renata altenfelder garcia gallo arte e utopia nas...
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
Renata Altenfelder Garcia Gallo
Arte e Utopia nas estéticas de juventude e de
maturidade de Georg Lukács
CAMPINAS,
2018
Renata Altenfelder Garcia Gallo
Arte e Utopia nas estéticas de juventude e de maturidade de
Georg Lukács
Tese de doutorado apresentada ao
Instituto de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Campinas para
obtenção do título de Doutora em Teoria
e História Literária na área de Teoria e
Crítica Literária.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Ornelas Berriel
CAMPINAS,
2018
Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida pela aluna Renata Altenfelder Garcia Gallo orientada pelo Prof.
Dr. Carlos Eduardo Ornelas
Berriel
BANCA EXAMINADORA:
Carlos Eduardo Ornelas Berriel
Jesus José Ranieri
Ana Aguiar Cotrim
Antônio Rago Filho
Juarez Torres Duayer
IEL/UNICAMP
2018
Ata da defesa, com as respectivas assinaturas dos membros da banca, encontra-
se no SIGA - Sistema de Gestão Acadêmica.
“Eu, como artista, posso propor uma coisa muito maior do que qualquer
partido político pode propor. Eu sei que não posso conseguir, porque não
faz parte da arte a concepção desses resultados. Mas posso propor coisas
muito mais abertas. Como artista, posso propor muito mais liberdade do
que qualquer partido político pode propor para mim. A minha função como
artista é muito maior do que seu eu fosse deputado, senador. O que eles
podem propor, podem fazê-lo dentro de terminados limites, e eu posso
extrapolar esses limites. Porque eu trabalho com a utopia” (BELCHIOR,
1979).
AGRADECIMENTOS
Entre os anos de 2014 e 2018, durante os quais esta tese foi redigida, tive o
prazer de conhecer e dividir histórias, encontros, conversas, viagens, cantorias, xícaras
de café e garrafas de vinho com muitas pessoas interessantes. Por mais que a redação da
tese seja um processo individual, eu não o predicaria solitário. Felizmente, a minha
experiência durante o doutorado foi muito feliz, pois somei amizades preciosas que me
proporcionaram diversos momentos de aprendizado, de conversas e boas risadas. Gosto
de pensar que as coisas da vida valem realmente a pena quando a gente se diverte e,
talvez, por esse motivo, o período do doutorado foi, também, para mim, muito, mas
muito divertido. É por essa razão que eu agradecerei, aqui, a todas as pessoas que
dividiram comigo esses momentos divertidos, combustível realmente necessário para a
redação da tese.
Agradeço, inicialmente, as mulheres mais incríveis e parceiras com as quais
tenho o prazer de dividir as conversas que o mundo tende a censurar. Com elas, todos os
assuntos são permitidos e a vida fica, assim, mais rica a cada vez que nos encontramos.
Elas são as irmãs que eu escolhi para a minha vida e, juntas, exercitamos, de forma
plena, as difíceis e necessárias tarefas de sermos livres e mulheres.
Obrigada, Lais Morelatto Gallo, por estar sempre por perto, por ser, para as
minhas filhas, a tia que eu queria para mim, por amar e mimar, de forma gratuita, as
minhas pequenas, por trocar o peso da família e a famigerada alcunha de cunhada pela
leveza de sermos, “somente”, amigas.
Obrigada, Silvia Beltrane Cintra, por ter sempre uma história mais
escabrosa do que a outra para animar os nossos encontros, por ser aquela que possui,
sempre, os autênticos e doces elogios pronunciados na hora certa.
Obrigada, Talita Janine Juliani, por nos encontrarmos no momento preciso e
por quase me fazer acreditar naquele lance um tanto místico de que o Universo, vez ou
outra, se alinha e coloca no nosso caminho aqueles de que precisamos. Longe ou perto,
a um oceano de distância ou a apenas algumas cidades, estamos sempre cuidando uma
da outra. O meu mais sincero agradecimento por ajudar-me com as traduções do
primeiro capítulo desta tese, suas mãos operam milagres.
Obrigada, Cristiane Megid, por ser companheira de militância, por acreditar
na educação pública e de qualidade e, sobretudo, por lutar para que ela aconteça. Por ser
companheira de trabalho, por dividir o cotidiano da escola e os saberes da docência. Por
ser comigo resistência e por me dar, principalmente, a oportunidade de o nosso convívio
transcender os muros da escola. Feito brisa leve, os nossos cafés e conversas noturnas
são um respiro que conduzem a vida ao ritmo harmônico do qual ela não deveria ser
desviada. Obrigada por me ouvir sempre, amiga.
Obrigada, Daniela Spinelli, por ser uma das pessoas mais inspiradoras e
mais bondosas que eu conheci. Agradeço por ser a amiga que conversa sobre questões
teóricas da mesma maneira que fala sobre o cardápio de nossas reuniões, agradeço por
dividir comigo as tarefas profissionais, por ser a mãe de todos os nossos intermináveis
encontros e por estar sempre disponível para os papos-cabeça. Obrigada por desatar os
nós de tradução que apareceram nesta tese e por brigar comigo e com o André quando a
gente insiste em não deixar que a noite acabe.
Obrigada, Paula Porchat, pelos muitos e divertidos anos de convivência,
por, juntas, aprendermos, a nossa maneira, a tarefa de sermos mães ainda tão jovens.
Pelo ouvido confidente, pelo abraço sempre sincero, pelos incontáveis engradados de
cerveja que ficaram pelo caminho, pela cumplicidade, por ter um dos olhos mais lindos
e inspiradores que eu já conheci, por me dizer sempre: “Tamo junto”!
Obrigada, Kerol Brombal, por ser a minha companheira de militância, pelo
ombro amigo, pela presença constante, pelo companheirismo, pelo aprendizado de ser
mulher, de ser mãe, por dividir as angústias e as alegrias da vida, por ser cúmplice, leal,
fiel, por dividir comigo as histórias tristes que marcam a vida, mas, sobretudo, por
mostrar-me a beleza de superá-las. Por ser, ao mesmo tempo, fortaleza e sensibilidade e,
principalmente, por topar beber comigo todas as garrafas que o mundo tende a nos
querer furtar. Com você, divido a mágica de fazer as noites pararem a fim de que o
mundo nos dê o tempo tão necessário para gozarmos das coisas boas da vida: a amizade,
o vinho, o falatório, a comilança, as risadas, as viagens, as músicas da adolescência e a
esperança de que boas novas ainda colorirão esses tempos sombrios. Se a brisa fresca
que anuncia tempos mais generosos soprar por aí, é com você que dividirei a primeira
garrafa e os primeiros sorrisos de tempos menos hostis.
Se agradeci às mulheres que eu trouxe, fortuitamente, para minha vida,
agradeço, também, àquelas que são fonte de aprendizado na minha família. Obrigada,
Nídia Altenfelder, minha avó, pelas memórias doces de infância tão importantes para a
minha formação. Obrigada, Tata, minha mãe, por nunca tirar do rosto um sorriso que
faz do mundo um lugar menos hostil. Obrigada, Mariana e Juliana Altenfelder, minhas
irmãs, por me mostrarem que nada é estanque, que a vida e os valores podem ser
transformados e que a família é uma instituição que deve ser continuamente superada.
Vocês se tornaram, cada uma a sua maneira, mulheres incríveis.
Às minhas filhas, Rafaela Altenfelder e Isabela Altenfelder, o meu
agradecimento especial. Obrigada, Rafaela, por me ensinar a ser mais comedida, por me
dar força quando dela eu precisei, por cuidar da sua irmã quando eu não estive presente,
por tão cedo abraçar a responsabilidade da vida, por ser solidária, gentil e fiel. Por me
abraçar quando sabe que eu não estou bem, por cuidar de mim, por me ensinar a ser mãe
aos 17 anos, por compartilhar os potes de sorvete e os filmes no domingo à tarde.
Obrigada pelas conversas revigorantes sobre feminismo, por ser a minha companheira
favorita de militância, a minha melhor companhia e a minha melhor amiga. Com você, a
vida é muito mais divertida. Obrigada, Isabela, por ser uma das pessoas mais curiosas
que já conheci, por não aceitar nenhuma resposta como verdade universal, por
questionar tudo e todos sem medo, pelos intermináveis banhos em que conversamos
sobre todas as coisas do mundo. Obrigada por sentar ao meu lado nas longas tardes em
que eu redigia a tese e que você me presenteava com os desenhos mais lindos que eu já
vi. Agradeço-lhe por ser tão doce, por me fazer carinho, por me dar abraços gostosos,
lembrando-me, assim, que a vida é, também, o manifestar dos afetos.
Agradeço aos amigos que acompanharam de perto a aventura do doutorado.
Obrigada, queridos Helvio e Késia Moraes, o casal mais divertido que eu conheci nos
últimos tempos. Quando estou com vocês, sinto-me em casa. Obrigada, Fabrina
Magalhães, pelas conversas, pelas cervejinhas, pela companhia em terras italianas e,
sobretudo, pela amizade que transpôs o oceano. Obrigada Edson Santos e André Pasti,
por serem companheiros de militância, por fazerem do cotidiano profissional um tanto
mais leve e divertido e, principalmente, por nos tornarmos amigos. Obrigada, Milene
Baldo, pelas conversas sobre ser mãe e mulher e por dividir comigo as tarefas
profissionais.
Agradeço, a seguir, aos mestres que me ajudaram na tarefa do doutorado.
Obrigada, professora Silvia Rodeschini, por me acolher, de forma tão calorosa e gentil,
em Florença, durante meu período de estudos na Università degli Studi di Firenze.
Agradeço imensamente pelas nossas conversas e pelas orientações. Obrigada,
professora Ana Cotrim, por aceitar o convite para a qualificação e para a defesa, pela
leitura primorosa e detalhada que fez do meu trabalho à ocasião da qualificação. Suas
sugestões e orientações foram decisivas para que eu encontrasse a segurança necessária
para escrever o texto para a defesa. Agradeço sinceramente pela gentileza, pela
honestidade intelectual e pelo tempo despendido para com a leitura do meu trabalho.
Agradeço ao professor Jesus Ranieri por ter aceitado o convite para a
qualificação e para a defesa desta teses. O meu muito obrigada pelas considerações
preciosas que fez durante a defesa, o seu olhar fez toda a diferença para a composição
do texto final. Agradeço ao professor Antonio Rago, por aceitar compor a banca de
defesa e por ter acompanhado com atenção as histórias de bastidores que colecionei
durante a minha ida ao Arquivo Lukács. Agradeço, ainda, ao professor Juarez Duayer,
por deixar o Rio de Janeiro e vir passar um pouco de frio aqui em Campinas para
compor a banca. Agradeço a todos vocês por compartilharem comigo o interesse sobre,
como diz o Berriel em tom brincalhão, “aquele húngaro que estudava Estética, Lulács,
Gulágs, Goulásh, uma coisa assim. Aquele que vivia em cana, da direita e da esquerda.
Não sabia fazer amigos e influenciar pessoas, e dava nisso”.
Agradeço, por fim, a duas pessoas que foram os alicerces desse processo,
sem as quais esta tese, dificilmente, ganharia este formato. Meu mais sincero
agradecimento ao professor Carlos Eduardo Ornelas Berriel, orientador da minha
dissertação de mestrado e desta tese de doutorado, somamos uma parceria de uma
década. Ele é a pessoa que possui a mágica do encontro, de reunir em um lugar um
punhado de “gente boa” e divertida. É o cara que, quando saudamos no aniversário,
pede saúde para conseguir aproveitar os momentos de festa, de bagunça. Foi ele quem
me ensinou a ser menos dura comigo mesma, ensinou-me o sentido da palavra festa e
me encorajou a comemorar as coisas boas da vida. Ensinou-me, ainda, o sentido do
termo paciência histórica e repete sempre essas palavras quando percebe que o meu
mundo está ficando bagunçado. É ele quem briga comigo quando estou colocando
energia em lugar errado. Tornou-se, naturalmente, não só o meu orientador, mas o meu
amigo e uma das minhas referências. Ele é a pessoa em quem eu me espelho, o
intelectual mais instigante que eu conheci. É o meu companheiro de militância, é com
quem troco palpites sobre o contexto político, é quem aceita o convite dos estudantes
para falar em praça pública, em plena manhã de domingo, sobre política. Sou
absolutamente grata por tê-lo encontrado e por ele ter me acolhido ainda na época do
mestrado. Berriel tinha todos os motivos do mundo para dizer não, eu não tinha laços
anteriores com a Unicamp, tinha uma filha de 6 anos e outra que eu carregava, ainda, na
barriga. O tempo era escasso, sempre tive que conjugar a pesquisa com a docência, mas
para o Berriel isso nunca foi um problema, pelo contrário. A vida foi generosa comigo
ao colocá-lo no meu caminho. Obrigada, Berriel, por tudo e por muito mais!
Agradeço, por fim, ao meu companheiro de estrada, àquele que divide
comigo a vida, Danilo Altenfelder Colussi Gallo. Foi ele quem me deu suporte para
desenvolver a pesquisa. Parceiro de militância, das conversas, das descobertas sobre o
mundo. Sempre me encorajou durante a redação da tese, especialmente, quando ganhei
uma bolsa para passar um semestre na Itália. Tomou para si a responsabilidade de
cuidar das crianças e da casa quando fiquei fora, garantindo que tudo ficaria bem. É um
dos meus referenciais. Quando a vida machuca, é ele quem está sempre por perto.
Quando ela é generosa, faço questão de, com ele, dividir as alegrias. Aprendemos juntos
a encarar os dissabores e as alegrias da vida. A vida ao seu lado é sempre mais
divertida, Dani. Obrigada por dividir o seu mundo comigo!
Agradeço, ainda, à CAPES cujo apoio financeiro recebido durante a
execução de parte da pesquisa dentro e fora do país foi essencial; e ao IEL,
essencialmente, ao Miguel, ao Cláudio e a Rose, por todo auxílio recebido durante essa
incrível aventura.
RESUMO
Ao longo de sua trajetória intelectual, o filósofo húngaro Georg Lukács (1885-1971)
produziu estudos sobre os mais diversos assuntos, como estética, política ou ética.
Dentre os temas abordados, a estética ocupou um lugar de destaque em seu pensamento,
de modo que, em dois momentos diversos de sua trajetória, redigiu projetos estéticos
apoiando-se em bases metodológicas distintas. A “Estética de Heidelberg” (1912-1918)
foi redigida em dois momentos diversos, o que resultou em dois textos complementares,
intitulados “Filosofia da Arte”, escrita entre os anos de 1912 e 1914, e “Estética de
Heidelberg”, composta entre 1916 e 1918. Dentre as diversas influências que os textos
apresentam, as mais marcantes são aquelas da filosofia neokantiana, da
Lebensphilosophie e dos escritos de Hegel. A segunda redação do projeto estético
lukacsiano, cuja publicação da primeira parte se deu em 1963, foi pensada a partir da
teoria de Karl Marx e de Friedrich Engels. Lukács, ao iniciar a estética de maturidade,
na década de 1950, pretendia a redação de uma obra que consistiria em três partes,
entretanto, finalizou, apenas, a primeira delas, publicada no ano de 1963. Apesar de,
aproximadamente, 45 anos separarem essas publicações, as indagações que Lukács
colecionava acerca da esfera estética eram muito semelhantes. Dentre elas, pode-se citar
a preocupação em elucidar o estatuto categorial particular do campo da arte no conjunto
das criações humanas, de forma a garantir a autonomia da referida esfera. Em meio a
tais problemas, a categoria da utopia e a dimensão do plano utópico na arte entram em
cena como elementos importantes em ambos os projetos estéticos do autor. A partir de
uma análise de tais textos, da descrição de seus pontos centrais e de um estudo
comparado entre aspectos basilares das estéticas lukacsianas, este estudo pretende, por
fim, descrever, delinear e discutir o caráter utópico da obra de arte, as suas implicações
na esfera estética bem como a relação de proximidade ou de distanciamento entre arte e
vida cotidiana na teoria estética do referido autor.
PALAVRAS-CHAVE: Georg Lukács. Estética. Lebensphilosophie. Marxismo.
Humanismo. Utopia.
ABSTRACT
Throughout his intellectual trajectory, the Hungarian philosopher called Georg Lukacs
(1885- 1971) wrote many studies from many different subjects such as aesthetics,
politics and ethics. Among these topics, the discussions about aesthetics took an
important place in his studies, so that he wrote, in two different moments of his life,
aesthetics projects based on different methodologies. The writing of his first aesthetics,
which became known as “Heidelberg Aesthetics” (1912-1918), was based on neo-
Kantianism philosophy, on Husserl phenomenology, on Dilthey's Lebensphilosophie,
on the writings of Emil Lask and on Hegel’s thoughts. This project consists of two
studies, "Philosophy of Art", which was written between 1912 and 1914, and
"Heidelberg Aesthetics", written between 1916 and 1918. The “Aesthetics” is Lukacs’
second aesthetic project, which was published in 1963, based on the theory of Karl
Marx and Friedrich Engels. He intended to write a book divided into three different
parts, however he finished only the first one, published in 1963. Although nearly 45
years separate these two aesthetics projects, Lukacs’ questions about aesthetics topics
were very similar, such as how to define, to describe and to consider the particular
categorical status of art in the set of human creations. Among these problems, the ideia
of utopia and its dimension in aesthetics come into play such as important elements in
Lukacs’ studies of art. From an analysis of Lukacs’ late and youth aesthetics, this work
aims to describe some important points of these two studies and to compare them.
Finally, to conclude, this study aims to describe and to discuss the ideia of utopia in
Lukacs’ late and youth aesthetics, its implications to the aesthetics field as well as the
relation of proximity or distance between art and life.
Keywords: Georg Lukacs. Aesthetics. Lebensphilosophie. Marxism. Humanism.
Utopia.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................15
1. O projeto estético do jovem Lukács........................................................................................22
1.1. O jovem Lukács e suas influências teóricas: Ernst Bloch, Emil Lask e Kant.............27
1.2. Em meio à filosofia, à alma e às formas, um chamado à vida: a morte de Irma Seidler
........................................................................................................................................... 32
1.3. Entre a alma, as formas e a vida: as ciências do espírito..........................................38
1.4. Dilthey e a filosofia da vida....................................................................................43
1.5.“Filosofia da arte”: O conceito de “realidade vivida”................................................52
1.6. “Filosofia da arte”: A ideia da “harmonia praestabilita”...........................................55
1.7. “Filosofia da arte”: A teoria das mônadas e o “ponto de vista”.................................63
1.8. “Filosofia da arte”: Sobre o método Naturalista de Composição das obras de arte... 73
1.9.“Filosofia da arte”: Noções de historicidade e atemporalidade.................................78
1.10.“Filosofia da arte”: A Fenomenologia da Recepção do objeto artístico....................80
1.11. “Filosofia da arte”: A obra de arte como forma-utopia............................................84
1.12. “Estética de Heidelberg”: questões preliminares......................................................87
1.13.“Estética de Heidelberg”: A esfera estética e a fundamentação de sua autonomia....94
1.14.“Estética de Heidelberg”: A relação sujeito-objeto..................................................102
1.15. “Estética de Heidelberg”: A Forma Estética e as suas especificidades...................108
2. A “Estética” (1963) de maturidade.....................................................................................113
2.1. Os fundamentos da estética marxista e a teoria do reflexo.......................................113
2.2. A origem do reflexo estético e a ideia de cismundaneidade ....................................127
2.3. O caminho da mundanidade......................................................................................135
2.4. Considerações iniciais sobre o objeto estético..........................................................139
2.5. A criação artística e a relação entre objetividade e subjetividade na esfera estética.145
2.6. Do indivíduo particular à consciência de si do homem como gênero humano.........152
2.7. O processo de criação e a noção de meio homogêneo.............................................162
2.8. O particular como categoria central da esfera estética............................................171
2.9. A missão desfetichizadora da arte...........................................................................181
2.10. A relação sujeito-objeto na estética.......................................................................192
2.11. A catarsis e a experiência receptiva na estética.....................................................196
3. Arte, estética e utopia: relações possíveis.........................................................................209
3.0. Quando as ideias se materializam ou a confissão...................................................209
3.1. Filosofia da vida e Marxismo: dois projetos estéticos em confronto...................... 211
3.2. A ideia de gênio na estética de juventude versus a ideia de criação artística na estética
marxista ou a Aristocracia Espiritual versus o Homem Universal................................ 221
3.3. Fenomenologia da recepção, mal-entendido e incomunicabilidade da vivência versus
experiência receptiva e catarsis..................................................................................... 227
3.4. A ideia de Utopia no pensamento estético do jovem e do velho Lukács................. 235
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................255
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................265
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INTRODUÇÃO
Um crescente interesse nas obras do filósofo húngaro Georg Lukács (1885-
1971) acompanha-me desde os tempos da graduação, mais precisamente, quando a
imbricada relação entre literatura, filosofia e história tornou-se, para mim, uma
inquietação central à leitura dos romances de Machado de Assis, Balzac ou García
Márquez. Meu primeiro contato com as suas obras se deu a partir da leitura de “A
Teoria do Romance” (1914-15), ensaio que, conjuntamente ao texto “O Romance como
epopeia burguesa” (1935), se tornou objeto de investigação de minha dissertação de
mestrado, intitulada ““A Teoria do Romance” e “O romance como epopeia
burguesa”: um estudo comparado da concepção de Romance em Georg Lukács”,
defendida no ano de 2012, sob a supervisão do professor Drº Carlos Berriel, no Instituto
de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Se a leitura de “A Teoria do Romance” foi essencial para responder, ou
ainda, provocar as minhas reflexões sobre a relação entre literatura, filosofia e história,
quão inquietante tornou-se para mim o estudo das estéticas lukacsianas. Assim que
tomei conhecimento do amplo quadro das suas obras, o meu maior desafio se
materializou na seguinte formulação: Se me proponho a estudar o pensamento estético
deste autor, por onde devo começar? Se a questão carrega consigo um caráter
aparentemente simples, sua resposta se revelou um desafio. Assim que terminei a leitura
de “A Teoria do Romance”, percebi que o debate sobre o gênero romanesco
acompanhou Lukács por toda a sua trajetória intelectual, aspecto que se repete ao longo
de seu pensamento envolvendo diversas noções, como a ideia de totalidade, obra de
arte, revolução, dentre outras.
Foi a partir dessa observação que passei a entender o pensamento lukacsiano
como um processo de descontinuidades, reformulações, rompimentos e, finalmente,
superações. Nesse sentido, sempre me interessei pela leitura das obras de juventude
deste autor, instigada, principalmente, pelas Notas, prefácios e autocríticas que o
próprio Lukács, já mais maduro, redigiu criticando duramente as suas concepções de
juventude, essencialmente, em relação ao seu pensamento voltado à arte. Sempre me
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interessaram os resgates temáticos que o autor realizou durante o seu percurso
intelectual; dentre os quais, podemos citar os seus escritos sobre o gênero romanesco,
ou mesmo, a redação de sua estética de juventude e de maturidade. Essa atitude
lukacsiana de “enterrar” em suas autocríticas tardias as suas concepções de juventude
sempre me chamou a atenção, pois aguçou a minha vontade de compreender a trajetória
lukacsiana como um todo, no sentido de tentar entender se há correspondências, ou
mesmo, uma possível homologia entre o seu pensamento de juventude e de maturidade.
Não se pode negar que Lukács faz retomadas temáticas de elementos oriundos da esfera
estética ao longo de sua vida, mas esses resgates estão circunscritos, somente, ao campo
temático ou o autor retoma e amplia, na maturidade, conceitos pensados em sua
juventude? Nessa mesma linha de raciocínio, sempre me intrigaram as mudanças de
referencial teórico de Lukács à redação de seus escritos estéticos. Ademais, as inúmeras
e valiosas conversas com o meu orientador, o professor Drº Carlos Berriel, me
atentaram para a noção de que o pensamento de Lukács está intimamente ligado à sua
autobiografia; aspecto que contribuiu substancialmente para a compreensão das rupturas
e das superações teóricas compreendidas nas obras do autor. Em um mundo em que a
opção pela “carreira” é, muitas vezes, mais valiosa do que a lisura e a integridade
intelectual, Lukács, no mínimo, pode ser visto como um autor de grande coragem, pois
admitiu publicamente, por meio de suas autocríticas, diversos problemas conceituais ao
longo de sua trajetória. A sua estética de juventude, por exemplo, cuja extensão
ultrapassa as seiscentas páginas, teria ficado, literalmente, engavetada se os
organizadores da obra não a tivessem publicado, pois Lukács é enfático em dizer, em
Nota à obra, que foi uma tentativa absolutamente fracassada. Esse desprendimento do
autor ao superar concepções que julgava problemáticas em suas obras sempre me saltou
à vista, pois essas superações dizem muito acerca do movimento de seu pensamento.
Ao construir esses importantes referenciais, me foi possível responder ao
questionamento que me acompanhava. Se a pergunta parecia simples ou ingênua, a
resposta, por conseguinte, soou estranhamente lógica ou elementar: Se pretendo realizar
um estudo sistemático do pensamento estético lukacsiano devo, então, partir da sua
gênese. Em outras palavras, assim que defendi o mestrado, estava convencida a retomar
a obra estética de juventude lukacsiana, para que, enfim, pudesse compreender o vasto e
complexo pensamento estético de maturidade deste autor. Somada à leitura das questões
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teóricas referentes ao pensamento lukacsiano, ignorar a sua biografia e o seu rico
diálogo com suas posturas teóricas e com a evolução de conceitos ao longo de sua
trajetória intelectual tornou-se um movimento pouco eficaz durante a minha pesquisa,
de forma que a leitura de biografias, epistolários, entrevistas, e uma visita, ainda que
breve, ao Instituto Lukács, na Hungria, foram aspectos absolutamente ricos para que eu
pudesse incrementar o meu entendimento sobre a sua obra estética.
Partilhando dessa noção, o meu tema de pesquisa foi, aos poucos, ganhando
contornos mais nítidos e, assim, me decidi por investigar um assunto praticamente
descurado na fortuna crítica de Lukács: a categoria da utopia e a dimensão do plano
utópico nos seus projetos estéticos de juventude e de maturidade. Coloquei-me,
portanto, diante da tarefa de descrever, delinear e discutir, inclusive, as implicações do
caráter utópico da obra de arte e a relação de proximidade ou de distanciamento entre
arte e vida cotidiana na sua teoria estética. Para tal, empreendi uma análise das estéticas
de juventude e de maturidade, descrevi os seus pontos centrais e realizei um breve
estudo comparado entre aspectos basilares das estéticas lukacsianas.
A fim de realizar este estudo, assumi como chave de leitura a noção de que
o percurso crítico de Lukács possui um movimento peculiar, o qual compreende,
certamente, resgates temáticos, dentre os quais, podemos citar a autonomia da obra de
arte, sua recepção, sua criação e a fundamentação da noção de obra de arte. Assumindo
o resgate temático, buscamos investigar de que maneira Lukács abordou esses temas nas
duas estéticas, analisando qual aparato teórico foi utilizado no trato desses conceitos e
sua implicação para a esfera estética. Levando em consideração as questões referidas,
me propus a estudar, primeiramente, a sua estética de juventude, a qual fora redigida em
dois momentos diversos, entre 1912-14 e entre 1916-18. Conhecido como o primeiro
projeto estético de Lukács, os dois volumes que compõem a obra são pouco conhecidos
pelos seus leitores e estudiosos, de forma que encontrei pouquíssimas obras que
mencionassem este projeto e raríssimos estudos sistemáticos sobre ele. Como a estética
de juventude é composta por dois volumes, a “Filosofia da Arte” e a “Estética de
Heidelberg”, respectivamente, utilizamos, ao longo da tese, algumas denominações para
nos referirmos à obra completa: projeto estético de juventude, manuscritos de
Heidelberg, estética de juventude, ou mesmo, o termo “Estética de Heidelberg”, este
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último utilizado pelo próprio autor quando fazia referências à obra. Percebemos, durante
a pesquisa, que não há uma referência padronizada na fortuna crítica de Lukács quando
se pretende aludir à estética de juventude.
Dentre a bibliografia que contribuiu para a minha leitura da estética de
juventude, encontrei apoio substancial na tese de Patriota “A relação sujeito-objeto na
Estética de Georg Lukács: reformulação e desfecho de um projeto interrompido”
(2010), no livro de Tertulian, “Georg Lukács: etapas de seu pensamento estético”
(2008) e no texto de Tito Perlini, que acompanha a edição italiana da estética de
juventude. O meu contato com a referida obra se deu em Florença, quando pude,
finalmente, na biblioteca da Università degli Studi di Firenze, tomar emprestada uma
versão italiana da obra. Com financiamento da CAPES, no período compreendido entre
2/2015 e 6/2015, pude realizar um estágio de pesquisa no departamento de Ciências
Políticas e Sociais dessa mesma instituição, sob a supervisão da Profa. Dra. Silvia
Rodeschini, onde tive acesso às edições italianas das obras de Lukács, cujas notas,
introduções e estudos foram de importância capital para fundamentarem a minha leitura.
Neste mesmo período, pude visitar o Arquivo Lukács, em Budapeste, Hungria, onde
pude reunir, também, material para esta pesquisa.
Se me foi memorável a quantidade de volumes reunidos na biblioteca
particular do Arquivo Lukács, nada se comparou à possibilidade de coletar material para
pesquisa sentada à mesa em sua sala de jantar. Lembro-me, ainda, do meu espanto
quando manuseei os manuscritos da estética de juventude que me foram entregues em
uma caixa de papel amarelada pelo tempo. No Arquivo Lukács, pude investigar os
títulos que o autor acumulou, ao longo de toda uma vida, em seu apartamento, bem
como aqueles que estudou no final da vida, reunidos em seu escritório. Ainda me foi
possível apreciar, da janela de seu escritório e de sua sala, a linda vista para o Danúbio.
Assim que retornei ao Brasil, em junho de 2015 iniciei, após a leitura dos
comentadores, a redação desta tese. Sobre questões de ordem prática, reunirei algumas
considerações breves sobre a forma de composição deste estudo, para, em um segundo
momento, descrever a proposta de cada um dos capítulos e os seus respectivos
conteúdos. Adotamos, portanto, uma divisão temática entre os dois primeiros capítulos,
balizada pelas obras estudadas, de forma que nos dedicamos, primeiramente, ao estudo
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da estética de juventude e, posteriormente, à análise da estética de maturidade.
Buscamos, no interior de cada um desses capítulos, construir seções que dessem conta
de expor, de forma sistemática, as noções lukacsianas mais importantes sobre a esfera
estética, no sentido de que o tema da utopia só poderia ser compreendido após a
sedimentação desses complexos categoriais. No primeiro capítulo, a vinculação entre
utopia e arte é mais clara, pois, na estética de juventude, o tema é igualmente tratado de
forma um pouco mais sistemática do que na “Estética”. Sendo assim, foi mais fácil
reconstruir a discussão do autor sobre o tema da utopia e sua vinculação com as
categorias presentes da estética de juventude. No segundo capítulo, dedicado à
“Estética” (1963), também construímos seções que abordaram os temas mais essenciais
sobre a esfera estética, mas a vinculação entre a questão da utopia e tais pontos
precisava ser reconstruída, pois o tema da utopia estava dissolvido ao longo da obra.
Sendo assim, a reconstrução desse debate foi realizada no terceiro capítulo, juntamente
a um estudo comparativo dos pontos mais importantes das estéticas lukacsianas, pois,
para uma compreensão mais sólida da noção de utopia, foi importante entendermos as
diferenças radicais entre esses dois projetos estéticos.
Foi em Florença que fiz a primeira leitura detida da estética de juventude, a
partir da tradução italiana de Luisa Coeta, que, curiosamente, veio a público na Itália
um ano antes da publicação da edição alemã. Como sabia que Lukács a havia gestado
durante um soggiorno fiorentino, não pude ignorar a relação entre o acervo de obras
reunido na cidade de Florença e a intenção primeira do autor de descrever e sistematizar
o complexo categorial da esfera estética em busca da fundamentação de sua autonomia.
A redação do primeiro capítulo desta tese, intitulado “O projeto estético do jovem
Lukács”, se concentra na análise de aspectos centrais dos dois volumes da estética de
juventude: a “Filosofia da Arte” (1912-14) e a “Estética de Heidelberg” (1916-18). Ao
longo deste capítulo, busquei um entendimento desse projeto estético que permitisse a
definição da categoria da utopia e da dimensão do plano utópico na arte, de forma a
delinear e discutir suas implicações na esfera estética. Para tal, resgatei, primeiramente,
as bases teóricas que deram sustentação à obra bem como expus os pontos centrais em
torno dos quais é construída a estética de juventude. São eles: a autonomia da esfera
estética, a fundamentação da obra de arte, as noções de forma, de “realidade vivida”, de
“harmonia praestabilita”, de “ponto de vista” e de “historicidade e atemporalidade”.
20
Também foi exposto o modo como Lukács compreende a fenomenologia da recepção e
da criação do objeto artístico bem como a relação sujeito-objeto na esfera estética.
Redigido o primeiro capítulo desta tese, passei, então, à segunda etapa da
pesquisa, que consistiu na leitura do projeto estético de maturidade de Lukács e na
análise de textos que, direta ou indiretamente, contribuíram para o entendimento da
“Estética” (1963). Iniciamos o capítulo intitulado “A “Estética” (1963) de maturidade”
expondo os fundamentos teóricos dessa estética, o que nos conduziu à exposição da
teoria do reflexo, da origem do reflexo estético e da ideia de cismundaneidade.
Argumentamos, ainda, sobre a evolução humana e o seu caminho até a representação da
mundanidade na obra de arte. Essas questões nos levaram a tecer considerações iniciais
sobre o objeto estético, a criação artística e a relação entre objetividade e subjetividade
na esfera estética. Empreendemos, posteriormente, uma discussão sobre o efeito da
relação entre o homem e a obra de arte, que possibilita ao indivíduo particular alçar-se à
consciência de si como gênero humano. Seguimos expondo de que forma Lukács
compreende o processo de criação e a noção de meio homogêneo, o particular como
categoria central da esfera estética, a missão desfetichizadora da arte, a relação sujeito-
objeto na estética e, finalmente, a noção de catarsis e a experiência receptiva na estética.
A partir da consolidação dessas noções e entendendo que a noção de utopia
está dissolvida no complexo de problemas que sistematizamos no segundo capítulo,
redigimos um terceiro capítulo cujas seções abordam, em um primeiro momento, a
fundamentação teórica diversa das duas estéticas e as implicações que esses referenciais
geram para o campo da arte. Em um segundo momento, discutimos a ideia da criação
artística, voltada à noção de gênio, presente na “Estética de Heidelberg”, e a concepção
de artista realista, oriunda da “Estética”; ressaltando as implicações dessas noções para
o campo da arte. Discutimos, então, o processo de recepção do objeto artístico e a
relação sujeito-objeto subjacente às duas estéticas, levando em consideração as noções
de mal-entendido e de incomunicabilidade da vivência, presentes na estética de
juventude, e a ideia de catarsis, delineada na estética de maturidade. Por fim, diante da
compreensão desses complexos categoriais subjacentes aos textos referidos,
descrevemos a noção de utopia nas estéticas lukacsianas, suas implicações no que tange
à esfera estética e ao pensamento lukacsiano sobre a arte.
21
No espaço que dedicamos às Considerações Finais, sintetizamos questões
relativas ao complexo categorial presente nas estéticas de juventude e de maturidade,
buscando resposta para a questão: Pode-se dizer que há uma homologia entre as
estéticas? Sistematizamos, por conseguinte, pontos importantes sobre o tema da utopia,
cuja motivação adveio das seguintes questões: Em que consiste a ideia de utopia nas
estéticas de juventude e de maturidade de Lukács? O movimento de distanciamento ou
de aproximação entre arte e vida cotidiana apresentado nas estéticas se relaciona, de
alguma forma, à ideia de utopia? Se isso ocorre, quais são os desdobramentos dessa
questão? A categoria da utopia é a causa da aproximação ou do distanciamento entre
arte e vida cotidiana, ou é, somente, um dos fatores que contribui para essa relação? A
partir das respostas que encontramos para alguns desses questionamentos, fomos
conduzidos a outras formulações, tais quais: O processo de recepção das obras de arte,
descrito na “Estética” (1963), aponta para um sujeito estético com maior potencial
revolucionário? e De que forma a questão da utopia está implicada nessa reflexão?
Diante dessas reflexões, levantamos alguns temas relevantes para estudos futuros.
22
CAPÍTULO 1
O projeto estético do jovem Lukács
“Comecei como crítico literário e ensaísta
procurando uma base teórica primeiro na estética
de Kant e depois naquela de Hegel. No inverno de
1911-1912, em Florença, pensei no primeiro projeto
de uma estética sistemática autônoma na qual
comecei a trabalhar em Heidelberg nos anos 1912-
1914. Recordo-me sempre do benevolente interesse
crítico que Ernst Bloch, Emil Lask e, sobretudo,
Max Weber demonstraram em minha tentativa, que
falhou completamente" (LUKÁCS, 1973, p.XXXII,
tradução nossa).
Imediatamente após a morte de Georg Lukács, no ano de 1971, György
Márkus, juntamente a alguns expoentes da chamada “Escola de Budapeste”, um grupo
de jovens filósofos discípulos do autor, encontram, organizam, decifram, sistematizam e
reconstituem o seu projeto estético de juventude, levando-o integralmente a público em
1973-74. Pode soar estranho um manuscrito de cerca de 700 páginas ter sido publicado
e remontado após a morte de seu autor; todavia, encontramos a resposta para esse
acontecimento em sua própria trajetória intelectual. Após a adesão de Lukács ao
comunismo, em 1918, o autor se afastou, gradualmente, de sua produção de juventude,
de modo que não foram poucas as autocríticas que dirigiu aos estudos redigidos nessa
etapa de seu pensamento. Tal aspecto pode ser ilustrado pelo prefácio que escreveu para
“A Teoria do Romance” (1914 e 1915) ou para “História e consciência de classe”,
escrito entre 1919/22 e publicado em 1923. É importante observar que o filósofo,
diversas vezes, desautorizou, em suas autocríticas, textos que lhe renderam notabilidade
quando jovem, aspecto que ocorreu, igualmente, em relação ao seu projeto estético de
juventude, abandonado e, posteriormente, esquecido. Se não fosse pelos membros da
“Escola de Budapeste”, talvez, nunca viéssemos a conhecê-lo integralmente.
Dois estudiosos da obra de Lukács - György Markus e Tito Perlini -
observam que os escritos estéticos de Heidelberg são um único projeto, redigido em
dois momentos distintos, intitulados “Filosofia da Arte” (1912-14) e “Estética de
Heidelberg” (1916-18). Lukács, no prefácio à sua estética de maturidade, afirma que foi
23
no inverno de 1911-1912, ao longo de uma temporada em Florença, que o seu projeto
de juventude foi gestado. Na cidade que comporta o acervo mais notável da arte
renascentista, o autor afirmou o surgimento do plano de redação de uma estética
sistemática autônoma, cuja elaboração se deu em dois momentos. Primeiramente, entre
1912 e 1914, Lukács elaborou a “Filosofia da Arte”, escrita em Heidelberg, considerada
por Perlini (1973, Prefácio, p. XI) a obra que marca a transição de “A alma e as formas”
(1911) para “A Teoria do Romance”, dois grandes estudos do jovem autor. Nesse
sentido, a leitura da “Filosofia da Arte” funciona como uma ponte para a compreensão
de dois períodos importantes de transformação do pensamento do Lukács pré-marxista:
[...] seja a problemática por meio da qual se deu a superação da fase inicial,
caracterizada a partir de uma contradição sem saída, isto é, daquela que
podemos definir como a fase em que, no pensamento de Lukács, domina a consciência infeliz; seja os impulsos, os motivos, os elementos reflexivos e
os estímulos culturais que estão na base de sua passagem da esfera do trágico
àquela da utopia, que depois superará a si mesma, através de um processo
caracterizante no sentido de uma verdadeira e própria Aufhebung, para
desembocar na adesão ao marxismo e no empenho político revolucionário
(PERLINI, Prefácio, 1973, p. XI, tradução nossa).
Entre 1916 e 1918, portanto, durante a Primeira Guerra, e, após a publicação
de “A Teoria do Romance”, Lukács viria a redigir a segunda parte de seu projeto, a
“Estética de Heidelberg”, que viria cumprir o papel de seu exame de habilitação na
Universidade de Heidelberg, em 1918, o que não ocorreu em função de sua
nacionalidade. Poucos tempo depois, o autor ingressou no PC húngaro, visando se
dedicar à atividade política e à Revolução bolchevique, o que fez com que a “Estética de
Heidelberg” fosse deixada de lado pelo seu autor:
[...] o fato pode surpreender unicamente quem não conhece a postura
negativa de Lukács nos confrontos da fase pré-marxista da própria atividade,
bem como a sua própria natureza de pensador que ligava o próprio destino
espiritual sempre e apenas aos problemas colocados vez e outra pela obra
sobre a qual estava trabalhando, enquanto demonstrava a mais perfeita
indiferença em relação aos trabalhos já levados a cabo (MÁRKUS, Nota,
1974, p.316, tradução nossa).
24
György Márkus, em Nota à edição italiana do projeto estético de
Heidelberg, nos relata que Arnold Hauser1, em 1919, recebeu de Lukács alguns
capítulos da obra para que pudessem ser conservados, os quais foram devolvidos, na
década de 60, a Lukács, que, após ter recuperado o material, afirmou não os ter
revisado, provavelmente, porque se ocupava, à época, da redação de sua estética de
maturidade, que retoma e desenvolve substancialmente os temas centrais de sua estética
de juventude. Ainda segundo Márkus, no verão de 1970 e com vistas a uma edição
húngara de suas obras de juventude, Lukács confiou a alguns de seus alunos - Márkus,
Ferenc Fehér, Agnes Heller e Mihály Vadja - capítulos inéditos de sua estética de
juventude, os quais foram inseridos integralmente na publicação da obra. De posse dos
capítulos já conhecidos e daqueles que Lukács apresentou posteriormente a seus alunos,
começava, assim, um trabalho bastante difícil em relação à organização da estética de
juventude, essencialmente, porque o seu autor já estava muito doente, o que
impossibilitou esclarecimentos acerca de questões ligadas à estrutura, ou mesmo, ao
surgimento desses manuscritos. Outro desafio foi cotejar esses textos com os seus
correspondentes datilografados, pois havia alterações, inserções, ou mesmo, supressões
de trechos.
Após a morte de Lukács, em 1971, quando o trabalho de estruturação da
obra havia sido iniciado, foram encontrados outros escritos que "(...) não somente
enriqueceram aqueles já conhecidos, mas lançaram sobre eles uma nova luz”
(MÁRKUS, Nota, 1974, p. 317, tradução nossa). Descobriu-se, por conseguinte, que
Lukács não havia confiado os manuscritos de Heidelberg somente a Hauser, mas, ainda,
a Charles Tolnay2. Ademais, o Arquivo Lukács da Academia Húngara de Ciências
recebeu uma mala que continha cartas, manuscritos e notas do autor, deixados em um
1Arnold Hauser (1892 -1978) foi escritor e historiador da arte. Nascido na Hungria, estudou história da arte e literatura na universidade de Budapeste, onde fez parte de um grupo de intelectuais em que
conheceu Lukács. Sua obra mais conhecida, intitulada “História Social da Arte e da Cultura” (1951),
gerou polêmica nos círculos intelectuais da época devido à orientação ideológica de esquerda, quando
esta estava, praticamente, excluída do ambiente da crítica artística. 2Karoly Vagujhely Tolnai, mais conhecido como Charles Tolnay (1899-1981), foi professor e historiador
da arte, lecionando em diversas universidades europeias e em Princenton, nos EUA. Junto a Hauser,
também foi colega de Lukács. Especializou-se no estudo de Michelangelo e, após diversos anos
lecionando, em 1965, mudou-se para a Itália e se tornou diretor da Casa Buonarroti, em Florença. da arte,
lecionando em diversas universidades europeias e em Princenton, nos EUA. Junto a Hauser, também foi
colega de Lukács. Especializou-se no estudo de Michelangelo e, após diversos anos lecionando, em 1965,
mudou-se para a Itália e se tornou diretor da Casa Buonarroti, em Florença.
25
banco alemão à época que Lukács retornou de Heidelberg a Budapeste. Ao encontrarem
e analisarem o material referido, os organizadores da estética observaram que seu autor
não tinha intenção de deixá-lo na Alemanha, entretanto, parte desses escritos - o
capítulo V da “Estética de Heidelberg” e a conferência “O problema formal da pintura”-
acabou se somando aos estudos que ficaram em Heidelberg, como ocorreu, igualmente,
aos esboços do autor acerca de um possível livro sobre Dostoiévski, o qual nunca fora
escrito.
Reunidos todos esses manuscritos e os seus correspondentes datilografados,
percebeu-se a impossibilidade da publicação de uma obra orgânica, apesar de Lukács
sempre se referir ao projeto estético de Heidelberg de tal maneira. Márkus levanta
alguns fatores que levaram os organizadores a dividir a obra em duas partes.
Primeiramente, havia dois primeiros capítulos, os quais apresentavam a mesma
formulação - Se as obras de arte existem, como são possíveis? -, apesar de abordarem-
na de modo diverso. Outro fator foi a questão de pontos de vista divergentes e
inconciliáveis sobre questões filosóficas que compunham a obra. Diante desses
aspectos, optou-se pela publicação do projeto em duas partes: a “Filosofia da Arte”
(1912-14) e a “Estética de Heidelberg” (1912-18).
Márkus ainda observa que a numeração dos capítulos dos trechos
manuscritos não parecia ser segura e clara, de modo que os editores preferiram
reconstruir e reordenar tais trechos para “(...) ilustrar detalhadamente, na medida do
possível, a gênese dos manuscritos” (MÁRKUS, Nota, 1974, p. 320, tradução nossa).
Em relação ao material que já havia sido datilografado por Lukács, os organizadores
afirmam que ele estava mais organizado, pois seus capítulos estavam já numerados, tais
quais as páginas oriundas de cada um deles, elemento que facilitou o trabalho. Diante
desse cenário, os organizadores se colocaram frente a um novo problema: Quais
capítulos deveriam integrar a primeira parte da obra e quais deles comporiam a
segunda?
Como se optou pela publicação em duas partes, utilizou-se como critério a
cronologia dos textos. Seus organizadores conseguiram datá-los, pois Lukács, ao
referenciar algumas obras em pé de página, deu a entender que determinados trechos
foram escritos antes de 1914 e outros, posteriormente a 1916. As referências do autor
26
sobre conteúdos de suas obras anteriores, essencialmente, a temas relativos aos ensaios
que compõem “A Alma e as formas” bem como o exame de suas correspondências
privadas auxiliaram, também, tal datação. Estabelecida a divisão da obra, pensou-se em
seus respectivos títulos, de modo que a primeira parte, intitulada “Filosofia da Arte”,
fora assim denominada, pois o termo aparecia em uma cópia datilografada do
manuscrito, apesar de Márkus afirmar não haver nenhum significado conceitual
subsumido ao título. À segunda parte da obra, atribuiu-se o título “Estética de
Heidelberg”, modo pelo qual Lukács se referia a este projeto.
Apesar de o mercado editorial brasileiro possuir um escopo relativamente
amplo de obras do filósofo húngaro traduzidas para o português, tal não ocorreu com os
seus projetos estéticos de juventude e de maturidade, o que nos fez recorrer às
respectivas leituras em outros idiomas. No processo de busca do material, um fator
curioso nos chamou a atenção no que tange à estética de juventude, percebeu-se que a
sua primeira edição veio a público em língua italiana, traduzida por Luisa Coeta, antes
mesmo da sua publicação em alemão. Ao visitar o arquivo de Lukács, em Budapeste, no
ano de 2015, não encontrei uma resposta para essa pergunta no material de pesquisa ao
qual tive acesso. Indaguei, portanto, à bibliotecária e “guardiã” do arquivo do autor,
Mária Székely, sobre a questão. Ela me disse que, muito provavelmente, a obra fora
publicada primeiramente na Itália por questões ligadas ao mercado editorial.
A edição italiana utilizada nesta pesquisa e organizada por Tito Perlini é
composta por dois volumes. O primeiro deles, intitulado “Filosofia da Arte” (1912-14),
fora publicado na Itália, em 1973, um ano antes de sua publicação em alemão, realizada
pela editora Hermann Luchterhand Verlag. O segundo volume, a “Estética de
Heidelberg” (1914-18), fora publicada em italiano, em 1974, mesma data da publicação
alemã. Observemos que é recorrente a nomeação “Estética de Heidelberg”, projeto
estético de Heidelberg, ou ainda, manuscritos estéticos de Heidelberg, a ambos os
volumes que compõem este projeto de juventude, visto que são textos que se
complementam, formando, assim, um único projeto estético. Para Perlini, os elementos
que serão aprofundados e desenvolvidos na “Estética de Heidelberg” já estão postos na
“Filosofia da Arte”.
27
Nesta tese, não pretendemos a realização de um estudo comparativo
pormenorizado dos conceitos apresentados por Lukács nos dois volumes da estética de
juventude. Contudo, sendo objetivo deste trabalho a análise do tema da utopia nos
projetos estéticos lukacsianos, optamos por investigar a questão detidamente em ambas
as obras e cotejar a ideia de utopia apresentada nos dois volumes da estética de
juventude. Tal estratégia pode ser necessária dado que, para compreendermos o tema da
utopia nas referidos textos, devemos nos atentar para as características do percurso
crítico lukacsiano, de movimento bastante peculiar.
Nicolas Tertulian, em “Georg Lukács: Etapas de seu pensamento estético”
(2008), enfatiza o processo contínuo de autossuperação da trajetória intelectual deste
filósofo e salienta a importância da dinâmica singular do movimento de seu pensamento
para se compreender, enfim, o desdobramento real de sua trajetória intelectual. Rainer
Patriota (2010, p.13) reafirmará essa questão, definindo a trajetória intelectual de
Lukács como um “paradigma de continuidade”, observando que as retomadas de suas
concepções juvenis e a constante tentativa de (re)definição de um mesmo objeto são
elementos constantes em seu percurso. Levando em conta essas observações, nos
atentaremos à leitura e à análise dos dois volumes que compõem o projeto de
Heidelberg, pois ambos foram redigidos em momentos diversos e apresentam certas
distinções em seu eixo temático e estrutural, o que pode indicar uma compreensão
lukacsiana diversa da ideia de utopia no fenômeno artístico.
1.1. O jovem Lukács e suas influências teóricas: Ernst Bloch, Emil Lask
e Kant
Para a compreensão das influências teóricas do jovem Lukács, é substancial
falarmos um pouco acerca dos círculos filosóficos por ele frequentados. Em 1909-1910,
o autor viaja a Berlim portando uma recomendação da Academia Húngara de Ciências,
com o objetivo de se tornar aluno de Georg Simmel. Neste ínterim, constitui-se a
importante amizade entre Lukács e Ernest Bloch, o qual atentara aquele sobre a
possibilidade de se fazer filosofia “como Aristóteles e Hegel”, forma diversa do que
28
ocorria na época. A admiração mútua e a relação estreita entre eles perduraram por
longa data, gerando a seguinte anedota, criada pelo neokantiano Emil Lask: “Quem são
os quatro apóstolos? Matheus, Marcos, Lukács e Bloch”. Apesar desse laço sólido de
amizade, as divergências teóricas acabaram por separá-los, pois os longos debates sobre
arte contribuíram para que a amizade se dissolvesse. Enquanto Lukács defendia os
ideais da tradição clássica, Bloch era partidário das novas tendências artísticas,
valorizando o surgimento e o desenvolvimento das vanguardas. Na década de 30, o
debate sobre o expressionismo marcou fortemente suas posições acerca das vanguardas
artísticas, de modo que dirigiram reciprocamente severas críticas acerca da temática, o
que acabou tornando a amizade, já arrefecida, um tanto infecunda. Apesar do
rompimento entre Lukács e Bloch, é inegável o legado deixado por este na trajetória
intelectual do filósofo húngaro, como, por exemplo, o direcionamento gradual para um
modo de filosofar norteado pelo plano das categorias sistemáticas. Tal aspecto
impulsionou Lukács para além do ensaísmo e da sociologia, em contraposição à grande
parte dos ensaios que compõem “A alma e as formas” (1910). Para Patriota, é devido a
Bloch que Lukács:
[...] encontrava sua vocação como filósofo de talhe clássico, isto é, como
ontólogo, no sentido de “Aristóteles e Hegel”. Naturalmente, isso não excluía
outras influências, como Kant e a filosofia da vida, mas definia uma forma
particular de abertura em relação a elas. Não por acaso, estas últimas seriam mediadas por Emil Lask, de quem Lukács irá se aproximar no ano de 1912,
em Heidelberg, valendo-se dele para a fundamentação de sua estética
(PATRIOTA, 2010, p. 25).
O projeto estético de juventude de Lukács fora altamente influenciado pela
filosofia neokantiana e pelo seu sistema categorial. Dentre as escolas que
compartilhavam dessa filosofia, estavam a de Marburg, cujos expoentes consistiam em
Hermann Cohen e Paul Natorp, e a do sudoeste da Alemanha, cujos autores centrais
eram Heinrich Rickert, Wilhelm Windelband e Emil Lask. Tais escolas atraíam a
atenção dos historiadores da filosofia pelas posições que defendiam frente à disputa da
ortodoxia kantiana. Segundo Tertulian (2008, p.122), a escola de Marburg defendia o
caráter “produtivo” do conhecimento, afirmação que corrobora para a defesa da
prioridade absoluta da espontaneidade intelectiva da subjetividade. Já a escola do
sudoeste da Alemanha e, fundamentalmente, o filósofo Emil Lask, defendiam um
29
caráter dual original da “forma” e do “material”, de modo a acentuar a função
determinante do segundo.
Para Lask, “forma” e “material” unem-se a partir da chamada relação
originária. A partir dessa concepção, entende-se que, por meio da “forma”, o “material”
se torna objeto para o sujeito que o experimenta. Consequentemente, após este
movimento, o objeto se reveste de significado. Para este filósofo, o “material” se
apresenta duplamente irracional, pois, primeiramente, é considerado impenetrável, visto
que, por mais que seja envolvido pela forma, se apresenta como o momento
heterogêneo do sistema, o que equivale a dizer que não pode ser assimilável pela lógica.
O segundo traço irracional do “material” consiste, justamente, em sua carência de
forma, o que o impulsiona no sentido de solicitá-la. Instigado por essa concepção,
Lukács desenvolve a sua ideia de autonomia do objeto artístico ancorada em dois
princípios: a) o objeto artístico é um mundo referido e adequado à subjetividade e b) a
obra de arte é uma mônada, ou seja, um mundo (microcosmo) formalmente e
conteudisticamente fechado em si.
Para Nicolas Tertulian, Lukács aproxima-se substancialmente da filosofia de
Lask em seu projeto estético de juventude, pois este era o mais “materialista” dos
filósofos neokantianos. Lask tendia, no interior da filosofia neokantiana, e de modo
mais veemente do que seu colega Heinrich Rickert, a valorizar e a atribuir uma maior
autonomia ao chamado momento “material” e “objetivo” do conhecimento. Tertulian
faz as seguintes considerações a respeito da questão:
Pretendemos destacar, sobretudo, o esforço de Lask para corrigir o
subjetivismo e o formalismo no interior do neokantismo, valorizando
nitidamente a função do “material” na dualidade original sujeito-objeto. A
forma lógica dos objetos não era, no entanto, para Lask, uma realidade
inteiramente autárquica, mas uma realidade que aderia estreitamente a sua
materialidade. A essência da forma lógico-teórica consistia, para ele, em ser
uma “forma-se-referindo-a...”, um “valor-para...” [...] (TERTULIAN, 2008,
p. 123).
Ainda de acordo com Tertulian, Lask buscou invalidar a separação entre
objeto e sentido vigente desde a filosofia de Platão, preocupando-se em observar que o
sentido dos objetos não reside fora deles, mas em seu interior; aspecto que captou a
atenção de Lukács para a importância da compreensão da relação sujeito-objeto no
30
plano estético. A valorização do “material”, a tendência da filosofia de Lask ao concreto
e, consequentemente, à objetividade, deu ensejo para a defesa lukacsiana da autonomia
do fato estético contra as tendências logicistas da época, que, possivelmente,
contaminariam o fenômeno estético.
Apesar da forte adesão do pensamento lukacsiano às ideias dos filósofos
neokantianos, especialmente às de Lask, a estética de juventude não ficou isenta da
revelação de algumas contradições. Por mais que pretendesse conservar a tendência da
filosofia neokantiana da autonomia absoluta das formas da consciência - ética, estética,
lógica-, o autor intuiu a necessidade de pontuar que tais formas não surgiram a partir do
vazio, de modo espontâneo ou criativo. Originavam-se, portanto, de uma realidade
exterior, cujo caráter era, ainda, bastante obscuro para o jovem Lukács. A influência de
Lask caminhou, assim, para que Lukács pudesse, efetivamente, realizar a
fundamentação de sua estética juvenil: as obras de arte existem; assumindo este fato, o
que é e como se define a forma de uma obra de arte?
A partir dessa questão que norteia a redação do projeto estético de
Heidelberg, pode-se perceber que, a despeito da influência inegável de Kant à estética, o
jovem Lukács o assume como ponto de partida e, não, como único fundamento
filosófico de sua obra. Sendo assim, o primeiro capítulo da “Filosofia da Arte”,
intitulado “A arte como expressão e as formas de comunicação da realidade vivida”,
consiste, em grande parte, na análise da terceira crítica kantiana, a qual aborda e discute
o conceito de juízo estético. Para o filósofo alemão, a autonomia da obra de arte pode
ser estabelecida com base no juízo. Dessa premissa, Lukács divergirá substancialmente,
pois acredita ser impossível considerar a estética uma esfera autônoma, calcando-a,
apenas, na categoria do juízo. A autonomia do plano estético poderia se dar, segundo
Lukács, pela vivência, pois seria esta a categoria responsável pela mediação da relação
entre arte e subjetividade. Corroborando essa noção, afirma Patriota (2010, p.170), o
“(...) reconhecimento da obra de arte, portanto, não tem nada a ver com o juízo, ainda
que este vise transmitir um sentimento que se supõe comum, aplicável a todos, mas
antes com a vivência imediata da obra”. Nesse sentido, o sujeito estético - receptor ou
fruidor - é aquele que vivencia o objeto e, não, aquele que o ajuíza.
31
Partindo dessa concepção, Lukács postula que a vivência é anterior ao juízo,
pois a obra de arte, concebida com um dado da realidade, é o objeto que acaba por
conduzir as vivências do receptor. Patriota sistematiza a crítica do jovem Lukács a Kant
da seguinte forma: “Os critérios para se definir o estatuto da normatividade da obra de
arte não repousam na subjetividade, em proposições lógicas, mas devem ser extraídos
da própria obra como sensibilidade objetivamente universalizada” (PATRIOTA, 2010,
p.246), pressuposto que norteia as discussões presentes no projeto estético de
Heidelberg.
Vale ressaltar que Lukács afirma que a vivência da arte se caracteriza por
ser normativa e não por ser subjetivo-reflexiva, como pensava Kant. Nesse sentido, o
filósofo alemão “(...) erra ao conceber a constitutividade dos objetos apenas através das
“categorias racionais do âmbito teórico”, pois existe uma constitutividade própria da
esfera estética, pela qual as vivências empíricas são elevadas ao plano normativo”
(PATRIOTA, 2010, p.171). Para Lukács, o sujeito estético só se constitui a partir de sua
relação com uma obra de arte concreta constitutiva e correspondente às demandas de
sua subjetividade, cuja tônica reside na:
[...] transformação da empiria imediata numa vivência normativa, cujo
conteúdo são realidades vivenciais depuradas de tudo que não faça eco às
demandas da subjetividade, às suas necessidades de viver em si o sentido da
humanidade (PATRIOTA, 2010, p.171).
Essa demanda existencial dos indivíduos, voltada à uma vida mais plena de
sentido e de humanidade nas obras de arte, é uma das características marcantes da
estética do jovem Lukács. A partir dela, muitos desdobramentos surgirão, dentre eles, a
visão solipsista do mundo, afirmada pelo autor como condição existencial do homem
moderno. Esse aspecto será desenvolvido em um ensaio de 1912, publicado na revista
Neue Bläter, intitulado “Da pobreza de espírito: um diálogo e uma carta”, o qual
consiste em um diálogo, de cunho marcadamente autobiográfico, que retrata um triste
episódio: a falha tentativa do protagonista do texto de evitar o ato suicida de uma amiga,
com a qual teve uma relação bastante próxima. No desfecho do ensaio, o protagonista
acaba, por fim, seguindo o destino trágico de sua amiga. Entendemos que “Da pobreza
de espírito: um diálogo e uma carta” retoma um episódio marcante da vida de Lukács, o
suicídio de Irma Seidler, ocorrido em maio de 1911. Na seção seguinte, trataremos do
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impacto e da relação que tal acontecimento teve na vida do filósofo, bem como
discutiremos a relação entre forma artística e vida cotidiana no pensamento do jovem
Lukács.
1.2. Em meio à filosofia, à alma e às formas, um chamado à vida: a
morte de Irma Seidler
A história de Lukács e Irma é um capítulo à parte na vida e na obra do
filósofo húngaro e, infelizmente, carece de mais estudos; entretanto, são absolutamente
perceptíveis os ecos dessa breve, porém profunda, relação na vida e na trajetória
intelectual do autor. Irma pertenceu a uma família da alta burguesia de Budapeste; era
prima de Ervin Szabó - teórico anarcosindicalista, que viria exercer certa influência
sobre o pensamento de Lukács - e irmã de Ernö Seidler - cofundador, em 1918, do
Partido Comunista Húngaro. O encontro de Irma e Lukács aconteceu, pela primeira vez,
em 18 de dezembro de 1907, quando ela estudava pintura. Pouco tempo depois, entre 28
de maio e 11 de junho de 1908, embarcam, ambos, juntamente a Leo Popper, grande
amigo de Lukács, para uma temporada em Florença. Irma alimentava sua aspiração de
se tornar pintora e, durante algum tempo, residiu em Florença para desenvolver sua
habilidade como artista. Em novembro de 1908, aos 25 anos, se casou com o pintor
Károly Réthy e, em maio de 1911, se suicidou na cidade de Budapeste, jogando-se de
uma das pontes que corta o rio Danúbio.
Estes poucos, mas intensos anos que compreenderam a relação entre Lukács
e Irma foram suficientes para marcar a obra e a trajetória de vida do filósofo, como se
pode perceber à época da redação de “A alma e as formas” (1911), integralmente
dedicado a Irma. Para Carlos Eduardo Jordão Machado (2004, p. 17): “Deve-se ter
diante dos olhos a correspondência entre Lukács e Irma Seidler para poder apreender a
particularidade do livro do jovem Lukács “A alma e as Formas””. Em uma carta a Leo
Popper, Lukács menciona a relação entre forma e as questões biográficas que povoam a
sua vida cotidiana:
Gostaria de dedicar, sobretudo a edição alemã do volume de ensaios,
abertamente a Irma... Do meu ponto de vista poderia ser um consolo, pois dá
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no mesmo como tu escreveste então: Irma é o nascimento de tudo mesmo
ainda hoje (divertido, o que constato em alguns casos atuais: até meus
problemas de forma retornam a ela, mesmo quando está distante etc)
(LUKÁCS apud MACHADO, 2004, p.19).
