renata de baco hartmann - w3.ufsm.brw3.ufsm.br/ppgexr/images/dissertação_renata_ufsm.pdf · the...

96
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS RURAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EXTENSÃO RURAL Renata de Baco Hartmann A QUESTÃO AMBIENTAL A PARTIR DE UMA CONSTITUIÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA NO MUNICÍPIO DE MATA - RS Santa Maria, RS 2016

Upload: nguyenkien

Post on 02-Jan-2019

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CINCIAS RURAIS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EXTENSO RURAL

Renata de Baco Hartmann

A QUESTO AMBIENTAL A PARTIR DE UMA CONSTITUIO SCIO-HISTRICA NO MUNICPIO DE MATA - RS

Santa Maria, RS

2016

Renata de Baco Hartmann

A QUESTO AMBIENTAL A PARTIR DE UMA CONSTITUIO SCIO-

HISTRICA NO MUNICPIO DE MATA - RS

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Ps-Graduao em Extenso Rural, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), como requisito parcial para obteno do grau de Mestra em Extenso Rural.

Orientador: Prof. Dr. Jos Geraldo Wizniewsky

Santa Maria, RS 2016

___________________________________________________________________ 2016 Todos os direitos autorais reservados a Renata de Baco Hartmann. A reproduo de partes ou do todo deste trabalho s poder ser feita mediante a citao da fonte. E-mail: [email protected]

mailto:[email protected]

AGRADECIMENTOS

Primeiramente FORA TEMER!

Sou grata s polticas voltadas para a Educao que tornaram possvel que eu,

assim como tantas outras mulheres, tivessem acesso educao gratuita e de

qualidade, nesta Universidade Federal de Santa Maria, assegurando a construo

da cidad, da agrnoma e da Mestra em Extenso Rural; e ainda cito:

Marcos, Juliana e Marcele, que dividem comigo o dia a dia em famlia, e que me

fazem aprender sobre medo, responsabilidade e amor;

Minhas mes, Joaquina e Neli, cujo incentivo foram, e so, fundamentais;

Daniela, Odair e Lucas, meus companheiros de jornada;

Dbora e Davi, cuja chegada tornou os dias daqueles que eu amo, mais felizes;

Lorenzo, para quem pretendo nunca deixar de ser a tia Nata;

Colegas fundadores do Grupo de Agroecologia Terra Sul (GATS), pelo encontro de

sonhos e ideais e por terem dado sentido vida profissional, mostrando-me, nos

momentos de incerteza, que lutar por uma sociedade inclusiva das tarefas, a mais

importante;

Laila Drebes, Nayara Pasqualotto, Tanny Bohner, Rodrigo Faccin, Carima Atiyel,

Ezequiel Redin, Laura Possani, Isabel Cristina da Silva, Bernardo Rodrigues da

Silva, meus colegas no PPGExR, de quem a generosidade e a empatia transborda;

Aida Simonetti, Lenir Vaz, Luisa Veleda, Guilherme Tambara, Fernando Tel, que

emprestaram-me seu tempo naqueles momentos em que conciliar vida profissional,

familiar e acadmica quase me tiraram a sanidade mental;

Demais colegas da Gerncia Regional Centro- FEPAM-DBIO da SEMA (Porto,

Floresta, Luiz Alberto, Washington, Mallmann, Caroline, Vanessa), que me apoiaram

no decorrer do Mestrado;

Coordenao, docentes, funcionrios e colegas do PPGExR, pelo auxlio e por

terem me ensinado muitas coisas sobre eloquncia e prtica;

Professor Vicente, nesta data coordenador do PPGExR, por ser um exemplo de

humanidade e desvelo;

Professor Z Geraldo, pela compreenso e estmulo; por ter tido sensibilidade e

empatia, essenciais para que eu conclusse essa caminhada;

Professora Gisele Guimares, por ter dado a oportunidade de estar em sala de aula

tantas e tantas vezes, oportunizando-me a experincia enriquecedora da docncia;

Professoras Janana Balk Brando (UFSM) e Lorena Cndido Fleury (UFRGS), que

generosamente aceitaram participar da banca examinadora e, assim, contriburam

para o enriquecimento desse trabalho;

Professor Clayton Hillig (UFSM) por sua compreenso ao aceitar participar do

processo, como membro suplente da banca examinadora;

Entrevistados, que prontamente se dispuseram a colaborar com a pesquisa;

A todos aqueles que, de alguma forma, contriburam para a realizao desse

trabalho, e no esto nominalmente citados, minha gratido!!!!

Uma das poucas leis frreas da histria que os luxos tendem a se tornar

necessidades e a gerar novas obrigaes. Uma vez que as pessoas se acostumam

a um certo luxo, elas o do como garantido. Passam a contar com ele. Acabam por

chegar a um ponto em que no podem viver sem.

Uma breve histria da humanidade, Sapiens Yuval Noah Harari

RESUMO

A QUESTO AMBIENTAL A PARTIR DE UMA CONSTITUIO SCIO-HISTRICA NO MUNICPIO DE MATA- RS

AUTORA: RENATA DE BACO HARTMANN ORIENTADOR: JOS GERALDO WIZNIEWSKY

A dissertao aqui apresentada vai tratar, de modo geral, sobre como foram institudos, no municpio de Mata - RS, os espaos de discusso, relativamente a questo ambiental O municpio, que est geograficamente localizado na regio central do Rio Grande do Sul, resultado de uma srie de acontecimentos histricos, que vo desde a chegada do colonizador luso-portugus (considerado como agente fundante do lugar), passando pelas intervenes impostas por outros imigrantes europeus, especialmente alemes e italianos. Das aes desses atores sociais derivam a modificao na paisagem, sobretudo com a supresso vegetal tanto s margens do Rio Toropi, para instalao da lavoura arrozeira, como nas reas de altitude mais elevada, onde so cultivados atualmente, entre outros, o milho e o tabaco; pode-se afirmar, ainda, que as formas como a questo ambiental tem sido encarada pelas presentes geraes, derivam deste entrelaamento de relaes homem-homem e homem-natureza. No obstante, objetiva-se, nesta pesquisa: a) compreender, atravs da histria do lugar, como se deu a construo dos espaos sociais do grupo, relativamente a questo ambiental; b) identificar, no mbito do trabalho, os espaos nos quais o grupo de agricultores busca suporte para atendimento de suas demandas, no que tange questo ambiental e ao cumprimento da legislao. Metodologicamente adotou-se abordagem construcionista, tendo em vista que importa, neste estudo, o aspecto eminentemente social da questo ambiental, o que equivale a dizer que o interesse recai sobre como estas questes ambientais tem sido conduzidas, e se este percurso histrico (entremeado por uma ampla srie de fatores culturais, econmicos, polticos), foi suficiente para que as questes ambientais chegassem a ser compreendidas, nesta comunidade, como questes pblicas. E, como pano de fundo, utilizou-se a Histria Ambiental para traar uma linha espao-tempo acerca das pessoas e da paisagem do lugar de estudo. Diante dessas caractersticas, adotou-se a investigao de carter qualitativo com base emprica. Os dados foram coletados atravs de entrevistas, pesquisa bibliogrfica, pesquisa documental e observao. As principais concluses do estudo ser referem diretamente ao fato de os grupos analisados no manifestarem grandes inquietaes acerca das questes ambientais, muito provavelmente por conta da historiografia do lugar, fundamentada na valorizao do trabalho e uso dos recursos naturais como insumos para as atividades

agrcolas. Palavras-chave: Histria Ambiental. Construcionismo. Meio Ambiente.

ABSTRACT

THE ENVIRONMENTAL ISSUE FROM A SOCIO-HISTORICAL CONSTITUTION IN MATA - RS

AUTHOR: RENATA DE BACO HARTMANN ADVISER: JOS GERALDO WIZNIEWSKY

The dissertation here presented will deal, in general, about how the discussion spaces, in relation to the environmental issue. The city, which is geographically located in the central region of Rio Grande do Sul, is a result of a series of historical events, that happen since the arrival of the Luso-portuguese colonizer (considered the citys funding agent) passing through the interventions imposed by the other European immigrants, specially Germans and Italians. By the actions of these social actors, drift the modification of the picture, overall with the vegetal suppression in the margins of Toropi River, for the installation of rice farming, and in the highest altitude, where corn, tobacco and others are actually cultivated. It can still be stated that, the means in how the environmental issue has been faced by the present generations, derive from this interweaving relations man-man and man-nature. Nevertheless, the objective of this research is: a) to understand, through the history of the place, how was the construction of the social group spaces, regarding the environmental issue; b) to identify, in the scope of work, the spaces in which the group of agriculturists search for attend of their demands, with regard to environmental issues and compliance with the law. Methodologically we adopted the constructionist approach, considering that in this study the eminently social aspect of the environmental issue, it is equivalent to say that the interest lies in how these environmental issues have been conducted, and if this historical route (Interspersed with a wide range of cultural, economic, and political factors), was the sufficient to understand the environmental issue, in this community, as public questions. Moreover, as background, the environmental history has been used to draw a line space-time around the people and the picture of the study place. In front of these characteristics, a qualitative research with empirical basis was adopted. The data was collected through interviews, bibliographical research, documental and observation research. The main conclusions of the study refer directly to the fact that the groups analyzed do not express great concern around the environmental issues, most probably because of the historiography of the place, substantiated the valorization of the work and the usage of natural resources as inputs to the agricultural activities. Keywords: Environmental History. Constructionism. Environment.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

rea de Preservao Permanente (APP)

Arseniato de Cobre Cromatada (CCA)

Associao dos Fumicultores do Brasil (AFUBRA)

Associao Gacha de Proteo ao Ambiente Natural (AGAPAN)

Centro de Cincias Rurais (CCR)

Cia. Estadual de Energia Eltrica do Rio Grande do Sul (CEE)

Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA)

Conselho Regional de Desenvolvimento (COREDE)

Constituio Federal (CF)

Empresa de Assistncia Tcnica e Extenso Rural (EMATER).

