

nação.

Segundo Ortiz:

Meio e raça traduzem, portanto, dois elementos imprescindíveis para a construção de uma identidade brasileira: o nacional e o popular. A noção de povo se identificando à problemática étnica, isto é, ao problema da constituição de um povo no interior de fronteiras delimitadas pela geografia nacional. (ORTIZ, 2006, p. 17)

Os negros, a geografia e a questão gritante da mestiçagem preocupavam os

intelectuais da época porque se buscava uma identidade ideológica e menos

racional cunhada nos moldes europeus, dentro do território brasileiro. Parte dessa

questão se pautava nas teorias evolucionistas e expansionistas herdadas das

nações do além-mar.

No final do século XIX, início do século XX, as preocupações em torno da

questão da identidade ficaram mais afloradas devido ao crescimento das cidades,

maior liberdade dos negros e o aparecimento da importação de cultura dos países

europeus, especialmente França e Alemanha. Devido a essas influências se tentou

no Brasil uma arianização da população, excluindo dessa forma o elemento negro já

bem predominante nas terras brasileiras. Esse fato levou inclusive autores como

Sílvio Romero, segundo Ortiz (2006) a criar uma identidade nacional baseada na

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110

raça branca que habitava os altos salões da corte e da burguesia. Numa atitude,

predominantemente preconceituosa, burguesa e com bases no darwinismo social,

Romero tentou cunhar uma identidade baseada na raça e nos costumes do além-

mar.

Durante boa parte do século XX atitudes preconceituosas foram aceitas pela

grande maioria dos intelectuais do Brasil, pelos governos e por grande parte da

população que desconhecia teorias sobre povos e raça diferentes, segundo os quais

a identidade brasileira precisava de uma higienização do componente negro para

poder-se ter uma identidade de fato que viesse ao encontro das aspirações da

classe dominante.

Nesse contexto, o índio nem sequer era lembrado, já que nem continha traços

de povo, nação ou até mesmo de gente, diferentemente do elemento africano que

era liberto e já fazia parte da sociedade como elemento indispensável ao trabalho.

Toda essa discussão em torno da identidade do Brasil buscava elementos

que pudessem criar símbolos nacionais. O povo e o meio foram os primeiros deles, e

embora se rejeitasse a figura do negro e dos índios, foram estes que viraram

símbolos de nossa brasilidade. Segundo Nicolau Netto (2009), a criação dos

símbolos nacionais é uma violência aos símbolos nacionais mais representativos de

uma nação, já que essa escolha não é arbitrária, mas politicamente orientada.

Antes mesmo da criação do Brasil como um discurso de brasilidade, é

possível se afirmar que os discursos sobre o Brasil já existiam nas manifestações

culturais. O que foi possível foi uma seleção dessas manifestações para criar uma

identidade nacional. “O processo de formação de identidade como histórico que só

se realiza em contextos específicos, a partir de conflitos entre forças de agentes que

buscam ‘uma definição de mundo social mais conforme aos seus interesses’”

(BOURDIER, 2005, p. 11).

Segundo Nicolau Netto:

A passagem da compreensão da identidade em sociedades primitivas para sociedades nacionais não é tão simples, pois é necessário perceber o surgimento de um novo poder material: o Estado-nação. Este se impõe, a partir do século XVIII como o poder material do qual emana – ou pelo qual passam – os modos de identificação do indivíduo do ponto de vista mais amplo, ou seja, fora de suas fronteiras imediatas, como o valor identitário supremo, sobrepondo-se à família, à comunidade, à coroa ou a qualquer outro todo unificador simbólico. (NICOLAU NETTO, 2009, p. 29)

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Pode-se dizer que a segunda fase histórica que buscou criar uma identidade

brasileira foi o Estado. Sob seu poder será selecionado o material simbólico para

constituir a identidade nacional. Nessa perspectiva, ficava a questão do que seria

nacional, o que seria elemento da identidade nacional, como ficavam os elementos

estrangeiros e a imigração e as ideias importadas para o Brasil? A escolha de um

implicava a exclusão do outro e desse modo não se podia eliminar a contribuição

acadêmica e as produções culturais das elites e nem abandonar a cultura popular

efervescente e produtora de discursos sobre a nacionalidade, principalmente na

música.

Criou-se um embate então, entre aqueles que queriam manter as tradições

para não perder sua identidade constituída sobre as tradições de seus ancestrais e

aqueles que mesmo defendendo a manutenção das tradições, queriam o país dentro

da pós-modernidade que já chagava a muitas das nações. Nesse contexto, então,

predominou o que se chamou da questão do nacional-popular e do nacional-

moderno. O primeiro garantiria a manutenção da tradição e do nacional e o segundo

do nacional e do moderno. Ambas as formas de pensar estavam engajados em

manter a cultura do país produzida pela cultura popular e ao mesmo tempo entrar no

mondo pós-moderno capitalista, globalizado e mantendo suas raízes culturais.

Para isso, na música, se promovia a Bossa Nova nos centros urbanos e

requintados, com sua influência jazzíaca americana, ao mesmo tempo em que se

aceitavam de forma seletiva as músicas produzidas pelos negros e malandros do

morro e as músicas folclóricas do Nordeste, especialmente Luiz Gonzaga que,

cantando nos cabarés da cidade baixa do Rio de Janeiro, fazia a alegria de gringos

e nortistas que vinham para a cidade grande em busca de emprego.

Dessa forma pode-se se perceber um forjamento da identidade nacional, pois

os elementos que a constituem são selecionados pela elite dominante, que prefere a

cultura capitalista do jazz em oposição às músicas produzidas pelas camadas

populares. Embora de maneira preconceituosa e ainda bem lenta as músicas

populares saíram do folclore e ganharam as rodas de samba e os cabarés e boates

da cidade.

Com o crescente aumento das rádios no país essas músicas assumiram um

caráter muito peculiar como elemento identitário no Brasil, a cultura popular e a

cultura de elite. A cultura de elite é amplamente divulgada nas rádios e programas e

se põe como símbolo da brasilidade e modernidade, enquanto a música popular de

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classe baixa é controlada pela elite, desde sua produção, execução, gravação e

divulgação, já que a maioria dos compositores eram negros e pobres, ou seja, a raça

e o meio continuam como elementos não de identificação do país, mas como

elementos de exclusão social.

Entre as décadas de 1920 e 1940, a noção de música popular era sinônimo

de música folclórica, e boa parte desses compositores ou eram do morro ou eram do

Nordeste. No entanto com o modernismo que se iniciou com a Semana de 1922, em

São Paulo, o elemento estrangeiro começa a ser visto como cultura que deveria ser

cultuada no Brasil e as elites receosas dessa americanização do país começaram a

investir nos cantores populares, tanto empresas como o próprio estado começou a

ver essa ameaça de fora como não boa para o país. A música popular teve grande

repercussão no rádio e logo depois na televisão, contribuindo para sedimentar a

identidade nacional a partir de cantores como Luiz Gonzaga, que agradava a elite e

a classe popular.

Segundo Nicolau Netto, (2009, p. 43) “O discurso nacionalista em torno da

música popular brasileira, a partir de então, se afirma [...] ‘a partir dos anos 1930, o

samba deixou de ser apenas um evento da cultura popular afro-brasileira ou um

gênero musical entre outros e passou a significar a própria ideia de brasilidade’” e

desde então a música passou a ser vista pelo estado e pela elite como um discurso

caracterizador de uma identidade nacional.

4.1 Identidade e pós-modernidade

Segundo o dicionário Michaelis, (www.michaelisonline.com.br) identidade

significa igualdade, diferença e similitude. Não é um conceito muito abrangente, nem

muito menos esclarecedor. No entanto se observa através da antropologia cultural e

da sociologia que identidade significa as diferentes formas e sentidos de um fazer

cultural de uma determinada cultura. É também igualdade, ou seja, é a observação

que na formação cultural de um povo há traços e dispositivos teóricos e empíricos

que caracterizam a identidade de um povo, bem as semelhanças que unem uma

nação por traços que lhe são peculiares. Em suma uma identidade nacional ou

regional não se faz pela perenidade, transparências e igualdades de hábitos e

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costumes de um povo, mas justamente pelas semelhanças e diferenças que de

forma sincrética caracterizam uma identidade cultural de um povo.

A identidade é algo bem problemático, principalmente na pós-modernidade,

com a quebra das barreiras culturais entre as nações. Não se pode querer ou exigir

puritanismo na cultura de nenhum país atualmente, por que a cultura feita pelos

homens está continuamente se modificando e diferenciando com a adoção de

elementos não apenas da cultura nacional, mas de elementos de outras culturas,

inclusive aquelas bem longínquas e de costumes exóticos.

Para Bauman (2005), identidade é um “conceito altamente contestado” e “o

campo de batalha é o lar da identidade”. Isso quer dizer que a identidade não existe

a priori e está sempre em constante modificação, é uma batalha travada diariamente

em busca de uma formação identitária mais plausível, não cômoda. Segundo ele “A

identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma

intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa absoluta resoluta a ser

devorado” (BAUMAN, 2005, p. 84).

A identidade é sempre algo a constituir e nunca algo já constituído, pronto e

acabado. A ideia é que o indivíduo não nasce com uma identidade pronta e morre

com ela, o que pode-se levar a outra discussão, o de saber se a identidade é

marcada biologicamente. O indivíduo nasce em qualquer país do mundo e vai

construindo sua identidade através dos estímulos exteriores e sua vivência com os

outros indivíduos e com as disposições genéticas que ele traz do berço.

Com a pós-modernidade, não se pode mais dizer que um indivíduo nasce e

morre da mesma forma como nasceu. As grandes mudanças sofridas na sociedade

contemporânea mudaram o modo de ver e perceber as coisas do mundo e, a

relação do homem com as coisas mudou radicalmente. Isso implica dizer que, os

estados de cosas do mundo alteram a forma de como é vista o homem e a

sociedade e a constituição destes ao longo dos tempos.

Para Hall (2000) as mudanças que ocorreram no mundo na modernidade

tardia fizeram com que aparecesse para o sujeito um guarda-roupa de identidades.

Com a globalização, os movimentos feministas e a popularização da internet, as

pessoas necessitam se adequar às novas demandas sociais, não apenas por

mudar, mas para acompanhar o próprio processo de desenvolvimento do mundo.

Hoje é inconcebível a pessoas não saber sacar dinheiro num caixa eletrônico, puxar

um extrato bancário da internet, usar o computador. São coisas que não são

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escolhidas se faz ou não faz, elas fazem parte da dinâmica da vida e estão se

tornando essenciais. Então, as pessoas que nascem nesse meio já nascem num

mundo diferente, onde o híbrido, a cópia, o pastiche, a paródia já são coisas que se

falam e praticam sem aquela ideia de original.

Para Bauman, nascer com uma identidade e sustentá-la até a morte é a mais

linda mentira pós-moderna. Não há como fazer isso nem mesmo sem as grandes

mudanças pelas quais passou o mundo. Imagine com os novos usos que se fazem

hoje dos diversos meios e redes sociais e sites de relacionamento.

Segundo Hall:

As sociedades da modernidade tardia, argumenta ele, são caracterizadas pela “diferença”; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes “posições de sujeito” – isto é, identidades – para os indivíduos. (HALL, 2000, p. 17)

De acordo com essa perspectiva, os antagonismos que caracterizam não só a

sociedade da pós-modernidade, mas também outras mais antigas, é a diferença. O

fato de não sermos iguais e não efetuarmos tudo da mesma forma faz com que

assumamos várias formas de sujeito para realizar os diversos tipos de atuações

para que essa identidade esteja de acordo e a atuação que está sendo executada.

Não que isso caracterize uma estabilidade em que cada estereótipo seja

determinado a exercer um papel social, mas que é necessário mudar de identidade

de acordo com as situações às quais os sujeitos são expostos.

Para Orlandi:

Assim, de certa forma, falar (dizer) é ser-se estranho, é dividir-se, uma vez que os processos discursivos não têm sua origem no sujeito, embora se realizem necessariamente nesse sujeito. Dessa contradição inerente a noção de sujeito deriva uma relação dinâmica entre identidade e alteridade: movimento que, ao marcar a identidade, atomiza (separa) porque distingue, e, ao mesmo tempo, integra, porque a identidade é feita de uma relação. (ORLANDI, 1988, p. 10).

O sujeito não é, então, algo exterior à linguagem, mas que está envolvido

nela, ou melhor, há nele algo que é interior e exterior desse modo não havendo

como separar sujeito e linguagem. A linguagem é um processo, uma faculdade do

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sujeito social, pois a mesma vem de sua própria atividade linguageira socialmente

determinada pela relação que estabelece com os demais membros, o que implica

dizer que ela advém dele e a ele e às outras coisas do mundo se refere quando é

executada.

O fato de a linguagem ser autônoma, de certa forma, não significa que ela não

existe por si só, necessitando, pois de sua origem para existir enquanto algo da

natureza humana. Ela existe como um dado de constituição da identidade do sujeito

social na prática de seu discurso. Ao se pensar nisso, questiona-se se o sujeito é ou

não autor daquilo que produz, se levarmos em conta as condições de produção.

Nessa perspectiva, vê-se que o discurso do social é uma prática que se completa

nos sujeitos e não está somente em um, isto é, o discurso social propicia o

surgimento do sujeito no campo da complementaridade. Percebe-se que os sujeitos

estão socialmente engajados numa dada sociedade e, necessitando da cooperação

um dos outros, numa espécie de troca de favores, fazendo com que, muitas vezes,

para não dizer na maioria das vezes, os sujeitos se apropriam dos discursos alheios,

se houver algo que seja autêntico numa sociedade (BAKITHIN, 1997), e fazendo

desses discursos sua identidade. Com efeito, a representação de alguém pode ser o

reflexo ou a refração do outro; esse outro é o não eu ou até mesmo o eu refratado, o

que faz do sujeito algo que não está pronto e acabado, mas algo que se completa

nos outros e nas situações do dia-a-dia. A identidade também é constituída pela

relação de sujeitos sociais em constante movimento de aceitação e refração do

outro.

Para Goffman (1975) o eu sofre variações nas diversas atuações diárias. O

sujeito na vida quotidiana se manifesta como uma representação, um papel que o

mesmo desempenha na comunidade onde vive. Dessa forma, qualquer indivíduo

com sua formação, religião, ideologia, nível social, desempenha um papel, ou seja,

atua de forma a convencer (ou não) os outros de seu papel social. Ora, na sua

competência como ator, o indivíduo tenta sem prejuízo dos outros, mostrar uma

representação que o mesmo acredita ser mais aceitável em seu meio.

No tocante aos papéis desempenhados pelos sujeitos com relação a sua

atuação, Goffman diz:

Não é provavelmente um mero acidente histórico que a palavra “pessoa”, em sua acepção primeira, queira dizer máscara. Mas,

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116

antes, o reconhecimento do fato de que todo homem está sempre em qualquer lugar, mais ou menos consciente, representando um papel... É nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros; é nesses papéis que nos conhecemos a nós mesmos. (GOFFMAN, 1975, p. 27).

Nas atuações cotidianas cada indivíduo possui uma máscara49 que é a

própria pessoa que desempenha um papel frente aos demais indivíduos. É um papel

consciente, pois é nele que o homem conhece a si mesmo e aos outros. Essa

mascara é mais do que nós podemos imaginar, já que, em alguns casos, a mentira é

uma idealização de nós mesmos, uma projeção ou até mesmo uma aspiração de ser

aquilo que desempenhamos como atores. Esse fato leva a crer que as pessoas de

um modo geral sabem qual é o seu papel social, já que reconhecem no outro um

papel que não é o seu. Essa é uma forma de ver o outro e saber que seu papel é

diferente, é importante tanto quanto o outro.

Com relação à representação de nós mesmos como pessoas ou máscaras:

Em certo sentido, e na medida em que esta máscara representa a concepção que formamos de nós mesmos – o papel que nos esforçamos por chegar a viver – esta máscara é o mais verdadeiro eu, aquilo que gostaríamos de ser. Ao final a concepção que temos de nosso papel torna-se uma segunda natureza e parte integral de nossa personalidade. Entramos no mundo como indivíduos, adquirimos um caráter e nos tornamos pessoas. (GOFFMAN, 1975, p. 27).

Como sujeito, a máscara que o eu representa é a concepção que se tem de si

mesmo, ou seja, uma representação formal de sua personalidade, uma construção

discursiva e, pois seu status de pessoa é a sua interpretação perante os demais

sujeitos discursivos. Essa representação é mais fiel a si mesmo do que o próprio

indivíduo, pois o papel que desempenha faz parte de sua personalidade e diz mais

de si do que o simples indivíduo. Inferindo, podemos dizer que a atuação é que

produz o sujeito, ou seja, sua formação é discursiva, feita de palavras como no

princípio (In principio erat verbum). Com efeito, a máscara que o eu representa é

aquilo que corresponde a ele. A máscara é construída a partir do eu para os outros,

49

- Nesse sentido Goffman discorre sobre a verdadeira etimologia da palavra máscara que vem de “persona”, resguardando seu sentido como a forma que as pessoas do teatro Grego figuravam seus personagens utilizando máscaras para representar os seres sociais do mundo real.

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117

enquanto os outros também mascaram. É um jogo dialético, no qual se cria a

personalidade dos indivíduos em convivência com os outros.

Para Anthony Giddens (2002), as sociedades tradicionais que perpetuavam a

identidade através das gerações entraram em colapso devido às noções modernas

de tempo e espaço, isso porque no mundo globalizado o espaço não define mais a

etnia, a escolha sexual, nem sua identidade, visto que as conexões entre as culturas

tornaram as mudanças mais rápidas e essas transformações ocorreram em todo

planeta. Para ele a noção de identidade através do estado-nação não suporta a

menor crítica, pois seus pilares de sustentação como a família, o patriotismo e a

fidelidade à cultura não encontram âncora na modernidade tardia.

A modernidade, segundo Giddens, altera todo sistema de relações da vida

social e cotidiana. A pós-modernidade se entrelaça com a vida cotidiana fazendo

com que não se separe o eu social do eu individual e afetando toda a existência e a

constituição da identidade moderna, ou seja, “A modernidade é um risco”

(GIDDENS, 2002, p. 10) que ameaça o futuro construído e reconstruído

constantemente. É preciso estar atento às mudanças para não perder a identidade.

A vida social na modernidade traz profundas mudanças na relação dos

sujeitos com as instituições, caracterizando-os como fragmentado, clivado, sendo

cada lugar social, o lugar de um determinado sujeito, que como assinala Foucault

(2008), que o sujeito emerge do lugar social de onde ele fala com quem fala e como

fala. Para Anthony Giddens (1991), na modernidade a vida social está organizada

em torno do tempo e do espaço. Segundo ele, os mecanismos desenvolvidos na

modernidade deslocam os sujeitos de seus lugares específicos para outros lugares

que não são seus, mudando sua forma de viver socialmente e consequentemente

sua identidade. Nesse sentido ter identidade na modernidade significa participar do

mundial e do local sem perder de vista as particularidades que lhe são inerentes na

sua vida cotidiana no lugar onde vive.

Para Giddens a modernidade:

refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. Isto associa a modernidade a um período de tempo e a uma localização geográfica inicial, mas por enquanto deixa suas características principais guardadas em segurança numa caixa preta. (GIDDENS, 1991, p.8).

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Para Giddens (2002) a identidade está ligada à questão cultural de um povo,

é por meio dela que se pode dizer que certos costumes são pertencentes ou não a

cada grupo. Importante dizer que o termo identidade só surge com o conceito de

moderno, ou seja, os antigos agrupamentos indígenas ou quilombolas não tinham

uma identidade tal qual se discute atualmente, porque esse conceito de identidade

engloba a cultura, o sujeito, a noção de modernidade e a ideologia que é um

conceito ainda jovem, já que surge justamente quando as identidades são postas

em xeque pelas novas formas de encarar o mundo moderno. Mesmo assim,

identidade ainda é uma verdadeira caixa preta.

Para Marx e Engels (1999) a revolução nos meios de produção não é

estanque e congelada ao longo dos anos e as relações fixas dão lugar a relações

mais abertas e flexíveis, ocasionando mudanças nas sociedades modernas e

consequentemente nos indivíduos que vivem essa experiência de representação dos

ideais de uma sociedade. Nada que é sólido envelhece até ossificar-se, desmancha-

se no ar ( MARX & ENGELS, 1999).