As palavras do autor trazem à cena a sua conflituosa relação com Irma, pois
o culto do jovem filósofo à obra, ou seja, à forma artística, o levava a compreender o
plano da vida terrena como despido de valor e de sentido, de modo que a recusa da
mulher amada e do plano da vida, no entendimento do jovem Lukács, deveria ceder
lugar à esfera normativa da forma, a qual é revestida de sentido e de valor. Desse modo,
Machado atribui ao filósofo o entendimento de que: “(...) apenas por meio da forma é
que a vida se torna dotada de sentido, por conseguinte também o amor, isto é, o amor
poetizado” (MACHADO, 2004, p. 19). Lukács transformou, igualmente, a sua relação
com Irma em poesia, pois o valor da mulher amada não estava na mulher em si, mas na
forma, ou seja, na poesia. Ao empreender o que pode ser chamado de poetização da
vida, o autor atribuiu forma a ela, recusando o seu caráter prosaico e fortuito. Realizou-
se, por conseguinte, o ideal da estetização da própria vida, ou seja, a sua criação como
obra, que compreende um sentido e, também, um autor.
À medida que cedia aos impulsos que o enraizavam na vida cotidiana
burguesa, Lukács sentia, cada vez mais, a sua obra ameaçada. Em algumas cartas,
sobretudo a Leo Popper, ele foi taxativo em dizer que não carecia de mais ninguém,
pois o trabalho árduo - aquele que o fazia torna-se ele próprio por meio do eu-ação - era
o único caminho necessário, o único meio capaz de alcançar uma vida plena de sentido.
Restou-lhe a opção de uma vida segundo princípios poéticos, tal como o fez Kierkgaard
em relação à Regine Olsen, sobre quem Lukács redigiu, em 1909, o ensaio “Quando a
forma se estilhaça ao colidir com a vida: Soren Kierkgaard e Regine Olsen”, publicado
na coletânea de textos “A alma e as formas”.
As trocas de correspondência entre Lukács e Irma mostram sempre a
dificuldade de ambos em alcançar um relacionamento em que a comunicação gerasse
um entendimento comum. Cansada das poucas e insuficientes respostas de Lukács sobre
os seus questionamentos, ao final de outubro de 1908, Irma redige ao filósofo uma carta
de despedida, cujos trechos a seguir apontam para a compreensão da impossibilidade da
realização de uma relação “terrena” entre ambos:
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Gyuri, estivemos muito tempo juntos. Juntos no verdadeiro sentido da
palavra; percorri uma etapa significativa na sua vida, na sua trajetória
intelectual e você me ofereceu vivências anímicas – sobretudo aquelas do
espírito. Decerto não estivemos juntos com todas as partes de nossa essência.
Não estávamos juntos lá onde toco nas coisas tangíveis, em minha vida
terrivelmente humana, feita de sangue e matéria pulsante (LUKÁCS apud
MACHADO, 2004, p.20).
[...]
Você jamais me disse - e eu nunca soube direito e tive assim razões bem
fundadas de supor o contrário - sim, também nunca soube, se você pensou
efetivamente em unir minha vida à sua. Já que você nunca disse se isso era o
que você queria, eu lhe peço hoje então que me dê de volta a minha liberdade... Eu me despeço, pois nós não podemos mais ir adiante juntos...
(LUKÁCS apud MACHADO, 2004, p.20).
A resposta de Lukács à carta de Irma nunca foi enviada, mas o autor redigiu
um pedido de perdão à amada criticando sua reiterada atitude de afirmar que ele era o
único conteúdo de sua própria existência. Em novembro de 1908, Irma, aos 25 anos, se
casou com o pintor Károly Réthy, com quem viveu por cerca de dois anos até o suicídio.
As reais razões que a conduziram a essa decisão podem ser, apenas, especuladas no
âmbito da obra de Lukács. Ao longo da leitura de seu epistolário, há trechos que nos
conduzem a pensar que, quando Irma recebeu a notícia de que o filósofo tinha em mente
a publicação de “A alma e as formas”, juntamente com uma dedicatória aberta a ela,
esta se sentiu desconfortável e temeu a exposição pública, visto que emanava do
material de composição do referido texto o tom biográfico da relação entre ambos.
O suicídio de Irma acentuou no filósofo o desespero diante de um mundo
tragicamente desumano, que retira do homem toda a possibilidade de qualquer
sentimento autêntico. Essa visão desesperançada do mundo foi corroborada, ainda, em
1911, pela morte de Leo Popper (1886-1911), com quem o filósofo húngaro manteve
uma ligação intelectual e afetiva muito intensa, observável no prefácio de “A alma e as
formas”. O texto introdutório dessa coletânea de ensaios consiste em uma carta de
Lukács ao seu melhor amigo de outrora, redigida em 1910, sob o título “Sobre a
essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper”.
Na época da redação de “A alma e as formas”, Lukács acreditava que a vida
empírica moderna - o mundo burguês - por si só não poderia gerar conteúdos suficientes
para que o homem realizasse plenamente as suas potencialidades. Para ele, como
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consequência do mundo burguês, que não mais possibilitava qualquer harmonia entre
vida empírica e sentido (atividades normativas), o indivíduo teria que se isolar em sua
própria subjetividade, trilhando um caminho solitário cujo sentido só poderia ser
hipoteticamente atingido através de um projeto existencial individual. Neste, mundo
empírico e mundo subjetivo raramente possuem pontos convergentes, acarretando em
uma visão solipsista que prega uma disjunção metafísica entre vida empírica e sentido,
caminhando, no campo estético, para a seguinte compreensão:
[...] se a vida ordinária é impossível, a impossibilidade é compensada pela
vivência propiciada pelas obras de arte; a vida autêntica - a realização não
estranhada dos valores humanos - só é possível na arte (PATRIOTA, 2010, p.
84).
No conjunto de ensaios que compõe “A alma e as formas”, seu autor
descreve o papel que a arte passa a assumir no mundo burguês. Partindo da relação entre
as formas e a vida, enfatizando a substancialidade da primeira sobre a segunda, Lukács
mostra que a sua reflexão está muito mais centrada nas exigências a priori da forma do
que nos condicionamentos sociais ou históricos que, de certo modo, transformam e
afetam a forma. Nesse sentido, sua argumentação sobre o tema se concentrava em uma
recusa categórica de qualquer tipo de instituição social, pois, para o autor, não existia
possibilidade alguma de realização plena das potencialidades humanas em um mundo
onde as instituições sociais se mostravam presentes e reguladoras da vida. A citação a
seguir, extraída do ensaio “Metafísica da tragédia: Paul Ernst” (1910), o qual integra a
obra “A alma e as formas”, expõe de forma bastante representativa o entendimento de
Lukács sobre o abismo transcendental entre a vida empírica e a vida verdadeira e, por
conseguinte, a sua recusa a qualquer tipo de instituição social:
A vida verdadeira é sempre irreal, sempre impossível em face da vida
empírica. Uma luz se acende, iluminando como um relâmpago os caminhos
banais dessa vida; é algo perturbador e excitante, perigoso e surpreendente, o
acaso, o grande instante, o milagre. Um enriquecimento e uma confusão: não pode durar, ninguém poderia suportá-lo, ninguém poderia viver nas suas
altitudes - nas altitudes da própria vida, das possibilidades últimas da própria
vida. É preciso recair no torpor, é preciso negar a vida para poder viver
(LUKÁCS, 2015, p.218).
Ao negar a vida, a forma assume, por conseguinte, um caráter místico, pois
ela se torna o elemento capaz de reconciliar vida e essência, devolvendo um sentido à
realidade, mesmo que, por trás desta, seja observada uma ausência de sentido que salta à
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vista e à consciência do sujeito estético. A forma torna-se, assim, a expressão de uma
existência em que todos os movimentos adquirem um sentido necessário e, também,
simbólico. Sendo assim, diz Lukács:
Toda a forma é a resolução de uma dissonância fundamental da existência,
um mundo onde o contrassenso parece ser reconduzido ao seu lugar correto,
como portador, como condição necessária do sentido Lukács (LUKÁCS,
2000, p. 61).
A concepção de forma presente nos escritos de juventude do autor se traduz
na sua visão desesperançada e trágica do mundo moderno. Desta feita, o sujeito
moderno só pode se deparar e alcançar a esfera normativa da forma - no seu mundo já
inautêntico e decadente - no momento em que frui a obra de arte, um universo fechado e
completo em si. Estava vedada a possibilidade, na conjuntura histórica da qual falava o
autor, de se reorganizar e de se reordenar os dados da vida, inflando-os do mais pleno
sentido e substância. Este movimento só seria possível ficcionalmente e a partir do
potencial da forma artística. Nesse sentido, pode-se afirmar que a visão lukacsiana
acerca do conceito de forma, em sua juventude, constrói-se através de um fundo trágico,
cuja forma é o anseio à totalidade perdida de outrora, o desejo de pertencimento à uma
comunidade humana:
[...] forma abstrata que se consola, diante de uma pátria perdida, com a pátria
transcendental. Assim, a forma é aparência, puro campo ficcional que
introduz um valor e uma diferença qualitativa na vida, única realidade
substancial diante de um mundo insatisfatório e contingente, mas que não
suprime a imediaticidade do vivido. [...] a forma é, sobretudo, a consciência
lúcida de que tal totalidade é irrealizável na vida (SILVA, 2011,
Apresentação, p. 13).
Dada a situação descrita no excerto acima, a arte fica impossibilitada de
reparar a realidade objetiva e de resolver todas as dissonâncias do mundo burguês, pois
seus próprios princípios constitutivos não a capacitam para tal. Mesmo destituída da
possibilidade de atingir a realidade objetiva, a forma era vista por Lukács positivamente,
pois representava o lado contrário ao mundo caótico que o circundava. Tertulian
sintetiza essa questão na seguinte afirmação: “(...) o divórcio entre a exterioridade
empírica e a interioridade essencial não podia encontrar desfecho ideal senão na
elaboração da forma” (TERTULIAN, 2008, p.92).
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A partir do conceito lukacsiano de forma, consegue-se perceber a
articulação entre os elementos autobiográficos, os questionamentos e as formulações
teóricas do autor. Enfatiza-se, assim, a impossibilidade da realização, no mundo
burguês, de uma concepção plena de amor, como a que Lukács alimentava por Irma
Seidler. A realização das plenas potencialidades do homem e de seus sentimentos
autênticos jamais poderia se realizar plenamente em um mundo tomado pelo avanço do
sistema capitalista, o que impulsionou Lukács a construir um sistema de ideias em que o
plano da forma se tornou a única esfera possível para a expressão de uma existência em
que todos os movimentos adquiriam um sentido necessário e simbólico. Justificava-se,
assim, a opção do filósofo pela recusa da concretização da relação amorosa, no plano da
vida cotidiana, com Irma Seidler, relação esta que só poderia resultar em insucesso. É
nesse sentido que entendemos que Lukács, em sua juventude, empreende uma
estetização da vida.
Em “Da pobreza de espírito: um diálogo e uma carta” (1912),
compreendendo-se culpado pelo suicídio da amiga, o protagonista do texto também se
suicida, elemento que representa certo grau de culpabilidade do autor em relação à
morte de Irma. Em passagens dos diários que remontam seus anos de juventude, Lukács
não descarta a possibilidade do suicídio e segue, ao longo desses anos, postulando o
solipsismo como condição existencial do homem moderno. Ainda no texto supracitado,
pode-se observar uma categorização da existência humana, a qual fora dividida em
castas espirituais que determinavam os limites da existência dos sujeitos subsumidos a
elas. Nesse sistema, o artista se enquadrava no plano das formas e sua vida deveria ser
sacrificada em prol da realização da obra. Dizendo de outro modo: a alma do artista se
purificava, ou seja, se homogeneizava para realizar a obra de arte. Retomamos, assim,
um trecho do ensaio “Da pobreza de espírito: um diálogo e uma carta” em que o
protagonista do diálogo deixa transparecer tal concepção:
-Você própria sabe que diz o mesmo que eu digo: é assim que choro.
Misturei e confundi as formas: minhas formas de viver não são formas de
vida, só agora percebo isso claramente. Por isso sua morte se tornou uma
sentença divina para mim. Ela teve de morrer para que minha obra se
consumasse, para que não me restasse mais nada no mundo fora minha obra (LUKÁCS, 2015, p.256).
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É nesse sentido que o título do texto cumpre sua função: a alma do artista
deveria atingir “a pobreza de espírito”, pois a pureza do objeto artístico deveria advir
dessa pobreza. Para o jovem Lukács, havia um paralelo entre o processo de criação
artística e aquele de construção ética. Se, na filosofia da arte, apenas a existência do
gênio pode ser aceita como legítima; no plano da vida, somente a existência daqueles
que receberam a graça da bondade seria permitida. Para alcançar a essencialidade ética,
atingindo a homogeneidade da alma, era necessária a superação da “particularidade”,
um dos fundamentos indispensáveis da substancialidade estética. Tertulian tece o
seguinte comentário sobre o texto “Da pobreza de espírito: um diálogo e uma carta”:
[...] o jovem autor estabelece uma separação bem nítida entre o homem e a
obra: o artista verdadeiro, assim como o homem ético, deve se separar de
tudo o que é contingente e puramente empírico (“Devemos nos tornar
aprioristas!” – exclama o personagem principal), a fim de adquirir o estado
privilegiado da “pobreza de espírito”, sinônimo da identidade perfeita entre o
sujeito e o objeto, entre o “sentimento” (das Gemüt) e o “destino”
(TERTULIAN, 2010, p.23).
Vale ressaltar que, para Lukács, a pureza da arte é a realização da obra e não
do homem. Levando em consideração esse sistema de pensamento, fazia todo o sentido
o autor relegar a mulher amada, tal como fez com Irma, para se dedicar, apenas, à
realização do seu trabalho. Entretanto, como sabemos, as consequências da adoção
dessa postura intelectual cobraram de Lukács um alto preço. A aproximação do autor, a
partir de 1918, dos referenciais marxistas e a sua adesão ao Partido Comunista podem
ser o início da cobrança de uma dívida que surgiu no capítulo breve e trágico de sua
relação com Irma Seidler.
1.3. Entre a alma, as formas e a vida: as ciências do espírito
A morte de Leo Popper (1911), o suicídio de Irma Seidler (1911), a redação
de “A alma e as formas” (1911) e uma segunda temporada invernal (1911-1912) na
cidade de Florença são os elementos biográficos de Lukács que impulsionaram a
redação de sua estética de juventude. Gestada em Florença, a primeira parte deste
projeto, intitulada “Filosofia da Arte”, foi redigida entre 1912-1914. Além das
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influências marcantes de Kant, Lask e Ernst Bloch, a obra não pode ser amplamente
compreendida se desconsiderarmos a importância que a chamada filosofia da vida teve
na trajetória intelectual e biográfica do autor, essencialmente, em seu período de
juventude.
Lukács veio a ser conhecido por suas veementes e duras críticas à filosofia
irracionalista, principalmente, quando redige, ao fim da década de 50,
“O Assalto à Razão: A Trajetória do Irracionalismo de Schelling a Hitler”. Dentre os
vários níveis de leitura da obra, está o seu aspecto ideológico, que analisa a gradual
decadência da razão na consciência filosófica alemã. Ao longo do texto, o autor
argumenta sobre como, a partir de Schelling, passando por Schopenhauer, Nietzsche,
Heidegger, Spengler e, até mesmo, Ernst Jünger, a consciência filosófica alemã teria
sofrido um processo de irracionalização crescente, o qual resultou na vitória da
demagogia nacional-socialista. A referência a esse texto é necessária, pois ele concentra
a crítica do velho Lukács a autores que influenciaram diretamente a produção de sua
estética de juventude, essencialmente, a crítica aos pensadores da filosofia da vida. É
por meio dessa chave que faremos a exposição dessa tendência filosófica que gerou as
bases para a construção do projeto estético de Heidelberg.
Para Lukács, a filosofia da vida não foi, somente, uma corrente ou uma
escola filosófica, ela tornou-se, sobretudo, a ideologia dominante da Alemanha
imperialista, estendendo-se, assim, a todos os âmbitos das ciências sociais, enraizando-
se na psicologia, sociologia, historiografia, história da literatura e, também, na esfera
das artes em geral. Nesse sentido, o autor afirma que, no período que sucedeu a Primeira
Guerra, "[...] toda a literatura burguesa lida pelos grandes círculos e relacionada aos
problemas da consciência do mundo se move pelos trilhos da filosofia da vida”
(LUKÁCS, 1972, p. 342, tradução nossa). A filosofia da vida surgiu na Alemanha
imperialista com o intuito de resolver filosoficamente, do ponto de vista da burguesia
imperialista e de sua intelectualidade, os problemas sociais advindos das novas formas
da luta de classes. Para pensar esses problemas, os filósofos adeptos dessa tendência
retomam e dão continuidade às ideias de pensadores que precedem o período
imperialista. Entretanto, Lukács pontua que essa continuidade vem determinada por
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uma hostilidade reacionária que as classes dominantes alemãs nutriam contra o
progresso social desde o advento da Revolução Francesa.
A tendência conservadora das classes dominantes dirigida contra o assalto do
novo se vê sujeita a uma constante mudança social. Vimos como as primeiras
manifestações da filosofia irracionalista, no início do século XIX, brotaram
da resistência de dois usufrutuários do absolutismo feudal contra o
movimento geral do progresso das classes burguesas que a Revolução
burguesa havia desencadeado (LUKÁCS, 1972, p. 345, tradução nossa).
Após a derrota da Revolução de 1848, mais conhecida como a Primavera
dos Povos, o irracionalismo burguês surgiu como uma reação filosófica, ajustada aos
interesses da classe burguesa, contra aquele que se tornou o seu real inimigo, o
proletariado. Nesse sentido, a filosofia burguesa se aliou a todas as forças reacionárias
da época para manter a classe operária à margem, de modo que, precisamente, após
1848, a filosofia de Schopenhauer, para Lukács, ganhou popularidade no contexto
europeu, tornando-se a representante deste movimento. Nessa mesma trilha, Nietzsche,
cerca de 30 anos depois da popularização da filosofia de Schopenhauer, após o
acontecimento da Comuna de Paris (1871), desenvolveu uma filosofia que, para Lukács,
equivalia ao novo irracionalismo burguês.
Nesse contexto de grandes eventos históricos, estava em jogo a unificação
da Alemanha, ocorrida em 1871, por meio da chamada via prussiana. Ao vencer a
Guerra Franco-Prussiana, o rei Guilherme I foi coroado imperador da Alemanha (kaiser)
e considerado o líder máximo do II Reich Alemão, conquistando, no mesmo momento,
as importantes regiões francesas da Alsácia e da Lorena, ricas produtoras de minério,
que impulsionaram a rápida ascensão econômica industrial alemã. A via prussiana
representou, em linhas gerais, para Lenin, um processo de unificação do território
alemão, de caráter altamente conservador e reacionário, visto que fora constituído pelas
classes dominantes e conservadoras, eliminando a possibilidade de qualquer
protagonismo da classe proletária ao longo do processo, aspecto que constituiria, para
este autor, a possibilidade de uma via democrática.
A filosofia da vida foi a representante e a porta-voz desse movimento,
cumprindo a função social de deixar transparecer que o desenvolvimento do
imperialismo alemão estava sob a égide de uma prosperidade que não abria espaço
algum para as profundas crises sociais que o momento gerava. Assim, a burguesia
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imperialista e a sua filosofia tomaram para si a missão de propagar essa aparência como
realidade, dotando a sociedade alemã de certo ofuscamento social em vista das
mudanças e crises que se avizinhavam. O estado de crise, traduzido pela filosofia da
vida como uma “crise da cultura” ou uma “crise da cultura pura”, proporcionou à classe
burguesa uma adesão quase que instantânea a este movimento espiritual, de acordo com
Lukács.
A filosofia da vida surgiu, portanto, após 1848, e a partir de um cenário de
confiança e segurança no capitalismo e nos progressos naturais que ele traria à
sociedade. Como marcas de sua origem observaram-se, no campo das ciências naturais,
a ascensão da filosofia de Schopenhauer e a difusão de um materialismo mecanicista, ao
passo que, na esfera social, se impôs, conforme Lukács, um “materialismo liberal
oportunista”. O resultado desse movimento gerou uma filosofia neokantiana de caráter
agnóstico e positivista, pois a crença quase mística da burguesia na perenidade do auge
do capitalismo levou à aversão dos problemas relacionados às questões sociais e
materiais, tais como a economia, a dialética e a luta de classes. Esboçou-se, ainda, uma
enorme crença no desenvolvimento da técnica e da economia como fatores que se
encarregariam, naturalmente, da resolução dos problemas sociais. O objeto da filosofia
voltou-se, portanto, ao campo da lógica, da psicologia e da teoria do conhecimento.
É importante ressaltar a repulsa à dialética, tão largamente cultivada pela
filosofia pré-imperialista, que a chamava, depreciativamente, de “metafísica
materialista”, considerando-a, por princípio, uma filosofia despida de cientificidade.
Essa desqualificação da dialética pode ser entendida, num contexto mais amplo, como
um modo de menosprezar a organização do proletariado no interno do processo social
alemão. Esse movimento fez com que todo o esforço filosófico materialista - a trajetória
filosófica de Kant (idealismo subjetivo) a Hegel (idealismo objetivo) - fosse revertido,
nos termos da filosofia pré-imperialista, em um retorno a Kant, o que revelou, segundo
Lukács, que a história da filosofia da vida e sua relação com a dialética representam
uma trajetória ideológica que vai da crise latente do capitalismo à sua crise mais
pungente.
Na esteira de sua criação, nada mais coerente à filosofia da vida do que
situar o indivíduo no centro do seu interesse filosófico. Tem-se, assim, um sujeito
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revestido pelo agnosticismo moderno, que nega a existência de Deus, mas afirma a
existência do sagrado, o que o leva a assumir a percepção da existência do sagrado em
seu interior. Desse movimento advém a destruição e a descrença da importância, por
exemplo, da igreja como instituição, de modo que, gradativamente, a subjetividade foi
alçada à máxima importância e colocada no centro do mundo. O indivíduo, assim,
passou a ter um elemento divino em seu interior, revelado por meio da intuição. A
morte ou o abandono de Deus tornaram-se um modo do homem encontrar em si - por
meio da sua mais singular percepção e pelas vias da intuição - o sagrado. A ideia de
intuição assumiu, no seio dessa filosofia, o papel de um instrumento do conhecimento e,
por meio dela, o indivíduo poderia conhecer o mundo; ideia que impulsionou a
construção de um mundo erigido sob bases irracionais.
Para dar conta dessa nova visão, a filosofia da vida mobilizou uma série de
conceitos importantes, dentre eles, sobressaiu-se a noção de vida, identificada à ideia de
vivência. A vivência e seu sistema (instrumento do pensamento), a intuição e o
irracionalismo foram os elementos que propiciaram o surgimento de uma concepção de
mundo que não renunciou ao agnosticismo da filosofia idealista subjetiva e, tampouco,
em seu princípio, negou a existência de uma realidade independente da consciência. A
vida e a vivência, frente à pobreza do entendimento, permitiram à filosofia da vida, de
acordo com Lukács, falar em nome de uma ciência natural que se posicionou contra as
conclusões materialistas ancoradas no desenvolvimento da sociedade e das ciências
naturais.
Na filosofia da vida, a noção de vida aparece subjetivada como vivência e
esta objetivada como vida, visto que, à época, era necessária uma concepção de mundo
que trouxesse uma imagem concreta do universo, do homem, da natureza e da história.
É certo que tais elementos - conciliados à teoria do conhecimento, que deu origem à
filosofia da vida - podem ser criados, apenas, pelo sujeito. Entretanto, para que a
concepção de mundo originada por essa tendência filosófica fosse adequada, os objetos
criados diante dos sujeitos deveriam aparecer como objetos do ser objetivo.
Consequentemente, o jogo da subjetivação da vida como vivência e esta objetivada
como vida acentuou a tendência nietzschiana da ideia do mito no interno dos conceitos
filosóficos. Nesse sentido, Lukács afirma que:
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[...] é como se essa época tivesse sido chamada a extrair da "vivência", da
"vida", o mundo asolado e privado de Deus pela inteligência, fazendo com
que ele recuperasse sua coesão, suas perspectivas e seu sentido, ao preenchê-
lo com as novas formas de um novo mito.
Dito em poucas palavras: a essência da filosofia da vida consiste em fazer
com que o agnosticismo se converta no misticismo, que o idealismo subjetivo
se converta na pseudo-objetividade do mito (LUKÁCS, 1972, p.333,
tradução nossa).
Edificou-se, assim, em um contexto filosófico propício à descrença e ao
rebaixamento da razão e do entendimento, a filosofia da vida. Na próxima sessão,
falaremos sobre conceitos centrais dessa tendência filosófica, os quais influenciaram a
redação da estética de juventude lukacsiana.
1.4. Dilthey e a filosofia da vida
Entre 1909 e 1910, Lukács escreveu e publicou “A alma e as formas”,
conjunto de ensaios largamente influenciado pela filosofia da vida e pelo seu então
professor da Universidade de Heidelberg, Georg Simmel, considerado por Lukács o
representante da filosofia da vida no período que precedeu a Primeira Guerra. Vinte e
cinco anos mais jovem do que Dilthey, outro representante dessa tendência filosófica, o
pensador Georg Simmel, aproximou-se de Bergson e do pragmatismo inglês e norte-
americano, radicalizando as tendências da filosofia da vida. Propôs, ainda, uma filosofia
subjetivista em que a realidade objetiva do mundo exterior passou a não mais ser vista
como um problema, pois negava radicalmente a existência dessa realidade independente
do sujeito.
É relevante pontuarmos a presença marcante da filosofia da vida no círculo
intelectual de Lukács, que, apesar de creditar a Nietzsche o seu posto de precursor,
aproximou-se, em seu projeto estético de juventude, daquele que fora considerado o
fundador da filosofia da vida do período imperialista, Wilhelm Dilthey. Este filósofo
marcou, segundo Lukács, a transição entre dois grupos extremos da filosofia burguesa
pré-imperialista: aquele composto por autores que mantiveram o cientificismo e aqueles
que rechaçaram a ciência e a filosofia científica em nome do irracionalismo.
44
Dilthey foi um dos primeiros filósofos que realizou em seu sistema de ideias
uma separação entre as ciências naturais - caracterizadas pela estaticidade e repetição - e
a filosofia - caracterizada pela mutabilidade e individualidade. Essa distinção é um dos
motivos que fez com que Lukács se interessasse pela filosofia diltheyana, pois, a partir
do divórcio da história e das ciências naturais, abriu-se a possibilidade de conexão da
filosofia às questões econômicas. O ponto de partida da filosofia de Dilthey é o
neokantismo positivista dos anos 60 e 70, de modo que, a partir dele, foi proposta a
criação de uma visão de mundo que pretendia manter uma relação de continuidade com
o kantismo e com as ciências sociais.
A filosofia diltheyana buscou sustentar, no campo da filosofia, a
cientificidade, elemento que, gradualmente, foi minado. A tentativa do filósofo de se
sobrepor ao positivismo recaiu, de acordo com Lukács, em um falso subjetivismo,
manifestado na conversão das contradições materiais e objetivas - que se desprendiam
da dialética do ser e da consciência - em uma questão essencialmente subjetiva: o
antagonismo entre intuição e razão. A partir desse movimento, a vida histórica objetiva
converteu-se em uma fonte de vivências subjetivas, contribuindo largamente para dois
aspectos: 1) o apagamento da cientificidade da concepção de mundo pensada por
Dilthey e 2) o abalo do valor metodológico de sua fundamentação científica.
Ao conjugar os pontos de vista histórico e psicológico, Dilthey buscou
atualizar e conciliar a teoria de Kant às necessidades de sua época, de modo que esta
servisse de fundamento para as ciências do espírito (ciências sociais). Para Lukács, o
resultado deste movimento consistiu em um retrocesso em relação aos avanços da
filosofia kantiana, o que se deu, primeiramente, porque Dilthey aboliu os
tensionamentos kantianos de viés materialista relacionados à teoria da coisa em si. A
repercussão de tal postura traduziu-se na afirmação de que as verdadeiras conexões e
determinações sociais desaparecem junto à singularidade da coisa e dos objetos
isolados, os quais aparecem sempre atados às abstrações e às analogias de caráter
mítico, corroborando para que a ideia kantiana da coisa em si fosse substituída pela vida
mistificada. Consequentemente, deu-se ensejo à seguinte ideia oriunda da filosofia da
vida: explicamos a natureza, mas a vida anímica compreendemos.
45
Para que fosse possível a compreensão de algum fenômeno, a filosofia da
vida argumentou em prol da ideia de que algo irracional emanava de todo o
compreender, como a própria vida, a qual não podia ser representada por nenhuma
classe de formas de ordem lógica. Sendo assim, o compreender passou a ter um caráter
adivinhatório, operação que deixava de lado qualquer possibilidade de alcance de uma
certeza demonstrativa, pois a vivência recriada - intrínseca ao processo de compreensão
- não era suscetível a nenhum exame de valor de conhecimento. Nesse sentido, a
filosofia da vida sustentou, no que dizia respeito ao campo estético, a ideia de que a
interpretação - como um compreender recriador - trazia consigo algo genial. Essa
psicologia, então, foi responsável pela constituição da doutrina secreta de certa
aristocracia espiritual estético-historicista, a respeito da qual falaremos mais adiante.
Um segundo recuo da filosofia da vida em relação à filosofia kantiana foi o
estímulo do renascimento de filosofias pós-kantianas, tais como o neorromantismo e o
neo-hegelianismo, de modo que Dilthey veio a se unir à corrente fenomenológica da
qual Husserl tornou-se um dos expoentes mais célebres. Levantados os elementos
necessários para o entendimento do surgimento e das finalidades da filosofia da vida,
faz-se imprescindível a exposição de conceitos chave das ideias de Dilthey para que
possamos entender, mais adiante, de que maneira essa tendência filosófica influenciou a
construção do projeto estético de juventude de Lukács.
Uma das ideias mais importantes da filosofia diltheyana consiste na noção
de vivência, entendida como fundamento último do conhecimento e identificada ao
conceito de vida. Amaral afirma, portanto, que se pode dizer que, em presença das
condições, delimitações e restrições impostas pelo pensamento de Dilthey: “(...) a
realidade confunde-se com a vivência, isto é, o que é real é vivenciado e o que é
vivenciado é realidade” (AMARAL, 2004, p.54). Diante dessa premissa, o fato da
existência ou da inexistência de uma realidade objetiva - independentemente de nossa
consciência - é um aspecto desprovido de vitalidade em meio a esse sistema de ideias.
Na esteira desse raciocínio, caso seja possível um conhecimento efetivo da realidade,
ele se dará por meio da vivência (experiência) e da vida. Dilthey afirma categoricamente
que todos os pressupostos essenciais do conhecimento estão dados na vida, de modo
que o pensamento não pode conceber por trás desses pressupostos. Soma-se a isso que,
46
para além dos fatos da consciência, os quais estão dados na totalidade da vida psíquica
dos homens, só existe um obstáculo, um sinal vermelho, que representa a total
impossibilidade de ultrapassagem em busca de um ponto transcendentalmente sólido.
Amaral, na passagem a seguir, resgata a importância da noção de vivência no sistema
diltheyano, descrevendo a função dessa categoria do seguinte modo:
Isto significa dizer que ela constitui a zona limite do conhecimento, isto é, o
último fundamento do conhecimento. É como se, ao conter a vitalidade em
toda a sua força de expressão, estabelecesse o marco divisório para além do
qual o pensamento não tivesse acesso. Ou, ainda de outro modo, a vivência
constitui o próprio critério vivo responsável pela triagem dos fatos da
consciência, já que para o autor estes são dados em nossas vivências
(AMARAL, 2004, p.52).
Para Dilthey, toda vida tem seu próprio sentido, o qual reside, precisamente,
em um nexo de significado. Isso quer dizer que os sujeitos possuem em si o Universo
(todo), como uma mônada leibniziana. Nesse sentido, a concepção, a atribuição de
valor e o estabelecimento de fins para algo são comportamentos humanos vitais
interdependentes que configuram as vivências e auxiliam os sujeitos a construir a
realidade em que vivem. Depreende-se dessa noção que vivência e realidade são como
que construídas conjuntamente por meio da “categoria do significado”, definida pela
seguinte passagem:
O nexo da vivência em sua realidade concreta repousa na categoria do
significado. Esta é a unidade que toma o decurso do vivido e do revivido em
conjunto na lembrança, embora o significado do mesmo não consista em um
ponto de unidade que repouse para além da vivência, senão que esse
significado está constitutivamente contido nessas vivências, como em seu
respectivo nexo (DILTHEY apud AMARAL, 2004, p.55).
A ideia de sentido e sua revelação estão centradas, ainda, na capacidade de
lembrança inerente aos homens, processo que suscita a afirmação de que todo presente
passível de lembrança possui um valor próprio, portanto, há, simultaneamente, no nexo
da lembrança, uma relação com o significado do todo. É a partir desse processo
individual que o sujeito extrai o sentido de suas vivências individuais e, por
conseguinte, o sentido da vida.
Vivência parece ser o verdadeiro ponto médio entre o geral e o individual, o
universal e o singular, o ideal e o real, uma vez que, por constituição, carrega
em si uma consciência eficaz e por isso consoladora e protetora de sua
origem extra-individual, isto é, na “esfera das coisas comuns” a que pertence
47
e que em certo sentido também lhe pertence. Se esse fundo comum também
lhe pertence é porque os indivíduos, na singularidade de suas vivências, co-
experimentam valores, objetivos, expressões, significados, crenças e, assim
atuando, como que co-participam da criação ou construção desse todo a que
pertencem e que lhes pertence também (AMARAL, 2004, p.57).
A passagem citada afirma a coparticipação dos sujeitos na criação do todo a
que pertencem e que ainda lhes pertence. Em seu sistema filosófico, Dilthey
compreende a existência de uma esfera comum - uma unidade originária - entre os
homens em que o ser singular vivencia, pensa e age, e na qual os sujeitos podem se
entender: “Nesse mundo histórico e compreensível estamos por toda parte em casa,
compreendemos o sentido e o significado de tudo, nós próprios somos tecidos nessas
coisas comuns” (DILTHEY apud AMARAL, 2004, p.56). Para que possamos
compreender o mundo, a vivência, segundo Dilthey, é auto-reflexiva. Vejamos como
Amaral descreve essa ideia no interior da filosofia diltheyana:
De fato, auto-reflexão significa propriamente a elevação do espírito à
consciência de si mesmo, isto é, sobre as suas próprias criações históricas,
procurando desvendar no interior de cada uma delas a força sempre presente
de sua absoluta soberania condutora (AMARAL, 2004, p.65).
Ao compreender o potencial da consciência de voltar-se sobre si e de
conhecer-se, pode-se dizer que a própria consciência se reconhece como tal. Sendo
assim, ela se reconhece como nexo, como unidade entre espírito universal e história,
como equivalência entre vida e vivência. Partindo desse conjunto de noções, a
possibilidade de compreensão do mundo histórico social pode ser alcançada a partir da
síntese entre exterior e interior. Na passagem a seguir, Amaral descreve essa síntese e
sua relação com a compreensão do mundo histórico-social:
Efetiva-se assim a síntese que o espírito representa: o exterior revela o
interior, a natureza o espírito, o ato a potência, a ação a energia original, a
subjetividade a objetividade, a vivência a vida universal... E o espírito garante sem sombra de dúvida a possibilidade de compreensão do mundo
histórico-social, mundo este que ao ser tecido conjuntamente com essa
energia infinita adquire foros de universalidade em sua própria origem. É
como se manifestando o interior pelo exterior, fosse dado corpo ao espírito, e
revestindo de realidade exterior aquilo que era apenas uma energia em
potencial obtivéssemos a garantia de uma forma lógica de conhecê-lo, pensá-
lo ou compreendê-lo (AMARAL, 2004, p.66).
48
Dilthey entende que a construção do mundo histórico para as ciências do
espírito reside, essencialmente, no movimento de autorreflexão empreendido pelos
sujeitos, o qual direciona o espírito para uma compreensão que se processa do exterior
para o interior. Nesse sentido, pode-se afirmar que cada movimento de exteriorização da
vida repercute na compreensão do interior, de onde essa mesma exteriorização resultou.
Podemos, assim, entender a filosofia da vida como uma tendência filosófica que trouxe
para o seu centro a possibilidade de um conhecimento do mundo baseado nas
experiências, na vivência e na vida dos sujeitos, de modo que o indivíduo passou a
conhecer o mundo a partir das percepções subjetivas que dele possuía. A vivência,
assim, determina as formas da realidade objetiva e, não, o contrário. O que se tem, a
partir da fusão vivência e vida, é a captação da essência da realidade por meio de um
princípio irracional, o qual será responsável pela revelação dos elementos que se
manifestam nas formas, nos princípios e nas categorias do pensamento. A partir da
vivência, é possível a superação da dualidade corpo alma, por meio de uma
terminologia pseudo-objetivista, em que todos os objetos da psicologia são projetados
no plano da vivência, o que invalida qualquer captação da realidade pelas bases
materiais do ser, de sua atividade, do trabalho e das condições objetivas em que este se
realiza. Sendo assim, o mundo representado pela teoria do conhecimento de Dilthey,
determinado pela consciência do ser, e advindo do princípio da intuição, cede lugar,
consequentemente, a categorias puramente intelectuais, e, segundo Lukács, arbitrárias:
[...] o mundo exterior não é independente da consciência humana; ainda que
seu "criador" não seja o entendimento ou a razão, mas a totalidade do espírito
humano, tal como a filosofia da vida o entende (LUKÁCS, 1972, p.340,
tradução nossa).
Partindo da concepção de que o fundamento das categorias diltheyanas
reside, precisamente, nas experiências de nossas vontades e nos sentimentos
relacionados a essas experiências, todas as sensações advindas de nossas vivências e os
processos discursivos que a envolvem, gradativamente, se somam, de forma que o
caráter de realidade que essas imagens têm para o sujeito aumenta até se converterem
em uma potência que acaba por envolver completamente o sujeito, aspecto que justifica,
para Dilthey, a existência da vida. Nesse sentido, tornou-se necessária a criação da
psicologia descritiva ou compreensiva - um dos fundamentos das ciências do espírito -
49
operando em prol da substituição de uma falsa abstração do puramente intelectivo pela
suposta totalidade irracional da vida vivida.
A grande tônica irracionalista da filosofia diltheyana residiu na centralidade
da ideia e na função da intuição, que, como já fora dito, assumiu o papel de novo órgão
do conhecimento. A intuição consiste na revelação súbita da consciência de um
processo de pensamento que, até então, se desenvolvia no campo do inconsciente.
Partindo dessa concepção, a crítica de Lukács dirigida a este instrumento consiste na
ideia de que a intuição não pode ser considerada um órgão do conhecimento ou um
elemento constitutivo do conhecimento científico. Para o autor, o processo do trabalho é
quase que, em sua totalidade, consciente, apesar de, em algum momento, a categoria da
intuição operar. Entretanto, ela representa um complemento do pensamento intelectual
e, de modo algum, a sua síntese. Sendo assim, a descoberta intuitiva de uma conexão
não constitui nunca um critério de verdade ou de aproximação à objetividade, pois, para
Lukács, é a verdadeira dialética que é capaz de expressar pela via conceitual sua síntese,
especialmente, porque ela é o reflexo exato dos objetos do mundo real.
A gnosiologia da filosofia da vida tornou-se, assim, uma análise puramente
formal - e não dialética - dos fenômenos, de modo a não construir uma formulação
discursiva do conteúdo dos conceitos. Sendo assim, a realidade da concepção de mundo
que ela buscou alcançar devia valorar-se como uma realidade qualitativamente distinta e
mais alta do que aquela que poderia ser captada por meio dos conceitos. Essa realidade -
quase transcendental - postulada pela filosofia da vida poderia, somente, ser captada
intuitivamente por membros de uma aristocracia pura. Segundo Lukács:
[...] à medida que as contradições sociais se tornam ainda mais agudas, se
proclamará abertamente que as categorias do entendimento e da razão correspondem à turba democrática e que os homens verdadeiramente
escolhidos e superiores apenas assimilam o mundo com base na intuição. A
filosofia da vida professa, em princípio, uma teoria aristocrática do
conhecimento (LUKÁCS, 1972, p.335, tradução nossa).
A história da filosofia pensada pelos neokantianos, de acordo com Lukács,
ignorou a estrutura objetiva da sociedade, suas tendências, tensões, seus
desenvolvimentos e as lutas de classe concretas que se realizam nessa estrutura objetiva.
Sendo assim, ela contribuiu para o desenvolvimento do irracionalismo e para um
50
movimento voltado à anti-historicidade, pois sua consequência lógica consistiu na
construção de uma pseudo-história baseada no mito. Para dar conta desse sistema,
Dilthey criou e utilizou um instrumental metodológico denominado tipologia, uma
ferramenta que dominou a filosofia do período imperialista. Este instrumental, afirma
Lukács, é a mais acabada expressão do relativismo histórico, visto que valida as atitudes
distintas e, diversas vezes, contraditórias da realidade social. Em “A Teoria do
Romance” (1914-15), após uma longa discussão sobre o surgimento do gênero
romanesco, o jovem autor utiliza as tipologias para descrever a evolução deste gênero e
os personagens que a acompanharam. Conhecido pelas suas implacáveis autocríticas,
Lukács reproduziu suas considerações tardias sobre as tipologias em um prefácio à obra,
de modo a apontar as inconsistências teóricas de sua escolha metodológica.
É interessante pensar que o movimento Romântico, iniciado na última parte
do século XVIII, possui uma ligação estreita com as tendências irracionalistas da
filosofia da vida. A chamada sensibilitè, isto é, a predisposição à emoção, foi a marca
mais latente do Romantismo. Foi a partir da valorização da emoção, atingida
satisfatoriamente de modo direto e violento, sem orientação do pensamento, que levou
este movimento à exaltação do irracionalismo no âmbito estético. Tal qual a filosofia da
vida, o Romantismo alemão também deu margens a uma determinada aristocracia
espiritual estético-historicista, no sentido de que alguns de seus membros eram vistos
como “eleitos”. A partir dessa noção, somente estes estariam aptos a fruir e a produzir
literatura, visto que a sensibilidade apurada era atributo de poucos. O resultado da
tendência romântica na Alemanha é um comportamento dos escritores voltado ao
isolamento, sobretudo, a partir de 1870, momento de degradação da democracia
burguesa.
Para Lukács, a grande tônica do Romantismo residiu no intuito de uma
produção literária que buscou, pela via cultural, contribuir para a unificação alemã. A
necessidade de retratar, por meio da literatura, o povo e sua cultura resultou,
frequentemente, em personagens que não encontravam ponto de apoio na realidade
objetiva alemã, pois não era possível localizar, de fato, uma nação alemã real. Nesse
sentido, Bertrand Russell afirma que os românticos supunham:
51
[...] que os pobres eram mais virtuosos do que os ricos; o sábio era
considerado como um homem que se retira da corrupção das cortes para
desfrutar dos prazeres tranquilos de uma existência rural sem ambições
(RUSSELL, 1968, p. 230).
No imaginário de grande parte dos autores românticos, os pobres, ainda de
acordo com Russell, não eram habitantes das cidades e nem trabalhadores industriais,
aspecto que os levou à valorização do camponês e, consequentemente, do campo. Nesse
cenário, é interessante, ainda, enfatizar a aversão da classe burguesa ao processo de
industrialização das cidades, o que impulsionou, ainda mais, a valorização do campo e
do camponês na literatura. Assumindo como marca o desprezo pelas instituições sociais
e pelos aspectos econômicos, as sínteses literárias do Romantismo só poderiam se
constituir como façanhas geniais de personalidades isoladas - os chamados “gênios” -,
que, por meio de uma alta sensibilidade, eram capazes de materializar esteticamente
suas percepções da realidade, postura marcadamente aristocrática.
Conforme Lukács, a partir dessa breve discussão, pode-se observar que o
irracionalismo da filosofia da vida, juntamente à ideia que a considera uma filosofia
que, gradualmente, retira da discussão as contradições econômicas da sociedade, se
enraíza em diversos setores da sociedade alemã. Nesse sentido, o autor afirma que a
filosofia da vida não se tornou, somente, uma tendência de pensamento, mas, sobretudo,
a ideologia predominante do período imperialista alemão.
Munido dos referenciais teóricos descritos, Lukács pretendeu, em seu
projeto estético de Heidelberg, realizar uma tentativa de superação da filosofia kantiana,
no intuito de assegurar a autonomia da esfera estética. Para a realização desse projeto, o
autor parte da seguinte indagação: se as obras de arte são um dado da realidade, como
são possíveis? Em vistas de tentar obter uma resposta para tal questionamento, a estética
de juventude mobiliza uma gama de conceitos e de influências teóricas diversas para
uma possível fundamentação da autonomia da esfera estética. Neste ímpeto, ao
descrever o objeto artístico, a ideia da utopia na arte entre em cena, de modo que o
objeto artístico passa a ser compreendido como a realização de uma realidade utópica:
“A obra, realizando-se, se coloca como forma-utopia” (PERLINI, Nota, XXXI, 1973,
tradução nossa).
52
Realizar uma investigação acerca do tema da utopia, presente ao longo de
todo o manuscrito de Heidelberg, é, como já aferimos, um dos objetivos desta pesquisa.
Para realizá-lo, expusemos as influências teóricas do jovem Lukács à redação da obra,
pois a sua forma ensaística, muitas vezes, não oferece pistas ao leitor sobre as
influências ou filiações teóricas mobilizadas para a construção de sua argumentação ou
de conceitos. Nesse sentido, acreditamos que conhecer, ainda que de forma breve, o
instrumental teórico presente na estética de juventude facilita o entendimento das
categorias estéticas que Lukács constrói ao longo da obra. Seguiremos, na próxima
seção, expondo conceitos importantes da estética, a fim de mostrarmos o esforço
argumentativo de seu autor em prol da autonomia do campo estético e da realização da
obra de arte como realidade utópica.
1.5. “Filosofia da arte”: O conceito de “realidade vivida”
Como já descrito previamente, a estética de juventude é composta por dois
textos, redigidos em momentos históricos distintos. Optou-se, após a leitura da
totalidade da obra, por tratar separadamente de cada um desses volumes. Em nosso
diálogo com os textos, percebeu-se que, apesar dos muitos temas comuns e de uma
escolha metodológica que compreende influências semelhantes, existem certas
divergências teóricas, conceituais e temáticas entre as obras. Sendo assim, acreditamos
que é importante tratar separadamente o conteúdo de cada um dos textos, para situar,
devidamente, as discussões que empreendemos. Nesse sentido, nos ocuparemos,
primeiramente, da “Filosofia da Arte”, redigida entre 1912-14, expondo, assim, os
aspectos da obra que possibilitam o entendimento da noção da obra de arte como
realização de uma realidade utópica.
O primeiro volume da estética lukacsiana é concebido a partir da inserção
total do sujeito no mundo do “pragmatismo”, isto é, em um plano da existência diverso
daquele da atividade da consciência normativa, conforme Tertulian (2008, p.131): “um
mundo no qual o homem é muito mais possuído pela realidade que transcende sua
consciência do que ele mesmo possui e domina essa realidade”. Operam, neste modo de
53
existência, as categorias do pensamento, representadas, por exemplo, pelos diferentes
humores (Stimmung), como o amor e o ódio. Esse plano ao qual Lukács se refere em
“Filosofia da Arte” recebe o nome de “realidade vivida” ou “experiência vivida”
(Erlebniswirklischkeit), e corresponde ao plano da vida prática, ordinária, cotidiana, que
se realiza em um mundo onde os princípios são heterogêneos, dispersos, e onde as
objetivações aparecem como dadas, intituladas mistas.
Neste plano do “vivido” - que existe a priori das ações normativas da
consciência -, as formas da consciência e os objetos se apresentam sempre fundidos e
misturados, de modo indiferenciado, não permitindo qualquer diferenciação entre os
objetos que existem no mundo. Sendo assim, a compreensão desse plano preconiza ao
sujeito uma experiência de mundo de caráter absolutamente espontâneo, visto que o
conhecimento teórico, o fato estético ou o plano ético não incidem na sua experiência
com o mundo. De acordo com Patriota, a esfera da “experiência vivida”
(Erlebniswirklischkeit), portanto, “(...) cega o homem para os valores, para as
objetivações humanas, embora essas constituam o mundo circundante e formem a base
de todos os atos intelectuais e práticos do sujeito” (PATRIOTA, 2010, p.80),
funcionando como um plano de reificação:
O homem “natural” vive uma dimensão aquém dos valores, pois não os cria
nem os reconhece, e sua ação não vai além de um domínio pragmático do
entorno, passando ao largo da normatividade O pensamento do homem inteiro é, por princípio, incompatível com o processo de homogeneização que
dá acesso ao mundo dos valores, não se modula em contemplação
(PATRIOTA, 2010, p.80).
A noção de “experiência vivida” é parte integrante de um sistema de
pensamento marcadamente influenciado pelos autores da filosofia da vida,
essencialmente, por Dilthey, e caracterizado, também, por construir um abismo que
comporta, de um lado, o indivíduo imerso na vida cotidiana, prática, e, de outro, o
sujeito das esferas normativas da consciência. Em outras palavras, a vida e o valor, em
sua essência, são excludentes, o que equivale a afirmar que o plano da existência
concreta - da vida prática - e dos valores atemporais - do sentido - não dialogam. Desta
feita, a alma humana, ao tentar se expandir, se vê presa às determinações histórico-
filosóficas de seu tempo, de forma que o sujeito se vê impossibilitado de realizar suas
plenas possibilidades, pois vida empírica e sentido (atividades normativas) são planos
54
que compreendem uma oposição irreconciliável, aspecto que colabora para que o
estranhamento torne-se parte natural da sociabilidade do homem moderno. Como
consequência, a total falta de comunicação e de sentido operada entre sujeito e mundo
pragmático impulsiona a sociedade à descrença nas instituições e no mundo objetivo,
aspecto amplamente propagado pelos teóricos da filosofia da vida.
O sistema de ideias que descrevemos serviu de modelo para a construção da
teoria estética do jovem Lukács, que atribui ao plano da arte o papel de resgatar uma
relação plena de sentido entre sujeito e objeto, relação esta que o mundo objetivo não
mais pode fornecer. Sendo assim, em “Filosofia da Arte”, a fenomenologia da criação
artística consiste na superação ou na ultrapassagem da realidade da “experiência vivida”
para a realização do “vivido como vivido”. Vejamos de que modo Tertulian sintetiza
essa questão:
A criação artística não tinha outro motor formador a não ser o vivido subjetivo, e, por outro lado, tal vivido necessitava da eliminação de suas
aderências empíricas, a fim de atingir, na seqüência de um processo de
homogeneização e purificação, o nível da subjetividade estética
(TERTULIAN, 2008, p.151).
Depreende-se dessa constatação, a responsabilidade do plano estético em
operar a harmonização e a realização ideal da alma humana, isto é, o plano de dispersão,
caos e heterogeneidade da esfera da vida cotidiana, por meio da experiência estética, é
harmonizado, de modo que a plenitude da alma do fruidor realiza o “vivido como
vivido”, ou seja, efetiva uma experiência em que o sujeito receptor consegue reviver as
suas experiências nos objetos dispostos na obra de arte, objetos estes que atendem às
suas demandas subjetivas. Concluída essa experiência, o caos - aquilo que não possui
forma - e a dispersão, inerentes ao plano da vida cotidiana, são neutralizados pela
experiência estética.
Nas palavras de Tertulian (2008, p. 138), “(...) o vivido estético é, por
definição, “autônomo”, realizando-se a ultrapassagem da realidade vivida, indo para a
intensificação da subjetividade como subjetividade”. Essa elevação e intensificação da
subjetividade individual, por meio da experiência estética, encaminham-se para o nível
da universalidade, de modo que a amplificação da singularidade torna-se o pressuposto
para o processo de elevação da subjetividade. Por conseguinte, a partir da fruição da
55
obra de arte - fenômeno que possibilita ao sujeito fruidor a realização do “vivido como
vivido”, ou seja, a possibilidade de reviver nos objetos dispostos na obra uma realidade
de acordo com as demandas da sua subjetividade -, o sujeito fruidor torna-se capaz de
experienciar, com a mais ampla intensidade, a manifestação da sua essência mais
profunda, de modo que, nas palavras de Lukács: “(...) sua personalidade aparenta
abraçar o mundo inteiro” (LUKÁCS, 1973, p.27, tradução nossa).
1.6. “Filosofia da Arte”: A ideia de “harmonia praestabilita”
Para que a obra de arte alcance o seu efeito, é importante falarmos da ideia
de harmonia praestabilita, que se define pela concretização da harmonia entre forma e
conteúdo no objeto estético. A fim de que a obra de arte possa, efetivamente, se realizar,
é necessário que a forma exercite a sua eficácia na matéria, isto é, no conteúdo da obra
de arte. Essa premissa prevê a possibilidade da pura manifestação da essência do
conteúdo do objeto artístico, que, em um primeiro momento, se encontra oculta. Essa
ideia nos encaminha para a afirmação de que o conteúdo determinado do objeto estético
será materializado pela forma, de modo a oferecer ao seu fruidor uma obra de arte
consoante às suas demandas. Tertulian, na passagem a seguir, expõe essa questão:
Lukács insistirá, mais de uma vez, em seu manuscrito do período de
Heidelberg, na ideia de que a obra de arte dá “o sentido do vivido, uma
conformidade formal do vivido consigo mesmo, em outras palavras, a
exigência de estar em situação de viver um objeto, cujas formas constitutivas
do objeto são idênticas às formas de organização interna do vivido, aos
postulados de sua realização como vivido (qua Erlebnis)”. O mundo objetivo
da obra só adquire sentido como objetivização do vivido gerador, como
materialização de seu poder formativo (da força de “in-formar” o objeto em
conformidade com as suas exigências puras) (TERTULIAN, 2008, p.151-
152).
A ideia da experiência estética revela, portanto, a unidade absoluta entre
interioridade e exterioridade, imediaticidade e essência, de modo que o sujeito fruidor
pode obter, por meio de sua relação com a obra de arte, uma experiência estética
absolutamente profunda e ampla, visto que a homogeneização da obra, gerada pela
eficácia da forma sobre o conteúdo do objeto artístico (harmonia praestabilita),
56
possibilita uma fruição de grande amplitude, revelando, portanto, a unidade absoluta
entre interioridade e exterioridade, imediaticidade e essência. O sujeito receptor
encontra-se, assim, diante de uma experiência estética ampliada e profunda no momento
em que percebe, na obra, a evocação de um objeto adequado e referido a sua própria
experiência. Consumada essa percepção, realiza-se um processo em que a ampliação e o
aprofundamento da fruição se alargam proporcionalmente ao potencial do indivíduo de
reviver as suas experiências em um número maior de elementos dispostos na obra de
arte.
Nesse sentido, a fenomenologia da recepção, tal qual indicada por Lukács,
propõe a realização de um momento em que o sujeito torna-se capaz de reviver as suas
experiências nos elementos apresentados no objeto estético, alvo de sua fruição. Soma-
se à validade deste processo, a seguinte premissa: ambos, sujeito fruidor e obra de arte,
têm de portar o mundo dentro de si. Quando essa experiência receptiva é levada a cabo,
depreende-se a maior ou menor concretude do objeto artístico para o receptor, no
sentido de que quanto mais ele revive as suas experiências nos elementos dispostos na
obra, mais elevado será o grau de concretude do objeto estético.
Vale ressaltar alguns desdobramentos gerados a partir do conceito de
harmonia praestabilita, como a questão da “distância”. Sobre ela, Lukács verifica dois
aspectos que merecem observação: “(...) a qual distância objetiva a realidade se
encontra em relação ao ideal concreto de sua possibilidade imanente, em relação à
realidade utópica a essa inata, mas sempre impedida” (LUKÁCS, 1973, p.97, tradução
nossa) e "(...) a qual distância subjetiva se encontra em vez disso o homem, seja do
mundo empírico ou daquele utópico que está diante de si” (LUKÁCS, 1973, p.97,
tradução nossa). Esses dois pontos apontam para a reflexão, no âmbito da experiência
estética, da relativização do conceito de distância ou de avizinhamento do sujeito
receptor de uma possível realidade utópica ou da realidade da própria vida cotidiana.
Nessa mesma direção, questiona-se, ainda, a qual distância objetiva a realidade está de
uma possível realização utópica, que se coloca, sempre, de forma irrealizável.
Lukács, ao pensar na questão da distância, precisamente quando a obra
alcança a harmonização de forma e conteúdo e quando o receptor consegue reviver as
suas experiências nos elementos constituintes do objeto estético, relativiza o próprio
57
conceito de realidade na esfera estética. Por esse motivo, acreditamos que as recorrentes
menções à ideia da utopia; tema que permeia a sua estética de juventude, não é elemento
secundário na sua reflexão estética, pois é exatamente a relativização dessa realidade
que constitui um dos aspectos que contribui para a autonomização do campo estético.
Sintetizando este ponto, pode-se dizer que a obra de arte e seu campo próprio de atuação
se caracterizam por inserir nos sujeitos que recebem e naqueles que produzem a obra de
arte uma noção de realidade que adquire novas formas e múltiplas facetas. Há a
realidade empírica, de onde o criador retira os conteúdos de produção do seu objeto
artístico e há, também, uma outra realidade, que se impõe no momento em que o artista
alcança a harmonização de forma e conteúdo no objeto estético. Ao invés da realidade
dispersa e caótica da vida cotidiana, o artista, ao finalizar a obra, alcança, segundo
Lukács, uma realidade utópica. Nesta, todos os conteúdos perdem o caráter de dispersão
e caos e se homogeneízam, possibilitando ao receptor uma relação sujeito-objeto em
que este se despe da realidade cotidiana e imerge em um plano da realidade onde pode
reviver as suas experiências de modo pleno e autêntico. Esse plano reconecta o sujeito
estético - receptor e produtor - ao seu desejo nostálgico de retorno a uma comunidade
humana, na qual a relação sujeito-objeto não mais se pauta pela falta de identificação,
mas pela identificação plena, total. Sendo assim, na esfera estética, a realidade toma
diversas proporções e é relativizada na fenomenologia da criação e da recepção das
obras de arte.
A análise das noções de distância e de realidade se desdobra no seguinte
sentido. Por um lado, a obra de arte - postulada como desejo nostálgico do homem pela
concretização da identidade sujeito-objeto - deve realizar em si uma realidade utópica;
e, por outro viés, verifica-se uma aproximação, um avizinhamento, da relação sujeito-
objeto pelo indivíduo que experiencia e revive os elementos dispostos na obra de arte.
Depreendem-se desses aspectos, uma falta de distância objetiva compreendida no
próprio objeto artístico e uma distância constitutiva do caráter de realidade do objeto,
postulada no âmbito da recepção do objeto artístico, aspecto que contribui para a
seguinte definição lukacsiana de obra de arte:
[...] é um sistema de relações fechado em si, opõe-se ao sujeito receptivo
como uma experiência revivida e contrasta com a realidade cotidiana apenas porque é a sua realização utópica e não porque é a negação de sua superação.
Para aqueles que criam este sistema, se trata, então, de uma questão de
58
transformar as possibilidades utópicas ocultas e armazenadas na experiência
fragmentada em uma realidade que pode ser revivida (LUKÁCS, 1973, p.98, tradução nossa).
Ao postular que a obra de arte é a realização de uma realidade utópica,
Lukács descreve três aspectos essenciais para a efetivação desse fenômeno. O primeiro
deles é que qualquer realidade utópica só pode se realizar se for organizada por um
ponto de vista e a partir de uma relação homogênea e direta voltada para um único
centro. O segundo consiste na afirmação de que o ponto de vista - responsável por
organizar e gerar a realidade utópica - e os meios expressivos funcionam como
princípios purificadores da realidade revivida pelo sujeito estético. Por fim, o terceiro
aspecto reside no modo como se dá a experiência da realidade revivida, alcançada pela
superação dialética da inadequação sujeito-objeto.
O ponto de vista assegura, assim, que os elementos dispersos na realidade
cotidiana possam, de alguma maneira, se organizar em torno dele e a ele se referir,
culminando em um processo que modifica a estrutura da realidade da experiência, pois
esta perde sua plenitude empírica. Pode ocorrer, ainda, que a realidade factual se
manifeste de modo mais preciso, o que ocorre a partir da verificação daqueles elementos
que se referem ao ponto de vista e daqueles que não o fazem, os quais passam a ter a sua
existência não considerada. Verificado esse processo, cabe ao artista organizar os
elementos dispersos na realidade, a partir da categoria do ponto de vista, filtrando e
purificando os conteúdos heterogêneos presentes no plano da realidade cotidiana. Ao
realizar tal organização, os elementos da realidade, agora referidos ao ponto de vista,
tornam-se portadores de significado. No plano formal, por sua vez, a homogeneização
realizada pelo ponto de vista gera a sensação da obra de arte como um mundo fechado
em si, tal qual uma mônada.
Esse fenômeno estético permite a superação do mundo precário, disperso e
caótico da experiência pelo alcance do caráter simbólico daqueles elementos que
sofreram o processo de homogeneização, o qual possibilita a transformação da obra de
arte em um mundo fechado em si e dotado de sentido. Cumpre-se, assim, no âmbito do
objeto estético, a realização de uma realidade fechada, monadológica e utópica “(...)
pelo fato que aqui se realiza tudo aquilo que nisso é possível e quanto nesse mesmo não
pode determinar-se” (LUKÁCS, 1973, p. 102, tradução nossa). A partir da efetivação
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desse processo, pode-se afirmar a realização da harmonia praestabilita entre forma e
conteúdo na obra de arte. Consequentemente, o objeto estético pode, assim, revelar a
realidade utópica do mundo ao qual se refere, manifestando-a na obra de modo
adequado às formas da experiência e às demandas do receptor.