Fundao Estadual de Proteo Ambiental Henrique Luiz Roessler (FEPAM)

Grupo de Agroecologia Terra Sul (GATS)

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE),

Ministrio do Meio Ambiente (MMA)

Organizao No Governamental (ONG)

Pequena Central Hidreltrica (PCH)

Plano Est. De Regularizao de Atividades Irrigantes (PERAI)

Poltica Nacional de Meio Ambiente (PNMA)

Produto Interno Bruto (PIB)

Programa de Ps Graduao em Extenso Rural (PPGExR)

Revista Novos Rumos Sociolgicos (NORUS)

Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR)

Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA)

Termo de Compromisso Ambiental (TCA)

Universidade Federal de Pelotas (UFPel)

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

SUMRIO

1 INTRODUO GERAL.................................................................................................. 12

1.1 ASPECTOS METODOLGICOS ADOTADOS NA PESQUISA .................. 17 2.1 O LOCAL DE ESTUDO: MATA - RS ............................................................... 19 2.2 REFERENCIAL TERICO .............................................................................. 24

2 APROPRIAO DO TERRITRIO DE MATA - RS ...................................................... 34 2.1 UMA BREVE FALA SOBRE A PRESENA INDGENA .................................. 34 2.2 A SAGA DOS SILVA PEREIRA: A OCUPAO DAS TERRAS S MARGENS DO RIO TOROPI ................................................................................................... 36 2.3 A HISTRIA GANHA OUTRAS CORES E OUTRAS NOTAS: A IMIGRAO EUROPEIA ............................................................................................................ 40 2.4 A CONSTRUO DA VIA FRREA E A INAUGURAO DA ESTAO FRREA EM MATA - RS ....................................................................................... 44 2.5 A MODERNIZAO DA LAVOURA ARROZERIA NO MUNICPIO DE MATA - RS .......................................................................................................................... 49

3 A QUESTO AMBIENTAL NO MUNICPIO DE MATA - RS ........................................ 55 3.1 A PARTICIPAO DO AGRICULTOR NA FORMULAO DE POLTICAS PARA O MEIO AMBIENTE .................................................................................... 55 3.2. LICENCIAMENTO E FISCALIZAO: tenho at medo dessa gente... .......... 60 3.3. O PAPEL DA INSTITUIO FINANCEIRA: o banco pede a licena.............. 64 3.4. A PROBLEMTICA AMBIENTAL NA VISO DO AGRICULTOR .................. 66

CONCLUSES ................................................................................................................. 77

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................. 83

APNDICES ..................................................................................................................... 88

ANEXOS ........................................................................................................................... 92

1 INTRODUO GERAL

Ao rever todo o caminho percorrido durante estes dois anos e meio, enquanto

Mestranda no Programa de Ps Graduao em Extenso Rural (PPGExR), fora

possvel perceber que este era o momento oportuno para reflexes mais profundas

acerca de toda a trajetria construda at ento, no s profissional como tambm

acadmica e pessoal.

Assim, voltando nas dcadas de 1980 e 1990, revisito a infncia cercada

pelas lavouras de arroz irrigado, por ter nascido e crescido em Mata, um municpio

da regio central do Rio Grande do Sul, na margem do rio Toropi, cuja vrzea h

muito tempo cultivada com arroz. Ou seja, ter vivido em meio ao movimento tpico

da lavoura de arroz, e rodeada por pessoas que trabalhavam na terra e dela tiravam

seu sustento.

E dentre as lembranas recorrentes, incluem-se as imagens dos arrozais j

em cachos dourados, prontos para a colheita, este que sempre fora o instante mais

esperado por todos.

Ainda, na dcada de noventa, mais precisamente em junho de 1992,

momento em que ocorria a Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente

e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, fora despertado, por esta

Mestranda, j no ensino fundamental, a preocupao com temas como o

aquecimento global, a qualidade do ar, efeito estufa, bem como a preservao dos

recursos naturais.

Por sua vez, o ensino mdio consolidou a inteno de trabalhar questes

ligadas ao meio rural e ao meio ambiental, o que foi determinante para a escolha da

carreira de Agronomia. J no ano de 1998, ano de ingresso ao Ensino Superior,

ento caloura, foi adentrado em um espao novo e que, acreditava, seria profcuo

em promover reflexes pertinentes para que, egressa, tivesse condies de

compreender as mudanas globais que estavam em curso, permitindo fossem

assimiladas novas mentalidades e habilidades, condio que seria fundamental na

resoluo de problemas sociais e ambientais, que certamente estariam presentes no

dia-a-dia profissional.

Entretanto, foi possvel, desde o incio, perceber que se tratava de uma iluso,

pois j nos primeiros semestres do curso verificou-se que o projeto poltico

13

pedaggico tinha como objetivo a formao de vendedores de um pacote

tecnolgico fechado e destinado aos grandes produtores de commodities1.

Porm, manifestadamente, havia excees no curso, e por afinidades de

ideias mesmo em meio s incertezas, foi possvel reunir-se a um grupo de alunos e

professores que tinham a mesma viso de mundo, o que permitiu que, em abril de

2000, fosse fundado o Grupo de Agroecologia Terra Sul (GATS), consistente em um

espao para pesquisa, extenso e discusses junto ao Centro de Cincias Rurais

(CCR) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Desta forma, egressa da UFSM e almejando dedicar-se rea ambiental, foi

possvel participar de uma seleo pblica em 2009, que resultou na aprovao e

convocao para ocupar, como Engenheira Agrnoma, o cargo de Analista

Ambiental da Fundao Estadual de Proteo Ambiental Henrique Luiz Roessler

(FEPAM), cargo ocupado at os dias atuais.

E, nestes sete anos de atuao como Analista Ambiental, dia aps dia, ao

perscrutar o andamento dos processos de licenciamento ambiental e os atos

fiscalizatrios da Fundao, tanto quanto a forma como os empreendedores lidavam

com a questo ambiental em suas atividades, especialmente aqueles que atuavam

em atividades agrossilvipastoris, outros tantos questionamentos emergiram. Alis,

eram tantos questionamentos que dificultavam o andamento da atividade

profissional, que se resume em fazer cumprir a legislao ambiental.

E mais, visando ordenar todo a experincia adquirida e obter respostas para

alguns destes questionamentos, em 2014 houve o ingresso como Mestranda no

Programa de Ps Graduao em Extenso Rural da UFSM.

Outrossim, o processo de construo de um trabalho acadmico, inclinado

para as cincias sociais, para quem era habituado letra fria dos textos legais, sem

dvida alguma foi desafiador, da mesma forma que se mostrou desafiador, diante de

to variadas fontes e de um emprico congruente, superar as vulnerabilidades da

interpretao.

De todo modo, o fator decisivo para a escolha da temtica que daria flego

para a escrita desta dissertao foi, sem dvida, a trajetria profissional. Esta que

tambm norteou o aprofundamento terico necessrio para a construo do

1 Nota: Commodities so produtos "in natura", cultivados ou de extrao mineral, que podem ser

estocados por certo tempo sem perda sensvel de suas qualidades, fonte http://www.economiabr.net/economia/5_commodities.html 2 Nota: Disponvel em http://www.comiteibicui.com.br/mapas/U50%20-

14

problema de pesquisa. A opo pela temtica ambiental reflete, alm do mais, a

importncia que esta dimenso assume em diversas pesquisas no Brasil e Amrica

Latina. Neste caso, verifica-se uma grande profuso de estudos voltados a investigar

as diferentes formas de interveno humana sobre o ambiente. Acerca da produo

Latino-americana, FERREIRA et. al. (2011) afirmam que o meio ambiente vem

assumindo maior magnitude no campo de pesquisa do continente, abarcando, nos

trabalhos realizados, grande gama de abordagens que do conta da relao

natureza-sociedade, mostrando que cada vez mais os pesquisadores esto

atentando para a relao homem e natureza. A produo acadmica, foco das

pesquisas de FERREIRA et. al. (2011), recai, sobretudo, sobre a produo da

Argentina, Brasil, Chile, Colmbia, Equador, Mxico e Uruguai, e as anlises desta

produo tem indicado certa similaridade com o que est sendo produzido na

comunidade cientfica mundial. Deve-se considerar, no entanto, que a produo

Latino-americana traz consigo temas alm do ambiente natural, j que tem tratado,

ainda, da temtica ligada desigualdade social, biodiversidade e democracia, entre

outros ligados realidade emprica dos locais de estudo.

No Rio Grande do Sul, o tema tem sido abordado na Universidade Federal de

Pelotas (UFPel), responsvel pela edio da Revista Novos Rumos Sociolgicos

(NORUS). Na UFSM, em pesquisa aos registros junto Biblioteca Central,

possvel encontrar cerca de quatro mil documentos, entre teses, dissertaes,

monografias e trabalhos finais de graduao, cujos temas de maior incidncia so:

educao ambiental, direito ambiental, movimento ambientalista, biodiversidade,

impactos dos agrotxicos, impactos de atividades sobre o ambiente, resduos

slidos, polticas pblicas, entre outros. Do mesmo modo, a Universidade Federal do

Rio Grande do Sul (UFRGS), entre teses e dissertaes, tem publicado trabalhos

relevantes na rea de ambiente e sociedade, abordando temas como a presena

humana em ambientes protegidos; conflitos ambientais; percepo ambiental;

relaes sociedade-natureza; grandes empreendimentos e seus impactos

socioambientais; licenciamento ambiental, entre outros.

O esforo terico que foi empreendido, no intuito de compreender de forma

mais satisfatria como a questo ambiental est posta em diversas realidades e

situaes, bem como as observaes, desta vez baseadas na vivncia profissional,

fizeram emergir algumas questes norteadoras, que para registro, so: O agricultor

tem oportunidade de discutir seu processo produtivo, considerando para alm da

15

escolha da tecnologia, tambm a questo do manejo dos recursos naturais e sua

proteo? Qual o papel assumido pelos rgos ambientais neste cenrio? Quais

so os demais agentes que atuam junto dos agricultores, influenciando-os? A

histria agrria do municpio pode ter influenciado o modo como as pessoas tomam

suas decises, ainda hoje?

Com isto em mente, optou-se por pesquisar a histria do municpio de Mata,

no Rio Grande do Sul, desde seus primeiros colonizadores, a fim de responder, pelo

menos em parte, as inquietaes descritas at aqui. Sustentando-se no fato de Mata

ser um municpio eminentemente agrcola e que resulta de um processo mais amplo

de ocupao do territrio brasileiro. O local de pesquisa est, em dias atuais,

constitudo por lavouras de arroz s margens do Rio Toropi, cuja apropriao est

intimamente relacionada com a chegada dos colonizadores luso-brasileiros; e por

pequenos agricultores, ocupantes da regio de altitude mais elevada do municpio,

cuja ocupao deu-se posteriormente da vrzea, e que se caracteriza pela

descendncia europeia, considerando o processo de imigrao.

Uma vez tendo definido que a historiografia constitui-se como elemento

fundante para anlise e interpretao dos acontecimentos da atualidade, optou-se

por utilizar conceitos chave de um campo especfico da histria, reconhecidamente

denominado como Histria Ambiental.

No entanto, a Histria Ambiental sozinha, no deveria ser suficiente para que

fossem respondidos os questionamentos que deram origem ao trabalho. Assim,

visando compreender como a questo ambiental est inserida nas discusses do

grupo selecionado para o estudo, utilizou-se a abordagem construcionista da

sociologia ambiental, tendo em vista que importa neste estudo o aspecto

eminentemente social da questo ambiental. Isso equivale a dizer que o interesse

repousa exatamente em como estas questes ambientais tem sido conduzidas, e se

este percurso histrico (entremeado por uma ampla srie de fatores culturais,

econmicos, polticos), foi suficiente para que as questes ambientais chegassem a

ser consideradas questes pblicas.