Para Bauman (2005) assim como Hall (2000) grandes acontecimentos em

outras eras causaram os impactos e o mal-estar que permeiam as sociedades na

modernidade tardia. Uma das grandes revoluções foi o pensamento protestante que,

quebrando com a unidade religiosa no Ocidente e com a ideia de salvação pela

instituição e pelo grupo, acabou por instituir o individualismo, ou seja, a salvação

individual. Essa postura religiosa trouxe para a modernidade tardia a noção de que

as coisas são vistas e percebidas a partir do olho individual do sujeito e o que

parecia uma novidade e uma nova forma de encarar e ao mesmo tempo

desmascarar as práticas da Igreja Católica foi uma revolução para as sociedades de

consumo, que investindo no sujeito isolado e posteriormente no seu grupo,

acabaram por fragmentar o indivíduo e sua identidade.

Esse mal-estar na pós-modernidade, que Bauman (2008) e Giddens (2002)

discutem recai bastante sobre a questão do individualismo. Ele é o grande

responsável pela fragmentação do indivíduo racional, da família e do casamento,

das relações interpessoais, inclusive do trato com as mazelas que sofre o mundo, a

tecnologia a serviço de grupos e a melhorias das condições individuais e aumento

da fome e da miséria da maioria. O individualismo é uma característica fundamental

para a modernidade tardia, uma vez que ele é responsável pelas desarticulações

que da base da identidade baseada na nação, na cultura nacional e na família.

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Para Giddens:

A modernidade é uma ordem pós-tradicional, mas não uma ordem em que as certezas da tradição e do hábito tenham sido substituídas pela certeza do conhecimento racional. A dúvida, característica generalizada da razão crítica moderna, permeia a vida cotidiana assim como a consciência filosófica constitui uma dimensão existencial geral do mundo social contemporâneo. (GIDDENS, 2002, p. 10).

Para Giddens a vida moderna é guiada pelo princípio da dúvida em que tudo

não tem uma certeza ou mesmo uma condição própria de existência. O

conhecimento é a grande chave que abre todos os portões da ignorância humana,

no entanto, é uma questão tão controversa que já se espera que a ciência não seja

o único meio de conhecer, mas que para a modernidade a certeza na ciência é um

princípio básico norteador.

4.2 Identidade nacional

A primeira noção de identidade que tem preocupado filósofos, sociólogos,

cientistas políticos é a da identidade nacional cunhada pela noção estado-nação. O

estado com seus aparelhos reguladores criam para o país uma amostra, uma

imagem que nos representa lá fora, embora a maioria das pessoas não se enquadre

nesse grau de identidade. Ao mesmo tempo em que se cria uma identidade nacional

para todos se anulam as identidades particulares, e isso tem sido feito ao longo dos

tempos em prol do patriotismo.

Segundo Bauman:

A questão da identidade só surge com a exposição a “comunidades” da segunda categoria – e apenas porque existe mais de uma ideia para evocar e manter unida a “comunidade fundida por ideias” a que se é exposto em nosso mundo de diversidades e policultural. É porque existem tantas dessas ideias e princípios em torno dos quais se desenvolvem essas “comunidades de indivíduos que acreditam” que é preciso comparar, fazer escolhas, fazê-las repetidamente, reconsiderar escolhas já feitas em outras ocasiões, tentar conciliar demandas contraditórias e frequentemente contraditórias. (BAUMAN, 2005, p. 17).

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O tema da identidade se torna uma faca de dois gumes50 justamente por

deixar de fora muitas pessoas que não participam dessa comunidade nacional como

cidadãos com seus direitos e deveres garantidos, uma vez que alguma comunidades

são excluídas do processo de pertencimento, pois não se enquadram em nenhuma

forma identitária do país, ou seja, ao se constituir uma identidade discursiva para a

maioria, exclui as minorias. Pensam-se nos marginais, pessoas que tiveram sua

nacionalidade cassada em função de guerras e ideologias políticas, degredados e

toda espécie de gente sem nação que reclama uma identidade para si, pertencer a

algo. Como a identidade foi e ainda é algo problemático no mundo moderno, é

preciso que certas escolhas sejam norteadas para que certas comunidades não

fiquem à margem do processo de identificação de seu grupo e de seu país. Os

princípios que norteiam, muitas vezes, os grupos e blocos políticos coesos não são

os mesmos de quem está fora desses padrões, então é necessário se buscar, fazer

escolhas, ou seja, construir novas identidades para si. A identidade se apresenta

como uma escolha, forçada, induzida, condicionada e cada uma das opções implica

em assumir riscos, uns mais passageiros, outros mais duradouros.

Nesse caso, segundo Bauman (2005), a identidade nacional é o conjunto de

crenças baseados na língua nacional e única, na memória, nos costumes e hábitos

que são postos como comuns a todos os membros de uma mesma comunidade e

estendida às mais longínquas terras de um país, sem que isso represente realmente

o pensamento identitário de determinada comunidade. Normalmente, o que é tido

como identidade nacional se estende às comunidades mais distantes dos grandes

centros, às províncias que devem seguir um padrão. São comuns também, as

comunidades mais distantes dos grandes centros comerciais e culturais não

aceitarem determinadas categorias constitutivas de identidade e se revoltar para

criar novas identidades como é o caso de como foi criada a região Nordeste, que já

nasce com o estereótipo de atraso, fome e miséria, mas que na verdade nem tudo

aqui é do jeito que foi pintado para os brasileiros. Foi algo inventado sem nenhuma

razão de ser ou existir.

50

A “identidade” é uma ideia inescapavelmente ambígua, uma faca de dois gumes. Pode ser um grito de guerra de indivíduos ou das comunidades que desejam ser por estes prestigiadas. Num momento o gume da identidade é utilizado contra as “pressões coletivas” por indivíduos que se ressentem da conformidade e se apegam a suas próprias crenças [...]. Em outro momento é o grupo que volta o gume contra o grupo maior, acusando-o de querer devorá-lo ou destruí-lo, de ter a intenção viciosa e ignóbil de apagar a diferença de um grupo menor, forçá-lo ou induzi-lo a se render ao seu próprio “ego coletivo”. (BAUMAN, 2005, p. 82-3).

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121

Nesse sentido no qual se busca algo que lhe seja peculiar e inerente, a

identidade é algo confortável e que garante certa estabilidade para o indivíduo. O

Estado nacional, com seus estandartes e discursos apologéticos, faz seus cidadãos

proclamarem-se brasileiros, alemães, franceses, etc.: que o brasileiro é dócil,

amigável e de boa índole e que o Brasil é um país sem guerras, sem tufões, sem

terremotos, que vivem num país tropical, é que aqui todos são bem recebidos para

fazer tráfico de drogas e pessoas, prostituição de todos os níveis, etc; que os

alemães são filósofos, teóricos e sisudos; que na terra da cerveja, da polca e da

carne de porco a vida dos cidadãos é definida por sua intelectualidade de nação

europeia soberana. Que os franceses não tomam banho, em vez disso usam

perfumes caríssimos, falam uma língua bonita e apreciada pelo mundo, berço da

revolução francesa e dos princípios de Liberté-Egalité-Fraternité. São discursos que

se tem de algumas nações, mas que por si só não garantem uma identidade ou

identidades para nenhum indivíduo. Foi um discurso imaginado a partir de como a

nação queria ser vista pelos outros, ou seja, criou-se uma imagem de uma

identidade que muitas vezes não condiz com seus compatriotas, mas é uma imagem

projetada para as outras nações.

Com o encurtamento das distâncias e rompimento das barreiras culturais, o

mundo parece que se tornou uma aldeia global, embora todos não compartilhem dos

progressos conquistados pela humanidade e muitos povos ainda se encontrem

como se estivessem vivendo na Idade Média. Nesse sentido a globalização é mais

propaganda que realidade e em termos de mercadorias e serviços pode-se comer

comida japonesa em São Paulo, falar inglês em Pequim, usar perfume francês no

Brasil e assistir uma apresentação de capoeira em Nova York. Nesse intercâmbio de

mercadorias, serviços e cultura como é que fica a questão da identidade?

Para Hall (2000) a questão da identidade se coloca como centro das

preocupações de filósofos e cientistas políticos, assim como linguistas,

antropólogos, porque se tornou um assunto que preocupa, ou seja, se torna uma

questão quando está em crise, deixando de ser fixa e estável e agora deslocada e

posta em dúvidas. Segundo esse autor as profundas mudanças que ocorreram no

mundo pós-guerra acabaram por trazer à tona se a identidade realmente se

configura como algo ligado apenas à questão da nacionalidade. “Um tipo de

diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no

final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero,

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sexualidade, etnia. raça e nacionalidade, que no passado, nos tinham fornecido

sólidas localizações como indivíduos sociais” (HALL, 2000, p. 09). Não que isso

implique na anulação da nacionalidade, mas que só a identificação maciça por meio

do estado se tornou muito frágil e que essas mudanças estão descaracterizando as

identidades mais sólidas com as quais se convivia no passado.

Segundo Hall (2000) essas mudanças na identidade têm a ver com a noção

de sujeito adotada. Para ele há três tipos de identidade segundo as concepções de

sujeito a saber:

O sujeito do iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ‘centro’ emergia pela primeira vez quando nascia. (HALL, 2000, p. 10).

Esse tipo de sujeito sugeria uma identidade única com a qual o sujeito nascia

com ela e permanecia durante toda sua existência. Segundo essa concepção

surgida a partir da noção de razão de Descartes, o sujeito já nascia com uma

identidade que lhe era dada no berço e que durante toda sua vida não se

modificava, mantendo-se intacta até a morte. Essa visão sugeria um sujeito único e

dotado de capacidades que o tornavam consciente de suas ações no mundo do

Cogito ergo sum. Vale salientar que o sujeito do iluminismo era um indivíduo

masculino, já que para essa época e essa mesma concepção a mulher não era nem

estudada nem vista como sujeito consciente.

“Sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a

consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e

autossuficiente, mas era formado na relação com ‘outras pessoas importantes para

ele’”. (HALL, 2000, p. 11)

O sujeito sociológico é o sujeito da relação entre o interior e o exterior, ou

seja, nele agem forças que lhe são próprias e dotadas biologicamente e ao mesmo

tempo forças exteriores que agem sobre o corpo e influenciam em sua constituição

discursiva e histórica. Nesse sentido o sujeito possui um núcleo interior que é

modificado ou influenciado pela sociedade. Percebe-se nessa postura uma

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interatividade entre o sujeito cognoscente e os outros sujeitos sociais que tem

grande influência na formação de sua identidade.

Há nos trabalhos de Bakhtin (1997) há grande importância ao outro (principio

da alteridade) na formação do ethos interior. Seus trabalhos em parte dedicam-se à

formação do sujeito a partir das relações com os outros sujeitos sociais e, embora

Bakhtin esteja interessado no discurso polifônico, ou seja, das outras vozes que

compõem os estilos e tipos relativos de enunciados, sua teoria dá bastante ênfase à

formação do sujeito a partir do equilíbrio entre o interior e o exterior.

Nessa perspectiva, o sujeito não é único e dotado de uma consciência

autossuficiente, mas de uma identidade marcada pela presença do outro em um

processo de interação permanente entre os sujeitos das diversas camadas sociais

que influenciam direta e indiretamente na formação de sua identidade social.

Essas coisas agora estão ‘mudando’ [...] o sujeito está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades. Esse processo produz o sujeito pós-moderno conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente.” (HALL, 2000, p. 12).

Essa última concepção de sujeito e de identidade defendida por Hall (2000)

leva em conta as atuais mudanças ocorridas no mundo moderno e na modernidade

tardia, ou pós-modernidade como chamam alguns, a de que o sujeito nessa

sociedade não tem uma única identidade, mas sim várias identidades. Isso ocorre

devido aos diversos tipos de relações a que os sujeitos estão expostos e que de

alguma forma influenciam e até forçam51 a se ter uma nova identidade que atenda

as demandas sociais em micro e macrossistema de relações.

4.3 Identidade nordestina

A região Nordeste e a identidade nordestina, aquela de que tratam os

romances regionalistas, as novelas, e muitos outros programas televisivos, foi algo

inventado em um dado momento da história do Brasil. Sabe-se que a identidade de

51

Essa afirmação não implica numa imposição por ela mesma, mas que as sociedades, principalmente as de consumo, impõem gostos e estilos que forçam inconscientemente os sujeitos a adquirirem ou assumirem novas identidades que não são as deles, mas que são exigidas devido aos perfis traçados pela sociedade. Um bom exemplo disso são os diversos grupos que formaram na modernidade tardia com punks, roqueiros, pagodeiros, hippies, etc.

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um povo ou um grupo de indivíduos é feita a partir da homogeneidade sociocultural

que os une, quando na verdade, deveria ser a heterogeneidade como ponto

fundamental para caracterização das identidades. Nesse sentido há uma confusão

entre região e regionalismo. O primeiro, ligado mais aos aspectos geográficos e

políticos na formação dos povos e dos conjuntos de vivências que um determinado

povo acumula para superar o meio. O segundo, como um aspecto mais discursivo,

ligado às produções que caracterizam a identidade das regiões através da

linguagem, da cultura, das vestimentas, do modus vivendi de cada região. A região

caracteriza a geografia onde o indivíduo vive, o regionalismo como um conjunto de

particularidades linguísticas oriundos da cultura de uma região.

A criação das identidades, principalmente as dos nordestinos, foi uma criação

de estereótipos, ou seja, se identificou a caracterização do indivíduo pela região,

mostrando que quem vivia no Nordeste tinha aquele tipo de vida porque a geografia

da região favorecia, mas ninguém nunca disse que as regiões nordestes de outros

países eram menores por serem mais afastadas dos grandes centros urbanos e não

participarem efetivamente da mesma cultura.

Albuquerque Júnior nos fala que o Nordeste foi inventado sobre um discurso

de nacionalização das coisas, precisando categorizar os tipos regionais para se

forjar uma identidade para o país. Uma das formas de criação da identidade

nordestina foram os romancistas de 1930.

Sobre o discurso regionalista da década de 1930, Albuquerque Júnior diz:

O discurso regionalista não mascara a verdade, ele o institui. Ele, neste momento, não faz mais parte da mimese da representação que caracterizava a epistéme clássica e que tomava o discurso como copia do real; na modernidade este discurso é regido pela mimese da produção em que os discursos participam da produção de seus objetos, atua orientado por uma estratégia política, com objetivos e táticas definidos dentro de um universo histórico, intelectual e até econômico específico. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 49)

Quem lê os principais romances produzidos na década de 1930 como Vidas

secas de Graciliano Ramos, Menino de engenho de Jose Lins do Rêgo, O Quinze de

Rachel de Queiroz, A bagaceira de José Américo de Almeida, dentre outros,

percebe o tipo de espaço geográfico e o tipo de gente que habita as terras do

Nordeste. É um quadro de fome e miséria assolado por bandidos e facínoras como

os cangaceiros e a figura mítica de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião; pelo

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messianismo na figura do cearense Antônio Conselheiro, o beatinho e sua Guerra

de Canudos no sertão da Bahia descrita no livro Os Sertões de Euclides da Cunha.

Nesses romances há uma categorização do indivíduo que vive no Nordeste, quando

na verdade está se falando de literatura, que embora esses romances se pusessem

como um neorrealismo, não passavam de literatura. Então a identidade nordestina

vista a partir da literatura regionalista é uma ficção que se tornou uma realidade

visível para o nordestino e todas as visibilidades e dizibilidades sobre o Nordeste

nesse tipo de discurso se tornou o paradigma de nossa identidade.

Quem nunca veio ao Nordeste imagina que a região é da mesma forma que

foram tratados os romances ficcionistas de 1930. Que ainda vive-se da mesma

maneira que há 70 anos. O pior é que nem isso condiz com que é realmente ser

nordestino, que essas representações feitas do Nordeste e do nordestino na ficção

não representam realmente o conjunto de saberes e dizeres sobre a identidade da

região e do sujeito que nela vive.

Segundo Albuquerque Júnior:

A identidade nacional ou regional é uma construção mental, são conceitos sintéticos e abstratos que procuram dar conta de uma generalização intelectual, de uma enorme variedade de experiências efetivas. Falar e ver a nação ou a região não é, a rigor, espelhar estas realidades, mas criá-las. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 27)

Para esse autor se inverteram os papéis ao se colocar a geografia da região

como determinante do tipo que a habita, porque segundo ele a identidade nacional

ou regional de um povo é uma realidade inventada e não se espelha na realidade tal

qual ela se apresenta. Os papéis sociais de uma identidade nacional ou regional não

são dados pelo aspecto físico dos sujeitos que habitam esse espaço geográfico. Se

assim o fosse, como seriam os povos do deserto em suas caricaturas? Isso mostra

que a região Nordeste e a identidade nordestina foram uma criação ideal baseada

nas visões sobre a região Nordeste. Abandonaram essa região por anos, deixaram

seus indivíduos por conta própria só para depois criarem identidades forjadas

baseadas naquilo que foi instituído socialmente, ou seja, deixaram a região ao Deus-

dará para depois voltar e categorizar o que sobrou dessa imensa falta de políticas

públicas que viessem socorrer a região Nordeste.

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A identidade parte de uma generalização sobre determinado espaço

geográfico e social ao lado das condições econômicas que definem a região como

superior ou inferior economicamente. Dessa forma, o Nordeste foi inventado a partir

das visibilidades e dizibilidades sobre os espaços geográficos e os sujeitos que nele

habitavam, foi uma identidade criada, assim como todas são.

O espaço não preexiste a uma sociedade que o encarna. É através das práticas que estes recortes permanecem ou mudam de identidade, que dão lugar a diferença; é nelas que as totalidades se fracionam, que as partes não se mostram desde sempre comprometidas com o todo, sendo este todo uma invenção a partir destes fragmentos, no qual o heterogêneo e o descontínuo aparecem como homogêneo e o contínuo, em que o espaço é um quadro definido por algumas pinceladas. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 25).

De modo geral, o que se privilegiou para formular uma identidade sobre o

Nordeste foi a geografia da região. Buscaram homogeneizar as diferenças e mostrá-

las como sendo o reflexo real da região e de quem habita nela. Não se apelou para

o fato de que tomar o todo como sendo a totalidade das partes encobria as

diferenças. Com base nisso é que Durval Muniz explica: “A formação discursiva

nacional-popular pensava a nação por meio de uma conceituação que a via como

homogênea e que buscava a construção de uma identidade, para o Brasil e para os

brasileiros, que suprisse as diferenças, que homogeneizasse estas realidades. Esta

conceituação leva, no entanto, a que se revele a fragmentação do país, a que seus

regionalismos explodam e tornem-se mais visíveis”. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999,

p. 49). O argumento central é que com a homogeneização da cultura do país ficaria

mais fácil o afloramento das regiões com suas características, quando na verdade,

houve uma criação de estereótipos sobre as regiões, principalmente o Nordeste.

Os Tropicalistas foram um dos grupos musicais que, sendo nordestino da

Bahia, não concordaram com essa ideia de Nordeste e de povo nordestino, fazendo

de suas músicas verdadeiras contestações sobre as visibilidades e dizibilidades que

se tinha sobre a região Nordeste.

O próprio Albuquerque Júnior assegura a cruzada tropicalista:

Privilegiamos, no entanto, neste debate, aquele que se trava especificamente em torno da ideia de Nordeste, como ele foi inventado, no cruzamento de práticas e discursos e os sucessivos

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deslocamentos que a imagem e o texto desta região sofreram, até a sua mais radical contestação com os Tropicalistas, no final da década de sessenta. Buscamos perceber como determinados enunciados audiovisuais se produziram e se cristalizaram, como “representações” deste espaço regional, como sua essência. Perceber que a rede de poder sustentou e é sustentada por essa identidade regional, por este saber sobre a região, saber estereotipado, que reserva a este espaço o lugar do gueto nas relações sociais em nível nacional, região que é preservada como elaboração imagético-discursiva como o lugar da periferia, da margem, nas relações econômicas e políticas no país, que transforma seus habitantes em marginais da cultura nacional. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 27).

Foi esse grupo de baianos que contestou essas ideias e imagens que

circulavam e ainda circulam na mídia televisiva sobre o Nordeste. As representações

e as imagens que foram projetadas no país e na consciência coletiva sobre o

Nordeste são tão fortes que até mesmo grupos radicais como os Tropicalistas

tiveram grande resistência de aceitação por parte do público, quando estes, de

origem nordestina, tentaram se projetar no cenário musical da década de 1960.

Porém, as identidades não permanecem fixas o tempo todo e novas tendências vão

surgindo e fazendo com que certas imagens não continuem. Depois dos

Tropicalistas outros se aventuraram a reinventar a história do Nordeste, mostrando

sua grandeza cultural e musical no cenário do país e do mundo.

Toda essa história de invenção do Nordeste e arrebanhamento das

identidades não é algo ingênuo; ela obedece às relações de poder que se

instauraram na época em que o Nordeste foi inventado geográfica e discursivamente

e, posteriormente, quando grandes grupos de poderosos52 lucraram e ainda lucram

muito com essa ideia inventada de seca, fome, desgraça, pois tudo isso eram

argumentos para se desviar grandes levas de recursos que iriam acudir quem era

vítima de algum problema de estiagem.