À esfera estética, Lukács credita a possibilidade de adequação entre forma e
conteúdo graças ao significado simbólico que a matéria (conteúdo) pode alcançar no
campo da arte. Para o autor, “o símbolo (...) é uma realidade e seu significado [é]
inerente às suas formas aparentes e aos conteúdos nele inclusos” (LUKÁCS 1973,
p.104, tradução nossa). Ainda sobre as características do símbolo, afirma-se: “A
autonomia em relação ao sujeito receptivo, o ser fechado em si, a totalidade, a
participação ilimitada extremamente rigorosa e recíproca das partes” (LUKÁCS, 1973,
p.106, tradução nossa). A partir dessas observações, pode-se dizer que a totalidade do
conteúdo de qualquer forma artística consiste em uma reunião de elementos da realidade
da experiência, os quais, para a forma artística se realizar, passam por um processo de
homogeneização e purificação, visando garantir a harmonia praestabilita de forma e
conteúdo e de adequação e adaptação da realidade às modalidades da experiência. Os
elementos que compõem a matéria da forma artística, ao participarem da construção e
realização da obra de arte, são retirados de seu contexto originário e transferidos para
um novo. Entretanto, essa transposição não gera a esses elementos a perda de seu
potencial caráter de originar ao sujeito estético uma experiência aos moldes propostos
por Lukács, mas intensifica tal caráter. Desse modo, segundo o autor:
A estilização artística é em si mesma um meio paradoxal de se colocar em
prática, contraditória em relação à essência natural do material que lhe é
fornecido; e esse paradoxo se intensifica se se pretende que na obra realizada reine a harmonia pré-estabelecida entre o material e os princípios de sua
própria determinação formal, ou seja, que todos os interventos formais
paradoxais e contraditórios concernentes ao material resultem em um meio
pelo qual se manifesta a sua essência mais íntima (LUKÁCS, 1973, p.11, tradução nossa).
Desta feita, toda a realização artística deve comportar em sua estrutura uma
coincidentia oppositorum, noção sobre a qual falaremos adiante.
Lukács também alega que, ao longo do processo de criação, construção e
realização da obra de arte, três grupos de paradoxos devem compor os estágios
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fenomenológicos essenciais da realização da obra artística. O primeiro deles consiste no
estabelecimento da coerência entre os elementos da realidade, os quais foram
selecionados para a construção da obra. O paradoxo que se instala consiste, em primeiro
lugar, na incapacidade dos elementos homogêneos da obra de estabelecerem entre si
uma coerência recíproca, ou seja, eles não capazes de dar vida às relações estabelecidas
entre eles. Em segundo lugar, o que se observa é um paradoxo manifestado no
entendimento da coerência como postulado do caráter puro de revivibilità
(vivenciabilidade), que se manifesta na obra a partir da presença do sujeito receptor.
Dessa questão, observa-se, por um lado, o caráter de imediaticidade característico da
impressão que o fruidor possui da superfície da obra, a qual deve passar pelo processo
de coligação dos elementos já homogeneizados da obra de arte, de modo que esse
processo ainda mantenha em si o caráter puramente técnico da escolha e da ligação dos
elementos da realidade para a construção da obra. Do outro lado da questão, se
manifesta uma oscilação dos elementos já homogeneizados entre dois mundos da
experiência vivida: um velho e perdido e outro novo e simbólico. Para que o paradoxo
seja resolvido, entra em cena a ideia que mencionamos: a coincidentia oppositorum.
Essa categoria é responsável por avalizar a coerência e a continuidade dos elementos já
homogeneizados, garantindo a ligação desses elementos de modo puramente técnico, ou
seja, de modo abstrato formal, o que garante ao sujeito fruidor a possibilidade de
experienciar a obra de arte.
O terceiro paradoxo apresentado ao longo do processo de criação,
construção e realização da obra de arte depreende-se da seguinte questão: de que forma
as relações responsáveis por coligar os elementos podem gerar uma relação coerente
entre estes, já que elas próprias permanecem neutras diante da “coisalidade” (cosalità)
de tais elementos? Para Lukács, encontra-se na neutralidade dessas relações uma
possível resposta para tal pergunta, visto que o seu caráter neutro impulsionaria a
categoria da coincidentia oppositorum a organizar de modo coeso os elementos a serem
coligados. O autor afirma que as relações abstratas e neutras, responsáveis por
estabelecer a associação entre os elementos que carecem de falta de conteúdo, tendem à
criação de um sistema de relações fechado. É plasmado, assim, um mundo fechado em
si que tem como característica a constituição de sua substância pela coerência análoga
de símbolos, os quais:
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[...] não devem significar nada dentro ou fora deles, mas sua validade e
realidade são garantidas exclusivamente pelo seu caráter puro de símbolos,
pela não limitação e pela infinidade das relações possíveis entre eles, bem
como pela harmonia e compactação daqueles que se tornaram reais
(LUKÁCS, 1973, p. 114, tradução nossa).
Lukács afirma, por conseguinte, que esse novo mundo criado pela
estilização artística pode ser qualificado como uma imagem que reflete uma realidade
utópica pensada e sonhada. Desse modo, seria correto afirmar que a reprodução de uma
realidade utópica no campo estético é a resultante da realização dos objetivos de suas
determinações formais. Para ilustrar seus efeitos, Lukács utiliza o exemplo da
construção de um tapete, arquitetado a partir de diversos pedaços, os quais possuem um
caráter de unidade quando observados isoladamente e a priori da construção do artefato.
Quando esses pedaços são tecidos, a fim de que o tapete ganhe sua forma final, cada um
deles passa a estabelecer uma relação recíproca com cada um dos fragmentos utilizados
para a construção do objeto. Pensemos, por exemplo, na relação de simetria, a qual
acontece no momento em que o artesão tece os diversos pedaços de modo organizado e
harmônico. Para que o tapete seja tecido e concebido como um todo harmônico, é
necessário todo um trabalho no campo da estilização formal por parte do artista,
processo que transcorre no momento em que as partes do artefato passam a estabelecer
uma relação recíproca, contribuindo, assim, à criação do tapete. No campo artístico, a
reprodução da realidade utópica consiste na criação, pelo artista, de um mundo onde as
coisas fazem sentido e se harmonizam na relação que estabelecem reciprocamente.
[...] não importa se na rima uma palavra segue outra que lhe é absolutamente
estranha em relação ao significado, essa é a resposta necessária e a única
possível; não interessa se na composição figurativa os gestos humanos,
juntamente com as árvores, as montanhas e as nuvens, formam ornamentos
enigmáticos, são mesmo naturais: porque é ao mesmo tempo uma
necessidade e um enigma o modo em que, nesses sistemas, as coisas recebem
a sua resposta e eles mesmos se constroem sobre as coisas (LUKÁCS, 1973,
p. 121, tradução nossa).
Sistematizando os aspectos já expostos, temos, portanto, uma concepção de
construção da realidade utópica no âmbito estético que conjuga as seguintes ideias:
ponto de vista, harmonização, identidade forma e conteúdo, identidade sujeito-objeto e
alcance pleno de sentido.
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Ao dar andamento à questão da harmonia, Lukács afirma que o seu
estabelecimento na relação entre as partes de uma obra de arte faz com que o receptor
conceba o objeto artístico como um todo articulado, gerando-lhe a sensação de que as
partes que compõem o objeto estético, as quais eram uma unidade em si antes do
trabalho de composição do artista, não possam mais ser vistas como aqueles fragmentos
iniciais. Retomando o exemplo do tapete, ao vê-lo finalizado, a impressão que se tem do
todo impede que vejamos os pequenos pedaços de tecido da forma como o fizemos
antes do início do trabalho. Como exemplo desse processo, podemos citar o trato
despendido às cores, texturas e estampas desses fragmentos, que, justapostas, podem
ganhar outras tonalidades, expressões e movimentos na contemplação do sujeito
receptor. Outro efeito que se pode obter após a finalização do tapete é a sensação de não
mais enxergar as costuras feitas pelo artesão para atar cada pequeno fragmento que
compõe o objeto já acabado.
No mundo da obra de arte, por conseguinte, cada palavra ou rima escolhida
pelo poeta, ou, ainda, cada objeto selecionado pelo pintor, por mais estranhos que sejam
entre si, podem se harmonizar ao final da obra devido ao princípio da determinação
formal, o qual impulsiona a criação artística à superação dos paradoxos. Nesse sentido,
Lukács apresenta o conceito de forma pura, que está associado à criação de um objeto
artístico em que o paraíso terrestre verdadeiro seja instalado. Nessa concepção, todos os
conteúdos contrários e estranhos entre si se unem e coincidem para a construção de um
mundo paradisíaco, onde não existe qualquer distância entre ser e dever-ser. Cria-se,
assim, um mundo de acordo com as exigências do sujeito, onde todos os desejos
convergem para a pura perfeição.
A configuração da forma pura, segundo Lukács, possui um agravante, pois
o mundo paradisíaco para o qual a obra de arte é impelida não possui realidade, ou seja,
ele é uma alegoria, uma cópia, um reflexo de uma distante perfeição que pode ser
aferido, somente, em senso subjetivo-reflexivo. Essa afirmação nos remete diretamente
à importância da necessidade da categoria da utopia na estética de juventude lukacsiana,
pois, se é possível a reprodução de um mundo fechado na obra de arte, isso só acontece
de forma utópica. Para tal, o mundo configurado no objeto estético passa, assim, por um
processo de estilização formal que o torna agradável e harmônico aos sentidos humanos,
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possibilitando a coincidência entre ser e dever-ser. Desse modo, por mais que existam
incontáveis elementos estranhos entre si no processo de composição da obra, eles são
harmonizados, gerando ao fruidor uma percepção de que o objeto artístico concluído e
todos os elementos selecionados para compô-lo possuem uma existência em si a priori.
Sobre essa percepção, é possível afirmar que ela é, somente, uma aparência, pois a obra
de arte só se configura como tal a partir de um processo de organização e harmonização
de elementos. Compreende-se, no interno desse conjunto de ideias, que a esfera estética
induz o receptor a conferir ao a posteriori da criação artística - à obra finalizada - a
aparência de um a priori.
1.7. “Filosofia da Arte”: A teoria das mônadas e o “ponto de vista”
Em a “Filosofia da Arte”, afirmamos que Lukács considera o ponto de vista
uma força de caráter invisível que atua de modo a unificar e harmonizar a
multiplicidade e a heterogeneidade presentes na realidade dada, gerando, assim, a
aparência da representação artística. Tito Perlini, em Nota introdutória à obra, assim o
caracteriza:
[...] é a própria forma em sua capacidade de requalificar o material empírico
fazendo dele a própria matéria, não separável de si. Aquilo que comumente
se entende pelo conteúdo (o aspecto referencial da obra, a sua aparência de realidade vivida) deriva de tal conteúdo que é forma (PERLINI, Nota, 1973,
p.34, tradução nossa).
Lukács considera o ponto de vista o a priori da criação artística. Nesse
sentido, ele sugere que pensemos sobre a criação da tragédia e sobre a premissa a partir
da qual ela é erigida. Em “Filosofia da Arte”, o autor afirma que, para a realização desse
gênero e para o cumprimento de sua premissa, é necessária a criação de um mundo em
que a morte seja considerada a verdadeira finalidade da existência. Sendo assim, o
mundo mobilizado e construído pelo artista deve se organizar a partir desse ponto de
vista, de forma que os elementos selecionados e combinados pelo criador da obra
assumam essa premissa como elemento norteador para a sua realização. Nesse sentido,
para Lukács, somente o ponto de vista: “(...) é capaz de proporcionar definitivamente a
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totalidade concreta das coisas que se tornaram obras, a realidade utópica realizada:
dessa maneira é superada a estranheza recíproca das coisas e, com isso, a sua distância
da própria utopia” (LUKÁCS, 1973, p. 146, tradução nossa).
A partir da atuação dessa categoria na construção da obra de arte, pode-se
compreender que a forma específica de cada objeto artístico possibilita, assim, a
revelação do significado do mundo. Retomemos, portanto, o exemplo dado por Lukács
sobre o gênero trágico e sua premissa, a qual consiste na criação de um mundo em que a
morte seja considerada a verdadeira finalidade da existência. Ao se efetivar, por meio
do ponto de vista, a tragédia revela ao receptor o sentido do mundo, traduzido pela na
ideia da morte como finalidade essencial e autêntica da vida humana. É interessante
observarmos que o autor não vincula a criação dos gêneros e suas formas particulares à
história e ao seu desenvolvimento, como fará em “A Teoria do Romance” (1914-15),
mas à noção de ponto de vista. Dessa formulação, depreende-se que tal noção e a forma
da obra de arte não podem ser dissociadas, o que nos leva a afirmar que a forma do
objeto artístico está sempre ligada à premissa que configura o gênero. Muito
seguramente, Lukács apresenta aqui elementos que o farão refletir, em momentos
posteriores, sobre uma ideia central de seus estudos sobre arte: a noção de que a forma é
sempre a forma de um conteúdo determinado. O divisor de águas será o deslocamento
da ideia de ponto de vista para as determinações históricas, impulsionando a dialética
artística de forma e conteúdo em seus estudos futuros. Talvez, a pergunta que faltou ao
autor à redação de sua primeira estética foi a seguinte: A partir de quais elementos o
ponto de vista se origina?
Lukács afirma que o ponto de vista apresenta uma força de atuação, no
sentido de que os elementos selecionados para a composição da obra passam a
estabelecer reciprocamente uma relação de afinidade, de forma que suas tensões e
qualquer indício de estranhamento entre estes devem passar por um processo de
apaziguamento e de suavização. A partir desse entendimento, é significativo ressaltar
que, despida de ponto de vista, as relações entre as coisas do mundo revestem-se de um
caráter abstrato. Vejamos as considerações de Lukács sobre a questão:
[...] em um mundo desprovido de ponto de vista, as coisas permanecem em
sua abstrata alteridade recíproca, e mesmo as relações permanecem abstratas:
mas, para a arte, este em si absoluto é estéril, justamente porque a sua
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referência sempre concreta a algo parece, inevitavelmente, um “em si”
(LUKÁCS, 1973, p.149, tradução nossa).
O ponto de vista torna-se, por conseguinte, “(...) o centro secreto para o qual
tudo flui e de onde tudo parte” (LUKÁCS, 1973, p. 146, tradução nossa), alcançando o
que Lukács denomina significado último, ou seja, uma totalidade organizada e
autônoma em que a relação recíproca entre as partes refere-se ao todo de modo
harmônico, organizado e unitário. Para ilustrar essa noção, o autor recorre às obras
pictóricas, afirmando que o espaço e os objetos selecionados pelo pintor para a criação
de um quadro, quando norteados pelo ponto de vista, adquirem o caráter de unidade
homogênea. Este se revela na impossibilidade de distinguir se o espaço escolhido pelo
artista cumpre o propósito de auxiliar os objetos da representação a alcançarem sua
substancialidade ou se os objetos escolhidos pelo artista e suas relações recíprocas
servem como estrutura para conquistar o espaço criado pela escolha e pelas relações
recíprocas que estabelecem.
Outro exemplo da eficácia do ponto de vista na realização artística é a
referência que Lukács faz ao ensaio de seu amigo íntimo de juventude, Leo Popper, em
que este faz alusão ao pintor de Brabante, Pieter Brueghel, célebre por seus quadros que
retratam paisagens e cenas do campo. Ressaltamos que essa mesma passagem será
resgatada por Lukács em sua estética de maturidade, no sentido de argumentar em prol
da cismundaneidade da obra de arte. A seguir, reproduzimos as palavras de Popper,
citadas por Lukács, acerca da unidade e harmonização da matéria artística na pintura de
Brueghel:
[...] as flores tinham em si algo da água, a água algo da estrada, o mineral
algo do céu e não havia nada que não tivesse sido algo de tudo. Assim, nasce
a matéria original da pintura..., matéria de que derivou espontaneamente o
papel místico de unir o que Deus havia dividido, mas que, com a grande
seriedade, pode enfrentar sua própria tarefa e conseguiu exprimir todos os
assuntos como se fosse um “magma universal” (POPPER apud LUKÁCS,
1973, p. 163, tradução nossa).
Nesta breve passagem, é interessante observar a ideia de que os objetos que
existem no mundo contêm - já em si - uma relação com outros objetos, como a flor que,
segundo Popper, contém alguma coisa de água. É papel do artista, portanto, refazer e
expressar em suas obras essa relação harmônica entre os objetos, retratando-as como um
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“magma universal”. Depreende-se dessa ideia, a noção de que todos os objetos contidos
na obra de arte estão organizados sob um ponto comum, o que, para Lukács, seria a
decorrência lógica da realização do ponto de vista e de sua força totalizante.
Imbuído do ponto de vista, o processo de realização do objeto estético
permite conceber a obra de arte como uma realidade utópica realizada e configuradora
de uma totalidade. Desse modo, vale acentuar o poder totalizante do ponto de vista, que
corrobora para o significado último da realização artística: uma totalidade organizada e
autônoma em que a relação recíproca entre as partes refere-se ao todo de modo
harmônico, organizado e unitário. Sendo assim, é adequada a afirmação recorrente de
Lukács de que a obra de arte é uma mônada, visto que ela contém em si a totalidade
intensiva da vida.
O conceito de mônada foi criado pelo matemático alemão Gottfried
Wilhelm Leibniz e desenvolvido em sua obra “La Monadologie” (1714). Lukács, em
trechos de “Filosofia da Arte”, se refere a este conceito para ilustrar a estrutura e a
composição do objeto estético, propondo ao leitor uma clara analogia entre a obra de
arte e a ideia de mônada. Em sua estética de maturidade, igualmente, encontramos
diversas menções ao conceito leibniziano, essencialmente quando Lukács se refere à
obra de arte como um mundo fechado. A seguir, remontaremos os passos do autor para
mostramos de que forma é possível a construção dessa analogia na esfera estética.
Dilthey, uma das grandes influências filosóficas do jovem Lukács, afirmou
que foi Leibniz quem mais perto chegou de realizar a missão suprema da filosofia:
elevar a cultura de uma época à consciência de si mesma. Alegou, ainda, que fora ele o
espírito mais universal que os povos modernos produziram antes de Goethe e que, a
partir de suas tentativas de conciliação entre os diferentes credos religiosos da época, ele
buscou uma cultura humana que pudesse abranger todas as nações. Nesse sentido,
Dilthey acreditava que Leibniz almejava um ideal de síntese de todos os conhecimentos
bem como das diversas vertentes religiosas de seu tempo. Tal ideia foi combatida por
alguns historiadores, que afirmam que, por meio dessas conciliações e sínteses, Leibniz
buscou, apenas, a obtenção de favores dos governantes para quem trabalhou. Não nos
interessa, neste estudo, fazer uma vasta discussão acerca da biografia e da obra
leibniziana, entretanto, é simbólico observar que Dilthey, uma das mais marcantes
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influências filosóficas da estética do jovem Lukács, tinha em sua mais alta conta a
filosofia de Leibniz.
Se o jovem Lukács entrou em contato com essa filosofia pela chave
diltheyana, não sabemos, entretanto, o conceito de mônada aparece em diversos
momentos da obra estética lukacsiana - de maturidade ou de juventude -, no sentido de
dar um contorno mais nítido para o entendimento do autor a respeito do fenômeno
estético. Em uma coletânea de entrevistas, publicada com o título “Conversando com
Lukács” (1969), Hans Heinz Holz e Lukács comentam a analogia entre Leibniz e a obra
de arte.
Holz- encontramo-nos, assim, novamente, com o problema estético, porque
também as obras de arte, a rigor, são esboços de modelos; cada uma delas,
cria, de cada feita, um pequeno mundo determinado.
Lukács- Sim, naturalmente. Holz- então, cada obra de arte tem, verdadeiramente, se assim podemos
dizer, uma intenção ontológica...
Lukács- Sim.
Holz-... isto é, a intenção de criar um mundo possível, para usar novamente
um termo leibniziano...
Lukács- Sim.
Holz- Então, da premissa ontológica, premissa que certamente não sai indene
dos últimos desenvolvimentos da física, resulta que cada mundo é, antes de
tudo, ordenado e não caótico. A obra de arte, porém, enquanto universo, pode
conter em si sempre e somente relações de sentido ordenadas e então
pressupõe que o que está desenvolvido nela já seja em si um cosmos e que neste cosmos fechado todas as partes são reciprocamente conexas, através de
relações e mediações mais ou menos necessárias ou, pelo menos, de uma
contingência imposta pela necessidade. Ora, isso poderia significar que
qualquer relação formal na qual se manifeste uma totalidade fechada de
relações poderia ser por nós considerada também como uma obra de arte.
Evidentemente, nós não fazemos isso no uso linguístico normal, quando
falamos de uma obra de arte; nem, em sentido estritamente estético,
consideramos qualquer totalidade fechada de relações uma obra de arte;
pensamos antes que o pequeno mundo que nela é plasmado seja de qualquer
modo representativo do mundo maior, que penetra nesta obra de arte e da
qual ela é reflexo e representação. [...] Nós esperamos da obra de arte alguma
coisa como a projeção de uma realidade maior sobre uma realidade menor, fechada em si mesma, e que por isso é uma relação sintética. Quer dizer: o
que para nós no mundo é, por assim dizer, inapreensível na sua trama infinita,
na obra de arte aparece compreendido e trazido a nós numa estreita ligação
sintética. (ABENDROTH, W.; HOLZ, H.; KOFLER, L.; 1969, p.24).
A ideia das mônadas, descrita em “A monadologia”, pretendeu uma
concepção dos corpos diferente da noção geométrica e mecânica proposta por
Descartes, que considerava os seres máquinas que se moviam. Leibniz almejava uma
concepção de mundo baseada na dinâmica dos corpos, considerando os seres como
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forças vivas ou unidades de força. Sobre as diferenças entre Leibniz e Descartes, nos
importa ressaltar que o primeiro concebia os corpos materiais como força, acentuando
que, pela via da experiência, era possível constatar que, num ciclo de movimento, o
elemento a ser conservado é a quantidade de força viva e, não, como acreditava
Descartes, a quantidade de movimento. Sendo assim, partindo da ideia de que o
universo é composto por unidades de força, denominadas mônadas, Leibniz passou,
assim, a descrevê-las.
Sobre a sua composição, o matemático alemão ressaltou as seguintes
características: 1) percepção, diz respeito à capacidade das mônadas de representarem
as coisas do universo, espelhando-o por completo; 2) apercepção, consiste na
capacidade das mônadas de autorrepresentação, ou seja, são elas dotadas da capacidade
de refletir, o que leva Leibniz a afirmar que elas são consciência; 3) apetição, é a
tendência de fuga do desprazer ao prazer, de modo que as mônadas são capazes de
transitar entre uma percepção e outra; 4) expressão, consiste na capacidade de cada uma
das mônadas de conter em si a totalidade, isto é, elas possuem o poder de exprimir o
restante do universo a partir de si mesmas, o que nos encaminha à afirmação de que a
mônada é um ponto de vista.
A definição das mônadas e seu conjunto de características, aliados ao uso do
termo nas obras de Lukács, nos permite a compreensão de que as unidades de força
leibnizianas são totalidades fechadas em si, portanto, não possuem portas ou janelas
para o exterior, qualidade da qual resulta o não recebimento dos seus conhecimentos de
um elemento externo. Nesse sentido, as mônadas podem ser entendidas como forças
possuidoras de uma potencialidade interna de expressão do restante do universo a partir
delas mesmas, o que fundamenta o nosso entendimento de que elas podem ser
compreendidas como pontos de vista.
As mônadas são substâncias simples e indivisíveis, logo, não podem se
formar por composição, premissa que justifica o seu surgimento como algo não natural,
mas dado por meio da criação de Deus, considerado por Leibniz a substância necessária,
única e universal. Ele possui o máximo de realidade e todo o existente é seu dependente.
Deus teria criado as mônadas no mesmo instante e inserido nelas todas as suas
percepções; por conseguinte, cada mônada se desenvolveu como se estivesse sozinha.
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Entretanto, o matemático afirma que o desenvolvimento de cada uma delas corresponde,
exatamente, ao de todas as outras; aspecto que nos leva a afirmar que o ponto de vista
de cada uma delas sobre o universo converge para o mesmo ponto, criando, assim, um
universo onde:
Há uma “harmonia preestabelecida” entre as mudanças verificadas numa
mônada e em outras, a qual produz a aparência de uma ação recíproca. Isto,
claramente, é uma extensão dos dois relógios, que batem as horas no mesmo
momento porque ambos marcam perfeitamente o tempo. Leibniz tem um
número infinito de relógios, todos regulados pelo Criador de maneira a soar no mesmo instante, não porque uns influam sobre os outros, mas porque cada
um deles é um mecanismo perfeitamente exato. Aos que acham estranha a
harmonia preestabelecida, Leibniz assinalava quão admirável prova
proporciona ela da existência de Deus (RUSSELL, 1968, p.116).
Para Leibniz, não há mônadas idênticas, pois, na natureza, não há dois
elementos absolutamente iguais. Como pressuposto, todo ser criado é vulnerável a
transformações contínuas, as quais são, portanto, aplicáveis às mônadas. Sobre essas
transformações, há de se dizer que procedem de um “princípio interno”, pois as
mônadas não possuem portas nem janelas, como já dissemos anteriormente. Tal
compreensão nos leva ao entendimento de que essas transformações não advêm de
causas externas, mas do interior de cada uma dessas unidades de força. Além do
princípio da mudança, há, ainda, aquele do pormenor do que muda (détail), que garante
que as mônadas sejam diferentes entre si, o que sustenta o princípio da multiplicidade
na unidade, nomeado percepção.
As mônadas possuem algum pensamento de todos os movimentos do
universo, pois são afetadas pela mudança dos outros corpos, o que ocorre como que por
uma relação de reflexo. Consequentemente, para todos os movimentos percebidos por
elas correspondem algumas percepções. Assim, os estados sucessivos dessas unidades
de força estariam ligados uns aos outros, o que colabora para a afirmação de que as
mônadas vivem em harmonia universal, já que cada uma delas possui a capacidade de
exprimir e de refletir todas as outras, justificando a seguinte afirmação de Leibniz:
Ora este enlace ou esta acomodação de todas as coisas criadas a cada uma e
de cada uma a todas as outras faz cada substância simples ter relações que
exprimem todas as outras e ser, portanto, um espelho vivo e perpétuo do
universo (LEIBNIZ, 1983, p.110).
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O sistema leibniziano consiste em um resgate do modelo estoico, em que o
universo era encarado à semelhança de um organismo pleno, onde as partes conviviam
em harmonia com o todo, pois tudo era entendido como análogo a tudo. Para garantir
essa harmonia, o filósofo recorre a dois princípios importantes: 1) o finalismo,
concepção advinda de Aristóteles, que propõe a organização teleológica do Universo, de
modo que tudo o que acontece deve cumprir um fim determinado; e 2) o racionalismo,
em que a vontade do criador (finalismo) está sempre submetida ao seu entendimento
(racionalismo). Consequentemente, o mundo de Deus está repleto de racionalidade e
cumpre objetivos propostos pela mente de seu criador.
A partir das ideias supracitadas, Leibniz, a fim de garantir um
funcionamento harmônico do Universo, deduz quatro princípios: 1) o princípio do
melhor, que prega que a finalidade da produção das coisas é a vontade justa, boa e
perfeita de Deus; ser que deseja essa produção; 2) o princípio da “razão”, que sustenta
a ideia de que uma coisa só pode existir se não é contraditória e se há uma causa que
possibilite sua existência; 3) o princípio da “continuidade”, que trata da não existência
de descontinuidade na hierarquia dos seres, e, finalmente, 4) o princípio dos
“indiscerníveis”, que sustenta que não há ser idêntico ao outro. Todos eles são
princípios inatos e podem ser conhecidos pelo homem por meio dos sentidos ou da
experiência, contudo, são constitutivos da mente humana e advêm, portanto, da criação
divina.
Considerando essa breve descrição da teoria das mônadas, pode-se dizer que
a filosofia de Leibniz pressupõe uma visão estética do Universo, pois o seu sistema se
organiza em torno de eixos muito claros: harmonia, hierarquia, beleza e ordenação. Não
é à toa que Lukács absorveu a ideia das mônadas para exemplificar e dar contornos à
descrição do fenômeno estético, afirmando, ao longo de toda a sua trajetória intelectual,
que as obras de arte são mônadas. Nesse sentido, a primeira percepção a ser descrita
sobre essa analogia entre Lukács e Leibniz é a de que as obras de arte - mônadas - são
pontos de vista, o que se justifica a partir da ideia de que cada objeto estético reflete o
mundo a partir de um modo particular, isto é, partindo de um ponto de vista específico.
A segunda observação consiste na retomada da concepção de Popper de que
os objetos existentes no mundo contém em si uma relação com outros objetos, o que nos
71
leva a afirmar que, no momento da criação artística, a missão do artista é ordenar,
hierarquizar e harmonizar esses objetos para que a obra de arte se torne plena de sentido
e, portanto, se torne bela. Nesse sentido, os princípios da filosofia leibniziana se aplicam
à teoria estética do jovem Lukács, de modo que a teorização do conceito de ponto de
vista, apresentada em “Filosofia da Arte”, revela que, sem a incidência desse princípio,
as relações recíprocas entre os conteúdos dispostos no mundo, os quais são selecionados
e plasmados na obra de arte, revestem-se de um caráter abstrato, imperfeito e não
harmônico, ferindo, diretamente, a fruição da obra de arte e o juízo que dela será feito.
Em posse dessa ideia, encontramos mais uma analogia entre o conceito de
mônada e a estrutura da obra da arte, pois, para Leibniz, a hierarquização das mônadas
está diretamente ligada ao grau de clareza e nitidez que estas refletem o universo. Sendo
assim, quanto maior a nitidez e maior a clareza refletida, mais superior é a mônada;
aspecto analogamente observável em relação ao juízo das obras de arte na estética de
Lukács. Lembremos que a defesa da arte realista em contraposição à estética naturalista
- aspecto sobre o qual trataremos mais adiante - está centrada na questão do reflexo:
quanto mais justo ele se faz, mais duradoura será a obra e mais valor estético ela
concentrará. Em resumo, sem a ordenação proporcionada pelo princípio do ponto de
vista não é razoável que se atinja o significado último da realização do objeto artístico:
o alcance de uma totalidade organizada e autônoma, em que transpareça uma relação
entre as partes da obra que se refira ao todo, de modo organizado, unitário e harmônico,
proporcionando, assim, que o objeto artístico reflita de modo claro e nítido o mundo que
comporta em si.
Analogamente às mônadas, as obras de arte contêm o mundo em si, de
forma que é a partir da ordenação e da hierarquização de seus elementos intrínsecos que
cada obra e cada uma das mônadas cria para si uma representação da matéria que
comporta. Desse modo, o objeto estético remonta o princípio leibniziano dos
indiscerníveis, o qual sustenta como premissa que as mônadas são diferentes.
Transposto tal princípio para o fenômeno estético, pode-se afirmar que as obras de arte
são totalidades únicas, distintas umas das outras, como a representação da montanha de
Saint Victoire, de Cézanne, reproduzida em tela diversas vezes, mas sempre de modo
diferente, revelando a não invalidação de uma obra de arte quando outra surge.
72
Nesse mesmo sentido, Balzac não anula Cervantes, pressuposto apresentado
por Lukács para caracterizar e diferenciar, dentre outros fatores, o reflexo científico do
reflexo estético. Na ciência, uma descoberta está intimamente ligada à outra,
invalidando, assim, a anterior, princípio que não é válido na esfera estética. Essa ideia
corrobora para a afirmação de que a essência de uma obra de arte é a sua
individualidade, caracterizada, logo, pela sua forma. Se todas as mônadas possuem o
mundo inteiro dentro de si, o que as diferencia é o modo que cada uma delas utiliza para
representar a matéria, ou seja, o conteúdo que porta dentro de si. Nesse sentido,
pensando na esfera estética, Patriota retoma a noção de Lukács de que toda a forma é a
expressão sensível do seu conteúdo.
[...], a arte é um “microcosmo” referido e adequado à subjetividade, isto é,
“vivência pura” e criação de “um mundo próprio”, esfera onde predomina a
singularidade de cada ato (criativo ou receptivo). Diferentemente da teoria,
que se põe “como um processo infinito e nunca concluído”, a atividade
estética gera sempre totalidades fechadas, que se entregam ao fruidor como
um mundo de experiências elevadas ao plano da normatividade,
homogeneizadas como esfera autônoma de valor e que se universalizam
apenas na medida em que fazem emergir, pela forma, um “conteúdo de
experiências concreto e, na sua concretude, determinado”. A esfera estética -
imanente e monadológica - é, por isso, estranha a toda metafísica
(PATRIOTA, 2010, p. 29).
A forma é o princípio que diferencia os objetos estéticos e que organiza os
elementos do mundo na obra de arte. Discutiremos, posteriormente, com mais
detalhamento e amplitude, essa noção em “Filosofia da Arte”. Neste momento, cabe
afirmar que o debate sobre o ponto de vista encaminha a discussão da estética para o
seguinte ponto: o sujeito criador das obras de arte deve ser dotado da capacidade de
“(...) vivenciar a realidade em termos da possibilidade de expressá-la em uma
determinada forma” (LUKÁCS, 1973, p. 161, tradução nossa). Quando o artista é bem
sucedido nessa etapa da criação, a obra se reveste de grandeza e realiza o seu potencial
utópico, configurando, assim, uma “realidade utópica” construída por meio do processo
progressivo de relativização da subjetividade e da objetividade na busca de seu
equilíbrio e de sua identificação. Caso o artista não consiga fazer com que a obra reflita
com nitidez e clareza o Universo que porta em si, o seu valor será diminuído.
A partir dessas considerações, entra em pauta, portanto, o debate, ainda
embrionário, sobre o método naturalista de composição artística, que será mais
73
amplamente desenvolvido por Lukács em seus escritos sobre literatura produzidos na
década de 30. Ainda na referida década, as discussões sobre a composição realista, seus
efeitos e suas divergências em relação ao naturalismo abrirão um campo de debate
muito fecundo sobre a arte, especialmente, acerca das produções literárias. Na seção
seguinte, exporemos as considerações lukacsianas sobre o naturalismo presentes em
“Filosofia da Arte”.
1.8. “Filosofia da Arte”: Sobre o método Naturalista de Composição das
obras de arte
Na década de 1930, Lukács discute amplamente a ideia do método
naturalista de composição artística, essencialmente, em seus “Escritos de Moscou”
(1934-1935). Dentre os ensaios que contribuem substancialmente para este debate,
citamos: “Nota sobre o romance” (1934), “Narrar ou Descrever” (1935) e o “Romance
como epopeia burguesa” (1935), escritos que, de certa maneira, são representativos no
tange ao assunto. Não exporemos, neste momento, o cenário ou os desdobramentos das
ideias lukacsianas da década de 1930 sobre o realismo ou sobre o método naturalista de
composição artística; limitar-nos-emos, somente, à exposição dos aspectos levantados
por Lukács a respeito do tema em “Filosofia da Arte”. Mais adiante, desenvolveremos
alguns pontos relativos às questões supracitadas, os quais julgamos essenciais para a
construção da estética de maturidade.
Em “Filosofia da Arte”, a crítica do jovem Lukács acerca do naturalismo
está largamente balizada pela necessidade artística do ponto de vista. O autor observa
que o método naturalista está sempre relegado à falência, pois busca apreender,
somente, a singularidade de cada um dos elementos que compõem a obra, ignorando,
assim, a totalidade desses componentes. Em outras palavras, o autor afirma que a opção
pela composição naturalista de representação artística deixa de lado o conjunto de
relações recíprocas entre os elementos que compõem a obra; postura que invalida a
construção da plenitude do objeto estético.
74
O naturalismo não conhece nem mesmo a tensão que se move a partir da
diversidade positiva dos elementos, com todo o seu valor e a sua riqueza de
relações, porque é o prelúdio para o completo descanso da obra; essa tensão,
de fato, é possível somente na homogeneidade da coisa concreta e da relação
abstrata, e aqui uma homogeneidade desse tipo não pode ser encontrada
(LUKÁCS, 1973, p.147, tradução nossa).
Um dos fatores que contribui para o projeto falho do naturalismo é a sua
insuficiente capacidade de configuração dos caracteres da obra de arte. Para Lukács, os
personagens projetados por autores naturalistas são sempre maiores que o seu próprio
destino. Nesse sentido, o que, aparentemente, possuía uma qualidade positiva, acaba por
se revelar a miséria e a pobreza desses caracteres, pois os acontecimentos de suas vidas
não podem, jamais, se transformar em destino. Consequentemente, esses personagens
renunciam à possibilidade de se tornarem heróis. Tal aspecto ocorre, pois os
acontecimentos que se sucedem na trajetória do herói naturalista se encolhem, ou
melhor, perdem força e passam a ser vividos por esses personagens como episódios, o
que impossibilita a figuração e a construção plena do herói. Essa questão, dentre outros
aspectos, dará ensejo ao debate, na década de 1930, sobre a centralidade da ação na
composição realista, aspecto que não foi desenvolvido em “A Filosofia da Arte”.
Outro obstáculo perpetrado pelo método de composição naturalista é a
impossibilidade de se atingir, por meio da representação artística, uma realidade
verdadeira, pois as limitações da personalidade do artista se colocam como um
obstáculo intransponível para tal fim. O artista naturalista busca realizar na obra de arte
um mundo que tem como estrutura o resultado das formas objetivadas de sua própria
interioridade, fenômeno que resulta em um desbalanceamento da chamada harmonia
praestabilita entre forma técnica e forma da experiência imediata na fenomenologia da
criação artística. Nas obras naturalistas, a harmonia entre a técnica artística e as formas
da experiência é rompida, de modo que um desses princípios, ao se sobrepor ao outro,
não vem corrigido pelo seu oposto, que endereça o princípio que se sobrepôs para a
unidade, ou seja, para a harmonização entre ambos. Para Lukács, a forma da experiência
do artista naturalista, ou seja, sua interioridade se sobrepõe à sua autonomia objetiva,
desarmonizando o avizinhamento entre a forma técnica e a forma da experiência. O
resultado desse fenômeno é que a técnica não mais fornece ao artista os meios para a
realização da harmonia praestabilita, o que, para o filósofo, é um dos princípios da
75
criação artística. Consequentemente, de acordo com Lukács, o método de representação
naturalista está sempre fadado ao fracasso.
[...]: se a visão nunca é alcançável apenas pelos meios fornecidos pela técnica
e se, por outro lado, aquela nunca pode ser expressa de maneira pertinente à
técnica, a conclusão do trabalho e o seu desfecho assinalam sempre, portanto,
uma renúncia resignada da parte do artista (LUKÁCS, 1973, p. 171, tradução
nossa).
Vale ressaltar que Lukács nos atenta que esse processo de falência ocorre,
somente, na consciência do artista que pretende realizar a sua própria visão, recaindo na
impossibilidade de alcance da harmonia praestabilita. Quando o sujeito criador se
dispõe à renúncia de sua própria visão já evocada, pode, então, realizar a harmonia
praestabilita na obra de arte: “(...) desse modo, são fixados fenomenologicamente o
"lugar" e a configuração do salto que liga a forma transcendente da criação à obra
realizada” (LUKÁCS, 1973, p. 172, tradução nossa). A partir dessas observações, pode-
se afirmar, tal qual o faz Lukács, que a obra de arte é sempre uma realização que vai
muito além dos desejos de seu criador e é, no momento de renúncia do artista, que ela
atinge a sua plenitude. Essa reflexão, ainda tímida do jovem Lukács, dá ensejo ao
debate sobre o partidarismo na criação artística, desenvolvido de forma ampla no seu
ensaio “Tendência ou Partidarismo” (1932), sobre o qual falaremos no segundo capítulo
deste estudo.
Neste momento, é pertinente assinalar que, no processo de criação, os
conteúdos trazidos à consciência do artista se fundem àqueles destinados a
permanecerem inconscientes em sua própria mente. O gênio, para Lukács, é, assim, o
indivíduo capaz de transpor os conteúdos de sua subjetividade - inconscientes (forma da
experiência) - se utilizando de uma forma técnica adequada - momento consciente. O
artista renuncia, portanto, à sua visão, a qual consiste no resultado do processo de
domínio dos conteúdos inconscientes (forma da experiência) por meio do auxílio da
técnica formal (momento consciente), no intuito de criar um mundo novo na obra de
arte:
[...] no gênio, os dois momentos, a clareza consciente e o momento
inconsciente, constituem os princípios que de tempos em tempos prevalecem,
mas que estão sempre presentes (isto é, a comunhão da forma da experiência
e da forma técnica é a condição apriorística do processo criativo) (LUKÁCS,
1973, pp. 173, tradução nossa).
76
Essas constatações impulsionam Lukács a afirmar que, para a
fenomenologia do sujeito criador, “(...) os problemas do artista não são aqueles da obra,
o artista pode criá-la e definir os meios empregados em seu trabalho, mas não a obra:
esta é outra coisa, é mais do que aquilo que viveu na consciência de quem a criou”
(LUKÁCS, 1973, p. 174, tradução nossa). Por meio do processo fenomenológico de
criação do objeto artístico, pode-se observar um movimento de superação da
subjetividade do artista, que se realiza no momento em que o indivíduo criador transpõe
os conteúdos de sua subjetividade, por meio da técnica formal adequada, dominando os
conteúdos inconscientes (forma da experiência), através do auxílio da técnica formal.
Este movimento mostra, gradativamente, a busca de uma objetividade que tem a sua
objetivação e a sua realização na criação da realidade objetiva e autossuficiente
(monadológica) da obra de arte. Em outras palavras, surge, na composição do objeto
artístico, uma realidade superior, denominada por Lukács realidade utópica.
Nesta, a visão - entendida como resultado do processo de domínio dos
conteúdos inconscientes pela técnica formal - e a técnica devem perder o seu caráter
subjetivo. Sendo assim, na obra de arte realizada, a técnica formal tem que se tornar
natural, invisível, ao passo que a visão, agora identificada com a obra realizada, tem de
perder todo o seu significado com e na obra de arte concluída. Lukács retoma o sentido
do termo visão e diz que, para o artista, ela cumpre a função de:
[...] representar uma gama de indicadores que, em seu trabalho técnico,
necessariamente subjetivo, conduzem à objetividade; ela [visão] deve ser a
garantia de que a técnica, como tal, se dissolverá na obra realizada
(LUKÁCS, 1973, p. 175).
Tomando por base as considerações lukacsianas sobre a criação artística, o
gênio, diante da criação da obra de arte, é aquele que efetiva a harmonia praestabilita,
ou seja, a coincidência entre técnica formal e formas da experiência no momento de
criação da obra de arte. Sobre o gênio, Lukács tece as seguintes considerações:
[...] a personalidade fenomenológica do artista parece ser atormentada por
uma trágica incansabilidade e por uma inquietação: a sua relação com a
realidade da experiência é caracterizada pela tensão contínua e insuperável
entre o real e a utopia e o seu comportamento em relação à obra se reduz a
um esforço incessante que nunca se encerra - no sujeito - para alcançar o
inalcançável (LUKÁCS, 1973, p. 188, tradução nossa).
77
É bastante interessante essa tensão insuperável entre a utopia e o real
identificada por Lukács na relação do artista com a realidade da experiência e com a
refiguração desse conteúdo para a obra de arte. Se o objeto artístico é a realização de
uma realidade utópica, o artista deve, realmente, se empenhar na construção desse
mundo homogêneo, que é possível, somente, na obra de arte. Entretanto, sabemos que
esse empenho só pode desembocar em um conflito ininterrupto e, ainda, insuperável,
entre a utopia e o real, pois sabemos que as vivências subjetivas do artista, as quais são
matéria para a construção do objeto estético, são experiências fragmentadas, que, por si
só, não podem oferecer a realidade utópica da obra de arte. Se as vivências subjetivas do
artista não passarem por um processo de purificação formal - a partir da incidência do
ponto de vista e da harmonia praestabilita - o caráter homogêneo, harmônico, fechado e
as relações plenas de sentido estabelecidas pelos conteúdos plasmados na obra de arte
não se efetivam para construírem, enfim, o mundo utópico exigido para a materialização
do objeto artístico. O artista, nesse sentido, sofre com a tensão insuperável entre o real e
a utopia na realidade da experiência, pois sabe que terá que empreender um esforço
contínuo para transformar a sua vivência subjetiva em um conteúdo que poderá ser
revivido pelo receptor da obra, o que só poderá acontecer, se a utopia da arte se efetivar
no processo de criação a partir das técnicas formais. Esse aspecto marca a
impossibilidade racional do artista, por si só, de alcançar o inalcançável.
A partir das considerações de Lukács sobre o papel do gênio na criação
artística, pode-se, em síntese, enfatizar que a sua função consiste em realizar a harmonia
praestabilita, que possibilita, a partir da constante batalha entre a forma técnica e as
formas da experiência, a criação da realidade utópica na obra de arte. Entretanto, o
autor nos alerta que o artista pode, somente, evocar essa sonhada realidade, pois, como
criador do objeto, não terá acesso a ela, ideia traduzida pelo pensamento do escritor
francês Gustave Flaubert: “(...) os autores são feitos para sentir e para dizer e não para
ter” (FLAUBERT, 2014, p.92).
Ao considerar o processo de criação da obra de arte, a sua realização, o seu
mundo imanente e monadológico e a realidade utópica que permite a configuração da
obra, Lukács refletirá sobre as noções de historicidade e atemporalidade a partir do
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momento que o objeto estético se efetiva no mundo. Este é o debate que reproduziremos
na seção seguinte.
1.9. “Filosofia da Arte”: Noções de historicidade e atemporalidade
Para Lukács, a essência específica do valor estético consiste na unidade
perfeita entre valor e realização do valor. Somente quando esse fator se efetiva é que a
obra pode adquirir uma dimensão atemporal. Certamente, o objeto artístico está sempre
ligado a um sujeito criador, que vive em um tempo histórico determinado e produz a
obra em um momento, também, particular. Para Lukács, a obra de arte carrega em si a
propriedade de, quando realizada, adquirir um caráter atemporal, pois, quando realizada,
ela não mais pertence, por conseguinte, ao momento particular de sua criação, mas se
alça à eternidade, visto que: “(...) não pressupõe apenas uma ligação com o sujeito que a
produz, mas também sua inserção no irrepetível decurso histórico-temporal” (LUKÁCS,
1973, p. 194, tradução nossa). Essas considerações inauguram, na esfera estética, um
conceito particular de temporalidade, denominado novo.
Essa nova dimensão temporal, elemento particular da esfera estética, nega a
possibilidade de afirmação do presente como dimensão temporal privilegiada. Ao
realizar o processo de negação da realidade dada, abre-se a perspectiva de projeção de
um plano futuro, de caráter qualitativamente diverso daquele que existe no presente, que
implica em uma ruptura do continuum histórico. Sendo assim, a projeção de uma
dimensão temporal futura - o novo - torna-se a esfera temporal privilegiada em
“Filosofia da arte”, dimensão que é tomada como ponto de partida para um julgamento
do plano da realidade dada, ou seja, do presente. É importante acentuarmos que o novo
não é um conceito que requisita, necessariamente, um movimento de evolução ou de
progresso sempre acentuado, mas caracteriza-se, sobretudo, pela particularidade da sua
não realização imediata (non-darsi-ancora), de modo que é eliminada do objeto estético
a contradição “(...) pela qual a obra se referiria ao valor histórico-temporal e, ao mesmo
tempo, seria válida fora do tempo”. (LUKÁCS, 1973, p. 145, tradução nossa).
79
Partindo dessa noção, a afirmação de Perlini (1973, Nota, p. XXXV) de que
a arte, no jovem Lukács, é significado e não a reprodução adequada de um significado
pré-constituído inerente à realidade, é totalmente pertinente. Afirmar que o plano
temporal futuro e não a realidade dada é o campo privilegiado na estética do jovem
Lukács impulsiona o autor a assumir que a capacidade singular de auto-estruturação da
obra de arte assegura a autonomia da esfera estética. Nesse sentido, o objeto estético:
[...] é uma utopia não porque representa a utopia em si mesma (...), mas
porque a sua utopicidade se expressa através da própria representação, o seu
tornar-se tal, tornando-se uma unidade a partir da sua capacidade de
formação. Essa não é uma Weltanschauung cuja representação assume uma
organização que se contrapõe à realidade dada como outra, pois a assumindo,
requalifica o material empírico do qual tal realidade é substanciada.
(PERLINI, 1973, p. XXVII, tradução nossa).
Na “Filosofia da Arte” (1912-1914), o ponto de vista e a utopia, “(...) que
insurge contra a realidade dada como algo divorciado de sua própria essência”
(PERLINI, 1973, Nota, p. XXV, tradução nossa), caminham conjuntamente. Lukács, ao
garantir que a obra de arte é significado e não a reprodução adequada de um significado
pré-constituído inerente à realidade, recoloca o tema da utopia no sentido de afirmar que
a obra se efetiva perante um movimento de insubordinação à realidade dada, pois ela
não é, de modo algum, afirmação desta, mas sua superação utópica.
Nesse sentido, a utopia da arte é entendida como a realização daquilo: “(...)
que ainda não é, [d]aquilo que deve ser, e que o ser dado impede que possa ser já
(PERLINI, 1973, Nota, p. XXV-XXVI, tradução nossa). Em síntese, a obra de arte
carrega, em sua composição, uma tensão entre os conteúdos dados e aqueles que ainda
não são, mas que devem ser figurados na obra, e são, entretanto, impedidos pela
configuração estrutural daquilo que já está dado. Esse é um dos sentidos que Lukács
atribui à noção de utopia, dando margem a duas funções importantes dessa ideia no
campo estético: 1) a eliminação da contradição erigida a partir do dado de que a obra se
referiria ao valor histórico-temporal e, simultaneamente, seria válida fora do tempo
histórico e 2) a validação da autonomia da obra de arte, pois a utopia é um dos
elementos que garante que o objeto artístico se estruture de forma independente e não
por meio de um significado pré-constituído inerente à realidade.
80
Até o presente momento, passamos por conceitos centrais da “Filosofia da
Arte”, como as ideias de harmonia praestabilita, ponto de vista e as noções de
historicidade e atemporalidade. Tentamos, nesse sentido, mostrar de que forma a utopia
está relacionada a essas questões. Na próxima seção, deslocaremos o nosso olhar para a
fenomenologia da recepção, para a obra de arte como forma-utopia e para o papel que a
utopia desempenha na efetivação da forma artística.
1.10. “Filosofia da Arte”: A Fenomenologia da Recepção do objeto
artístico
Em momentos anteriores, falamos sobre a fenomenologia da criação das
obras de arte, remontando, assim, um dos tópicos fundamentais da estética de Lukács: a
relação sujeito-objeto. Sobre essa questão, o autor se deterá, também, a partir de um
referencial teórico distinto, em sua estética de maturidade. A relação sujeito-objeto,
substancialmente no que tange à relação autor-obra de arte, foi analisada, previamente,
de modo a revelar como o artista pode criar uma realidade utópica na obra de arte. Para
tanto, recorremos a diversos conceitos. Dentre os mais importantes, citamos a harmonia
praestabilita e o ponto de vista. Descreveremos, adiante, a relação sujeito-objeto a partir
de outro ângulo, o da experiência receptiva, em que o conceito de harmonia
praestabilita se mostra deveras importante.
Ao se entregar à experiência receptiva, opera no sujeito fruidor a categoria
da harmonia praestabilita. No momento da fenomenologia da criação estética, o artista
realizava a possibilidade de harmonização entre a forma da experiência e a forma
técnica, ao passo que, no momento da experiência receptiva, a harmonia praestabilita
opera no sujeito fruidor: “(...) entre o mundo da obra, a ele oferecido e captado através
de um “mal-entendido", e suas exigências de adequação à realidade” (LUKÁCS, 1973,
p.250, tradução nossa). Para Lukács, no momento da experiência da recepção artística,
se interpõe um mal-entendido (MiBverständnis), compreendido pelo autor como a não
absorção, por parte do sujeito fruidor, do verdadeiro conteúdo substancial da obra - a
matéria reelaborada - e de sua estrutura interna. O fruidor, que porta em si conteúdos de
81
sua experiência singular subjetiva, percebe que os seus conteúdos individuais não são
comunicáveis, semelhantes ou equivalentes àqueles postulados no mundo da obra de
arte. A consequência desse mal-entendido é que o artista acaba por construir um mundo
fechado em si, o qual, em um segundo momento, se identifica com o mundo plasmado
no objeto artístico, que gerará, ao fruidor, a sensação de que o seu mundo é algo
autônomo em relação ao mundo da obra de arte experienciada. Dito de outra forma,
Lukács observa que as exigências do sujeito fruidor de adequações do mundo postulado
pela obra de arte diante de sua própria realidade só podem se tornar conscientes como
conteúdos, os quais não coincidem àqueles substanciais da obra de arte. Por essa razão,
o comportamento do sujeito que frui a obra de arte adquire certa autonomia em relação
ao objeto estético:
Uma vez que a obra, que nunca se torna plenamente consciente, compreende
em si somente os seus próprios conteúdos de vivência e a qualidade de sua própria vivência, que, para o sujeito, significa aquela realidade utópica que o
expressa e que lhe concede a satisfação adequada (LUKÁCS, 1973, p.257,
tradução nossa).
Para Lukács, é inerente ao indivíduo a necessidade de se comunicar, pois, é
por meio deste processo, que o sujeito pode expressar os conteúdos essenciais e
singulares de sua própria existência, a fim de que consiga se sentir membro de uma
comunidade humana. Esse pressuposto conduz o autor à afirmação de que a esfera
estética é uma das maneiras buscadas pelo homem para tentar atingir o propósito de
fazer parte dessa comunidade. Entretanto, apesar de entrever no plano da arte uma
possibilidade de comunicação, Lukács afirma que este processo pode, somente, aludir
ou suscitar uma sensação de pertencimento a uma comunidade: “(...) pois é impossível
encontrar a garantia da capacidade de comunicar a peculiaridade subjetiva daquilo que é
diretamente vivenciado” (LUKÁCS, 1973, p.32, tradução nossa). A discrepância entre
signo e coisa, de acordo com Lukács, é um dos traços que marca a impossibilidade da
comunicação da experiência individual. O signo é definido, na teoria do jovem autor,
como algo abstrato, como uma redução que não capta a qualidade particular daquilo que
é mais essencial e, finalmente, como algo que não dá conta de abranger o caráter
vivencial da vivência. Partindo das considerações precedentes, alega-se que as formas
de expressão não são suficientes para superar por completo a impossibilidade da
comunicação da experiência individual.
82
Em “Filosofia da Arte”, mais especificamente, no capítulo intitulado “A arte
como “expressão” e as formas de comunicação da realidade vivida”, Lukács acentua a
impossibilidade da realização efetiva do processo de comunicação, vetando a expressão
dos conteúdos essenciais e singulares da existência do sujeito. Nesse sentido, afirma
que, por mais que os meios expressivos despertem no indivíduo a ilusão de uma
comunhão, no intuito de fazer com que este se sinta parte de uma comunidade humana,
tal fenômeno é meramente aparente, pois somente os meios expressivos, como os gestos
ou a entonação, sem a mediação das palavras, não possuem as determinações e os
contornos suficientes para tornar a comunicação efetiva. Acerca destes, Lukács afirma
que podem falsear os sentimentos, os humores e os estados da alma do sujeito. Nesse
sentido, não se pode afirmar que a intensidade de uma mensagem expressiva seja um
elemento confiável no julgamento da autenticidade do efeito da mensagem, pois, para o
autor, tal efeito pode ser gerado tanto pelos meios expressivos quanto pela vivência.
Outro ponto a ser considerado é que a expressão, por mais que seja verdadeira, pertence
ao receptor e, não, ao emissor. É aquele que vai captar e se apropriar daquilo que foi
transmitido; mobilizando, assim, suas vivências e experiências pessoais, de modo a
reelaborar subjetivamente o material transmitido, filtrando aquilo que não está de
acordo com as suas vivências.
Neste momento, é necessário fazer uma ressalva. A vivência é, justamente,
um dos elementos que explica a distinção entre a arte e as formas de expressão que
existem na realidade empírica. Se a vivência é uma projeção do próprio sujeito na
realidade e é condicionada pelo outro, o sujeito receptor pode, por conseguinte,
vivenciar no objeto somente as características que se relacionam à sua estrutura
individual. Isso equivale a dizer que o receptor vivencia nos objetos aquilo que tem
relação com a sua visão de mundo, com o seu ponto de vista. Este é o esquema da obra
de arte.
Na esfera estética, a vivência é purificada, pois o receptor capta do objeto os
conteúdos adequados à sua vivência, ao seu esquema individual, de modo que os efeitos
dessa fruição estética geram a ampliação individual, a autorrealização do fruidor, e o
seu encontro, a partir do contato com a obra de arte, com o sentimento de pertencimento
a uma possível comunidade humana. No plano da realidade empírica, diferentemente da
83
esfera estética, o receptor não pode encontrar uma confirmação positiva de sua realidade
individual. Vale, assim, chamar atenção para uma questão importante. A obra de arte,
levando em conta as premissas que Lukács a ela atribuiu, passa a exercer o papel de
combate ao solipsismo, pois, por meio da fenomenologia da recepção, o sujeito pode
vislumbrar uma possibilidade de superação do isolamento como condição existencial.
Patriota, na passagem a seguir, faz algumas considerações acerca da temática,
entendendo a vivência artística como um mal-entendido:
[...] não se pode falar efetivamente de uma superação do solipsismo pela
estética, já que na obra o receptor não encontra a subjetividade do artista, mas uma subjetividade autônoma, isto é, o sujeito-objeto idêntico. A superação do
solipsismo pela arte é uma ilusão e a vivência estética, por isso, define-se
como um mal-entendido, um MiBverständnis. Nele funda-se a sua autonomia
(PATRIOTA, 2010, p.178).
Apesar da impossibilidade de realização do processo de comunicação entre
os indivíduos, a esfera estética acaba por se colocar como um elemento que, de alguma
maneira, gera ao fruidor certo conforto existencial, visto que a forma artística reúne em
si a condição de fazer esse processo de comunicação se realizar de modo aparente. Para
Lukács, na fenomenologia da recepção artística, a forma assume o papel de tudo e, ao
mesmo tempo, de nada. Nesse sentido, para o sujeito receptor, ela é “tudo”, visto que
não se trata de criar conteúdos novos, mas formas que são adequadas às exigências de
sua experiência. Em contrapartida, a forma assume, também, o predicado “nada”, pois
essa adequação só seria possível se a obra oferecesse ao receptor conteúdos que
correspondessem ao postulado da adequação.
Quando, por meio da forma, o sujeito fruidor consegue realizar uma
experiência estética em que as formas são adequadas às exigências de sua experiência -
concretizando o princípio da harmonia praestabilita - afirma-se, assim, o
estabelecimento da relação sujeito receptor e obra de arte. Sendo assim, o fruidor, no
momento da experiência estética, pode, por alguns instantes, vislumbrar um
pertencimento aparente a uma comunidade humana, corroborando, assim, à ideia de
Lukács que dá contornos ao seu entendimento acerca da relação sujeito-objeto presente
em “A Filosofia da Arte”: “(...) em um mundo já esteticamente homogêneo, abre-se um
abismo intransponível, que, com inexorabilidade cruel, separa os sujeitos, ora
84
perfeitamente purificados, do objeto de sua aspiração” (LUKÁCS, 1971, p.56, tradução
nossa).
Para que a obra de arte se configure e se torne um objeto da fruição,
possibilitando a relação sujeito-objeto que descrevemos, a forma artística será
compreendida por Lukács como forma-utopia; tema que será discutido na próxima
sessão.
1.11. “Filosofia da Arte”: A obra de arte como forma-utopia
Em momentos anteriores, fizemos algumas menções à categoria da forma e
ao seu entendimento em “Filosofia da Arte”. Nesta seção, exporemos a ideia de Lukács
sobre a obra de arte como forma-utopia. Para tal, é importante afirmarmos que a forma
recebe um acento muito importante na estética lukacsiana, de modo que o autor a
concebe como uma estrutura purificada e idealizada, atribuindo a ela um caráter similar
ao platônico. É seu dever, como já mencionamos ao longo deste estudo, organizar os
conteúdos díspares e heterogêneos presentes no plano da vida ordinária cotidiana,
inflando-os de sentido. Nesse sentido, a primazia da forma em detrimento do conteúdo
será uma marca da estética do jovem Lukács, de modo que ela assumirá um caráter
utópico:
A arte como forma-utopia é e continua a ser uma antecipação daquilo que
ainda não é no modelo ideal que já é dado como alcançado, na reconciliação
da forma com aquilo que lhe é distinto, no plano da própria forma, pois,
reconhecendo-se como conciliação meramente ideal, aspira a uma
conciliação de fato, se propondo, em sua contraposição a essa, à realidade
ainda irreconciliável como um ideal a ser alcançado (PERLINI, 1973,
XXXII, tradução nossa).
Remontando a categoria hegeliana do dever-ser, a ideia de forma-utopia
comporta a exigência da conciliação entre sujeito e objeto, ou seja, ser e dever-ser
devem, por meio da mediação da forma, se homogeneizar, no sentido de que a disjunção
metafísica que assegura o abismo entre homem e mundo possa ser conciliada.
Possibilidade esta entendida, somente, como um ideal a ser atingido, pois Lukács já
85
afirmou que tal possibilidade é irrealizável. Essa ideia nos direciona à afirmação de que
a utopia é um pressuposto da forma nos escritos de juventude lukacsianos, visto que o
movimento contido em sua realização consiste, justamente, em uma contraposição à
realidade dada, a partir de uma projeção temporal para um plano futuro, em que a
possibilidade de conciliação entre ser e dever-ser desponta como condição fundamental
para a realização da forma artística.
Quando a categoria da forma, no momento da realização o objeto artístico,
cumpre a sua função de forma-utopia, o sujeito fruidor experiencia, no objeto, a criação
de:
[...] um mundo perfeito que, em sua realidade sensorial imediata, acalma toda
dor e todo sofrimento, superando-os no verdadeiro sentido do termo, tanto
que a alegria infinita - que dela flui, mas que nela permanece - brota
justamente de um mundo perfeito que, embora se dê como presença irrefutável, aparenta vir de uma outra região subtraída da caducidade do
momento presente: uma realidade utópica que se tornou eterna, em que a
gênese e o desenvolvimento em uma aura mítica se entrelaçam de forma
indissolúvel em sua manifestação como tal (LUKÁCS, 1973, pp. 269,
tradução nossa).
A fruição estética adquire, nesse sentido, um caráter também utópico, pois é
compreendida como um momento de suspensão da vida cotidiana do receptor, em que
sujeito e obra são retirados do fluxo histórico-temporal contínuo, bem como são
isolados do plano caótico da realidade cotidiana, de modo que ambos - homem e obra -
são levados a uma dimensão outra - utópica - em que é possível que o sujeito
experiencie a realidade utópica criada em cada obra de arte. Ao ser retirada do
continuum histórico no momento da recepção estética, a obra de arte conquista um
caráter de existência: “(...) sempre novo porque é velho no momento do nascimento, e
está situado além do tempo histórico porque nasceu dele e a ele retorna continuamente”
(LUKÁCS, 1973, p. 271, tradução nossa).