No decorrer da pesquisa, aspectos relacionados formao do territrio,

modernizao da agricultura, legislao ambiental, gesto democrtica do meio

ambiente, ao dos rgos ambientais, conflitos ambientais e o papel das

instituies financeiras, foram aparecendo nas falas dos entrevistados e vo dar

16

corpo ao trabalho, que alm da parte introdutria e das consideraes finais, conta

com outros dois captulos.

O captulo 2 foi elaborado para analisar as transformaes pelas quais

passou o territrio que hoje constitui o municpio de Mata, visando compreender a

magnitude que esse processo histrico assume e em que medida determina as

formas como os agricultores atuam em seus processos produtivos, relativamente ao

manejo dos recursos naturais. A ateno recai, neste captulo, sobre os processos

de apropriao do territrio, passando rapidamente pela presena indgena e com

nfase na ocupao efetivada pelos luso-brasileiros, capitaneada pela doao de

terras no sistema sesmarial. Discute-se, ainda, a chegada dos imigrantes europeus

e os desdobramentos das aes destes sobre a floresta. Por fim, cronologicamente

mais recente, trata da adoo da modernizao conservadora da agricultura, e sua

ligao histrica com os fatos anteriormente narrados e suas consequncias sobre o

ambiente.

No terceiro captulo, valendo-se das falas dos entrevistados, a questo

ambiental aparece em sua face jurdica, dando conta de aspectos ligados

legislao ambiental, determinada pelo instrumento de gesto que o licenciamento

ambiental. A forma como o grupo participa dos mecanismos de tomada de deciso,

dadas pelo princpio da gesto democrtica do meio ambiente tambm discutida

neste captulo, bem como o papel dos rgos ambientais e outras instituies, como

os agentes financeiros (os bancos), na determinao dos espaos de discusso

sobre o tema.

O objetivo geral desta pesquisa se resume em responder a seguinte questo:

possvel caracterizar as formas como a questo ambiental assumida por um

grupo, a partir de sua constituio scio-histrica? No obstante, objetiva-se,

especificamente: a) compreender, atravs da histria do lugar, como se deu a

construo dos espaos sociais do grupo, relativamente a questo ambiental; b)

identificar, no mbito do trabalho, os espaos nos quais o grupo de agricultores

busca suporte para atendimento de suas demandas, no que tange questo

ambiental e ao cumprimento da legislao.

17

1.1 ASPECTOS METODOLGICOS ADOTADOS NA PESQUISA

Para alcanar a magnitude dos fatores intrincados neste estudo, definiu-se

um carter qualitativo para o levantamento de dados e sua posterior anlise e

interpretao. O estudo detm uma base emprica, ao retratar um grupo de

agricultores do municpio de Mata, no Rio Grande do Sul. Para MINAYO, (2015), a

anlise qualitativa trabalha, juntamente com os significados, tambm os motivos, as

aspiraes, as crenas, os valores e atitudes, o que parece ser o cerne para a

determinao das aes deste grupo, no que tange a questo ambiental. Por sua

vez, em termos de modalidade de investigao, foi utilizado o estudo de caso que,

para Gil (2011), consiste em estudo emprico destacado por suas profundas e

detalhadas imerses nas realidades sociais, atravs da utilizao de diversas

tcnicas de coleta de dados combinadas, envolvendo tanto dados primrios

(entrevistas), como dados secundrios (pesquisa bibliogrfica e pesquisa

documental).

As entrevistas foram organizadas na forma de roteiro semiestruturado,

caracterizando-se por uma estruturao mnima atribuda por uma relao de pontos

de interesse ordenados e relacionados, os quais conduziram o desenvolvimento das

mesmas (GIL, 2011). As entrevistas foram realizadas entre meados de 2015 e 2016,

e para as quais foram utilizados roteiros (Apndices A e B), com perguntas centrais,

cujo intuito foi o de guiar a entrevista. Quanto s informaes, estas foram todas

abordadas qualitativamente, bem como tratadas conforme a metodologia de anlise

de contedo, consistente na organizao e sistematizao das informaes atravs

de concomitante descrio, inferncia e interpretao (BARDIN, 2011).

Assim, foram selecionados cinco arrozeiros, ocupantes da vrzea do Toropi e

nove agricultores, descendentes dos imigrantes europeus, ocupantes da regio de

altitude mais elevada. Participaram, alm destes, um dirigente do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais (STR), um representante do rgo ambiental municipal; um

representante do servio oficial de extenso rural do Estado, a Empresa de

Assistncia Tcnica e Extenso Rural (EMATER) e um funcionrio da Secretaria de

Desenvolvimento Rural e Cooperativismo do RS (SDR).

Foram utilizados, na coleta de dados histricos, os relatos orais do diretor do

Museu Fragmentos do Tempo e de uma descendente direta da famlia Silva Pereira,

que atuou como agente fundador do municpio. As fontes orais utilizadas como fonte

18

de dados nesta pesquisa so definidas por FERREIRA (2002), como sendo material

alternativo recolhido por um pesquisador para as necessidades de sua pesquisa. A

autora explica que:

Uma avaliao mais detida do campo do que tem sido chamado de histria oral nos permite detectar duas linhas de trabalho que, embora no excludentes e entrecruzadas em muitos casos, revelam abordagens distintas. A primeira delas utiliza a denominao histria oral e trabalha prioritariamente com os depoimentos orais como instrumentos para preencher as lacunas deixadas pelas fontes escritas. Essa abordagem tem-se voltado tanto para os estudos das elites, das polticas pblicas implementadas pelo Estado, como para a recuperao da trajetria dos grupos excludos, cujas fontes so especialmente precrias. (FERREIRA, 2002, p. 327)

De fato, os relatos orais, baseados nas lembranas das pessoas acerca dos

fatos do passado, podem ser utilizados como instrumento de apoio anlise e

interpretao dos dados levantados no estudo, servindo como testemunho vivo dos

fatos passados e que, por isso, podem revelar facetas que os documentos escritos

no so capazes de realizar.

Em termos de amostragem, foi um estudo de caso de meio geogrfico

selecionado atravs de critrios intencionais (PIRES, 2010), em detrimento de um

delineamento de amostras representativas que a estatstica analtica poderia

requerer. Conforme MINAYO (2015) indica, a ideia de amostragem no mais

indicada pra certas pesquisas sociais, especialmente as de cunho qualitativo. Isto se

deve ao fato que o universo em questo apontar para as representaes,

conhecimentos, prticas, comportamentos e atitudes dos envolvidos na pesquisa. O

pesquisador deve estar sensvel ao meio no qual busca as informaes para que,

assim, atente para o momento de estancar a coleta de dados.

Abaixo, o Quadro 1 traz um breve perfil dos entrevistados, cujos critrios de

seleo foram: ser descendente dos primeiros colonizadores que ocupam a regio

atravs da doao de sesmarias; ser descendente dos imigrantes europeus;

trabalhar na agricultura ou ter uma base de dados confivel para utilizao (caso do

Museu Fragmentos do Tempo). Os demais agentes (rgo ambiental municipal,

EMATER, SDR e STR) foram selecionados de acordo com a sua atuao no

municpio, considerando-se tempo de servio ou posio dentro da instituio. No

caso do STR, foi selecionado o Presidente do sindicato

19

Para substituir os nomes verdadeiros de cada agente entrevistado, foram

utilizadas letras do alfabeto.

Quadro 1- Configurao geral do grupo de entrevistados.

Entrevistado Idade Gnero Cultivos rea

(ha)

A 59 Masculino Fumo, milho,

feijo, mandioca

12

B 64 Feminino Fumo, milho,

feijo, mandioca,

batata

10

C* 30 Feminino Fumo, milho 15

D 44 Masculino Fumo, milho, feijo 4

E 46 Feminino Fumo, milho, feijo 30

F 71 Masculino Fumo, milho, feijo 3

G 46 Feminino Fumo, milho, feijo 4

H 37 Masculino Pastagem, milho 15

I 35 Masculino Pastagem, milho, mandioca, feijo

10

J 48 Masculino Arroz, soja,

pastagem

90

K 64 Masculino Arroz 70

L 36 Masculino Arroz 85

M 44 Masculino Arroz, soja 50

N 46 Masculino Arroz, soja 30

Fonte: Dados da pesquisa, HARTMANN (2016); *desenvolve, na propriedade, bovinocultura de leite e suinocultura.

2.1 O LOCAL DE ESTUDO: MATA - RS

Para caracterizar o municpio, cumpre registrar que o mesmo possui uma

rea territorial de 311,884 Km, e est localizado na regio central do estado do Rio

Grande do Sul, na Depresso Perifrica Sul-Rio-Grandense e nos Planaltos e

20

Chapadas da Bacia do Paran, entre as latitudes 29 27 01 S e 29 38 08 S e

longitudes 54 20 01 W e 54 34 20 W. O municpio apresenta uma rede de

drenagem constituda por rios perenes, sendo banhado pelo Rio Toropi e seus

afluentes, que so os arroios Guacatunga, Igaret, Panta, Tororaipi, Poraima, Serto

de Mata e Canoa; pertence Regio Hidrogrfica do Rio Uruguai, Bacia Hidrogrfica

do Rio Ibicu (Figura 1), de acordo com SIMIONI e WOLLMANN (2013). A malha

hdrica assume papel relevante, pois, nas suas vrzeas, so cultivadas as lavouras

de arroz, as quais apresentam importncia significativa na matriz produtiva municipal

(MORAES, 2009).

Figura 1- Localizao geogrfica da Bacia do Rio Ibicu.

Fonte: Pgina do comit de bacia hidrogrfica do Ibicu

2.

2 Nota: Disponvel em http://www.comiteibicui.com.br/mapas/U50%20-

%20Bacia%20Hid.%20rio%20Ibicui.JPG, acesso em janeiro de 2016.

http://www.comiteibicui.com.br/mapas/U50%20-%20Bacia%20Hid.%20rio%20Ibicui.JPGhttp://www.comiteibicui.com.br/mapas/U50%20-%20Bacia%20Hid.%20rio%20Ibicui.JPG

21

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), o

municpio contava, em 2015, com uma populao estimada em 5.159 habitantes,

cuja principal atividade econmica concentra-se na agricultura, conforme pode ser

verificado atravs da Figura 2, que d uma ideia geral relativamente ao Produto

Interno Bruto (PIB) e a participao dos setores: agropecurio, industrial e de

prestao de servios na economia municipal.