Albuquerque Júnior resume o que é e o que foi o Nordeste e as imagens que

se tinha e se tem dessa região a partir de uma perspectiva discursiva:

O Nordeste é uma produção imagético-discursiva formada a partir de uma sensibilidade cada vez mais específica, gestada historicamente,

52

Albuquerque Júnior fala sobre o coronelismo e sobre os grandes latifundiários que ganhavam muito com essas ideias, porque as verbas destinadas a combater as secas eram desviadas para as terras de alguns desses tipos como a construção de barragens e açudes pelo DNOCS e pela SUDENE. Essas obras eram construídas nas terras desses poderosos, que utilizavam o recurso do povo para comprar o povo e para manter seus currais eleitorais, a chamada indústria da seca.

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em relação a uma dada área do país. E é tal a consistência desta formulação discursiva e imagética que dificulta, até hoje, a produção de uma nova configuração de “verdades” sobre este espaço. (ALBUQUERQUE, JÚNIOR, 1999, p. 49).

Para o autor, o Nordeste é uma produção discursiva, ou seja, a produção

imagético-discursiva da região Nordeste se deu de acordo com as visibilidades e

dizibilidades sobre essa região. Isso se deu quando o Nordeste se opôs à região sul

e seu movimento modernista. Enquanto lá no Sudeste se mostrava um tipo de

dizibilidade sobre o país e sobre o Nordeste por meio da literatura, o Nordeste criou

sua própria identidade ao contestar as visões sobre o país e sobre a região

Nordeste. Essa identidade foi mostrada sempre com base em critérios geográficos e

econômicos, ou seja, para essa região do país que tem uma geografia irregular com

alta escassez de água, que não tem recursos financeiros que a levem a se manter

sozinha, criando com isso tipos extremamente rústicos, animalescos, como é o caso

de Fabiano de “Vidas secas”, que vive pior do que qualquer animal da região.

Essa formulação discursiva e as imagens que foram criadas sobre o Nordeste

são tão consistentes que fica difícil novas dizibilidades sobre a região e o espaço, ou

seja, a sedimentação da identidade nordestina foi tão intensa que ficou muito difícil

reverter essa configuração histórica que foi criada com relação à identidade, espaço

social e geográfico da região Nordeste.

Nessa perspectiva, o que se diz sobre o Nordeste é um conjunto de

visibilidades e de dizibilidades que se formulou a respeito de sua geografia e sua

gente baseadas nos discursos que se criaram a respeito do Nordeste, ou seja, o

Nordeste foi inventado a partir das produções e das imagens que se tinham da

região.

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5. RENOVAÇÃO DO DISCURSO SOBRE O NORDESTE E SOBRE A

IDENTIDADE NORDESTINA ATRAVÉS DO SINCRETISMO

CULTURAL EM LETRAS DE MÚSICAS DO TROPICALISMO

Dentro do que foi exposto teoricamente até agora sobre a Análise do Discurso

Francesa e seus dispositivos teóricos, metodológicos e práticos, sobre os gêneros

do discurso, sobre a questão da identidade nacional e da identidade nordestina e a

própria história do Tropicalismo, passaremos, agora, à análise das letras de músicas

com vistas à renovação do discurso sobre o Nordeste e a identidade nordestina

através do sincretismo cultural que se manifesta nas letras das músicas dos

Tropicalistas.

Tropicália: sincretismo cultural e a formação de uma identidade

musical nacional

Inicialmente, para melhor entender o ideário Tropicalista precisamos recorrer

à ideia de gêneros do discurso e formação discursiva.

A música é um gênero discursivo da esfera midiática de grande circulação no

rádio e na televisão e mais recentemente na internet, mas que na época em análise,

circulava por meio de sons reproduzidos em discos de vinil (Long plays) em que as

letras das músicas eram escritas nas capas e contracapas em alguns discos. A

música é gênero discursivo que possui sua materialidade em textos poéticos, já que

as músicas são escritas em forma de versos para facilitar o canto e a leitura,

inclusive são rimadas e a quantidade de sílabas é contada. Na música dos

Tropicalistas, embora tenha essa materialidade, os versos são totalmente livres e

raramente apresentam rimas. O que se percebe são palavras superpostas como se

fossem a organização de um quadro, uma pintura ou uma tela de cinema, pois os

elementos não são ligados semanticamente pelo significado denotativo, mas por

palavras que aparentemente não têm ligações de sentido dentro do mesmo campo

semântico.

Na época da explosão do Tropicalismo entre 1968 e 1969 o rádio era a

grande atração para os festivais de música popular e grande divulgador da cultura e

da música nacional. Junto com o rádio apareceram ainda em preto e branco os

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primeiros programas da TV Tupi de São Paulo que foram o palco de alguns festivais,

dos quais Caetano Veloso e Gilberto Gil foram protagonistas de algumas canções.

Dessa forma, o rádio e a TV foram os grandes protagonistas dos movimentos

estudantis e musicais da época que explodiu o movimento.

Como gênero discursivo as músicas do Tropicalismo apresentam um estilo

definido com particularidades de organização semântica dos enunciados através da

recorrência e a remissão a outros gêneros musicais, mesmo que se trate de outros

estilos e outras ideias. Tem uma forma composicional léxica, sintática e gramatical

totalmente própria, caracterizando-se por uma fragmentação intencional dos

enunciados, a quebra rítmica e sonora da música, uma sintaxe quebrada que foge

aos paradigmas da língua corrente e uma organização semântica que é necessária

a compreensão de outros campos do saber para se tentar entender o sentido

desejado pelo autor. E é justamente através do gênero que se resgata o Nordeste

para ser inovado num discurso atual, cosmopolita, polifônico e intertextual.

Os Tropicalistas utilizavam a música como meio de divulgação de sua

intenção discursiva, mostrando um sincretismo cultural que abarcava quase todas as

manifestações da cultura do país. Em especial houve grande resgate do Nordeste

através da importância dada a compositores e cantores nordestinos como Luiz

Gonzaga e Jackson do Pandeiro, bem como manifestações da cultura oral como O

hino ao Senhor do Bomfim, e outras formações discursivas oriundas do Nordeste.

A formação discursiva da época tinha como positividade de um lado o embate

entre aqueles que queriam renovar o Brasil e as artes por meio da cultura,

especialmente a música, agrupando outros gêneros e elementos formais,

semânticos e composicionais importados de outras culturas, corrente essa defendida

pelos Tropicalistas, pelo teatro de Hélio Oiticica, pelo Cinema Novo de Glauber

Rocha, pela banda de rock Os Mutantes, e do outro lado, àqueles que desejavam

uma cultura brasileira genuína em termos de valorização das canções nacionais,

tendendo para o anacronismo, o saudosismo e o protesto. E embora suas músicas

tivessem esse tom nacional, a experiência demonstrava que essa atitude

conservadora de compositores como Geraldo Vandré e Chico Buarque53, por

exemplo, não mais cabia no cenário mundial no qual o Brasil estava ingressando,

53

Embora esses compositores tenham tido e ainda tenham grande importância para a música e a cultura nacional, para a época cantores como Chico Buarque, Elis Regina, Geral Vandré eram considerados atrasados no sentido de não aceitar a importação de novos elementos da cultura cosmopolita e permanecendo com a música de protesto dela por ela mesma.

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131

com o crescente aumento da industrial cultural e fonográfica, o advento da televisão

com os shows transmitidos ao vivo pela TV Tupi.

A formação discursiva do Tropicalista Caetano Veloso é a de um sujeito

múltiplo fragmentado pelas ideias revolucionárias da época como o movimento

Hippie, o rock americano dos negros do Brooklin, a ascendência da pop art, dos

movimentos de vanguarda nas artes plásticas e no cinema americano e o europeu,

etc. Seu ideário buscava renovar a música e cultura nacional por meio do

engajamento de outras artes como o Cinema Novo e a artes plásticas e as artes

cênicas. Nesse contexto de modernidade onde se cruzavam vários tipos de discurso

como o discurso nacionalista, o militarista, o esquerdista, o modernista e o arcaico, o

sujeito envolvido em práticas de linguagem buscou sincretizar todas essas

manifestações num discurso polifônico e intertextual, no qual várias linguagens se

entrecruzavam buscando uma consolidação no âmbito da cultura e da identidade

nacional.

Na formação discursiva do Tropicalismo percebemos uma tentativa de

aglutinar vários elementos de setores diferentes da arte nacional presentes na

música regional, na pintura, no cinema, no teatro e nos elementos da modernidade

para se criar uma nova identidade estética e sincrética para o país e a região

Nordeste, já que seus idealizadores são baianos e, portanto, sendo influenciados

diretamente pela cultura nordestina.

A formação discursiva, neste sentido, é um conjunto de enunciados que se

referem a um mesmo objeto, que neste caso é renovação da identidade nordestina

estética e sincreticamente e pela reinvenção do Nordeste54 ao retomar

constantemente os elementos da cultura musical e da literatura nordestina.

O sujeito Tropicalista tinha influências nacionais ligadas à antropofagia

oswaldiana pelo fato de pensar a cultura nacional através da deglutição de vários

elementos díspares, mas que tinham algo em comum, ou uma regularidade

discursiva. Também são extremamente válidas as influências do Cinema Novo de

Glauber Rocha que já trabalhava com a preocupação social do Brasil, seu passado

histórico, sua pobreza, suas cidades povoadas de miseráveis e o desolado Nordeste

brasileiro. Foi influenciado pelo Neorrealismo italiano e pela Nouvelle

54

Vale salientar que o Tropicalismo trabalha com muitas ideias e a que estamos defendendo aqui se refere àquelas diretamente ligadas ao contexto que cita o Nordeste com seus elementos culturais representativos na música.

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Vague francesa, cujo lema era uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Essa

vertente discursiva tinha como ideial, se aproximarem ao máximo das ideias do

mundo empírico e gravar imagens reais da vida cotidiana. Essas influências

aparecerão mais tarde em filmes como Cidade de Deus de Fernando Meirelles e

Central do Brasil de Walter Salles. Foram e são protagonistas do Cinema Novo que

influenciou a música Tropicalista: Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Carlos

Diegues y Joaquim Pedro de Andrade e mais tarde Ruy Guerra e Walter Lima

Júnior.

Caetano Veloso tinha uma visão cosmopolita da música e da cultura

brasileira. Não estava ligado apenas às coisas nacionais, mas buscava em outros

países elementos que pudessem interagir com a cultura brasileira e fazer uma

renovação desta através da fusão de ideias e correntes de pensamento, etc. Não é

à toa que tanto Caetano como Gilberto Gil passaram boa parte de suas vidas

experimentando a cultura americana, o rock dos negros, o jazz dos brancos, as

pinturas de artistas modernos e o cinema tanto americano quanto o europeu.

O Tropicalismo em seu famoso jargão: retomada da linha evolutiva da Música

Popular Brasileira (MPB), foi a retomada da música que se iniciou com João

Gilberto e que, segundo os Tropicalistas, não evoluiu com o passar dos tempos,

portanto, não sobrevivendo às novas demandas do mercado. Para isso, retomou os

principais artistas de renome do país, especialmente aqueles ligados à cultura

popular para incrementar com a música mais sofisticada como a Bossa Nova.

Artistas como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Patativa do Assaré, Vicente

Celestino, foram trazidos para a grande cena tropicalista. As canções desses artistas

eram parodiadas, ironizadas, copiadas ou simplesmente regravadas com um estilo

novo que era arranjado com guitarras elétricas, baterias elétricas, contrabaixos, e

tudo que a cultura moderna favorecia.

Cada artista que era resgatado55 pelos Tropicalistas era renovado pela forma

como eles viam o mundo e as novas ideologias de mercado. Assim sendo, havia nos

Tropicalistas o desejo pela inovação das artes e da música brasileira em moldes

sincréticos, ou seja, juntar as várias manifestações musicais do país em suas

músicas.

55

Por exemplo, Luiz Gonzaga fez sucesso em meados da década de 1940 até a década de 1950 e ficou muito tempo fora das rádios. Os Tropicalistas resgataram esse grande artista popular.

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133

A música Tropicália se inicia com a fala do baterista Dirceu: “Quando Pero

Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes,

escreveu uma carta ao Rei: tudo que nela se planta, tudo cresce e floresce. E o

Gauss da época gravou” (Caetano, 1968, faixa 1) Embora seja posterior a Alegria,

alegria, para alguns autores como Celso Favaretto essa música é a fundadora do

Tropicalismo, porém observando-se o arquivo Tropicalista e o projeto de renovação

da música e da cultura brasileira, percebe-se que Tropicália é não só a música

fundadora do movimento, mas sim a música - manifesto desse movimento, já que

sua construção é como o resumo do projeto Tropicalista que condensa em si mesma

as várias manifestações musicais e culturais do Brasil, através de um sincretismo

que retoma por meio da intertextualidade explícita e implícita, pela

interdiscursividade e pela memória discursiva a evolução da música popular

brasileira e da identidade nacional.

No fragmento acima se percebe uma radicalidade típica da poética de Oswald

de Andrade em interpretar as coisas pela raiz: “Ser radical é tomar as coisas pela

raiz. E a raiz, para o homem, é o próprio homem” (CAMPOS, 1965, p. 7). É uma

retomada do discurso da formação do Brasil, mas de forma irônica já que pela

intertextualidade se remete à carta de Pero Vaz de Caminha. O discurso

Tropicalista, nesse sentido, é o discurso descolonizador, que não dá à Carta de

Caminha um fundamento para a nação brasileira, mas uma forma de pensar a nossa

brasilidade a partir da exploração. Esse discurso vai de encontro ao discurso oficial,

segundo o qual essa carta é a fundadora do Brasil. O locutor nesse fragmento apela

para a memória discursiva do seu interlocutor ao resgatar um documento oficial em

forma de paródia. A retomada é uma inovação que irá repercutir durante toda a

música.

Como diz Favaretto:

As imagens tropicalistas são construções oníricas; podem ser interpretadas como faz o analista com o sonho, isto é, operando em sentido oposto ao seu processo de formação. Partindo-se das manifestações paródicas, em que ‘as relíquias do Brasil’ são desatualizadas pela descentração contínua de suas versões

correntes, atinge-se a alegoria do Brasil. (FAVARETTO, 2007, p. 119).

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134

A melodia de Tropicália tem um tom épico, tenebroso, com batuques de

índios e um clima de tropicalidade pelos sons de animais, água batendo nas pedras.

O locutor em tom profetizante anuncia ao mundo o seu projeto. Esses efeitos, muitas

vezes cômico, zombador, irônico, grotesco nas construções paródicas, não são

meros efeitos sonoros, mas alcançam uma eficácia crítica e desmitificadora.

Sobre a cabeça os aviões

Sob os meus pés os caminhões

Aponta contra os chapadões

Meu nariz

Eu organizo o movimento

Eu oriento o carnaval

Eu inauguro o monumento

No planalto central do país... (VELOSO, 1968, faixa 1)

O locutor fala de coisas amplas que estão acima e abaixo dos homens: aviões

e caminhões, produtos modernos que simbolizam a velocidade e a verocidade do

sujeito moderno. Essas imagens mostram um sujeito cognoscente que sabe o que

faz quando se dirige ao centro do país para “organizar o movimento”, “orientar o

carnaval”, “inaugurar o monumento”. O tom pessoal da primeira pessoa sugere um

sujeito poderoso, dono de si, com o poder de criar coisas. “No planalto central do

país” indica que se está falando de Brasilia. E embora se saiba que Brasilia já está

construída, se sugere a formação de um novo monumento representativo do Brasil.

Constiui-se como um poema surrealista, desenroalado em imagens nascidas das

justaposições de objetos e desejos coisificados, montados como se fosse uma cena

fantasmagórica. Nessa estrofe o autor sugere a organização de um carnaval, uma

festa popular que brinca com as coisas sérias sob a forma de deboches, ironias,

como por exemplo, inaugurar o monumento. Para Brait (2008), a caranavalização é

a corrosão das imagens oficiais, renovando as ideias sobre determiandos

acontecimentos, ao manifestar uma atitude de festa com a cultura institucionalizada.

A linguagem surreal e as imagens representativas da cultura são renovadas pelo

poder carnavalesco da dessacralização do divino e do poder institucional. O sujeito

como locutor do país investe contra todos na tenativa de reoganizar o país com uma

nova estética, a estética moderna da superposição das formas e imagens como se

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fossem imagens cinematográficas. A intertextualidade com o cinema é uma forma de

renovação, carnavalização do discurso oficial.

Aviões e caminhões para a época são figuras importantes, pois esses

transportes simbolizavam poder. Os transportes aéreos e as novas demandas de

mercado: transporte de mercadorias, de pessoas, de armas, de soldados à Guerra

do Vietnã. Os caminhões com a mesma finalidade dos aviões, mas tudo por terra.

Pode-se dizer que o sujeito vai de encontro ao centro do país para mudar as coisas.

Viva a bossa

Sa, sa

Viva a palhoça

Ca, ça, ça, ça... (2x) (VELOSO, 1968, faixa 1)

A identidade cultural defendida em Tropicália é a junção de vários elementos

de procedências opostas e díspares como bossa e palhoça56, sem contar que bossa

é uma abreviação de Bossa Nova, coisa típica da linguagem oral. Esse refrão da

música é uma alegoria interjetiva que sincretiza duas coisas com lugares sociais

bem distintos, a velha briga do moderno e do arcaico na sociedade da época. De um

lado aqueles que pretendiam ou idealizavam um Brasil com uma música moderna

que refletisse os anseios de uma época da Bossa Nova de João Gilberto, que pelo

“viva” dá a ideia de que já está ultrapassada e o projeto Tropicalista é retomar a

linha evolutiva da música Popular Brasileira. Do outro lado está à palhoça, símbolo

do atraso, do cafonismo, do abandono, do Brasil rural esquecido pelo poder. O

termo “palhoça” também faz referência às coisas nacionais (também digna de um

“viva”) que está presente nas composições de Chico Buarque, de Elis Regina, de

Geraldo Vandré, que embora revolucionários contra a ditadura, são velhos brigando

com armas velhas, porque o projeto Tropicalista não era só político, mas também um

projeto de inovação da música e da cultura nacional ao unir o novo e o velho, o

arcaico e o moderno, mostrando que no país (pelos vivas) ambos têm a mesma

importância e tudo fazia parte de uma mesma rede de sentidos para a cultura do

Brasil.

56

Palhoça pode fazer menção também a palhaço, já que os Tropicalistas usavam uma linguagem metafórica para esconder-se da censura.

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136

Para Giddens a pós-modernidade é uma junção de vários elementos que

podem ser modernos como também arcaicos, mantendo um foco de não preconceito

com as coisas, mas sim uma atitude de renovação.

Para Benveniste, o sujeito na pós-modernidade é aquele que se propõe

como locutor dentro de uma função enunicativa, apropriando-se da língua para

manifestar sua atitude perante o estado de coisas do mundo. O sujeito tropicalista se

apropria da língua e faz dela seu ato criador.

O que se percebe no discurso Tropicalista é uma renovação do país pela

modernização da cultura e da música por meio da junção dos elementos culturais do

país sem preconceito com nenhuma região, mostrando que todos têm seu espaço

no mundo cosmopolita. A sincretização dos elementos díspares da música não é

nem a favor nem contra, mas é uma operação dessacralizadora da ideologia oficial

do Brasil e que transforma as inconsistências histórico-culturais em operações

floclóricas. Tropicália se realiza como uma alternância de festa e degradação,

carnavalização, na qual se agendam e são enumeradas imagens caóticas, em um

procedimento metalinguístico, que materializa uma crítica corrosiva e também um

simulacro com a ingenuidade de ver com os olhos livres, primitivos, que se aproxima

discursivamente da poética Pau-Brasil. Essa atitude tropicalista é uma forma de

deglutição da cultura ao conjugar elementos díspares como bossa e palhoça como

se fosse a união do moderno e do arcaico, numa espécie de antropofagia cultural

que desmitifica a supremacia de dado estado de coisas do mundo como os grandes

centros culturais do Rio de Janeiro e São Paulo, bem como as manifestações

culturais do outro lado do Brasil mais arcaico, conservador e mais resistente às

mudanças que a modernidade propõe.