A realização da forma-utopia, no âmbito da recepção artística, dá ensejo a
uma noção que já mencionamos em momentos anteriores, a ideia do novo. Reforçamos
o seu entendimento no sentido de uma experiência estética que gere ao sujeito fruidor
uma satisfação de seu desejo nostálgico de vivenciar um objeto artístico análogo às
exigências de sua experiência. Vivencia-se, portanto, na obra de arte, uma superação da
cisão homem-mundo. Esse entendimento faz Lukács apontar para uma característica
86
importante da esfera estética: a propriedade particular do campo artístico da constituição
de um mundo próprio, em que as obras não são invalidadas ou ameaçadas quando
surgem outras mais recentes, pois são mundos próprios que não dependem de outros
para existir. Outra característica marcante nesse sentido é que as obras de arte, em
diferentes momentos históricos e nos mais diversos fruidores, pode suscitar o efeito do
novo, independentemente de serem recentes ou antigas, de forma que um determinado
objeto artístico pode se apresentar como novo infinitas vezes, elemento que não se
verifica no campo científico, em cujo conhecimento é um processo que ocorre de modo
que cada nova descoberta científica invalida ou supera a anterior. Nas palavras de
Lukács:
[...] na história da recepção artística, o que, ao menos parcialmente, é
vivenciado como novo, pode continuar a existir, diferentemente de outros
campos históricos, em que a autonomia histórica - independente da recepção
- daquilo que aconteceu é muito mais forte (LUKÁCS, 1973, p.225, tradução
nossa).
A cada nova obra criada, um novo mundo - que não se assemelha em nada
àqueles já criados - também é inventado. Para ilustrar essa questão, Lukács descreve as
mais diversas formas de representação de uma montanha para alguns artistas:
[...] em Cézanne, com todo o peso de sua materialidade estrutural, em Dirk
Bouts, como um objeto precioso da mesma natureza e do mesmo valor do
ouro e das pedras preciosas que os três reis Magos trouxeram ao Cristo
Salvador, em Perugino, como o veículo para construir um espaço mais amplo
e livre, como um elemento puramente arquitetônico, em Henri Rousseau, como um brinquedo comovente, em Giotto, como uma companhia das ações,
em Lorenzo Monaco, como símbolo, reduzido a um esqueleto [...]
(LUKÁCS, 1973, p. 268, tradução nossa).
A partir dessa constatação, o filósofo afirma que, apesar desses novos
mundos criados não terem semelhanças com os seus precedentes ou com aqueles que
ainda serão representados futuramente, todos eles devem carregar em si a possibilidade
de se tornarem objetos da Erleben (realidade vivida), no sentido de que o sujeito
receptor ora se recorde das imagens arquetípicas ocultas de todas as coisas existentes no
mundo, ora se relembre das lendas de criação do mundo e das maravilhas da criação.
Essa compreensão nos direciona para uma ideia que será amplamente desenvolvida na
estética de maturidade de Lukács: as obras de arte como memória da humanidade,
memória esta a ser evocada pelo fruidor quando em contato com objeto artístico.
87
É importante resgatarmos a noção de que a ideia de vivência, sobre a qual é
construída a estética de Heidelberg, não comporta a noção de historicidade tal como
Lukács a compreenderá após a sua adesão ao marxismo. Se o homem é um ser que se
constrói a partir de suas vivências subjetivas, ele próprio arquiteta e ordena a sua
narrativa temporal e mesmo esta não precisa ter qualquer correspondência com a
evolução histórica da humanidade. A ideia da vivência e da intuição como instrumentos
para constituição existencial do indivíduo e para conhecimento do mundo implicam em
uma percepção altamente subjetiva e singular do movimento histórico, exatamente
porque a história é construída a partir das vivências subjetivas e individuais.
Até a ocasião, passamos por temas capitais da “Filosofia da Arte” com os
quais o tema da utopia estabelece algum diálogo. Na seção seguinte, descreveremos e
discutiremos os pontos mais relevantes do segundo volume da estética de juventude,
intitulado “Estética de Heidelberg”, procurando encontrar as relações possíveis entre a
ideia de utopia e os temas abordados.
1.12.“Estética de Heidelberg”: questões preliminares
A redação da “Estética de Heidelberg”, empreendida entre 1916-18,
circunscreveu-se em contexto histórico particular, a Primeira Guerra Mundial, fato que
impulsionou o autor à escrita de um de seus mais notáveis e conhecidos ensaios sobre
literatura, “A Teoria do Romance”, publicado entre 1914-15. Segundo Lukács, essa
obra deveria ser, originalmente, um estudo sobre Dostoiévski, entretanto, a ideia
original sofreu um desvio e se tornou um ensaio detido acerca do surgimento do gênero
romanesco e de suas tipologias mais marcantes. É importante enfatizarmos que, entre
1914-16, período que precedeu a escrita da “Estética de Heidelberg”, o filósofo havia
interrompido a sua redação, se dedicando - quase que integralmente - a “A Teoria do
Romance”, aspecto que nos ajuda a compreender a inserção marcante das ideias de
Hegel nessa segunda parte do projeto estético do jovem Lukács.
Ao longo da leitura da “Estética de Heidelberg”, a introdução de Perlini à
obra nos serviu como chave de leitura, pois atenta o leitor acerca das semelhanças e
88
diferenças estilísticas dos dois volumes que compõem a estética de juventude, bem
como aponta, ainda que de forma breve, as influências teóricas do autor à redação deste
segundo volume. Reproduziremos, a seguir, uma observação de Perlini que nos atenta
para um objetivo comum e norteador das duas estéticas:
Mesmo a partir dos escritos compreendidos neste volume, ficará claro para o
leitor sensível como o aspecto mais precioso e rico das proveitosas
implicações do Lukács estudioso de estética é e continua sendo o vínculo
profundo entre arte e utopia, a partir da densa reflexão de que a função crítica
da arte só pode se revelar completamente como alternativa ao existente, realizado, indireta e implicitamente, pela arte no interno de uma civilização
que não consegue estabelecer uma relação que não seja infeliz entre si mesma
e a natureza (PERLINI, 1973, Nota, p. XIV tradução nossa).
Esse eixo comum dos dois volumes da estética de juventude, que consiste,
essencialmente, na importância do vínculo entre arte e utopia, orientado para a função
da arte como alternativa ao existente, será, também, aspecto presente na estética de
maturidade. Entretanto, enquanto tal questão aponta para a possibilidade da arte como
crítica da vida em sua obra de maturidade, de forma que a arte assume um papel
pedagógico de possível aprimoramento da existência dos sujeitos; na estética de
juventude, essa alternativa ao existente funciona como um consolo transcendental para o
homem, pois aponta para alternativas que não podem, por ele, ser alcançadas.
Ainda no texto de Perlini, resgatamos o entendimento de que essa segunda
parte do projeto estético lukacsiano deve ser entendida como uma das fases de um
trabalho ininterrupto que compõe um único projeto, o qual apresenta: “(...) um
aprofundamento do modo como foram tratados os temas presentes na Filosofia da Arte,
algumas correções parciais e ajustes de natureza conceitual” (PERLINI, 1973, Nota,
p.IX, tradução nossa). Além dessas considerações, soma-se um estilo de escrita mais
claro e mais fluente do que aquele observado em “Filosofia da Arte” (1912-194), bem
como são abandonados alguns termos em latim presentes no primeiro volume da obra,
elementos que também confirmamos em nossa leitura.
Recorremos, ainda, como suporte à leitura da “Estética de Heidelberg”, à
Nota de György Márkus, escrita em 1973, e incorporada à obra. Ela visa chamar a
atenção do leitor para o processo de organização e de publicação da estética e para as
diferenças temáticas e de natureza conceitual presentes nos dois livros que compõem o
89
projeto lukacsiano. Embora não exista um estudo comparado sistemático acerca desses
dois textos, a Nota redigida por Márkus é precisa em pontuar alguns aspectos
norteadores da leitura, principalmente, no que tange às diferenças temáticas entre os
textos. Aproveitamos a ocasião para ressaltar quão importante seria a realização de um
estudo que propusesse uma análise contrastiva temática e, ainda, conceitual das estéticas
de juventude, pois esses dois momentos diversos nos quais Lukács se concentrou na
redação da estética podem revelar novas chaves de leitura para essas obras.
Reproduziremos, adiante, alguns pontos levantados por Márkus que foram de grande
ajuda para a nossa compreensão do projeto de Heidelberg. Nesse sentido, acreditamos
que a exposição de tais temas pode auxiliar o leitor, pois algumas questões de
terminologia e de mudanças temáticas podem causar certo desconforto a quem espera da
“Estética de Heidelberg” apenas uma continuação, ou ainda, uma reescrita - ipsis litteris
- da “Filosofia da Arte”.
De acordo com Márkus, ao longo de toda a “Filosofia da Arte”, Lukács faz
uso de uma terminologia do “comportamento”: “Lukács fala de comportamento lógico,
ético, religioso, estético, de modos de comportamento, etc” (MÁRKUS, Nota, 1974, p.
322, tradução nossa). Embora essa terminologia também esteja presente ao longo das
páginas da "Estética de Heidelberg”, Márkus afirma que, nesta, ela aparece com um
significado mais limitado, no sentido de definir “(...) a relação, a posição do sujeito
diante de qualquer esfera dada” (MÁRKUS, Nota, 1974, p. 322, tradução nossa). O
autor ainda afirma que, nesta obra, é recorrentemente utilizado o termo “posição” para
designar a posição específica de alguma esfera, seja ela teórica, estética, ética ou
metafísica, o que não ocorre, em momento nenhum, em “Filosofia da Arte”. Outra
questão recorrente é o uso do termo “esfera lógica”, denotando o sentido de âmbito do
conhecimento, de modo que os termos que advém dessa esfera - “forma lógica” e
“objeto lógico” - são utilizados com seu significado preciso. Na “Estética de
Heidelberg”, Lukács opta pela utilização do termo “esfera teórica” em detrimento de
“esfera lógica”, pois usa o termo “lógico” no sentido de designar um nível preciso da
esfera teórica. Essas questões terminológicas levam Márkus a concluir que:
Dito de forma geral, pode-se afirmar que na “Estética de Heidelberg” - em
relação a deslocamentos precisos de conteúdo - a terminologia da filosofia neokantiana do juízo é utilizada com maior coerência do que na “Filosofia da
Arte” (embora devamos observar que o termo comportamento foi,
90
provavelmente, emprestado de Lask). Soma-se a isso que a “Estética de
Heidelberg” - especialmente, o primeiro e o terceiro capítulos - manifestam,
no que se refere à terminologia, uma forte influência das <ideias ...> de
Husserl (<redução>, <mundo circundante diante da atitude natural>,
<realidade natural>), uma influência que não é encontrada na “Filosofia da
Arte” (MÁRKUS, Nota, 1974, página 323, tradução nossa).
Acerca das divergências teóricas e temáticas apresentadas ao longo da
leitura dos dois textos, Márkus afirma a possibilidade de concebê-los como unidades
distintas, principalmente, ao observar que Lukács, em 1916, optou por escrever um
novo texto ao invés de dar continuidade àquele já redigido em 1912-1914. Em face
dessa ponderação, afirma que a concepção de obra de arte em ambos os volumes é
comum e abordada por meio de um viés rigorosamente estético, apesar de a “Filosofia
da Arte” apresentar em sua construção uma síntese da filosofia da vida e do kantismo e
de a “Estética de Heidelberg” optar por um “(...) kantismo coerente, interpretado como
extremamente dualista” (MÁRKUS, Nota, 1974, p. 324, tradução nossa). Tal
apontamento pode ser observado, principalmente, ao se analisar o conceito de realidade
vivida, que aparece alinhado às concepções da filosofia da vida no primeiro texto da
estética, designando “(...) uma esfera subjetiva inexprimível da imediaticidade e da pura
qualidade, cuja estrutura interna encontra a sua expressão conceitual própria no
solipsismo” (MÁRKUS, Nota, 1974, p. 324, tradução nossa). Na “Estética de
Heidelberg”, o mesmo conceito sofre uma interpretação diversa no que tange à questão
da imediaticidade do plano da realidade vivida3, que passa a ser interpretado como
contrário à imediaticidade e como:
[...] uma estrutura objetiva <objetivamente secundária> e <artificiosa>, um
conglomerado caótico de objetivações <pré-fabricadas> determinadas por
formas de posições normativas a nível primário, objetivações que, tendo sido
abstraídas de uma relação de significado homogêneo, perderam todos os
vestígios da construção teleológica-racional até diminuir-se ao grau de
<simples ser>, de factum brutum [...] (MÁRKUS, Nota, 1974, p.325,
tradução nossa).
Essa concepção um pouco diversa do conceito de realidade vivida não deixa
de apontar para a distância entre o mundo da obra de arte e a realidade empírica, aspecto
também presente em a “Filosofia da Arte”. O que Márkus ressalta é que, na “Estética de
Heidelberg”, a questão da “imediaticidade” é excluída do plano da realidade vivida,
3Realidade vivida ou realidade da experiência vivida são termos usados de forma equivalente ao longo do
texto.
91
resultando no destaque do conceito de mal entendido. A decorrência dessas divergências
faz com que algumas questões tratadas em a “Filosofia da Arte”, como o conceito de
“homogeneização” e de “purificação”, empregados na fenomenologia estética da
recepção e da criação com efeito de combater a imediaticidade do plano da experiência
vivida, desapareçam, literalmente, do segundo livro. Por fim, Márkus também nos
atenta que alguns conceitos, válidos tanto para a realidade vivida como para a esfera
estética, como é o caso da “experiência pura”, assumem, no segundo livro, um sentido
puramente estético.
Outro ponto que levantamos e que nos suscitou um grande desconforto foi a
questão da fenomenologia da recepção e da criação, elementos largamente discutidos no
primeiro livro, que, no segundo texto, não recebem o mesmo tratamento, apesar de
haver um capítulo inteiro dedicado à relação sujeito-objeto na estética, que toca em
alguns pontos da fenomenologia criativa e receptiva. Nesse sentido, a Nota de Márkus
aponta que Lukács, em a “Estética de Heidelberg”, faz menção a um capítulo específico
sobre essa temática, todavia, percebe-se que o autor não o incluiu no texto. Márkus,
então, faz alguns apontamentos acerca da questão e cria três hipóteses para tentar
explicar essa ausência. A primeira delas é que o capítulo tenha sido escrito, mas não
encontrado. A segunda hipótese prevê que o filósofo tenha reescrito o capítulo da
“Filosofia da Arte” sobre a fenomenologia da recepção e da criação, mas que este não
tenha sido localizado pelos organizadores da obra. Por fim, a terceira, e mais provável
hipótese, é a de que Lukács houvesse pensado na probabilidade de incorporar o capítulo
já escrito para a “Filosofia da Arte” à “Estética de Heidelberg”. Ainda sobre o
respectivo capítulo, afirma que uma nova versão ou reescrita deste teria de levar em
conta alguns ajustes conceituais, ou ainda, metodológicos, essencialmente, pela larga
presença das ideias de Hegel na “Estética de Heidelberg”, não observáveis, com a
mesma recorrência, em a “Filosofia da Arte”.
Dentre as questões elencadas por Márkus, aponta-se que a “Estética de
Heidelberg”, muito provavelmente, fora pensada a partir de um esquema mais amplo, o
qual Lukács não teve tempo ou interesse de finalizar por completo, de modo que o texto
que veio a público “(...) equivale a uma série de capítulos, que, levados a cabo
distintamente, foram ordenados em um segundo momento (MÁRKUS, Nota, 1974, p.
92
340, tradução nossa). Essa hipótese também foi por nós corroborada, de modo que
acreditamos que os dois textos possuem uma organização temática que, muitas vezes, dá
ao leitor a impressão de um corte temático brusco, que acaba por não dar conta de
muitos aspectos que poderiam ser melhor explorados para que a obra alcançasse maior
organicidade, como acontece com a terceira parte de a “Filosofia da Arte”, cujo título é
“Historicidade e Atemporalidade da obra de arte”. Nesse sentido, concordamos,
novamente, com a seguinte afirmação de Márkus:
É de fato muito evidente que Lukács interrompe ou renuncia à elaboração
autônoma de sua estética, no centro da qual deveria ser encontrada, programaticamente e exclusivamente, a obra em si, ao mesmo tempo em que
é posta a necessidade de enfrentar o problema substancial (MÁRKUS, Nota,
1974, p. 340, tradução nossa).
Ao longo da leitura do projeto estético de Heidelberg, esperávamos que
Lukács dedicasse um capítulo em que, detidamente, desenvolvesse e ampliasse suas
considerações sobre o objeto estético em si. É inegável que o autor aborda diversos
aspectos relacionados à estética - como as condições para a sua autonomia, a
fenomenologia da criação e da recepção, a questão da obra e sua historicidade, a relação
sujeito-objeto ou a ideia de beleza -, todavia, não há um capítulo que trate,
especificamente, do objeto estético, no intuito de sistematizar a concepção do autor
sobre tal questão.
Não se pode negar que há uma definição do que é o objeto estético na
estética de juventude lukacsiana, entretanto ela está dissolvida ao longo da obra, o que
pode deixar o leitor um pouco desconfortável. Sobre essa questão, acreditamos que a
opção estilística do autor à redação da estética de juventude contribua para um texto em
que os conceitos centrais não são expostos de forma sistemática, mas dissolvidos ao
longo da obra, de modo que cabe ao leitor mapeá-los durante a leitura do texto. É nesse
sentido que afirmamos que o grande apreço do jovem Lukács pelo gênero ensaio,
certamente, tenha influenciado a redação de sua estética, pois há pouquíssimas
referências bibliográficas ou notas de rodapé ao longo do texto, aspecto que deixa o
leitor, muitas vezes, inseguro durante a leitura, especialmente, por não encontrar na obra
as referências que situam teoricamente a construção e o desenvolvimento dos conceitos
propostos pelo seu autor. Acreditamos que esse ponto tenha nos motivado a redigir o
primeiro capítulo desta tese de forma bastante sistemática, buscando, em cada uma de
93
suas seções, descrever e discutir um conceito específico. Esse formato foi pensado para,
quem sabe, servir de auxílio àqueles que pretendem ler a estética de juventude e analisar
os conceitos nela presentes.
Ainda sobre a influência do estilo ensaístico do jovem Lukács à redação da
estética, podemos dizer que os dois textos recebem a influência do gênero referido,
apesar de inferirmos que a segunda parte de a “Filosofia da Arte” cumpre de modo um
pouco mais acentuado uma organização temática, especialmente ao tratar da
fenomenologia da criação e da recepção, temas que demarcam a posição do autor sobre
a importância da arte na vida dos homens. Acerca desse caráter, talvez, Márkus tenha
acertado ao afirmar que:
Não é arriscado afirmar que o plano da estética lukacsiana conscientemente
destinado a esclarecer o processo criativo, um plano em que a obra, entendida
como um complexo formal, sempre se move mais claramente para o centro,
parece quase se chocar continuamente com o profundo interesse humano e,
ao mesmo tempo, filosófico do seu autor, com a necessidade de reconhecer,
sobretudo, a necessidade da arte na vida, isto é, a sua função na totalidade
desta (MÁRKUS, Nota, 1974, página 342, tradução nossa).
Por fim, outro ponto que gostaríamos de enfatizar é o abandono, na
“Estética de Heidelberg”, dos termos em latim, os quais são recorrentes em “Filosofia
da Arte”, configurando, assim, uma opção estilística um pouco diversa de seu autor.
Ademais, longe de exaurir ou de pontuar todos os pontos conflituosos dos manuscritos
de Heidelberg e entendendo que esta pesquisa não pretende discutir ou esgotar essas
questões, mas mencionar de forma breve alguns desses pontos; foram elencados,
somente, os aspectos que julgamos absolutamente necessários para darmos
prosseguimento à análise da “Estética de Heidelberg”. Nesse sentido, acreditamos que o
leitor possa encontrar, nesta tese, alguns pontos de apoio para possíveis desconfortos e
estranhamentos ao se deparar com a leitura da estética de juventude lukacsiana.
Nas próximas três e últimas seções que compõem este primeiro capítulo,
analisaremos as noções de autonomia da esfera estética, a relação sujeito-objeto no
referido campo e a forma estética e suas especificidades. Selecionamos tais temas da
“Estética de Heidelberg”, pois eles aprofundam alguns debates presentes em a
“Filosofia da Arte” que são importantes para o desenvolvimento da temática da utopia.
94
1.13. “Estética de Heidelberg”: A esfera estética e a fundamentação de
sua autonomia
A “Estética de Heidelberg” foi organizada em torno de dois grandes eixos
norteadores e dividida, portanto, a partir dessas duas linhas. A primeira parte trata,
substancialmente, de conceitos e noções que buscam diferenciar a esfera estética de
outros campos, assegurando, por conseguinte, a sua autonomia. A segunda parte do
texto tem como eixo temático a ideia de beleza, apresentada por meio de uma
arqueologia, a qual compreende autores como Platão, Aristóteles, Hegel, Goethe,
Schiller, entre outros. Lukács discutirá a ideia de beleza desses autores com o intuito de
demonstrar que estes não conseguem garantir à esfera estética um status autônomo. Por
mais instigante que seja essa discussão, o nosso foco reside na primeira parte da
“Estética de Heidelberg”, pois ela compreende as categorias e as noções que constroem
a ideia da obra de arte como realidade utópica, tema central desta pesquisa. Sendo
assim, trataremos dos conteúdos da primeira seção da Parte I da obra, intitulada “A
essência da posição estética”. Nesse sentido, remontaremos os passos de Lukács em sua
tentativa de construção de um espaço autônomo para a esfera estética em detrimento dos
campos da lógica, da metafísica ou da ética. Desta feita, enfatizaremos algumas noções
e conceitos que serviram de base para essa tentativa.
Ao início de sua estética de juventude, Lukács já nos atenta para a seguinte
questão, a qual se repetirá em sua estética de maturidade: “Se as obras de arte de
existem: como é possível a sua existência?” (LUKÁCS, 1974, p.3, tradução nossa). A
partir dessa premissa, o seu pensamento estético se desenvolve de forma que,
primeiramente, seja assegurada a objetividade da obra de arte - sua existência - para
que, por conseguinte, sejam delineadas as questões relacionadas ao seu surgimento, às
suas características constitutivas e ao seu estatuto. Para tal, Lukács faz uma tentativa de
reformulação da “estética kantiana”, afirmando que a tônica do domínio estético recai
sobre o próprio objeto artístico e, não, tal qual pensava Kant, no juízo. Portanto, uma
possível construção de um sistema estético não pode surgir a priori - tais quais os juízos
95
sintéticos kantianos -, mas em um momento posterior à constatação material da obra de
arte.
No primeiro capítulo da “Estética de Heidelberg”, a tentativa de assegurar a
autonomia da esfera estética nos oferece indícios para que possamos afirmar uma
transição filosófica no pensamento de Lukács - do kantismo ao hegelianismo -, visto
que, para Tertulian:
Hegel atraía o jovem esteta porque propunha, com a Fenomenologia do
espírito, uma topografia dinâmica dos tipos de relação sujeito-objeto,
atribuindo a cada “figura da consciência” uma função única no mapa do
espírito (TERTULIAN, 2008, p.140).
A tentativa dessa atribuição é perseguida pelo jovem Lukács ao longo das
páginas da “Estética de Heidelberg”. Diferentemente do que se observa na “Filosofia da
Arte”, o autor empreende uma discussão bastante longa sobre a problemática
fenomenológica em Hegel e sobre a sua metafísica, discutindo a relação sujeito-objeto
proposta pelo filósofo na “Fenomenologia do Espírito” (1807). Nesse sentido, Tertulian
afirma que: “O manuscrito da estética do período de Heidelberg nos oferece o primeiro
testemunho explícito de uma comunhão profunda com a célebre obra de Hegel, a qual
terá um papel considerável na evolução intelectual de Lukács” (TERTULIAN, 2008,
p.138).
As diversas menções à filosofia hegeliana nos sugerem que Lukács
acumulou e sistematizou seu conhecimento sobre este filósofo no intervalo da redação
de suas estéticas de juventude, mais precisamente entre 1914 e 1916. Essa afirmação
pode ser corroborada, ainda, se pensarmos na redação de a “Teoria do Romance”, a qual
se deu, precisamente, neste intervalo. Lukács, no prefácio à obra referida, nos relata a
transição de seu pensamento do idealismo subjetivo (Kant) ao objetivo (Hegel), nos
levando a compreender a larga influência de Hegel na segunda redação de sua estética
de juventude. Abordaremos a aproximação entre Lukács e Hegel, com mais detimento,
na seção seguinte, intitulada ““Estética de Heidelberg”: A relação sujeito-objeto”.
Neste momento, nos concentraremos na tentativa de Lukács de assegurar à
esfera estética a sua autonomia. Para tal, o autor parte da existência material das obras
de arte, afirmando que o esforço de sua estética se concentra na descrição de como essa
96
existência torna-se possível, bem como dos seguintes aspectos: “(...) Qual é o
significado filosófico-transcendental, a estrutura objetiva e o modo de valoração da
configuração do significado da obra de arte (LUKÁCS, 1974, p.4, tradução nossa).
Enfatiza-se, assim, o caráter metafísico de uma estética baseada no juízo, tal qual
propunha Kant4, resgatando a ideia de Lask de que a obra de arte deve ser pensada de
modo a se despojar de qualquer veste lógica:
[...] em suma, é necessário pensar a obra de arte como ela é em si, os tipos de
comportamento subjetivo em seu interior (produção e recepção), os quais
podem ser esclarecidos em seu próprio modo, originário, portanto, de forma
puramente estética e não mais teórica (LUKÁCS, 1974, p.6, tradução nossa).
Lukács, como em “Filosofia da Arte”, afirma o caráter monadológico do
objeto estético, definindo-o como um complexo formal fechado em si, que não necessita
recorrer a qualquer princípio superior para validar a sua existência. De acordo com o
autor, a atitude estética assume, assim, um caráter paradoxal, pois requer um Erlebnis
(vivência) normativo, visto que, objetivamente falando, a forma de valoração dessa
esfera “(...) está conectada à experiência, é o tornar-se forma, é o significado imanente
da experiência vivida” (LUKÁCS, 1974, p.8, tradução nossa), na medida em que, em
outras esferas - como a ética - as formas de valoração requerem um distanciamento do
plano da realidade vivida.
Entra em questão, assim, o plano da realidade vivida, definido por Lukács,
como “(...) um tipo específico de vida no mundo concretamente dado pelo aqui e agora,
sobre cujo “caráter dado” e expressividade não podem existir quaisquer dúvidas, mesmo
4Para dar contornos a essa discussão, Lukács empreende um breve debate acerca do problema do conceito
da coisa em si, formulado por Kant. Este filósofo afirmará que a crítica coloca o fundamento da matéria
das imagens sensoriais em algo suprasensorial e não, diretamente, nas coisas em si, de modo que “os
objetos, como coisas em si, dão matéria às visões empíricas” (LUKÁCS, 1974, p.14, tradução nossa). A
sensibilidade - ideia kantiana que coincide com o conceito de experiência utilizado por Lukács em “Estética de Heidelberg - passa, assim, a ser entendida como “o substrato formal das formas valutativas
teóricas e éticas” (LUKÁCS, 1974, p.14, tradução nossa), o que repercute na dualidade originária de
forma e conteúdo, entendida como base das esferas de valor. Visto que é o substrato para a determinação
formal, o material possui um caráter de forma, pois ele, ao mesmo tempo que busca a forma, tende a ela.
O material em Kant é algo que não pode ser conhecido pelo sujeito, o que o transforma em um conceito
limite da cogniscibilidade, “(...) em um eterno ainda-não do conhecimento” (LUKÁCS, 1974, p.15,
tradução nossa). Lukács afirma, assim, que a ideia kantiana de cognoscibilidade e a relação originária que
o filósofo alemão concebe entre forma e material (conteúdo) resultarão na ideia da coisa em si somente
como condição de possibilidade da materialidade (sensibilidade): “(...) com a mesma necessidade com a
qual é posta vem colocada como incognoscível” (LUKÁCS, 1974, p.15, tradução nossa).
97
se sua objetividade específica ainda não tenha sido sondada” (LUKÁCS, 1974, p.23,
tradução nossa). A essência da estrutura da realidade vivida é definida, portanto, como
“(...) o mundo da objetividade dada, já confeccionada, cujos princípios são, todavia,
heterogêneos e determinam uma objetividade que é, por princípio, mista” (LUKÁCS,
1974, p.24, tradução nossa). Lukács insistirá na existência desse plano, afirmando que
este precede as ações normativas da consciência, caracterizando-se, essencialmente, por
uma “existência mista e heterogênea dos objetos". Essas noções compõem a ideia de
que a existência inerente a este plano se dá de modo prático e espontâneo. Importante
relembrarmos que o entendimento da ideia de realidade vivida deixa de escanteio a
noção de imediaticidade, aspecto que a caracterizava em “Filosofia da Arte”. Nesse
sentido, o sujeito da realidade da experiência vivida, em contraposição àquele das
esferas valorativas, é denominado homem inteiro, o qual encontra na realidade da
experiência vivida seu ambiente natural, e assume como função sintetizar o conceito de
vida, o qual é constituído por uma objetividade mista e heterogênea. A vivência, assim,
mantém um status importante na estética lukacsiana, fazendo seu autor recorrer à
psicologia, campo cujo objeto de estudo é a própria vivência:
A psicologia, enquanto ciência da experiência vivida, deve sempre ir além do
dado revivível, deve decompor a experiência, recompô-la, homogeneizá-la e
ordená-la, procedendo de uma forma que é necessariamente transcendente
para a essência revivível da experiência vivida (LUKÁCS, 1974, p.23, tradução nossa).
Se partirmos do ponto de vista da experiência, a psicologia assumirá que a
cognoscibilidade é uma abstração, visto que este processo encarna um momento
estranho ao momento material. Lukács, sobre a psicologia descritiva de Dilthey, afirma
que não se supõe, neste campo específico, uma passagem progressiva que conduza da
realidade às esferas de valor, como supõe Dilthey em relação às ciências humanísticas,
admitindo que o reconhecimento da originalidade da experiência vivida repercute na
ruptura de cada campo de valoração e da relação de valor; o que faz com que o seu
conhecimento não mais possa constituir a passagem para qualquer uma dessas esferas.
Uma possível transposição só ocorreria nos momentos em que a realidade da
experiência vivida transcendesse a si própria, o que ocorreria, somente, de modo alusivo
e negativo.
98
Visto que a estética lukacsiana se constrói, substancialmente, a partir das
noções de experiência e de vivência, pode-se dizer que a normativa da esfera estética é
de outra natureza quando comparada, por exemplo, à metafísica, pois pretende alcançar
o significado da experiência enquanto tal e não, como ocorre no campo metafísico, dar
conta da verdadeira realidade das coisas, ou seja, das coisas em si. Desse modo, Lukács
afirma que é necessária uma esfera autônoma de valor para a estética, enfatizando a sua
estreita relação com a vivência.
Dessa forma, o conceito de experiência estética se separa de qualquer tipo de
vida, seja ela empírica ou metafísica, como as outras formas valorativas das quais a estética se distingue de forma própria e inequívoca, precisamente
devido ao seu vínculo contínuo com a vivência (LUKÁCS, 1974, p.38,
tradução nossa).
É nesse esforço de construção de um espaço autônomo para a esfera estética
que Tertulian afirma que Lukács, influenciado por Rickert e Lask, formula, já no início
da “Estética de Heidelberg”, sua principal tese no domínio da epistemologia estética,
traduzida pela seguinte declaração: as esferas da teoria ou da ética têm como
característica intrínseca a obrigatoriedade de transcender o vivido, enquanto que a
atividade estética não abandona, em momento algum, o plano da realidade vivida.
Partindo dessa premissa, Lukács afirma a primazia do objeto em relação ao sujeito no
plano do conhecimento teórico; a primazia do sujeito em relação ao objeto no campo da
ética; e, na esfera estética, afirma que sua particularidade assenta-se na relação sujeito-
objeto idêntico, no sentido autêntico do termo5. A partir dessa particularidade da esfera
estética, o autor afirma que o nascimento da arte foi possível devido a uma aspiração
subjetiva a uma realidade conforme os vividos e de acordo com as demandas da
subjetividade humana. Esses vividos, assim, se amplificam até constituírem um
universo autônomo, nos encaminhando para a seguinte afirmação de Tertulian:
Estamos, aqui, nos antípodas tanto do sujeito “construído” da consciência
teórica como do sujeito “postulando” a consciência ética. A teoria, tanto
quanto a ética, implica consubstancialmente transcender o vivido como
vivido: a impessoalidade dos teoremas da ciência ou da filosofia e os
5Apesar das distinções particulares entre os planos de realização da arte, da teoria ou da ética, há uma
ideia comum inerente a estes, a noção lukacsiana de que a realização de qualquer atividade normativa
implica uma violência no vivido prático, que consiste em abandonar o mundo natural da existência - a
realidade da experiência vivida -, de modo a se transportar para um plano caracterizado por uma forma
de vida não natural.
99
postulados da consciência moral (o jovem Lukács seguia as coordenadas da
ética de Kant) ocasionam, por sua normatividade, a neutralização dos móveis
e das evanescentes vibrações da afetividade (TERTULIAN, 2008, p. 136).
Essa distinção corrobora para a criação de um espaço adequado à autonomia
da esfera estética, em que “(...) se garante uma forma singular do espírito - em que o
valor se realiza na imanência do fluxo dos vividos, mas sem transcendê-los -, isto é, a
arte (...)” (TERTULIAN, 2008, p. 126). Em outras palavras, pode-se afirmar que a
fenomenologia da criação artística se constitui por meio de um processo de
ultrapassagem do plano da realidade da experiência vivida em direção à realização do
vivido como vivido. Neste dar-se, os vividos são purificados, homogeneizados e
harmonizados, distanciando-se do caos, da heterogeneidade e da dispersão inerentes ao
plano da vida prática, ou seja, da realidade da experiência vivida. Nesse sentido,
Tertulian afirma que, na estética lukacsiana, “(...) a plenitude completa da alma humana
conhece, graças à arte, uma verdadeira eclosão e uma realização ideal” (TERTULIAN,
2018, p. 137). A declaração precedente é justificada pela adequação formal da
experiência a ela própria, processo que se realiza, segundo Lukács, devido à exigência
do sujeito “(...) de se colocar diante, por meio de uma atitude receptiva, de um objeto
cujas formas constitutivas são idênticas às da organização interna da Erleben e aos seus
postulados de uma realização plena da experiência” (LUKÁCS, 1974, p.58, tradução
nossa).
A partir desse conjunto de noções, pode-se garantir que a estética do jovem
Lukács postula como uma de suas marcas mais potentes o desejo humano de se produzir
um objeto - a obra de arte - de acordo com as demandas da sua própria experiência. Essa
marca distinguirá a esfera estética do campo da metafísica, em que o acento recai,
justamente, na tensão nostálgica da identidade substancial sujeito-objeto:
A transcendência do real não se manifesta, aqui [estética], na distância
material-ser, que separa o sujeito do objeto, mas na inadequação formal de
cada objeto - e, consequentemente, também, de todo comportamento do
sujeito - em relação às necessidades e exigências da realização plena da
Erleben (...) Portanto, a fenomenologia estética, ao contrário da metafísica,
não se encontra em uma relação híbrida, paradoxal-indissolúvel com a esfera objetiva do objeto posto, isto é, com a esfera da obra, mas a exige como
conclusão e realização necessárias (LUKÁCS, 1974, p.58, tradução nossa).
100
Avançando no raciocínio de Lukács, um dos aspectos característicos da
experiência metafísica é o fato de que o essencial reside no objeto e não na Erleben
(vivência). Em contrapartida, a experiência estética acentua a categoria da vivência
como o momento de grande importância. Vejamos as considerações de Lukács acerca
da questão:
Mas enquanto a experiência heterônoma da metafísica nunca pode ser
separada do objeto de sua intenção sem deformá-lo em sua estrutura
particular, exatamente pelo fato que o essencial está no objeto e não em sua
Erleben, a experiência autônoma da estética impõe, contrariamente, essa
separação. Porque, aqui, o objeto, ao ser colocado como significado
objetivado da experiência, é confrontado com o ser que realiza a Erleben
(vivência), com o homem inteiro da realidade da experiência, não como ser superior, mais autêntico ou substancial, cuja existência pode ser
ardentemente desejada pelo sujeito; mas como um pedido, um deve-ser
(LUKÁCS, 1974, p.59-60, tradução nossa).
Frente a esse conjunto de ideias, o artista, por conseguinte, é entendido
como aquele que cumpre a exigência de estilização da subjetividade, dando forma ao
material determinado que compõe certa obra de arte. Neste dar-se, forma e conteúdo
tornam-se elementos inseparáveis, realizando, assim, a superação entre valor e
realização de valor, impossibilitando, segundo Lukács, um movimento transcendente:
“(...) a forma constitutiva da configuração única do significado não pode mais ser a
realização de um valor transcendente, mas sim o próprio valor, pois para cada esfera de
avaliação a qualidade do valor significa a aparência pura da forma” (LUKÁCS, 1974,
p.69, tradução nossa). Para o filósofo, essa coincidência entre valor e realização de valor
na ideia de forma estética é determinante para a estrutura da relação estabelecida entre
sujeito e configuração de significado no campo da arte. Nesse sentido, Lukács
compreende que a configuração de significado é o próprio valor, o que repercute na
ideia de que o sujeito estético está diante do valor absoluto sem necessidade alguma de
mediações, levando o autor a afirmar que:
[...] a distância entre o sujeito e a configuração de significado resulta, de um
lado, extremamente áspera e insuperável; de outro, essa mesma relação se
configura mais íntima e direcionada do que em outros lugares, porque, aqui, a
configuração de significado, identificada ao valor, se apresenta revivível e
homogênea diante do sujeito (LUKÁCS, 1974, p. 69, tradução nossa).
101
Quando a obra de arte é realizada, a esfera estética é posta diante de um
paradoxo interessante, pois, enquanto concretizado, o objeto estético assume
independência do sujeito criador, entretanto, ao mesmo tempo, deve conservar em si a
experiência material da vivência daquele que trouxe os conteúdos objetivos para a
configuração formal do universo da obra; o que nos conduz para a seguinte afirmação:
“(...) embora seja criada, a obra mantém, no entanto, a primazia absoluta em relação ao
seu criador, ou seja, o criador é subordinado à obra e não vice-versa” (LUKÁCS, 1974,
p. 71, tradução nossa). Que o artista seja a condição de realização do objeto estético
não é fator negado por Lukács, muito pelo contrário, ele afirma essa premissa,
entretanto, a esfera estética exige, no momento da realização da obra da arte, um
processo de estilização da subjetividade:
[...] em que a intencionalidade da experiência é transferida do ser para o significado; se trata, portanto, de um processo guiado pela necessidade de se
adquirir uma experiência autônoma com um objeto adequado e de se atingir o
objetivo, ou seja, o sujeito estilizado da estética, o homem inteiramente
empenhado sub specie da experiência revivida (LUKÁCS, 1974, p. 66,
tradução nossa).
Quando a experiência do artista é transposta para o objeto artístico, esse
sujeito estilizado acaba, inevitavelmente, produzindo o isolamento da obra de arte.
Lukács sintetiza, na passagem seguinte, essa questão:
No momento em que o sujeito estilizado da estética surge na fenomenologia,
no momento em que a sua aparição marca o distanciamento da experiência
como ser e a transformação em sentido da experiência, preservando a sua
riqueza imediata, é satisfeita a condição da possibilidade da obra: o nível de
experiência do sujeito estilizado apagou o conteúdo estranho ao significado,
transformou em forma pura o que é inerente ao conteúdo em si, hic et nunc
do ato de experiência (LUKÁCS, 1974, p. 73, tradução nossa).
O processo descrito por Lukács enfatiza que a plena realização do objeto
estético só é possível mediante uma transposição da vivência do artista para a obra,
configurando um cenário em que a vivência perde o seu caráter de referimento ao ser,
condicionando a realização da obra de arte à uma configuração formal destacada do
próprio sujeito que a criou: “O sujeito fenomenológico se encontra, portanto, separado
do objeto para o qual a sua intenção o conduziu, do abismo absoluto, do salto. É o
abismo entre ser e significado” (LUKÁCS, 1974, p. 73, tradução nossa). Essa ideia vem
102
desenvolvida ao longo da primeira centena de páginas da “Estética de Heidelberg”, e
nos leva a concluir que, apesar de ser produzida por um artista e recebida por um
fruidor, a obra de arte assume uma existência independente dos agentes que a
produziram ou que a fruíram, isto é, ao ser realizada, ela passa a existir autonomamente
no mundo, portando em si o valor e realizando-o. Nesse sentido, afirma Lukács que:
[...] a obra de arte traz consigo, de forma imanente, a sua própria qualidade
de valor, é, ao mesmo tempo, o valor e a realização do valor, e a sua
individualidade, a sua singularidade, não podem depender do puro e simples
relacionamento com o valor, mas devem ser o próprio valor transformado em
forma (LUKÁCS, 1974, p.89).
No processo de recepção da obra, o fruidor vê eliminada a interação com o
sujeito que a criou, de modo que contempla o objeto em si realizado e não aquele sujeito
que transpôs a sua experiência para a obra. Nesse sentido, é correto afirmar que o
fruidor experiencia o significado da vivência do autor da obra, contudo, este significado
já está objetivado na obra de arte realizada. Para que o momento da recepção ocorra, é
necessária uma disponibilidade ilimitada do receptor face ao objeto estético, movida não
por qualquer estímulo que venha da obra, mas por um movimento espontâneo do
receptor direcionado ao objeto estético, processo que, para Lukács, é uma das condições
da validade da esfera estética.
A fundamentação da autonomia da esfera estética e algumas pontuações que
realizamos no intuito de delimitar o que é a obra de arte, nos levam para um importante
ponto da teoria estética lukacsiana: a relação sujeito-objeto. Este é o assunto sobre o
qual nos concentraremos na próxima sessão.
1.14. “Estética de Heidelberg”: A relação sujeito-objeto
Como observamos anteriormente, a “Estética de Heidelberg” foi organizada
em dois grandes eixos. O primeiro deles primeira foi desdobrado em duas seções: “A
essência da posição estética” e “A relação sujeito-objeto na estética”. Até o presente
momento, nos ocupamos da primeira seção, trataremos, por conseguinte, da segunda, na
103
qual Lukács descreve a relação sujeito-objeto no âmbito da estética. É importante
observarmos que a primeira parte da “Estética de Heidelberg” tem como eixo temático a
fundação de um complexo categorial autônomo para a esfera estética, empreendido a
partir da construção de uma série de conceitos e de ideias, em que a particular relação
sujeito-objeto marcará, também, a distinção entre os campos da estética, da ética e da
metafísica.
A sessão intitulada “A relação sujeito-objeto na estética”, diferentemente da
integralidade da “Estética de Heidelberg”, pode ser lida pelos estudiosos de Lukács
muito antes da publicação da “Estética de Heidelberg”, que se deu em 1974, pois fora
integralmente publicada na Revista Logos, na edição de 1917-1918, momento da
redação da obra. Este fato nos levou a afirmar a importância do texto para o autor no
que tange aos seus debates sobre estética, bem como nos conduziu à percepção de que
tal estudo se apresenta como uma unidade coesa e conclusiva, de forma que suas ideias
serão revisitadas na “Estética” de maturidade.
Em discussões anteriores, apresentamos a fenomenologia dos
comportamentos do receptor (fruidor) e do criador (autor) em relação à obra de arte, em
que o termo fenomenologia, como afirmado por Lukács, deve ser compreendido como o
percurso que o sujeito natural e da vivência empreende rumo à sua transformação em
sujeito estético, seja ele receptivo ou criador.
O significado mais profundo do caminho fenomenológico em que a atividade
estimulante - obscuramente subjetiva - da realidade da experiência imediata
se transforma em sujeito normativo-estético do criador e, respectivamente, do
fruidor, é: preencher e tornar clara a insuperabilidade do abismo que separa
este sujeito do objeto a ele subordinado (LUKÁCS, 1974, p. 105, tradução
nossa).
Essa concepção fenomenológica torna Lukács muito mais próximo das
ideias hegelianas do que daquelas contidas na fenomenologia de Husserl, o que
corrobora a afirmação de que o autor sistematizou suas leituras de Hegel no intervalo da
redação de suas estéticas de juventude.
Ao início de “A relação sujeito-objeto na estética”, Lukács afirma que o
comportamento estético normativo é uma vivência (experiência) pura, não apenas em
relação ao comportamento do fruidor, mas ao do artista. Nesse sentido, o sujeito estético
104
é aquele que se encontra diante de um objeto singular (obra de arte), fechado em si
mesmo, autossuficiente e isolado, e se caracteriza por ser um sujeito puramente
vivencial em seu sentido imediato, o que conduz Lukács à afirmação de que essa dada
configuração não é possível no plano da realidade vivida (Erlebniswirklichkeit), senão
no espaço particular da esfera estética. Dito de outro modo, entende-se que a obra de
arte exige do artista ou do fruidor um tipo de reconhecimento específico, a vivência
pura. Ressalta-se, assim, o acento dado a essa categoria: “(...), a vivência é um
comportamento normativo em si: nele, a norma é satisfeita e a sua validade
especificamente estética é expressa” (LUKÁCS, 1974, p. 115, tradução nossa).
Interrompemos, rapidamente, o fluxo desse raciocínio para enfatizar que
Lukács diverge de Kant ao afirmar que é o objeto estético que exige do sujeito
estilizado uma vivência pura, de modo que a tônica recai, aqui, sobre o objeto artístico,
no sentido de ser este que porta as condições para que o sujeito usufrua da experiência
estética. A relação sujeito-objeto se constrói de modo que o sujeito estético - seja na
recepção ou na criação do objeto artístico - se veja direcionado a um mundo
harmonizado e de acordo com as demandas da sua vivência, mundo este que, na obra de
arte, é apresentado para o indivíduo como válido, no intuito de que este mesmo sujeito
realize em si tal validade. Para tal, o artista ou o fruidor têm de interiorizar com ampla
intensidade os conteúdos que lhe foram apresentados pelo objeto estético bem como
deve afastar de sua experiência vivencial aqueles conteúdos que não se adéquam as suas
demandas existenciais. Por essa razão, Lukács afirma que:
[...] a ênfase colocada no dever-ser do valor está situada na pureza da
experiência como tal (porque o valor não transcende a experiência revivida)
e, consequentemente, no caráter genuinamente subjetivo do sujeito da
experiência a nível normativo (LUKÁCS, 1974, página 116, tradução nossa).
A experiência estética permite, a partir da relação sujeito-objeto, uma
transformação do sujeito natural em sujeito estilizado, tal como já salientamos em
momentos anteriores. Este aspecto demarca uma característica particular da esfera
estética em detrimento dos campos da lógica e da ética, pois permite a configuração de
um sujeito que se torna uma: “(...) unidade viva e compreensiva do sentido mais amplo
da humanidade, de todas as experiências em sua riqueza de conteúdo” (LUKÁCS, 1974,
p. 116, tradução nossa). A este homem predica-se o termo homem inteiramente
105
(Mensch ganz) em contraposição à noção de homem inteiro (ganzen Menschen), a qual
equivale à ideia de sujeito da realidade da experiência vivida. Lukács afirma que o
homem inteiramente (Mensch ganz):
[...] representa, portanto, uma redução das possibilidades da experiência das
quais o homem dispõe, aos órgãos internos da percepção do mundo, aos
órgãos bem precisos, que se tornaram homogêneos nessa sua função precisa
(obviamente não se trata nem de um órgão sensorial nem de um patrimônio
espiritual); e é graças a essa redução que se pode começar a viver um mundo
construído em referência a esses órgãos, um mundo estruturado,
internamente, como totalidade. O homem assim compreendido é, portanto,
um sujeito, um indivíduo, uma personalidade, um homem no sentido mais
próprio do termo: porque nada aflora em seu ser-sujeito que possa ser de
algum modo transcendente, graças ao seu patrimônio de experiências;
contrariamente, em relação a qualquer objetividade que se lhe ofereça, a
única, absoluta categoria constitutiva para a pura revivibilidade (LUKÁCS,
1974, página 117, tradução nossa).
É a plena realização desse sujeito uma das propostas do campo estético,
realização esta que compreende uma redução possibilitadora da veiculação da
totalidade. É esse estreitamento da subjetividade o elemento responsável pela realização
do microcosmo e da totalidade intensiva que é a obra de arte:
[...] nele, tudo o que é possível se move a partir de seus próprios princípios
constitutivos, amadurecendo até se tornar realidade e porque as categorias:
possível, real e necessário perdem o significado associado à sua própria
diferenciação, tornando-se uma identidade (LUKÁCS, 1974, p. 117, tradução
nossa).
Façamos um parêntese para evidenciar o acento colocado por Lukács no
objeto estético, ou seja, na materialidade objetiva da esfera estética. A relação sujeito-
objeto, neste campo, pressupõe, como já dissemos em momentos anteriores, um
comportamento do sujeito direcionado ao objeto, que deve estar de acordo com o
princípio do estreitamento da subjetividade (redução homogênea). Tomado em si, este
comportamento não possui a potência de realizar o estado da nostalgia de contemplação
de um objeto adequado às demandas da subjetividade, pois essa realização só é possível
na relação com o objeto - seja dando forma a ele ou a ele se contrapondo (contemplação
pura). Se é por meio da redução da subjetividade que nasce a possibilidade da vivência
de um objeto adequado, é essa mesma redução que cria condições para que tal objeto
não seja um produto de categorias subjetivo-reflexivas, as quais podem ser imputadas
106
ao objeto casualmente. Vejamos que Lukács persegue um sistema estético com ênfase
na materialidade da obra de arte, se afastando, gradualmente, da “estética” kantiana, a
qual atribui ao juízo, ou seja, ao momento subjetivo, o caráter fundador da estética e das
categorias que a constituem.
Apesar das divergências em relação às ideias kantianas, Lukács ressalta o
ato do desinteresse (Kant) como um dos fatores decisivos para o entendimento e para a
descrição daquilo que seria o objeto estético. Tal ato é descrito como a intenção do
sujeito vivencial (da experiência) em vias de aproximação a um objeto adequado à pura
vivência. Tem-se, portanto, um objeto isolado, fora de qualquer contexto imaginável.
Nessa relação sujeito-objeto, a imanência da vivência pura é conservada e, assim, o
objeto não pode ser transcendido pelo sujeito, de modo que não é possível ir além desse
objeto isolado.
Concebe-se o objeto, portanto, como o único existente, etapa que inaugura a
validação da esfera estética como campo autônomo. Se, no campo teórico, a autonomia
do objeto é relativa - o que denota que os objetos são pensados em conexão e os
representamos em contexto e em simultaneidade uns com os outros, de modo que só
podemos conhecê-los efetivamente no interior de um sistema que contemple todos os
saberes possíveis -; na esfera estética, diferentemente, as obras de arte só podem se
realizar esteticamente como objetos isolados e como produtos de uma vivência pura,
que traz como premissa a redução homogênea, ou seja, o comportamento unidirecional
do sujeito a um único objeto. A partir dessa redução, aniquila-se a estrutura objetiva da
realidade natural, o que, consequentemente, faz a autonomia da obra de arte ser
inaugurada de modo negativo, ou seja, descolada da realidade. Todavia, afirma Lukács,
que mais importante do que este aspecto é a estrutura interna que o objeto artístico
extrai de modo positivo deste cenário, uma estrutura caracterizada pela construção de
uma totalidade imanente, de um microcosmo, ou, como já dissemos em momentos
anteriores, monadológica. Nesse movimento, a fenomenologia da criação artística vem
desenhada como um processo de interação entre sujeito - criador ou receptor - e objeto.
Vejamos de que forma Lukács descreve esse processo:
[...] uma atividade caracterizada pela tendência a produzir um mundo
objetivo, atribuído subjetivamente-metasubjetivamente pela contemplação (a
visão), uma totalidade existente fora de si mesma, real, e concluída em si
107
mesma. A orientação desse ato sempre se move em direção a um objeto
perfeitamente isolado. O sujeito da criação, precisamente no sentido
metapsicológico, está sempre e, somente, em conformidade com o
significado de sua intenção, o criador de uma obra, a qual, para ele, extrai o
caráter de obra do fato de que, na visão, ela se oferece a ele como um mundo
que se tornou autônomo de relações formais, concentrando em si realizações
já efetuadas da experiência, e cuja validade objetiva como obra - o
significado do trabalho criativo - encontra o critério decisivo nessa autonomia
(LUKÁCS, 1974, p.127, tradução nossa).
Para Lukács, a objetividade do objeto estético é absoluta, ou seja, na esfera
estética, a objetividade da obra de arte é fundada sobre o próprio objeto. Tal afirmação
decorre da constatação de que a obra de arte é construída a partir dos conteúdos
presentes no plano da vivencialidade. Selecionados e ordenados pelo sujeito criador,
este material se torna um mundo autossuficiente e fechado em si. A forma da obra de
arte jamais destrói ou elimina os conteúdos próprios desse mundo, ao contrário,
identifica neles a possibilidade de construção de um microcosmo, que passa a ter uma
vida autônoma, realizando, assim, o que Lukács identificou como a objetividade
absoluta do objeto estético.
Resgatando o conceito de harmonia praestabilita, responsável por
harmonizar a forma da técnica artística e a forma da vivência, o autor ressalta uma
relativização oscilante entre os princípios da objetividade e da subjetividade no processo
da fenomenologia da criação das obras de arte. O gênio, sujeito responsável pela criação
do objeto artístico, possui a capacidade inata de realização de um processo de
harmonização da técnica e da visão, alternando, de acordo com sua vontade, os
princípios objetivos e subjetivos, de modo que estes alcancem um dado equilíbrio e que
se identifiquem. Esse processo de relativização é o responsável pela concretização da
essência da obra de arte como realidade utópica, ou seja, produz-se um objeto estético
cuja essência - como realização da vivência pura - caracteriza-se pela identidade de
subjetividade e objetividade. Entretanto, este processo de criação do objeto estético é,
para Lukács, infinito e irrealizável, no sentido de que o artista acaba, portanto,
renunciando ao trabalho, ao passo que, objetivamente, realiza a obra de arte autônoma:
“A obra que leva à identificação entre subjetividade e objetividade” (LUKÁCS, 1971,
p.136, tradução nossa).
108
Uma das particularidades da fenomenologia da criação artística consiste,
justamente, no caráter de realidade utópica como essência da obra de arte. Façamos,
assim, uma observação sobre o que seria este caráter utópico postulado por Lukács. A
obra de arte realizada porta em si um mundo autônomo, construído por meio do
princípio da harmonia praestabilita entre técnica e visão, aspecto inerente ao gênio.
Soma-se a isso, a ideia do processo de criação artística concebido como um desejo
constante do homem de cancelar qualquer objetividade que lhe é estranha no objeto
criado. Dessa forma, de acordo com Lukács, a obra realizada se converte em
objetividade perfeitamente dissociada do sujeito, o que configura, portanto, o seu caráter
autônomo. O entendimento da realidade utópica que se impõe na realização da obra de
arte consiste, essencialmente, na configuração de uma realidade estética que tem uma
existência permeada pelo sujeito e que, de forma muito limitada, abarca aquilo que é
estranho ao artista que a produziu. À realização da obra de arte, concebe-se, por fim, um
objeto independente do indivíduo que a criou, o que configura, em certa medida, a
própria superação da atividade artística. Nas palavras de Lukács:
A obra é, em suma, uma produtividade que se tornou imperiosamente pura,
voltada de tal forma ao interior que a atividade deixa de ser uma criação de conteúdos - de necessidades relativamente estranhas ao sujeito -, de ser
atividade de algo para ser um eterno criar no qual a energia produtiva e o que
é produzido coincidem no sujeito e no objeto, alcançando uma identidade
completa, a indiferença absoluta (LUKÁCS, 1971, p. 138, tradução nossa).
Essa realização perfeita da unidade sujeito-objeto possibilita uma
aproximação entre os campos da estética e da metafísica, levando alguns pensadores a
afirmar que a arte seria um “órgão” da metafísica.
1.15. “Estética de Heidelberg”: A Forma Estética e as suas
especificidades
Ao falar sobre a forma na esfera estética, Lukács retoma a ideia kantiana de
que esta apresenta a característica peculiar de tornar o nosso sentimento comunicável
universalmente, a partir de uma dada representação, sem a necessidade de recorrer à
mediação de um conceito. A partir dessa afirmação, o autor enfatiza que a forma
109
artística se caracteriza por ser a forma da própria vivência. À medida que se torna
universal como forma, ela passa a se relacionar com os fundamentos gerais da
vivencialidade, encerrando os conteúdos vivenciais que carrega e tornando-os
vivenciáveis para quem cria ou para quem frui a obra de arte. Sendo assim, a
vivencialidade é dada nessa esfera como forma e conteúdo, no sentido de que:
[...]; a forma estética torna universalmente revivível um conteúdo concreto da
experiência e, em sua concretude, determinado. A realização dessa forma
naquele que a percebe é, portanto, o seu ser revivido, ou melhor, o seu ser
revivido conteudístico; não a compreensão de como este complexo formal é
capaz de unificar esses conteúdos da experiência em um todo completo e
autossuficiente, mas o imediato reviver do todo como uma entidade real,
particular, concreta e que existe por conta própria: a revivibilidade
conteudisticamente realizada de um determinado conteúdo (LUKÁCS, 1974,
p.146, tradução nossa).
Afirma Lukács que a qualidade específica dos conteúdos da vivência é
sempre diversa. Sendo assim, é recolocado o problema da universalidade presente na
ideia kantiana, sobre o qual já tratamos. Retomemos o raciocínio: se o conteúdo da
vivência, na esfera estética, é sempre diverso e se Kant afirma que a forma artística tem
como característica tornar o nosso sentimento comunicável universalmente a partir de
uma dada representação, sem a necessidade de recorrer à mediação de um conceito;
questiona-se: de que modo, portanto, pode-se alcançar a universalidade no campo da
arte? A resposta é dada a partir da constatação de que a universalidade é, na verdade,
subjetiva, visto que está ligada às condições mais gerais do comportamento dos sujeitos.
Estes não são comparáveis ou identificáveis entre si, salvo a sua condição puramente
formal da intenção à realização da vivência pura, elemento que se configura como
conteúdo universal dentre o comportamento dos indivíduos:
Lukács queria demonstrar que a universalidade do objeto estético não se apoiava, de modo algum, na reprodução de tais propriedades, universalmente
válidas, do objeto em si, mas em uma conformidade do objeto com as
aspirações da subjetividade como subjetividade. Suas formulações não
deixam lugar para o equívoco: o objeto em si (a realidade objetiva)
desempenha na arte apenas o papel de um desencadeador ou de um
canalizador das pulsões e do movimento da subjetividade [...] (TERULIAN,
2008, p. 144).
Ressalta-se que a objetividade presente nos objetos dos comportamentos dos
sujeitos recai, justamente, sobre o conteúdo vivencial divergente, o qual não é capaz de
declarar nada acerca do objeto, corroborando à pertinência da ideia da “comunicação
110
sem conceito” kantiana. Lukács definirá a objetividade do objeto como a relação que
este estabelece com o sujeito no momento em que ele se coloca diante da obra de arte.
Tal relação pressupõe um processo de homogeneização deste sujeito em sua
subjetividade, etapa que possibilita a realização da vivência pura em sua forma mais
intensa, permitindo ao indivíduo vivenciar a obra de arte como realidade utópica:
[...]: na vivência revivida do plano estético, como exigido pela norma, cada
um desses conteúdos incomparáveis é revivido como o único possível, como
simplesmente idênticos à norma, precisamente porque é capaz de alcançar tal
feito, podemos descrever a obra como um esquema de realizações do que
pode ser revivido em absoluto (LUKÁCS, 1974, p.148, tradução nossa).
A forma da obra de arte, de acordo com Lukács, é designada pela identidade
perfeita de forma e conteúdo, de modo que se pretende alcançar, por meio da forma
estética, a anulação de qualquer contraposição suscitada entre forma e conteúdo. Ao
artista, atribui-se, justamente, essa tarefa de transformação dos conteúdos da vivência
em forma, buscando como meta a identidade perfeita entre estes. Nesse sentido, Lukács
entende o conceito de forma como forma ativa - forma formans -, no sentido de que ela
opera na direção artista-obra de arte. Em direção oposta - do objeto para o sujeito -
opera a forma formata, compreendida como uma realidade posta diante do sujeito
receptor, concebida como microcosmo, que demanda do ser um reconhecimento
vivencial. Nesse sentido, a qualidade de forma se coloca, portanto, como uma realidade
dada, perfeita e independente daquele que a frui. É este processo, para Lukács, que gera
a possibilidade de inserção dos conteúdos da vivência subjetiva na estrutura da
identidade total de forma e conteúdo própria do objeto artístico, bem como é essa
inserção que condiciona, na esfera estética, a relativa independência da forma e do
conteúdo:
Uma vez que essa relação é uma experiência pura e normativa, seu conteúdo
deve compreender em si a qualidade específica da experiência do sujeito e a
independência da forma em relação ao conteúdo, o que significa a
possibilidade de compreender em si, sem contradição alguma, qualquer
qualidade de vivência análoga [...](LUKÁCS, 1974, p. 148, tradução nossa).
Pensada a questão da forma formatta e da forma formans e de seus
respectivos sujeitos - criador e receptor -, Lukács será categórico em afirmar que a obra
de arte não é idêntica para os sujeitos da fenomenologia criativa e receptiva, ainda que
111
ambos possam apresentar uma psicologia muito semelhante. Depreende-se desse
aspecto a estrutura heraclítica da esfera estética, Se, para Heráclito, um sujeito não pode
se banhar no mesmo rio duas vezes, na esfera estética, essa afirmação encontra
correspondência na ideia de que os sujeitos vivenciam aspectos particulares de sua
subjetividade nas obras, o que corresponde à noção de que a experiência estética, seja
ela receptiva ou voltada à criação, nunca ocorre de forma idêntica. Essa marca, de
acordo com Lukács, não é um limite metafísico imputado pelo exterior, mas é a
particularidade positiva e a delimitação teórica da própria esfera estética.
Findamos, assim, a exposição de um conjunto de conceitos e de noções
intrínsecos à estética de juventude lukacsiana que fundamentam a afirmação de Lukács
de que a obra de arte é a realização de uma realidade utópica. Nesse sentido, traçamos
um histórico dessa categoria no intuito de mostrarmos como ela se mostra presente na
constituição da obra de arte, identificando, por exemplo, que a realização do objeto
estético configura uma totalidade autônoma, um microcosmo, cujos conteúdos que o
compõem se harmonizam e se homogeneízam, a partir de um ponto de vista,
configurando, portanto, uma realidade utópica. Tal realidade só pode ser plasmada a
partir do princípio da forma, que, na estética lukacsiana, ganha o status de forma-utopia,
de modo que a utopia se torna o pressuposto da forma e a possibilidade da realização da
obra de arte. Conseguimos identificar, ainda, que o momento da fruição do objeto
estético compreende um momento utópico, pois o receptor consegue reviver nos
conteúdos da obra de arte um momento não estranhado, pois reconhece um objeto de
acordo com suas demandas existenciais, cuja identidade sujeito-objeto pode se realizar
de modo aparente, o que predica à obra de arte certo caráter de consolo transcendental.