Figura 2- Produto Interno Bruto, Mata - RS.

Fonte: IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

3.

Como possvel perceber, o municpio detm grande aporte de entrada de

recursos financeiros que se d atravs da agricultura, de onde advm sua relevncia

3 Nota: Disponvel em

http://cidades.ibge.gov.br/painel/economia.php?lang=&codmun=431210&search=rio-grande-do-sul|Mata|infogr%E1ficos:-despesas-e-receitas-or%E7ament%E1rias-e-pib, acesso em junho de 2016.

http://cidades.ibge.gov.br/painel/economia.php?lang=&codmun=431210&search=rio-grande-do-sul|mata|infogr%E1ficos:-despesas-e-receitas-or%E7ament%E1rias-e-pibhttp://cidades.ibge.gov.br/painel/economia.php?lang=&codmun=431210&search=rio-grande-do-sul|mata|infogr%E1ficos:-despesas-e-receitas-or%E7ament%E1rias-e-pib

22

tanto para a considerao na pesquisa acadmica, quanto relativamente

considerao e at devoo da comunidade sua populao agricultora.

De acordo com anlises de SIMIONI; WOLLMANN (2013), possvel afirmar

que o municpio de Mata - RS, possui uma topografia bastante diversificada, estando

situado tanto em regies de planalto quanto de depresso, caracterstica que tem

proporcionado um espao rural que se organiza em funo das potencialidades e

das limitaes inerentes a esses compartimentos geomorfolgicos. Para alm das

configuraes que so visualizadas com facilidade, temos ai uma matriz produtiva

distinta, onde so cultivadas desde lavouras temporrias at a continuidade da

pecuria, herana dos primeiros colonizadores, observando-se as particularidades

dos aspectos fsico-naturais atrelados questo sociocultural. Os autores, ao

finalizar o mapeamento geomorfolgico, concluem, tambm, que as lavouras

arrozeiras esto posicionadas de forma a tangenciar o Rio Toropi, ocupando a sua

plancie fluvial, por esta ser de declividade quase plana. A parte norte do municpio,

onde o relevo composto por planaltos e chapadas da Bacia do Paran e pelo

rebordo do Planalto, a declividade consideravelmente alta, sendo caracterizada

como fortemente ondulada ou montanhosa. O mapa de uso de ocupao do solo

confeccionado por SIMIONI; WOLLMANN, (2013), divide o municpio nas seguintes

classes: rea urbana, florestas (primaria, secundria), outras culturas (soja, fumo,

milho e feijo), vegetao rasteira (Bioma Pampa) e lavouras de arroz. Outras

culturas como soja, milho, fumo e feijo, so muito produzidas nas reas com

altitudes elevadas e com declividades maiores que 5%, sendo o rebordo do planalto

e as chapadas tomadas pelo cultivo de fumo, feijo e milho. Enquanto que na

depresso perifrica Sul Rio-Grandense apresenta-se um grande cultivo de soja.

Para DIAS; TRENTIN; SCCOTI (2015), relativamente ao uso da terra, o

municpio est dividido em reas de campos, que so constitudos por vegetao

predominantemente formada por gramneas e vegetao de pequeno porte,

associadas ao Bioma Pampa. So encontradas reas formadas por pastagens

implantadas, onde a atividade principal a criao de rebanhos. Constituem o uso

predominante no municpio, abrangendo 39,3% da rea total. Por sua vez, as reas

de florestas existentes apresentam-se como remanescentes do Bioma Mata

Atlntica, as Matas ciliares ou Matas de galeria que circundam as drenagens, bem

como, as reas de reflorestamento e ainda as reas destinadas silvicultura,

principalmente para o plantio de eucalipto. Essa classe abrange 38,6% da rea total

23

do municpio. J as lavouras abrangem diferentes tipos de culturas existentes no

municpio. As maiores lavouras esto associadas s reas planas prximas ao rio

Toropi, marcando tipicamente o cultivo de arroz. J nas pores mais acidentadas

do relevo predominam as lavouras de fumo e as pequenas propriedades com

culturas de subsistncia e/ou de mercado local, tais como o feijo, mandioca, entre

outras. Essa classe representa 21,2% da rea total do municpio.

Por fim, as Figuras 3 e 4 ilustram, respectivamente, a vrzea do rio Toropi e

uma rea na localidade de Grama, interior do municpio, onde a paisagem

bastante acidentada e predominam as pequenas propriedades rurais.

Figura 3- Vrzea do Rio Toropi aps trmino da safra 2015/2016

Fonte: Arquivo pessoal, HARTMANN (2016).

24

Figura 4- Imagem da regio de serra, localidade de Grama, Mata - RS

Fonte: Arquivo pessoal, HARTMANN (2016).

2.2 REFERENCIAL TERICO

Estudar as sociedades humanas, desvinculando-as das variveis ambientais

parece tornar infrutfero quaisquer esforos que visem compreender a sua evoluo

no espao e no tempo. Neste sentido, DRUMMOND (1991) discorre acerca de uma

disciplina acadmica denominada Histria Ambiental, como sendo capaz de

interligar esses dois pontos que so, a bem da verdade, indissociveis. Em seu

texto, Drummond aborda aspectos gerais da Histria Ambiental e faz uma reflexo

sobre a sua relevncia como campo de trabalho para historiadores brasileiros (e no

somente estes, diga-se), ao comentar que a Histria Ambiental dotada de

significncia a partir, exatamente, do fator tempo, como sendo este uma construo

cultural consciente e que move as sociedades. O tempo deve ser considerado o fio

condutor na explorao das mudanas e continuidades do objeto de estudo,

25

determinando fatos e at conceitos. Seguindo o pensamento de Drummond (1991),

foi atravs das mudanas sociais que ocorreram ao longo do tempo que os

movimentos ambientalistas surgiram, em resposta s crises ambientais, desafiando

as cincias sociais e as cincias naturais a adentrarem, assim, uma no campo de

estudo da outra. No por acaso, porm, foram os cientistas naturais que buscaram,

de incio, um entendimento ecolgico das sociedades e das culturas humanas.

Drummond (1991) ainda cita Paul Ehrlich (bilogo), Garrett Hardin (bilogo), Rachel

Carson (biloga), E. F Schumacher (engenheiro), Amothy Lovins (fsico), atuantes

nos EUA e na Inglaterra desde fins da dcada de 1950; no Brasil, Jos

Lutzemberger, ambientalista militante na dcada de 1970, como exemplos da

investida das cincias naturais na rea dos estudos acerca da relao homem e

natureza.

Por seu turno, OLIVEIRA; MONTEZUMA (2010), afirmam que as

investigaes histrico-ecolgicas, particularmente aquelas ligadas Geografia

Fsica e Histria Ambiental, formulam hipteses que podem ser impossveis de

serem provadas ou de serem verificadas experimentalmente. No obstante, segundo

os autores, este obstculo metodolgico, se d, justamente, quando se tenta decifrar

os sistemas ambientais sem tomar em conta a participao humana e quais as

implicaes que esta participao poderia trazer para a compreenso de uma boa

parte dos padres geogrficos e ecolgicos observados nos ecossistemas. No se

pode prescindir de pensar que a Histria Ambiental tem muito a contribuir, a partir do

momento que coloca como premissa que a paisagem agora considerada natural

pode se tratar, na verdade, de um sistema manejado durante muito tempo, por

outras populaes que ocuparam um determinado territrio. exequvel o exerccio

de comprovao da atuao do homem no ambiente como agente modificador,

muito antes da revoluo agrcola. O homem afeta o meio em que vive, como

afetado por ele, h milnios, desde os caadores coletores, desde a agricultora

nmade, responsvel pela seleo de espcies para cultivo. O uso de recursos

florestais por grandes empreendimentos histricos no Brasil, onde a quase total

destruio da Mata Atlntica desde a chegada dos colonizadores um dos objetos

de estudo dos historiadores ambientais brasileiros, e cujos recursos florestais foram

usados no abastecimento dos engenhos de cana do sculo XII, fornecendo lenha

para as fornalhas, para instalao de cercas, madeiramentos das construes,

fabrico e manuteno dos carros de bois, construo de caixas para exportao do

26

acar. Tudo isso causando grande presso sobre a Mata Atlntica (OLIVEIRA;

MONTEZUMA, 2010). Tais caractersticas podem, e so, facilmente encontradas no

local de estudo selecionado neste trabalho.

O oposto tambm verdadeiro, a Histria Ambiental rejeita a premissa

convencional de que a experincia humana se desenvolveu sem restries naturais.

As sociedades sempre estiveram merc do clima, das condies de solo, da

existncia de gua, da topografia. No caso do Rio Grande do Sul, os imigrantes

europeus travaram uma luta contra a floresta para que pudessem se estabelecer,

deixando marcas em si e na paisagem (WORSTER, [1988] 1991)4. Assim, o autor

ensina que a Histria Ambiental parte de um esforo revisionista para tornar a

disciplina da histria, mais aberta para o mundo natural, entendendo que existe uma

ntima ligao entre homem e meio. Segundo suas palavras:

A velha histria no poderia negar que vivemos neste planeta h muito

tempo, irias, pr desconsiderar quase sempre esse fato, portou-se como se

no tivssemos sido e no fssemos realmente parte do planeta. Os

historiadores ambientais, por outro lado, perceberam que no podemos

mais nos dar ao luxo de sermos to inocentes. A idia de uma Histria

Ambiental comeou a surgir na dcada de 1970, medida que se sucediam

conferncias sobre a crise global e cresciam os movimentos ambientalistas

entre os cidados de vrios pases. Em outras palavras, ela nasceu numa

poca de reavaliao e reforma cultural, em escala mundial. A histria no

foi a nica disciplina afetada por essa mar montante de preocupao

pblica: o trabalho acadmico nas reas de direito, filosofia, economia,

sociologia e outras foi igualmente sensvel a esse movimento. Muito tempo

depois que o interesse popular pelos temas ambientais chegou ao mximo

e comeou a decair, conforme as questes se tornavam cada vez mais

complicadas, sem solues fceis, o interesse acadmico continuou a

crescer e a assumir urna sofisticao cada vez maior. A Histria Ambiental

nasceu portanto de um objetivo moral, tendo por trs fortes compromissos

polticos, mas, medida que amadureceu, transformou-se tambm num

empreendimento acadmico que no tinha uma simples ou nica agenda

moral ou poltica para promover. Seu objetivo principal se tornou aprofundar

4 Nota: Este texto foi traduzido por Jos Augusto Drummond do original "Doing environmental history",

extrado de Donald Worster, ed., The ends of the Earth - perspectives on modern environmental history (Cambridge, Cambridge University Press, 1988),p.289-307. Pubicado em Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991, p. 198-215, disponvel em http://www.nuredam.com.br/files/divulgacao/artigos/Para%20fazer%20hist%F3ria%20ambiental.pdf

27

o nosso entendimento de como os seres humanos foram, atravs dos

tempos, afetados pelo seu ambiente natural e, inversamente, como eles

afetaram esse ambiente e com que resultados. (WORSTER, [1988]

1991, p. 199-200).