O monumento

É de papel crepom e prata

Os olhos verdes da mulata

A cabeleira esconde

Atrás da verde mata

O luar do sertão

O monumento não tem porta

A entrada é uma rua antiga

Estreita e torta

E no joelho uma criança

Sorridente, feia e morta

Estende a mão... (VELOSO, 1968, faixa 1)

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Nessa parte da música temos a presença dos versos “O monumento/ É de

papel crepom e prata/” que é uma bricolagem moderna em mostrar o monumento

que a capital Brasília, símbolo da modernidade e da prosperidade do país, que é

feita de concreto passa a ser como se fosse algo descartável. O monumento faz

referência maior ao país Brasil. Essa é uma atitude antropofágica misturada com

poesia surreal e dadaísta. Os versos acima são como se essa montagem tivesse

sido feita com elementos montados aleatoriamente. Embora tenha essa

configuração, ela não é aleatória, pois a maioria das composições tropicalistas não

são nem ingênuas nem sem compromisso social, mas ao contrário, uma titude

aparentemente ingênua com uma carga semântica altamente corrosiva. As imagens

criadas para alegorizar o Brasil mostram uma plascticidade e ao mesmo tempo

aspectos de modernidade nos enunicados citados acima.

Os versos seguintes “Os olhos verdes da mulata/A cabeleira esconde/Atrás

da verde mata/ O luar do sertão” podem ser colocados na ordem direta assim: “A

cabeleira esconde os olhos verdes da mulata, atrás da verde mata, o luar do sertão”.

São citações diretas de José de Alencar e Olavo Bilac e do compositor Catulo da

Paixão Cearense. O autor faz uma bricolagem, tipo da poesia dadaísta, como se

estes recortes tivessem sido jornais (Ou livros?) recortados e escolhidos

aleatoriamente e depois escritos. “Um enunciado existe fora de qualquer

possibilidade de reaparecimento; e a relação que mantém com o que enuncia não é

idêntica a um conjunto de regras de utilização. [...] se, nessas condições, uma

formulação idêntica reaparece - as mesmas palavras são utilizadas, basicamente os

mesmos nomes, em suma, a mesma frase, mas não forçosamente o mesmo

enunciado”. (FOUCAULT, 2008, p. 101), ou seja, o enunciado reaparece em sua

formulação ipsis litteris, embora o efeito seja outro o desejado pelo autor. Uma das

intenções aqui é retomar a música do Nordeste como uma forma de renovação do

discurso sobre o tema do regionalismo, da saudade e até mesmo da música como

integração das regiões.

Na continuação da música, mais especificamente no estrebilho temos as

expressões “viva mata/viva mulata”, que segundo o autor em seu livro “Verdade

Tropical” são palavras polissêmicas que podem se referir a qualquer coisa. Uma

delas é a derivação de significado da própria estrofe anterior que faz remissão aos

poemas de Olavo Bilac, ao romance indianista de José de Alencar e a música de

Catulo da Paixão Cearense. Outra é a repetição de “tá-tá” que lembra o barulho das

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metralhadoras do regime militar, que é um recurso aproveitado pelo autor, a sílaba

final –ta, e sua repetição lembra esse barulho, que foi bem cantado na música “Era

um garoto que como eu amava os beatles e os Rolling Stones” cantada pelos

Incríveis, uma versão de C'era Un Ragazzo Che Come Me Amava I Beatles E I

Rolling Stones de Gianni Morandi em 1966.

Embora pareça aleatória a composição, pode-se observar nos três autores

algo em comum da poesia parnasiana de Olavo Bilac, e do romantismo indianista de

Alencar e da tristeza do luar do sertão de Catulo da Paixão Cearense. Todos são de

épocas distintas, movimentos distintos e que comungam com a mesma ideia rural,

atrasada e ao mesmo tempo atual e moderna por se atualizar num suporte midático

que é a música tropicalista. Essa postura mostra a convivência simultânea do velho

e do novo, do moderno e do arcaico no mesmo país-monumento.

O monumento não tem porta

A entrada é uma rua antiga

Estreita e torta

E no joelho uma criança

Sorridente, feia e morta

Estende a mão... (VELOSO, 1968, faixa 1)

Nessa parte da música o autor retoma o regime militar ao mostrar o

monumento (Brasil ou Brasília, embora equivalham à mesma coisa, já que Brasil é

Brasilia em latim), na rua antiga, estreita e torta que parece mais as entradas

obscuras dos porões da ditadura, que pode ser resgatado pelo interdiscurso ao

lembrar que foi nos porões que muita gente morreu em nome da democracia, onde o

próprio compositor Caetano Veloso foi preso e talvez torturado junto com Gilberto

Gil. A parte “E no joelho uma criança/ Sorridente, feia e morta” pode fazer menção

ao fato de no mapa do Brasil, a parte que se situa o Nordeste ser uma forma

semelhante a um joelho, onde as crianças passam fome e pedem esmolas, uma

denúncia do descaso do governo com as regiões afetadas com a falta d’água,

intrigas políticas e o poder nas mãos dos coronéis. Esse verso pode também fazer

referência a um quadro do pintor holandês Hieronymus Bosch que provavelmente

quis descrever o governo de Felipe II da Espanha. Veja:

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O Jardim das Delícias Terrenas – www.suapesquisa.com.br

A intertetualidade e a interdiscursividade gerada entre os versos da música e

o quadro formam um quadro sintético que mostra a forma cruel de como eram

tratados aqueles que se opunham aos regimes totalitários. Pela intertextualidade

percebe-se a violência dos versos e da imagem quando se menciona a ditadura

militar no Brasil: a censura, as mortes o sumiço de pessoas e degredo dos

subverisvos. A música e a imagem também trazem à tona o discurso militar, sua

ideologia e as formas de tratar o povo, que não estava de acordo com os militares.

Para Celso Favaretto a música Tropicália se instaura num ambiente

tecnologizante de vivência urbana que “Coloca lado a lado os índices de arcaísmos

e das poéticas de vanguarada, conforme a linguagem de mistura da carnavalização:

montagem cubista, imagens surrealistas, procedimentos dadaístas e do cinema de

Godard." (FAVARETTO, 2007, p. 64) A mistura é composta de ritmos populares

brasileiros e estrangeiros, folclore, música clássica e de vanguarda, ritmos primitivos

e Beatles, cancioneiro nordestino e poesia parnasiana: o bom gosto e o mau gosto,

o fino e o grosso. A determinação musical básica é dada por um baião sublimar”.

Toda essa mistura inserida no momento histórico da época implica numa inovação

cultural e musical do país ao sincretizar as manifestações de todas as partes do país

e do mundo, principalmente, do resgate do nordeste brasileiro.

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No pátio interno há uma piscina

Com água azul de Amaralina

Coqueiro, brisa

E fala nordestina

E faróis

Na mão direita tem uma roseira

Autenticando eterna primavera

E no jardim os urubus passeiam

A tarde inteira

Entre os girassóis... (VELOSO, 1968, faixa 1)

Os versos acima tratam de mostrar o monumento Brasilia. O pátio interno do

monumento forma uma piscina feita de água azul, lembrando os mares e praias do

país, e de coqueiro e brisa, nomes muito comuns na fala nordestina que é o verso

que segue, mostrando que Brasília foi construída com sangue e suor nordestino e os

“urubus”, que faz alusão ao paletó dos deputados e ministros e militares (o terno

preto) e pessoas que se beneficiam do trabalho dos outros, passearem entre os

girassóis, o verde e amarelo cor da bandeira do Brasil, mostrando, inclusive que a

arquitetura da capital do país, apesar de ter sido projetada por Oscar Niemiyer, tem

cara nordestina. Os faróis lembram carros, caminhões (falado no início da canção)

tanques de guerra dos militares.

Pela memória histórica e pelo interdiscurso os versos “Na mão direita tem

uma roseira/Autenticando eterna primavera” simbolizam a pós-modernidade e a

jovialidade do monumento feito na década de 1950 por Juscelino Kubstcheck com

seu famoso “50 anos em 5”, e sua eterna juventude pela sua projeção ultramoderna.

As duas mãos, nesse sentido, são os partidos políticos, as posições sociais de

direita/situação e esquerda/oposição. A roseira está na mão direita e não na

esquerda, mostrando que o golpe foi dado contra esquerda e contra o comunismo. O

regime militar, sediado em Brasilia, se pretendia eterno, quando se diz:

“autenticando eterna primavera”.

Viva Maria

Ia, ia

Viva a Bahia

Ia, ia, ia, ia... (VELOSO, 1968, faixa 1)

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O estrebilho seguinte é “Viva Maria ia-ia-ia/ Viva Bahia ia, ia, ia, ia...” uma

homenagem às muitas marias do Brasil e principalmente às do Nordeste onde esse

nome é comum para as mulhres devido à influência da Igreja Católica Apostólica

Romana, assim como seu par José para o sexo masculino. Refere-se também a

estrela Lois Malle e Bigitte Bardot, estrelas do cinema italiano pelas quais Caetano

Veloso tinha grande simpatia. A variação “ia-ia” é a forma como as escravas marias

do Nordeste se referiam a suas senhoras, que no dialeto Ioruba quer dizer mãe. É

uma retomada intertextual por meio do dialeto e da situação social que viviam os

escravos da época. É um resgate da cultura nordestina que tinha esse costume e da

cultura africana que foi trazida para o Brasil, e especialmente da Bahia, de que se

acredita que o compositor estivesse falando.

Segundo Caetano Veloso, em seu livro Verdade Tropical (1997), essa forma

Tropicalista, é na verdade, não somente falar de elementos tão díspares por falar

simplesmente, mas mostrar uma nova realidade cultural do Brasil pela junção de

seus elementos culturais representativos, principalmente o Nordeste, que durante

muitos anos foi tido como uma região de atraso, miséria e fome, que, no entanto se

urbaniza e moderniza de forma lenta, mas que de alguma forma não é nem foi o

Nordeste descrito pelos adoradores do atraso e do cafonismo, mas que possui um

grande potencial cultural digno de representação da identidade cultural do Brasil.

A música Tropicália lança as bases de todo o movimento Tropicalista.

Fazendo um resgate da memória discursiva e do interdiscurso percebemos uma

retomada do manifesto antropofágico do poeta Oswald de Andrade, quando em 1º

de maio de 1928, lançara sua antropofagia cultural que nos unia “Socialmente.

Economicamente. Filosoficamente” (ANDRADE, 1928), e embora Oswald tivesse se

referindo à língua Tupi, estamos mostrando aqui a antropofagia como um todo no

tocante à deglutição da cultura popular nacional e da cultura estrangeira para

sincreticamente criarmos uma identidade cultural para o Brasil.

Para Samoyault, “A percepção, pelo leitor de relações entre uma obra e

outras que a precederam ou a seguiram” (SAMOYAULT, 2009, p. 28), ou seja, a

memória discursiva acontece quando o leitor percebe, não apenas textualmente,

mas também pela temática, pelo movimento, pela obra, a retomada de outras ideias

que não são explicitadas ipsis litteris quem precedeu ou quem deu continuidade a

essas ideias. Neste caso, temos em Tropicália a retomada pela memória discursiva

do movimento antropofágico de Oswald de Andrade, mais especificamente com

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relação à inovação da cultura nacional através da ideia de deglutir a cultura nacional,

conjugando elementos modernos com elementos arcaicos, cultura nacional com

cultura estrangeira, buscar no nosso passado antropofágico uma identidade nacional

para o Brasil.

A antropofagia, no sentido oswaldiano, é a deglutição/assimilação da cultura

europeia pela cultura nacional, no sentido de deglutir e essa cultura para criar-se

junto com a cultura nacional em todas as suas nuances uma identidade nacional

autêntica para o Brasil. Essa retomada do movimento antropofágico de Oswald

pelos Tropicalistas se percebe na forma de compor suas canções, o sarcasmo, a

ironia, a paródia, o tom, muitas vezes coloquial dessas canções, a junção de

elementos modernos e arcaicos na música como no trecho “Viva a bossa/ Sa, sa/

Viva a palhoça/ Ça, ça, ça, ça...”, no qual a Bossa se referindo a Bosssa Nova

representa o moderno na música popular brasileira justamente por assimilar vários

elementos como o jazz, o cool, a cultura urbana etc, enquanto que palhoça se refere

ao arcaico, ao atraso, ao cafonismo, mas que de alguma forma faz parte da cultura

do país. Essa cafonice do cancioneiro popular se refere ao fato de esses sujeitos

fazerem, uma certa apologia, as coisas nacionais e regionais como sendo

autenticamente nacionais, desprezando e depreciando o sincretismo que começa

aparecer até mesmo nessa canções. O tropicalismo não combate isso, apenas

renova.

No pulso esquerdo o bang-bang

Em suas veias corre

Muito pouco sangue

Mas seu coração

Balança um samba de tamborim

Emite acordes dissonantes

Pelos cinco mil alto-falantes

Senhoras e senhores

Ele põe os olhos grandes

Sobre mim... (VELOSO, 1968, faixa 1)

No pulso esquerdo o bang-bang alude à luta armada de esquerda que o

regime derrotou com o golpe “na mão direita a “roseira”. Esse relógio em forma de

arma de fogo lembra os antigos filmes do velho oeste uma comparação, talvez a

ditadura militar. Esse resgate da memória através da formação discursiva “discurso

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militar”, “faroeste”, em cujos filmes trabalhou Marlon Brando, figura admirada pelos

Tropicalistas, alegoricamente resume o que são os militares e seu poderio, pessoa

de pouco sangue nas veias, sem senso humanitário, preocupado apenas em manter

a ordem por meio da violência. Marlon Brando foi a grande figura do cinema por cujo

talento os Tropicalistas tinham grande admiração, sendo um dos atores mais

influentes dos Estados Unidos ao lado de Charles Chapplin e Marilyn Moroe. Ficou

famoso por seus filmes de ação, faroeste e máfias, bem como o do Super-Man e por

partir em defesa dos negros americanos e dos índios. Sua postura demonstrava

além de sua tumultuada vida artística, particular e profissional, um sujeito

preocupado com as coisas de seu tempo e uma revolução no cinema norte

americano.

O sujeito e o coração tropicalista são dançantes e alegres. O samba citado na

música, resgate dos sambas de Noel Rosa, figura também muito admirada pelos

Tropicalistas, emite acordes não padronizados, entoados em escalas escondidas

entre acordes maiores e menores: as sétimas, as oitavas, as nonas etc. Esse

samba, no coração, pulsa como cinco mil alto-falantes, maior que qualquer barulho

de bang, maior que o próprio regime militar, porque o samba de tamborim não iria

morrer, enquanto a ditadura teria seu fim. Esses olhos grandes sobre o sujeito

tropicalista é o alcance da ditadura no país. Sua censura não se limitava apenas às

músicas de protesto, mas estava "antenada" com tudo que acontecia também no

morro, inclusive é válido salientar que o samba foi proibido durante muito tempo:

primeiro por ser música de negro do morro e, portanto, de péssima qualidade, e

segundo porque essa música protestava por sua independência e autonomia, bem

como pela falta de investimento nas comunidades faveladas. Pela memória e pela

intertextualidade resgata-se também o romance Macunaíma do Modernismo

brasileiro, pós semana de 22 de Mário de Andrade, que era uma alegoria do Brasil,

já que os Tropicalistas propunham essa inovação. No texto citam-se os olhos

grandes da sucuri amazônica sobre Macunaíma, o herói sem heroísmo.

Alegoricamente o sujeito Tropicalista se sentia como Macunaíma nessa floresta de

pedras cercada pelos olhos da ditadura militar. Essa caranavalização feita pelos

Tropicalistas para alegoricamente se referir à ditadura era uma forma de denúncia

do que acontecia no meio cultural da época, quando a ditadura ditava as regras do

mercado fonográfico e de tudo que podia ser e não ser produzido no país.

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Essa proibição do samba nos morros cariocas foi antes e durante a ditadura

Vargas (ORTZ, 2006). Isso refletia um tipo de puritanismo na música, acreditando-se

que a música do país não podia ser manchada pelo batuque dos negros, que

ficavam fora dos padrões sociais da época. Como a indústria fonográfica e o rádio

na era Vargas estavam apenas começando, não se permitiu que outras músicas

além das de branco circulassem nas rádios ou fossem gravadas.

Viva Iracema

Ma, ma

Viva Ipanema

Ma, ma, ma, ma... (VELOSO, 1968, faixa 1)

Neste trecho que é outro refrão fixo57 da música há uma referência intertextual

a Iracema, romance indianista do cearense José de Alencar, que é um discurso

mitológico fundador do Ceará e que se pretendia ser a fundação mitológica do

Brasil. O nome Iracema também é o nome de uma famosa praia de Ceará e o

anagrama de América, uma construção discursiva, talvez alegórica ao

descobrimento de terras novas pelos espanhóis. Iracema rima com Ipanema,

famosa praia do Rio de Janeiro que serviu de inspiração para Garota de Ipanema,

de Tom Jobim. Duas praias famosas que se conectam pelo oceano que foi também

o elo de conexão entre o velho e o novo mundo. Iracema é o romance que dá nome

à praia e Ipanema é a praia que dá nome a uma música símbolo do Rio de Janeiro.

Tanto José de Alencar quanto Tom Jobim são conhecidos pelo mundo por suas

composições e já foram traduzidos, cantados e lidos em vários idiomas. O discurso

Tropicalista tenta sincretizar o Sudeste e o Nordeste, o passado e o presente em

suas músicas numa representaçao mnemônica de construção de uma identidade

nacional pela arte.

Domingo é o fino-da-bossa

Segunda-feira está na fossa

Terça-feira vai à roça

Porém!

O monumento é bem moderno

Não disse nada do modelo

Do meu terno

57

Diz-se fixo porque nesta parte trocam-se apenas os enunciados, mas as estrutura rítmica e o número de sílabas poéticas e musicais são as mesmas.

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Que tudo mais vá pro inferno

Meu bem!

Que tudo mais vá pro inferno

Meu bem!... (VELOSO, 1968, faixa 1)

O primeiro verso dessa estrofe faz referência a um Programa de TV de Elis

Regina exibido no domingo. Elis Regina fazia parte de outro discurso que era o da

identidade nacional através da música popular brasileria feita com elementos do

Brasil, ou seja, era inaceitável para esse grupo de Elis Regina contavam com

Geraldo Vandré, Chico Buarque e o próprio Gilberto Gil, que tinha sido

simpatizante, no início por infuência da própria Elis Regina. Para esse mesmo grupo

a entrada de elementos estrangeiros não era nem bem vista e nem aceita, tanto é

que não se permitia o uso de guitarras elétricas, roupas extravagantes, ou qualquer

tipo de intervenção que lembrasse a cultura internacional.

Embora houvesse essa resitência por parte do grupo de Elis Regina, o tipo de

música feita por ela e pelo seu grupo já se afastava bastante desse tom nacional

que esse grupo tanto cultuava. Na verdade era uma espécie de enganação, pois

tudo que se produzia em termos culturais na época já não era o mesmo da década

de 1920 e 1930. A positividade da época (Foucault, 2008) já era outra e os sujeitos

sociais já se moviam ideias em busca de novas formas de composições musicais. O

próprio Caetano Veloso em Verdade Tropical afirma que o discurso da direita

militarista caminhava para um ostracismo cafona (VELOSO, 1997), pois se

negavam a explorar as possibilidades que o mundo moderno oferecia, se fechando

nessa suposta identidade nacional baseada apenas em ditames de parlamentares,

historiadores e generais de gabinete.

Um fato que talvez prendesse bastante a postura anti-cosmopolita de Elis

tenha sido o fato de ela ter sido filha de família tradicional e ter começado a cantar

na igreja. Esse patriotismo exagerado dela a aproximou bastante do regime militar,

do qual ela era uma espécie de musa. Seu programa era um sucesso para esse

grupo e para aqueles que acreditavam em um Brasil limpo e livre da intervenção

estrangeira. Elis Regina sempre dava um viva às forças armadas em suas

apresentações. Há episódios da vida de Elis Regina, em que a mesma fez

denúncias contra Nara Leão, dizendo que esta não respeitava o regime militar.

(VELOSO, 1997).

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Para época, o discurso do grupo de Elis Regina era um discurso de

resistência, já que a pós-modernidade com as correntes de vanguarda na poesia

concreta, no Cinema Novo de Glauber Rocha e o teatro de Hélio Oiticica estavam se

tornando uma realiade para muitos deles. Além disso, havia a Bossa nova de João

Gilberto que já mostrava grandes avanços para a renovação da música e da cultura

do Brasil.

Talvez, devido a esse fato de Elis Regina estar ligada a esse tipo de discurso

e ser adorada pela ditadura militar é que o sujeito tropicalista tenha usado

simultaneamente domingo/fino da bossa, segunda-feira/fossa e terça-feira/roça. O

domingo como sendo o primeiro dia da semana, dia de festa e de alegria. Domingo

também vem do latim Dies Dominicus (Dia do Senhor), fazendo referência explícita

ao papel da igreja na sociedade da época. Se no domingo é o fino, a segunda-feira

já está na fossa, uma referência bem burlesca, pitoresca ao fato de aquele tipo de

bossa-nova já estar na fossa, necessitando de uma renovação. Na terça-feira já está

na roça, simbolizando tanto o desaparecimento da bossa-nova, como também seu

atraso devido à referência explícita “roça”. É como se Caetano estivesse dizendo

claramente que se a Bossa-nova continuasse da maneira como vinha iria virar

música folclórica, talvez, inclusive, com um dia no calendário dedicado a ela.