Como já mencionado em momentos anteriores, os fundamentos filosóficos
da estética de juventude estão subsumidos à noção de vivência e de intuição,
instrumentos que mediam a relação entre sujeito e mundo, sujeito e conhecimento. Essa
maneira de entender o mundo e as relações nele tecidas ressalta a ausência da noção de
prática na estética de juventude de Lukács. Soma-se a isso, uma relação entre obra de
arte e vida que carrega a marca da incomunicabilidade, do solipsismo, configurando,
por conseguinte, uma relação sujeito-objeto cuja figura do abismo como pressuposto
constitutivo dessa mesma relação acaba por revelar o seu caráter problemático. A arte,
112
portanto, cumpre a função de consolo transcendental, pois abre a possibilidade de uma
relação sujeito-objeto em que aquele pode, no momento da experiência estética, reviver,
nos conteúdos dispostos na obra, as suas próprias vivências, de modo que esses
conteúdos, homogeneizados e harmonizados pelo caráter utópico da forma, possibilitam
uma relação sujeito-objeto idêntica. Se esta recebe o status de problemática, o é,
essencialmente, por oferecer ao sujeito um vislumbre do princípio da comunicabilidade
e, não, a sua realização efetiva no mundo material. Sendo assim, é vedada a
possibilidade de comunicação entre singular e universal, pois, para o jovem Lukács, a
vida objetiva, material, sensível e terrena é apresentada como heterogênea e caótica, isto
é, absolutamente desprovida de sentido, o qual, por sua vez, existe, somente, no interior
da subjetividade, já que a forma do mundo é dada pela vivência. A vivência individual
não compreende um sentido objetivo, pois uma possível realização do sujeito no mundo
não ocorre. Desta feita, pode-se afirmar que a vivência não oferece conhecimento sobre
o mundo, ela é, somente, o material, para, a partir do poder totalizante da forma,
homogeneizar os elementos dispersos do mundo, inflando-os de sentido. Como a
realização subjetiva dos sujeitos no mundo é impossível, ela se realiza, portanto, na
obra de arte como utopia, na forma da identidade utópica de sujeito e objeto.
Depreende-se desse conjunto de ideias a compreensão lukacsiana que
aponta para a impossibilidade da representação formal da realidade, pois esta é pura
empiria, é um conjunto caótico e desordenado de singulares esvaziados de sentido. Esse
dado escancara a impossibilidade de um fluxo metabólico entre o mundo objetivo e a
realização subjetiva do homem no plano da vida cotidiana, de forma que arte e vida se
mantêm muito distantes. Essa noção, talvez, seja a pedra de toque no que tange à
mudança de perspectiva teórica lukacsiana em seus escritos estéticos, pois a
representação formal do mundo e da vida cotidiana ocupará um lugar central na estética
de maturidade do autor, de forma que a aproximação entre arte e vida será marca
indelével da “Estética” (1963). No capítulo seguinte, o nosso esforço consiste na
exposição de ideias e conceitos centrais da estética de maturidade, especialmente, nos
pontos que dialogam com a temática da utopia.
113
CAPÍTULO 2
“A Estética (1963) de maturidade”
“Por suas atividades teleológicas, o
homem interrompe as séries causais
objetivamente determinadas; introduz no
determinismo natural uma ordem nova; submete o movimento da matéria a suas
intenções; mas, para materializar
realmente suas intenções, deve sempre
apoiar-se no conhecimento adequado dos
objetos que entram em seu campo de
ação” (TERTULIAN, 2008, p.198)
2.1. Os fundamentos da estética marxista
Nesta seção, o nosso esforço volta-se para o entendimento dos fundamentos
teóricos que permearam a construção do projeto estético lukacsiano de maturidade. Se a
sua estética de juventude fora marcada pela influência de Kant, Hegel e dos autores da
filosofia da vida, resultando em um distanciamento dos planos da vida cotidiana e da
arte; o seu projeto estético de maturidade romperá definitivamente com a noção da
incomunicabilidade e do abismo que caracterizavam a relação sujeito e objeto e que
resultavam na ideia de solipsismo. O velho Lukács afiançará a ideia da possibilidade
formal de representação da vida cotidiana pela obra de arte, resultando na superação do
distanciamento dos planos da vida e da arte. Por sua vez, a ideia da identidade utópica
de sujeito e objeto e da utopia como pressuposto da forma assumirá outra configuração
neste novo projeto estético lukacsiano, de modo que esse conjunto de problemas será
apresentado de forma bastante dissolvida nas cerca de 1700 páginas da obra. Na
tentativa de entender o lugar da utopia na “Estética” (1963), percorremos suas páginas e
concentramos o nosso estudo, essencialmente, no segundo volume da obra, em que o
autor discute temas voltados à mimese artística, como a origem do reflexo estético, a
ideia de cismundaneidade, a definição do mundo próprio das obras de arte, a criação
artística e a relação entre objetividade e subjetividade na esfera estética, a noção de
meio homogêneo, os efeitos oriundos do processo de criação e de recepção das obras de
114
arte, a missão desfetichizadora da arte, a relação sujeito-objeto na estética e, por fim, a
noção de catarsis e a experiência receptiva. Tais temas, compreendidos em conjunto,
possibilitam o entendimento do lugar da utopia na estética de maturidade. Sendo assim,
remontaremos, neste segundo capítulo, as ideias lukacsianas sobre os pontos
mencionados, para que possamos, enfim, discutir a ideia de utopia neste novo projeto
estético. Iniciaremos essa empreitada descrevendo os fundamentos teóricos que deram
suporte para este projeto, no intuito de demarcar as escolhas teóricas do autor.
Durante os seus últimos 15 anos de vida, o velho Lukács se concentrou na
redação da “Estética” (1963) e de “A ontologia do ser social”, cuja conclusão data,
aproximadamente, de 1968. Ambos os textos são considerados grandes obras de síntese
de seu pensamento. Um pouco antes de 1956, o autor começou a trabalhar na redação de
sua estética de maturidade, mas teve de suspender o projeto por causa de
acontecimentos políticos na Hungria. No inverno de 1956, deportado na Romênia,
juntamente com Imre Nagy, de quem fora ministro da educação, e com outros políticos
que protagonizaram o outono húngaro de 1956, o projeto da estética teve que ser
interrompido. Entretanto, em Abril de 1957, ao retornar a Budapeste, Lukács retomou a
redação do texto e, em menos de três anos, redigiu as mais de 1700 páginas da
“Estética”. Sobre a sua publicação, afirmou para Tertulian a incrível dificuldade de
obter uma autorização para o envio do texto ao seu editor alemão; bem como confessou
que a publicação da “Estética” na Alemanha Federal só ocorreria, à época, com a
condição de que deixasse a Hungria.
A dificuldade da publicação dos textos de Lukács no seu país, a Hungria, já
fora citada quando da publicação de sua estética de juventude, o que nos aproxima da
hipótese de que muitos textos lukacsianos foram traduzidos para o italiano e impressos,
primeiramente, na Itália, como é o caso da sua estética de juventude e de “Introdução a
uma estética marxista”, pois os entraves, principalmente voltados às questões políticas
que o mercado editorial apresentava no Hungria, eram muitos e de diversas ordens. À
guisa de curiosidade, o texto “O jovem Hegel”, por exemplo, redigido em 1938, só foi
publicado 10 anos mais tarde em Zurique ou Viena. Essas questões editoriais,
surpreendentemente pouco estudadas, podem elucidar diversos pontos acerca do
processo de recepção do pensamento lukacsiano. Não é objeto desta pesquisa discorrer
115
amplamente sobre tal temática, entretanto, ignorá-la é varrer para debaixo do tapete um
aspecto que poderia render diversos debates bastante frutíferos para a fortuna crítica
lukacsiana. Se não nos cabe, aqui, o estudo detalhado sobre este tema, é nossa
incumbência, portanto, apontar tal questão para futuras pesquisas.
Sobre a recepção da “Estética”, Tertulian afirma que sua publicação, pela
Luchterhand Verlag, em 1963, não provocou: “(...) os grandes ecos que poderiam ser
esperados” (TERTULIAN, 2008, p. 291), o que pode ser igualmente notado até os dias
de hoje quando observarmos a circulação do pensamento estético do autor. No Brasil,
obras como “A Teoria do Romance” ou textos ensaísticos de Lukács, como “Narrar ou
Descrever”, circulam com maior frequência no meio acadêmico do que as estéticas de
maturidade ou de juventude do autor. Um fator que desequilibra essa balança pode ser o
problema da tradução, visto que não existem versões dessas obras em língua
portuguesa. A grande extensão desses projetos é outro ponto que, provavelmente,
contribui para sua circulação ainda incipiente. Ainda sobre a recepção da “Estética”, um
dos primeiros pensadores a se pronunciar publicamente sobre a obra foi George Steiner,
em junho de 1964, que publicou no Times Literary Supplement uma das primeiras
resenhas sobre o pensamento estético de maturidade lukacsiano. Steiner foi categórico
ao assinalar a relevância da obra, bem como apontou algumas objeções. Assim que
obteve conhecimento da resenha deste autor, Lukács lhe endereçou uma carta em que
dizia que as questões suscitadas pela estética de maturidade permaneciam abertas para o
futuro, afirmando a necessidade de um tempo longo de incubação da obra.
Ernst Fischer, (1899-1972) filósofo austríaco e esteta marxista, ao entrar em
contato com a “Estética”, comparou-a ao pensamento de Hegel sobre o tema. Em 1964,
ao perguntar a Lukács sobre o impacto de sua obra, obteve como resposta uma grande
negativa, somada à afirmação lukacsiana que, à época, o que se escrevia na Alemanha
era um aglomerado de tolices. O curioso é que, neste momento, a recepção das obras de
Lukács estava voltada para o elogio de seus textos de juventude, lidos pela intelligentsia
ocidental. Um episódio que concentra esse ponto é a recepção das obras lukacsianas por
Lucien Goldmann, o qual resgata o estudo de alguns textos de juventude do autor, mas
recebe de forma indiferente a “Estética”. A carta de 1º de outubro de 1959, endereçada a
116
Goldman por Lukács e resgatada por Tertulian, dispensa demais comentários sobre a
recepção das obras do autor:
Se eu estivesse morto por volta de 1924, e se minha alma imutável tivesse
olhado vossa atividade literária do além, estaria plena de um verdadeiro
reconhecimento por ocupar-vos tão intensamente com minhas obras de
juventude. Mas, como não estou morto e, durante trinta e quatro anos, criei o
que deve chamar-se de obra de minha vida e como, em suma, para vós, essa
obra não existe de forma alguma, é difícil para mim, como ser vivo, cujos
interesses são dirigidos, evidentemente, para a sua própria atividade presente,
levar em conta vossas considerações (LUKÁCS apud TERTULIAN, 2008, p.
292).
O tom impresso por Lukács resgata a força de suas autocríticas, tai quais as
anexadas, posteriormente, às suas obras de juventude “A Teoria do Romance” e
“História e consciência de classe”. É bastante inteligível a severa crítica que Lukács
dirige aos seus textos de juventude, não somente pela sua adesão a outras correntes
teóricas, mas pelo cenário da recepção de suas obras, que não o agradava. Sobre a
questão, Tertulian afirma que:
Os testemunhos de Lukács sobre suas próprias obras, recolhidos em suas
cartas, mostram que ele se considerava um pensador de uma “época de
transição”, cujo trabalho teórico era inevitavelmente marcado por tentativas e
incertezas (TERTULIAN, 2008, p. 292).
Essa época de transição é compreendida a partir do viés de uma acentuada
crise dos antigos valores, tanto daqueles concernentes ao Ocidente capitalista como
daqueles voltados ao socialismo à Stalin, bem como uma crise de uma insurgência
incerta de novos valores. Motivado por essa causa, Lukács acredita no questionamento
aos artistas sobre o modo que refletem o homem e o mundo. Podemos afirmar que este é
um dos elementos motivadores da redação da “Estética” e de diversos textos do autor, o
que conduz Tertulian a afirmar que a tônica do pensamento estético lukacsiano reside
na: “(...) defesa da integridade humana, partindo de uma imagem muito exigente do que
é a substância humana (...)” (TERTULIAN, 2008, p. 295).
Ao iniciar o seu projeto estético de maturidade, na década de 1950, após a
conclusão de “A destruição da razão”, Lukács pretendia a redação de uma obra que
consistiria, primeiramente, em duas partes. Contudo, os seus planos originais sofreram
modificações, o que o impeliu à redação de um terceiro tomo. Originalmente, a primeira
parte se ocuparia da particularidade do fato estético e, em um segundo momento, o texto
117
se ateria aos problemas do reflexo estético, tomando por objeto a estrutura da obra de
arte e a tipologia filosófica do comportamento estético. Por fim, a terceira parte
discutiria a questão da arte como fenômeno histórico-social. Entretanto, Lukács, já
octogenário, conseguiu finalizar, apenas, a primeira parte do texto, publicado em 1963.
Ao longo de nossa leitura do projeto estético de maturidade de Lukács,
dialogamos com duas reflexões. A primeira delas foi tomada de empréstimo das
reflexões de Nicolas Tertulian, presentes em “Lukács: etapas de seu pensamento
estético” (2008), e de Rainer Patriota, presentes em sua tese de doutorado “A relação
sujeito-objeto na Estética de Georg Lukács: reformulação e desfecho de um projeto
interrompido” (2012). Os textos mencionados discutem a trajetória do pensamento
estético do autor e refletem sobre a hipótese da estética de maturidade retomar e
rediscutir, a partir de um novo referencial teórico, um vasto conjunto de noções oriundo
do projeto estético de Heidelberg. Apesar de 45 anos separarem ambos os textos,
Patriota afirma que as indagações do autor levaram-no “(...) à recapitulação e à
reformulação dos principais núcleos determinativos de seu projeto estético de juventude
(...)” (PATRIOTA, 2010, p. 211), dentre os quais, a reformulação do entendimento da
relação sujeito-objeto, aspecto que distingue, radicalmente, esses projetos estéticos.
Nesse sentido, Tertulian faz a seguinte observação:
Os que conhecem a obra de Lukács sabem realmente a importância enorme
do problema das relações entre subjetividade e objetividade em sua evolução
espiritual. O abandono da concepção de origem hegeliana que visa a
identidade sujeito-objeto ou a coincidência entre os atos de objetivação
(Vergegenständlichung) e de estranhamento (Entfremdung) e a revelação do
fato de que a objetivação é uma condição inelutável da prática social
marcaram a passagem definitiva para o seu pensamento de maturidade
(TERTULIAN, 2008 p.261).
A partir da nossa leitura, percebemos que Lukács rompe radicalmente com
as influências teóricas que marcaram o seu pensamento estético de juventude, de forma
a reformular todo o núcleo categorial de sua estética. Certamente, temas caros à estética
são tratados pelo autor em ambas as obras, tais como a fundamentação da autonomia da
esfera estética, os processos de criação e de fruição artística, dentre diversos outros,
entretanto, tais pontos são abordados por meio de uma perspectiva teórica
absolutamente distinta. Nesse sentido, a concepção de obra de arte é absolutamente
diversa nas estéticas, o que nos motivou a perceber o novo entendimento da noção de
118
utopia e da dimensão do plano utópico na arte nos textos estudados. Para entender a
nova formulação da ideia de utopia, percebemos que tal tema não fora retomado de
forma isolada na estética, mas compreendido em um vasto campo de problematizações.
Com o intuito de investigá-lo, buscamos, primeiramente, entender o novo referencial
teórico adotado por Lukács para a redação da sua estética de maturidade, o que nos fez
dialogar com a tese de doutorado de Ana Cotrim, “Contribuições de Karl Marx ao
problema da mimese artística” (2015), em que a autora propõe uma reflexão acerca da
possibilidade da existência efetiva de uma estética de cunho marxista. Sobre os autores
empenhados nessa tentativa, ela conclui:
Nessa imensa produção - independentemente da importância ou qualidade
das teorias e criações artísticas em seus próprios termos, e desconsiderando a
real proximidade, afastamento e mesmo oposição com relação ao significado
da obra marxiana como um todo - o fato é que se encontram apenas esforços
pontuais por apreender o que Marx concebeu sobre arte e literatura. Nesse
aspecto, constituem exceções significativas os trabalhos do filósofo húngaro
György Lukács e do historiador e filósofo da arte soviético Mikhail Lifschitz
(COTRIM, 2015, p.9).
Para que possamos efetivamente estabelecer um diálogo com as reflexões
supramencionadas, realizaremos, primeiramente, uma breve exposição do contexto de
produção da “Estética” e de sua fundamentação teórica.
Durante seu exílio moscovita, que se alongou da década de 1930 ao
encerramento da Segunda Guerra, Lukács encontrou o jovem pesquisador Mikhail
Lifschitz (1905-83) no Instituto Marx-Engels, onde, em parceria, estudaram e
organizaram os textos de Marx. Foi precisamente nesse momento que os “Manuscritos
econômico-filosóficos”, texto que influenciou substancialmente os textos lukacsianos da
década de 1930, veio a público. Lifschitz, à época, estava empenhado em reunir as
considerações de Marx sobre arte e literatura, o que, de certa maneira, conduziu Lukács
a entrar em contato com o assunto. A leitura dos textos de Marx suscitou no filósofo
húngaro a necessidade de se pensar uma estética elaborada a partir do seu pensamento e
da noção “(...) de que existe na obra marxiana uma concepção estética independente,
coesa e coerente com a totalidade do seu ideário” (COTRIM, 2015, p.10). De fato, o
pensador não sistematizou ou redigiu uma obra voltada apenas às suas ideias sobre arte,
mas há um conjunto de noções acerca da temática encontrado de forma esparsa em suas
obras. Lukács, por sua vez, acreditando no caráter universal da concepção de mundo do
119
marxismo afirma - já no prólogo do primeiro tomo da “Estética” - a necessidade da
redação de uma estética sistemática fundamentada nos moldes de uma visão dialético-
materialista:
Encontramo-nos, portanto, diante da situação paradoxal de que há e não há
uma estética marxista, de que é preciso conquistá-la, criá-la, inclusive,
mediante investigações autônomas e que, ao mesmo tempo, o resultado não pode senão expor e fixar conceitualmente algo que já existe segundo a ideia
(LUKÁCS, 1966, Vol. I, Prólogo, p. 16, tradução nossa).
A “Estética” de maturidade, como já reiteramos, é um projeto que, segundo
o seu autor, pretendia desenvolver e abordar os problemas relativos à esfera estética a
partir da perspectiva teórica de Karl Marx. Sendo assim, Lukács adotou o princípio
“histórico-dialético” marxiano, cuja fundamentação consiste em uma concepção
materialista da história:
Trata-se de reconstruir os objetos por aproximação gradativa, articulando
suas categorias constitutivas de forma sistemática e sempre a partir do mais
abstrato ou, o que é o mesmo, do mais simples. História e sistema (dialética) “colaboram” entre si, já que a reconstrução de um objeto implica
necessariamente a apreensão de seu processo histórico de gênese e formação,
da mesma forma que toda exposição histórica, para ser consistente, depende
de resultados teóricos (PATRIOTA, 2010, p.45).
De acordo com os pressupostos de Marx, a História assume um papel
demiúrgico, pois é ela que produz os sistemas, e não o contrário. Sendo assim, é o devir
histórico e o movimento das atividades do homem que engendram uma lógica
determinada, não podendo estas serem deduzidas de modo abstrato e por meio de
esquematismos formais. Em suma, a grande virada no pensamento de Lukács, que
marca a sua transição do idealismo objetivo para o materialismo histórico, reside
justamente em postular que: “(...) não são sistemas que engendram a história e sim o
contrário” (PATRIOTA, 2010, p.58). A partir dessa concepção filosófica, abriu-se um
caminho consistente para que, utilizando o pressuposto ontológico e apoiado em bases
materialistas, Lukács pudesse redigir um projeto estético cuja pretensão consistia em
elucidar o estatuto categorial particular do campo da arte no vasto conjunto das criações
humanas.
Para dar conta de seu projeto estético de maturidade, Lukács retoma um dos
maiores legados do materialismo histórico-dialético: o entendimento de que o trabalho é
120
uma “prática transformadora sobre a qual se assenta toda a sociedade” (CARLI, 2012,
p.11). Nesse sentido, é o trabalho a categoria fundadora da História, visto que “(...) o
pressuposto real de toda a história é a organização dos homens para a produção de sua
subsistência” (CARLI, 2012, p.11). A forma como Marx compreende o trabalho indica
que há uma prioridade ontológica do ser sobre a consciência - o que quer dizer que o
momento fundador da organização dos homens não reside no pensar, mas na produção:
para cada momento histórico há um determinado momento material a ele
correspondente. Nesse sentido, o conjunto de valores vinculado a um determinado
momento histórico não pode ser essencialmente compreendido se retirado da totalidade
histórica que lhe deu origem.
Portanto, Marx entende que a realidade objetiva determina a consciência
humana. Esse mesmo conjunto de noções levou Lenin a construir a sua teoria do
reflexo, em que “(...) a consciência, o pensamento, a sensação são reflexos da
concretude do real na mente humana” (CARLI, 2012, p.13). A ideia de Lenin de que da
experiência humana derivam os reflexos será, com algumas correções, largamente
utilizada para fundamentar o reflexo estético na estética lukacsiana, sendo a ideia de
reflexo relacionada à objetividade da arte e não a uma ideia de passividade, de
reprodução mecânica - naturalista - da realidade. Na estética de maturidade, o processo
de captação da realidade obedece a um comportamento ativo, ao qual se relacionam
particularidades históricas, como classe social ou contexto cultural.
A fundamentação materialista da estética reside, essencialmente, na
compreensão de que as produções ideológicas não podem ser autônomas em relação à
práxis humana. Em outras palavras, pode-se afirmar, portanto, que os valores sempre
estão historicamente determinados por certo conjunto de forças materiais e por uma
cultura determinada, de modo que as obras de arte podem ser explicadas, somente, a
partir da totalidade sócio-histórica em que estão inseridas.
Marx e Engels jamais negaram a relativa autonomia do desenvolvimento dos
campos particulares da atividade humana [...] negam apenas que seja possível
compreender o desenvolvimento da ciência ou da arte com base
exclusivamente, ou mesmo principalmente, em suas conexões imanentes.
Tais conexões imanentes existem, sem dúvida, na realidade objetiva, mas só como momentos do tecido histórico, como momentos do conjunto do
desenvolvimento histórico, no interior do qual, através do intrincado
complexo de interações, o fato econômico (ou seja, o desenvolvimento das
121
forças sociais produtivas) assume o papel principal (LUKÁCS, Introdução,
2010, p.12).
A partir dessa concepção, a indagação de Marx se dirige à temporalidade e à
permanência das grandes obras de arte ao longo do tempo - como as epopeias
homéricas-; preocupação mantida pela estética lukacsiana. Pensemos no efeito artístico
que as leituras de obras de Homero ou Dante evocam nos leitores contemporâneos, visto
que as sociedades retratadas por esses autores já foram amplamente superadas.
Ponderemos, ainda, o mar de olhares curiosos lançados aos afrescos de Michelangelo no
teto da Capela Sistina. A permanência histórica desses objetos, de acordo com bases
materialistas, é explicada pela capacidade que cada um deles possui de reproduzir,
efetivamente, as relações sociais da realidade que figuram e que lhe deram origem,
confirmando a ideia de que: “Uma obra de arte é plena de autenticidade histórica
quando nos fornece a configuração típica de relações humanas situadas no espaço e no
tempo, em seu conjunto de determinações processuais” (CARLI, 2012, p.19).
Cotrim explica a ideia da temporalidade e da perenidade de certas obras de
arte a partir da noção de Marx de que o efeito duradouro de alguns objetos artísticos
reside no seu vínculo essencial com a particularidade da condição histórica que o
originou: “Marx parte, portanto, do vínculo necessário da arte com a particularidade da
condição histórica em que emerge, e define que seu efeito duradouro não é apenas
compatível com a sua particularidade histórica, como, em verdade, reside nela”
(COTRIM, 2015, p.215). A afirmação é dirigida, especialmente, às epopeias homéricas,
entendendo-as como uma retomada da infância histórica da humanidade:
Um homem não pode voltar a ser criança sem tornar-se infantil. Mas não o
deleita a ingenuidade da criança, e não tem ele próprio novamente que aspirar
a reproduzir a sua verdade em nível superior? Não revive cada época, na
natureza infantil, o seu próprio caráter em sua verdade natural? Por que a
infância histórica da humanidade, ali onde se revela de modo mais belo, não deveria exercer um eterno encanto como um estágio que não volta jamais?
(...) O encanto de sua arte [da arte grega], para nós, não está em contradição
com o estágio social não desenvolvido em que cresceu. Ao contrário, é seu
resultado e está indissoluvelmente ligado ao fato de que as condições sociais
imaturas sob as quais nasceu, e somente das quais poderia nascer, não podem
retornar jamais (MARX, 2011 apud COTRIM, 2015, p. 215-216).
Ao definir a arte grega como infância histórica da humanidade, Marx
pretende que elas sejam entendidas como a infância da humanidade como gênero;
122
aspecto que traduz o poder de evocação das epopeias homéricas como o: “(...) encanto
do adulto diante da criança que não somos mais” (COTRIM, 2015, p.216). Nesse mesmo
sentido, a representatividade desse momento se coloca de forma que o ser humano
reviva o seu caráter natural e originário em um estágio mais evoluído da história da
humanidade:
Não é possível que a ingenuidade e espontaneidade desse período voltem a
presidir a vida num estágio maduro da história humana, mas esta humanidade
madura pode aspirar a reviver sua infância como gênero e compreendê-la a
partir de um desenvolvimento superior, assim como o adulto revive sua
própria infância quando diante da criança e aspira compreendê-la a partir de
capacidades maduras. A apreciação da arte grega é, para Marx, reviver a
infância humana (COTRIM, 2015, p.216).
No entendimento de Marx, como já observado, o poder evocativo da arte
grega está vinculado ao momento histórico de sua origem. Lukács, por sua vez, alinha-
se à compreensão marxiana tal qual nos expõe Cotrim, afirmando que:
[...] a arte grega reproduz com vivacidade esse período da história humana, evocando imediatamente seu modo de ser, sentir, sua consciência de si. A
épica é uma figuração autêntica, verdadeira e inigualável da época histórica
em que emergiu, compondo, assim, um conhecimento vivo de um momento
que não pode mais voltar (COTRIM, 2015, p.217).
Se a questão histórica é central para o materialismo histórico, não se pode
incorrer no erro do estabelecimento de uma relação mecânica, direta e imediata entre o
real e o objeto artístico. Portanto, não se deve analisar a obra de arte apenas pelo viés do
desenvolvimento da base material que a originou. Nesse sentido, Marx e Engels
insistem que não é necessário um desenvolvimento econômico acentuado em um
determinado espaço geográfico para que nele floresça uma literatura de grande valor.
Cotrim reafirma este aspecto, enaltecendo sua importância para o delineamento e para a
estruturação de uma estética propriamente marxiana:
Esse é, como mencionamos, um aspecto central da ideia que Marx apresenta
a partir do caso da épica grega. Dele decorre a negação do “conceito de
progresso na abstração habitual”, qual seja, a de que o progresso material
implica o progresso humano em todas as suas dimensões. No que nos
interessa quer dizer que o desenvolvimento produtivo, técnico e social, não
traz consigo necessariamente um progresso cultural e artístico (COTRIM,
2015, p. 201).
123
A autora ainda retoma o pensamento de Marx pertinente à arte moderna,
remontando a ideia de que esta apresenta um valor estético menor do que a produção
artística de momentos anteriores - Homero ou Dante-, em que o desenvolvimento
material e a capacidade de domínio da natureza eram inferiores aos presenciados na era
moderna. É forçoso, assim, o entendimento de que há uma relação desigual entre o
desenvolvimento das forças produtivas e da produção estética de determinada
quadratura histórico-filosófica, o que explica a seguinte premissa: a ciência evolui, a
arte não. Tal afirmação soa paradoxal, mas, ao retomarmos a passagem de Carli, é
possível que seja desfeito qualquer mal-entendido:
Homero, por ser antigo, não é de modo algum inferior ao moderno Thomas
Mann, A Montanha Mágica não significa um progresso com relação à Ilíada.
Encontra-se o “ápice artístico” tanto no teatro de Sófocles e Eurípedes quanto
no teatro de Shakespeare e Molière e de Ibsen e Brecht, cada qual segundo
sua forma e seu conteúdo, em suas épocas determinadas (CARLI, 2012,
p.19).
A ideia de evolução ou de progresso artístico em Lukács é posta de um
modo particular, pois não se deve compreender, ou mesmo, atribuir valor a um objeto
estético somente a partir da análise do desenvolvimento material que originou
determinada obra de arte. Isto é, não se pode emitir um juízo adequado de valor sobre o
conjunto das criações artísticas humanas, a partir da noção de progresso, entendida
como avanço histórico qualitativamente positivo. Essa visão, entretanto, não se aplica
somente à literatura, mas a todo o campo da arte e das ideologias. A filosofia alemã do
século XIX, por exemplo, nasce em uma Alemanha bastante atrasada economicamente,
exemplo modelar do desenvolvimento desigual das forças produtivas e da produção
ideológica. Essa concepção impossibilita qualquer manipulação de dados resultante de
paralelismos mecânicos - questão deveras importante para a literatura -, pois impele o
historiador deste campo a considerar o desenvolvimento desigual dos gêneros ao longo
do processo histórico das mais distintas localidades.
A partir desse novo referencial teórico e do conjunto de noções que este
abrange, Lukács compreende a obra de arte como expressão da vida humana, ou seja,
como objetivação dos conteúdos humanos do homem. Adotada essa postura, o autor
passa a julgar a qualidade do objeto estético pelo quanto de real e humano ele é capaz
de figurar, diferentemente da estética hegeliana, que postulava que as obras de arte
124
deveriam ser julgadas a partir do ponto de vista do Espírito. É nesse sentido que,
segundo Frederico (2005, p.54): “(...) a dialética idealista de Hegel é posta com os pés
no chão: a arte não é criação do Espírito, e sim criação material dos homens”. Vejamos
de que modo Carli entende essa nova maneira de ajuizar as obras de arte:
[...], o homem concreto, que está no seio das tendências sociais realmente
existentes, cuja natureza é o conjunto das relações sociais em que se insere; o
homem que encerra múltiplas determinações e que pertence a uma etapa
particular da totalidade do processo histórico, esse homem, como objeto, é o
critério de discernimento acerca do valor histórico das criações estéticas nas
apreciações da teoria marxiana (CARLI, 2012, p.19).
Partindo desse novo conjunto de noções, o objeto estético assume o sentido
de um: “(...) dizer profundamente subjetivo e profundamente objetivo da vida. E seu
centro é constituído por uma individualidade de amplas e ricas dimensões genéricas. O
máximo da universalidade na mais radical singularização” (PATRIOTA, 2010, p. 222).
A obra de arte se configura, por conseguinte, como um objeto que compreende a
projeção das tensões, contradições e características típicas latentes de uma determinada
quadratura histórica, entendimento que faz com que Lukács retome a sua teoria sobre o
método realista de composição artística, sistematizada em seus escritos da década de
1930.
É importante ressaltar que a acepção de realismo lukacsiana não se restringe
a uma escola literária - a qual estaria datada no tempo -, mas compreende toda a grande
arte. Nesse sentido, Lukács acredita que toda grande arte é realista. Pode-se dizer, por
conseguinte, que a representação realista do mundo sempre esteve presente no decurso
histórico, acentuando-se mais ou menos em determinadas quadraturas. A composição
realista entende que as obras de arte de grande valor concentram personagens e
situações típicas que reúnem as tensões mais marcantes de seu momento histórico,
revelando as contradições do processo social de forma desfetichizada. Daí compreender
que os objetos artísticos comportam em si individualidades esteticamente
universalizadas, as quais passam a representar o ponto de vista do gênero humano. O
realismo representa de modo fiel, justo e adequado o processo de vida real, ou seja, é
uma arte conectada com a verdade. Desta feita, a leitura e a análise dessas obras
oferecem ao leitor - tanto pela sua forma como por seu objeto de representação
(conteúdo) - um modo de conhecimento da realidade objetiva.
125
Não sem motivo Engels recorreu à “Odisseia”, de Homero, para
fundamentar o seu entendimento sobre a família na sociedade grega, expresso na sua
obra “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”. Em uma troca de
cartas, datada de 1888, entre Engels e Margaret Harkness - escritora socialista inglesa -,
o filósofo discutiu o primeiro livro da autora, intitulado “City Girl”, em que critica sua
falta de realismo. Por conseguinte, cita o famoso romancista francês, Honoré de Balzac,
como um modelo do que vem a chamar de composição realista:
Balzac - que considero um mestre do realismo maior que todos os Zola do
passado, do presente e do futuro - desenvolve em sua Comédia Humana a mais extraordinária história realista da sociedade francesa, narrando, ano a
ano e como se fora uma crônica, os costumes imperantes entre 1816 e 1848
(MARX, ENGELS, 2010, p. 68).
Ao fazer considerações sobre Balzac, Marx afirma a importância de suas
obras para o entendimento das tendências objetivas vivenciadas pelo homem burguês.
Nos seus manuscritos, analisa a tragédia “Timão de Atenas”, de Shakespeare,
ressaltando os méritos do dramaturgo em descobrir o fetichismo do dinheiro e o
processo de alienação dos sujeitos frente ao capital:
(...) ou seja, como o dinheiro é transformado em fetiche no momento em que
aparece aos homens como a única via para se adquirir a propriedade do real
coisificado, e como um mero equivalente universal é elevado à condição de deus visível e palpável, acima de todos aparecendo aos homens com
características metafísicas de “revolucionário todo-poderoso”, tornando
possível para seu possuidor a satisfação de necessidades objetivas e
subjetivas enquanto abre caminho para a criação de novas e mais amplas
necessidades (CARLI, 2012, p.23).
Influenciado pelas ideias estéticas de Marx e Engels, Lukács afirma que a
obra de arte realista parte da existência de uma realidade objetiva e constrói, junto a ela,
uma realidade nova. Esta é capaz de fornecer verdades acerca de um indivíduo
concreto, o qual trava relações histórica e socialmente condicionadas, em uma
determinada época. Nesse sentido, conforme Lukács, o realismo é a inevitável
consequência do reflexo estético da realidade e uma tomada de posição dos artistas
perante o real.
Ao compreender o realismo como a justa reprodução do homem concreto
formalizado em personagens que expressam de modo típico tendências reais de um
determinado processo histórico, podemos afirmar que é absolutamente coerente a
126
aproximação, postulada por Lukács, entre o realismo e o humanismo. Em outras
palavras, o método realista de composição, que tem como ponto central a representação
do indivíduo concreto em um momento histórico determinado, contribui para a
humanitas, no sentido de que pratica o estudo da natureza humana do homem,
legitimando, por conseguinte, a compreensão lukacsiana de que o realismo e o
humanismo são movimentos que caminham de mãos dadas:
Ora, a humanitas - ou seja, o estudo apaixonado da natureza humana do
homem - faz parte de toda a essência da literatura e de toda arte autêntica; daí
que toda boa arte e toda boa literatura sejam humanistas, não só ao estudarem
apaixonadamente o homem e a verdadeira essência da sua natureza humana,
mas também por defenderem apaixonadamente a integridade humana do
homem contra todas as tendências que a atacam, a enviltecem e a adulteram
(LUKÁCS, 1968a, p.23, apud CARLI, 2012, p.17).
Engels afirmou que o modo de representação realista implica “(...) a
reprodução verdadeira de personagens típicos em circunstâncias típicas” (MARX e
ENGELS, 1986, p.70), ou seja, tanto a construção do personagem típico quanto a
constituição da situação típica - representação de um “aqui” e “agora” determinado -
devem ser meios utilizados pelo artista na construção de obras que obedeçam à
composição realista. De acordo com Lukács, o personagem típico não pode ser reduzido
à uma média daquilo que seriam os traços individuais de certo grupo, ele deve ser
compreendido, sobretudo, como um sujeito que, em seu caráter e em sua trajetória,
manifestam-se traços objetivos e historicamente típicos de sua classe, mas que se
enraízam em seu destino singular.
Para a construção de personagens típicos, as categorias da realidade não
devem ser captadas como a priori abstratos, elas devem, sobretudo, emanar da própria
realidade histórica objetiva. O personagem típico, portanto, é aquele que concentra as
tendências mais essenciais e universais de sua espécie e é, ao mesmo tempo, um uno,
um singular. Este recurso, quando bem trabalhado, possibilita ao autor e ao fruidor de
uma obra de arte o conhecimento da riqueza da vida social, bem como das tendências,
das tensões e dos movimentos da história de uma determinada época. No devir do
personagem típico, pode-se perceber uma constante luta em busca do significado de
suas experiências vividas, de forma que a extração desses sentidos se realiza a partir do
comportamento desse personagem e dos embates que ele trava ao longo de sua jornada,
127
o que se realiza, sempre, a partir da práxis humana. A forma como um determinado
personagem reage frente às situações colocadas diante dele pelo desenvolvimento da
realidade social possibilita, para Lukács, a compreensão da verdade do processo social.
A verdade do processo social é também a verdade dos destinos individuais
(...). As palavras dos homens, seus pensamentos e sentimentos puramente
subjetivos revelam-se verdadeiros ou não verdadeiros, sinceros ou insinceros,
grandes ou limitados, quando se traduzem na prática, isto é, quando os atos e
as forças dos homens confirmam-nos ou desmentem-nos na prova da
realidade. Só a práxis humana pode exprimir concretamente a essência do
homem. O que é força? O que é bom? Perguntas como estas obtêm respostas
unicamente na práxis (LUKÁCS, 1936, p. 57).
As obras realistas, tais como Lukács as concebe, possibilitam ao sujeito
receptor a retirada do véu que lhe obscurece e lhe turva a visão real e verdadeira das
forças sociais de um determinado momento histórico, permitindo a esse indivíduo um
desvelamento da realidade social, a qual está sempre coberta por aparências. Dessa
forma, é revelada a verdade do processo social, aspecto que, por sua vez, pode
(re)direcionar as práticas sociais do sujeito fruidor para o bem comum. É nesse sentido
que reside o caráter desfetichizador da composição artística realista. Sobre essa questão,
Bastos tece as seguintes considerações:
A arte ou é desfetichizadora ou não é arte. A isso Lukács chama realismo: em
sua missão desfetichizadora, a arte representa situações de opressão, de
degradação da humanidade do homem, mas as personagens aí representadas
podem perceber essas situações como situações criadas pelos homens, não
como próprias de uma condição humana antistórica, e se assim as percebem,
percebem também as possibilidades de superá-las (BASTOS, 2016, p. 48).
Nesta seção, passamos por temas essenciais concernentes à estética de
maturidade, especialmente no que tange à sua fundamentação e filiação teórica. Nas
seções seguintes, exploraremos um conjunto de noções presentes na referida obra, que,
sistematizados, nos possibilitam a compreensão do tema da utopia no pensamento
estético de maturidade de Georg Lukács.
2.2. A origem do reflexo estético e a ideia de cismundaneidade
128
Para a estética lukacsiana, as investigações relativas ao fenômeno artístico
não compreendem, somente, o entendimento dos elementos que mais corriqueiramente
compõem a obra de arte, como a questão da forma ou o tema da fenomenologia da
recepção ou da criação artística. Para Lukács, é importante entender, sobretudo, a
gênese do reflexo e as especificidades do reflexo estético e do científico, temas que são
detidamente discutidos na primeira parte da “Estética”. Deter-nos-emos, doravante, à
descrição desses dois tipos distintos de reflexo, para que, em um segundo momento,
voltemos a nossa atenção à gênese do reflexo estético e ao caminho da arte à
mundanidade, elementos centrais da “Estética”.
Conforme Lukács, arte e ciência são reflexos próprios do homem e têm
como função levar os sujeitos ao conhecimento do mundo que os circunda e, por
conseguinte, fazer com que esses indivíduos possam dominá-lo. Nesse sentido, o autor
acredita que a esfera da vida cotidiana é o plano de onde parte e o ponto para onde
retornam os efeitos das objetivações humanas, pois é da vida cotidiana que:
[...] provém a necessidade de o homem objetivar-se, ir além de seus limites
habituais; e é para a vida cotidiana que retornam os produtos de suas
objetivações. Com isso, a vida social dos homens é permanentemente
enriquecida com as aquisições advindas das conquistas da arte e da ciência
(FREDERICO, 2000, p.303).
Conforme mencionamos, o reflexo artístico e o reflexo científico se
alimentam da realidade cotidiana e refletem-na. Nesse sentido, retomamos, no excerto a
seguir, a analogia entre o rio de Heráclito e o plano da vida cotidiana:
O comportamento cotidiano do homem, assim, é o começo e o fim de toda
ação humana. Lukács retoma a imagem do rio de Heráclito, imagem cara aos
dialetas: o cotidiano é visto como um rio em seu permanente fluxo, dentro do
qual tudo se movimenta, se transforma, se espalha e retorna ao seu leito:
"dele (do cotidiano) se depreendem, em formas superiores de recepção e reprodução da realidade, a ciência e a arte; diferenciam-se, constituem-se de
acordo com suas finalidades específicas, alcançam sua forma pura nessa
especificidade - que nasce das necessidades da vida social - para logo, em
conseqüência de seus efeitos, de sua influência na vida dos homens,
desembocar de novo na corrente da vida cotidiana" (LUKÁCS, 1974, p. 11-
12 apud FREDERICO, 2000, p.303).
Pode-se afirmar que o reflexo artístico e o reflexo científico funcionam
como polos de recepção subjetiva do mundo e como momentos do mesmo processo de
desenvolvimento histórico e social da humanidade, entretanto, há distinções marcantes
129
entre tais reflexos. Dentre elas, podemos enfatizar que a esfera artística tem como
peculiaridade receber forma no particular e, por sua vez, o reflexo científico, recebe
forma através do universal ou do singular. O elemento que define a esfera estética como
um tipo específico de reflexo é a capacidade de representação da realidade, de modo
que aparência e essência sejam reveladas, conjuntamente, em sua imediaticidade e de
maneira sensível. Isto é, aparência e essência se manifestam unidas e de forma
harmônica no reflexo artístico, em uma determinada representação sensível. Essa
adequação e coincidência entre essência e aparência não se dá no reflexo científico.
No plano artístico, percebe-se a constituição de um mundo próprio,
elemento que não se verifica na ciência, campo em que o conhecimento é entendido
como um processo em que cada nova descoberta invalida a anterior ou a supera. No
campo da arte, o objeto estético não é invalidado ou ameaçado quando surgem outras
obras, essencialmente, porque são mundos próprios que não dependem de outros para
existir. Por conseguinte, pode-se afirmar que a arte reflete uma totalidade intensiva da
vida, ou seja, ela é “(...) uma totalidade fechada que figura de modo concentrado o
mundo dos homens num contexto particular” (FREDERICO, 1997, p.62). Se a arte
reflete a totalidade intensiva da vida, o mesmo não ocorre com a ciência, que procura
refletir a totalidade extensiva da vida, visto que “(...) o cientista busca refletir o infinito,
o universo em seu conjunto” (FREDERICO, 1997, p. 61).
Ainda sobre as especificidades do reflexo estético e do científico, Lukács
assegura que a individualidade da obra de arte é sempre determinada pela subjetividade
de seu criador, ao passo que as proposições científicas encontram-se desvinculadas de
qualquer momento subjetivo em sua origem, podendo, apenas, de acordo com a
afirmação de Patriota:
[...] cumprir a finalidade que lhe foi destinada socialmente se capta a
realidade em sua legalidade ou essencialidade, depurando-a ao máximo de
condicionamentos subjetivos e formando, através de conceitos, uma cadeia de
determinações generalizadoras (PATRIOTA, 2010, p.18).
Por esse motivo, afirma-se que o discurso científico é marcado por seu
caráter desantropomorfizador, ao passo que a arte carrega como marca um caráter
antropomorfizador:
130
[...], pois liga a objetividade à subjetividade, a essência ao fenômeno,
aproximando, assim, os contrários. Se na ciência, a categoria ordenadora
central é a universalidade, na arte, esta categoria - e Lukács admite seguir
uma indicação de Goethe - é a particularidade. Só ela pode tornar sensível,
singular e evocativa, sem perda de conteúdo, as determinações universais da
vida humana (PATRIOTA, 2010, p.18).
Sendo assim, a arte opera sobre o sujeito enquanto que a ciência, por sua
vez, opera através de leis próprias, de forma que, no reflexo científico, a realidade
objetiva independe da consciência e transforma em propriedades da consciência humana
uma realidade que independe da consciência do homem. Segundo Heller:
[...] ela (a ciência) nos apresenta sempre um mundo independente do sujeito
do conhecimento (seja o sujeito criador ou recebedor). Na arte, ao contrário,
realiza-se sempre a unidade do sujeito individual com o objeto. Não há
mundo artístico sem um sujeito criador e um sujeito recebedor. Isso significa
não só que, se fosse conhecida, a obra se transformaria em uma mera coisa
“em-si” (o que prevaleceria também para as obras científicas perdidas no
passado), mas - assertiva que nos traz de volta ao nosso ponto de partida -
significa igualmente que a obra de arte, embora seja uma coisa “em-si”,
contém ao mesmo tempo algo “para-nós”, contêm o sujeito nela, contém algo tanto do sujeito criador como do sujeito receptor virtual (LUKÁCS,
1978 apud HELLER).
Heller observa, portanto, que a autoconsciência do sujeito fruidor não está
dissociada do mundo exterior; o que conduz à afirmação de Lukács de que as
reproduções artísticas da realidade transformam o ser-em-si da objetividade em um ser-
para-nós do mundo, representado na individualidade de cada totalidade intensiva que é a
obra de arte. Essa propriedade estética amplia, alarga e aprofunda a consciência do
homem sobre a natureza, sobre a sua condição humana, sobre a História e a sociedade.
É no domínio da estética e, através da mediação entre as obras de arte e o sujeito, que
este pode se transformar de homem como um todo em sujeito plenamente humano,
mantendo-se ao nível do gênero de maneira autoconsciente.
A polarização entre autoconsciência (arte) e consciência (ciência) é um
elemento que distingue, também, os dois tipos de reflexo, todavia, é importante ressaltar
que essa polarização é um resultado de um processo histórico, visto que o reflexo
científico e o artístico nascem como que misturados. É objeto de o materialismo
dialético investigar as condições históricas sob as quais se desenvolveu essa
polarização. Nesse sentido, a nossa discussão se volta ao mapeamento da origem do
131
reflexo estético e à sua relação com a categoria da mimese artística, aspectos
fundamentais para a compreensão do fenômeno estético em sua relação com o
desenvolvimento do gênero humano.
Lukács afirma que a arte se define pelo processo de imitação, isto é, pela
mimese, cujo papel consiste na “(...) conversão de um reflexo de um fenômeno da
realidade na prática de um sujeito” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 7). A validade da
imitação é um elemento universal na vida dos seres dotados de alto grau de organização,
pois a conservação e a transmissão de experiências entre seres de uma mesma espécie
não podem se consumar a não ser pela imitação; procedimento responsável por fixar os
reflexos condicionados. Pensemos, por exemplo, na conservação das espécies de
pássaros - como as andorinhas - que têm de migrar para garantir a sua sobrevivência. Se
as espécies mais jovens não seguirem o modelo de migração das mais experientes,
possivelmente sucumbirão ao frio e às adversidades impostas por parte das estações do
ano que não lhes oferece um ambiente adequado à sobrevivência.
Quanto aos homens mais primitivos, o movimento de captação da realidade
requeria, ao menos, uma aproximação elementar e consciente voltada para essa mesma
realidade. O peculiar caráter subjetivo da seleção dessa realidade refletida tem que
conter, em si, uma tendência à objetividade autêntica, processo que se realiza por meio
da distinção dos conteúdos essenciais e inessenciais do reflexo. O princípio de seleção
desses conteúdos é orientado pelos interesses vitais do homem, ou seja, quanto mais um
conteúdo remete a tais interesses, maior a sua essencialidade. Sendo assim, se o reflexo
não afetar um momento essencial da vida humana, a finalidade subjetiva do homem não
se realiza - o que conduz à afirmação lukacsiana de que a práxis se impõe como critério
de verdade para a captação da realidade a partir da seleção dos conteúdos do reflexo6.
Ressalta-se, no interno deste processo, o papel essencial do trabalho:
[...] pois o progresso e o desenvolvimento do homem só são possíveis pela
prática, pelo trabalho, de modo que ambos pressupõem, por sua vez, um
reflexo mais correto e mais rico da realidade” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 31,
tradução nossa).
6É importante esclarecer que a seleção da realidade refletida nem sempre capta a essência real e objetiva
dos conteúdos do reflexo.
132
Por meio do trabalho, o homem suspende a imediaticidade da vida cotidiana
para investigar a realidade objetiva tal qual ela é. Essa realidade comporta em si um
movimento dialético de essência e aparência, o que ressalta, ao mesmo tempo, o seu
aspecto contraditório e unitário. Sendo assim, todo o comportamento prático e
intelectual dos homens, bem como o reflexo humano, devem se adequar a essa
realidade.
Tal argumentação traz para a cena o debate sobre a prática artística do
naturalismo. Se a vida cotidiana comporta em si um movimento dialético, que se
consolida como elemento básico da vida, o reflexo artístico não pode ignorar esse
movimento, tal como o faz o método naturalista de composição artística. Essa prática
tende, segundo Lukács, a dissolver a contraposição e a diferenciação entre essência e
aparência da realidade, de modo a anulá-las. Nesse sentido, o naturalismo seria uma
tendência tardia na evolução histórica da humanidade, de modo que essa prática
pretende:
[...] aproximar-se dos fenômenos aparentes e superficiais da vida cotidiana e
eliminar, de forma mais radical possível, todas as categorias de mediação que
apontam para os fenômenos essenciais da realidade [...] (LUKÁCS, 1972,
vol. 2, p. 22, tradução nossa).
Essa tendência à eliminação dos conteúdos essenciais da vida cotidiana
surge somente, segundo Lukács, quando determinadas classes sociais esboçam temor
em relação à descoberta desses conteúdos. Daí a afirmação de autor a respeito do
aparecimento tardio dessa tendência artística, a qual expressa desorientação e caminha
para o encerramento das perspectivas de desvelamento dos conteúdos aparentes;
aspectos que contribuem à tendência fetichista do capitalismo.
O empenho de Lukács em compreender as especificidades do reflexo
estético o conduz para a discussão da relação intrínseca entre arte e magia, uma vez que
o autor acredita que a gênese do reflexo artístico só pode acontecer quando a intenção
estética já se apresenta consolidada e arraigada na vida emocional dos sujeitos. Apenas
a partir desse movimento podem ser percebidos como estéticos os processos cuja
intenção inicial não era esta. Para o autor, algumas distinções são notáveis quando
mencionados os termos arte, magia e religião; apesar de todas essas esferas partilharem
de um princípio comum: o caráter antropomorfizador. Nesse sentido, esses campos têm
133
o potencial de conectar a objetividade à subjetividade, a essência ao fenômeno,
aproximando os polos contrários. Entretanto, há distinções que delimitam tais campos.
Se, na esfera estética, a imagem refletida da realidade é percebida e compreendida como
reflexo; às esferas da religião e da magia é atribuída uma realidade objetiva ao sistema
de seus reflexos, de modo que se exige uma fé correspondente. No campo artístico, as
obras de arte constituem um sistema fechado em si, o qual se refere, sempre, à realidade
objetiva; por sua vez, o reflexo de natureza mágica ou religiosa se refere,
sucessivamente, a uma realidade transcendente.
As formações estéticas são sempre reflexos da realidade objetiva. Sua
verdade bem como o seu significado residem, essencialmente, na capacidade que tais
reflexos possuem de captar corretamente a realidade, reproduzindo-a em sua forma
verdadeira e evocando, no seu receptor, a imagem da realidade contida em tais reflexos.
Para que isso ocorra, o objeto estético tem de compactar os conteúdos refletidos na obra,
o que ocorre por meio do potencial atribuído à forma artística. Essa orientação do
reflexo estético volta-se para a cismundaneidade da arte, que, segundo Lukács:
[...] significa, de um modo imediato, que a ação evocadora daquilo que fora
representado se orienta exclusivamente à recepção do sujeito, ou seja, que
com o efeito evocador obtido, a formação mimética alcançou totalmente a
sua finalidade (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 45, tradução nossa).
Nesse sentido, a ideia de cismundaneidade assume como marca o
antropocentrismo, evocando um sistema de pensamento que coloca o homem no centro
do mundo, de forma que tudo a ele se refere. Retoma-se, por conseguinte, uma
importante característica do reflexo estético em comparação às formações mágicas ou
religiosas: estas se referem sempre a uma realidade transcendente em contraposição à
referência à realidade objetiva, característica própria do reflexo artístico.
Partindo dessas concepções, Lukács afirma que a autoconsciência da
humanidade é a autêntica subjetividade portadora da arte. Se os objetos estéticos
refletem de modo verdadeiro os conteúdos da realidade objetiva, fazendo com que o
receptor consiga evocá-los, o seu processo de recepção passa a funcionar, assim, como
um movimento de autoconsciência daqueles que fruem a obra, pois o sujeito receptor
pode captar a realidade objetiva de modo verdadeiro, o que nos leva a afirmar o caráter
profundamente humanístico da estética. Essa autoconsciência - sobre a qual fizemos
134
menção - só pode existir em um mundo onde o homem já tenha certo domínio do seu
mundo interior e exterior.
De acordo com o autor, o sujeito primitivo não poderia, ou mesmo, não
conseguiria dominar - no âmbito teórico ou da prática - o mundo que o circundava. Essa
configuração fez com que tal sujeito negligenciasse o mundo exterior para que pudesse
empreender um movimento para “dentro”, ou seja, voltado à sua interioridade. Como
este caminho não é natural, pois os instintos do homem o orientam para “fora”, o
indivíduo elimina as suas limitações através de meios artificiais. Um dos exemplos
resgatados pelo autor para retratar essa questão são os rituais dionisíacos, em que o uso
de substâncias alucinógenas, ou ainda, os longos períodos em que as mulheres, em sua
maioria, dançavam, ao som alucinante dos tambores e das flautas, consumindo bebidas
alcoólicas, retratam esse caminho do sujeito rumo à interioridade por meio de vias
artificiais, configurando uma situação de êxtase. Lukács afirma que a mimese e o êxtase
são excludentes, a não ser quando aparecem simultaneamente, o que se verifica no
período mágico. As formações miméticas oriundas do referido momento são reflexos de
fragmentos da vida e, não, de sua totalidade, apesar de essas mesmas formações
tenderem a remontar essa totalidade. Nesse sentido, o êxtase proporcionado pelos
rituais, por exemplo, tem como finalidade arrancar e arrebatar o sujeito da normalidade
da vida, impondo a ele uma realidade transcendente que rompe com a normalidade e
com a continuidade da vida cotidiana, comportamento que não se orienta à objetividade,
à evocação e à recepção, elementos fundamentais da conduta mimética.
Na vida cotidiana, a vinculação entre o evocador e o mimético tem como
fundamento o desenvolvimento dos sentidos. Lukács ressalta dois aspectos essenciais
sobre a questão. Um deles é a fantasia do movimento, ou seja, em uma peça de teatro,
por exemplo, a imitação de um movimento pelo ator pode reproduzir evocativamente
esse mesmo movimento na fantasia do espectador, de forma que, quanto mais
desenvolvida e elaborada essa fantasia, maior a possibilidade de os homens se tornarem
mais hábeis em suas ações cotidianas no que tange ao desenvolvimento desse
movimento. O segundo aspecto enfatizado é a divisão do trabalho entre os sentidos,
fator que se configura, igualmente, como um produto do trabalho. Para Lukács, o
135
desenvolvimento dos sentidos na vida cotidiana é possível a partir da vinculação entre o
evocador e o mimético, elementos fundamentais à esfera estética.
A vivência estética, oriunda de um processo histórico evolutivo, se
configura, “(...) como uma entrega imediata a um complexo unitário de imagens da
realidade, as quais são refletidas sem que haja a ilusão de se estar diante da própria
realidade” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 76, tradução nossa). Pensemos, por exemplo, em
uma morte cênica. Nesse sentido, Lukács enfatiza que, na vida cotidiana, as erupções
emocionais dos sujeitos possuem fundamentos objetivos, ao passo que, nas formações
miméticas, não há uma realidade que suceda esses sentimentos na intenção de
fundamentá-los. As emoções do fruidor podem ser suscitadas devido à orientação das
imagens refletidas, as quais conduziram a evocação para uma direção específica. Essas
considerações encaminham a argumentação do filósofo à seguinte afirmação:
A forma artística surge como meio para expressar um conteúdo socialmente necessário, de tal modo que se produza um efeito evocador concreto e
universal, que constitui também uma necessidade social (LUKÁCS, 1972,
vol. 2, p.101, tradução nossa).
Partindo dessa afirmação, cabe, na seção seguinte, descrevermos de que
modo a obra de arte se coloca na vida dos homens a partir de um longo percurso
evolutivo da humanidade.
2.3. O caminho da mundanidade
Como já mencionamos em momentos anteriores, uma das peculiaridades
das obras de arte é a criação de mundos autônomos, ou seja, o objeto artístico reflete
uma totalidade intensiva da vida, pois figura, de modo concentrado, o mundo dos
homens em determinados contextos. A possibilidade de conter o mundo dentro de si,
atribuída por Lukács à obra de arte, é um dos aspectos que delimita a esfera estética.
Entretanto, um caminho longo do desenvolvimento teve de ser traçado para que o
homem adquirisse a capacidade de produzir objetos artísticos. Seguiremos apontando os
traços mais essenciais desse desenvolvimento.
136
Lukács, primeiramente, menciona as pinturas rupestres feitas pelos
caçadores no período paleolítico. Sobre elas, aponta um traço bastante curioso: apesar
de apresentarem em si um traço amundanal (ausência de mundo), ainda assim
apresentam certo realismo. Entende-se, assim, que essas figuras, normalmente
reproduções de animais, não possuem qualquer ligação com elementos presentes em seu
entorno, visto que são realizadas de modo “solto” no espaço em que foram produzidas.
É nesse sentido que a ausência de mundo salta aos olhos do autor, apesar de Lukács
acentuar um caráter realista em tais imagens. Pode parecer estranho este traço,
entretanto ele ocorre devido à alta capacidade de observação que esse homem do
período paleolítico possuía, pois a necessidade da caça, da pesca e da coleta em prol da
sobrevivência fez com que essa habilidade - observação - fosse potencializada.
Como sempre, tudo começa pela vida cotidiana. A habilidade estética dos
povos caçadores para reproduzir imagens altamente individualizadas e típicas
de animais não é nenhuma dádiva do além, mas um bem conquistado pelo
ofício diário da sobrevivência (PATRIOTA, 2010, p. 156).
Lembremos que as pinturas rupestres paleolíticas tinham como finalidade,
por exemplo, o logro na caça ou na pesca e não um êxito estético. Desse modo, essas
reproduções obedecem a finalidades mágicas, impostas por uma determinação externa,
que, neste caso, é a comunidade. Observando as condições de nascimento dessas
pinturas bem como as suas finalidades, é altamente compreensível que os homens que
pintavam tais figuras se voltassem, somente, para a representação do animal que
pretendiam caçar e, não, para questões estéticas. Sendo assim, não era forçoso desenhar
uma paisagem de fundo para abrigar a presa pretendida e incrementar, assim, aquela
pintura, pois as finalidades deste homem não demandavam tal atitude, exigiam,
somente, a representação do animal para que impusessem sobre ele um domínio no
momento da caça.
O paradoxo das obras primas da pintura rupestre paleolítica consiste que os
animais reproduzidos, considerados objetos soltos, parecem possuir aquela
totalidade intensiva das determinações, ou seja, uma intenção de
mundanidade, ao passo que, ao mesmo tempo, são representados
isoladamente, em seu abstrato ser-para-si, como se a sua existência não interagisse com o espaço que imediatamente o rodeia, nem, ao menos, com o
seu ambiente natural. Essas figuras estão - artisticamente - fora de todo o
mundo, e sua configuração é em última instância amundanal (LUKÁCS,
1972, vol. 2, p. 126, tradução nossa).
137
Por essas razões, a pintura paleolítica carrega em si uma situação
contraditória: “(...) já que a magia e a arte se opõem em sua essência: aquela visa à
consecução de finalidades materiais pela manipulação de forças transcendentes, essa
visa à transformação da subjetividade do homem pela afirmação de sua terrenalidade”
(PATRIOTA, 2010, p. 157). Se a pintura rupestre paleolítica ainda obedecia às
finalidades da magia, carregando em sua estrutura uma contradição, a civilização grega
torna-se a responsável por fazer com que este paradoxo desapareça.
No decurso evolutivo da humanidade, a cultura grega representa o início da
civilização, pois constrói, por meio de um processo autoconsciente, um mundo de
acordo com as suas demandas, ampliando o domínio humano sobre as barreiras
naturais, o que lhe confere certa segurança em seu estar no mundo. Pensemos, por
exemplo, enfatizando a amenização das ameaças externas, nas construções que
abrigavam esses povos, ou mesmo, na possibilidade de habitação no entorno desses
povoados. Nesse sentido, questões que nos parecem triviais, como a construção de casas
seguras, diminui a hostilidade dos homens para com o mundo que habitam. Se o
alheamento entre sujeito e mundo diminui, consequentemente, aquele passa a ver o seu
entorno como algo que lhe corresponde e que pode ampliar, até certa medida, a sua
personalidade. Temos, portanto, a concepção de um mundo como lar, ou melhor, como
pátria.
Essa nova conformação histórica traz consigo uma distinta relação do
homem com o seu entorno e com a vida cotidiana, inaugurando um tipo de
representação artística voltado à mundalidade, o que permite uma evolução artística que
desfaz o paradoxo das pinturas do paleolítico: amundalidade versus realismo. Se há um
novo contexto histórico filosófico, por conseguinte, a arte terá que resolver, em sentido
artístico, os problemas apresentados por essa nova configuração.
A partir do momento em que o homem se sente mais seguro em seu mundo,
visto que ampliou o seu domínio prático e intelectual sobre ele, a resposta artística
observada foi a gênese do espaço pictórico, mais essencialmente, a necessidade de
representação dos objetos unidos, indissoluvelmente, ao espaço que os rodeia,
configurando uma viva interação entre os objetos representados nas pinturas. Se este
138
novo homem dominou o espaço que o rodeava; em suas representações pictóricas, a
distribuição das cores, por exemplo, não poderia mais ocorrer de forma arbitrária, o que
configurou uma revolução na sensibilidade humana. Para dar suporte a essa
argumentação, Lukács retoma os resultados do trabalho do historiador austríaco Franz
Wichoff (1853-1909):
A paisagem, com o céu em cima, o mar e os rios, o interior e o exterior dos
edifícios, suas coberturas, as ferramentas, etc., não eram mais compreensíveis
em sua conexão a não ser que fossem representados por meio de suas cores
naturais, o que levava rapidamente à uma representação plenamente natural
das figuras que se moviam naquele ambiente (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 138,
tradução nossa).