Esta situao prtica pode ser observada no municpio de Mata, cuja histria

tambm foi marcada pela chegada dos imigrantes europeus.

Delineada por essas premissas, de acordo com PDUA (2010) a Histria

Ambiental, como campo historiogrfico consciente de si mesmo e crescentemente

institucionalizado na academia de diferentes pases, comeou a estruturar-se no

incio da dcada de 1970. Pdua (2010) indica, em seu texto, que alguns

historiadores ambientais, no contexto dado pelos anos de 1970, estavam embebidos

nos fatores sociolgicos que deram origem aos movimentos populares pr ambiente.

Esse clamor atingiu o campo da historiografia e nele encontrou eco para as suas

reivindicaes.

No Brasil, a Histria Ambiental vai aparecer como rea de estudo somente na

dcada de 1980, e principalmente, a partir de 1990, perodo no qual o Professor

Jos Augusto Pdua publica Um sopro de destruio: pensamento poltico e crtica

ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Destaca-se, ainda, a publicao do livro

do historiador ambiental Warren Dean, A ferro e fogo: a histria e a devastao da

Mata Atlntica brasileira, [1995] 1996. Ambos os livros tratam da histria natural do

Brasil, sob o ponto de vista das relaes entre a sociedade e o ambiente, elencando

os resultados dessa interao. Mais recentemente, verifica-se a publicao do livro

Histria Ambiental do Rio Grande do Sul, (2014), organizado pela historiadora

Elenita Malta Pereira, surgindo como a primeira coletnea de Histria Ambiental do

Estado.

O trabalho do historiador norte americano Warren Dean lana questionamentos

acerca da apropriao e do uso da Mata Atlntica, onde a relao do homem com o

espao natural que ocupa, neste caso, a floresta, intriga, exatamente como expresso

a seguir:

Existe algo a aprender com as transformaes que se operaram nesse grande plat durante 10 mil anos de ocupao humana? Por que no tentar escrever a histria de uma floresta, de um domnio ameaado da natureza, cujo desaparecimento, em sua maior parte, ocorreu em uma poca histrica? Ser possvel uma histria da floresta? Talvez no. A histria

28

tradicionalmente trata de ambies, satisfaes e frustraes humanas. Como pode haver uma relato da histria de outras espcies quando, devemos supor, suas aes careciam de qualquer outra inteno alm de procriar e sobreviver? Seria mais cmodo afirmar que outras espcies nessa plancie sombria no podem desempenhar qualquer papel no teatro da histria humana salvo o de cenrio, mesmo quando a pea sobre a eliminao do cenrio. A natureza, ainda quando a ambio humana se volta contra ela, continua a ser um objeto. (DEAN, 1996, p. 22)

Para SOUZA (2011), em sua anlise do livro A ferro e fogo, trata-se de um

dos mais bem acabados trabalhos em Histria Ambiental, j que articula os trs

nveis de perguntas que, aos olhos de Donald Worster5, so centrais para a

pesquisa dentro desta especialidade, a saber: a) as formas de organizao e

funcionamento da natureza propriamente dita, em tempos passados, em seus

aspectos orgnicos e inorgnicos; b) o papel ativo do ambiente nos processos

sociais e econmicos das sociedades ao longo do tempo; c) os significados inferidos

pelas sociedades ao ambiente e como essas percepes afetaram suas relaes

com a natureza. Desta anlise, possvel verificar que DEAN (1996) no percebe a

floresta como mero cenrio ou repositrio de recursos para uso humano, ao

contrrio, o autor enxerga a floresta (ou o ambiente) como elemento que d

dinamismo histria humana, impondo limites, e, assim, moldando o

comportamento da sociedade que, desde a chegada dos europeus, optaram por

avanar sobre ela.

A apropriao e o uso da Mata Atlntica est relacionada com o uso do solo,

ora em termos de urbanizao, ora em termos de avano da fronteira agrcola, neste

sentido COSTA; WIZNIEWSKY (2010) observam que a interpretao dos impactos

socioambientais do modelo agrcola adotado no Brasil, baseado no cultivo de

grandes reas e nas monoculturas so capazes de revelar a existncia de uma

necessidade de reflexo sobre os insustentveis, imprudentes e imediatistas

modelos agrcolas que foram praticados ao longo da histria rural brasileira. Este

exerccio, para Costa e Wizniewsky (2010) pode levar, inclusive, a se pensar em

modelos alternativos de produo agropecuria, entre eles, a agroecologia. Ou seja

a proposta de interpretao da Histria Ambiental agrria est dada como uma

opo vlida na interpretao da forma de explorao dos agroecossistema que se

tem visto desenvolver, inclusive no municpio de Mata.

5 Nota: Ph.D. Yale, 1971; B.A., University of Kansas, 1963. Environmental history of North America

and the world; U.S. West; U.S. history in the 19th and 20 centuries; history of agriculture; history of science and technology; comparative history. Fonte: https://history.ku.edu/donald-e-worster

29

Assim que adotou-se a postura de observar o cenrio da vrzea, dos morros,

da cidade de Mata, at que fosse possvel levar em conta as histrias dos homens e

das mulheres, cujas aes moldaram a paisagem, mas que, inevitavelmente,

tambm foram influenciados pelas condies impostas pelo solo, pelo clima, pela

vegetao.

Derivado do exposto, e compreendendo que a questo ambiental pode ser

considerada como domnio da anlise sociolgica, se mostrou necessrio

compreender como que se d essa insero do ambiental na esfera social. Mais

especificamente, como a questo ambiental construda socialmente, atravs dos

fatos histricos que desencadeiam as necessidades, os debates, os conflitos nesta

esfera.

Relacionado a isto, FLEURY; ALMEIDA; PREMEBIDA (2014) afirmam que:

de apenas algumas poucas dcadas para o presente que o ambiente tem sido construdo como objeto epistmico, e identificado como tema concernente s pesquisas em cincias sociais e particularmente na sociologia. Pressupe-se que seu surgimento como campo de estudos desta disciplina est vinculado a um processo de demanda por anlises tericas capazes de articular o social e o natural, podendo-se identificar na constituio daquela que se convencionou chamar de sociologia ambiental um de seus primeiros acolhimentos. Contudo, pouco a pouco distintas reas da sociologia comearam a incorporar temticas ambientais em suas problematizaes, compondo um amplo leque de interpretaes sobre as

interfaces entre sociologia e ambiente. (FLEURY; ALMEIDA; PREMEBIDA, 2014, p. 35-36)

Neste caso, como j se demonstrou no aparecimento e desenvolvimento da

Histria Ambiental, foram os debates pblicos sobre a crise ambiental, iniciadas nos

anos de 1970, que delinearam os contornos de uma incipiente sociologia ambiental.

FLEURY; ALMEIDA; PREMEBIDA (2014) discorrem acerca do resgate da

materialidade junto s anlises sociolgicas, e que este resgate est na raiz da

sociologia ambiental, ou seja, a constatao de que sociedade e natureza devem ser

analisadas de forma interligada. No entanto, esta abordagem ainda parecia

insuficiente para dar conta da complexidade envolvida em se tentar explicar como a

questo ambiental tomada pela sociedade. Assim, aos poucos, a abordagem

construcionista da questo ambiental tomou o lugar nas anlises sociolgicas, tendo

como seu principal objeto de estudo o aspecto eminentemente social dos problemas

e questes ambientais. O que equivale a dizer que o objeto de estudo, agora, est

relacionado em como o ambiente percebido e construdo socialmente como um

30

problema ou questo pblica. Dentre as formulaes desta corrente, uma das mais

influentes a sntese construcionista elaborada pelo canadense John A. Hannigan,

cujas anlises dizem respeito ao modelo relacional-cognitivo que analisa o processo

coletivo de construo de significados comuns que emprestam um sentido s

relaes dos indivduos e que consideram como principal carter de uma anlise

construcionista a preocupao com a forma pela qual as pessoas determinam o

significado do seu mundo, e, portanto, no que diz respeito questo ambiental, sua

anlise consiste em demonstrar que os problemas ambientais no existem por si

mesmos, mas constituem o resultado de um processo de construo social

multifacetado (ibidem).

Obviamente que interpretar a forma como as pessoas determinam o

significado de seu mundo, dando a questo ambiental mais ou menos ateno, no

deve ser uma tarefa das mais fceis. Nesta direo, GERHARDT; ALMEIDA (2005)

mostram que a dificuldade reside no fato de no tratar-se de uma interpretao ao

nvel do indivduo, apenas. As questes ambientais e suas interpretaes envolvem

intensas modificaes socioculturais e econmico-produtivas que, se, por vezes,

podem aparecer com um carter de ineditismo, todavia, podem, tambm, aparecer

como consequncia lgica decorrente dos processos de desenvolvimento da

sociedade. E mais, podem aparecer como reveladoras de um carter

intrinsecamente degradador da espcie humana em relao aos demais elementos

no-humanos. Dito isto e seguindo a linha dos autores, se depreende que a

construo social das questes ambientais passam pelas diferentes formas de

organizao social, sofrendo interferncia das aes governamentais, do mercado,

da cultura, da histria de quaisquer organizaes societrias que estejam como

objeto de estudo.

Trazendo a questo para uma anlise do espao rural, como o caso desta

dissertao, BRANDENGURG (2005) enfatiza que a discusso acerca da questo

ambiental vai emergir, no Brasil, aps a implementao da modernizao

conservadora da agricultura (Revoluo Verde), derivada das consequncias sociais

e ambientais que este modelo de produo agrcola vai acabar demonstrando ao

longo de tempo, e at a atualidade. No entanto, de acordo com o autor, a

preocupao inicialmente recai sobre as consequncias ligadas expulso de

pequenos produtores rurais que no se adaptaram ao novo modelo de produo. O

xodo rural aparece como questo proeminente nestes debates iniciais. Assim, uma

31

das poucas organizaes que surge no campo e que se manifesta claramente

questionando o uso indiscriminado de agroqumicos foi a Associao Gacha de

Proteo ao Ambiente Natural (AGAPAN), liderada por Jos Lutzemberg, no Rio

Grande do Sul.

Nas primeiras dcadas aps a implementao da modernizao agrcola, os

agricultores alijados do processo comearam a se organizar, no sentido de

questionar tanto as polticas agrcolas como as tcnicas por elas implementadas. O

movimento almejava a construo de uma agricultura tida como alternativa ao

modelo hegemnico, visando, entre outros, resgatar prticas tradicionais de

produo, condenadas pelo modelo vigente. Percebe-se que a questo ambiental,

relacionada aos impactos negativos do modelo de produo no aparecem

diretamente neste movimento, mas viriam a tomar o discurso nos anos seguintes,

principalmente a partir da edio da ECO 926 (ibidem).