O porém, que liga os versos seguintes encerra uma oposição ao que foi dito

sobre a Bossa-Nova defendida por Elis Regina e seu grupo, dizendo o monumento

que aqui não significa Brasilia, mas sim o projeto tropicalista que é bastante

moderno, que num tom sarcástico se refere ao movimento com uma modernidade

relativa. Continuando, fala do terno se referindo às vestimentas dos Tropicalistas

que eram coloridas, descartáveis, de plástico em oposição às roupas engravatadas

da turma de Elis Regina e Chico Buarque que se apresentavam sempre bem

vestidos conforme a moda da época.

O sujeito termina mandando todo mundo pro inferno, que é uma atitude pop

encabeçada pela turma do iê-iê-iê de Roberto Carlos e sua música Quero que vá

tudo pro inferno, dizendo não se incomodar com o que dizem sobre o movimento

Tropicalista.

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Procissão: religiosidade e sincretismo religioso.

A formação discursiva de Gilberto Gil é a de um sujeito cosmopolita ligada à

cultura moderna. Em termos gerais Gil é mais músico do que poeta, enquanto

Caetano é mais poeta do que músico. Gil sempre trabalhou como músico, tocando

violão e acordeón como contratado da rádio Tupi de São Paulo, na qual

acompanhava vários shows de calouros patrocinados pela emissora.

De certo modo Gil estava mais ligado com as coisas do Nordeste do que seu

companheiro Caetano Veloso. Embora sua formação na Bahia fosse cosmopolita

devido às suas amizades com o pessoal do cinema novo e da Bossa-Nova, ele

sempre esteve conectado com Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Muitas de

suas canções abrangem o universo nordestino, embora com a visão renovada

devido à influência do Tropicalismo, do rock, da Bossa-Nova e do cinema novo.

Procissão é um rock do tipo Bill Haley misturado com baião58. O nome procissão que

leva o nome da música de Gil é um nome característico do Nordeste. É lá onde se

cultuam santos e se fazem procissões em homenagem a eles. A procissão é uma

espécie de aglomerado de pessoas entoando hinos religiosos, que vai, geralmente

de um lugar profano para um lugar sagrado, nesse caso se parte de um lugar

qualquer até a estátua do santo homenageado. É uma forma inconsciente de

mostrar a devoção por santos interventores junto ao Deus todo poderoso, uma

tradição da Igreja Católica Apostólica Romana.

Olha lá vai passando a procissão Se arrastando que nem cobra pelo chão As pessoas que nela vão passando Acreditam nas coisas lá do céu As mulheres cantando tiram versos Os homens escutando tiram o chapéu (GIL, 1968, faixa 7).

Nesse trecho há a descriçao da procissão, visto por um sujeito que a vê de

longe, devido ao conteúdo pragmático do advérbio lá. A procissão é comparada com

uma cobra, símbolo do pecado de Adão e Eva e do pecado original no paraíso. Essa

58

O baião tocado por Gilberto e Gil na década de 1960 e o de Luiz Gonzaga na década de 1930 e 1940 já não é aquele baião folclórico cantado por cegos de feira, bandas e trios do Nordeste, seu ritmo quente já é uma criação nova devido às influências que Luiz Gonzaga também sofreu no Rio de Janeiro quando tocava ritmos americanos nos cabarés do Rio de Janeiro. Em ambos os casos o baião não é uma música genuinamente nacional, mas um ritmo novo feito pela mistura de valsas, mazurcas, tangos, etc.

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comparação que o sujeito faz com a procissão tanto pode simbolizar a purificação

como também a maneira como a procissão anda “se arrastando”, lenta. O próprio

sujeito explica que as pessoas da procissão acreditam nas coisas celestiais e em

sinal de devoção e respeito, “as mulheres tiram versos”, porque normalmente são

elas que cantam os hinos religiosos, e “os homens tiram o chapéu” que é um

acessório mais masculino que feminino para época.

Eles vivem penando aqui na terra Esperando o que Jesus prometeu (GIL, 1968, faixa 7).

Essa parte da música remete pela memória ao discurso religioso da salvação,

no qual as pessoas têm que aceitar as coisas como elas lhes são dadas para

aguardar uma vida melhor no céu. Essa promessa foi dada por Jesus Cristo, nome

dado ao fundador do Cristianismo, que prometeu uma vida melhor para aqueles que

aqui na Terra passavam por aflições diversas. Para esses cristãos esse penar aqui

na Terra é passageiro e o paraíso que eles aguardam é para sempre. O sujeito

tropicalista mostra que essa forma de encarar as coisas é uma forma mitológica de

explicar fenômenos que têm uma vivência social, ou seja, a mudança de algo não

depende exclusivamente de religião, mas da ação do homem sobre as coisas. A

maneira como o autor trata o tema parece uma forma meio cômoda, quando na

verdade é uma crítica altamente mordaz e corrosiva ao mostrar que a forma de

resolver os problemas por meio da religião é uma cobra que se arrasta lentamente

sem lograr êxito.

Gil faz uma crítica ao discurso religioso por sua fuga da vida social,

prometendo um paraíso em outro plano esquecendo as mazelas que o povo sofre

aqui na Terra e, não se comprometendo com uma mudança social que procure

minimizar os problemas sociais através da luta de classes, da mudança na política

com a cassação dos corruptos, de melhores dias para educação, habitação e

saneamento básico. O discurso religioso promete um paraíso para os mortos.

Embora seja válida a posição social do sujeito em relação às colocações sobre o

discurso religioso, vale observar que fazer música também não resolve o problema.

Este é bem mais sério e vai muito, além disso, é necessário uma mudança de

paradigma para que se possa começar a perceber algumas mudança no campo

social e da distribuição de renda do país.

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E Jesus prometeu vida melhor Pra quem vive nesse mundo sem amor Só depois de entregar o corpo ao chão Só depois de morrer neste sertão Eu também tô do lado de Jesus Só que acho que ele se esqueceu De dizer que na terra a gente tem De arranjar um jeitinho pra viver (GIL, 1968, faixa 7)

Nessa outra estrofe o sujeito reitera a questão do discurso religioso com a

salvação pós-morte, mas discorda do fundador do Cristianismo dizendo que ele se

esqueceu de dizer que enquanto não se morre para ir para o paraíso, tem que se

dar um jeito para viver. Essa postura niilista é típica tanto dos tempos modernos

quanto dos Tropicalistas que pregavam um discurso livre de coerções políticas e

religiosas, pretendendo a libertação do homem por meio do engajamento social e

pelo conhecimento de sua cultura. Esse jeitinho para viver é justamente a renovação

do discurso, pois ele discorda da não ação do homem, mostrando que não é disso

que ele vive, mas também de sua ação sobre o meio para modificá-lo sem esperar

só por Deus.

Pelo interdiscurso resgatamos a questão do coronelismo no sertão que usava

a Igreja, muitas delas aliadas a esse regime, para oprimir os pobres e ao mesmo

tempo inculcar-lhes a ideia de que eles sofrem assim porque Deus quer. Isso é uma

forma de manter o poder no sertão e ao mesmo tempo garantir que suas futuras

gerações de “coroneizinhos” continuarão bem, porque o povo ignorante com fome

não irá protestar por nada, porque a Igreja alivia seus males. A postura de Gil

também é uma forma de denúncia da ditadura militar que estava diretamente

vinculada às políticas do coronelismo, que juntos queriam manter o povo ignorante e

alheio à situação do país. Gilberto Gil renova o discurso sobre o Nordeste ao

questionar a autoridade da Igreja, que junto com os latifundiários do Nordeste

mantiveram o povo no cabresto por muito tempo, mostra que o Deus da igreja, na

verdade não passa de um mito para manter o povo sempre a mercê dos poderosos

que nada fazem para mudar a situação porque ela lhe favorece e lhe enriquece.

Esse discurso de Gilberto Gil é um resgate do discurso do Cinema Novo de

Glauber Rocha que tem como uma de suas preocupações o Nordeste brasileiro,

realizando denúncias através de filmes como Deus o Diabo na terra do sol, Terra em

Transe. O próprio aspecto da música é o simulacro de sucessivas imagens fílmicas,

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como a imagem da cobra, dos rituais religiosos que se encena durante a trajetória

da procissão.

Muita gente se arvora a ser Deus E promete tanta coisa pro sertão Que vai dar um vestido pra Maria E promete um roçado pro João Entra ano, sai ano, e nada vem Meu sertão continua ao deus-dará Mas se existe Jesus no firmamento Cá na terra isto tem que se acabar. (GIL, 1968, faixa 7)

Nessa parte final da música, o sujeito fala sobre a pretensão dos coronéis do

sertão que se sentem Deus, prometendo fazer verdadeiros milagres para o sertão.

Esses milagres sarcasticamente citados por Gil são coisas como “vestido”, “roçado”

e outros como dentadura, sandálias e mais recentemente empregos. É uma situação

que se arrasta há anos: dá-se pouco para os pobres para comprarem sua

consciência com aquilo que já é deles.

No final aparece uma contradição do artista colocando novamente as coisas

no plano espiritual. Talvez por falta de opções ou mesmo pela falta de informação

das pessoas o autor tenha se conciliado com Jesus no final do texto. Outro

entendimento é que Gil tenha caído na mesma tentação do discurso religioso de por

as coisas para Deus resolver ao invés de mobilizar a cabeça dos homens para isso.

Em Gilberto Gil falta essa corrosão, esse espírito inquieto e sarcástico que está mais

presente nas composições de Caetano Veloso, tanto é que nos dois últimos versos,

o sujeito parece conciliar suas concepções sociais com o discurso religioso: Jesus

deve fazer justiça também na terra.

No dia em que eu vim-me embora: chega de saudade

Essa música reflete àquelas formações discursivas em que há o êxodo dos

nordestinos, para ir morar em um lugar diferente. Normalmente se faz isso em prol

da sobrevivência, intrigas entre famílias, ou, simplesmente, em busca do sucesso,

que na sua terra não é alcançado, seja pela falta de oportunidades, seja pelas

incoerências de ideias entre o compositor e seu público. Com essa formação

discursiva vamos analisar simultaneamente No dia em que vim-me embora de

Caetano Veloso, Triste partida de Patativa do Assaré, cantada por Luiz Gonzaga e

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Sampa também de Caetano, que mesmo não pertencendo ao período que está se

analisando, se agrupa também nessa mesma formação discursiva.

O conjunto dessas músicas reflete justamente a ideia repetitiva de muitos

compositores brasileiros que, ao falar do Nordeste se referindo ao êxodo do campo

à cidade, mostram um certo saudosismo pela terra. É como se toda a vivência do

sujeito ficasse restrita apenas na saudade ao lembrar-se de sua terra natal. Luiz

Gonzaga foi um dos grandes compositores da MPB que difundiu e divulgou essa

ideia no sudeste do país e em todo Nordeste. Outros como Zé Geraldo, do interior

mineiro, também tratou do tema tal qual foi tratado por Luiz Gonzaga. Belchior,

compositor cearense, também compôs e cantou a saudade da terra de forma

saudosista, dentre tantos outros. Apenas os Tropicalistas fugiram a essa ideia,

defendendo que essa saudade gerada pela saída da terra natal é a ilusão do doce

retorno que atormenta todos que vivem fora de sua terra ou seu país. No entanto,

isso é algo que foi criado como um discurso para manter a dependência in locus do

sujeito que sai de sua terra natal ou país. Albuquerque Júnior (1999) fala que essa é

uma invenção imagético-discursiva que foi gerada ao longo da criação de discursos

sobre a região Nordeste, que busca reforçar esse retorno à terra natal, seu torrão,

seu lugar. O Nordeste foi gestado discursivamente como o lugar da saudade e do

esquecimento e esse pensamento saudosista é uma forma de lembrar-se de eterno

torrão.

No dia em que eu vim-me embora Minha mãe chorava em ai Minha irmã chorava em ui E eu nem olhava pra trás No dia que eu vim-me embora Não teve nada de mais (VELOSO, 1968, faixa 3).

Nessa primeira parte da música, Caetano faz um certo sarcasmo com relação

ao choro dos personagens mãe e irmã. Talvez não tenha acontecido realmente,

mas pelo tom irônico com o qual o sujeito trata o tema é, ao mesmo tempo, uma

alegoria da partida do nordestino para São Paulo e também uma forma proposital de

dessacralizar a saída da terra natal. O fato é que, independente da veracidade do

fato, chorar em “ai” é um choro de dor e de desespero, algo que toda mãe sente

devido ao seu instinto materno. Já o choro em “ui” é um choro de dor, mas é uma

dor menos forte que o “ai” da mãe, porque a relação fraternal não tem laços tão

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doloridos entre os irmãos da mesma prole. E mesmo com todo esse lamento o

sujeito da música diz que isso não era nada demais.

Se observarmos a música Triste partida cantada por Luiz Gonzaga, a

formação discursiva muda totalmente. Primeiro porque se vai explicar o motivo da

partida, que é a seca, e aí dar-se uma longa jornada até se saber no dia 19 de

março, dia do padroeiro São José, que não vai mais chover. No discurso do sujeito

tudo isso que acontece é regido pela fé e pela observação da experiência. Tudo que

ele faz tem a ver com o que ele vive, já que observa os fenômenos naturais e

consegue um julgamento sobre a situação. Há nesse discurso do sujeito um apelo

religioso, atribuindo boa parte dessas desgraças a Deus. Há um resgate do discurso

religioso pela memória discursiva, segundo o qual Deus provém tudo e quando isso

falta é algum tipo de castigo por pecados cometidos.

Observa-se uma mesmice no discurso de Luiz Gonzaga, a repetição dos

lugares comuns, do tudo comum, da vida comum. O discurso não evolui e caminha

sempre para um mesmo desfecho: chorar a saída da terra natal. O Tropicalismo não

apenas rejeita, mas também renova essa ideia ao tentar desmitificar a identificação

com os lugares geográficos e situado-os em posições sociais distintas, tentado

desmitificar esssa ideia de que o homem deve nascer e morrer no mesmo lugar

geográfico e social.

Apela pra Março Que é o mês preferido Do santo querido Senhor São José Meu Deus, meu Deus Mas nada de chuva Tá tudo sem jeito Lhe foge do peito O resto da fé Ai, ai, ai, ai E vende seu burro Jumento e o cavalo Inté mesmo o galo Venderam também Meu Deus, meu Deus Pois logo aparece Feliz fazendeiro Por pouco dinheiro Lhe compra o que tem Ai, ai, ai, ai·. (GONZAGA, 1964)

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Nesse momento se iniciam os preparativos para a longa viagem no pau de

arara. Entre choros, lamentos e saudades da roseira, do gato, do cachorro, do torrão

natal o caminhão parte para São Paulo. Essa saída é arastada, sofrida, dolorida de

saudade e lamento sobre a terra natal. Embora apareça a súplica “Meu Deus, meu

Deus” entoada como se fosse uma ladainha para justificar o momento de dor e

sofrimento, o fato de o “feliz fazendeiro” aparecer para comprar tudo com pouco

dinheiro já é uma crítica social aos aproveitadores, que sendo eles os causadores de

muitas dessas mazelas, são eles mesmos quem lucram com elas.

Há nesse discurso sobre a saída da terra natal uma maior importância à saída

e a todo o percurso até chegar a São Paulo. O sujeito dá ênfase às coisas da terra,

seus costumes, sua ingenuidade, mostrando o outro lugar, não como uma saída

para o mal instalado, mas como uma pena de morte. Instaura-se nessa formação

discursiva uma contradição: o sujeito vai para São Paulo para tentar sobreviver da

fome e da seca, e ao mesmo tempo mostra São Paulo “salvador” como a morte e o

castigo. Nessa perspectiva o sujeito está preocupado não apenas com o corpo que

sofre os efeitos do meio, mas com a cultura que vai ser perdida, esquecida em terras

distantes, onde a cultura é diferente e causa medo porque ele acredita que vai

desenraizar-se, perder seus vínculos com a terra natal e se transformar em algo que

ele não é.

Esse fator bastante comum em alguns compositores da época e em alguns

atuais não é simplesmente uma lamentação de abandono da terra natal; por trás

disso há algo bem maior que é o afloramento do capitalismo, da República, das

relações internacionais e da industrialização do país. O nordestino resiste a isso

porque já tem um discurso que fala dessa saudade. Luiz Gonzaga, cantando no eixo

Rio - São Paulo dissemina essa saudade da terra e seu possível retorno, porque ele

é o representante de toda uma leva de nordestinos tanto os de São Paulo e Rio de

Janeiro como os que estão no Nordeste. Seu canto é triste e melancólico para

aquele que se encontra “nas terras do sul” e para aqueles que têm parentes vivendo

lá.

Para Albuquerque Júnior (1999), esse discurso é uma invenção criada a partir

de um discurso sobre a constituição do Nordeste como região. No fundo tudo isso é

uma denúncia da situação da região que sempre foi relegada ao abandono, sem

nunca ter recursos dos governos para combater os efeitos da seca, e quando isso

era destinado, o dinheiro se perdia no caminho ou era desviado para alguma

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construção de algum açude ou barragem na terra de algum coronel para manter o

povo no seu curral eleitoral. Investia-se o dinheiro que era do povo em terras de

patrões e depois usava-se esses benefícios como se fosse algo de sua autoria para

que o povo, com essa gentileza, continuasse votando em seus candidatos.

Luiz Gonzaga, apesar de sua representatividade folclórica no Nordeste como

o fundador do baião59, e sua popularidade nas décadas de 1930 até 1950, devia ter

feito mais e ter ido mais longe à crítica social sobre as dizibilidades sobre o

Nordeste. Sua atuação no cenário artístico foi excelente, mas seu papel social foi

falho. Ele pregava o discurso do fazendeiro, do deputado, do governador, que queria

justamente isso: manter o povo ocupado, culpando Deus por suas desgraças e ao

mesmo tempo acreditando que eles eram seus bem-feitores, seus salvadores,

quando na verdade esse discurso da saudade era uma maneira de garantir o

sucesso e o sustento de Luiz Gonzaga e a manutenção das oligarquias no Nordeste.

Não se está, neste sentido, condenando a postura de Luiz Gonzaga, mesmo porque

seu grau de instrução e sua formação discursiva não permitiam uma visão de mundo

que ultrapassasse essa ideia de coronelismo e indústria da seca, embora se

perceba em certas canções como em Vozes da seca uma pitada de crítica sobre a

questão da chuva, de Deus e dos homens que mandam no Nordeste. A contribuição

da música de Luiz Gonzaga para colocar o Nordeste no cenário nacional como

música nacional é indiscutível. Discutível são apenas algumas questões como a

subserviência ao coronelismo e aos políticos da época. Na sua posição, como um

homem que falava em nome de muitos, Luiz Gonzaga podia ter feito mais pelos

seus irmãos nordestinos, porém sua formação discursiva, sua religiosidade ortodoxa

e sua pouca instrução, talvez tenha contribuído para que isso tivesse acontecido.

Luiz Gonzaga era nordestino, pernambucano filho de Januário e Santana,

saiu de casa fugido por tentar matar um homem. Levou uma surra da mãe tão

grande que fugiu de casa e só voltou vinte anos depois, já cantor e famoso. A saída

dele e de Caetano Veloso são totalmente distintas, as formações discursivas dos

dois são também distintas e a positividade da época também era diferente. Pode-se

perceber que a positividade das épocas envolvidas, o arquivo que cada um

seleciona para a formação discursiva a que cada um pertencia, mostram a forma

59

Embora se diga que o baião é uma música e dança folclórica, sua composição e seu ritmo já são invenções novas, já que sua inserção no mercado fonográfico nacional obedece a padrões estéticos novos ao lado do jazz e do cool, da Bossa-nova. Então dessa forma sua representatividade pela originalidade e pela nacionalidade não se sustenta.

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como cada um ver o mundo: Luiz Gonzaga mais provinciano, mais ortodoxo,

enquanto que Caetano Veloso, mesmo sendo do Nordeste, é mais cosmopolita, não

religioso, mais rebelde, etc.