Essa interação entre os objetos presentes nas pinturas e a transição da cor
fisiológica para a cor local são os elementos que marcam a mundanidade. Abre-se a
possibilidade, assim, para a construção de um mundo próprio e articulado que configura
o reflexo artístico. A partir desse novo tipo de representação, a evocação artística de um
mundo fechado pode ocorrer nas obras de arte. Vejamos de que forma Patriota
desenvolve essa questão:
Em torno da categoria de “mundo próprio” aglomeram-se três determinações
básicas. Em primeiro lugar, a conformação de uma realidade humanamente
digna, própria do homem, em plena conformidade com suas carências e
potencialidades, onde ser e dever ser não apenas se harmonizam, mas se
apresentam numa identidade fática. Na obra de arte não há postulados, mas
efetividades. O dever-ser é sempre ser efetivo. Em segundo lugar, este mundo
se põe ao receptor como uma totalidade intensiva, totalidade que emana de
dentro da moldura espaço-temporal da vida refigurada na obra. Cada obra de
arte é vivida como um mundo em si completo. Em terceiro lugar, trata-se de
um mundo próprio no sentido artístico, isto é, criado a partir de uma lógica
estética autárquica (PATRIOTA, 2010, p. 159).
Essa evolução artística, oriunda de uma alteração da quadratura histórica e
filosófica de certo período, é expressa pela capacidade do homem de articular objetos
distintos, criando a imagem de uma totalidade orgânica e unitária de um todo,
configurando, portanto, no sentido leibniziano do termo, uma mônada, aspecto já
discutido no início desta tese. No âmbito estético, esse desenvolvimento encaminha as
observações de Lukács para um aspecto importante: os conteúdos selecionados pelos
artistas já indicam as possibilidades das realizações formais, ou seja, a forma e o
conteúdo se condicionam e se determinam reciprocamente.
139
Esboçada a origem do reflexo estético e percorrido o caminho das
representações artísticas rumo à mundanidade, nos é permitido delinear o que vem a ser
a obra de arte, suas particularidades e seus pressupostos.
2.4. Considerações iniciais sobre o objeto estético
Conforme Lukács, o mundo da obra de arte carrega uma rica contradição: o
objeto estético caracteriza-se por ser uma objetividade fechada em si, independente do
sujeito, ao mesmo tempo em que revela os conteúdos mais essenciais relativos aos seres
humanos. Para que essa contradição possa se configurar, dois elementos ganham
destaque: 1) a vida humana teve que se desenvolver a ponto de se converter em objeto,
isto é, em obra de arte; e 2) o homem pode se tornar um sujeito estético. A estrutura da
obra de arte promulga, assim, este movimento, pois nela está expressa a identidade
absoluta de conteúdos externos e internos, de modo que ambos, a partir das
determinações formais, se convertam em uma unidade.
A conexão e a síntese desses conteúdos é, para Lukács, a expressão imediata
de um conteúdo ainda mais profundo: a verdade da vida, segundo a qual o homem
conhece a si mesmo à proporção que conhece e domina o mundo à sua volta, onde tem
que viver e agir. Essa premissa da esfera estética impulsiona o sujeito ao
autoconhecimento e ao conhecimento do mundo que o circunda, em um movimento
circular. Ao retomar o conselho do Oráculo de Delfos aos antigos gregos, “conhece-te a
ti mesmo”, o marco inicial da longa trajetória da humanidade rumo ao
autoconhecimento, Lukács nos coloca diante de sua compreensão da autêntica obra de
arte, afirmando que ela impulsiona o ser humano a conhecer tudo aquilo que o rodeia -
seus semelhantes, a sociedade em que vive, a natureza, o seu campo de ação, etc. - ao
mesmo tempo em que o coloca frente à compreensão dos estratos mais profundos do
seu ser. Essa realização nunca poderia ser alcançada pelo sujeito por meio de uma
“pura” investigação de si próprio.
140
A partir dessa reflexão, o autor afirma que o mundo particular das obras de
arte não é utópico, objetiva ou subjetivamente falando, pois não aponta para algo
transcendente, isto é, para além do homem ou do seu mundo. A arte é, portanto, o
mundo próprio dos homens, é um objeto em que as possibilidades e potencialidades
concretas do mundo e do sujeito se colocam frente ao homem com a mais ampla
profundidade. No âmbito estético, até as obras de arte que apontam ao receptor um
mundo do dever são vividas pelo ser como seu mundo próprio. Nesse sentido, para
Lukács, a canção mais idílica ou a natureza morta mais elementar expressam, em certa
medida, um dever-ser que exige do sujeito da cotidianidade o alcance da unidade e da
altura realizadas na obra de arte, movimento que configura o dever de toda vida plena e
autêntica.
Se a obra de arte nos permite o autoconhecimento e o conhecimento do
mundo, ela nos convém, ainda, como objeto portador da memória da humanidade, pois
materializa em si os conteúdos que ampliam, enriquecem e aprofundam a nossa noção
de homem e as relações deste com a natureza que o rodeia. Fruir o objeto estético é,
portanto, um fenômeno que nos coloca diante dos destinos já vividos pela humanidade,
de modo que podemos nos conectar a eles e revivê-los em cada objeto estético,
interiorizando, assim, os caminhos passados e presentes dos homens, bem como a
consciência dos homens que o fizeram, participando, portanto, da vida da humanidade.
A fruição estética, enfim, preconiza a transformação de um passado espacial e temporal
em um momento presente vivido, despertando, no sujeito fruidor, a consciência de viver
em um mundo do qual ele faz parte e do qual é co-criador.
É necessário, por conseguinte, enfatizar a questão da essencialidade no que
tange à esfera estética e à memória, pois “(...) a memória da humanidade não fixa mais
do que o importante e não se sobrecarrega com o supérfluo” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.
183, tradução nossa). Nesse sentido, os artistas devem selecionar os conteúdos
essenciais para a criação do objeto estético, procedimento que deve se realizar por meio
de um movimento que impulsiona o artista ao uso das situações e dos personagens
típicos. As figuras que correspondem à formação dos tipos sociais são aquelas - como já
aferimos em momentos anteriores - que possuem em seu caráter as relações que estão
nascendo e as que já nasceram na história da humanidade, ou seja, os personagens ou
141
situações típicas sintetizam as tensões sociais latentes de um período histórico em
conexão com aquelas que já se materializaram. Este modo de compreensão da obra de
arte não exige que todos os objetos estéticos tenham que refletir todo o conjunto de
fenômenos de seu contexto de produção. Cada obra de arte deve captar, reproduzir e
refletir um conglomerado de situações, de destinos e de caracteres típicos que devem se
converter em tema de representação, configurando uma universalidade em sentido
intensivo. É nesse sentido que podemos afirmar que “A Comédia Humana”, de Balzac,
é um exemplo que justifica a afirmação precedente, pois a cada novo título balzaquiano
tem-se a representação de um conjunto de tensões que nem sempre é o objeto de
representação dos outros títulos; apesar da tipicidade estar contida, com ampla
intensidade, nos caracteres e nas situações representadas em “Ilusões Perdidas” ou em
“O Pai Goriot”. Mais adiante, discutiremos com maior detimento a ideia da tipicidade.
A relação entre a produção estética e a essencialidade suscita uma
compreensão da obra de arte como objeto que reflete a realidade de modo amplo e rico,
corroborando a concepção de François Hemsterhuis7 (1721-1790), escritor e filósofo
holandês, de que a alma humana tende, naturalmente, a se apropriar de um grande
número de ideias em um menor tempo possível. Transposto ao objeto estético, esse
princípio determinará, para este autor, a noção de belo. Nesse sentido, a esfera estética é
marcada pela capacidade de concentração e intensificação, na obra de arte, dos
conteúdos da realidade que o artista procura refletir. Lukács resgata as ideias de
Hemsterhuis e afirma que este autor seria o precursor de manifestações importantes na
esfera estética, como a divisão do trabalho dos sentidos e a formação de um meio
homogêneo, bem como descreve de que forma ele entendia as finalidades da mimese.
Hemsterhuis compreende duas finalidades para a mimese artística; são elas:
1) a possibilidade objetiva de reprodução, na arte, dos objetos do mundo e 2)
apontamento da garantia do potencial da arte de superação da natureza, de modo que
não cabe ao objeto estético, somente, refletir a realidade, mas criar, sobretudo, uma
imagem que ultrapasse a natureza em riqueza de determinações, criando efeitos que não
podem ser produzidos por ela. Tais premissas levam o autor a assegurar as ideias de
7François Hemsterhuis (1721-1790) foi um escritor e filósofo holandês cujos trabalhos versavam
essencialmente sobre estética e filosofia moral.
142
concentração e de intensificação como categorias essenciais à esfera estética.
Entretanto, observa Lukács, se Hemsterhuis contribuiu substancialmente à discussão
sobre a mimese estética, faltou-lhe um olhar voltado à formulação do princípio
hierárquico que organiza os elementos compreendidos na obra de arte.
Se Hemsterhuis entende o efeito da obra como superação da natureza,
Nikolay Gavrilovich Chernyshevsky8 (1828-1889) trará outra contribuição importante à
estética lukacsiana, afirmando que, em todas as reproduções estéticas da realidade -
inclusive naquelas em que o conteúdo imediato é a natureza -, o ponto mais
significativo é o homem. Nesse sentido, o autor afirma que, na “Poética” aristotélica, a
expressão imitação da natureza não é utilizada, levando-o a proferir que, para Platão e
Aristóteles, o verdadeiro conteúdo da arte não é a natureza, mas a vida dos homens.
Afirma-se, portanto, o caráter antropomorfizador da obra de arte; elemento que, dentre
outros aspectos, situa o filósofo russo no caminho que conduz ao materialismo dialético.
Tal declaração se justifica por causa de sua compreensão de que a arte deve figurar o
metabolismo da sociedade com a natureza, o que conduz à noção lukacsiana de que cabe à
obra de arte levar ao sujeito cotidiano a natureza da objetividade da qual ele próprio
participa. Apesar das contribuições de Chernyshevsky, Lukács assinala que suas noções
não são mais do que intuições que desembocam em certo formalismo:
[...] pois [Chernyshevsky] limita-se a adivinhar, sem reconhecer nem
conhecer claramente a vinculação econômica da humanidade com a natureza.
E, como não vê com clareza a dialética objetiva da evolução humana, que
nasce do desenvolvimento das forças produtivas, a relação estética do homem
com a natureza torna-se também utópico-aproblemática, adialética
(LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.221, tradução nossa).
A crítica de Lukács dirigida ao filósofo russo tem como ponto central a
importância da vinculação econômica da história da humanidade ao seu
desenvolvimento. Trocando em miúdos, a tônica dessa discussão recai na importância
de se pensar os nexos que a categoria do trabalho - entendida no sentido marxiano do
termo - possui com a esfera estética; o que conduz Patriota a afirmar que: “Todas as
questões que surgem de dentro do mundo da arte encontram no princípio da
humanização do homem pelo trabalho sua possibilidade efetiva de explicação”
8 Nikolay Gavrilovich Chernyshevsky (1828-1889) foi filósofo, jornalista e escritor russo. Filho de padre,
cursou teologia em um seminário, no qual se graduou em 1846. Sua obra de destaque é o romance
intitulado “O que fazer?”, publicado em 1863.
143
(PATRIOTA, 2010, p. 195). Se, na estética de juventude, essa categoria passava ao
largo dos debates lukacsianos sobre a arte; na estética de maturidade, ela é o elemento
que faltava ao autor para a fundamentação adequada da relação sujeito-objeto, de modo
que o movimento da subjetividade em direção à esfera estética será elucidado a partir do
resgate do processo metabólico do trabalho.
Passando por essa compreensão, o filósofo adota a ideia de trabalho
marxiana, compreendendo-o como o momento originário em que o homem exterioriza a
sua subjetividade e aquilo que o é em seu interior. Dessa forma, o trabalho adquire o
status de momento disparador do processo de interiorização dos indivíduos:
E com o trabalho, também a objetividade natural surge como determinação
originária, pois o trabalho é a ação do sujeito frente a uma objetividade
independente e inderivável. Segue-se daí que, pelo trabalho, o homem surge
como sujeito e a natureza, que existe por si, como objeto deste sujeito. Em seu movimento concreto, esta relação sujeito-objeto é o processo de
exteriorização do sujeito que age sobre a objetividade dada, um movimento
duplo: a alienação deste sujeito de si mesmo e o retorno a si dessa alienação
idêntico (PATRIOTA, 2010, p.191).
Entendemos, portanto, que Lukács percebe o movimento de exteriorização
do trabalho de forma dupla, isto é, o sujeito se aliena em um primeiro momento, para,
em um instante posterior, retornar a si próprio de forma não estranhada (retrocaptação).
É, por meio do trabalho, que o homem lança a sua subjetividade ao mundo, no intuito de
superar a distância que a separa das coisas, para que, enfim, possa conhecer os objetos
da natureza, dominá-los e submetê-los, por conseguinte, aos seus fins. Dessa feita, o
sujeito pode criar um bem útil à humanidade, que é, igualmente, incorporado à sua
existência subjetiva e objetiva, de forma que ele se vê no objeto produzido. Torna-se
este objeto, portanto, uma extensão de sua subjetividade, realizando a unidade sujeito-
objeto; movimento que suscita, por sua vez, a seguinte observação de Patriota: “Desse
modo, a subjetividade se faz objetiva na criação e a objetividade criada se faz
universalmente subjetiva em sua disponibilidade social” (PATRIOTA, 2010, p.192-93).
É possível, porém, que o sujeito crie um objeto que não corresponda às suas demandas
ou às da coletividade, o que o leva a não se reconhecer no objeto produzido, causando,
portanto, uma sensação de estranhamento e uma fratura na unidade sujeito-objeto.
144
Ao agir no mundo, por meio do trabalho, o homem manifesta ativa e
passivamente a sua generidade, pois busca uma utilidade social para o objeto por ele
produzido. Nesse sentido, Lukács retoma a ideia de Marx, contida nos “Manuscritos
Econômicos e Filosóficos” (2004), de que o objeto do trabalho é a objetivação da vida
genérica do homem, pois é, por meio dele, que o sujeito se duplica intelectualmente em
sua consciência, contemplando-se em um mundo criado por ele próprio. No sentido
oposto, o trabalhado estranhado retira do homem o objeto por ele produzido,
arrebatando-lhe a sua vida genérica, ou seja, sua real objetividade genérica. Ainda sobre
a noção de trabalho marxiana, Jesus Ranieri afirma que:
É nesse texto [“Manuscritos Econômicos e Filosóficos”] que o lugar do
trabalho como forma efetivadora do ser social é realmente exposta e
desenvolvida, algo que, até então, mesmo em Marx, não havia sido feito. É
nele que o conjunto das esferas da existência humana (desde o lugar da arte,
da religião, da filosofia, passando pela conceituação de liberdade, até as
formas concretas e imediatas de realização do trabalho) aparece como
dependente da esfera de produção - o trabalho é mediação entre homem e
natureza, e dessa interação deriva todo o processo de formação humana (RANIERI, Apresentação, 2004, p.14).
Ao longo do processo de formação e de evolução da humanidade, o homem
interage com a natureza transformando-a conforme as exigências da vida em sociedade.
A culturização de antigos desertos é um exemplo de tal processo, que transforma e
enriquece o homem e as suas relações com o ambiente e com os outros homens. A ideia
de conformidade ou de adequação acerca da relação metabólica do homem com a
natureza pode ser tomada no sentido de uma acepção prática, tal qual o exemplo citado,
e em uma acepção voltada à atividade estética, segundo Tertulian. Devemos ter em
mente que a estética de maturidade resgata a ideia de conformidade ao entender que a
missão da arte consiste em “(...) evocar a realidade em sua plena objetividade, mas da
perspectiva única de sua conformidade com as exigências humanas” (TERTULIAN,
2008, p.253). A acepção estética que Lukács pretende à ideia de conformidade é
descrita da seguinte maneira por Tertulian:
[...] como uma adequação do mundo (vista sob a forma de “troca material de
substância entre natureza e sociedade”) às exigências do homem tomado em
sua essência humana, como sua conformidade com os atributos - equilíbrio
ou perturbação, bem ou mal - da personalidade humana em sua integralidade
(TERTULIAN, 2008, p.253).
145
As considerações até aqui realizadas nos encaminham à afirmação de que o
movimento da subjetividade em direção à esfera estética será elucidado por meio da
retomada do processo metabólico do trabalho, de forma que os questionamentos
suscitados sobre o mundo da arte devem ser explicados a partir do princípio do processo
de humanização do homem, realizado por meio do trabalho. Nessa trilha, ao entender
que o sujeito, ao se relacionar com o entorno, passa a conhecer e a dominar o mundo ao
seu redor, bem como tem sua interioridade enriquecida, a “Estética” resgata a ideia de
Marx de que: “(...) o conhecimento de si do homem não ocorre sem o conhecimento do
conjunto de suas relações com o mundo” (TERTULIAN, 2008, p.253). Dito de outro
modo, Lukács assegura o elo e a correlação entre o ato de objetivação e o
desenvolvimento da sensibilidade humana, o que, transposto à criação artística, conduz
à afirmação de que a conexão estabelecida entre o conhecimento de si e o conhecimento
do mundo está no alicerce do equilíbrio entre objetividade e subjetividade no momento
da criação artística.
A partir dessas considerações, a temática sobre a qual dissertaremos na
próxima seção consiste no processo de criação artística e na relação entre objetividade e
subjetividade presentes neste mesmo processo.
2.5. A criação artística e a relação entre objetividade e subjetividade na
esfera estética
O problema da relação entre subjetividade e objetividade sempre ocupou um
lugar de destaque nas obras de Lukács, acompanhando-o desde a juventude até as suas
obras de maturidade. Acerca dessa questão, Tertulian tece as seguintes considerações,
referindo-se, mais especificamente, às ideias presentes no prefácio de “História e
consciência de classe”, redigido por Lukács, em 1967, quando o autor, já em 1930,
havia entrado em contato com os “Manuscritos econômicos e filosóficos”, de Marx:
O abandono da concepção de origem hegeliana que visa à identidade sujeito-
objeto ou a coincidência entre os atos de objetivação (Vergegenständlichung)
e de estranhamento (Entfremdung) e a revelação do fato de que a objetivação
146
é uma condição inelutável da prática social marcaram a passagem definitiva
para seu pensamento de maturidade (TERTULIAN, 2008, p.261).
O entendimento lukacsiano de que: “(...) nenhuma realização da subjetividade
tem uma chance de sucesso sem a consideração das séries causais objetivas
(TERTULIAN, 2008, p.261)” pode soar de forma estranha ou paradoxal no âmbito da
“Estética”, visto que a tônica do comportamento estético recai, justamente, na
intensificação da subjetividade. Todavia, em momento algum, a obra recusa tal
prerrogativa. Essa mesma questão também é colocada por Tertulian:
A coincidência no processo da atividade estética de dois movimentos
aparentemente divergentes, o mergulho na imanência da realidade objetiva e
a intensificação da subjetividade, poderia parecer a um espírito não prevenido
um simples artifício dialético, até mesmo um paradoxo, irrealizável na
intuição direta (TERTULIAN, 2008, p.252).
Para esclarecer esse paradoxo, devemos ter em mente a concepção
lukacsiana do fazer artístico, o qual exige, na obra de arte, a conservação da
objetividade do mundo, evocada de forma a amplificar e fortalecer a subjetividade,
intensificando, assim, a consciência de si do sujeito fruidor. À ideia da consciência de
si, soma-se o seguinte predicado: “(...) visa a região nuclear da personalidade humana,
aquela onde se decidem, do alto da plenitude, a sanção e a harmonização de todos os
acontecimentos da consciência” (TERTULIAN, 2008, p. 254).
Na “Estética”, a finalidade da arte consiste na amplificação da subjetividade,
processo que intensifica, assim, a consciência de si. Esta só pode ser alcançada quando
compreendida no interior de um movimento em que a consciência de si e a consciência
do mundo real estão indissoluvelmente ligadas, de modo que a intensificação da
consciência de si só é possível no contato com a realidade do mundo objetivo.
Objetividade e subjetividade estão, portanto, intimamente ligadas no processo estético,
dando sustentação à ideia de que: “A circularidade do movimento entre o conhecimento
de si e o conhecimento do mundo estaria na base do equilíbrio que flutua entre
subjetividade e objetividade na imanência da criação artística” (TERTULIAN, 2008,
p.255). Nesse sentido, o aparente paradoxo apontado por Tertulian é desfeito.
147
No segundo volume da “Estética”, mais precisamente na seção intitulada “A
exteriorização9 e sua reintegração no sujeito”, Lukács, no intuito de descrever o
processo de criação artística, toma de empréstimo a ideia de Hegel sobre “(...) o
movimento de “alienação” da consciência no mundo e de sua “reintegração”, pela volta
à consciência de si” (TERTULIAN, 2008, p.254). Tertulian afirma que a adoção de uma
tese do idealismo hegeliano pode suscitar algum estranhamento e, portanto, algumas
inquietações no leitor da “Estética”. A fim de esclarecer a questão, ele afirma que
Lukács a responde de um modo paradoxal, recorrendo à tese idealista que afirma não
existir objeto sem sujeito, a qual será válida para a esfera estética: “O que no plano
ontológico e epistemológico é construção especulativa de tipo idealista pode ser
considerado no plano estético uma descrição adequada da relação sujeito-objeto”
(TERTULIAN, 2008, p.256), pois não é possível qualquer criação artística
independente da ação do sujeito. Nesse sentido, a proposição de cunho idealista, que
postula que sem sujeito não há objeto, é fundamental na medida em que não pode
existir nenhum objeto artístico sem sujeito estético. Sobre essa questão, Lukács afirma:
Ao ser colocada a sua positividade estética, é introduzido, simultaneamente,
um sujeito estético, pois a essência estética do objeto consiste, como já dissemos recorrentemente, em evocar certas vivências no sujeito receptor por
meio da mimese, que é uma forma específica de reflexo da realidade objetiva.
Ao abrir mão dessa ideia, a formação estética deixa de existir como tal,
tornando-se um bloco de pedra ou uma tela, um objeto como qualquer outro,
que, sem dúvida, existirá como tal objeto independente de toda consciência,
de toda a subjetividade. A proposição não existe objeto sem sujeito se refere,
pois, exclusivamente, à natureza estética de tais formações (LUKÁCS, 1972,
vol. 2, p. 231, tradução nossa).
Tertulian expande o debate sobre a tese lukacsiana do processo de criação
artística aos moldes hegelianos. Nesse sentido, o autor afirma a tentativa de Lukács de
extrapolar a tese de Hegel sobre a exteriorização e a volta a si do sujeito na esfera
9 Acerca dos conceitos Entäusserung e Entfremdung, é importante ressaltar que, durante certo tempo,
ambos foram traduzidos para o português pelo termo alienação. Entretanto, atualmente, percebe-se que
alguns autores - Jesus Ranieri, Mario Duayer e Rubens Enderle - traduzem o termo Entäusserung por
alienação e Entfremdung por estranhamento; já autores como Leandro Konder, José Paulo Netto e Sergio
Lessa traduzem o termo Entäusserung por exteriorização e Entfremdung por alienação. Nesta tese, demos
preferência ao termo exteriorização, pois compreendemos que o termo alienação, usado na versão em
espanhol da “Estética”, essencialmente, quando Lukács fala sobre o processo de criação artística,
comporta uma dimensão positiva, no sentido da autoconstrução humana, em relação ao processo de
objetivação; já a noção de alienação comporta um caráter negativo resultante da concretização dessa
atividade, o que não se observa na criação estética.
148
estética ao afirmar a autonomia do objeto em relação ao sujeito. A passagem a seguir,
um pouco longa, mas necessária, reproduz o entendimento de Lukács sobre o processo
de criação artística e sobre os seus efeitos na “Estética”:
Segue-se, assim, na esfera estética, a íntima unidade da exteriorização e sua
retrocaptação (a volta a si do sujeito): a subjetividade se supera na
exteriorização e a objetividade na retrocaptação, de tal modo que o momento de preservação e elevação a um nível superior cobra certa preponderância no
complexo ato da superação. O efeito coincidente dos dois movimentos
resulta, assim, em algo unitário: um mundo objetivo conformado, como
reflexo da realidade, que sublinha em sua intenção a objetividade dessa
realidade de modo ainda mais enérgico do que aquele em que esta se impõe
nas impressões e nas vivências da cotidianidade; pois o que sempre se
apresenta ao espectador ou ao leitor é um grupo de objetos relativamente
pequeno, e esse fragmento tem que evocar no receptor a realidade como um
mundo objetivo e fechado ou completo, e isso em circunstâncias que parecem
mais desfavoráveis para o efeito da objetividade do que na cotidianidade,
pois lhes falta necessariamente a força de convicção do meramente factual, do factum brutum, visto que estão inevitavelmente colocadas como meros
reflexos, como formações miméticas que não podem conquistar uma
objetividade senão por meio de seu conteúdo e de sua forma. A entrega do
sujeito à realidade na exteriorização, sua imersão nela, produz uma
objetividade internamente intensificada. Entretanto, esta - e é tal o sentido da
retrocaptação no sujeito - está penetrada de subjetividade por todos os poros,
e precisamente de uma determinada subjetividade onde nada mais é
adicionado, nenhum comentário, nem sequer uma atmosfera que envolva os
objetos, [essa objetividade internamente intensificada] é, senão, um momento
integrante de sua própria objetividade, um elemento inseparável de seu ser-
assim, ou melhor: é o seu próprio fundamento (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.
238, tradução nossa).
Lukács desenvolve a ideia de que o sujeito estético exterioriza a sua
subjetividade ao mundo objetivo, a fim de que, em um momento posterior, reabsorva-a,
refletindo, por meio dela, o próprio mundo objetivo. Na unidade estética de sujeito e
objeto, o momento primeiro da exteriorização da subjetividade está voltado a descobrir
e a dar sentido àquilo que é essencial em cada caso à humanidade no mundo dos
objetos. Já o segundo momento, o da reabsorção da subjetividade (retrocaptação), vem
esboçado como a configuração do mundo dos objetos pela subjetividade é elevada à
condição de particularidade, o que gera um movimento em que a objetividade se supera
na absorção ao passo que a subjetividade se supera na exteriorização. Esse conjunto de
noções privilegia um entendimento da atividade de criação artística relacionado à
habilidade do artista de discernimento de movimentos reais e essenciais presentes nas
relações sociais de determinada quadratura histórica, de forma que esses conteúdos
essenciais têm de revelar o seu núcleo humano por meio de uma forma adequada.
149
De acordo com Lukács, há, no plano da vida cotidiana, um materialismo
espontâneo dos homens. Nesse sentido, para sobreviverem, os sujeitos precisam
diferenciar, da maneira mais precisa possível, aqueles conteúdos que não existem mais
do que em sua representação e daqueles que existem independentemente de sua
consciência. Transposto esse entendimento para o plano estético, a arte - entendida
como produção humana ou como meio de o sujeito se objetivar diante de problemas de
caráter mais complexos do que aqueles voltados aos da sobrevivência imediata - não
pode ignorar esse materialismo espontâneo, pois o artista deve selecionar, entre a
mobilidade dos fenômenos da vida concreta, aqueles conteúdos que hierarquicamente se
diferem da aparência imediata, pois estão intimamente ligados ao desenvolvimento do
gênero humano. A saber, é exigido do artista, por conseguinte, que encontre e selecione,
dentre os conteúdos heterogêneos dispersos no plano da vida cotidiana, os elementos
essenciais que representarão a realidade concreta.
Nesse sentido, cai por terra a noção aristocrática irracionalista de gênio
postulada na estética de juventude, pois o artista não deve ser um ente alheio à
necessidade social da arte, pois se exige dele que a subjetividade se erga para além da
imediaticidade do plano da vida cotidiana no intuito de captar as contradições essenciais
de seu tempo ao mesmo tempo em que permaneça no seio das tendências humanas
essenciais e transformadoras de seu tempo: “Por isso, a substancialidade da obra
depende de que o sujeito criador reconheça em si mesmo a substância humana concreta,
determinada” (CARLI, 2012, p. 129). Lukács retoma, assim, a afirmação do escritor
russo Gorki10 que diz que uma obra rica depende de uma vida igualmente rica.
A partir das considerações de Lukács, voltamos, portanto, à discussão
acerca da objetividade e da subjetividade na esfera estética, especialmente, acerca da
questão da conversão da subjetividade em objetividade e vice-versa no processo de
criação artística. Tal retorno é necessário para que entendamos a importância dessa
conversão no devir do fazer artístico. Tertulian esclarece a questão:
Lukács tem, principalmente, o mérito de esclarecer que o desenvolvimento e
a amplificação da emoção inicial no processo de criação são devidos a uma
espécie de despossessão de si ou de rejeição de si do sujeito, para deixá-lo
10 Máximo Gorki (1868 - 1936) foi jornalista, romancista, dramaturgo, contista e ativista político russo. É
considerado um dos grandes nomes da literatura do século 20 e um dos autores mais encenados no mundo
todo.
150
fundir na realidade objetiva, até o reencontro de si - pela anulação do
movimento de alienação - de um sujeito modificado em contato com a
objetividade (TERTULIAN, 2008, p. 258).
A objetividade no fazer estético adquire suma importância visto que a
atividade artística somente pode ser realizada por meio da conquista do mundo objetivo.
A partir de então, a missão da arte de amplificação da subjetividade e da consciência de
si torna-se possível; função esta resultante de um processo em que objetividade e
subjetividade estabelecem uma relação profícua e peculiar que configuram e perfazem o
processo artístico: “A impregnação da subjetividade pelos atributos do mundo objetivo
determina, na combustão da criação artística, não sua reabsorção ou sua anulação na
objetividade, mas, ao contrário, sua verdadeira eclosão” (TERTULIAN, 2008, p. 263-
64). Se optarmos, por exemplo, pela abstração da apropriação subjetiva no fazer
artístico, teríamos, segundo Carli, Sófocles e Eurípedes produzindo absolutamente a
mesma obra, o que não ocorreu, pois cada um desses autores reabsorveu o mundo dos
objetos de formas diversas. Nesse sentido, a ênfase dada ao momento subjetivo dessa
esfera se mantém, pois Lukács compreende que a obra de arte - como objeto que se
caracteriza por corresponder às demandas dos homens - adquire sentido apenas a partir
das experiências do receptor. Sobre a questão, Patriota tece as seguintes considerações:
Não há dúvida de que a objetividade estética se diferencia também da
objetividade teórica, a qual se impõe pela sua referência direta - correta ou
falsa - a um mundo que existe por si e cuja relação com o sujeito é de caráter
antropomorfizador (PATRIOTA, 2010, p.200).
Ao compreender que, na esfera estética, a subjetividade e a objetividade são
simultaneamente intensificadas para que se possa ir além da própria cotidianidade,
Lukács aponta para uma questão importante; a de que a mimese11 possui uma dupla
intenção, pois comporta momentos voltados à subjetividade e à objetividade. Tal
fenômeno ocorre porque a arte não pode ser, apenas, uma projeção de sentimentos e de
individualidades que não encontram correspondência na vida dos homens, pois: “O
mundo da arte é eficaz apenas porque expressa possibilidades inerentes ao objeto real e,
desse modo, finalidades humanas possíveis” (PATRIOTA, 2010, p.197). Sob essas
11Nos resumiremos, aqui, a mostrar de que forma a mimese se relaciona à questão da objetividade e da
subjetividade no processo de criação artística. Mais adiante, realizaremos uma exposição detalhada sobre
a ideia de mimese na “Estética”.
151
considerações, a mimese adquire, na estética lukacsiana, uma formulação inovadora que
revela, ao mesmo tempo, novos conteúdos. O sentido dessa afirmação é revelado ao se
garantir que a essência realista das obras de arte é algo congênito aos objetos estéticos
dos mais variados contextos e tempos históricos e não, apenas, uma questão de estilo. A
ideia de realismo lukacsiana compreende, desse modo:
[...] tanto aquela aproximação máxima à objetividade, entitativamente em si,
do mundo objetivo - que pudemos registrar aqui como conteúdo do
movimento de exteriorização - quanto a subsequente fixação da imediatez
sensível dos fenômenos. Dessa forma, são fixados, certamente, mais do que
dois polos da universalidade do realismo no âmbito da arte, a saber: de um
lado, a fidelidade ao ser e à essência do objeto, a sua conexão de cada caso, a
sua totalidade de cada caso; de outro lado, a volta da imediatez da vida, na
medida em que todo objeto se impõe inseparavelmente de seu modo de manifestação sensível-imediato (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 238, tradução
nossa).
A ideia lukacsiana de que toda grande arte é realista percorre seu
pensamento de maturidade e se justifica pelo seu entendimento da obra de arte: “(...) o
estético não é aqui mais que um intensificado modo de manifestação da própria vida,
um modo em que o essencial é intensificado e destacado” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.
242, tradução nossa). A partir dessa afirmação, não se pode fugir ou, até mesmo, negar a
noção de que o reflexo estético consiste em refletir na obra de arte os conteúdos que
fizeram e fazem parte da vida dos homens, o que torna toda a arte autêntica um reflexo
justo e fiel do automovimento da evolução humana.
A discussão resvala, portanto, na ideia do partidarismo na criação artística.
Para Lukács, não existe arte neutra, pois todo processo de criação comporta uma tomada
de posição, ou seja, de partido, do artista em relação aos episódios e às tendências
observáveis na realidade. Se a arte é mimese, ou seja, é a imitação da vida, e se Lukács
imputa ao objeto estético a construção de uma realidade similar ao real, estruturada de
forma concreta e, também, sensível, de modo que, através dessa estrutura sensível, a
obra tem de revelar um conjunto de determinações essenciais, isto é, de conteúdos
humanos que excedem o plano habitual da percepção cotidiana; é, portanto, necessário
que a subjetividade artística se lance à:
[...] realidade abertamente, sem concepções a priori, mas ao mesmo tempo
interessada, com motivações - conscientes ou não - inseparáveis de um dado
ponto de vista pessoal - não meramente particular e subjetivo - acerca das
coisas (PATRIOTA, 2010, p. 206).
152
Desta feita, não se deve recair na ideia de partidarismo como literatura
panfletária, ou mesmo, como um desvio politicista, deve-se ter em mente o fundamento
ético intrínseco ao ato de composição artística. Nesse sentido, Carli retoma o
pensamento de Lukács sobre a questão:
Contemplada eticamente, a criação artística impõe ao homem uma decisão
sobre a posição - de alheamento ou de inserção - a ser tomada perante a
realidade concreta. Isso quer dizer que o sujeito criador chega ao
reconhecimento de sua substancialidade humana quando realiza a justa proporção entre o externo e o interno, a alienação e a reabsorção, a liberdade
inventiva e a necessidade social da arte, ponderando sobre ela em cada uma
de suas decisões (CARLI, 2012, p. 129).
Lukács busca, portanto, o entendimento do artista como um sujeito que tem
o papel de construir um mundo cuja estrutura consiste, essencialmente, na reprodução
justa e fiel da realidade, apesar dos conteúdos individuais do artista, isto é, suas crenças
políticas, seus valores, sua ética, etc, estarem, muitas vezes, em total desacordo com as
situações típicas que ele pretende figurar em sua obra. Essa noção reforça o empenho
lukacsiano em justificar a ideia de que:
É um preconceito moderno a suposição de que essa onipresença da tomada de
posição, [...], subjetiviza as obras de arte. O caminho que passa pela
exteriorização e leva à sua retrocaptação é estritamente o oposto do
subjetivismo (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 242, tradução nossa).
A discussão sobre objetividade e subjetividade no processo de criação
artística conduz Lukács ao seguinte questionamento: É possível, na esfera estética,
algum princípio que encaminhe o sujeito para além da mera subjetividade da
cotidianidade, ou ainda, para além da particularidade de sua singularidade sem que se
perca, ao mesmo tempo, a subjetividade característica de tal esfera? A fim de buscar o
princípio supracitado, o autor dirige a sua argumentação para a noção de gênero
humano, consciência e consciência de si do gênero humano (autoconsciência do gênero
humano).
2.6. Do indivíduo particular à consciência de si do homem como gênero
humano
153
De acordo com Tertulian, a análise das noções de gênero humano,
consciência e consciência de si do gênero humano (autoconsciência do gênero humano)
nas obras de maturidade de Lukács consiste em uma das tarefas mais inovadoras e
elevadas do seu pensamento. Por esse motivo, faremos uma exposição de tais noções,
apontando de que modo elas se apresentam na “Estética” e, por fim, exporemos o papel
que assumem na referida obra.
A fim de esclarecer o sentido da ideia de consciência do gênero humano,
Lukács recorre à oposição estabelecida entre os chamados marxistas reformistas, como
Eduard Bernstein12, e os marxistas revolucionários. Tal oposição consiste na
dissociação do objetivo final do proletariado em relação ao movimento dessa mesma
classe, isto é, são colocadas em primeiro plano as reivindicações mais imediatas dessa
classe em detrimento do que seriam as grandes opções revolucionárias, as quais são
submetidas a um plano secundário, de acordo com Bernstein. Para Lukács, tal processo
é problemático, pois consiste em uma tentativa de opor metafisicamente aquilo que é
transitório ao que é perene na ação da classe proletária, de modo a excluir desta tudo
que possui alguma relação com os grandes interesses da humanidade. O autor, portanto,
recusa a dissociação pretendida por Bernstein, e, ao fazê-la, procura tornar sensível a
consciência do gênero humano como realidade constitutiva do movimento da classe
proletária. A síntese desse raciocínio nos é oferecida por Tertulian e pode ser colocada
do seguinte modo: “(...) os traços que pertencem à espécie humana e seu complemento,
a consciência de si como espécie, não têm existência autárquica, de tipo supra-histórico,
mas são os produtos imanentes do devir histórico” (TERTULIAN, 2008, p. 264).
A ideia de autoconsciência tem como conteúdo aquilo que é duradouro e
significativo na vida e na evolução da espécie humana, de forma que, na obra de arte,
quando se atinge essa autoconsciência, é materializada uma unidade entre os conteúdos
particulares do artista e aqueles que estão no âmbito do gênero, o que resulta em uma
capacidade de evocação que supera qualquer limitação circunscrita a um tempo ou a um
espaço determinado. É possível observar, na “Estética”, que a ideia da autoconsciência
do gênero humano pressupõe uma relação indissolúvel entre historicidade e
universalidade, o que leva o autor a depreender deste aspecto a associação entre três
12 Eduard Bernstein (1850-1932) foi um escritor social-democrata alemão, que se tornou amplamente
conhecido quando, no fim do século passado, pretendeu uma revisão dos fundamentos do marxismo.
154
fatores: a) aquilo que constitui os caracteres do gênero humano, b) o condicionamento
histórico e espacial e c) a evolução concreta das formações sociais, como família ou
classe, por exemplo.
Na esfera estética, o histórico e o universal estabelecem uma relação
indissolúvel enquanto se pretende distinguir os produtos espirituais que apresentam
traços transitórios daqueles que compõem os traços essenciais e, portanto, duráveis da
humanidade como gênero. Nesse sentido, Lukács persegue um critério objetivo para tal
distinção, que consiste em uma escala de gradação das hierarquias da subjetividade.
Vejamos de que modo Tertulian aborda e dá prosseguimento à questão:
Quando falamos da escala de gradação das hierarquias da subjetividade
estabelecida por Lukács, pensamos que uma distinção tão importante do
ponto de vista da relação estética quanto operada entre as obras “literárias”
(Belletristik) devidas às preocupações morais e sociais imediatas e às verdadeiras e puras obras de arte que a memória da humanidade incorpora,
como tais, em seu patrimônio supõe que as primeiras sejam inevitavelmente a
expressão de uma subjetividade situada no estágio da particularidade (de
grupo, de classe, nacional etc.), enquanto as segundas exprimem a
consciência de si da humanidade em um certo momento de sua evolução.
[...]. A originalidade das análises de Lukács está em que ele liga ao ato da
mimese, ao processo de alienação de si e de reintegração em si no curso do
qual a subjetividade sofre uma confrontação extremamente intensa com as
dimensões objetivas do real, o movimento de purificação e de amplificação
da subjetividade, até a constituição de uma experiência significativa para o
destino do homem como espécie (TERTULIAN, 2008, 267).
No que consiste, então, a ideia de gênero ou de espécie humana?
Remontando as teses de Marx, Lukács afirma que os traços do gênero humano são
continuamente ampliados e enriquecidos através das várias modificações advindas da
relação metabólica entre sociedade e natureza. Soma-se a isso a ideia de que as ações
empreendidas pelos sujeitos estão circunscritas, invariavelmente, ao interior de grupos
sociais - como família, classe, nação, etc -, mas repercutem, entretanto, na generalidade
da espécie humana, levando Lukács a afirmar que: “O homem confirma sua real vida
social como consciência da espécie” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 249, tradução nossa).
Esse conjunto de noções conduzirá a discussão para a seguinte afirmação:
“A natureza da espécie da humanidade aparece sob a forma de um corpus de
características em perpétuo devir, acolhendo as experiências decisivas, positivas ou
negativas, da humanidade nas diversas etapas de seu desenvolvimento” (TERTULIAN,
155
2008, p. 267). Em vista dessas concepções, pode-se dizer que, na “Estética”, há uma
base suficientemente sólida que sustenta a ideia de que a experiência estética fornece
um material de pesquisa absolutamente rico para o conhecimento da espécie humana e
da presença da consciência de espécie da humanidade.
O movimento de intensificação da subjetividade pela mimese resulta na
revelação daquilo que há de “humanidade”, no sentido universal do termo, nos
conteúdos com os quais o artista se depara no momento da criação das obras. Ao serem
revelados, estes se tornam princípios norteadores e organizadores do processo de
criação do objeto estético. Dessa forma, podemos dizer que o artista, ao criar o objeto
estético e o mundo contido neste, não pode, de maneira alguma, ser caracterizado como
um indivíduo circunscrito à sua particularidade imediata, pois, somente a partir da
superação desta, é que o sujeito pode elevar as formações miméticas, por ele elaboradas
subjetivamente, à altura da objetividade requerida pela esfera estética. Essa ideia é uma
das marcas da “Estética” no que tange à questão da grande arte, pois o objeto artístico
de alto valor se distingue daquele de valor menor a partir da presença e do quantum de
consciência de si do gênero humano que o objeto artístico contém em si. As obras de
arte que se propõem a satisfazer as inclinações de grupos sociais ou de subjetividades
individuais são emolduradas, por Lukács, no âmbito do agradável.
A pergunta que surge a partir das considerações tecidas é a seguinte: De que
forma o artista pode perceber que atingiu em sua obra o grau da consciência de si com
valor de universalidade? O próprio Lukács garante a impossibilidade dessa percepção
pelo artista, resgatando a máxima de Marx “eles não sabem, mas fazem-no”. Muitas
vezes, o artista possui e persegue tal vontade na realização do objeto, mas não atinge em
sua obra o status da consciência de si com valor de universalidade. É, somente, ao longo
do decurso histórico, que podemos perceber as obras de arte que permanecerão e
aquelas que cairão no esquecimento. Nesse sentido, podemos arriscar a afirmação de
que, até então, o decurso temporal não falhou em nos mostrar se as experiências dos
heróis romanescos, por exemplo, atingiram certo status elevado, traduzido pelo alcance
da representação da condição humana em sua generalidade.
Romances de Balzac, Cervantes ou Machado de Assis perduram até os dias
atuais pela sua capacidade de plasmar os destinos humanos de forma atemporal,
156
condensando uma gama de traços humanos recorrentes nas mais diversas sociedades,
dos mais diversos tempos e lugares, alçando os destinos particulares de seus heróis às
experiências que se relacionam às condições humanas universais. Lukács exemplifica
essa questão ao retomar o que chama de “proféticas figuras” de Balzac, afirmando-o um
artista que conseguiu desenvolver e representar realisticamente características essenciais
da ascensão da sociedade burguesa francesa, no século XIX, a partir de traços
recolhidos na época da monarquia burguesa. Nesse mesmo sentido, resgata o caso de
Eurípedes, na figura de Fedra, e o de Dido, de Virgílio, observando que, em tais
personagens, pode-se observar uma elevação da paixão amorosa particular à altura do
gênero humano muito antes que tal paixão se tornasse um fenômeno social comum aos
indivíduos. Nesses momentos da criação artística, Lukács identifica nos artistas a
consciência de si do gênero humano, de modo que é possível afirmar que: “(...) a arte é
capaz de expor o latente à atualidade, de emprestar ao que é silencioso na sociedade
uma inequívoca expressão evocadora e compreensível” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 268,
tradução nossa).
Vale ressaltar, a partir das considerações precedentes, que a arte, portanto,
não se mantém, somente, no âmbito da mera singularidade, isto é, dos fatos e objetos
empíricos imediatos, mas os transcende, alçando-os ao domínio da universalidade. Isto
é, os objetos e fatos singulares são apreendidos e refletidos naquilo que possuem de
universal para o ser social enquanto uma totalidade histórica. Dessa forma, a arte eleva
o singular ao universal sem, contudo, eliminar, no momento de tal elevação, a dimensão
singular dos conteúdos que visa materializar. O reflexo artístico preserva, por
conseguinte, o singular na universalidade; aspecto que corrobora a ideia lukacsiana da
particularidade como categoria central da esfera estética. É nesse sentido, ainda, que o
típico torna-se a modalidade de reflexo da arte, visto que os objetos estéticos não lidam
com generalizações abstratas na forma de leis, mas com tipicidades; de modo que
determinações, leis ou possibilidades presentes na vida social são sintetizadas pela
subjetividade criadora e plasmadas em forma de indivíduos, destinos e ações que se
tornam elementos típicos da vida social. Tais elementos são compostos, portanto, por
uma subjetividade estética que, ao evocar o mundo, alcança a perspectiva da
consciência de si da humanidade em um momento particular de sua evolução. Acerca da
ideia de tipicidade, nos ateremos, posteriormente, com mais detimento.
157
A respeito das representações artísticas que se alçam a um status de obras de
grande valor, e, ao se referir, precisamente, à distinção das obras de Shakespeare em
relação às produções artísticas de seus contemporâneos, Tertulian resgata a ideia
lukacsiana de que:
Se essa obra culminante se separa das outras produções contemporâneas,
situadas em níveis inferiores, é porque a subjetividade estética do artista
chega, em sua evocação do mundo, à perspectiva da consciência de si da
humanidade em um estágio determinado de sua evolução. Individualidade e
universalidade se combinam em uma perfeita fusão. As transformações que a ação sintética da criação artística impõem à matéria artística se explicam
precisamente pela missão da grande arte em encarnar a consciência de si da
espécie humana (TERTULIAN, 2008, p. 271).
Percebe-se, na “Estética”, a tentativa de Lukács de construir um
fundamento objetivo ao acesso que a subjetividade particular da esfera estética possui
ao materializar nas obras de arte a autoconsciência do gênero humano. É uma
preocupação, portanto, da estética de maturidade elucidar o momento de objetividade na
subjetividade estética, o qual só é alcançado quando: “(...) sem abandonar a
historicidade de suas experiências, ela [subjetividade estética] deixa transparecer, sob a
forma de consciência de si, a própria substância humana em sua universalidade”
(TERTULIAN, 2008, p. 272). Como mencionado em momentos anteriores, o
movimento de transfiguração da subjetividade particular do artista em subjetividade
estética é um processo difícil de ser captado, pois não há nenhum critério concreto que
garanta a autossuperação da particularidade do artista, o que motiva Lukács a citar
algumas dificuldades no que tange a essa captação, bem como o motiva a acentuar que o
êxito deste processo depende da capacidade do artista de:
[...] apagar de si mesmo os conteúdos que lhe são meramente particulares, de
encontrar e expor em si mesmo o específico e fazê-lo, assim, vivenciável como a essência de sua própria personalidade, como centro organizador de
suas relações com o mundo, com a história, com o momento dado do
processo evolutivo da humanidade e com a perspectiva desse movimento - e
tudo isso como expressão profunda do reflexo do mundo (LUKÁCS, 1972,
vol. 2, p. 258, tradução nossa).
É impossível identificar um critério objetivo e seguro para distinguir, no
processo acima descrito, quais reflexos vividos da realidade pertencem, meramente, à
subjetividade particular do artista e quais correspondem à subjetividade da consciência
do gênero humano. Nesse sentido, duas questões relacionadas ao processo de criação
158
artística se impõem: Para quem é útil saber de que modo um artista vê o mar ou uma
floresta, por exemplo? e O que há nestes que possa ser interessante ou necessário para o
receptor? A partir dessas considerações, Lukács afirma a importância da seleção do
tema ou motivo para o destino de toda obra de arte, aspecto discutido também no
epistolário de Goethe e Schiller. Para esses autores, a seleção do tema da composição
artística pode impulsionar a obra ao alcance da consciência do gênero humano ou ao seu
distanciamento, bem como pode auxiliar ou não o artista a superar a sua própria
particularidade no fazer artístico. Balzac é citado, na “Estética”, para ilustrar a questão:
“(...) a subjetividade particular de Balzac era a de um normal e inteligente legitimista;
sobre essa mera base teria sido impossível criar uma comédia humana, representar
ampla e definitivamente uma importante crise na transição da espécie humana”
(LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 260, tradução nossa).
A relação entre a consciência individual e a consciência da espécie humana
e a identificação dessa transmutação é deveras complexa, pois a consciência do gênero
humano nunca está dada de modo imediato e subjetivo, no máximo, de modo
antecipatório e utópico. No sistema capitalista vigente, o homem vive de modo imediato
suas vinculações sociais, ou seja, as relações estabelecidas com a família, classe, tribo,
nação, etc; entretanto, esse mesmo sujeito não vive de modo imediato a humanidade
como unidade da espécie. Nesse sentido, a esfera estética tem uma atuação importante,
pois reconecta os homens ao seu pertencimento ao gênero humano e, consequentemente
à evolução humana. Apesar das produções artísticas possibilitarem uma ativação da
consciência do gênero humano de forma antecipatória e utópica, Lukács ressalta que
“(...) é próprio da essência da arte não ser utópica” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 261,
tradução nossa); esclarecendo que para a grande maioria dos gêneros artísticos e das
obras não existe a possibilidade de: “(...) representar a perspectiva de futuro salvo como
direção de movimento, mais ou menos visível, sempre apenas indicado, do presente ao
qual dá forma” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 261, tradução nossa). A passagem
precedente é esclarecedora no que tange às características e missões da esfera estética.
Reproduzimos a seguir um trecho do texto “O problema da perspectiva”, apresentado
por Lukács, em 11 de janeiro de 1956, em Berlim, em razão do IV Congresso de
escritores alemães, que versa sobre o tema então discutido:
159
Marx disse que um verdadeiro passo no movimento vale mais do que o
melhor programa formulado. A literatura tem algum valor - e, por
conseguinte, vale muito - quando traduz em forma um passo real do
movimento. Se, em vez disso, ela apresenta como realidade o que é apenas
um postulado programático, ela falha completamente em sua verdadeira
missão (LUKÁCS, 1970, p. 465, tradução nossa).
Lukács deixa bastante claro que à arte não é exigida nenhuma visão
antecipatória do movimento da sociedade, mas não se deve negar a possibilidade desse
mesmo movimento ser revelado em algumas produções. Pensemos em obras
emblemáticas da ficção científica, como “1984”, de George Orwell; Nós, de Yevgeny
Zamyatin; ou, até mesmo, “O conto da aia”; redigido por Margaret Atwood. Se, de certa
forma, essas produções refletiram e revelaram perspectivas de cenários futuros,
antecipando conteúdos desses mesmos cenários, não devemos tomar como missão da
arte a revelação dessas perspectivas. O que se pode inferir é que a obra de arte, ao
incutir no homem a autoconsciência de si do gênero humano, reconectando-o a todo
processo evolutivo da humanidade (passado e presente), pode fazer com que o sujeito
tenha tanto uma vivência mais enriquecida dos conteúdos da espécie quanto uma
disposição anímica mais acentuada que o possibilite apontar certos traços da evolução
humana futura. Se o artista reúne em sua subjetividade vivências estéticas enriquecidas,
não se deve negar que ele pode captar tendências sociais que o rodeiam e materializá-las
em suas obras.
Sobre alguma exigência da esfera estética de antecipar perspectivas futuras,
Lukács resgata os poemas “proféticos” de autores como Schiller, Blake ou Shelley para
contrapor essa demanda. Para o filósofo, essas obras não exprimem, essencialmente,
uma realidade futura e existente como tal, elas expressam, sobretudo, o desejo do
homem de torná-la realidade e suas previsões sobre o que o futuro pode reservar. Nesse
sentido, afirma que: “Os traços concretos das formações estéticas têm suas raízes e seu
objeto no sujeito, e este é produto concreto, concreto componente de seu próprio
presente, de seu concreto hic et nunc histórico-social” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 263,
tradução nossa). A partir dessas considerações, pode-se dizer que a confirmação
artística objetivada de um comportamento utópico não é, portanto, para Lukács,
nenhuma utopia ou uma exigência da esfera estética, senão, produto de um processo que
160
tem como centro um sujeito que é produto de determinada quadratura histórica e
filosófica. Em passo conclusivo, resgatamos as considerações de Patriota sobre Lukács:
Nenhum artista, a seu ver, tem a obrigação de oferecer corretas projeções
para o futuro, mas sim de captar e conformar esteticamente aspectos
essenciais de uma realidade presente, aspectos que reúnem em torno de si os
destinos possíveis de um tempo vivido (PATRIOTA, 2010, p. 251).
Se as obras de arte não têm como missão antecipar uma realidade que está
por vir ou, até mesmo, prevê-la; meios como os jornais, a ciência ou a filosofia são
capazes, de acordo com o autor, de antecipar conceitualmente, ainda que por meio de
previsões abstratas, a realização de perspectivas futuras. A ciência pode, por exemplo,
descobrir perspectivas verdadeiras da evolução futura, segundo Lukács.
[...] se o pensamento utópico, em um amplo sentido histórico-universal, empreende precisamente a direção do caminho evolutivo da humanidade, a
antecipação utópica cobra uma forma espiritual crescente (LUKÁCS, 1972,
vol. 2, p. 261, tradução nossa).
A passagem supracitada endossa, de acordo com Lukács, o movimento que
ocorre em relação às declarações dos direitos humanos das grandes revoluções
burguesas, ou mesmo, aquilo que ocorre com as profecias de grandes utopistas, como
Fourier e Morus, tal qual o que se dá com autores como Marx, Engels e Lenin.
As correntes de pensamento supracitadas, indubitavelmente, exerceram
influências sob a teoria estética, de modo que, em muitos momentos, fora a ela atribuído
o modelo científico ou o filosófico, traduzido por um rebaixamento da individualidade
humana. As tensões e os conflitos que preenchem a vida do homem bem como os
sentimentos e ações desencadeados por estes foram relegados a um nível secundário,
implicando, assim, um aumento da abstração daquilo que podemos considerar o
universalmente humano nas obras de arte. As críticas dirigidas por Lukács às
vanguardas, ao longo de sua trajetória intelectual, estão intimamente ligadas à questão
citada, de modo que podem ser sintetizadas, em linhas bastante gerais, pela passagem
abaixo:
[...] o conteúdo desprovido de toda concretude, de toda matéria viva verdadeira não pode gerar mais do que um cosmopolitismo sem perfil, uma
solipsista imagem desesperada etc. A orientação direta, unilateral,
eliminadora das complicações reais em relação a tudo que é específico do
161
homem tem, assim, que empobrecer e deformar precisamente o conceito e a
imagem da humanidade (LUKÁCS, 1972, vol.2, p. 262, tradução nossa).
A ideia de universalmente humano presente na “Estética” carrega uma
noção de movimento, de continuidade, de modo que uma visão estática, idealista e pré-
fixada das realizações da humanidade concebidas a priori é incompatível com a noção
que Lukács estabelece acerca dessa ideia. Para o autor: “Ao determinar a arte como
autoconsciência da evolução da humanidade, situamos ao centro o momento da
continuidade” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.295, tradução nossa). À noção de
continuidade não se pode atribuir, de maneira alguma, um caráter teleológico, de forma
que ela se traduz, assim, por ser uma evolução real, visto que “(...) se trata antes de tudo
da continuidade da autoconsciência do gênero humano, ou seja, do aspecto subjetivo -
embora não particular e individual - do que factualmente tenha ocorrido” (LUKÁCS,
1972, vol. 2, p.295, tradução nossa). O reflexo estético, portanto, envolve a
materialização da continuidade da evolução da humanidade no objeto artístico, de forma
que cada subjetividade criadora plasma na obra produzida o aqui e agora de um
momento dado, o qual porta em si a ideia de continuidade presente no reflexo artístico.
Este momento específico figurado na obra não manifesta, apenas, um ponto mais ou
menos abstrato da evolução humana, mas um ponto que se traduz por compor um
sistema próprio, um mundo fechado em si, em que a vivência concreta - ampliada e
aprofundada, imediata e intensiva - forma a essência do comportamento estético.
A ideia de continuidade também está ligada ao seu contrário, isto é, à noção
de descontinuidade. Se, na obra de arte, são plasmadas as personagens e as ações, bem
como os destinos substanciais e típicos de um momento específico da evolução da
humanidade, ou seja, se estes são o conteúdo e a missão da grande arte; à medida que as
sociedades se desenvolvem e evoluem, esses conteúdos podem requerer uma forma
particular para sua expressão. Afinal, para Lukács, toda forma é a forma de um
conteúdo determinado. Aqui, precisamente, se coloca a questão da continuidade e da
descontinuidade suscitada pelo autor, pois determinados gêneros ou tipos de arte podem
desaparecer enquanto outros podem surgir. A resposta para tal fenômeno é dada ao se
observar que a evolução global está baseada no desenvolvimento produtivo, aspecto que
explica por qual motivo um gênero ou um tipo de arte predomina em alguns momentos
e em outros permanece nas sombras ou desaparece. O nascimento do gênero romanesco
162
e a dissolução da épica clássica representam tal fenômeno. Apesar da possibilidade de
descontinuidade, Lukács garante que os gêneros possuem uma extraordinária
estabilidade, de modo que:
[...] uma vez constituídos, apresentam uma grande tenacidade, resistência e,
ao mesmo tempo, capacidade evolutiva dos princípios que os fundamentam.
[...] Não houve o nascimento de nenhum novo gênero literário junto à lírica, à épica e ao drama, nem arte plástica nova junto à pintura, à escultura e à
arquitetura. (A única arte realmente nova é o cinema) (LUKÁCS, 1972, vol.
2, p.303, tradução nossa).
Essa afirmação valida a ideia de que o nascimento e a morte dos gêneros
estão intimamente ligados a questões histórico-sociais. Soma-se a isso o fato de que os
gêneros que nascem ou que desaparecem - como a dissolução da épica e a ascensão do
romance - podem estar relacionados em questões de princípio. Lukács discorre
longamente sobre esse ponto em “A Teoria do Romance” (1914-15), defendendo a
hipótese de que o gênero romanesco assume, no mundo contemporâneo, o status de
épico moderno. A representação do herói e de seu destino na épica clássica foram, a
partir da dissolução da quadratura histórico-filosófica presente na Grécia Antiga,
substituídas por um outro tipo de representação artística - o romance -, que se propõe,
também, a figurar a trajetória do herói; entretanto, o destino de um herói problemático,
que não mais vive o momento histórico de Homero, mas é fruto de uma nova
configuração histórica, a qual dá ensejo para o nascimento de um novo gênero. Não se
pode negar, portanto, que a argumentação de Lukács entende que alguns gêneros podem
estar relacionados em seus próprios fundamentos estéticos, ou seja, eles pretendem
representar conteúdos semelhantes - a trajetória do herói, por exemplo - apesar de tal
criação se dar em momentos históricos diversos.
2.7. O processo de criação e a noção de meio homogêneo
Em momentos anteriores, mencionamos e discutimos diversos aspectos
relacionados ao processo de criação artística, como as noções de objetividade e
subjetividade. Neste momento, teceremos algumas considerações acerca da ideia de
meio homogêneo, aspecto igualmente ligado ao processo de criação e importante na
163
estética de maturidade, pois diz muito sobre a compreensão de Lukács acerca do fazer
estético, aspecto que contribuirá, também, para a nossa compreensão do tema do tema
da utopia na “Estética”. Como já mencionamos anteriormente, a obra de arte plasma a
consciência de si da humanidade em um determinando momento do decurso histórico.
A partir dessa afirmação, abre-se uma margem para que seja atribuído um caráter
marcadamente representativo do objeto artístico, isto é, que: “(...) a sua individualidade
se tornará o simples ponto de interferência das correntes espirituais e das tensões
morais, num momento dado da história” (TERTULIAN, 2008, p. 272). De certa
maneira, estamos falando da possibilidade da obra de se tornar, somente, um
receptáculo de tendências e ideais históricos, o que suplantaria, desse modo, a
singularidade estética do artista; noção recusada por Lukács, uma vez que ele
compreende que:
[...] toda a descoberta artística, mesmo quando o ponto de vista de uma
consideração abstrata do conteúdo converge com os resultados científicos,
tem algo que os ultrapassa especificamente, e isso é de fato o que converte a
mera percepção de algo, até então não observado, em uma inovação artística.
[...] o conteúdo de tais descobrimentos vai desde novas iluminações da alma humana até a visão de novos caminhos da evolução da humanidade
(LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.346, tradução nossa).
Para ampliar esse debate, é necessário que versemos sobre a ideia de meio
homogêneo; noção que não é entendida como uma lei exterior ou física que permeia o
objeto estético, mas como algo preconizado pela natureza da emoção motivadora do
artista. A ideia de homogeneização na criação artística consiste, por conseguinte, na
concentração do artista, isto é, na direção e no foco de sua atenção em um único órgão
de recepção do mundo, o que leva esse sujeito a eliminar tudo aquilo que é heterogêneo
e dissonante. A expressão popular “sou todo ouvidos”, por exemplo, resgata a noção
que Lukács quer transmitir, de modo que retoma a ideia da concentração total do
indivíduo na recepção das impressões, das palavras, dos sinais, etc, que podem ser
captados e mediados, somente, por um único sentido específico. Soma-se a isso que o
meio homogêneo tem seu modo originário de realização em cada obra de arte singular,
pois a estrutura objetiva do reflexo estético coloca o mundo em interação com a
atividade humana e prescreve uma determinada subjetividade do seu órgão de
mediação. A relação produtiva entre sujeito e objeto está intimamente ligada à noção de
meio homogêneo, pois:
164
[...] todo meio homogêneo nasce da necessidade dos homens de captar o
mundo para eles objetivamente dado, que é, ao mesmo tempo, o mundo de
suas alegrias e de seus sofrimentos e, antes de tudo, o mundo de sua
atividade, da construção de sua própria vida interior e de seu domínio da
realidade (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.345, tradução nossa).