E, considerando a questo ambiental como uma construo social que se d

ao longo do tempo e seguindo a linha condutora das mudanas sociais, segue-se o

idealizado por BACCHIEGGA, (2012):

Liderados pelos textos dos pesquisadores J. Hannigan (2009) e S. Yarley (1996), este enfoque terico reveste a questo ambiental de um carter social pouco discutido nas outras correntes. Sem negar a obviedade da existncia dos impactos ambientais, no enfoque construtivista questiona-se a quem ou que grupos a degradao ambiental afeta. Parte-se do princpio de que o discurso ambiental pode ser socialmente construdo. Dito de outra forma, existiria um arcabouo ligando grupos de presso, disputas de poder, novas centralidades que seriam responsveis pela criao ou valorizao de temticas ambientais. Ou seja, esse enfoque nos mostra como um problema ambiental pode ser socialmente construdo, enquanto outros podem ser minimizados, no pela sua pouca influncia ou impacto, mas sim por no agradar grupos de presso em especifico ou tem a interferncia de outros poderosos grupos que contestem o impacto explorado pela cincia. Por exemplo, de propaganda global as queimadas na Amaznia em contraponto que muito menos divulgado, porm tambm muito srio, so as secas na regio da frica Subsaariana. Os construtivistas argumentam que por trs do debate pblico sobre o meio biofsico existe um imenso jogo de poder, em que a influncia e um capital generoso estariam envolvidos, movimentando os argumentos para um lado ou para o outro, favorecendo alguns grupos em detrimento de outros, usando argumentos muitas vezes emocionais para mobilizar a opinio pblica, onde termos como destruio dos mares, destruio das florestas e outras metforas militares so

6 Nota: A Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Cnumad),

realizada em junho de 1992 no Rio de Janeiro, marcou a forma como a humanidade encara sua relao com o planeta. Foi naquele momento que a comunidade poltica internacional admitiu claramente que era preciso conciliar o desenvolvimento socioeconmico com a utilizao dos recursos da natureza. Disponvel em http://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/rio20/a-rio20/conferencia-rio-92-sobre-o-meio-ambiente-do-planeta-desenvolvimento-sustentavel-dos-paises.aspx

32

utilizadas para se esquivar das difceis e, muitas vezes, frias explicaes

cientficas. (BACCHIEGGA, 2012. p. 6)

Resta claro que existe um jogo de poder operando na determinao sobre

quais problemtica (ambientais, entre elas) a sociedade vai se debruar com mais

interesse e, desta forma, vai chegar a lutar pela sua resoluo. Ainda que,

preliminarmente, este processo parea demarcado pela tomada de conscincia

acerca dos impactos negativos da ao humana sobre o meio, e que estes impactos

sejam, marcadamente, globais, a anlise precisa avanar sobre a forma como esses

impactos tem sido tratados, uma vez que, a despeito de sua relevncia ou

magnitude, no so percebidos da mesma forma, em diferentes organizaes

societrias.

Visando entender como se d esse processo de escolha, buscou-se no

aporte dado por YEARLEY (apud Hannigan, 1997), a explicao para que, entre

outras coisas, a notoriedade dada para uma determinada questo ambiental

diferenciada. Segundo suas anotaes, a notabilidade de uma dada questo

ambiental vai ser configurada pela presena de agentes de difuso, que constituem-

se em grupos organizados (formalmente ou no) cujo objetivo organizar aes

pblicas, entre debates e mobilizao. Dito de outra forma, no basta o problema

existir em si. Mais que isso, o problema precisa ser sentido, vivido e repercutido.

HANNIGAN (1997) postula sobre a teoria da disseminao gradual do movimento

ambientalista, por setores da sociedade e do Estado. Esta interpretao se ampara

em uma perspectiva cognitiva: apresenta o ambientalismo como espcie de ideia-

fora, cuja difuso dependeria do empenho de um grupo especial de atores em

favor da conscientizao dos demais. Alm da ao deste grupo mobilizador, para

que um problema ambiental ganhe relevncia junto ao grupo social, alguns

princpios bsicos devem ser observados: validao de uma autoridade cientfica;

existncia de um grupo mobilizador; ateno da mdia; simbologia do problema;

incentivos econmicos para a ao positiva e recrutamento de um patrocinador

institucional (garantia de legitimidade e continuidade).

possvel afirmar, logo, que para um problema ambiental ter a ateno de

um grupo social (uma comunidade, por exemplo) precisar, antes de tudo, da

ateno de um grupo bem definido e identificvel. Este mesmo grupo dever ter

fora e notoriedade nas suas aparies e eloquncia em seus discursos, a fim de

convencer a sociedade de que aquele problema realmente nocivo para a

33

qualidade de vida da comunidade e merece receber ateno. O grupo mobilizador

dever, por sua vez, levantar fatos bsicos que moldaro o discurso da criao das

exigncias (exemplo: se a questo o impacto negativo do uso de agrotxicos na

agricultura, dever apresentar fatos e nmeros- derivados de pesquisas cientficas-

que comprovem esses efeitos). Ainda como estratgia dever valer-se de histrias

verdadeiras, que expressem esses perigos e que tornem mais fcil para o pblico

identificar-se com os afetados diretamente pelo problema, despertando um

sentimento de empatia. Por fim, o grupo problematizador dever apresentar as

garantias ou justificativas para que aes sejam tomadas. Essas garantias vo

desde a apresentao das vtimas ou ligaes dessas exigncias (problemas) com o

tolhimento de liberdades e direitos bsicos. Definidas as aes, a prxima etapa

seria o resultado das aes, culminando, quem sabe, na criao de polticas

pblicas ou instrumentos legais para erradicao do problema (HANNIGAN, 1997).

A constituio scio-histrica de Mata, marcada pelas alteraes na paisagem

e o modo como se desenvolveu sua comunidade, do vazo aos estudos que

depuram a questo ambiental, neste caso pautados pelos conceitos extrados dos

campos de estudo da Histria Ambiental e do Construcionismo social das questes

ambientais, que vo servir de guia nas anlises aqui empreendidas.

34

2 APROPRIAO DO TERRITRIO DE MATA - RS

Este captulo foi construdo no intuito de empreender uma anlise dos

acontecimentos histricos, cuja contribuio foram determinantes para a alterao

da paisagem. Nesse sentido, MARTINEZ (2006) afirma que explicar os fenmenos

sociais torna-se mais fcil quando percebidos os acontecimentos em uma

perspectiva temporal extensa. Mais ainda, o pesquisador deve atentar para as

mudanas e as permanncias nas formas como as sociedades recorrem aos

recursos naturais, como forma de suprir suas necessidades (biolgicas e sociais). O

recurso da Histria Ambiental, como elemento de coleta e anlise de dados, neste

caso, sintomtico desta necessidade.

Seguindo os ensinamentos de Martinez (2006), ao recorrer-se histria do

municpio, em um espectro temporal mais amplo, foi possvel definir quais

fenmenos de longa durao se fizeram sentir atravs de transformaes das

estruturas e relaes sociais: i) a disputa pela apropriao do Rio Grande do Sul

entre portugueses e espanhis, entre os sculos XVII e XVIII, somada a questo

indgena; ii) a adoo do sistema sesmarial e a expanso da pecuria como marcos

da formao da estrutura fundiria; iii) a colonizao europeia; iiii) modernizao da

agricultura. Em comum, todas essas etapas, demonstram a explorao e o uso dos

recursos naturais, sobretudo a converso do solo para uso alternativo, o que se deu

com a retirada da floresta.

2.1 UMA BREVE FALA SOBRE A PRESENA INDGENA

Segundo (MALFATTI; MALFATTI, 2006), o territrio que hoje constitui o

municpio de Mata, no RS, foi habitado por ndios da tradio Umbu, Humait e Tupi-

Guarani, cujos vestgios encontrados comprovam a sua presena nessas terras, das

quais citam-se e podem ser encontradas no acervo do Museu Municipal Daniel

Cargnin7: urnas funerrias, machados polidos e lascados, pedaos de panelas, entre

outros itens. Podem ser encontrados no territrio, tambm, marcas rupestres8, como

7 Nota:O Museu Padre Daniel Cargnin esta localizado na Rua do Comrcio, 825, na cidade de Mata,

Rio Grande do Sul, Brasil. Recebeu este nome em homenagem ao Paleontlogo Daniel Cargnin, que coletou mais de 80 por cento dos fsseis da regio de Mata. Fonte: http://legislativoMata.com.br/visualizar_conteudo.php?id=58 8 No municpio de Mata existem abrigos com gravuras, prximos 70 Km da Pedra Grande e dos

demais stios pesquisados por Brochado e Schmitz. A partir de 1994, Lima analisou essas gravuras e

35

parte do registro histrico da presena desses povos indgenas. Ainda segundo

Malfatti; Malfatti (2006), os indgenas que viveram na regio pertenceram, em dado

momento, Reduo de So Jos, fundada em 1632 por Jesutas Espanhis. O

aldeamento dera-se entre os Toropi, Jaguari e Ibicu, e que deixou de existir por

volta de 1640. Na regio circunvizinha comunidade, os indgenas cultivavam

lavouras para o sustento da populao, j promovendo alteraes na paisagem

natural dos campos sulinos.

Tratando-se da herana indgena e apropriao do territrio do Rio Grande do

Sul, COSTA, (1988), faz os seguintes apontamentos:

A disputa pela apropriao do espao no Extremo-Sul entre portugueses e espanhis, ao longo dos sc. XVII e XVIII, bem evidente no avano e recuo das misses jesuticas na alta bacia do Rio Uruguai, onde estas implantaram-se como verdadeiro quisto entre os territrios controlados pelas duas coroas. Aos poucos a luta se expandiu para as reas do Pampa, terras de ningum, rumo ao estratgico esturio do Prata, verdadeira sentinela geopoltica onde, ainda em 1680, fora estabelecida pelos portugueses a colnia de Sacramento, palco de acirradas lutas com os espanhis. Apesar de terem se expandido por todo espao conhecido hoje como Campanha gacha, de Bag a Rio Pardo, de So Vicente a So Borja, as misses jesuticas do sc. XVII foram devastadas com a caa ao ndio promovida pelos bandeirantes paulistas e abandonadas em definitivo com a expulso dos jesutas dos territrios luso-castelhanos na metade do sc. XVIII. Apenas em 1801, a regio noroeste do atual Rio Grande do Sul

seria definitivamente incorporada. (COSTA, 1988, p. 31) A propsito da herana indgena, importante lembrar que mesmo nas sociedades primitivas j se delineava uma viso territorial do trabalho, intimamente relacionada ao meio natural: enquanto nas reas de Mata ao norte e centro do atual estado as etnias g (guaians e caingangues) e tape (depois guaranizados) praticavam a agricultura, na atual faixa fronteiria, de Rio Grande a So Borja, dominava a caa pelos cavaleiros da nao chan (minuanos e charruas). bastante provvel que tenha razes a o mito, ainda hoje pregado por alguns estancieiros, de que somente as reas de Mata seriam favorveis ao uso agrcola do solo. (Ibid. p. 32)

No entanto, em sucessivos ataques s misses Jesuticas, em 1801 obteve-

se a total destruio das mesmas e, aps a expulso dos Jesutas, parte da regio

onde se localiza o municpio de Mata, passou a ser ocupada por estancieiros luso-

brasileiros.