Já na música de Caetano Veloso No dia em que vim-me embora não se fala

do motivo da partida, nem se faz alusão à saída como algo sofrido pelo sujeito. Ao

contrário da formação discursiva de Patativa o sujeito tropicalista não acredita ser a

saída da terra natal uma fatalidade saudosista. Não há lamentos, nem choros por

parte do sujeito que parte, nem mesmo das coisas que deixa: mãe e irmã. Ele

simplesmente vai e não olha para trás. O Tropicalismo recria esse discurso

identitário sobre o Nordeste, mostrando nossas grandes composições, nossa cultura

e nossa gente em suas músicas modernas. Os tropicalistas resgataram toda a

cultura nacional, e em especial a nordestina, já que os mesmos também eram

nordestinos. Esse resgate era feito por meio do suporte que eles sustentavam na

mídia com sua música estética e sincreticamente estruturada, dentro de um conceito

de vanguarda e filosofia modernista. O fato de não se dar muita importância à

religião e aos costumes que os Tropicalistas consideravam cafonas, como por

exemplo, os costumes nacionais arraigados ao provincialismo, a religião, a política

militarista e seus conceitos de família, ordem, progresso e civilidade, era um

exemplo da filosofia niilista que pregava o apogeu do homem moderno, do homem

racional, do homem do poder, do homem-leão. Tentava-se mudar toda uma

estrutura social através do engajamento cultural do homem trabalhando sobre sua

cultura para poder modificá-la ou melhorá-la.

A música Sampa, que não faz parte das composições do período que

estamos analisando, também faz remissão ao tema tratado em Triste partida e No

dia em que vim-me embora. Essa música é como se fosse à continuação dessa

última, que embora se configure discursivamente como uma apologia à cidade de

São Paulo, sua temática remete à chegada do nordestino em São Paulo, das “duras

esquinas”, da esquisitice da cidade grande. Na música Sampa há a mesma

organização caótica do Tropicalismo como a quebra da sintaxe e organização dos

versos, superposição de imagens e o mesmo sincretismo cultural ao mostrar Vinícius

de Moraes, os irmãos Campos, Rita Lee e os Mutantes, os Demônios da Garoa, etc

na mesma música.

Nessa música o sujeito fala da experiência da cidade grande a partir de um

ponto que já é a própria cidade, do que acontece em seu íntimo quando passa pelas

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avenidas centrais de São Paulo. O sujeito não faz nenhuma relação com o lugar de

onde veio, a não ser na parte que diz “E quem vem de outro sonho feliz de cidade,

aprende depressa a chamar-te de realidade” (VELOSO, 1978, lado 2, faixa 2) para

dizer que São Paulo é a realidade do país com suas esquinas, filas, favelas, da

fumaça que cobre as estrelas, de seus compositores e seus ritmos. O sujeito

expressa que qualquer realidade que seja São Paulo é um sonho, algo inventado,

fantasiado, uma utopia, que o progresso de São Paulo com todas as suas mazelas é

que é a realidade, expressando assim um sentimento cosmopolita do mundo,

mostrando que a pós-modernidade é que é a realidade do país e não o discurso

sobre o atraso.

O movimento Tropicalista, como diz Albuquerque Júnior (1999), foi o único em

suas composições e em seu discurso fugiu da ideia de que o Nordeste é um lugar

atrasado, de messias, de cangaceiros, de gente rude e feroz, quase que

animalescos. Eles trataram de mostrar o Nordeste moderno com seu grande

potencial cultural com sua gente produtora de conhecimento, de sua evolução

perante os movimentos sociais, deixando para trás todo aquele discurso de jecas-

tatus, de Fabianos, de sinhás, de que tratava o regionalismo de 1930. Seu discurso

é sobre a cultura nordestina e não sobre a região. Não trataram de mostrar os

problemas enfrentados pelos nordestinos como uma calamidade gerada por Deus

ou por culpa da localização geográfica da região, e sim como problemas sociais

advindos da má distribuição de renda para as outras regiões do país e do desprezo

que sempre trataram os governantes com o Nordeste.

Ainda na música Sampa, o sujeito fala da estranheza que lhe causou a cidade

grande, o impacto que o fez refletir sobre sua condição de nordestino na cidade

grande. Que foi um começo difícil, não era o espelho do qual estava costumado,

porque quando olhou e se olhou não se viu refletido, porque tudo era o avesso

daquilo que estava acostumado. Esse discurso remete aos mesmos utilizados por

Patativa do Assaré e Luiz Gonzaga, só que o sujeito tropicalista já tem fixa a ideia de

que vai ficar por ali em vai ter que se acostumar e não quer voltar para sua terra. “E

os novos baianos te podem curtir numa boa” é justamente o contrário de “Faz pena

o nortista tão forte e tão bravo, viver como escravo no norte e no sul”.

Em No dia em que vim-me embora Caetano Veloso encerra dizendo que não

deixava nada para traz a não ser a família da qual ele fala. E embora não tivesse

certeza do que lhe aguardaria na cidade grande, não apresentava nem dor, nem

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medo nem saudade, porque o que ele queria era realizar os seus sonhos que na

sua terra não era possível. Termina dizendo que foi sozinho para capital.

Enfaticamente citado três vezes.

Alegria, alegria: bananas ao vento no coração do Brasil

Alegria, alegria é uma das primeiras canções tropicalistas. Foi uma música

recebida com muitas vaias por parte do público no Festival da Record em 1967.

Com essa música Caetano Veloso estava iniciando o Tropicalismo e, embora essa

não seja a música que filtra todo o projeto tropicalista, já lança as bases do que seria

o movimento; Tropicália é a música que lança o Tropicalismo como um projeto

cultural para o Brasil e ao mesmo tempo uma canção que tem a base filosófica

desse movimento.

Alegria, alegria por assim dizer foi a base filosófica, sociológica e

comportamental do Tropicalismo. Ela não fala no projeto cultural com as mesmas

propriedades de Tropicália, ela lança de modo geral como seria a filosofia, o

comportamento e as posturas que o Tropicalismo iria assumir a partir daquela

manifestação.

Com o mesmo espírito e formação discursiva com o qual compôs Tropicália

ou Panis et Circenses, Caetano Veloso mostrou naquela noite de 1967, na TV Tupi

de São Paulo, dia do 1º Festival de Música Popular Brasileira, acompanhado pela

banda Beat Boys, que a cultura nacional estava precisando ser revigorada,

reinventada, renovada, porque a música e a cultura do país estavam se perdendo

em meio ao anacronismo, o cafonismo e o discurso retórico da esquerda atrasada.

Pelo interdiscurso Caetano estava se referindo às músicas produzidas por Chico

Buarque, Elis Regina e outros compositores que insistiam em trabalhar apenas com

o nacional, rejeitando qualquer projeto de mudança vinda do exterior e, isso se dava

tanto em âmbito nacional, já que se fazia uma seleção do que deveria ser posto nas

canções com o olho grande da censura sobre todos, tanto no internacional que já

mostrava o Brasil se desenvolvendo culturalmente através da absorção ativa das

culturas que adentravam ao país com o populismo desenvolvimentista da classe

operária e das indústrias que aqui se instalavam.

Inicialmente, a música foi acompanhada por uma banda de rock, os Beat

Boys, uma banda que imitava os Beatles, daí o nome e o estilo da banda. Só isso

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foi causa para inúmeras vaias para o compositor, já que a maioria de seus

concorrentes se apresentou tocando sozinho ou com grupos de músicos que

usavam a estética musical padrão da época: uso restrito de baterias, o violão era o

mais usado, pois raramente se tinha outro instrumento de corda, o acordeón e os

ritmos eram típicos como canções, modinhas, baião etc. O som de “Alegria, alegria”

já é contagiante, alegre, alternando em ritmos dissonantes mesclados com guitarras

elétricas, contra-baixos e baterias.

A letra era mais dissonante ainda fazendo um recorte temporal de coisas

modernas e ideias arcaicas, dessacralizando e descolonizando a visão cultural que

até então predominava na música e na cultura do país. Fazia uma apologia hippie60

e ao mesmo tempo cool61, mesclado com uma semântica fragmentada, lembrando

mais pinturas surrealistas e textos dadaístas.

Caminhando contra o vento Sem lenço e sem documento No sol de quase dezembro Eu vou O sol se reparte em crimes Espaçonaves guerrilhas Em cardinales bonitas Eu vou (VELOSO, 1967, LADO B, FAIXA 4).

Nessa primeira parte da música, o sujeito tropicalista se diz caminhando

contra o vento que lembra a expressão popular “remar contra maré”, significando

que esse sujeito está indo de encontro a algo da época como: a arcaização da

música popular e, principalmente da Bossa Nova herdada de João Gilberto que

para os tropicalistas ficou conhecida pelo bordão retomada da linha evolutiva da

Música Popular Brasileira. Também contra o vento sugere a questão política do país

em que os militares assumiam o país com mãos de ferro e no qual os Tropicalistas

60

Movimento comportamental que se iniciou nos Estados Unidos nos anos de 1960 que tinha como lema “Paz e amor”, (Piece and Love). Pregavam o amor livre e a não violência. Foi um movimento de contracultura, no qual jovens de várias partes do mundo se juntaram para dizer não às armas e os valores tradicionais da época. Geralmente eram artistas e músicos que se sentindo presos pelos valores sociais da época criavam comunidades coletivistas e nômades cultivando mercados não formais, para viverem sua liberdade sexual e social. No Brasil esse movimento culminou na década de 1970 e em outros países ele já estava quase no fim. 61

Quer dizer “ser legal”, uma tendência pop que se juntou a uma série de movimentos de contracultura e subcultura. Está aliado aos movimentos pós-punks, beatniks, Jazz Cool e Bebop. Na música foi um movimento que se caracterizava pelo uso improvisado de instrumentos musicais que tocavam quase de forma independente, em confronto com a música clássica que seguia um padrão linear.

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foram contra e essa música deixa bem claro quando fala “Sem lenço e sem

documento”, numa atitude hippie de não levantar bandeira nem portar uma

identificação e seguir em frente com o verso “Eu vou”.

Os mesmos versos acima ainda sugerem pela memória discursiva do atraso e

a falta de políticas públicas para as regiões mais isoladas do país como o nordeste

brasileiro. As políticas de desenvolvimento da região estavam se concentrando nas

grandes cidades e quando era destinada alguma verba, essa se perdia no caminho

com os interventores coronéis que mandavam e desmandavam na região.

O sol de quase dezembro alegoricamente não é o sol astro que ilumina a

Terra, mas faz referência a uma revista da época “O Sol”. Pelo arquivo da época,

pode-se aludir a novembro (quase dezembro) e a rumores sobre a publicação de um

novo Ato Institucional (AI-5) que foi a peça-chave que cassou todos os direitos civis

no Brasil. Essa ideia de ditadura militar é mais latente nos versos seguintes quando

o sujeito tropicalista fala:

A revista O Sol, alegoricamente denuncia a ditadura militar, que praticava

seus crimes nos porões, nas ruas e nas delegacias, crimes estes que se deseja

esquecer, que eram praticados pelos altos e baixos escalões militares. A ditadura

aparece como uma mancha negra na história do Brasil, com a sua censura e a

cassação aos direitos dos cidadãos brasileiros que mantinha todo mundo deibaxo de

uma nuvem negra que não queria passar. “Espaçonaves e guerrilhas” remetem ao

arquivo em que a guerrilha foi uma das formas de protesto que alguns segmentos da

sociedade se engajaram para combater o regime militar; espaçonaves faz lembrar a

vigilância que era feita nas matas do Araguaia, onde militantes de esquerda eram

treinados por exércitos estrangeiros a manusear armas, se disfarçar entre os civis,

roubar, assaltar para manter a guerrilha e os “companheiros” degredados, bem

como a compra de armas e munições, provimentos para as famílias dos colegas

assassinados e para quem estava na guerrilha. “Cardinales bonitas”, embora fora do

contexto da ditadura militar é uma figura do cinema italiano que na época fazia muito

sucesso, segundo os Tropicalistas, mais que a famosa estrela americana do cinema

Merilyn Monroe. Cardinales bonitas talvez seja uma pista falsa para enganar a

censura, já que a música é vista como se fosse um quadro ou uma pintura com suas

imagens superpostas, disfarça porque não termina o que se diz sobre a ditadura,

embora pela intertextualidade Cardinale (Claude Josephine Rose Cardinale) que

interpreta no filme La Storia do diretor Luigi Comencini, uma viúva durante a

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Segunda Guerra Mundial, o que faz com que seu nome na letra da música não seja

mera coincidência, mas totalmente intencional, já que de uma forma ou outra a

ditadura militar no Brasil é equiparada ao holocausto nazista.

Em caras de presidentes Em grandes beijos de amor Em dentes pernas bandeiras

Bomba e Brigitte Bardot (VELOSO, 1967, LADO B, FAIXA 4).

O verso que segue é uma continuação de “O sol se reparte em crimes”

remetendo pela memória discursiva e o interdiscurso ao cinema francês e a nouvelle

vague francesa, inspirada no neorrealismo italiano do qual Brigitte Bardot foi uma de

suas atrizes e cantoras mais famosas. Em “caras de presidentes” remete ao regime

militar que trocava de presidentes constantemente; o sol, alegoricamente, ditadura

militar, para se segurar no poder provisoriamente até o grande golpe usou essa

tática de ficar trocando de presidente até que acontecessem as eleições que só

viriam acontecer já nos finais dos anos de 1985, ou seja, 21 anos depois.

Brigitte Bardot foi a grande musa dos anos de 1960, bela e provocadora que

entre beijos de amor, biquínis, perna e dentes propagaram-se como símbolo sexual

para o público francês e hollywoodiano. Sua personagem e sua vida pessoal podem

ser comparadas com uma bomba por suas polêmicas, dos vários casamentos

malsucedidos e por opções radicais contra mulçumanos e gays, o que lhe rendeu

muitos processos e multas altíssimas. Essa figura aparece alegoricamente na

música para falar da bomba polêmica e proliferadora da ditadura militar sem levantar

suspeitas, já que a atriz francesa chama mais atenção inibindo esse olhar de

denúncia para a música, uma das muitas estratégias tropicalistas.

O sol nas bancas de revista Me enche de alegria e preguiça Quem lê tanta notícia? Eu vou Por entre fotos e nomes Os olhos cheios de cores O peito cheio de amores vãos Eu vou

Por que não? Por que não? (VELOSO, 1967, LADO B, FAIXA 4).

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No fragmento acima o sujeito tropicalista continua sua caminhada sem rumo

certo, se esgueirando nas bancas de revista com as notícias do dia-a-dia. O sol

aparece novamente nas bancas de revistas caracterizando outro meio de

comunicação altamente censurado durante a ditadura militar. Sua atitude demonstra

uma fuga disfarçada na preguiça que termina com a interrogação Quem lê tanta

notícia? A linguagem surreal dos próximos versos mostra uma imagem de uma das

peripécias oswaldianas, isto é, poemas e versos que lembram imagens sensoriais

em fotos, nomes, os olhos cheios de cores, que também sugere um ambiente

urbano colorido de luzes e cartazes e mesmo assim surge a pergunta em meio a

esse bombardeio de informações Por que não, indicando a continuação da narrativa

na música.

Ela pensa em casamento E eu nunca mais fui à escola Sem lenço sem documento Eu vou

Eu tomo uma coca-cola Ela pensa em casamento E uma canção me consola

Eu vou (VELOSO, 1967, LADO B, FAIXA 4).

Os próximos versos são dessacralizantes e anti-arcaicos. Duas instiuiçoes

tidas como sagradas para época são caranavalizadas: o casamento, e a escola que

eram dois pilares da sociedade dita arcaica e uma das mais proclamadas pelo

militarismo. O casamento que gera uma família que era a célula da sociedade e a

escola, principal meio de divulgação das ideias tanto militares quanto da sociedade

da época. O sujeito tropicalista fala que enquanto ela fala em casamento ele não vai

à escola, duas atitudes que caranavalizam o discurso oficial; ela pensa em

casamento, ele não e ainda não está indo à escola, prefere andar sem lenço e sem

documento.

O sujeito agora toma coca-cola, um gosto de cultura estrangeira de consumir

produtos modernos, enquanto ela ainda pensa em casamento. Isso seria reduzido à

seguinte fórmula: enquanto ela só pensa em casar eu ando sem lenço e sem

documento tomando uma coca-cola lendo O Sol em quase dezembro junto dessas

bancas de revista. No verso “E uma canção me consola” é uma crítica mordaz ao

pessoal da canção de protesto como Chico Buarque, Geraldo Vandré, Elis Regina,

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etc., dizendo que essas canções não possuem nenhuma criatividade nem uma

estética renovada, só consolam e confortam as pessoas, ao falar das mazelas

sociais, dos menos favorecidos, do militarismo e, todos acabendo na mesma fossa,

ou seja, é um tipo de canção triste que fala sobre temas e temáticas e não chegam a

nada, a não ser a tristeza e o conformismo e cada vez mais regredindo toda estética

e modernização da música popular brasileira. Ela fala de temas nacionais e não se

arrisca a mudar o padrão, são sempre as mesmas coisas. O Tropicalismo é um

movimento de renovação da identidade cultural do país, da música e das artes em

geral, adotando como padrão o não padrão e a deglutição das várias culturas para

renovação da cultura nacional. Por isso ele continua com Eu vou.

Por entre fotos e nomes Sem livros e sem fuzil Sem fome sem telefone No coração do Brasil

Ela nem sabe até pensei Em cantar na televisão O sol é tão bonito

Eu vou (VELOSO, 1967, LADO B, FAIXA 4).

No grupo de versos que segue, o sujeito continua sua caminhada entre fotos

e nomes” no coração do Brasil. O sujeito continua sem ideologia, ele não assume

nenhuma postura diante dos fatos e da positividade do seu tempo, a formação

discursiva que organiza os discursos do país em torno do militarismo na política

mostrando o “fuzil” como arma para lutar contra invasão estrangeira e contra as

guerrilhas nacionais e do outro lado o livro representando o conhecimento

acadêmico e o envolvimento dos universitários na democratização do país, dos

meios de comunicação, da libertação das antigas oligarquias. Mas o sujeito

tropicalista não quer saber disso, continua sua jornada “sem livros e sem fuzil”, o

que ele pensa mesmo é em cantar na televisão, pois esse “sol” lhe parece mais

bonito.

Com essa postura de não ideologia o sujeito tropicalista espera ir para a

televisão cantar e mostrar ao país uma nova forma de encarar os fatos. Como o

Tropicalismo é um movimento de renovação da música e das artes em geral, cantar

é a melhor saída para organizar o carnaval do país quem sabe até fundar um

monumento ou um movimento no coração do Brasil.

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Sem lenço sem documento Nada no bolso ou nas mãos Eu quero seguir vivendo amor Eu vou Por que não? Por que não?

Nessa parte final da música o sujeito continua “sem lenço e sem documento”

nem no bolso e nem nas mãos, o que ele quer é apenas seguir vivendo. Essa

postura niilista, sem compromisso sem fé, como se tudo fosse vítima do acaso

demonstra pouca preocupação com a ordem vigente na política e na sociedade e

até mesmo com a cultura. O que ele quer é só seguir vivendo com “amor” que rima

com “vou”, que quer dizer com amor eu vou.

Essa pretensa despreocupação do sujeito tropicalista não é um

descompromisso com a sociedade e a cultura; Na verdade essa foi a forma que o

Tropicalismo adotou para encarar a sociedade com descrença, com sarcasmo, com

ironia, criando uma alegoria filosófica e sociológica do país Brasil. Nessa perspectiva

foi preciso satirizar, ironizar e até que surgisse um novo padrão musical e uma nova

forma de ver, sentir e renovar a cultura do país, não apenas dos grandes centros

urbanos, mas também dos lugares mais esquecidos do país como o Nordeste, que

com a contribuição do Cinema Novo conseguiu resgatar e modernizar a cultura

nordestina por meio da intertextualidade e da interdiscursividade, ao parodiar, imitar,

copiar e até ironizar a cultura do Nordeste brasileiro, já que é muito comum nas

letras de músicas dos Tropicalistas expressões nordestinas de grandes

composições e de grandes compositores representantes culturais da região.

Alegria, alegria é a base filosófica que pôs em processo a alegoria do Brasil e

do Nordeste, dessacralizando a cultura oficial e propondo novas formas estéticas

para as artes no geral e deteriorando asa bases do patriarcalismo e do arcaísmo e

do militarismo que predominava na sociedade da época.

Baião; Baião atemporal; De onde é que vem o baião?

Essas três canções embora tenham nomes semelhantes são de formações

discursivas diferentes, estão inscritas em arquivos de épocas distintas e tentam

resgatar a memória musical do baião de forma semelhante. Os Tropicalistas, ao

resgatarem Luiz Gonzaga, tematizando suas canções estavam preocupados com o

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baião, que embora se achasse que era uma música folclórica, na verdade era uma

evolução genuína das músicas folclóricas cantadas no Nordeste, ou seja, uma

evolução da Música Popular Brasileira.

Tanto Gilberto Gil como Gal Costa vai tratar a música baião de forma

diferente dando a ela novas configurações e novos efeitos de sentido ao resgatá-la e

incutir-lhe outros olhares que o compositor Luiz Gonzaga não viu ou não quis ver.