Nasce dessa relação sujeito-objeto um veículo muito poderoso de conquista
da realidade pelos homens. Lukács retoma o período do Renascimento e sua relação
com o descobrimento da estrutura e do movimento do corpo humano, bem como cita o
século XIX e a relação proposta neste momento entre a luz e a cor dos corpos, a fim de
argumentar em favor do domínio da realidade pelo homem na esfera estética e da
relação que a ideia de meio homogêneo estabelece com tal esfera. Interessante, ainda, a
retomada de uma observação sobre Michelangelo feita por Condivi, em que este autor
diz que, apesar de ter pintado uma infinidade de figuras, o artista nunca traçou uma
linha sequer repetindo os mesmos movimentos de figuras anteriores nem as criou de
forma idêntica. Michelangelo era cuidadoso ao rever seus trabalhos anteriores - aqueles
cujo público teve acesso - para que não houvesse nenhuma reprodução comum. Se
encontrasse um esboço ou um desenho semelhante, apagava-os imediatamente e refazia
o trabalho. É nesse sentido que Lukács argumenta que a percepção do artista o conduz
em direção a um domínio ou a um descobrimento mais amplo do mundo:
Assim, em todo descobrimento realizado pelo homem em uma entrega
completa ao meio homogêneo de sua arte se encontra, ao mesmo tempo,
inseparavelmente, algo recém-descoberto na própria realidade objetiva que
constitui o mundo objetivo circundante do homem e as relações dos homens
com esse mundo. Essa interação dialética, cuja eficácia subjaz objetivamente
a vida de todo homem, pode cobrar mediante essa entrega uma expressão
sensível e significativa, e converter-se em possessão evocadoramente
espontânea de todos os homens, em veículo da evolução de sua
autoconsciência (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.345, tradução nossa).
O meio homogêneo, dentre seus diversos atributos, tem o papel de facilitar o
processo de redução do objeto do reflexo artístico ao essencial. Nesse sentido, o
procedimento de criação das obras de arte é compreendido a partir de dois princípios: o
da redução e o da homogeneização. Vejamos de que modo Tertulian esclarece essa
questão:
O processo de criação artística é visto como a redução e a focalização do
conjunto das experiências subjetivas no ponto de mira de uma emoção
fundamental e de um sentido determinado. A eclosão da emoção primária
acontece desde que se afaste do campo de sua afirmação de si tudo o que é
165
heterogêneo, desde que se neutralize expressamente tudo o que poderia
entravar sua expansão. A redução tem, então, por finalidade e por efeito uma
notável intensificação da experiência do mundo, desenvolvendo-se, no
entanto, na imanência de um “órgão” que permite captá-la e vivê-la
(TERTULIAN, 2008, p. 275).
O que move, portanto, na estética lukacsiana, os princípios de redução e de
homogeneização? Ambos são impulsionados pela necessidade humana de eliminar as
disparidades e as desarmonias da experiência do mundo cotidiano, de forma que o
artista cria no objeto estético um mundo fechado consoante às suas aspirações e aos seus
impulsos. Lembremos que a estética de juventude preconiza a criação artística como o
desejo de dar cabo ao sofrimento humano em face da heterogeneidade e das
discordâncias da vida, no sentido de que o artista, a partir da estilização estética, cria
uma realidade utópica em que pode reviver nos objetos presentes na obra conteúdos que
estão de acordo com as suas demandas existenciais.
A “Estética” de maturidade retoma, de certa forma, essas ideias, ampliando-
as. No momento de criação do objeto, o artista empreende um movimento privativo em
que a experiência é reduzida a um único órgão de recepção do mundo - meio
homogêneo -, de forma que podemos utilizar como exemplo desse processo a
exacerbação da percepção sonora no momento da criação de uma música. Esse
entendimento pode nos levar à crença de que a percepção humana pode ser enfraquecida
ou empobrecida ao tentar captar o mundo através de um sentido apenas ao empreender
um esforço de concentração da atenção no fazer artístico. Entretanto, Lukács nega esse
empobrecimento, afirmando que a percepção é intensificada e enriquecida durante este
processo, pois:
O destaque necessariamente unilateral da experiência estética através de um
sentido ou um “órgão” determinado de recepção do mundo, levando à
homogeneização correspondente da matéria da obra, é descrito como um
processo de condensação e expressão da personalidade integral
(TERTULIAN, 2008, p. 276).
O efeito desse processo marca a passagem do homem da vida cotidiana,
denominado o homem inteiro (der ganze Mensch), para o homem em sua plenitude, o
homem inteiramente da subjetividade estética (der Mensch ganz). Este é caracterizado
por ter suas pulsões e faculdades mobilizadas e condensadas pelo processo de criação
166
artística. Observemos que essas questões já estão postas na estética lukacsiana de
juventude, de modo que o trabalho do velho Lukács consiste, justamente, em ampliá-las
a partir de um novo aparato conceitual.
A ideia de meio homogêneo também consta na “Estética de Heidelberg” e é
igualmente entendida não como uma lei exterior, física que permeia o objeto estético,
senão como ditada pela natureza da emoção motivadora. Lukács afirma uma força
coercitiva do meio homogêneo, exercida sobre a personalidade do artista, cujo resultado
consiste em um desacordo entre a intenção inicial do artista e a obra já realizada,
retomando uma ideia de Leo Popper. Vejamos as considerações de Tertulian sobre a
questão:
Os preconceitos e as meias verdades são impiedosamente esvaziados, a vida
rotineira da consciência desaparece, toda tentativa de impor, por um ato de
vontade, uma intenção exterior à lógica imanente do meio homogêneo se
choca com uma implacável resistência. O conflito entre intenção e realização
é visto como uma fecunda contradição na relação sujeito-objeto, como um
apelo dirigido à subjetividade e uma pressão exercida sobre ela para lhe fazer
revelar seus estratos profundos. As resistências encontradas constituem um fator que estimula a eclosão, uma força que leva ao aprofundamento e à
intensificação, até a realização da “plenitude humana” (der Mensch ganze)
que é a marca da verdadeira arte (TERTULIAN, 2008, p. 280).
Vejamos que esse conjunto de noções nos encaminha para a validação da
afirmação de que os interesses práticos imediatos e de que os sentimentos imediatos
próprios da consciência do indivíduo devem ser como que suspensos e neutralizados, de
forma que ocorra algo como uma abstração definitiva da vida prática: “O momento da
universalidade, inerente à subjetividade estética, supõe a elevação a uma altura em que
os sentimentos imediatos e os interesses práticos são neutralizados e desaparecem”
(TERTULIAN, 2008, p. 282). A validação desse processo é fundamental para que a
obra de arte e a criação artística atinjam, assim, o seu objetivo: elevar a experiência a
ponto de alçá-la ao nível da autoconsciência de si do sujeito como gênero humano.
Levando em consideração esse raciocínio, Lukács encaminha a seguinte observação:
A generalização (universalidade) das finalidades surgidas pela suspensão do
interesse prático imediato na esfera estética não tem como objeto a realidade
em si, senão o mundo humano, o mundo tal como existe objetivamente em
sua relação ao homem (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.334, tradução nossa).
167
Entende-se, assim, que, na esfera estética, a suspensão dos interesses
práticos imediatos do sujeito desemboca na vida prática da cotidianidade humana, o que
pode suscitar um efeito artístico de ampla superação de questões meramente singulares,
despertando, por conseguinte, sentimentos e paixões que encaminham o receptor a agir
no mundo real. Essa capacidade de evocação, inerente ao reflexo estético, se deve,
substancialmente, à noção de tipicidade na composição artística, pois não é possível
despertar no receptor um efeito diante da obra de arte se esta não figura o mundo das
representações, das experiências e dos sentimentos do homem. Sobre o típico, Lukács
afirma:
Este homem é típico não por ser a média estatística das propriedades
individuais de uma camada de pessoas, mas porque nele, em seu caráter e em
seu destino, manifestam-se os traços objetivos, historicamente típicos de sua
classe, e manifestam-se, ao mesmo tempo, como forças objetivas e como o
seu próprio destino individual (LUKÁCS, 1935, p.98).
O recurso da tipicidade, seja aplicado aos personagens ou às situações
particulares que compõem uma obra de arte, acaba por desnudar as contradições
inerentes ao mundo dos homens. Para a construção dos personagens e das situações
típicas, o artista deve captar as categorias da realidade não como a priori abstratos, pois
devem estas emanar da própria realidade histórica objetiva. Celso Frederico afirma que,
para Lukács:
[...] o típico expressa o caráter social dos personagens e as tendências do
processo histórico em cada momento determinado. É, portanto, uma síntese
que une o singular e o universal, tanto do ponto de vista dos caracteres como da situação histórico social (FREDERICO, 1997, p. 51).
O personagem típico concentra as tendências mais essenciais e universais de
sua espécie, de modo que é, ao mesmo tempo, um uno, um singular. O recurso da
tipicidade, seja ele aplicado aos personagens ou às situações que compõem o objeto
estético, possibilita ao autor e ao receptor conhecerem toda a riqueza da vida social,
bem como as tendências, tensões e movimentos da história em uma época particular. No
desenrolar do destino desse personagem ou de situações típicas, ou seja, a partir da
práxis humana, pode ser observado o modo como o caractere reagirá frente às situações
colocadas pelo desenvolvimento da realidade social. Sendo assim, torna-se possível, ao
artista e ao receptor, retirar o véu de todas as forças sociais de um determinado
168
momento histórico, aspecto que repercute no desmonte da realidade social coberta por
aparências e na revelação da verdade do processo social. É removida, por fim, “(...) toda
a crosta de obscuridade que possa impedir a consciência de enxergar a presença
operante do homem nas coisas” (PATRIOTA, 2010, p. 229). Nesse sentido, a arte
cumpre a sua missão desfetichizadora.
A verdade do processo social é também a verdade dos destinos individuais [...]. As palavras dos homens, seus pensamentos e sentimentos puramente
subjetivos revelam-se verdadeiros ou não verdadeiros, sinceros ou insinceros,
grandes ou limitados, quando se traduzem na prática, isto é, quando os atos e
as forças dos homens confirmam-nos ou desmentem-nos na prova da
realidade. Só a práxis humana pode exprimir concretamente a essência do
homem. O que é força? O que é bom? Perguntas como estas obtêm respostas
unicamente na práxis (LUKÁCS, 1936, p. 57).
Dessa forma, a arte oferece aos homens uma ampla imagem do mundo,
imagem que, por cauda das particularidades do reflexo estético, são apreensíveis pelo
homem de maneira mais clara, rica e ordenada. É nesse sentido que o receptor pode, por
exemplo, sentir-se tocado pelo destino de um personagem romanesco e orientar os seus
comportamentos e sua ética para agir na realidade a partir dos conteúdos que apreendeu
com e no objeto estético. Com o propósito de ilustrar esse efeito, Lukács resgata, na
“Estética”, o romance “Uncle Tom's Cabin” (1852), da escritora norte-
americana Harriet Beecher Stowe, cujo tema central é a escravidão nos Estados Unidos.
O personagem principal, que dá nome ao livro, é um escravo negro cuja história
marcada pelo sofrimento é o mote da narrativa. Segundo Lukács, o efeito evocador e o
princípio da tipicidade aplicados à obra podem ultrapassar a singularidade do
personagem - Uncle Tom-, que, afinal, é fictício, isto é, que não existe efetivamente no
mundo real, de forma que o receptor tenha suas paixões despertadas e seja, assim,
movido a lutar pela libertação de não somente um escravo específico, senão de todos
eles, bem como pode se sentir impelido a lutar por todos os homens oprimidos a partir
da força evocadora do objeto artístico.
Abordaremos e ampliaremos mais adiante essa questão, de forma que, a
partir deste momento, faremos algumas considerações sobre o que Lukács denominou o
pluralismo da esfera estética. Assegura o autor que todo o reflexo estético é, em sua
essência, plural; isto é, o objeto estético traz em si algo unido e inseparável, uma
homogeneidade da multiplicidade infinita, a qual corresponde esteticamente à unidade
169
da multiplicidade no reflexo cognitivo da realidade. Soma-se a isso, a defesa do autor de
que a grande arte sempre manifesta uma tensão entre: “(...) a suprema unidade e a
suprema diversidade, tensão cujo momento abarca a manutenção da homogeneidade
última dessas entidades em enérgica divergência” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.353,
tradução nossa). Essa noção apresentada na “Estética” de maturidade já havia sido
discutida pelo autor em sua estética de juventude, mais precisamente, quando aborda a
ideia de ponto de vista e de harmonia praestabilita. O resgate ao pensamento de Leo
Popper ocorre nas duas estéticas para justificar, essencialmente, a ideia de que a obra de
arte expressa os seus conteúdos tal qual um “magma universal”.
Em ambos os textos, Lukács resgata as considerações de Popper sobre o
pintor Pieter Brueghel, no intuito de mostrar que os conteúdos plasmados na obra de
arte alcançam um status de parentesco na totalidade da composição artística, por mais
diversos e plurais que esses conteúdos sejam. Consequentemente, o processo de criação
deve ser, também, contraditório, isto é, o artista se esforça para pintar, por exemplo, a
sua maneira particular, cada um dos conteúdos que busca materializar: a neve, o campo,
o céu, as flores etc. Entretanto, o objeto artístico realizado, quando é autêntico e goza de
alto valor, cria uma unidade que homogeneíza as divergências entre os conteúdos
plasmados. Apesar de expressar da maneira mais singular possível cada um dos
conteúdos de uma pintura, o artista tem como resultado final uma unidade última entre
todos os elementos materializados na obra, o que acentua o caráter contraditório da
criação artística. Popper entende tal processo como um fracasso, pois a intenção
primeira do artista, que consiste em expressar da maneira mais singular possível cada
um dos conteúdos de obra, se dissolve na unidade e na homogeneização dos elementos
materializados na obra realizada:
A discrepância entre a intenção e a realização, sobre a qual temos chamado a
atenção seguindo Leo Popper, é um fenômeno geral de toda criação artística,
em que a objetividade, a legalidade objetiva das artes (e da arte) se impõe
diante da vontade individual (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.354, tradução nossa).
Ao retomar o exemplo das pinturas de Brueghel, Lukács afirma que o
“fracasso” oriundo da intenção e da realização artística é um processo dialético e
movido por contradições, em que consta um movimento progressivo da individualidade
do artista, cujo resultado consiste em um raro paradigma da mais profunda expressão da
170
concepção de mundo que uma pintura pode alcançar: “(...) o paradigma da unidade de
mundo referida aos homens e, no entanto, fundada, como unidade objetiva, nas coisas”
(LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.357, tradução nossa). É interessante observar que diversos
temas da estética de juventude são retomados, por Lukács, na maturidade, apesar das
escolhas metodológicas do autor serem diversas nesses dois momentos. Na “Estética”, a
pluralidade da esfera artística ou o meio homogêneo aparecem conectados ao processo
de criação ou de recepção contribuindo para sua finalidade última: a autoconsciência de
si do gênero humano. Este aspecto não estava posto no projeto estético de juventude do
autor, de forma que os elementos inerentes ao processo de recepção ou de criação
sinalizavam para uma vivência estética que contribuía para esses sujeitos, quando
muito, como um consolo transcendental, visto que a distância e o abismo postulado
entre arte e vida eram uma condição da esfera estética para o jovem Lukács.
Na “Estética”, diferentemente, esses elementos estão compreendidos em
uma cadeia de relações que deságua em uma aproximação do homem à sua condição
como espécie humana. Em outras palavras, entendemos que arte e vida se aproximam
na estética de maturidade do autor, pois o sujeito vivencia a consciência de si do gênero
humano na criação ou na recepção das obras de arte, fazendo com que o conjunto de
categorias que Lukács descreve para construir um sistema que envolve a compreensão
de vários aspectos da esfera estética possa direcionar o comportamento criativo ou
receptivo dos homens para uma compreensão mais rica da realidade social, de forma
que a vivência artística possa conectar o homem ao passado, ao presente e, ainda, às
tendências futuras dos processos sociais. Mais adiante, ampliaremos esse debate ao
falarmos sobre a ideia de catarsis. No presente momento, o que nos interessa é enfatizar
as retomadas temáticas que Lukács realiza sobre assuntos já tratados em sua juventude,
os quais, em sua maturidade, recebem um trato e uma posição bastante distinta em seu
pensamento estético, acarretando em efeitos diversos no conjunto de suas ideias.
Nesta seção, a partir da descrição da ideia de meio homogêneo, percorremos
um caminho que aponta para elementos fundantes da estrutura da obra de arte e,
principalmente, para aspectos voltados à prática da criação artística e seus
desdobramentos. Nessa trilha, falamos sobre o conceito de típico, ainda que de maneira
breve, e mencionamos o efeito e a missão que as grandes produções artísticas devem
171
suscitar: a desfetichização. É na esteira desse raciocínio que prosseguiremos a nossa
exposição nos concentrando na missão desfetichizadora da arte e nos desdobramentos
dessa questão na “Estética”.
2.8. O particular como categoria central da esfera estética
Redigido em 1956, o estudo “Introdução a uma estética marxista”, foi
planejado, inicialmente, como um capítulo da “Estética” (1963) de maturidade de
Lukács, o qual se enquadraria na parte dialético-materialista da obra. Entretanto,
observada a necessidade e a importância de um estudo detalhado sobre a categoria da
particularidade - considerada essencial para a compreensão do fenômeno estético -, o
autor publica separadamente o que viria a ser um capítulo já finalizado da “Estética”.
Lukács ressalta, assim, a negligência tanto do ponto de vista lógico como estético do
tratamento despendido à categoria da particularidade, exaltando, também, a importância
de sua publicação não, somente, como uma introdução à “Estética”, senão como um
estudo que aborda os elementos essenciais da teoria lukacsiana sobre as questões
artísticas. Vale lembrar, finalmente, que “Introdução a uma estética marxista” não é,
propriamente, uma estética, mas um texto de fundamentação voltado aos principais
problemas enfrentados à redação da “Estética”.
Sobre a disposição conteudística de “Introdução a uma estética marxista”,
seu autor realiza, primeiramente, uma investigação histórico-filosófica do problema do
particular, analisando as considerações de Kant e Schelling sobre o tema, para, em um
segundo momento, discutir essa problemática em Hegel e em Marx. Interessa-nos, neste
estudo, ressaltar alguns aspectos importantes do texto mencionado, no intuito de
esclarecer os desdobramentos da centralidade do particular na esfera estética. Nesse
sentido, não nos embrenharemos na investigação das críticas de Lukács direcionadas à
filosofia alemã.
Conforme Lukács, a centralidade do particular é um elemento imposto pela
própria realidade objetiva ao plano estético. Se a arte é um reflexo aproximado da
172
realidade objetiva, que visa configurar as forças sociais de determinada época e local em
destinos individuais, a centralidade da categoria da particularidade acaba por ser
justificada pelo caráter terreno do plano estético e pela sua exigência de configurar o
mundo dos homens. Depreende-se dessa afirmação, a noção de que as categorias da
singularidade, da particularidade e da universalidade funcionam como elementos
organizadores dos reflexos do movimento do real. Carli afirma que os homens
“convivem” com essas categorias antes mesmo de terem consciência de fazer uso delas
para organização dos reflexos que produzem os movimentos da realidade. À guisa de
exemplificação, cita a linguagem, a qual afirma ser uma objetivação do ser social
carregada de universalidade, bem como se refere, ainda, à universalização presente na
categorização dos objetos:
Os homens primeiro perceberam a equivalência entre as coisas circundantes,
para só depois conceituá-las em classes distintas. Aqui, o trabalho atua em primeiro plano ao impor uma captura de maior precisão da objetividade, o
que nos leva à expressão mais exata do objeto sobre o qual se trabalha
(CARLI, 2012, p. 118)
As exigências colocadas pelo trabalho tornam mais complexas e intensas as
mediações que se apresentam na sociedade, aspecto que faz com que o homem, em
torno das diversidades produzidas, reconheça a particularidade. A consciência dessa
categoria pelos homens a torna um objeto do pensamento, de forma que as categorias da
singularidade, da particularidade e da universalidade tornam-se suportes para a
apreensão da realidade concreta. Marx enfatiza que a riqueza da lógica reside,
justamente, na busca de um conhecimento verdadeiro para esclarecer as conexões reais
da totalidade da realidade histórico-social. O autor situa, portanto, a particularidade
como categoria de mediação entre a sociedade e os homens singulares, de forma a
compreendê-la não mais como uma categoria amorfa, como o fazia Kant, ou como um
simples elo entre o singular e o universal. Esse entendimento o leva a atribuir à
categoria da particularidade o papel de impulsionar as transformações através das
tensões entre universalidade e singularidade, levando-o a afirmar que ela é um ponto
médio, pois contém em si o singular e o universal, de forma que, em relação ao singular,
a particularidade se apresenta como uma universalidade relativa e, em relação ao
universal, se mostra como singularidade relativa. Na passagem a seguir, Carli esclarece
a ideia da particularidade para Marx, resgatando o pensamento de Lukács:
173
[...] o materialismo marxista, a reprodução pesada do movimento histórico,
cumpre essa dialética: parte-se do concreto real, porém nunca em sua forma
imediata, mas capturando-o por mediações cada vez mais gerais, para
retornar a ele então saturado de múltiplas determinações. Temos aqui uma
necessária conexão entre o singular e o universal, que se constitui no modo
como o pensamento se apropria do movimento concreto da história. A
particularidade também está presente se atentarmos para a conversão do
universal em particular (a totalidade da sociedade capitalista é um momento
particular da totalidade extensiva da história) e para a conversão do singular
em particular (o indivíduo cotidiano como representante típico de uma classe
social) (CARLI, 2012, p. 119).
A categoria da particularidade assume, ainda, a função de um princípio de
movimento no processo do conhecimento, bem como passa a ser uma etapa do
movimento dialético. O processo de conversão das categorias - universalidade,
particularidade, singularidade - acaba por expandir o conhecimento e os limites da
universalidade e da singularidade, no sentido de que, quanto mais mediado é um
fenômeno, maior a probabilidade de compreendermos a sua realidade concreta.
Enquanto a singularidade e a universalidade são pontos que representam os limites para
o movimento; a particularidade, funcionando como elemento central, pode ampliar os
horizontes rumo à singularidade ou à universalidade. A dialética manifestada na relação
entre as categorias lógicas não impede que prepondere uma dessas categorias em cada
uma das formas determinadas de pensamento. No pensamento cotidiano, por exemplo,
prevalece a singularidade; no científico, o acento recai na universalidade, na ética, a
categoria da particularidade é preponderante. No reflexo estético, Lukács defende a
centralidade dessa mesma categoria. Sobre a questão, Carli afirma que:
O reflexo artístico se situa no típico particular, isto é, no âmbito central que
resolve em si o universal e o singular. A particularidade contém a
universalidade e a singularidade, representando a síntese da essência e do
fenômeno (CARLI, 2012, p. 119).
Se Lukács toma de empréstimo a teoria marxista para fundamentar o seu
estudo sobre a categoria da particularidade, o autor resgata as ideias de Goethe (1749-
1832) sobre o tema para demonstrar o problema do particular no campo da estética do
período iluminista. Nesse sentido, o autor enfatiza que a teoria estética - mais
precisamente a formulação científica dos elementos que compõem as especificidades
das categorias estéticas - sempre sofreu de um atraso em relação à práxis artística.
174
Veremos, adiante, o caminho que o filósofo húngaro percorreu até alcançar as
contribuições de Goethe à teoria estética.
O avanço em busca de uma nova estética é percebido por Lukács na
tentativa de Diderot (1713-84) de fundar teórica e praticamente um novo gênero: o
drama burguês. Este deve representar o puramente típico em direção àquilo que é
individual. Sendo assim, esse novo gênero deve ser o ponto médio entre a comédia, que
objetiva a representação de espèces13, e a tragédia, gênero responsável pela
representação da individualidade. Lukács percebe, neste momento, a superação tanto
dos universais abstratos quanto do meramente individual (o singular), de forma que a
particularidade começa, por sua vez, a ser discutida no âmbito da estética e das
produções artísticas.
A determinação social das ações e dos caracteres humanos torna-se cada vez
mais consciente; a importância e o tipo de influência sobre os fatos e sobre os
destinos tornam-se cada vez mais complicados. A relação entre o indivíduo e
sua situação social (camada, classe), entre vida pública e privada dos homens,
recebe determinações novas, mais intrincadas e mais mediatizadas
(LUKÁCS, 1978, p.128).
A fim de superar os tipos cômicos abstratos, Diderot introduz em sua obra
dramática as conditions - novos conteúdos de vida -, que possuem um caráter variável.
Nesse sentido, o autor afirma que não deve ser plasmado nos personagens um espírito a
priori, de forma que tal movimento deve emergir à medida que o próprio caractere se
depara com situações que, possivelmente, lhe proporcionam a construção do espírito.
Decorrente de tal atitude, é instituído um movimento dialético na construção do
personagem, processo que tende a tornar a sua personalidade e o seu comportamento,
gradualmente, mais concretos aos olhos dos leitores à medida que seus destinos são
descritos. Essa abordagem de Diderot é criticada por Lessing (1729-81) por um suposto
retorno à universalidade abstrata. As conditions, proposta pelo dramaturgo, conduzem
aos caracteres perfeitos, diz Lessing, pois o caráter do personagem deve estar
harmoniosamente de acordo com as conditions, o que faz com que a dialética rica de
contradições se perda em universalidades abstratas. Essa discussão introduz um debate
13 Lukács afirma que este conceito de Diderot aproxima-se do que será chamado, posteriormente, de
“tipo”.
175
importante sobre o típico, principalmente, porque introduz a questão da representação
realista na literatura, amplamente defendida por Lukács na década de 1930.
Goethe, conhecedor da teoria de Diderot, viveu um momento histórico em
que a aquisição do moderno método dialético já era consciente, pois fora leitor de Hegel
e contemporâneo da filosofia clássica alemã. Se Hegel fora estimulado pelos problemas
sociais de sua época na busca pela dialética; Goethe o fez a partir de sua relação com
Schiller e Schelling e por meio da leitura das obras de Kant. Largamente influenciado
por esses autores, Goethe buscou a formulação de uma dialética própria, motivada,
essencialmente, pela elaboração de uma ciência da evolução da natureza e pelas
descobertas científicas oriundas do final do século XVII. Como sugere Lukács, a grande
diferença entre Goethe e os filósofos de seu tempo gerou, no autor, um materialismo
espontâneo, voltado a um caminho oposto àquele trilhado pelos pensadores idealistas.
A motivação e curiosidade goethianas acerca dos fenômenos da natureza
levaram-no, de acordo com Lukács, a uma tendência antropologizante, pois fazer arte
ou fazer ciência eram, para Goethe, faces de uma mesma moeda, pois, em ambos os
campos, intenta-se o estabelecimento de uma relação de mesma qualidade com a
natureza, no sentido de que é papel da ciência ou da arte captar a essência verdadeira da
natureza e de seus fenômenos. É curioso ressaltar que o autor alemão repudiava o uso de
procedimentos matemáticos, como o cálculo, diante de fenômenos da natureza, bem
como condenava o uso de microscópios e a metodologia da física moderna. Para este
autor, esta pretendia a obtenção de um conhecimento da natureza via instrumentos
artificiais que forçavam uma separação entre o homem e a natureza, considerações que
justificam a ideia goethiana de que os sentidos do homem são o aparelho físico mais
exato que já existiu.
Ainda seguindo a trilha de Goethe para a formulação de uma nova teoria
estética, é imperativo mencionar a sua concepção da categoria filosófica do fenômeno
originário (Urphänomen) e a relação entre esta e a esfera estética, aspectos que marcam
um momento importante no que tange à categoria da particularidade. A ideia goethiana
do fenômeno originário é responsável por estruturar a compreensão do reino orgânico,
de forma que, por meio de abstrações, ela confere coerência à natureza. Durante os anos
176
de 1786-88, em sua viagem à Itália, Goethe, considerado um amante da natureza,
aproveitou para realizar uma atividade de investigação do universo botânico e estético:
Ao cruzar os Alpes destaca como os fatores geográficos interferem no
processo de desenvolvimento metabólico do ser vegetal. Em Veneza,
próximo das águas do mar, considera que os aspectos das plantas são
modificados pelo terreno e pela respiração do ar salino. E no jardim botânico
de Pádua, em meio à rica diversidade que perpassa sua vegetação exuberante,
brota o germe do entendimento de que todas as formas vegetais poderiam ser
desenvolvidas a partir de uma forma primordial. Em outras palavras, é no
contato empírico com a natureza que surge o entendimento nodal de uma
“planta primordial” ou “proto-planta” (Urpflanze). Esta categoria terá
implicações profundas em toda a anatomia estética e literária de Goethe, pois
é da investigação da natureza que emerge a noção estética fundamental que denominará, posteriormente, de “fenômeno originário” (Urphänomen) e que
também pode ser considerada, segundo Lukács, como a categoria estética da
particularidade (NETO, 2001, p. 14).
Em uma carta a Goethe, Hegel define a categoria do fenômeno originário
como a responsável por conectar dois mundos: a existência aparente e o obscuro que
reside nessa existência, isto é, o ainda não revelado. Para Goethe, toda lei que se revela
como fenômeno deve ser elevada ao status de belo, visto que este é compreendido como
a manifestação de uma lei oculta da natureza, que, se não fosse revelada, permaneceria
secretamente e, somente, sob domínio da natureza. Os chamados fenômenos originários
revelam os significados presentes nas belas formas da natureza. Nesses significados
coincidem o particular e o universal, que revelam a totalidade contida no fenômeno,
pois a sua origem se mostra, em um segundo momento, no próprio fenômeno. Percebe-
se, assim, que essa categoria se fixa no âmbito da particularidade, tornando-se a
mediadora entre o singular e o universal.
Lukács assinala, portanto, que Goethe é o primeiro teórico que acentua a
importância da particularidade como categoria estrutural da esfera estética. Tal questão
é fundamentada pelo seu romance “Afinidades eletivas”, redigido em 1809, o qual
busca demonstrar a ligação estreita entre os fenômenos originários da natureza, os
típicos destinos humanos, as experiências vitais, científicas e poéticas. Em Goethe, as
categorias da universalidade, particularidade e singularidade se mostram sempre como
processo dinâmico, em que o acontecimento mais particular é sempre uma imagem e um
símbolo de um universal.
177
Outro elemento fundamental da estética goethiana é a questão da prioridade
do conteúdo em detrimento da forma. Goethe é categórico em afirmar que é dever do
artista pensar em um conteúdo determinado para a sua obra, o qual possa ser
desenvolvido de forma completa. O autor problematiza a falta de substancialidade e de
espírito de um texto que, simplesmente, faz o leitor se deleitar por alguns instantes por
meio de uma métrica impecável e de rimas irreparáveis. Essas considerações nos
mostram que o homem, seja no âmbito da ciência ou da arte, deve se engajar por
completo, sendo ele próprio o responsável pela reprodução da realidade objetiva e pela
recepção das obras. Esse cuidado e atenção para com a escolha da matéria constitutiva
de um objeto artístico é tão fundamental, que, quando o artista faz uma escolha certeira
do conteúdo a ser abordado, pode-se deduzir deste tantos os elementos singulares
quanto os universais que compõem a matéria presente na obra. Na esteira dessas
reflexões, o velho Goethe afirma que a especificidade da arte reside, justamente, em
uma adequada representação do particular, ou seja, do justo reflexo da realidade
objetiva.
Impulsionado pelas ideias de Marx sobre a particularidade e pelos
desdobramentos dessa mesma categoria feitos por Goethe no campo da estética, Lukács
fundamenta a discussão do particular como categoria central dessa esfera. Ao romper
com a estética idealista e ao assumir uma posição materialista em face da realidade, sua
preocupação se volta, primordialmente, para a afirmação de um reflexo justo e
aproximado da realidade na obra de arte, dando prioridade à reprodução do real e, não, à
criação, a priori, de mundos isolados que não emanam dessa mesma realidade. A
predominância da particularidade no plano estético condiz, assim, com a noção
lukacsiana da obra de arte como reflexo do real configurado formalmente pela
intervenção do artista. Vejamos a passagem esclarecedora de Carli sobre essa questão:
A arte é a síntese harmônica entre o objetivo (o real refletido) e o subjetivo (o
sujeito criador), entre o universal e o singular. Em si, a arte já se comporta
como a mediação particular do universal com o individual. Entender a arte como conhecimento da realidade e, portanto, como a mediação entre o
universal e o individual é, ao mesmo tempo, descartar o idealismo objetivo,
que trata de modo invertido a arte como objetivação do espírito, e o idealismo
subjetivo, que isola o chamado “gênio artístico” em uma torre de marfim
(CARLI, 2012, p.121).
178
A fim de ilustrar a passagem supracitada, Carli retoma a novela “Senhor e
servo”, escrita por Tolstói, cujo conflito é instaurado a partir da relação entre dois
personagens: Vassili Andreitch, o dono de terras, e Nikita, o seu servo. Para fechar um
negócio - uma compra de terras -, ambos encaram uma severa tempestade de neve, cujo
desfecho é a morte do senhor e a sobrevivência quase milagrosa do escravo. Vassili é
definido a partir das seguintes singularidades: proprietário de terras, tesoureiro da igreja
paroquial e negociante da segunda corporação. Por sua vez, Nikita reúne as seguintes
singularidades: marido de Mafra, ex-alcoólatra e servo. A obra retrata de modo
representativo a universalidade da relação entre as classes - servos e senhores -
reproduzida a partir dos destinos dos personagens mencionados e da relação que
estabelecem reciprocamente, isto é, afirma Carli: “O que é importante reter: a
universalidade da relação entre as classes (explicitada no título da obra) é reproduzida
na trajetória singular de destinos humanos concretos” (CARLI, 2012, p. 120). Na obra,
são retratadas relações sociais efetivas ancoradas em um tempo determinado, particular,
e, não, em um tempo universalmente abstrato ou singular; o que nos conduz à afirmação
de que a arte é sempre uma particularidade concreta e específica. Carli esclarece:
“Vemos a particularidade resolver de um lado a singularidade dos traços peculiares às
particularidades de Vassili e Nikita, e, de outro, a universalidade que caracteriza a luta
entre as referidas classes. Ambos (o geral e o singular) possuem tempo e lugar”
(CARLI, 2012, p. 120). O exemplo apontado na obra de Tolstói nos mostra que as
singularidades estão sempre presentes na caracterização dos personagens concretos, da
mesma forma que as autênticas obras de arte revelam as tendências gerais do
desenvolvimento da humanidade. Nesse sentido, Carli conclui:
Pondo-se tendências gerais da humanidade no devido papel de força motriz de destinos humanos concretos, consuma-se, assim, por meio do típico
particular, a superação da generalidade e da individualidade na obra artística
(CARLI, 2012, p. 121).
Ao ancorar o objeto artístico em uma realidade historicamente situada, as
possíveis generalizações idealistas que poderiam, então, surgir na obra são neutralizadas
e afastadas; elemento verificável, ainda, no que tange à configuração das singularidades
avulsas.
179
Ao ser levada em conta a ideia da particularidade como categoria central da
esfera estética, a criação artística dos “mundos” representados nas obras passa a ser
vista de maneira dinâmica, repleta de tensões, contrastes e contradições, tornando-se,
assim, um reflexo justo e fiel da realidade objetiva. É por meio da superação da
realidade imediata - movimento que ocorre, em grande parte, por causa das mediações
realizadas pela categoria da particularidade - que as obras de arte são construídas de
forma a não recaírem em universalidades abstratas e vazias. Seguimos reproduzindo a
síntese de Lukács sobre o papel da particularidade na esfera estética.
[...], no reflexo estético o termo intermediário torna-se literalmente o ponto
do meio, o ponto de recolhimento para o qual os movimentos convergem.
Neste caso, portanto, existe um movimento da particularidade à
universalidade (e vice-versa), bem como da particularidade à singularidade (e
ainda vice-versa), e em ambos os casos o movimento para a particularidade é conclusivo. Tal como gnosiológico, o reflexo estético quer compreender,
descobrir e reproduzir, com seus meios específicos a totalidade da realidade
em sua explicitada riqueza de conteúdos e formas. Modificando
decisivamente o processo subjetivo, do modo acima indicado, ele provoca
modificações qualitativas na imagem reflexa do mundo. A particularidade é
sob tal forma fixada que não mais pode ser superada: sobre ela se funda o
mundo formal das obras de arte. O processo pelo qual as categorias se
resolvem e se transformam uma na outra sofre uma alteração: tanto a
singularidade quanto a universalidade aparecem sempre superadas na
particularidade (LUKÁCS, 1978, p.161).
Quando o artista consegue trabalhar de maneira adequada o reflexo da
realidade, possivelmente, criará “mundos reais” autônomos, os quais se conservarão e
não dependerão de nossa consciência para a sua existência. Esse elemento faz saltar aos
olhos a individualidade da obra de arte, demonstrando que ela é uma totalidade fechada
e que não deve ser confundida com a realidade externa, pois fora criada pelo homem.
A particularidade se concretiza, igualmente, por ser o elemento essencial da
superação da fetichização, pois toda a imediatez da singularidade é superada na
particularidade, categoria que torna visível os elementos essenciais do ser social do
homem. Ao escolher um fragmento da realidade social para ser trabalhado, o autor dará
conta de ordená-lo e de transformá-lo em uma totalidade fechada: a totalidade estética.
O contato mais estreito com essa realidade desfetichizada transporta o fruidor para um
momento de suspensão da realidade cotidiana, para, em um momento seguinte, devolvê-
lo, novamente, a essa mesma realidade. Entretanto, esse retorno é caracterizado pelo
enriquecimento do sujeito face à experiência estética. Seria a obra de arte, por
180
conseguinte, um elemento que aproxima o sujeito de sua condição essencial diante da
realidade objetiva? e Pode ela infundir autoconsciência no sujeito estético, ou mesmo,
expandir os limites de seu conhecimento?
O enriquecimento proporcionado pela fruição da obra de arte no sujeito
receptor vem seguido de todas as experiências anteriores desse sujeito, as quais são
sempre confrontadas com a realidade que a obra reflete.
[...] nas grandes obras de arte, os homens revivem o presente e o passado da
humanidade, as perspectivas de seu desenvolvimento futuro, mas os revivem
não como fatos exteriores, cujo conhecimento pode ser mais ou menos
importante, e sim como algo essencial para a própria vida, como momento
importante também para a própria existência individual (LUKÁCS, 1978, p.
290).
Lukács observa, portanto, que o momento da fruição estética compreende
uma correspondência entre duas totalidades, as experiências passadas do fruidor e as
novas impressões geradas pela obra. Essa concepção descarta a visão dos teóricos
idealistas da estética que tendem a conceber o sujeito receptor como alguém que se
debruça diante da obra de arte como uma tábula rasa. O momento da recepção
compreende, assim, um sujeito estético que tem a possibilidade de reviver o presente e o
passado da humanidade, bem como as perspectivas de seu desenvolvimento futuro,
contrapondo a ideia de um ser que entra em contato com o objeto sem mobilizar as suas
experiências subjetivas. Dessa forma, podemos afirmar que a obra de arte tem a
potencialidade de aproximar o receptor de sua condição essencial diante da realidade
objetiva, de forma a infundir nele autoconsciência ao mesmo tempo em que expande os
limites de seu conhecimento, pois o coloca em contato com momentos essenciais do
desenvolvimento da humanidade, infundindo-lhe uma carga humana.
Para o Lukács da maturidade, a obra de arte é a captação pelo artista de um
momento histórico relevante, compreendido e reproduzido de forma a discutir a
totalidade dos grandes problemas da época em que o artista está inserido. A partir dessa
formulação, elas são entendidas como objetos repletos de contradições, visto que
refletem a realidade, que, por si só, também compreende tais contradições. Nesse
mundo fechado criado pelo artista, o homem se eleva sobre o plano cotidiano, onde os
fenômenos não podem, na maioria das vezes, ser observados de forma não imediata.
181
Desta feita, o sujeito estético pode ver esse mundo como um todo coeso refletido no
mundo fechado e reduzido da obra. Consequentemente, na esfera estética, o próprio
cotidiano é elevado, pois o homem pode conhecê-lo de forma mais exata e profunda,
para, em um segundo momento, retornar ao plano da vida cotidiana enriquecido de uma
consciência da qual, até então, ele não dispunha. Esse conjunto de noções encaminha
um pensamento estético que compreende que a arte sempre retorna para o lugar de onde
retirou os seus conteúdos, ou seja, o seu ponto inicial: o plano da vida cotidiana. Esse
retorno é compreendido na “Estética” como uma conquista da humanidade e como uma
resistência diante da fetichização da vida no modelo capitalista.
Devemos, por ora, ressaltar a importância da forma artística e de seu poder
de harmonizar e de ordenar os conteúdos selecionados pelo autor dispostos no plano da
vida cotidiana. O conteúdo e a harmonização formal são os elementos que, quando bem
trabalhados, permitem à obra a sua permanência. Lukács cita “Édipo” como exemplo
dessa reflexão, no intuito de mostrar que, por mais que o sujeito fruidor esteja afastado
daquele momento histórico, ou que, ao ler a obra, não conheça os seus pressupostos
históricos, ainda assim, atua sobre ele o seu poder evocativo, de forma que o drama
edipiano ainda toca, por exemplo, os leitores modernos. De acordo com esse raciocínio,
Lukács formula a seguinte indagação:
Mas de onde deriva a força evocativa desses dramas?Acreditamos que ela
resida no fato de que neles é revivido e feito presente precisamente o próprio passado, e este passado não como sendo a vida anterior pessoal de cada
indivíduo, mas sim como a sua vida anterior enquanto pertence à humanidade
(LUKÁCS, 1978, p.289).
Não esgotaremos as questões relativas à evocação, à ideia de forma e ao
reflexo justo da realidade na obra de arte. Mais adiante, abordaremos com maior
cuidado tais assuntos. Nosso esforço se voltará, na próxima sessão, à ideia lukacsiana da
missão desfetichizadora da arte.
2.9. A missão desfetichizadora da arte
182
Para Lukács, a arte autêntica tem por essência uma função desfetichizadora
e, se renuncia a ela, pode sofrer um processo de autodissolução. A tomada de posição
dos artistas diante da tendência desfetichizadora da arte marca uma divisão entre dois
tipos de composição artística: as chamadas progressistas, em que o reflexo da realidade
é orientado por uma tendência desfetichizadora, ou aquelas de caráter reacionário, em
que a orientação do reflexo eterniza o fetichizado da sociedade. O debate sobre essas
questões está postulado de forma bastante consistente já nos escritos lukacsianos sobre
arte, majoritariamente, sobre literatura, produzidos na década de 30.
Ainda que, de forma breve, resgatamos anteriormente questões importantes
para a construção da “Estética”, como as noções de Realismo, Naturalismo e
Tipicidade. Tais temas, amplamente discutidos por Lukács em seus escritos de 30,
ajudam a compor o conjunto de categorias que fundamentam a noção de obra de arte de
sua maturidade, culminando na missão desfetichizadora do autêntico objeto artístico.
Essa incumbência está presente na obra de muitos artistas, mas permeia a totalidade da
produção de poucos deles, como Balzac ou Tosltói, sobre quem Lukács se refere na
passagem a seguir: “A luta pela integridade do homem contra toda presença e forma de
manifestação de sua deformação constitui o conteúdo essencial de sua obra” (LUKÁCS,
1972, vol. 2, p.381, tradução nossa). Ao falar sobre fetichismo, Lukács resgata a teoria
de Marx sobre o conceito e ressalta que, na “Estética”, essa mesma ideia deve ser
entendida de forma um pouco mais ampla, pois se as obras de arte são incumbidas:
[...] de dissolver fetiches ou complexos fetichizados que aparecem no curso
da evolução da humanidade e agem tanto na prática cotidiana quanto na
ciência e na filosofia, de devolver para as relações objetivas o lugar que a
elas corresponde nas impressões cósmicas dos homens, deprimida por
aquelas deformações. Então, para as nossas presentes considerações se
apresenta um conceito de fetichização mais amplo: a fetichização consiste em
que - por motivos histórico-sociais diversos em cada caso - sejam colocadas
objetividades independentes nas representações gerais, objetividades que nem
em si nem em relação aos homens realmente os representa (LUKÁCS, 1972,
vol. 2, p.383, tradução nossa).
Apesar das considerações tecidas pelo autor, ele enfatiza que é errôneo
pensar que a arte deva assumir uma postura filosoficamente materialista, embora não
seja possível a negação deste certo caráter apresentado na e pelas obras de arte. Essa
afirmação deve ser encarada no sentido de que a arte precisa manifestar uma tendência
183
desfetichizadora espontânea, reconhecendo apenas o mundo externo real (de existência
objetiva) e dissolvendo, neste mesmo mundo, as representações projetadas que possuem
um caráter fetichista. É necessário, por conseguinte, que se considere caso a caso no que
tange aos limites histórico-sociais dessas produções artísticas. Soma-se a isso que a
representação artística deve manter uma orientação humanizadora, de forma a
transformar toda a transcendência em uma imanência humana. Lukács resgata algumas
referências para ilustrar essa tendência, que, segundo ele, “projeta o céu sobre a terra”.
São elas: Dante, a pintura do Trecento e do Quattrocento italiano (até Simone de
Martino ou Fra Angelico), ou mesmo, o epos homérico, a partir da ótica de alguns
pensadores da Antiguidade.
Na busca por uma representação desfetichizada da realidade social, a obra
de arte tem que compreender a coexistência de certas categorias fundamentais para a
esfera estética. São elas: o tempo, o espaço e o movimento. Ao resgatar as palavras de
Marx, de que “o tempo é o espaço da evolução humana”, Lukács tece as seguintes
considerações:
[...]: o temporalmente posterior contém em si as determinações daquilo que
lhe é precedente, mas de um modo elaborado, enriquecido, aprofundado, de
tal maneira que o retorno fático ou mnemônico de um momento anterior, o
contraste do passado com o presente, cobra o conteúdo específico de uma
evolução, ao contrário de um mero movimento. Esse fato básico do papel do
tempo na vida dos homens se reflete nas artes do meio homogêneo temporal,
ou seja, na música e na literatura. Nessa evolução, nesse decurso temporal
consiste o momento abarcante do reflexo, posto que é um fator determinante
da vida (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.402, tradução nossa).
O entendimento da simultaneidade ou da coexistência das categorias do
espaço e do tempo no reflexo estético para o alcance de uma reprodução justa e fiel da
evolução da humanidade é um aspecto importante da estética. Lukács retoma, assim, a
música de Beethoven para ilustrar esse ponto, afirmando que, para atingir os seus mais
potentes efeitos formais, a canção depende, invariavelmente, de algo que retorna. Isto é,
algo que, em um primeiro momento, se dava apenas como uma sucessão de notas,
aparece, em uma ocasião posterior, como resultado; adquirindo, assim, um sentido
completamente diverso daquele presente no momento precedente. O retorno que
mencionamos funciona, assim, como um trampolim, visto que, ao resgatar o momento
precedente - presentificando-o -, a ocasião posterior aparece de forma radicalmente
184
nova na situação recriada. Dessa feita, para Lukács, esse retorno torna-se o elemento
que funda, a posteriori, o significado do momento que o precedeu. É importante
entendermos que esse movimento tem como característica fundamental um caráter
simultâneo. Vejamos as considerações de Lukács sobre a questão:
[...] que a sucessão temporal apareça dentro de seu alcance como uma
simultaneidade, produz aquelas possibilidades de comparar aqueles
contrastes entre o Antes, o Agora, e a perspectiva de Futuro, por meio das
quais é possível reconhecer e viver real e omnilateralmente a essência do
novo surgido dessa evolução (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.403, tradução nossa).
O efeito advindo do caráter simultâneo do retorno de momentos artísticos
precedentes no interior de uma música, por exemplo, é aspecto fundamental para que a
arte cumpra sua missão de desfetichização da realidade social na estética de maturidade
lukacsiana, de forma que se retoma, aqui, a célebre frase de Heráclito, que diz que não é
possível banhar-se duas vezes no mesmo rio. As vivências suscitadas ao longo de uma
música, por exemplo, são gradualmente resgatadas, de forma que um momento
posterior carrega as determinações e as vivências precedentes, construindo um
movimento em que o presente e o passado são confrontados, o que, por conseguinte,
revela uma vivência nova, enriquecida, ampliada, mais profunda e mais evoluída se
comparada àquela suscitada no momento anterior. Dessa forma, o papel crucial do
tempo na vida da humanidade é refletido, também, na criação e na recepção artística.
Esse princípio é um, dentre muitos, que reforça o entendimento de que a estética de
maturidade é pensada a partir de uma perspectiva teórica que encontra correspondências
entre os princípios observados na realidade social e os princípios artísticos, o que
envolve uma coerência metodológica ao pensarmos que a arte reflete os conteúdos
dispostos na vida dos homens.
Vejamos que o processo discutido por Lukács prevê uma relação com a
ideia de utopia. Se o autor compreende que, na ocasião da criação ou da recepção da
obra, um momento anterior da composição ou da recepção resgata e, por isso, contém os
precedentes na refiguração de um momento futuro novo, que, igualmente, contém os
momentos anteriores, e revela as possibilidades de vivências futuras, compreende-se,
portanto, um movimento processual utópico na criação e na recepção das obras. Isto é,
entende-se que a revelação de uma vivência nova ou de uma refiguração artística,
185
oriunda desse movimento de resgate e de evolução, já contém em seu momento
precedente ou originário o gérmen do momento final, a saber, aquilo que ainda não é
revela-se - tal qual um vir a ser - já no primeiro momento da composição ou da fruição
artística. Retomamos, assim, a ideia de Lukács já citada de que o contraste entre o
Antes, o Agora, e a perspectiva de Futuro possibilita o reconhecimento e a vivência da
essência do momento novo, o qual surge da sucessão e do movimento evolutivo dos
momentos que compõem a totalidade da obra de arte.
Outro ponto discutido por Lukács para que a obra de arte cumpra a sua
missão desfetichizadora é a questão da determinação ou da indeterminação da
objetividade na esfera estética. O foco do autor se volta à literatura, essencialmente, às
produções do século XIX, sobre as quais afirma possuírem um alto nível de perfeição
técnica no que tange à exposição literária da aparência externa, tal qual o caso das
detidas descrições dos escritores naturalistas. Entretanto, esse detimento não foi
suficiente para manter vivos, na consciência dos homens, os personagens que desfilam
por esse conjunto de obras. A personagem Naná, que dá nome ao romance escrito por
Émile Zola, finalizado em 1880 e nono volume de uma série chamada "Os Rougon-
Macquart", seja, talvez, de acordo com Lukács, a personagem que ainda se mantém viva
na consciência dos homens, figurando como uma: “(...) alegoria superficial e pitoresca
de Paris do Segundo Império” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 410, tradução nossa). O
resgate desse exemplo vem corroborar a ideia de que uma descrição precisa de um
personagem, por exemplo, não consiste, necessariamente, em uma determinação dos
objetos da literatura.
Esse aspecto pode acarretar naquilo que Lukács denominou
hiperderminação supérflua da objetividade poética Soma-se a isso a ideia de
hipermotivação, isto é, a determinação dos elementos que engendram e sustentam o
conflito da obra sofrem de uma hiperdeterminação que rebaixa a objetividade poética da
composição. Afirma Lukács que:
[...] é certo que a literatura recarregou-se com motivações hiperdeterminadas
(e poeticamente supérfluas) que ocasionaram a perda da esbeltez da
composição do todo e das partes sem dar realmente mais peso e importância
ao conteúdo poético (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 412, tradução nossa).
186
O que está em jogo é a ideia da composição realista, já descrita por Lukács
em seus textos da década de 30. Elementos como a tipicidade, a centralidade da ação ou
a figuração dos conteúdos essenciais ao desenvolvimento do enredo são fundamentais
para uma representação artística desfetichizadora. Reproduzimos algumas considerações
de Lukács sobre a questão:
[...] há casos nos quais uma grande riqueza de detalhes, como se encontra,
por exemplo, em Dickens ou Gottfried Keller, pode ser considerada
completamente equilibrada artisticamente, enquanto que em outros artistas
mais parcimoniosos nos detalhes pode ser encontrado um excesso no que
tange à superficialidade, como é o caso de Hebbel e, às vezes, de Schiller.
[...]. Um detalhe está justificado artisticamente quando manifesta um caráter,
uma situação, etc., a partir de um novo ponto de vista que está relacionado
com o problema capital, embora isso ocorra por meio de muitas mediações, ou seja, quando manifesta algo de sua essência sem o qual haveria se mantido
oculto. A quantidade não tem, assim, um sentido estético completo se não se
relaciona às intenções últimas da obra (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 412,
tradução nossa).
A questão do detalhe é compreendida como uma atitude do artista em
relação ao mundo. Esse comportamento deve ter como princípio a noção de seleção e
de hierarquização dos conteúdos e temáticas pensados na e para a composição da obra
de arte. Se a escolha do tema ou motivo é incipiente e não consegue atingir, por meio da
criação artística, a potente força evocadora do objeto artístico, a missão desfetichizadora
da obra não se realiza. Essa análise que Lukács empreende sobre os detalhes na
composição artística já estava posta nos seus escritos de juventude e naqueles da década
de 30, e se relaciona, diretamente, com a composição das situações e dos personagens
típicos na literatura, bem como estabelece pontos de contato inegáveis com a ideia da
centralidade da ação. Nesse sentido, a “Estética” reitera que a grande arte obedece ao
padrão de composição realista, cujo resultado consiste em um objeto artístico que
materializa um desmonte das aparências que recobrem a realidade social,
desfetichizando as relações sociais de um determinado período.
No processo de criação, deve-se ter em mente a ideia de que todos os
elementos escolhidos para a composição da obra devem estar intimamente ligados. É
claro que tal questão tem um funcionamento um pouco diverso para os tipos distintos de
arte. Pensemos na literatura, mais precisamente naquele que se tornou, para Lukács, o
representante típico da expressão da vida burguesa: o gênero romanesco. Façamos um
breve resgate sobre as considerações lukacsianas voltadas ao romance, retomando,
187
principalmente, algumas ideias desenvolvidas em “A Teoria do Romance” (1914-15) e
em “O romance como epopeia burguesa” (1935). Nestes, Lukács defende a ideia de que
o romance ocupa, na sociedade burguesa, o papel que o gênero épico assumia no mundo
antigo. A partir dessa afirmação, desdobram-se diversos debates. Resgataremos aqueles
que ilustram ou que, de certa maneira, nos levam a compreender a missão da grande
arte.
Lukács entende que o pressuposto da forma romanesca consiste na
representação das contradições nascidas no seio da vida burguesa. Por conseguinte, o
papel que o gênero assume é o de figurar, a partir das novas possibilidades suscitadas
pelo mundo burguês, o automovimento da totalidade social, revelando fielmente as
contradições da sociedade burguesa, a partir de uma composição que materializa os seus
conteúdos por meio do uso do recurso da tipicidade e da centralidade da ação. No
romance, a vida privada tornou-se, por excelência, a matéria de sua composição, de
forma que o artista deve figurar o destino de personagens típicos, que, potencialmente,
podem descortinar o conflito interno de um momento histórico específico,
materializando, assim, as grandes contradições da sociedade, as quais não são visíveis
na imediaticidade da vida cotidiana. Imediatamente, a pergunta que se coloca é a
seguinte: De que forma a composição artística do romance pode atender com excelência
tais demandas? Para Lukács, o cumprimento das finalidades do gênero referido se dá a
partir da centralidade da ação, que decorre da necessidade do reflexo adequado da
realidade e do recurso da tipicidade, sobre o qual já tecemos algumas considerações
iniciais em momentos anteriores.
Sobre a centralidade da ação na composição romanesca, faremos algumas
considerações iniciais. Na composição literária, a ação assume um status central, pois se
pressupõe que, quando o homem age e intervém na sociedade, ele encontra a expressão
real de sua essência, a forma verdadeira de sua consciência, bem como dá margem à
representação e à revelação das vivas contradições sociais da quadratura histórica e
filosófica em que está inserido. Essa questão motiva Lukács a afirmar que a: (...)
“verdade do processo social é também a verdade dos destinos individuais” (LUKÁCS,
1936, p. 57). Nesse sentido, o autor está empenhado em afirmar a importância da práxis
humana como expressão concreta da essência dos homens, isto é, os pensamentos e
188
sentimentos humanos só podem se revelar verdadeiros ou não no seu confronto com a
práxis, na relação que o sujeito trava com as batalhas da vida. São os comportamentos e
as ações do sujeito no mundo que garantirão a idoneidade ou não de seus pensamentos e
sentimentos.
No gênero romanesco, a construção e o conteúdo da ação são pensados a
partir da figuração de indivíduos que lutam entre si em sociedade. Na realidade, a luta
dos indivíduos entre si adquire objetividade e veracidade somente porque os caracteres e
os destinos dos homens refletem de maneira típica e fiel os momentos centrais da luta
de classes. O elemento da ação configura, ainda, a forma do romance e sedimenta as
bases para a realização do recurso da tipicidade. A ação da narrativa romanesca deve ser
alçada a um status épico, isto é, o personagem particular figurado na composição tem de
ter o seu destino unido às contradições sociais que o determinam. Aqui, devemos ter em
mente que essa unidade resgata o pathos do período homérico, em que o destino
individual de um personagem - individualidade - se fundia ao destino da coletividade
que o determinou - universalidade. Se o romance é, para Lukács, o representante típico
da sociedade burguesa, e o pathos, no sentido antigo do termo, não pode mais se
realizar na vida moderna; consequentemente, essa noção de pathos do período homérico
não pode mais ser figurada da mesma forma no romance. Sendo assim, o pathos
figurado no gênero romanesco passa a ser, então, o novo pathos da vida privada, pois
são as narrativas de destinos individuais e típicos que revelam concretamente, no mundo
burguês, as contradições da vida social que determinam a trajetória individual do
personagem e revelam a cadeia de relações em que este está inserido. Vejamos de que
forma Lukács entende a questão:
Mas este páthos só pode ser encontrado por vias muito complexas e indiretas.
As forças sociais descobertas pelo artista, que as representa em seu caráter
contraditório, devem aparecer como traços característicos das figuras
representadas; em outras palavras, devem possuir uma intensidade de paixão
e uma clareza de princípios que não existem na vida burguesa quotidiana, e
ao mesmo tempo devem se manifestar como traços individuais de
determinado indivíduo. Uma vez que o caráter contraditório da sociedade
capitalista se torna perceptível em cada um de seus pontos e a humilhação e a
depravação do homem impregnam toda a vida interna e externa da sociedade burguesa, quem vive totalmente uma experiência apaixonada e profunda se
torna inevitavelmente objeto destas contradições, um rebelde (mais ou menos
consciente) contra a ação despersonalizante do automatismo da vida burguesa
(LUKÁCS, 1935, p.97).
189
À medida que a representação do pathos de um personagem particular é
concretamente realizada, isto é, quando se funde à contradição social que rege o seu
destino, o romance aproxima-se das finalidades da poesia épica, de modo que a
configuração de sua ação assume, por conseguinte, um status épico. Seguem as
considerações de Lukács sobre o assunto:
Com efeito, estas figuras [Goriot, Vautrin, a marquesa de Beauséant e
Rastignac] são elevadas a um nível de paixão tão alto, que nelas se manifesta
o conflito interno de um momento essencial da sociedade burguesa e, ao
mesmo tempo, cada uma delas se encontra em um estado de revolta subjetiva
justificada, embora nem sempre consciente, representando na sua pessoa um
momento particular da contradição social. Somente nestas condições estas
figuras podem ser representadas numa viva relação entre si, e as grandes
contradições da sociedade burguesa nelas podem adquirir uma forma concreta, como se fossem seus próprios problemas individualmente vividos
(LUKÁCS, 1935, p.97-98).
Para que a ideia da ação reivindique o seu caráter central na narrativa
romanesca, os elementos que compõe a narrativa, como o espaço, por exemplo, devem
estar sempre articulados ao entrecho central, de forma que ajudem a revelar as
contradições inerentes aos processos sociais. Sendo assim, a descrição de um ambiente
só contribuirá para a realização da missão desfetichizadora da obra de arte se, por
exemplo, complementa a caracterização de personagens ou de situações típicas. A
descrição da pensão Vauquer, tecida por Balzac, em “O Pai Goriot”, é um exemplo
modelar da relação orgânica que vai se estabelecer entre a descrição e a ação romanesca
construída na referida obra, cujo pano de fundo consiste na representação de uma classe
burguesa em formação na França, no começo do século XIX, após a Revolução
Francesa. O protagonista da obra, Rastignac, é responsável por transitar entre dois
“mundos”: a alta sociedade de Paris e a Casa Vauquer. No desenrolar da narrativa, é
possível observar de que maneira os personagens dessas esferas se comportavam, quais
eram as suas demandas, os seus desejos e quais tensões comportavam cada uma das
classes sociais francesas presentes no começo do século XIX. Reproduziremos, a seguir,
uma das passagens da obra - a descrição da pensão Vauquer - que contribui, já no início
do romance, para revelar a decadência da aristocracia francesa, a qual será o elemento
central da ação que embasa a obra:
Ela fica na parte baixa da Rue Neuve-Sainte-Geneviève, no local em que o
terreno se inclina em direção à Rue de l’Arbalète com uma ladeira tão
íngreme e tão difícil que os cavalos raramente a sobem ou descem. Tal
190
circunstância é favorável ao silêncio que reina naquelas ruas apertadas entre a
cúpula do Val-de-Grâce e a cúpula do Panthéon, dois monumentos que
alteram as condições da atmosfera nela lançando tons amarelados,
escurecendo-a por completo com os tons severos que projetam suas
abóbodas. Ali, as ruas são secas, os riachos não têm lama nem água, a erva
cresce ao longo dos muros. O mais indiferente dos homens ali se entristece
como todos os caminhantes, o ruído de um veículo torna-se um
acontecimento, as casas são melancólicas, as muralhas cheiram a prisão. Um
parisiense perdido só veria ali pensões burguesas ou instituições, miséria ou
enfado, velhice que morre, juventude alegre obrigada a trabalhar. Nenhum bairro de Paris é mais horrível, nem, digamos, mais desconhecido (BALZAC,
2006, p. 18-19)
Balzac consegue, a partir da descrição dos ambientes, construir uma relação
entre os personagens, seus destinos e seus embates com a sociedade, de forma que as
descrições funcionem como complementos essenciais para que nos aproximemos e para
que conheçamos melhor o caráter dos personagens bem como suas posturas em relação
às práticas sociais que estabelecem no desenrolar da narrativa. A descrição é usada pelo
romancista, por fim, como base para o elemento dramático, se traduzindo, em um
momento posterior, em ações. A análise da passagem supracitada nos revela certa ideia
de esquecimento dos inquilinos da pensão, cuja causa é enfatizada na passagem que
ressalta o difícil acesso ao local, onde até os cavalos encontram dificuldade para chegar.
Esse acesso dificultado, porém, se reflete na vida social dos caracteres que residem
neste ambiente, pois a ascensão social destes já se mostra geograficamente cheia de
obstáculos ou, de certa maneira, impedida. A classe social dos inquilinos da Casa
Vauquer está pressuposta nessa descrição, complementando, assim, a ideia que o leitor
faz dos personagens até então apresentados.