Quase nada acerca da herana indgena aparece nas pesquisas,

relativamente ao local de estudo. Parece correto afirmar, no entanto, que a sua

verificou grande semelhana na forma e na tcnica das mesmas. Essa Arte Rupestre no Rio Grande do Sul conhecida como Tradio Meridional. Fonte: http://www.inicepg.univap.br/cd/INIC_2009/anais/arquivos/0937_1199_01.pdf

36

presena neste territrio deu incio s alteraes na paisagem, contando-se que

estas populaes cultivam lavouras e criavam gado.

2.2 A SAGA DOS SILVA PEREIRA: A OCUPAO DAS TERRAS S MARGENS DO RIO TOROPI

Os eventos ocorridos no Brasil, desde a chegada dos Portugueses, so

definitivos no que tange o redesenho das paisagens, da cultura e organizao social,

por meio da ocupao do territrio. Logo, esses eventos tambm devem ser

considerados para remontar a Histria Ambiental do local de estudo. E assim que

encontramos no casal Silva Pereira e na trajetria de sua vasta descendncia alguns

dos pontos sobre os quais a histria de Mata se desenrola at chegar ao sculo XXI,

carregando consigo as marcas do trabalho desses homens e mulheres. Para tanto,

valemo-nos, fundamentalmente, das escritas de UBERTI (2011)9, e de fontes orais

que trazem narrativas dos tempos j passados, por entre as lembranas de

descendentes dos Silva Pereira, tambm pela contribuio dada pelo Diretor-

Proprietrio do Museu Fragmentos do Tempo10.

Os membros da famlia Silva Pereira so considerados como os agentes

fundadores da Estncia So Rafael, uma das primeiras propriedades formadas no

Vale do Jaguari11 aps a conquista do espao missioneiro pelos portugueses. So

Rafael - a Estncia, deu origem a localidade de mesmo nome, onde se localiza boa

parte da vrzea do Rio Toropi, em Mata - RS, e onde so cultivados grande parte

dos arrozais.

Logo, percebeu-se que a figura genrica do Estancieiro possua relevncia

para esse estudo, haja vista tenham sido as aes do casal Silva Pereira, os

9 Nota: Uberti, Hermes Gilber, A beno que se pede e a beno que se d: redes scio-familiares

de camadas intermedirias (Randolpho Jos da Silva Pereira / Hermes Gilber Uberti ; orientao Paulo Roberto Staudt Moreira. So Leopoldo, RS: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2011. 220 f. : il. Dissertao (mestrado) Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Unidade Acadmica de Pesquisa Ps-graduao, Programa de Ps- graduao em Histria, 2011. 10

O Museu Fragmentos do Tempo, de natureza privada, pertence 5 Regio Museolgica, localizado no Municpio da Mata, encontra-se aberto para visitao e o ingresso pago. Sua tipologia histria. Contatos: So Jos do Louro, Zona Rural, 1 Distrito, CEP: 97410-000. Fonte: http://mapa.cultura.rs.gov.br/espaco/id:656/ 11

Dados da Fundao de Economia e Estatstica (FEE)/RS, indicam que o Conselho Regional de Desenvolvimento (COREDE) do Vale do Jaguari conta com Populao Total (2014) 117.473 habitantes em uma rea (2015) de 11.254,1 km, sendo membros participantes os municpios: Cacequi, Capo do Cip, Jaguari, Mata, Nova Esperana do Sul, Santiago, So Francisco de Assis, So Vicente do Sul e Unistalda.

37

motivadores para que a ocupao do solo em Mata - RS tivesse incio de forma

definitiva. Esse agente social, o Estancieiro, foi examinado por autores como PICCIN

(2012), que em suas anlises, deu ateno s estratgias de reproduo social do

grupo, formado por grandes proprietrios fundirios criadores de gado do Rio

Grande do Sul, cujos domnios se convencionou chamar de Estncias. As histrias

desses agentes esto intimamente ligadas a ocupao do territrio gacho, e

relativamente a isso, o autor afirma:

O Rio Grande do Sul possui uma histria contempornea de ocupao do territrio marcada pelo estabelecimento de grandes propriedades fundirias de criao de gado em suas reas de campos, sobretudo na parte mais ao sul do estado, e de colnias de imigrantes pequenos proprietrios nas reas de florestas, sobretudo ao norte. Regio disputada com a Espanha at o incio do sculo XIX, tanto a expanso das grandes propriedades, quanto as colnias de pequenos proprietrios no se processaram em territrio despovoado. No primeiro caso, determinou tanto que os povos indgenas fossem exterminados, repelidos para as reas de Matas ou, em parte, assimilados, quanto que as disputas por terra colocassem os pequenos posseiros ou proprietrios na estrita dependncia da grande proprietria fundiria. No segundo caso, os pequenos posseiros, que haviam conquistado a terra das populaes indgenas, foram, no mais das vezes, a considerados intrusos e expulsos para a implantao das colnias, ajustando-se em reas de terra desprezadas ou caindo na dependncia dos grandes proprietrios criadores de gado. (PICCIN, 2012, p. 21)

A trajetria dos personagens, contada por UBERTI (2011), tem incio e est

ligada uma prtica adotada no Brasil, a partir de 1530. A prtica referenciada foi

denominada como sistema sesmarial, com o qual a Coroa portuguesa pretendeu

incentivar a colonizao de territrios inexplorados em sua colnia. Dentro do

contexto da ampliao de fronteiras, o processo de concesso de sesmarias12 foi

importante, uma vez que promoveu a salvaguarda dos territrios portugueses diante

de possveis investidas castelhanas. Como foi mencionado, a saga dos Silva Pereira

teve incio, portanto, quando o Alferes13 Jos da Silva Pereira e Francisca Pereira

Pinto, se estabeleceram no Vale do Jaguari, em busca de bases materiais para sua

sobrevivncia. Ambos Catarinenses, casaram-se a 07 de fevereiro de 1819 junto

matriz Madre de Deus em Porto Alegre. Pouco tempo depois, o casal entrou com um

requerimento junto ao governo provincial, solicitando um rinco de terras

12

Concesso de sesmarias: Transcorridos 155 anos da codificao da Lei das Sesmarias, esse instituto jurdico portugus foi transplantado para o Brasil, em 1530, atravs da carta de poderes concedida a Martim Afonso de Sousa, quando enviado s terras da Amrica portuguesa no comando de uma expedio colonizadora. Assim, a coroa pretendia utilizar as sesmarias para incentivar a colonizao do territrio, ainda inexplorado. Fonte: http://www.silb.cchla.ufrn.br/o-sistema-sesmarial 13

Antigo posto militar, equivalente ao atual de segundo-tenente. Fonte: http://www.dicio.com.br/alferes/

38

devolutas na provncia de Misses. Ainda segundo as pesquisas de UBERTI

(2011), em 1821 o casal fora agraciado com a sesmaria que havia solicitado, sendo

a propriedade localizada na margem do rio Toropi, possuindo uma lgua de frente

por trs lguas de comprido. E em 1824 os registros j apontavam o casal como

moradores efetivos do Vale do Jaguari e, nos anos seguintes, com moradia

consolidada, a famlia aumentou com a chegada dos filhos. O ltimo dos sete filhos

do casal, Randolpho, vai ter papel importante no desenvolvimento do municpio.

Aps o estabelecimento no Vale do Jaguari, o casal Jos e Francisca passou a

adquirir novas propriedades na vizinhana, com destaque para o campo na costa do

Rio Toropi, propriedade essa que, finalmente, deu origem a Estncia So Rafael,

rea pertencente ao atual municpio de Mata RS. A famlia optou por estabelecer

moradia na Estncia So Rafael, que veio a se converter no principal

estabelecimento produtivo da regio, concentrando a maior parte do gado, alm do

funcionamento de uma atafona utilizada no beneficiamento de farinha para o

consumo prprio e para as famlias vizinhas e da presena de muares. Sobre a

farinha, Uberti destaca que a famlia plantou mandioca, que era convertida em

farinha para que fosse trocada por erva-mate em Palmeira das Misses. Sem contar

a participao da famlia em negcios no mercado em Uruguaiana, que foi

dinamizado aps o estabelecimento da navegao vapor no Rio Toropi.

Assim como Jos e Francisca, seu filho Randolpho juntamente com sua

esposa, Joaquina, optam por estabelecer-se na sede de So Rafael, onde os ltimos

residiram at seus respectivos falecimentos. Segundo o Diretor-Proprietrio do

Museu Fragmentos do Tempo, Sr. Eron Haesbaert, Randolpho falece 1 de maro

de 1914, baseando-se em seu vasto material de pesquisa (entre certides de

casamento, nascimentos e partilhas).