Pensamos, nesse sentido, no discurso povoado por outros discursos e no discurso

traído, em que Gal e Gil longe do discurso de que o Nordeste era uma região de

atraso cultural e saudosista e envolvidos em atividades culturais mais amplas,

tentaram através da intertextualidade e da interdiscursividade resgatar a linha

evolutiva da MPB.

Gilberto Gil e Gal Costa eram Tropicalistas e estavam envolvidos no projeto

de desenvolver a cultura e as artes do país de forma cosmopolita, agregando em

suas canções elementos de outros lugares, de outras artes, de outros discursos do

Brasil e do mundo. Ambos estavam mais preocupados com o Nordeste, de certa

forma, mais do que Caetano Veloso, pois o mesmo tinha ambições maiores, embora

mostrasse em suas composições uma renovação do discurso sobre o Nordeste e os

nordestinos ao parodiar, copiar e satirizar os compositores da região.

Por outro lado Luiz Gonzaga mantinha a mesma linha discursiva da saudade,

da tristeza e dos valores morais da sociedade e da Igreja Católica. Na música

“Baião” desse compositor ele toca o ritmo quente que é o baião tocado com sanfona,

zabumba, pandeiro e triângulo, mostrando não o que é a música nem a sua origem,

mas seu desenvolvimento ao misturar-se com outros ritmos que ele aprendeu no Rio

de Janeiro e São Paulo. Veja a primeira estrofe da música:

Eu vou mostrar pra vocês Como se dança o baião E quem quiser aprender É favor prestar atenção Morena chega pra cá Bem junto ao meu coração Agora é só me seguir Pois eu vou dançar o baião (GONZAGA, 1949, FAIXA 4).

Ele convida o povo a imitá-lo dançando o baião. Fala da forma como dança,

mulher e homem bem colados um ao outro no chamado “rala-bucho” nordestino

onde normalmente homem e mulher tinham isso como única diversão e um meio de

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celebrar os rituais: nascimento, casamento, batizado, menos a morte que era velada

com tristeza.

Na continuação da música ele fala:

Pois eu vou dançar o baião Eu já dancei balancê Xamego, samba e xerém Mas o baião tem um quê Que as outras danças não têm Oi quem quiser é só dizer Pois eu com satisfação Vou dançar cantando o baião (GONZAGA, 1949, FAIXA 4)

A música de Luiz Gonzaga, embora sendo uma das mais representativas do

compositor e do grande sucesso que teve na sua época e nas festas juninas atuais,

ainda é muito folclórica do ponto de vista da letra, já que fala como se dança o baião

e não o próprio baião. É uma musica de letra simples e musicalidade quente e

contagiante, própria para a dança e o remelexo, não representando discursivamente

nada de interesse. É como diz Albuquerque Júnior(1999), o povo estava

acostumado a dançar com a música e não ouvi-la. E segundo o mesmo autor,

embora Gonzaga tenha feito muito pela música do Nordeste do Brasil, poderia ter

feito mais se sua formação discursiva não fosse tão diferente do ponto de vista da

evolução da música, da crítica social e da luta de classes. Seu baião ficou reduzido

à dança e ao folclore. Isso foi altamente contestado pelos Tropicalistas, que

resgatando o compositor de sua fossa, renovaram o baião e a identidade da região

Nordeste ao mostrar outro discurso sobre uma mesma temática.

O baião tropicalista utiliza arranjos semelhantes, mas bem mais marcado com

arranjos de outros instrumentos como flauta, conta baixo, guitarra, berimbau.

Bateria, etc. A letra da música fala de pau de arara e de retirantes e de famílias que

abandonam seu lugar para viver fora. O ritmo chama-se baião, mas é totalmente

renovado pela temática e pela melodia, utiliza outras formas de falar, parodiar e

cantar o baião nordestino. Estamos partindo da ideia de que essa preocupação

tropicalista com Luiz Gonzaga se dá tanto pela sua importância no cenário musical

do país, tanto por sua ingenuidade em tratar de certos temas, já que Luiz Gonzaga

era da roça, sem formação acadêmica e com fortes inclinações ortodoxas devido a

sua fé católica.

Veja o que diz a canção de Caetano Veloso:

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No último pau-de-arara de Irará Um da família Santana viajará

Levará uma semana até chegar Junto com mais dois ou três outros cabras que estarão lá No último pau-de-arara de Irará

Se essa viagem comprida fosse um cordel Seria boa saída acabar no céu

A letra desse baião é riquíssima. Primeiro o título é chamado de “baião

atemporal” significando baião que não muda, que não varia, que o tempo passa e

ele continua do mesmo jeito. Começa com pau-de-arara que era um transporte típico

para transporte de pessoas e coisas na época em que retirantes iam embora de sua

terra em busca de melhores dias. Era uma viagem longa e sofrida, não apenas pela

dor física, mas também pela dor da saída da terra natal, segundo os nordestinos.

Esse transporte sai de Irará que é uma cidadezinha baiana que fica a 128 km de

salvador. É uma cidade festeira quase todo o ano, com competições culturais de

sanfoneiros e blocos de foliões pelo meio da rua. Também é conhecida como a terra

da farinha. Talvez, segundo o compositor sem razões para sair. Irará também é o

nome dado a um mamífero das Américas. É um animal carnívoro, mas que também

se alimenta de frutas, conhecido no Brasil como papa-mel e em países de língua

espanhola é chamado de “cabeza de cejo”, que significa cabeça de velho devido a

sua cor acinzentada no alto da cabeça, também sua orelhas arredondadas lhe dão

um aspecto humano. Coincidentemente (acreditando que não haja isso entre os

Tropicalistas), o animal se refere ao velho, ao atraso, ao cafona (longe de querer

supor isso para os idosos), por isso a escolha lexical, que poderia ter sido qualquer

uma, já que existem cidades mais famosas na Bahia, mas apenas esta se tornou um

acontecimento, um enunciado para evocar um sentido para a viagem do pau-de-

arara, um atraso, uma coisa sem nexo, que não tem razão de existir.

Nesse pau-de-arara viaja um da família Santana que retoma ipsis litteris o

nome da mãe de Luiz Gonzaga. É um recurso metonímico que retoma a parte pelo

todo, a família é Santana, mas que pela memória discursiva remete a Santana, mãe

do Rei do Baião que aparece em alguma de suas canções, bem como a figura

paterna do velho Januário.

Gil faz uma alegoria da viagem, mostrando a duração, quem vai e,

implicitamente, o que se vai fazer quando descer do pau-de-arara. Ironicamente, o

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compositor mostra o céu como saída para uma viagem tão longa e tão maltratada.

Essa alegoria remete ao discurso religioso de sofrer aqui na terra para ganhar o

paraíso: “Se essa viagem comprida fosse um cordel/ seria boa saída acabar no céu”,

citando também o cordel, um tipo de narrativa popular feito com versos populares

(normalmente redondilhas maiores e menores) que conta estórias fantásticas cheias

de peripécias dos personagens, que normalmente são figuras ilustres no Nordeste

como Lampião e Maria Bonita, o cangaceiro Corisco e sua mulher Dadá, Padim

Ciço, dentre outros.

Tudo isso que a cruzada tropicalista fazia era para mostrar o baião não

apenas como uma dança que precisa ser dançada e imitada, mostrar sua pureza em

relação a outras músicas do gênero, mas uma música moderna que fala de coisas

do povo que a criou, sua formação discursiva e os heróis que ela resgata por meio

da memória discursiva e não da saudade.

Só que este conto que eu canto é pra lá de zen Não tem sentido, não serve pra nada e é pra ninguém Pra ninguém botar defeito e não ter, porém Basta pensar que Irará poderá não ser Que os paus-de-arara de lá já não têm porquê Porque os tempos passaram e passarão Tudo que começa acaba, e outros cabras seguirão Cruzando o atemporal do tão do baião).

Gilberto Gil fala que seu conto narrativo cantado em forma de baião é pra lá

de zen, que remete à figura de Buda e da cultura japonesa, chinesa e coreana. O

autor quer dizer com base no enunciado que seu conto é feito a partir de uma

relação sublimar com a realidade, ele não vê as coisas apenas materialmente, mas

as antecipa, pois teve uma experiência que o faz mais hábil a ver a vida como ela

realmente é. Seu conto é mais real que o original, remetendo pela memória

discursiva ao discurso de Luiz Gonzaga. E como está além da experiência humana

diz que esse conto de pau-de-arara, viagem sofrida, atraso não tem razão de ser,

nem serve para nada e para ninguém, porque as coisas podem não ser o que

realmente são, ou não, porque os paus-de-arara não têm porque de existir, ou seja,

pode ser que tudo isso não passe de uma estória de cordel.

Nessa música, o uso de termos de culturas orientais como zen e o tão sinaliza

a modernização e o sincretismo temático dos tropicalistas. Embora seja considerada

uma música pós-tropicalista devido a sua transcedentalidade temática intercultural,

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ela se encaixa nos moldes pós-modernos, servindo a crítica da música do Nordeste

brasileiro, ao mostrar o baião como uma música moderna e muito além de seu

tempo.

De onde é que vem o baião?

De onde é que vem o baião? É uma composição de Gilberto Gil que é

cantada por Gal Costa. Essa composição é um baião bem incrementando com

elementos modernos. Além do ritmo quente apresenta arranjos de sanfona

tradicional, guitarra elétrica, um baixo bem marcado e arranjos de metais um uma

marcação rítmica que se aproxima mais do rock e do jazz do que o baião tradicional.

A canção começa assim:

Debaixo do barro do chão da pista onde se dança Suspira uma sustança sustentada por um sopro divino Que sobe pelos pés da gente e de repente se lança Pela sanfona afora até o coração do menino

Gilberto Gil vai falar do baião como algo transcendental, que a terra onde o

baião é dançado, bem debaixo da pista, que era um terreiro molhado e batido para

dançar nos chamados sambas como eram chamadas as festas antigamente é que o

nasce baião. Debaixo desse chão batido Gil fala de uma sustança divina que move o

coração das pessoas e vai até a sanfona. Ele coloca o barro da pista como sendo a

força motriz para o baião, para mostrar suas raízes e sua importância para o

sertanejo.

Retomando a memória discursiva e o interdiscurso, o texto de Gilberto Gil

remete ao discurso religioso da criação, na qual o homem foi criado a partir do barro

e depois colocado nele o sopro divino. Nele Gil tenta mostrar que o baião e a forma

como ele é criado é como se fosse o corpo e a alma do nordestino, mostrando que é

um ritmo genuinamente62 nordestino e que faz parte da formação discursiva dessa

gente. E essa força que sustenta o baião é tão poderosa que se lança à sanfona e

ao coração do menino, aqui citado como o discurso figurado da ingenuidade, da

pureza e da juventude, mostrando baião como uma música pura no sentido de sua

62

Pesquisadores como Câmara Cascudo dizem que o baião é uma música influenciada por um tipo de música portuguesa chamada de chula. O próprio Luiz Gonzaga em entrevista já dissera que o baião vinha da chula.

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originalidade e uma música ao mesmo tempo nova, pois ele é não apenas uma

música folclórica, mas a junção de vários ritmos novos que lhe deram uma origem

híbrida.

Nos versos seguintes Gilberto Gil vai fazer essa confirmação do baião como

algo transcendental:

Debaixo do barro do chão da pista onde se dança É como se Deus irradiasse uma forte energia Que sobe pelo chão E se transforma em ondas de baião, xaxado e xote Que balança a trança do cabelo da menina, e quanta alegria!

Nessa parte da música Gil continua com a mesma questão do baião ser uma

música original que nasce do chão de onde Deus irradia sal, energia e faz o baião se

multiplicar em outras formas de dança como o xaxado e o xote, ambas derivadas do

baião.

E uma pergunta é feita e respondida no final da música:

De onde é que vem o baião? Vem debaixo do barro do chão De onde é que vêm o xote e o xaxado? Vêm debaixo do barro do chão De onde vêm a esperança, a sustança espalhando o verde dos teus olhos pela plantação? Ô-ô Vêm debaixo do barro do chão

Nessa parte final ele afirma o que vem sendo dito antes sobre o baião ser

uma música que vem do chão, que possui um sopro divino, que esse mesmo chão

pode gerar o xaxado e também xote que são variantes do baião. Termina citando a

canção a volta da “Asa Branca” de Luiz Gonzaga, “espalhando o verde dos teus

olhos pela plantação”, que tudo que sustenta o homem vem da terra. A terra é o

elemento que dá vida ao homem e que está diretamente ligada também à produção

cultural de cada região, que reflete e ao mesmo tempo refrata as formações

discursivas existentes e o tipo de memória que resgata. Voltar ao nosso passado

distante e resgatar o que nos é digno de uma cultura legítima é uma atitude

antropofágica de querer ver e sentir as coisas pela raiz, uma radicalidade resgatada

da poesia oswaldiana.

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CONCLUSÃO

Pode-se concluir que a maioria dos compositores nordestinos quando se

punham a falar do Nordeste e de sua gente sempre caia na mesma armadilha da

saudade como bem nos falou nos textos acima Albuquerque Júnior(1999). Ao que

parece essa formação discursiva era predominante nesses compositores na hora de

escrever e, o arquivo que resgatavam e tipo de memória discursiva que utilizavam

sempre se faziam em torno da “saudade da terra”, da miséria, da fome, do

messianismo, como se isso fosse a única coisa da qual o Nordeste dispusesse para

falar sobre ele.

Embora o Tropicalismo tenha sido para a época um movimento cosmopolita

que se espalha em várias direções, delimitamos e ressaltamos aqui nesse texto

apenas as músicas e as partes constitutivas das músicas que citavam o Nordeste

literalmente por meio de enunciados de outros compositores do Nordeste, por meio

da intertextualidade implícita e explícita, meio da memória discursiva e o

interdiscurso e pela formação discursiva de cada compositor.

Os Tropicalistas, ou grupo de baianos, como eram chamados, sem a

conotação baiano utilizada no Rio de Janeiro para depreciar o nordestino que

trabalhava na construção civil, foram os únicos que, sendo nordestinos, não

entraram na mesma formação discursiva que caracterizou tanto as composições63

de Luiz Gonzaga, o grande expoente da Música Popular Brasileira e criador do

baião, Catulo da Paixão Cearense, Patativa do Assaré etc. Esse grupo de baianos

influenciados por outros discursos e outras formações discursivas como a pop art, o

movimento hippie, o rock americano, o Cinema Novo, as artes plásticas mostrou um

discurso diferente sobre o Brasil, o Nordeste e os nordestinos no campo da música e

da cultura.

O que se percebe ao analisar algumas músicas do Tropicalismo é que elas

resgatavam aqui e acolá as composições nordestinas por meio de recursos

linguísticos como a intertextualidade e a interdiscursividade, trazendo-as para a nova

cena moderna, incrementando-a com poesia concreta, rock, guitarras elétricas e

ritmos dissonantes, criando uma alegoria do Brasil tropical mesclando ritmos,

63

Aqui vale lembrar que o que Luiz Gonzaga cantava não eram composições suas, a maioria era do médico Zé Dantas e de Humberto Teixeira, poucas são criações suas e mesmo assim não fogem à temática de seus compositores.

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filosofia e pós-modernismo em letras chocantes, fragmentadas, com múltiplos

sentidos.

É interessante observar que mesmo sendo nordestinos da Bahia, os

Tropicalistas não aceitaram essa ideia de que o Nordeste fosse atrasado

culturalmente, nem geograficamente, o que se percebe nas letras tropicalistas é uma

denúncia da falta de políticas públicas que viessem socorrer o Nordeste e não

inventar um discurso sobre a região para categorizá-la como terra de ninguém com a

finalidade de excluí-la do mapa do Brasil, mas sim incluí-la no mapa da música e da

cultura.

O projeto tropicalista que embora se focasse na renovação da Música Popular

Brasileira e da cultura nacional por meio da sincretização dos elementos mais

representativos de sua cultura, foi também um movimento de vanguarda que

buscava resgatar aquilo que era brasileiro, aglutinando-o com elementos de outras

culturas como uma forma de renovar a cultura e a música do Brasil. Nesse ínterim,

fizeram uma salada tropical com a cultura brasileira. Sincretizavam em suas canções

as manifestações culturais e musicais do país, em especial a do Nordeste de onde

eles vinham, para acrescentar à linha evolutiva da Música Popular Brasileira novas

formas de compor e de mostrar novos efeitos de sentido, através do uso constante

de ironias, humor corrosivo e uma carnavalização humanoide da cultura, tentando

desmitificá-la e dessacralizá-la para poder renová-la.

Embebidos pela antropofagia cultural de Oswald de Andrade, os Tropicalistas

usaram e abusaram de recursos linguísticos e estilísticos para renovar a música e a

cultura nacional. Cruzavam elementos díspares como os velhos discursos de

esquerda com discursos sobre a modernidade. Enquanto compositores brasileiros e

nordestinos buscavam se lamentar e protestar usando elementos da cultura nacional

e popular, os Tropicalistas reuniam esses elementos em uma única música como

“Tropicália”, por exemplo, que é uma música-manifesto do movimento, ao mesmo

tempo em que inaugura uma nova forma de compor: organizar elementos

semanticamente distintos para falar de cultura, música, política e crítica social.

Os Tropicalistas mostravam, assim, uma atitude rebelde e moderna frente ao

grande universo cultural que ao Brasil da época estava sendo colocado. Enquanto

muitos compositores como Chico Buarque de Holanda, o paraibano Geraldo Vandré

e o pernambucano Luiz Gonzaga lutavam com todas as forças para que a cultura

moderna e cosmopolita não entrasse no cenário nacional, eles faziam justamente ao

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contrário, introduzindo em suas músicas elementos do cenário mundial junto com a

cultura local como uma forma de inovar a cultura e a música brasileira.

O Nordeste, especialmente, foi quem influenciou a música tropicalista, já que

os principais compositores eram da Bahia. Mas essa influência não se limitava à

memória discursiva que era ativada pelos “cantadores da saudade”, mas uma

formação discursiva baseada na modernidade, na cultura pop, no Cinema Novo e

nas artes plásticas. Inicialmente todos esses modelos de arte foram a oficina

tropicalista e, depois essa se torna menos explícita porque a música foi quem

prosperou no palco nacional devido a grande influência do rádio e da televisão.

Aproveitando o espaço que o rádio e a televisão abriram no Brasil, os

Tropicalistas iniciaram seu projeto de renovação da música e da cultura nacional por

meio dos festivais musicais da TV e dos programas de rádio. De fato, sem esses

dois elementos, boa parte do projeto tropicalista não teria vingado, porque tudo o

que se produzia em termos culturais no Brasil da época tinha que passar pelo rádio

e pela televisão. Esses dois meios de comunicação foram quem colocaram Luiz

Gonzaga e o baião para o Brasil ouvir e dançar e conhecer as raízes nordestinas.

Foram esses mesmos meios que viram e ouviram os Tropicalistas cantar “Alegria,

alegria” e “Tropicália” e mostrar para o público da época uma nova forma de compor

e tocar e ao mesmo tempo inaugurar o carnaval alegórico de um país chamado

Brasil.

Suas músicas representavam a alegoria carnavalesca do Brasil Tropical que

crescia volumosamente nas grandes cidades com seus edifícios e seus carros ao

lado de um Brasil rural, atrasado e abandonado. Suas músicas mostravam que a

cultura do Brasil não era apenas aquela cultivada pela elite, mas que outras formas

de compor também faziam parte da cultura nacional que eram também dignas de

serem cantadas.

Com esse espírito modernizante com mil alto-falantes ligados a uma

velocidade antropofágica os Tropicalistas buscaram na cultura nordestina todo seu

impulso criador. Esqueceram a formação discursiva de um Nordeste sofrido e

abandonado e retomaram o seu lado cultural mais esplêndido: as músicas populares

e as cantigas de cegos de feira e as modinhas improvisadas de violas e repentes.

Ao resgatar a cultura nordestina acionando todo o arquivo popular que a

memória discursiva oferecia, não apenas representava mais composição nordestina,

mas a cultura nordestina levada a cabo para a cultura cosmopolita e uma sociedade

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moderna, renovando-a e modernizando-a e mostrando ao país que o nordestino não

era apenas aquele descrito pelos “cantadores da saudade”, mas um Nordeste com

um grande potencial econômico e cultural semelhante, ou, talvez, superior ao da

região sul e sudeste.

Para fazer essa operação pós-moderna, usaram e abusaram de paródias, de

colagens e bricolagens. Pegaram os principais expoentes da música nordestina com

suas principais canções e citavam trechos dessas canções em suas composições

como se pode ser observado em “Tropicália”, “Baião atemporal”, “Procissão”, isso

usado de forma ipsis litteris; em forma de resgate pela temática temos tantas outras

como “Alegria, alegria” que se reportando a vários discursos e mitos fundadores

inaugura o niilismo tropicalista de dessacralização das relações sociais, das religiões

e uma crítica mordaz à sociedade militar, patriarcal e cafona. (termo amplamente

usado nas falas de Caetano Veloso).

Toda essa cruzada tropicalista64 foi feita por um sincretismo cultural que

mostrava nossas mazelas e nosso atraso social perante grandes potências mundiais

e ao mesmo tempo nos colocava de frente com a cultura globalizante que estava

entrando no país, em outras palavras, o Tropicalismo colocou o Brasil na vanguarda

da música e da cultura nacional e como o Nordeste era um dos elementos prediletos

dessa salada, houve uma renovação do discurso sobre o Nordeste e sobre o

nordestino.

O Tropicalismo ao lado de sua arte dessacralizante criou novos padrões

estéticos e ideológicos para a música e a cultura nacional. Seu arsenal cultural é

uma herança que predomina até hoje na MPB, e muitos, senão a maioria dos

compositores do Brasil, ainda são inspirados pelos Tropicalistas em suas

composições, tanto nos arranjos de instrumentais, quanto nas composições

escritas.

Embora fosse visto por alguns radicais da época como uma arte

descomprometida e sem ideologia, os Tropicalistas mostraram serem também

críticos da cultura e da sociedade da época. Em suas canções trataram de mostrar a

pobreza e a falta de liberdade de expressão por causa da ditadura militar; Utilizando

paródias e recortes semânticos do arquivo militar mostraram sua indignação ao

revelar o projeto anacrônico e anti-cultural, baseado na opressão, na tortura, no

64

Esse texto faz referência a um artigo publicado pelo crítico musical Nelson Motta na época em que eclodiu o Tropicalismo.

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sumiço de pessoas e na morte. Em “Alegria, alegria” aparece nomes como

guerrilhas, espaçonaves, recusa à escola e ao casamento, tudo como um carnaval

que denunciava a ditadura e ao mesmo tempo mostrava a nova cara do modernismo

no Brasil. Em “Tropicália” os “urubus” simbolizam os generais que assumiram o

Brasil por pequenos períodos, mas que deixaram grandes manchas negras na alma

da cultura e do povo do país.

O projeto tropicalista de renovação do discurso sobre o Nordeste e o

nordestino vem da grande influência que sofreram do Cinema Novo de Glauber

Rocha, que também era baiano e, viu no cinema uma forma de denúncia e ao

mesmo tempo de renovação das artes sobre o Nordeste e sua gente. Em seus

filmes “Deus e o diabo na terra do sol”, “Cangaceiros” todos resgatavam essa

temática e ao mesmo tempo denunciavam a maneira como essa região era tratada

pelos governantes. Por isso é muito comum nas músicas tropicalistas aparecerem

enunciados de canções nordestinas como se pode observar em “Tropicália”,

“Procissão”, “De onde é que vem o baião?”, “Baião atemporal” e muitas outras

canções que não foram incluídas no arquivo dessa análise.

Nas músicas tropicalistas aparecem enunciados de músicas de compositores

nordestinos citados ipsis litteris, mas que tem outros sentidos. De acordo com

Michel Foucault (2008), um enunciado mesmo que repetido não tem o mesmo efeito

de sentido, nem a mesma função demarcatória. Isso mostra que os enunciados

citados não tinham a função meramente de repetir o já dito, mas mostrar uma

renovação deste mesmo enunciado em um suporte diferente e mais rico em

sentidos. Os enunciados citados indiretamente, ou apenas fazendo referência a

determinado tema, também eram uma forma de resgate e de renovação do discurso

tropicalista sobre o Nordeste e sobre o nordestino.

Como aconteceu essa inovação?

Sabemos que a literatura é uma inovação das artes porque se utiliza de

recursos linguísticos, estéticos e sociais para questionar sobre determinado tema. O

Tropicalismo, ao lado de um movimento musical e artístico-cultural, foi também um

movimento literário, já que usou muito da poética oswaldiana e da poesia concreta

para renovar suas composições. De Oswald de Andrade cultivaram e inovaram no

aspecto da antropofagia cultural, que fazia uma espécie de alegoria do país ao

dessacralizar a cultura e a literatura, dita acadêmica, buscando nas canções e nas

narrativas populares outras formas de renovar a literatura modernista. Oswald de

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Andrade, talvez tenha sido junto com Mário de Andrade, um dos únicos modernistas

que pensou na modernização do país e da literatura.

Embora com seu gênio despreocupado, despretensioso e de não

comprometimento social, foi quem nos legou algo que se pode dizer literatura

autêntica, pois buscava ser original em suas composições ao tentar reinventar a

história do Brasil através da deglutição da cultura, misturá-la, incrementá-la para

depois modificá-la.

O procedimento antropofágico mesclava nos poemas elementos da cultura

popular como O capoeira, procedimentos que exploravam aspectos sensoriais como

a visão, o tato, etc. Esses elementos eram distribuídos de forma aleatória e,

aparentemente sem sentido e sem conexão, mas que no corpo do poema faziam

sentido, pois faziam ligações extralinguística e discursivamente com outros textos e

outros discursos. Esse processo de descolonização e dessacralização das artes e

da cultura foi, prioritariamente, resgatado pelo discurso tropicalista.

Nessa perspectiva, os Tropicalistas usaram de estratégias antropofágicas

para inovar no aspecto que eles queriam que era a música e a cultura do Brasil.

Nessa linha de raciocínio, os Tropicalistas resgataram Oswald de Andrade pela

memória discursiva ao utilizar os mesmos procedimentos na hora de compor as suas

músicas. Percebe-se em músicas como “Tropicália” e “Alegria, alegria” uma forma

de buscar em nossas raízes uma reinvenção alegórica do Brasil, como se

quisessem, assim como Oswald de Andrade, recolonizar o Brasil, buscando numa

origem longínqua nosso verdadeiro país. Ao citar Oswald de Andrade no manifesto

antropofágico o fizeram também com “Tropicália” como sendo a música símbolo do

movimento tropicalista.

Todas essas retomadas feitas pelos Tropicalistas para renovar a cultura e a

arte do Brasil se fazia com grande criatividade, já que utilizavam procedimentos

diversos, que fazem com que seja um movimento intertextual e polifônico por

excelência, já que inauguraram o carnaval no Brasil cruzando sementes culturais

distintas, niilismo, dadaísmo, surrealismo, poesia concreta, antropofagia, tudo isso

em nome da renovação da cultura e da música nacional, especialmente do Nordeste

e dos nordestinos que foram colocados na modernidade e na vanguarda da cultura e

da música no cenário brasileiro e mundial.

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Discografia de Gilberto Gil - www.tropicalia.com.br / olhar colírico / Projeto de Ana de Oliveira

Discografia de Luiz Gonzaga – www.gonzagao.com.br/ gonzagao online

www.michaelisonline.com.br/sincretismo

www.michaelisonline.com.br/identidade

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ANEXOS

Tropicália Composição: Caetano Veloso

Sobre a cabeça os aviões

Sob os meus pés os caminhões

Aponta contra os chapadões

Meu nariz

Eu organizo o movimento

Eu oriento o carnaval

Eu inauguro o monumento

No planalto central do país...

Viva a bossa

Sa, sa

Viva a palhoça

Ca, ça, ça, ça... (2x)

O monumento

É de papel crepom e prata

Os olhos verdes da mulata

A cabeleira esconde

Atrás da verde mata

O luar do sertão

O monumento não tem porta

A entrada é uma rua antiga

Estreita e torta

E no joelho uma criança

Sorridente, feia e morta

Estende a mão...

Viva a mata

Ta, ta

Viva a mulata

Ta, ta, ta, ta... (2x)

No pátio interno há uma piscina

Com água azul de Amaralina

Coqueiro, brisa

E fala nordestina

E faróis

Na mão direita tem uma roseira

Autenticando eterna primavera

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E no jardim os urubus passeiam

A tarde inteira

Entre os girassóis...

Viva Maria

Ia, ia

Viva a Bahia

Ia, ia, ia, ia...(2x)

No pulso esquerdo o bang-bang

Em suas veias corre

Muito pouco sangue

Mas seu coração

Balança um samba de tamborim

Emite acordes dissonantes

Pelos cinco mil alto-falantes

Senhoras e senhores

Ele põe os olhos grandes

Sobre mim...

Viva Iracema

Ma, ma

Viva Ipanema

Ma, ma, ma, ma...(2x)

Domingo é o fino-da-bossa

Segunda-feira está na fossa

Terça-feira vai à roça

Porém!

O monumento é bem moderno

Não disse nada do modelo

Do meu terno

Que tudo mais vá pro inferno

Meu bem!

Que tudo mais vá pro inferno

Meu bem!...

Viva a banda

Da, da

Carmem Miranda

Da, da, da, da...(3x)

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Procissão

Gilberto Gil

Olha lá vai passando a procissão

Se arrastando que nem cobra pelo chão

As pessoas que nela vão passando

Acreditam nas coisas lá do céu

As mulheres cantando tiram versos

Os homens escutando tiram o chapéu

Eles vivem penando aqui na terra

Esperando o que Jesus prometeu

E Jesus prometeu vida melhor

Pra quem vive nesse mundo sem amor

Só depois de entregar o corpo ao chão

Só depois de morrer neste sertão

Eu também tô do lado de Jesus

Só que acho que ele se esqueceu

De dizer que na terra a gente tem

De arranjar um jeitinho pra viver

Muita gente se arvora a ser Deus

E promete tanta coisa pro sertão

Que vai dar um vestido pra Maria

E promete um roçado pro João

Entra ano, sai ano, e nada vem

Meu sertão continua ao deus-dará

Mas se existe Jesus no firmamento

Cá na terra isto tem que se acabar

© Gege Edições Musicais ltda (Brasil e América do Sul) / Preta Music (Resto do mundo) 60687215

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No Dia Em Que Eu Vim-me Embora Caetano Veloso No dia em que eu vim-me embora

Minha mãe chorava em ai

Minha irmã chorava em ui

E eu nem olhava pra trás

No dia que eu vim-me embora

Não teve nada de mais

Mala de couro forrada com pano forte brim cáqui

Minha vó já quase morta

Minha mãe até a porta

Minha irmã até a rua

E até o porto meu pai

O qual não disse palavra durante todo o caminho

E quando eu me vi sozinho

Vi que não entendia nada

Nem de pro que eu ia indo

Nem dos sonhos que eu sonhava

Senti apenas que a mala de couro que eu carregava

Embora estando forrada

Fedia, cheirava mal

Afora isto ia indo, atravessando, seguindo

Nem chorando nem sorrindo

Sozinho pra Capital

Nem chorando nem sorrindo

Sozinho pra Capital

Sozinho pra Capital

Sozinho pra Capital

Sozinho pra Capital…

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A triste partida

Patativa do Assaré

Meu Deus, meu Deus

Setembro passou

Outubro e Novembro

Já tamo em Dezembro

Meu Deus, que é de nós,

Meu Deus, meu Deus

Assim fala o pobre

Do seco Nordeste

Com medo da peste

Da fome feroz

Ai, ai, ai, ai

A treze do mês

Ele fez experiência

Perdeu sua crença

Nas pedras de sal,

Meu Deus, meu Deus

Mas noutra esperança

Com gosto se agarra

Pensando na barra

Do alegre Natal

Ai, ai, ai, ai

Rompeu-se o Natal

Porém barra não veio

O sol bem vermeio

Nasceu muito além

Meu Deus, meu Deus

Na copa da mata

Buzina a cigarra

Ninguém vê a barra

Pois a barra não tem

Ai, ai, ai, ai

Sem chuva na terra

Descamba Janeiro,

Depois fevereiro

E o mesmo verão

Meu Deus, meu Deus

Entonce o nortista

Pensando consigo

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Diz: "isso é castigo

não chove mais não"

Ai, ai, ai, ai

Apela pra Março

Que é o mês preferido

Do santo querido

Senhor São José

Meu Deus, meu Deus

Mas nada de chuva

Tá tudo sem jeito

Lhe foge do peito

O resto da fé

Ai, ai, ai, ai

Agora pensando

Ele segue outra tria

Chamando a famia

Começa a dizer

Meu Deus, meu Deus

Eu vendo meu burro

Meu jegue e o cavalo

Nós vamos a São Paulo

Viver ou morrer

Ai, ai, ai, ai

Nós vamos a São Paulo

Que a coisa tá feia

Por terras alheia

Nós vamos vagar

Meu Deus, meu Deus

Se o nosso destino

Não for tão mesquinho

Cá e pro mesmo cantinho

Nós torna a voltar

Ai, ai, ai, ai

E vende seu burro

Jumento e o cavalo

Inté mesmo o galo

Venderam também

Meu Deus, meu Deus

Pois logo aparece

Feliz fazendeiro

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Por pouco dinheiro

Lhe compra o que tem

Ai, ai, ai, ai

Em um caminhão

Ele joga a famia

Chegou o triste dia

Já vai viajar

Meu Deus, meu Deus

A seca terrível

Que tudo devora

Lhe bota pra fora

Da terra natal

Ai, ai, ai, ai

O carro já corre

No topo da serra

Oiando pra terra

Seu berço, seu lar

Meu Deus, meu Deus

Aquele nortista

Partido de pena

De longe acena

Adeus meu lugar

Ai, ai, ai, ai

No dia seguinte

Já tudo enfadado

E o carro embalado

Veloz a correr

Meu Deus, meu Deus

Tão triste, coitado

Falando saudoso

Com seu filho choroso

Exclama a dizer

Ai, ai, ai, ai

De pena e saudade

Papai sei que morro

Meu pobre cachorro

Quem dá de comer?

Meu Deus, meu Deus

Já outro pergunta

Mãezinha, e meu gado?

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Com fome, sem trato

Mimi vai morrer

Ai, ai, ai, ai

E a linda pequena

Tremendo de medo

"Mamãe, meus brinquedo

Meu pé de fulô?"

Meu Deus, meu Deus

Meu pé de roseira

Coitado, ele seca

E minha boneca

Também lá ficou

Ai, ai, ai, ai

E assim vão deixando

Com choro e gemido

Do berço querido

Céu lindo azul

Meu Deus, meu Deus

O pai, pesaroso

Nos filho pensando

E o carro rodando

Na estrada do Sul

Ai, ai, ai, ai

Chegaram em São Paulo

Sem cobre quebrado

E o pobre acanhado

Procura um patrão

Meu Deus, meu Deus

Só vê cara estranha

De estranha gente

Tudo é diferente

Do caro torrão

Ai, ai, ai, ai

Trabaia dois ano,

Três ano e mais ano

E sempre nos prano

De um dia vortar

Meu Deus, meu Deus

Mas nunca ele pode

Só vive devendo

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E assim vai sofrendo

É sofrer sem parar

Ai, ai, ai, ai

Se arguma notícia

Das banda do norte

Tem ele por sorte

O gosto de ouvir

Meu Deus, meu Deus

Lhe bate no peito

Saudade lhe molho

E as água nos óio

Começa a cair

Ai, ai, ai, ai

Do mundo afastado

Ali vive preso

Sofrendo desprezo

Devendo ao patrão

Meu Deus, meu Deus

O tempo rolando

Vai dia e vem dia

E aquela famia

Não vorta mais não

Ai, ai, ai, ai

Distante da terra

Tão seca mas boa

Exposta à garoa

A lama e o pau

Meu Deus, meu Deus

Faz pena o nortista

Tão forte, tão bravo

Viver como escravo

No Norte e no Sul

Ai, ai, ai, ai

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Sampa Caetano Veloso

Alguma coisa acontece no meu coração

Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João

É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi

Da dura poesia concreta de tuas esquinas

Da deselegância discreta de tuas meninas

Ainda não havia para mim Rita Lee

A tua mais completa tradução

Alguma coisa acontece no meu coração

Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto

Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto

É que Narciso acha feio o que não é espelho

E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho

Nada do que não era antes quando não somos mutantes

E foste um difícil começo

Afasto o que não conheço

E quem vende outro sonho feliz de cidade

Aprende depressa a chamar-te de realidade

Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas

Da força da grana que ergue e destrói coisas belas

Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas

Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços

Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva

Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba

Mais possível novo quilombo de Zumbi

E os novos baianos passeiam na tua garoa

E novos baianos te podem curtir numa boa

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Alegria, alegria Caetano Veloso Caminhando contra o vento Sem lenço sem documento No sol de quase dezembro Eu vou

O sol se reparte em crimes Espaçonaves, guerrilhas Em Cardinales bonitas Eu vou

Em caras de presidentes Em grandes beijos de amor Em dentes pernas bandeiras Bomba e Brigitte Bardot

O sol nas bancas de revista Me enche de alegria e preguiça Quem lê tanta notícia? Eu vou

Por entre fotos e nomes Os olhos cheios de cores O peito cheio de amores vãos Eu vou

Por que não? Por que não?

Ela pensa em casamento E eu nunca mais fui à escola Sem lenço sem documento Eu vou

Eu tomo uma coca-cola Ela pensa em casamento E uma canção me consola Eu vou

Por entre fotos e nomes Sem livros e sem fuzil Sem fome sem telefone No coração do Brasil

Ela nem sabe até pensei Em cantar na televisão O sol é tão bonito Eu vou

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Sem lenço sem documento Nada no bolso ou nas mãos Eu quero seguir vivendo amor Eu vou

Por que não? Por que não?

© Editora Arlequim 60171588 BRMCA6700237

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Baião atemporal Gilberto Gil

No último pau-de-arara de Irará Um da família Santana viajará

Levará uma semana até chegar Junto com mais dois ou três outros cabras que estarão lá No último pau-de-arara de Irará

Se essa viagem comprida fosse um cordel Seria boa saída acabar no céu

Só que este conto que eu canto é pra lá de zen Não tem sentido, não serve pra nada e é pra ninguém Pra ninguém botar defeito e não ter porém

Basta pensar que Irará poderá não ser Que os paus-de-arara de lá já não têm porquê

Porque os tempos passaram e passarão Tudo que começa acaba, e outros cabras seguirão Cruzando o atemporal do tão do baião

© Gege Edições Musicais ltda (Brasil e América do Sul) / Preta Music (Resto do mundo) 64758141 BRMCA9300101

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Asa Branca Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira

Quando oiei a terra ardendo Qua fogueira de São João Eu perguntei a Deus do céu, uai Por que tamanha judiação

Que braseiro, que fornaia Nem um pé de prantação Por farta d'água perdi meu gado Morreu de sede meu alazão

Até mesmo a asa branca Bateu asas do sertão Então eu disse a deus Rosinha Guarda contigo meu coração

Hoje longe muitas léguas Numa triste solidão Espero a chuva cair de novo Para eu voltar pro meu sertão

Quando o verde dos teus oio Se espalhar na prantação Eu te asseguro não chore não, viu Que eu voltarei, viu Meu coração

© Addaf 63684349 BRMCA7100141

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Olha pro céu

Luiz Gonzaga e José Fernandes

Olha pro céu, meu amor

Vê como ele está lindo

Olha pra aquele balão multicor

Como no céu vai sumindo

Foi numa noite igual a esta

Que tu me deste o coração

O céu estava assim em festa

Porque era noite de São João

Havia balões no ar

Xote, baião no salão

E no terreiro, o teu olhar

Que incendiou

Meu coração

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Baião Luiz Gonzaga

Eu vou mostrar pra vocês

Como se dança o baião

E quem quiser aprender

É favor prestar atenção

Morena chega pra cá

Bem junto ao meu coração

Agora é só me seguir

Pois eu vou dançar o baião

Eu já dancei balancê

Xamego, samba e xerém

Mas o baião tem um quê

Que as outras dancas não têm

Oi quem quiser é só dizer

Pois eu com satisfação

Vou dançar cantando o baião

Eu já cantei no Pará

Toquei sanfona em Belém

Cantei lá no Ceará

E sei o que me convém

Por isso eu quero afirmar

Com toda convicção

Que sou doido pelo baião.

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De Onde Vem O Baião? Gilberto Gil

Debaixo do barro do chão da pista onde se dança

Suspira uma sustança sustentada por um sopro divino

Que sobe pelos pés da gente e de repente se lança

Pela sanfona afora até o coração do menino

Debaixo do barro do chão da pista onde se dança

É como se Deus irradiasse uma forte energia

Que sobe pelo chão

E se transforma em ondas de baião, xaxado e xote

Que balança a trança do cabelo da menina, e quanta alegria!

De onde é que vem o baião?

Vem debaixo do barro do chão

De onde é que vêm o xote e o xaxado?

Vêm debaixo do barro do chão

De onde vêm a esperança, a sustança espalhando o verde dos teus olhos pela

plantação?

Ô-ô

Vêm debaixo do barro do chão