O Estancieiro Randolpho, ao tornar-se o proprietrio das terras da atual

localidade de So Rafael, dedica-se, durante toda sua vida, criao de gado, nas

reas de coxilha, deixando at este perodo as terras da vrzea do Rio Toropi, sem

uso econmico. No entanto, a partir da data de seu falecimento e posterior partilha,

a vrzea comea a ser considerada, mesmo que negativamente, como mostra o

depoimento do Diretor do Museu Fragmentos do Tempo:

O inventrio deve ter levado uns dois anos, aproximadamente, at sair... Ento, em 1916 sai o inventrio e para a minha v Junia (...) filha do Randolpho e da Joaquina, s tocou vrzea pra ela. Naquela poca vrzea

39

no tinha valor nenhum, era s banhado, ningum queria. O gado se entrasse, atolava; plantar a boi de que maneira fazer? (...) todo mundo queria era coxilha. Coxilha sim era coisa boa, era campo fino pra poca, n... Ento o meu av ficou desesperado e queria ir embora, e os irmos dele queriam levar ele para Getlio Vargas, que l a terra era melhor, era outra coisa. Ai ele estava a fim de vender tudo, mas tinha um outro irmo da v, que eu no lembro do nome, e gostava muito da v e no queria que o v fosse embora e ficou com toda a parte de vrzea do v e deu as terras onde a chcara do Dilmar hoje. Ali era coxilha. (ERON HAESBAERT, 2016)

Sobre o montante de terras de que dispunha o Estancieiro Randolpho e a

predileo pela coxilha, por parte de seus herdeiros, Haesbaert tem a dizer que:

Eu no me lembro, eu teria que pegar o inventrio do Randolpho pra ver que quantia de terra tinha, mas era em torno de 5 mil ha que ele tinha e ai, claro que dos 15 filhos que ele teve cada um pegou uma parte e tinha uns que no tinha como pegar coxilha, como a minha v Junia no pegou. Ela pegou vrzea, n. (ERON HAESBAERT, 2016)

No entanto, pelo menos um de seus filhos, que atendia pelo nome de

Randolfo, em homenagem ao seu pai, demonstra interesse pelas terras da vrzea

do Rio Toropi, pois aceita em herana o que lhe cabe desta rea. Em depoimento, a

neta de Randolfo (ou Doto como era conhecido), informa que ele e sua esposa

Duolina Csar da Silva (Dona Sussula), apesar de aceitar a rea da vrzea,

continuaram com criao de gado na coxilha. Este indivduo, porm, foi

determinante para que a paisagem da vrzea comeasse a ser alterada, culminando

nas configuraes atuais. Isso somente foi possvel porque Doto optou, na poca,

por arrendar as terras da vrzea para terceiros, oriundos de famlias que estavam

chegando na regio, trazidas pelo processo de imigrao europeia ocorrido no Rio

Grande do Sul. Da opo de Doto em receber a vrzea, tem incio o processo de

ocupao com arroz irrigado, que deve estar entre a dcada de 20, do sculo XX,

como marco temporal do incio do cultivo. Isto, considerando-se as falas dos

entrevistados e alguns fatos histricos: a construo da via frrea (que deu incio ao

desmatamento) e chegada dos imigrantes (especialmente aqueles que acabam

cultivando a vrzea, atravs do arrendamento).

Sobre este processo, segue a fala de um entrevistado, que discorre sobre os

primeiros ocupantes da vrzea e o modo como trabalhavam:

O incio eles iniciaram com enxadas e semeando esse arroz com mquinas de pescoo, que chamavam, e entraram arrendando dos proprietrios, do Doto, que arrendava... j tinham comeado a desmatar, por causa da rede ferroviria, e comeou ai, comearam a desbravar, desmatar essa rea. Ai

40

houve uma transformao, o incio da transformao, tirando a vegetao, transformando em vrzea, transformando em reas de plantio de arroz, que o que t at hoje. (AGRICULTOR J, 2016)

O mesmo agricultor (Agricultor J) comenta, tambm, sobre o processo

de mecanizao da lavoura de arroz, que aparece como um momento de

ruptura, pois possibilita o avano mais rpido sobre as terras at ento no

ocupadas. O impacto social tambm deve ter sido muito sentido,

considerando a fala do entrevistado, chamado aqui de Agricultor K, que se

expressa a respeito do contingente de pessoas que vivia na regio, a fim de

trabalhar nas lavouras, mas que, com a mecanizao, aos poucos devem ter

perdido seus postos de trabalho:

Comeou por volta de 60, com trator com roda de ferro, chamavam de unha de ferro, no tinham nem pneus. Eram chamados de unha de ferro e usavam pra poder fazer a terra, uma rea baixa, alagada. Ento, eles usavam esse tipo de trator, foi o incio ali... no, mas eu estou equivocado, por que o meu pai comprou um trator, foi l em Porto Alegre e comprou um trator, isso foi em 54 e ai j era de pneu. Ento foi antes de 60, o incio. Eram poucos os tratores, muito poucos nessa poca. Nos anos 60 j aumentou. (AGRICULTOR J, 2016)

Eram pessoas que trabalhavam muito, ajudavam a comunidade e empregavam muita gente. So Rafael, nessa poca era muito povoada, tinha l gente que morava no corredor (da estrada) para trabalhar nas lavouras do arroz. (AGRICULTOR K)

Como se percebe, a famlia, desde os primeiros moradores, tem uma certa

predileo por So Rafael, e pelas atividades econmicas que desenvolveram, bem

como por seu vasto crculo social (e de seus descendentes), vo contribuir com a

alterao da paisagem na vrzea do Toropi, ao mesmo tempo em que dedicam-se

s atividades agropecurias que lhes provm o sustento, a reproduo social ou,

ainda, a manuteno do status social que os Estancieiros detinham naqueles

tempos.

2.3 A HISTRIA GANHA OUTRAS CORES E OUTRAS NOTAS: A IMIGRAO EUROPEIA

O municpio de Mata, assim como toda a sociedade brasileira, fruto da

convergncia entre os invasores portugueses, ndios, negros escravizados, e ainda,

com outras populaes europeias, cuja chegada foi intensificada entre os sculos

XIX e XX. As correntes migratrias at o sculo XX, detm um aspecto que merece

41

registro: foi considerada positiva, tanto para o Brasil, quanto para a Europa, que vivia

a segunda revoluo industrial, e isso significa um grande contingente de

desempregados. A Europa tambm passava por um perodo de unificao (Alem e

Italiana), depois de muitas guerras, fazendo com que grande contingente de

pessoas ficassem deslocadas dentro desse novo desenho do continente. Por sua

vez, no Brasil, a lei Eusbio de Queirs, d vazo uma crise de mo de obra,

justamente quando proibido o trfico negreiro e d-se a expanso cafeeira. Outro

fator que estimula a vinda dos europeus so as teorias como o darwinismo social,

que leva o Brasil a buscar o embranquecimento da populao. Alm de tudo isso,

havia outros interesses na vinda dos europeus ao Brasil: desenvolvimento da

agricultura, do comrcio e da indstria, contribuindo com a criao de classes

sociais intermedirias entre o senhor de terras e o escravo; a substituio da mo-

de-obra escrava pela mo de obra livre e assalariada que desenvolveriam as

cidades, o comrcio e fomentariam a criao de servios de infraestrutura

(HERDIA, 2001)

O Rio Grande do Sul, ainda caracterizado por densas reas florestais,

comea a receber grande nmero de imigrantes europeus na segunda metade do

sculo XIX, fruto do projeto poltico da Coroa, que visava criar uma base social de

apoio aos Estancieiros. Outro detalhe que merece destaque reside no fato de,

apesar do sistema sesmarial, o territrio do Rio Grande do Sul ainda contar com

grandes extenses de terras vazias. Essas reas florestadas, de imediato, no

despertaram o interesse do pecuarista, pela dificuldade tcnica na criao do gado,

o que implicaria em grande aporte de investimentos. PELEGRINI; PELLEGRINI;

HILLESHEIN (2015), apontam que, a partir de 1820 tem incio o projeto de

colonizao das reas florestadas do Estado, com imigrantes oriundos de pases

como a Alemanha e a Itlia. A base de apoio que esses imigrantes representavam

estava, entre outros, na produo de gneros alimentcios para consumo interno. As

primeiras levas de imigrantes que aportaram no RS foram de origem alem e se

estabeleceram no vale do Rio dos Sinos, hoje municpio de So Leopoldo. Sobre

isso RUCKERT; HARRES, (2014), do conta que em 1824 o rio dos Sinos tornou-se

o ponto de referncia para a demarcao dos primeiros lotes concedidos aos

imigrantes alemes no Estado. No entanto, a questo do desmatamento j se fez

presente enquanto preocupao por parte do governo imperial, que em 1825 j

recomendava a conservao dos matos s margens do rio. Segundo os autores,

42

essa preocupao advinha do interesse na navegao fluvial entre a colnia de So

Leopoldo e Porto Alegre.

J no final da dcada de 1870 foi a vez dos italianos aportarem no RS, esses

estabeleceram-se nas regies das encostas das Serras do Nordeste e Central,

nesse tempo totalmente cobertas por Matas (PELEGRINI; PELLEGRINI;

HILLESHEIN; 2015).

Foi assim que o ecossistema florestal foi subdividido em lotes, inicialmente

doados aos imigrantes e mais tarde, com a Lei de Terras (1850), passaram a ser

vendidos para os colonos. Nos primeiros anos os colonos tinham como preocupao

bsica a produo de alimentos para o autoconsumo, sendo que a derrubada da

Mata era uma exigncia, no apenas de sobrevivncia, como tambm configurava

uma obrigao diante do governo imperial, que, ao conceder os lotes aos colonos,

determinava que estes tinham at seis meses para roar e plantar, ao menos meio

hectare de terras (SPONCHIADO, 1996, apud (PELEGRINI; PELLEGRINI;

HILLESHEIN; 2015).

Relativamente ao processo de avano dos colonos alemes para o interior da

floresta subtropical, BUBLITZ (2014), aborda e discute a relao desses com o

ambiente encontrado no Rio Grande do Sul, a partir das suas necessidades e das

tcnicas de manejo florestal que eram utilizadas naquela poca. A autora destaca

que no sculo XIX, se estendia, do centro ao norte do Estado, um vigoroso tapete

verde, habitat de inmeras espcimes nativas, que em pouco tempo de explorao,

daria lugar s lavouras e outras atividades agropecurias, transformao dada pela

prtica de avano constante sobre a Mata. A paisagem, obviamente, sofreu

alteraes drsticas a partir dessa imerso. A expanso da fronteira agrcola

colocada em prtica pela colonizao europeia continuidade do que j vinha

ocorrendo com a colonizao luso-brasileira.

Sobre a colonizao alem no municpio de Mata - RS, UBERTI (2011) faz

meno, em seu texto, de um certo lavrador de nome Zeferino Alves Machado. O

lavrador fora contratado, segundo consta, para abrir um novo caminho na localidade

de So Xavier, tendo em vista seu reconhecimento na comunidade por ter

trabalhado, anteriormente, na abertura da picada que possibilitou a instalao dos

colonos alemes no lugar denominado de Serto. Esses imigrantes chegam em

Mata - RS, segundo dados do municpio, em 1885. A abertura dessas picadas, ainda

segundo consta em Uberti, est relacionada diretamente com a supresso vegetal,

43

bem como com a construo de pontes, o corte de barrancos e com

descortinamento de rvores. J os italianos chegam em 1920, logo aps a

inaugurao da rede ferroviria. No localizamos material bibliogrfico que desse

conta das mincias da colonizao europeia no municpio. Contudo, do que vimos e

ouvimos, podemos concluir que, sobre a chegada dos imigrantes, a Histria

Ambiental do municpio faz eco a histria do Rio Grande do Sul, revelando uma

intensa e ntima relao entre as questes ligadas a ocupao do meio rural e a sua

Histria Ambiental, onde os recursos naturais so vistos como: obstculo,