O hiperdetalhamento não tem lugar na narrativa balzaquiana, pois toda a
construção descritiva da ambientação, por exemplo, está ligada ao entrecho da obra e
revela ou complementa algo importante no que tange aos destinos dos caracteres, ou
mesmo, à própria construção da ação como centro da narrativa, de forma que os
detalhes dos quais o autor lança mão estão sempre articulados organicamente e
compõem uma conexão intrínseca e significativa com os conflitos apresentados na
narrativa. Quando a composição artística não dá conta dessa articulação, de forma que
os detalhes aparecem, portanto, isolados, o seu valor se anula, pois mesmo a maior
perfeição formal não pode dar conta de insuflar de sentido um detalhe isolado. A
191
própria questão da tipicidade é enriquecida com a técnica da descrição empreendida por
Balzac.
Em momentos anteriores falamos sobre o recuso da tipicidade, essencial
para que as obras de arte representem as contradições da sociedade de modo autêntico e
fiel. Nesse sentido, tanto a construção dos personagens típicos quanto a constituição de
situações típicas devem ser meios utilizados pelos artistas para que suas obras cumpram
a função desfetichizadora que cabe à arte e para que seja afastada qualquer possibilidade
da obra de recair no hiperdetalhamento, ou mesmo, na hipermotivação, elementos que
servem como entraves para a representação desfetichizada da evolução humana pela
arte. A “Estética” lukacsiana, ao afirmar a missão da arte como representação
desfetichizadora da realidade, se afasta substancialmente da estética de juventude, pois a
arte não é mais a satisfação interior de um desejo humano que não se cumpre, jamais, na
vida prática cotidiana, mas:
[...] a expressão de uma realidade que, embora transcenda os horizontes de
vida habituais do indivíduo, é, a um só tempo, a concreção de reais
possibilidades humanas. E, mesmo no caso de obras já distantes no tempo, ou
que simplesmente dizem de tempos idos, como o romance histórico, a vivência que elas propiciam não é algo abstrato, não a recordação do que se
perdeu no passado, mas o resgate rememorativo de uma experiência universal
em sua historicidade (PATRIOTA, 2010, p. 250).
A experiência artística passa a ser entendida, na estética de maturidade,
como o resultado de um processo que infunde nos sujeitos a autoconsciência de si do
gênero humano, consequentemente, tornando-se um movimento voltado, ainda, ao
autoconhecimento. Por conseguinte, a experiência estética proporciona a vivência da
essência do humano através da concretude do destino de personagens e de situações
típicas. Dessa forma, o abismo transcendental intransponível entre obra e objetividade,
que fundamenta a ideia de que a vivência é incomunicável na estética de juventude, é
superado na estética de maturidade, de modo que o papel da vivência é ressignificado
pelo velho Lukács:
[...] uma vez que nela a subjetividade é brindada com uma riqueza de afetos
que retroagem sobre sua personalidade de forma absolutamente incomum,
arrancando-a temporariamente do curso normal da vida, esta vivência
propiciada pela arte deixa de ser algo fechado sobre si mesmo para se abrir à
vida real, impondo-lhe, por assim dizer, um desafio (PATRIOTA, 2010, p. 258).
192
Podemos afirmar, por conseguinte, um estreitamento no que tange à relação
entre arte e vida na estética de maturidade, pois a recepção e a criação artística assumem
como princípio a vida substancial do homem e toda a evolução da humanidade: passada,
presente e possibilidades futuras. Esse aspecto corrobora a seguinte afirmação: “(...) a
substancialidade artística é a substancialidade do homem” (PATRIOTA, 2010, p. 259),
pois, ao se realizar, o objeto estético revela e efetiva toda a subjetividade do seu criador
e da humanidade; fator que aproxima ainda mais a relação mencionada entre arte e vida,
a qual também será assegurada pela categoria da catarsis, sobre a qual falaremos mais
adiante.
2.10. A relação sujeito-objeto na estética
Findamos a seção anterior afirmando que a obra de arte revela e efetiva toda
a subjetividade do seu criador, de modo que a substancialidade do homem é, portanto, a
substancialidade artística. Para trilhar esse caminho, é necessário reafirmar que a arte
nasce de um ímpeto antropomorfizador, ou seja, a partir de uma subjetividade artística
que reafirma as suas ligações com o plano da vivência sensível. Nesse movimento, as
representações figuradas pelo artista, longe de serem distorcidas pela subjetividade
criadora, são plasmadas devido a essa mesma subjetividade, de forma que a penetração,
a apropriação, a seleção e a elaboração do conteúdo da obra sejam revestidas de uma
vigorosa capacidade artística de refletir o mundo de modo justo e fiel:
A subjetividade auto-referida da arte é ao mesmo tempo subjetividade
referida ao mundo, elevação à objetividade e apreensão de suas formas e
conteúdos. Subjetividade e objetividade formam, no interior da esfera
artística, uma unidade peculiar rica em contradições que nada tem de
irracional, sendo, antes, deriváveis da própria racionalidade do fenômeno
estético (PATRIOTA, 2010, p. 174).
A ideia da subjetividade autorreferida da arte, como mencionada na
passagem acima, afasta a possibilidade de uma figuração artística fetichizada do mundo.
Nesse sentido, a relação entre subjetividade e objetividade nos processos de criação e de
recepção artística reafirma-se como uma exigência absolutamente necessária.
193
Resgatando o pensamento de Goethe, Lukács observa uma possibilidade da concepção
do sujeito pelo viés de uma estrutura objetiva da relação sujeito-objeto. Ao reconstituir
os passos que levam a essa possibilidade, é colocada a seguinte questão: O núcleo da
natureza não está no coração dos homens? Lukács acredita que a resposta a essa
formulação nos conduz ao estético, pois o artista só é capaz de figurar o mundo
adequadamente na obra de arte se sua personalidade é apropriada para ser, então, o
espelho desse mundo. Depreende-se dessa afirmação, uma relação entre sujeito e mundo
em que o núcleo do homem é, precisamente, o elo mediador mais importante entre a
personalidade humana e a humanidade que reside dentro dela, entre suas emanações
internas e externas, de forma que o sujeito reflete na obra um mundo do qual ele faz
parte e que ele comporta em sua subjetividade.
Esteticamente, o interno torna-se concreto por meio do fato de que a natureza
penetrada pela atividade do gênero humano - a natureza em intercâmbio com
a sociedade - realiza uma tal relação entre o interno e o externo que todos os
fenômenos da natureza se encontram em íntima conexão com a existência do
homem, e que, portanto - literalmente e não metaforicamente -, o núcleo
desses fenômenos toca imediatamente a alma do homem, assenta-se dentro
dela: o artista autêntico tem “meramente” que intensificar essa unidade do
interno e do externo, que objetivamente está presente em todas as partes, a
ponto de alcançar a substancialidade estética, e levar evocadoramente a
consciência à sua unidade absoluta (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 481, tradução
nossa).
Depreende-se da compreensão dessa passagem, a afirmação goethiana de
que a natureza não possui nem núcleo nem casca, isto é, a unidade do interno e do
externo na natureza significa para ela mesma a invalidação de uma possível distinção
entre aquilo que é núcleo (interno) e o que é casca (externo), impulsionando Lukács a
afirmar que o caráter nuclear do homem se manifesta em sua capacidade de: “(...)
perceber, pensar e sentir o interno e o externo em sua unidade (LUKÁCS, 1972, vol. 2,
p. 482, tradução nossa). Vejamos de que maneira Patriota desenvolve essa questão
traduzindo-a para o comportamento estético:
A complexidade do comportamento estético aumenta devido a sua
ambivalência. Por um lado, a mimese artística não pode se furtar ao desafio
de captar fiel e substancialmente traços essenciais da realidade; por outro,
essa captação se nutre de um profundo envolvimento subjetivo, ou melhor, de
uma força antropomorfizadora que satura e contagia seu objeto com todo um
conjunto de significações humanas, configurados em processos altamente
individualizados. Aqui, a exigência de objetividade não tolhe os direitos
eternos e inalienáveis da subjetividade - fantasia, emoção, partidarismo etc.
194
Além disso, esta subjetividade atuante na esfera estética, se for de fato capaz
de alçar-se ao ser-assim das coisas, de penetrá-los e descobrir seus segredos,
não poderá se confundir com uma subjetividade meramente particular
(Partikularität). Em outras palavras, a transformação da realidade objetiva
dada em realidade para o homem, adequada aos seus anseios mais puros, não
é obra de uma subjetividade fixada em sua vida meramente pessoal
(PATRIOTA, 2010, p. 196).
Entendemos, portanto, que a relação do artista com o objeto que pretende
representar não deve recair em subjetivismos, isto é, a obra não pode se resumir a meras
projeções de sentimentos singulares que não encontram correspondência na vida
objetiva dos homens. Existe, portanto, na esfera estética, um equilíbrio entre
objetividade e subjetividade e uma exigência da esfera artística de uma objetividade,
que, de forma alguma, esmaga a subjetividade artística. O que tem de se ter em mente é
que o objeto da representação sempre está referido à subjetividade, de modo que recebe
sentido a partir da vivência do receptor, ou seja, por meio de um processo de evocação
das ressonâncias particulares de cada um dos diversos sujeito que fruem o objeto. No
momento da criação artística, os traços subjetivos do artista e o objetivismo da realidade
concreta refletida na obra de arte convertem-se, ambos, em uma particularidade
peculiar, de forma que:
[...]; a singularidade só se mantém elevada à condição de uma particularidade
própria e específica no confronto com o universal do movimento concreto, o
qual, por seu turno, é traduzido pelo sujeito como uma totalidade
determinada. Estamos diante de um movimento transformador que Lukács denomina “purificação e elevação” da subjetividade: na conformação estética
do particular historicamente situado; o próprio artista porta-se como uma
universalidade singularizada, como uma particularidade própria ao colocar-se
acima do imediato heterogêneo e cotidiano, acima de suas próprias
impressões imediatas e sensações corriqueiras, frente ao mundo social –
elevando-se de indivíduo a gênero humano, de singularidade em si a
individualidade para si (CARLI, 2012, p.127).
Retomamos, aqui, o entendimento do homem como núcleo no processo de
criação estética, o qual demanda do sujeito a percepção, o pensamento e o sentimento
do interno e do externo em sua unidade, para que seja possível, por fim, uma
representação fiel da realidade objetiva na obra de arte. Da mesma forma, resgatamos a
ideia da recepção artística em sua relação com as noções de núcleo e casca, pois o
sujeito receptor só pode vivenciar plenamente os conteúdos plasmados na obra de arte a
partir do momento em que as suas vivências permitem fazê-lo.
195
A relação entre o externo e o interno nos conduz, ainda, ao problema da
forma artística e de sua relação com o conteúdo na estética de maturidade. Para o jovem
Lukács, a forma artística é entendida como algo que deveria dar sentido e ordenar uma
realidade heterogênea, de conteúdos dispersos e despida de sentido; sublinhando que
forma e conteúdo, por mais que estivessem articulados, eram categorias reciprocamente
estranhas, o que se confirmava no caráter irracional do conteúdo. O velho Lukács revê
este ponto, assegurando que o objeto estético passa a se adequar à realidade que, por si
só, já é portadora de significado; significado este evidenciado pela reprodução artística.
Como o artista, ao criar a obra, seleciona para compô-la um tema da realidade, esfera
que já porta o sentido em si, a forma artística passa, assim, a recusar um caráter quase
metafísico predicado a ela na “Estética de Heidelberg”, encaminhando o movimento
deste pensamento para a afirmação de que a forma é sempre forma de um conteúdo
determinado. Nesse sentido, emana do conteúdo a ser configurado a sua forma artística
adequada, que vem à tona a partir de um processo de elaboração do conteúdo pelo
artista: “Isso implica que cada novo conteúdo, cada nova expressão do real, demanda
uma nova forma estética e, portanto, uma outra conformação do particular” (CARLI,
2012, p. 124).
A partir dos aspectos mencionados, afirmamos que não se pode negar, de
maneira alguma, a indissolubilidade entre forma e conteúdo na “Estética”, bem como é
necessário sublinhar a ideia do conteúdo como fator determinante nessa relação.
Segundo Carli “(...) temos a primazia do conteúdo extraído do movimento do real sobre
a forma gerada, em última instância, pelo sujeito artístico” (CARLI, 2012, p. 124). Para
Lukács, a forma artística é um meio de expressão de um conteúdo essencial presente na
evolução da humanidade. A relação bem sucedida de forma e conteúdo produz um
efeito evocativo concreto e geral, que é, igualmente, uma necessidade social.
Imprimir forma a um conteúdo não deve advir de um processo em que o
artista fixa a priori a configuração estética. Àquele que procede deste modo, operando a
partir de uma inversão na relação, Lukács predica-o “amaneirado”. Se a subjetividade
artística fracassa na tentativa de atribuir a forma ao conteúdo selecionado, isso se dá,
dentre outros fatores, pela dificuldade do artista em conceder ao objeto a
homogeneidade compreensiva de mundo por ele pretendida, o que repercute na
196
impossibilidade de se alcançar a força imanente e intrínseca de orientação do meio
homogêneo. Carli, na passagem a seguir, cita os diversos efeitos gerados por uma
subjetividade artística entendida por Lukács como “amaneirada”:
[...], o enrijecimento da maneira ou da técnica, em geral, desfavorece a
fixação da particularidade como meio organizador, a relação entre conteúdo e
forma, a reabsorção estética da realidade e, assim, o pleno triunfo do realismo
(CARLI, 2012, p. 125).
A relação sujeito-objeto não se esgota no processo de criação artística e na
relação estabelecida entre o artista e os conteúdos do mundo que este pretende figurar
na obra de arte. Essa relação se expande quando pensamos, ainda, no processo de
recepção da obra de arte, assunto sobre o qual falaremos na seção seguinte.
2.11. A catarsis e a experiência receptiva na estética
Como mencionado em momentos anteriores, o projeto monumental da
“Estética”, infelizmente, não fora concluído. Das três partes pretendidas pelo autor,
organizadas a partir de eixos temáticos, somente uma delas fora finalizada. Entretanto,
podemos encontrar na “Estética” algumas pistas, alguns indícios, ou mesmo, o
desenvolvimento, ainda que breve, de temas que seriam analisados nas partes seguintes,
tal qual a questão da experiência receptiva da obra de arte. Até então, discorremos,
essencialmente, acerca do processo de criação artística, justamente, porque o material
produzido por Lukács incide, substancialmente, sobre essa temática e porque a questão
da utopia só pode ser entendida a partir da reconstrução de um caminho que passa pela
criação artística e pelos processos e efeitos relativos a tal questão. Todavia, para
avançarmos na discussão do tema da utopia, entendemos que a recepção artística é a
pedra de toque de nosso debate. Daremos, doravante, andamento a essa questão.
Entretanto, indicamos ao leitor que a temática da recepção na esfera estética é tratada,
segundo Lukács, de forma breve, pois uma atenção especial ao assunto seria despendida
na segunda parte da “Estética”, a qual, infelizmente, não chegou a ser redigida:
197
É impossível, aqui, naturalmente, decompor analiticamente o complicado
quadro da recepção e mostrar tipologicamente seus diversos níveis,
diferenças, etc., desde a simples recepção da obra até os graus superiores da
consciência estética, isso pertence ao ciclo de tarefas da segunda parte
(LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 491, tradução nossa).
Lukács se resume a fazer alguns apontamentos sobre os efeitos imediatos da
recepção das obras de arte, acerca dos quais, igualmente, nos deteremos. Para o autor,
os processos de criação e recepção das obras transcorrem de modos diversos. Naquele,
os conteúdos essenciais - esteticamente purificados e homogeneizados - conduzem à
plenitude formal, ou seja, à identidade entre forma e conteúdo, a partir de um processo
de elaboração do conteúdo para que este culmine na forma concreta do objeto estético.
No processo de recepção, é necessário se ater a dois pontos: o primeiro deles consiste no
caráter puro ou predominante de conteúdo que a vivência comporta, de forma que a
relação entre fruidor e obra só se concretiza esteticamente se esta nasce conscientemente
da evocação do conteúdo; assim, o receptor é apresentado a um mundo novo, que,
concomitantemente, é, para ele, um tanto familiar. Essa noção de familiaridade com o
mundo refigurado na obra é necessária para que o efeito autenticamente estético seja
produzido. O segundo ponto consiste na ideia de que a experiência estética não pode ser
alcançada a menos que seja evocada pelas formas da obra de arte. A partir dessas
afirmações, podemos afirmar, portanto, que estamos diante do que Lukács denominou
duplicidade específica da esfera estética no que tange ao processo de recepção do objeto
artístico.
Esse processo de recepção das obras tem de resultar na transformação do
homem inteiro em homem inteiramente orientado à universalidade de um meio
homogêneo. O conteúdo humano dessa transformação pode ser colocado, segundo
Lukács, nos seguintes termos. O sujeito fruidor, no momento da contemplação da obra,
se afasta relativamente do plano da vida cotidiana para:
[...] se orientar exclusivamente e temporalmente à contemplação de um
aspecto vital concreto, que refigura o mundo como totalidade intensiva das
determinações decisivas que são oferecidas a partir de certa perspectiva
(LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 495, tradução nossa).
Afirma-se, portanto, que o sujeito fruidor se abre a um tipo de relação com o
objeto que tem como marca um comportamento receptivo, o qual acolhe,
198
imediatamente, o objeto da contemplação. Aqui, suspendem-se as tendências ativas do
homem e sua vontade de intervir efetivamente nos dados concretos do mundo que o
rodeia. De modo contrário, é caracterizado o comportamento da criação artística, no
qual domina o princípio ativo, balizado pela transformação progressiva dos conteúdos
essenciais da vida em identidade de forma e conteúdo.
Para que se opere a transformação do homem inteiro em homem
inteiramente, o meio homogêneo tem de penetrar na vida anímica do receptor,
realizando o seu papel de orientar e evocar as vivências desse sujeito no ato da fruição
estética, de forma a subjugar o seu modo habitual de contemplar o mundo, ofertando-lhe
um mundo novo, preenchendo-lhe de novos conteúdos ou ofertando-lhe uma maneira
nova de concebê-los. O resultado dessa experiência tem como consequência a recepção
e a apropriação pelo sujeito fruidor de um mundo com sentidos renovados, o que amplia
e enriquece os conteúdos de sua psique. Lukács nos atenta, por conseguinte, que o
sujeito fruidor não deve ser entendido como uma tábula rasa ou uma folha em branco
diante da obra. Até mesmo quando esse sujeito é uma criança, o autor ressalta que a sua
vida já fora preenchida de vivências, experiências, impressões ou pensamentos que
agirão, de certa forma, sobre ele. Lukács, entretanto, afirma que os conflitos que podem
resultar dessas questões são de diversas ordens e, portanto, fala que não tratará deles de
forma ensaística ou a partir de uma tipificação provisória:
Observemos simplesmente que seria trivial e desorientada uma limitação social absoluta das possibilidades de eficácia das obras de arte, como, por
exemplo, uma limitação segundo a qual uma obra nascida sob uma base de
classe proletária não poderia ter eficácia alguma na burguesia, ou vice-versa
[...] (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 497, tradução nossa).
“As Bodas de Fígaro”, redigida por Pierre-Augustin Caron de
Beaumarchais, as obras de Gorki e Brecht, bem como o filme “O Encouraçado
Potemkin”, de Serguei Eisenstein, são alguns dos exemplos citados na “Estética” que
mostram como os mais diversos objetos estéticos alcançam homens de características
múltiplas e penetram suas mentes, ressoando, portanto, em seu interior. O autor também
é bastante enfático ao ressaltar que: “(...) é perfeitamente possível que uma sensibilidade
artística viva e apaixonada e o pressentimento de sua infalível ineficácia entrem em
conflito com as tarefas vitais do homem inteiro que vive na realidade” (LUKÁCS, 1972,
199
vol. 2, p. 497, tradução nossa). Em suas recordações sobre Lenin, Gorki conta que,
ouvindo uma reunião de sonatas de Beethoven, aquele declarou não conhecer nada mais
charmoso que a “Apassionata”. Sobre ela, afirmou que poderia ouvi-la diariamente, pois
era extraordinária. Disse, ainda, segundo Gorki, com um orgulho um tanto ingênuo, que
os homens são capazes de produzir tais milagres, mas, ao enxugar os olhos, sorriu e
emendou que não podia ouvir música com tanta frequência, pois elas afetavam seus
nervos, suscitavam nele o desejo de falar bobagens e de acariciar a cabeça dos homens
que viviam neste “porco inferno”, mas que eram capazes, apesar dos pesares, de
produzir tantas belezas. Proferiu, por fim, que, naquele momento, não mais era
permitido acariciar a cabeça de ninguém. Essa recordação de Gorki, trazida por Lukács,
ilustra o poder do qual a arte autêntica dispõe de submeter os sujeitos à recepção dos
objetos mesmo quando há resistência de alguns indivíduos de superação do homem
inteiro pelo homem inteiramente.
O poder evocador da obra de arte de conduzir o sujeito à fruição estética,
possibilitando a transformação do homem inteiro da vida cotidiana em homem
inteiramente, nos conduz à noção de catarsis, categoria que, por sua vez, opera de
forma particular em cada um dos sujeitos ao mesmo tempo em que os impulsiona à
generalização. Antes de desenvolvermos mais amplamente essa ideia, é importante
mencionarmos a vinculação da estética antiga e de suas “dignas” 14 sucessoras modernas
a uma postura que justifica o real papel social da arte. O posicionamento dessas
estéticas está alinhado à ideia de que o poder das vivências artísticas influencia o
homem de forma intensa, podendo, assim, transformá-lo. Afirma Lukács, portanto, que
a estética antiga descobre a sua função social a partir da noção de que:
[...] um determinado exercício de determinadas artes é parte das forças transformadoras da vida humana e, portanto, da vida social; que a arte é
capaz de influenciar os homens e as direções de efeito promotor ou inibidor
da formação de determinados tipos humanos (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 499,
tradução nossa).
Essa concepção rechaça, por conseguinte, as teorias que visam distanciar e
isolar o estético e a vida social dos sujeitos. Ao retomar Lessing, Lukács alega que este
autor resume de forma adequada o efeito social da arte para a estética da antiguidade, o
14 A expressão “dignas sucessoras modernas” é utilizada pelo próprio Lukács em oposição às estéticas
que pretendem estabelecer um distanciamento entre as obras de arte e a vida social dos homens.
200
qual consiste “na transformação das paixões em disposições virtuosas”. Para
Aristóteles, o efeito produzido pela música, por exemplo, não se limita, apenas, à ideia
de um prazer sensível, mas promove, sobretudo, um efeito ético, de modo que essa arte
“influencie o caráter e as almas”. Em sua “Poética”, Aristóteles define a tragédia como
“imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem
ornamentada”, acrescentando que, “suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a
purificação dessas emoções” (ARISTÓTELES, 1993, p. 37). Essa purificação das
emoções corresponde, justamente, à ideia aristotélica de catarsis, a qual está
intrinsecamente relacionada ao gênero trágico. Para o filósofo, o enredo é o elemento
fundamental da tragédia, de forma que é possível defini-lo como a imitação de uma
ação cujo télos, ou seja, a sua finalidade é, logo, o seu efeito, o seu érgon. Este érgon é
a catarsis, que tem por efeito a purificação das emoções humanas. Nesse sentido, pode-
se assegurar que o efeito catártico coroa a experiência de recepção da obra trágica.
Tomando por base essa afirmação, Lukács pondera que a ideia de catarsis, aplicada
apenas à tragédia, aos afetos voltados ao terror e à piedade, tal como postulou
Aristóteles, deve ser ampliada.
Nesse sentido, o autor afirma que, como todas as categorias estéticas, a
catarsis tem sua origem primária na vida e, não, na arte, de forma que ela foi e
permanece como um momento constante e significativo da própria vida social dos
homens. Se a obra de arte refigura os conteúdos próprios da vida humana e se a catarsis
tem sua origem na vida dos homens, como acredita Lukács, a correspondência entre as
categorias estéticas e àquelas presentes na vida humana é um princípio constante que
embasa a estética deste autor:
Toda arte, todo efeito artístico, contém uma evocação do núcleo vital humano
- o que suscita em cada receptor a pergunta goethiana se ele é núcleo ou
casca-, e, ao mesmo tempo, inseparavelmente a ela, uma crítica da vida (da
sociedade, da relação que ela produz com a natureza). E como, de acordo
com o que foi visto, a vivência receptiva tem que ser desde o ponto de vista
imediato uma vivência de conteúdo, a vivência mesma manifesta esse
complexo problemático como conteúdo central do mundo que a obra de arte
desperta e vivencia (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 501, tradução nossa).
Como dissemos, o entendimento da categoria da catarsis deve ser ampliado,
segundo Lukács, pois esta não nasce simplesmente da estrutura da obra de arte
considerada em si mesma. Em sua identidade de forma e conteúdo, o objeto artístico
201
concentra dois complexos importantes, os quais estão intrinsecamente relacionados. São
eles, o da própria obra com a realidade objetiva que possibilitou o seu nascimento; e o
da possibilidade de suscitar e despertar alguma influência na alma do sujeito receptor. A
imbricada relação entre esses dois complexos nos conduz à afirmação de que, quanto
mais amplos e profundos são os conteúdos que a forma artística põe em identidade
consigo mesma, mais amplos e de mais profundo alcance torna-se a relação entre esses
dois complexos. A função humana e social da arte reside, essencialmente, neste ponto.
A recepção artística das autênticas obras de arte, entendida por Lukács
como a transformação do homem inteiro da vida cotidiana em homem inteiramente,
aproxima os indivíduos de uma formação humana omnilateral, de forma a impulsionar
um possível rompimento com a formação unilateral e limitada presente de forma
massiva na sociedade capitalista. Retomando Goethe e a ideia do homem como núcleo
ou casca, Lukács afirma que, para o escritor alemão, a missão mais importante da arte
consiste em conduzir e despertar o homem à sua situação de núcleo. Por tal motivo, uma
relação adequada com o mundo externo é, sempre, decisiva para o sujeito e para que ele
se veja como núcleo e não, somente, como casca.
Lukács resgatará, na “Estética”, um trecho do poema Epirrhema, de Goethe,
para ilustrar esse debate: “Al contemplar la naturaleza/Atenden siempre a lo uno como
al todo; /Nada esta dentro, nada esta fuera. /Pues lo que dentro, está fuera. /Y así aferrad
sin dilación/ El mistério sacramente público”(GOETHE apud LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.
481). A familiaridade do externo e do interno formulada por Goethe em seu estudo da
natureza é absorvida por Lukács em sua argumentação sobre a ampliação do sentido da
catarsis. Ao resgatar a afirmação do autor alemão de que as artes plásticas estão ligadas
ao visível, isto é, à manifestação externa do natural, Lukács sublinha que a noção de
natural está associada não, somente, a algo visualmente objetivo, mas, ainda, a algo
humano e ético, a saber, socialmente moral. Soma-se a esse conjunto de ideias, a
observação conclusiva de Goethe de que todo objeto artístico deve ser julgado segundo
a sua adequação para ser “uma expressão ética do natural”:
Dessa forma Goethe colocou o fundamento filosófico de nossa generalização
da catarsis para a arte em geral e para as artes plásticas em particular. Pois se
a relação visual do homem frente aos objetos naturais, ao seu conjunto, é uma
relação ética - e recordamos outra vez o que dissemos sobre o intercâmbio da
sociedade com a natureza -, por conseguinte, no efeito que produz sua
202
refiguração artística é gerada uma comoção que, com fundamento, pode se
chamar de ética. Imediatamente, se mescla à comoção do receptor, pelo novo
que cada obra individual nele desencadeia, um sentimento
concomitantemente negativo, um pesar, uma espécie de embaraço por nunca
haver percebido na realidade, na própria vida, o que tão naturalmente se
oferece na conformação artística (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 507, tradução
nossa).
O significado dessa passagem caminha na direção da afirmação de que a
catarsis estética é um reflexo concentrado e conscientemente produzido de comoções,
que, no plano da vida cotidiana, ocorre de forma espontânea e simultânea aos
acontecimentos que permeiam a vida dos sujeitos. Ao entrar em contato com a obra de
arte, o sujeito fruidor percebe uma elevação do mundo fetichizado a um mundo de
caráter verdadeiramente humano, revelado, assim, pela experiência catártica, que
proporciona a humanização do receptor. Nesse sentido, é correto afirmar que a catarsis
assevera a missão desfetichizadora da arte, a qual se realiza por meio de dois
movimentos: 1) a revelação ao homem da fetichização da vida cotidiana em que está
inserido e 2) o movimento de defesa da integridade da humanidade no plano dessa
mesma vida cotidiana. Desse modo, a obra de arte se torna um veículo também
pedagógico, pois possibilita ao receptor, diante da obra, a percepção “natural” de alguns
aspectos da vida, que, no plano da vida cotidiana, ficam obscurecidos pelas próprias
particularidades dessa esfera, como a dispersão. Esse movimento nos leva à
compreensão lukacsiana da arte como crítica da vida e como forma de transformação
desta.
Podemos afirmar, diante dos movimentos previamente descritos, que a
imediaticidade própria da esfera estética, quando comparada à da vida cotidiana, é uma
imediaticidade superada, pois consiste na produção de uma nova imediaticidade não
observável em nenhum outro plano. É inegável que os conteúdos gerais e essenciais da
vida humana se encontram de forma latente na imediaticidade da vida cotidiana,
entretanto, esses conteúdos devem ser descobertos e revelados, ao passo que, na
imediaticidade própria do campo da arte, os conteúdos gerais e essenciais da evolução
humana aparecem, simultaneamente, ocultos e manifestos. Essas particularidades
estruturais conferem ao objeto estético a possibilidade de criação de um mundo novo
em que os conteúdos essenciais da vida cotidiana são selecionados, reagrupados e
depurados pela forma artística, o que causa certa mudança funcional na estrutura de
203
mundo da vida cotidiana. Esse movimento leva, por fim, à criação de um mundo
fechado e adequado, o qual pode ser recebido pelo sujeito conforme as suas
necessidades vivenciais e à sua capacidade de recepção.
A desfetichização e a catarsis são meios pelo quais a arte realista realiza o
seu papel na formação dos homens, pois reconcilia o sujeito com o mundo do qual ele
se separou. Esse movimento permite que o indivíduo se reconheça no mundo dos
objetos, assegurando a possibilidade da identidade sujeito-objeto denegada pelo
trabalho estranhado e fetichizante. Desta feita, a objetivação humana não está rendida à
fetichização e à alienação, pois o homem pode, por meio da experiência estética, se
reconhecer no mundo dos objetos e se sentir parte desse mundo do qual é co-criador,
restabelecendo, por conseguinte, a relação entre o homem inteiro e o homem
inteiramente, a qual não vigora na vida reificada. Esse conjunto de noções somente
corrobora a ideia de que a arte se apresenta como um meio para que o homem possa
retornar ao mundo cotidiano e, nele, construir uma relação sujeito-objeto autêntica.
Nesse sentido, a experiência catártica conduz o sujeito a viver o mundo como sua pátria,
de forma que ele pode se reconhecer como parte do gênero humano, vislumbrando tudo
aquilo que fora construído historicamente pela humanidade. A partir dessa experiência,
o sujeito estético pode vivenciar o sentido humano, profundo e, por fim, amplo de sua
vida singular, sem que seja necessário o apagamento de suas singularidades. Ele pode,
ainda, experimentar a sua construção como ente universal e genérico, ou seja, como
parte da humanidade.
Enfatizamos, destarte, a tarefa da forma artística na “Estética”, que consiste,
justamente, em “(...) tornar universalmente vivenciável um conteúdo relevante para a
humanidade” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 518, tradução nossa). É necessário lembrar a
primazia do conteúdo sobre a forma afirmada por Lukács na obra, atentando que,
somente um conteúdo intrinsecamente relacionado ao destino da humanidade, ou seja,
essencial, pode originar uma atribuição de forma realmente profunda pelo artista ao
objeto que pretende configurar. Resgatamos, portanto, um princípio essencial da estética
para o autor, o de que a forma é sempre a forma de um conteúdo determinado, de modo
que nem o mais grandioso artista pode realizar a identidade de forma e conteúdo no
objeto estético se a relação entre estes é inexistente ou incipiente. O efeito duradouro ou
204
transitório de uma obra bem como de sua recepção estão intimamente ligados a este
princípio. Para Lukács, portanto, a vivência estética genuína é uma vivência de
conteúdo. Essa afirmação pode soar um bocado estranha, mas é justificada a partir do
entendimento da forma artística como elemento que possibilita a materialização de um
mundo homogeneamente unitário e, ao mesmo tempo, complexo, concebido de modo a
se referir ao sujeito receptor no que tange tanto às suas partes quanto ao todo da
configuração, funcionando, por sua vez, como um mundo, ou seja, como conteúdo.
Retomando o conjunto de noções congregadas por Lukács no âmbito da
recepção artística, é possível afirmar a elevação do sujeito fruidor diante da vida
cotidiana pelo efeito da catarsis, movimento que desencadeia um choque entre o mundo
objetivo refletido esteticamente pela obra e a subjetividade cotidiana, ampliando e
enriquecendo as vivências do sujeito receptor, aspecto igualmente perceptível na
seguinte observação de Lukács:
[...] o homem se orienta necessariamente na vida para ações, decisões, etc.,
individuais, isoladas, enquanto que em sua atitude diante da obra de arte é
suspensa temporalmente essa vinculação entre as vivências e as ditas
manifestações concretas da realidade, de tal modo que [o homem] se entrega à vivência estética de cada caso com sua personalidade total, sem que as
consequências desses efeitos possam se revelar, senão no Depois da
recepção, por isso tais consequências têm que ser ainda mais multívocas e
mais ricas em estratos do que os efeitos produzidos pela própria vida
(LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 510, tradução nossa).
Lukács enfatiza, assim, a importância da distinção entre os momentos do
Antes e do Depois na experiência da fruição estética. Embora estes se dêem de forma
simultânea e seus limites se manifestem de maneira tênue na imediaticidade da
vivência, eles são essenciais para que sejam ativadas e sacudidas as paixões vitalmente
ativas do receptor, no sentido de que estas possam recobrar novos conteúdos, novos
caminhos e, assim que purificadas, “(...) se convertam em embasamento anímico de
disposições virtuosas” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 508, tradução nossa). A recepção
estética, por meio da catarsis, promove, assim, certo confronto entre os conteúdos
pessoais do receptor e aqueles vivenciados na obra; aspecto que possibilita uma
mudança de orientação dos seus conteúdos internos após o momento da fruição. Sobre o
efeito catártico, Lukács afirma:
205
[...] não se reduz, por conseguinte, a mostrar novos aspectos da vida ou a
iluminar com novas tonalidades aspectos já conhecidos pelo receptor, mas a
novidade qualitativa da visão que assim nasce altera a percepção e a
capacidade e a torna apta para a percepção de novas coisas e de objetos
habituais a partir de uma nova iluminação, de novas conexões e de novas
relações de todas essas coisas com ele mesmo. Neste processo, como temos
dito, se mantém inalteradas, em princípio, suas decisões anteriores,
finalidades, etc., as quais simplesmente são suspensas durante o efeito da
obra (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 528-29, tradução nossa).
Lukács afirma que, após a vivência estética, o sujeito retorna ao plano da
cotidianidade com as mesmas finalidades concretas que tinha no momento que precedia
a sua experiência receptiva, pois esse tipo particular de recepção não se refere
diretamente aos esforços anteriores do sujeito; mas enfatiza que essa ausência de relação
entre os conteúdos prévios e posteriores do fruidor, durante a experiência estética, é
meramente imediata. Tal afirmação se justifica porque a obra de arte não é, somente,
um mundo fechado para si, mas age sob o receptor de modo a colocá-lo diante de um
mundo que a ele faz referência, isto é, um mundo que é, em certo sentido, dele próprio.
Enfatiza Lukács que a vinculação entre os conteúdos do sujeito receptor e aqueles
materializados no objeto artístico será mais rica proporcionalmente à profundidade e à
universalidade apresentadas nas obras.
No Depois da vivência estética, as finalidades práticas imediatas do sujeito,
isto é, aquelas que se mantiveram suspensas durante o momento da fruição, não se
transformam imediatamente após essa experiência. Antes de tudo, a transformação
ocasionada pela vivência receptiva, seja ela consciente, inconsciente, visível ou oculta,
afeta o homem inteiro, a sua relação com a vida, com o mundo, as suas atitudes diante
deste e a sua interação social; aspecto que nos leva à afirmação de Tertulian de que: “O
ato de contemplação estética não está, então, hermeticamente isolado do fluxo da
consciência prática. Relações de osmose existem entre os dois planos” (TERTULIAN,
2008, p. 283). Somente quando esse efeito é alcançado de forma substancial é possível
que, dele, se depreendam novas finalidades humanas concretas, as quais aparecem,
portanto, de forma diversa daquelas que precederam a vivência artística de uma obra.
Para ilustrar a afirmação precedente, Lukács resgata os romances de Chernichevski, os
quais influenciaram o contexto da Revolução Russa:
[...] seu efeito não consiste tanto em uma simples reprodução intelectual, emocional e prática de seu conteúdo quanto no mediado efeito posterior de
206
modos de comportamentos humanos típicos e na continuação dessa tendência
até a formação de um tipo de homem, cuja ocasião antecipada, e acaso
exemplar, foram certamente esses romances, os quais, devido ao seu
conteúdo essencial, se enraizaram nas lutas concretas da época, lutas nas
quais estão concretamente implicados os homens como homens inteiros da
vida (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 538, tradução nossa).
Segundo Lukács, as obras que nascem em momentos agudos de crise e de
transformações sociais severas tendem a incidir mais intensamente nos comportamentos
dos homens e da sociedade, modificando-os com vistas à realização de determinadas
finalidades concretas exigidas pelo momento histórico em que a obra nasceu.
Reproduziremos, a seguir, uma passagem longa da “Estética”, contudo, absolutamente
necessária, em que Lukács define o que entende como o Depois da experiência
receptiva, para que possamos, por conseguinte, avançar na exposição dessa questão:
O Depois da vivência receptiva pode ser descrito simplificadamente do
seguinte modo: a irrupção do meio homogêneo da individualidade da obra
nas vivências do homem inteiro converte-lhe, finalmente, em receptor
propriamente dito, orienta sua concentrada capacidade receptiva frente ao que
lhe é oferecido em cada caso; assim se converte em homem inteiramente
disposto à recepção. O poder evocador das formas, mediado pelo meio homogêneo, mantém o encantamento desse homem frente a um mundo novo,
e impõe a ele o selo de sua essência como um conteúdo novo e próprio. O
Depois consiste no modo como o homem inteiro, já livre dessa influência,
elabora o que fora adquirido. O adquirido é imediatamente conteúdo e, por
isso, suscita no homem a tarefa de inseri-lo em sua imagem anterior do
mundo e a transformá-la de modo correspondente para adaptá-la àquele
[adquirido]. Porém, somente em sentido imediato, se trata de conteúdo; como
este constitui o lado voltado para o receptor de uma identidade forma-
conteúdo, a componente formal dessa identidade se manifesta na grande
tensão e intensidade do todo, como já sabemos, além do mais a novidade da
obra atua também formalmente, na medida em que todo conteúdo comunica
ao receptor algo do método de sua percepção, de sua acessibilidade; por isso a percepção de novos conteúdos é, ao mesmo tempo, um estímulo e uma
orientação para reconhecer também na vida o que lhe é análogo e para
apropriar-se dele [dos conteúdos adquiridos]. Desta forma ocorre a passagem
do homem inteiramente receptivo ao homem inteiro da cotidianidade
(LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 536-37, tradução nossa).
As comoções e as transformações que ocorrem no sujeito receptor no
Depois da experiência estética são diversas, pois variam de homem para homem. Nesse
mesmo sentido, a profundidade, o alcance, o conteúdo, a duração e diversos outros
fatores oriundos da esfera estética repercutem nos múltiplos sujeitos das formas mais
distintas. Em muitas ocasiões, nos colocamos frente a uma obra de arte e seu efeito
sobre nós é, praticamente, imperceptível ou, até mesmo, nulo; entretanto, outras vezes, a
experiência é suficiente para provocar uma transformação completa e radical em nossas
207
vidas, pois afeta, diretamente, aquilo que é mais essencial no que tange à vida da
humanidade. Ainda que algumas obras não nos afetem substancialmente em um
primeiro momento, impactando, somente, algumas manifestações periféricas da vida, é
possível que estas se acumulem de forma a alcançar conteúdos essenciais, o que motiva
a afirmação de Lukács de que: “(...) o centro humano, esteticamente movido, não perde
nunca a sua íntima vinculação com a periferia da vida” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.538,
tradução nossa).
Se a força das obras de arte se orienta sempre ao homem inteiro, a fim de
transformá-lo em homem inteiramente; ao afetar o centro essencial daquele, que incidirá
sob a periferia desse mesmo homem, duas concepções extremas sobre a esfera estética
são trazidas à tona: 1) a de que a arte é uma força transformadora e, portanto, decisiva
da evolução social e 2) a de que a arte não tem nenhuma influência concreta e real na
vida social e prática dos homens. Esses extremos são, de acordo com Lukács,
falseadores, pois o papel social da arte consiste, essencialmente, em:
[...] uma preparação anímica para as novas formas de vida, com o efeito
subsidiário de que na arte se acumulam de modo vivenciável todos os valores
humanos do passado, por meio dos quais a arte é capaz de mostrar de forma
mais precisa as formações que se transformam totalmente no cenário
histórico, com sua plena totalidade humana. Por tal motivo, é possível que a
arte diga quais são os valores humanos que merecem se desenvolver, quais devem ser preservados e mantidos, e quais devem cair no esquecimento
(LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 539-40, tradução nossa).
Levando em consideração a passagem supracitada, pode-se compreender
por qual motivo Lukács não predica à arte uma força transformadora e decisiva da
evolução social bem como não afirma que ela possui nula influência concreta na vida
social e prática dos homens. A preocupação do autor está, essencialmente, voltada para
um entendimento do fenômeno estético como “preparação anímica” para as novas
formas de vida que acenam à sociedade. O acento, portanto, recai na ideia de preparação
desse homem esteticamente enriquecido, de forma que a vivência por ele adquirida no
Depois da vivência receptiva será importante para incrementar a sua capacidade de
isolar os conteúdos que ainda se mantêm vivos na velha cultura, fazendo com que estes
se tornem fecundos para o momento presente e, possivelmente, para um momento
futuro. Essa noção nos conduz à afirmação de que: “A arte amplia o âmbito dos
pensamentos e sentimentos dos homens porque traz à superfície da vivencialidade o que
208
está objetivamente contido em uma situação histórica” (LUKÁCS, 1972, vol. 2, p.541,
tradução nossa). Nesse sentido, o objeto artístico autêntico expressa os conteúdos
históricos referidos aos homens e traz, para eles, de acordo com Lukács, a verdade do
momento histórico:
Há, aqui, um sistema capilar infinitamente ramificado de relações que levam
da vida à arte, e da arte à vida; é um sistema capilar cuja importância para o
desenvolvimento consciente dos homens, das classes, das nações, não
conhecemos hoje mais que em suas grandes linhas grosseiramente esboçadas.
Somente a teoria dialética do reflexo estético consegue indicar, ao menos, as orientações e direções de princípio em que se manifestam e agem os
complicados e múltiplos movimentos do processo vital do gênero humano
(LUKÁCS, 1972, vol. 2, p. 541, tradução nossa).
As categorias estéticas que apresentamos até o presente momento, bem
como o debate sobre estas e seus desdobramentos desaguarão, doravante, na
sistematização do tema da utopia. Se este aparece de forma menos esparsa na estética
lukacsiana de juventude, o mesmo não ocorre na estética de maturidade, pois a questão
da utopia está dissolvida em um conjunto de reflexões do autor. Nesse sentido, é nossa
tarefa, portanto, no capítulo a seguir, reconduzir e orientar as exposições e os debates
realizados até aqui para a reflexão sobre o tema da utopia nas estéticas de juventude e de
maturidade do autor.
209
CAPÍTULO 3
“Arte, estética e utopia: relações possíveis”
3.0. Quando as ideias se materializam ou a confissão
Não seria possível o início deste capítulo sem, anteriormente, algumas
digressões acerca dos quatro anos em que este trabalho fora gestado. É preciso dizer,
primeiramente, que esta foi uma das aventuras intelectuais mais instigantes dentre
aquelas a que me dispus a realizar, mas, também, foi um processo em que angústias e
aflições, ora ou outra, emergiram, acompanhadas pelas várias xícaras de café que
ficaram pelo caminho durante essa empreitada. Acredito que, quando nos lançamos aos
textos, mesmo que de “peito aberto”, carregamos um conjunto de experiências, de
crenças, e, talvez, de certezas, que, em muitos momentos, se confrontam com os
resultados e com as análises que colhemos ao longo da escrita da tese. Comigo não foi
diferente. A redação deste capítulo obedeceu a essa lógica.
Desde o início da composição deste trabalho, me propus a escrever dois
capítulos nos quais discutiria as estéticas lukacsianas: a de juventude e a de maturidade.
Segui rigidamente essa proposta e observei, ao final desse processo, que a redação
desses dois capítulos transformou-se em uma exegese das ideias do autor, que
desembocam, na conclusão deste texto, no tema da utopia. A leitura das obras de
Lukács me conduziu a este esquema, pois foi necessário sistematizar as várias noções e
categorias dispostas nas obras referidas, a fim de que pudesse assentá-las sobre base
sólida para que a conclusão deste trabalho, enfim, tomasse forma. No momento em que
coloquei um ponto final no segundo capítulo, ainda não havia, internamente,
amadurecido o ponto de chegada desta tese. Acredito que, nessas ocasiões, as angústias
e aflições vêm nos assombrar, pois, se há um prazo burocrático e concreto para a
finalização da pesquisa, ele não se enquadra da mesma maneira ao plano do trabalho
210
intelectual. Aprendi que temos que atribuir um ponto final ao texto, mas a pesquisa...
essa carregamos para a vida.
Deparei-me, assim, com dois capítulos finalizados e cercada por diversas
perguntas; entretanto, me faltavam respostas para muitas delas. À medida que me
questionava, mais indagações surgiam e a possibilidade de ordená-las ficava mais
distante. Recorri, assim, novamente, ao diálogo com o texto. Se, a partir dele, tantas
perguntas surgiram, por meio dele deveria, então, buscar as respostas. Travei, portanto,
uma conversa com o meu texto e percebi que me tornei leitora de mim mesma. Na
tentativa de deixar a Renata autora de lado, me propus a encontrar, ao longo dos dois
primeiros capítulos, as respostas que motivaram os questionamentos, que,
gradualmente, surgiram durante a construção da tese. Ao longo deste processo, fui
(re)organizando as ideias, (re)formulando caminhos e descobri o ponto de chegada deste
estudo. Confesso que não obtive respostas para todas as perguntas que formulei, mas
declaro que fiquei satisfeita e alegre diante daquelas que consegui responder. Desta
feita, este capítulo consiste na sistematização de questionamentos suscitados ao longo
da redação deste trabalho, para que, ao final, pudesse ser respondida a sua pergunta
motivadora: Em que consiste a ideia de utopia nas estéticas lukacsianas?
Antes de iniciar o debate conclusivo deste trabalho, é necessário expor que a
redação deste terceiro capítulo fez com que eu revisasse muitos pontos e diversas
crenças que tinha ao início da composição da tese, já nos idos de 2015. Pré-julgamentos,
intuições e algumas certezas iniciais foram, gradualmente, demolidas, pois o estudo das
estéticas lukacsianas e, posteriormente, a leitura e a análise que fiz do meu próprio texto
apontaram-me outros caminhos e, por vezes, sepultaram certezas iniciais. Nesse sentido,
reformulei e ajustei alguns pontos do trabalho a partir das conclusões às quais cheguei,
o que me deu a certeza concreta de que o doutorado foi um longo processo de
aprendizado. Todo esse movimento me fez entender, ainda com maior atenção, a
importância dos prefácios demolidores que o Lukács maduro redige às suas obras de
juventude, fator que esclarecerei mais adiante. Para finalizar esse momento de
confissão, saliento que muitas questões estão, ainda, pairando neste texto, as quais, creio
eu, serão, um dia, formuladas. Outras tantas guardei comigo, e, certamente, as
carregarei para a elaboração de projetos futuros.
211
Descrevo, por conseguinte, as seções que compõem este terceiro capítulo. A
primeira delas aborda a fundamentação teórica diversa das duas estéticas e as
implicações que esses referenciais geram para a esfera estética. Em um segundo
momento, discutiremos a ideia da criação artística, voltada à noção de gênio, presente
na “Estética de Heidelberg”, e a concepção de artista realista, verificável na “Estética”;
observando as implicações dessas noções para o campo da arte. Posteriormente, nos
ateremos ao processo de recepção do objeto artístico, aspecto que nos encaminhará, por
fim, para a descrição da noção de utopia nas estéticas lukacsianas e de suas implicações
no que tange à esfera estética e ao pensamento lukacsiano sobre a arte. Por fim, nas
Considerações Finais, pretendemos sintetizar pontos importantes sobre a utopia e
apontar questões para trabalhos futuros.
3.1. Filosofia da vida e Marxismo: dois projetos estéticos em confronto
Ao longo deste estudo, compreendemos que as duas estéticas lukacsianas
são erigidas a partir de influências teóricas bastante diversas. Se, em sua juventude,
Lukács adotou as ideias da filosofia da vida para construir o seu projeto estético, na
maturidade, o aparato conceitual do marxismo se impôs como fundamentação da
“Estética” correspondente. Ressaltamos que, entre essas duas obras, cerca de quarenta e
cinco anos se passaram e muitos acontecimentos históricos importantes foram
vivenciados por Lukács, de forma que a sua postura diante do mundo também se alterou
substantivamente. Pensemos, à guisa de exemplo, o seu ingresso, em 1918, no Partido
Comunista húngaro, atitude que o aproximou da militância política e das lutas voltadas
à emancipação plena da humanidade. Enfim, se Gorki, no que tange à questão da
criação artística, afirmou que uma obra de arte rica é, muito provavelmente, produto de
uma vida igualmente rica, acreditamos que a trajetória intelectual de Lukács foi
alimentada também por uma vida repleta de experiências. Tal aspecto,
indiscutivelmente, reverberou no movimento de seu pensamento e nas posições que
assumiu durante a sua vida. Desta feita, a compreensão de suas estéticas, daquilo que
vem a ser a obra de arte e, consequentemente, da ideia de utopia, passam pelo
212
entendimento da fundamentação teórica de suas estéticas. A partir dessa concepção, esta
seção foi pensada no sentido de colocar frente a frente os dois projetos estéticos
lukacsianos a partir da filiação teórica que subjaz as obras em questão.
Como foi exposto no primeiro capítulo desta tese, a estética de juventude
apresenta um esquema em que a ideia de vivência, segundo o nosso entendimento, se
coloca como um dos elementos-chave para o entendimento do fenômeno artístico. Tal
noção é um dos conceitos centrais da chamada filosofia da vida ou ciências do espírito,
tendência filosófica que, segundo o velho Lukács, pode ser definida como a ideologia
dominante do período imperialista alemão, para a qual a vivência é entendida como o
elemento que contém todas as categorias da realidade objetiva, o que nos motiva a
afirmar que ela é sua própria prova. Nesse sentido, ela se objetiva naturalmente e goza
de uma estrutura hermenêutica, a saber, ela se auto-interpreta. Consequentemente, é
seguro afirmar que a vivência não é, somente, o seu próprio critério de verdade, mas, é,
ainda, a medida de todas as coisas. Essa categoria, transposta ao plano da arte, é
utilizada, dentre diversos outros aspectos, para que Lukács possa afirmar a autonomia
do plano estético em sua estética de juventude, de forma que a vivência se torna
responsável pela mediação da relação entre a arte e a subjetividade. Na esteira desse
raciocínio, o reconhecimento do objeto estético não está ligado diretamente ao juízo na
estética de juventude - ainda que este busque a transmissão de um sentimento que se
supõe comum a todos os seres - mas, relaciona-se, antes, à vivência imediata da obra de
arte. Nesse sentido, o sujeito estético - receptor ou fruidor - é aquele que vivencia o
objeto e, não, aquele que o ajuíza, o que corrobora a ideia de que a vivência é enaltecida
como um dos objetos filosóficos centrais da “Estética de Heidelberg”: vivência
objetivada como vida e vida subjetivada como vivência.
Se, para Dilthey, um dos maiores expoentes da filosofia da vida, existe
alguma possibilidade de conhecimento efetivo da realidade, ele se dará, por
conseguinte, por meio da vivência e da vida. Para este mesmo filósofo, toda vida tem
seu sentido próprio, que consiste, precisamente, em um nexo de significado. Para tal, é
necessário o entendimento de que todos os homens possuem em si o Universo - como
uma mônada leibniziana -, bem como são dotados da capacidade de lembrança; o que
motiva Dilthey a afirmar que todo presente passível de lembrança possui um valor
213
próprio. Depreende-se dessa noção, que há, simultaneamente, no nexo da lembrança,
uma relação com o significado do todo. Desta feita, a partir desse processo individual e
altamente subjetivo, o sujeito extrai o sentido das suas vivências, e, portanto, o sentido
da vida, o que nos conduz a afirmar que estamos diante de uma tendência filosófica que
entende que o mundo é construído pela vivência.
O sujeito diltheyano, nesse sentido, é aquele que conhece o mundo a partir
das percepções subjetivas que dele possui, o que nos leva a afirmar que a vivência
determina, por conseguinte, as formas da realidade objetiva e, não, o contrário. A partir
da fusão e da correspondência entre vivência e vida, a captação da essência da realidade
passa a ocorrer por meio de um princípio irracional que será responsável pela revelação
dos elementos que se manifestam nas formas, nos princípios e nas categorias do
pensamento; aspecto que invalida qualquer captação da realidade por meio de bases
materiais do ser, como o trabalho. Ao trazer esse conjunto de noções para a esfera
estética, as implicações são diversas. Primeiramente, percebe-se que a fundamentação
do objeto estético está ancorada na ideia de vivência, o que implica afirmar que a obra
de arte realizada é um receptáculo das vivências do artista.
Para darmos conta dos desdobramentos dessa questão, é necessário
resgatarmos o conceito de realidade vivida, noção igualmente formulada pelos teóricos
da filosofia da vida. Esse plano corresponde à esfera da vida prática, cotidiana, em que
os conteúdos aparecem de modo disperso e heterogêneo, ou seja, é um plano caótico,
desordenado; é, portanto, uma esfera onde o homem é muito mais possuído pela
realidade que transcende sua consciência do que ele mesmo possui e domina essa
mesma realidade. A ideia da realidade vivida como um plano caótico, aliada à noção de
que a obra de arte realizada é um receptáculo das vivências do artista, nos conduz à
seguinte pergunta: Como o objeto artístico se configura a partir desses dois aspectos?
Lukács entende, portanto, que a obra de arte é um objeto que condensa as
vivências do artista e é capaz de oferecer aos homens - ao receptor e ao criador - um
instrumento a partir do qual podem reviver as suas vivências particulares do mundo de
acordo com as suas demandas subjetivas existenciais. O mais agudo complicador dessa
noção é a ideia lukacsiana de que as vivências não são comunicáveis, pois o signo não
dá conta de abranger o caráter vivencial da vivência, o que nos coloca, portanto, diante
214
de um grande impasse. Para expô-lo, levantaremos dois pontos presentes no pensamento
estético do jovem Lukács: 1) a arte funciona para o homem como um objeto através do
qual ele pode resgatar o desejo humano nostálgico de retorno a um plano em que sujeito
e objeto se identificam plenamente e 2) o objeto estético resgata e reaviva o sentimento
dos sujeitos de pertencimento a uma comunidade humana, aspecto absolutamente
impossível de se realizar na vida cotidiana, dada a conjuntura histórico-filosófica a ela
subjacente.
Se, de alguma forma, retomamos a responsabilidade ou a função que a arte
exerce na Estética de juventude, temos de esclarecer, por conseguinte, de que modo ela
pode ou tenta cumprir efetiva ou parcialmente essa demanda. No conjunto de noções
envolvidas na “Estética de Heidelberg”, mundo empírico e mundo subjetivo raramente
possuem pontos convergentes, o que configura uma visão solipsista que pressupõe uma
disjunção metafísica entre vida empírica e sentido, caminhando, no campo estético, para
a compreensão de que, se a realização humana autêntica e plena está vedada no plano da
vida cotidiana, essa impossibilidade é compensada pela vivência oferecida pelos objetos
artísticos, a partir dos quais é possível uma realização não estranhada dos valores
humanos. De que maneira, portanto, essa possível realização pode ocorrer na esfera
artística?
Para respondermos essa questão, temos que resgatar a noção de forma
artística, a qual se reveste, na Estética de juventude, de um caráter místico, pois se torna
o elemento capaz de reconciliar vida e essência, devolvendo um sentido à realidade. A
ela é predicado um caráter catalisador, de modo que se qualifica como uma força que
introjeta um valor e um salto qualitativo na vida dos homens. A forma é traduzida,
portanto, como única realidade substancial que preenche de sentido um mundo humano
carente de significado e insatisfatório às demandas existenciais dos sujeitos, embora,
ressalte Lukács, que ela não supre a imediaticidade do plano da realidade vivida. Nesse
sentido, essa realidade substancial traduzida pela forma é, sobretudo, a consciência de
que a totalidade perdida de outrora é irrealizável na vida moderna. Depreende-se dessa
noção, a ideia de que o objeto artístico fica impossibilitado de reparar a realidade
objetiva e de resolver todas as dissonâncias do mundo burguês, pois seus próprios
princípios constitutivos não lhe capacitam para tal.
215
Essa concepção de forma artística presente nos escritos de juventude de
Lukács é originada por sua visão desesperançada e trágica do mundo moderno, o qual
não oferece mais bases para uma relação plena de sentido entre sujeito e objeto. A
reorganização e a reordenação dos conteúdos dispersos do plano da realidade vivida não
são mais possíveis no plano da vida cotidiana, de modo que a obra de arte, a partir do
poder totalizante da forma, é o elemento que pode reordenar, reorganizar e, portanto,
dar sentido aos conteúdos caóticos do plano da vida cotidiana. Nesse sentido, o poder de
harmonização da forma artística sobre o conteúdo anula qualquer contraposição entre
ambos, configurando, por conseguinte, uma identidade perfeita de forma e conteúdo na
totalidade intensiva que é a obra de arte. Entendemos, assim, que o material a ser
plasmado no objeto só adquire sentido a partir desse poder metafísico da forma. Diante
deste, o sujeito fruidor pode reviver os conteúdos de suas vivências de acordo com suas
demandas existenciais na obra de arte. Esse movimento é definido pelo jovem Lukács
como a superação ou a ultrapassagem da realidade da experiência vivida para a
realização do vivido como vivido.
A forma, nesse sentido, realiza a harmonização e a realização ideal da alma
humana, fazendo com que o plano de dispersão, caos e heterogeneidade da esfera da
vida cotidiana, por meio da experiência estética, seja harmonizado; aspecto que
possibilita a realização de uma experiência estética em que o sujeito receptor revive as
suas experiências nos objetos materializados na obra de arte, os quais atendem as suas
demandas subjetivas. Concluída essa experiência, o caos e a dispersão, inerentes ao
plano da vida cotidiana, são neutralizados em um primeiro momento pela experiência
estética. Dessa forma, à obra de arte predica-se a expressão consolo transcendental.
Entretanto, essa qualidade funciona, literalmente, como um alívio momentâneo, pois, se
a possibilidade de uma comunicação eficaz da vivência no plano estético não é
efetivada por completo, mas, somente, entrevista, como afirma o jovem Lukács, o
abismo que envolve a relação sujeito-objeto no mundo moderno é ressaltado e a ideia do
solipsismo acentuada, pois o homem não encontra no plano da realidade vivida
nenhuma possibilidade de vivência correspondente àquela elevada que gozou quando da
experiência estética.
216
A fim de sintetizar as ideias supramencionadas, podemos dizer que a
estética de juventude é construída a partir das seguintes noções: primeiramente, estão
presentes as ideias de vivência e de realidade vivida, oriundas das ciências do espírito,
que darão ensejo para a caracterização da esfera da vida cotidiana como um plano
caótico, em que os conteúdos estão dispersamente dispostos. A partir dessa ideia, a
forma artística assume a função de homogeneizar e de harmonizar esses conteúdos para
que sejam plasmados no mundo fechado e monadológico da obra de arte. A noção de
gênio, por conseguinte, entra em cena, de modo que a este é atribuída a capacidade de
dar forma aos conteúdos de suas vivências para que sejam plasmados na obra de arte.
Consequentemente, o objeto artístico, na teoria do jovem Lukács, é encarado como um
receptáculo de vivências, o que nos motiva a afirmar que a arte é, portanto, criação do
espírito.
Nesse sentido, o fenômeno da recepção é entendido como um processo em
que o sujeito fruidor pode reviver, no objeto estético, os conteúdos de suas vivências de
acordo com suas demandas existenciais; o que, de certa forma, faz com que a obra de
arte receba um status de consolo transcendental, pois gera a possibilidade de uma
relação idêntica entre sujeito-objeto. Lukács afirma, entretanto, que os sujeitos podem,
somente, vislumbrar, no plano da arte, uma possibilidade de comunicação, pois este
processo apenas alude ou suscita a sensação nostálgica nos homens de pertencimento a
uma comunidade humana outrora possível. Essa afirmação se justifica a partir da noção
de que é impossível a garantia da comunicação da peculiaridade subjetiva daquilo que é
vivenciado de forma direta, conduzindo à ideia de que a discrepância entre signo e coisa
baliza a impossibilidade da comunicação da experiência individual. Como, na estética
de juventude, o signo é definido como algo abstrato, como uma redução que não capta a
qualidade particular daquilo que é mais essencial e, por fim, como algo que não abrange
o caráter vivencial da vivência, entende-se, portanto, que as formas de expressão não
são suficientes para superar por completo a impossibilidade da comunicação da
experiência individual. Desta feita, a expectativa de uma relação sujeito-objeto idêntica
no plano artístico é, somente, um vislumbre, o que, consequentemente, acentua a ideia
do solipsismo.
217
Se o jovem Lukács compõe a estética de juventude a partir de noções
abstratas e calcado em uma filosofia de bases idealistas, a chamada filosofia da vida, o
Lukács da maturidade adota um referencial bastante diverso, pois, apoiado em bases
materialistas, lança mão do aparato teórico da filosofia de Marx para construir a sua
“Estética”. Podemos dizer que a grande virada no pensamento lukacsiano, que marca a
sua transição do idealismo objetivo para o materialismo histórico, reside, precisamente,
no entendimento de que não são os sistemas que engendram a História, mas sim o
contrário. A História, portanto, assume um papel demiúrgico, de forma que o devir
histórico e o movimento das atividades do homem são vistos como fatores responsáveis
por engendrar uma lógica determinada. O nosso ponto de chegada é, por conseguinte, a
ideia de que o mundo e, consequentemente, a arte são, para o velho Lukács, criações
materiais dos homens. Para dar conta dessa formulação, o autor vale-se da categoria do
trabalho, um dos principais conceitos do materialismo histórico-dialético.
Marx afirma a prioridade ontológica do ser sobre a consciência, isto é, ele
compreende que a realidade objetiva determina a consciência humana; o que nos conduz
à afirmação de que o momento fundador da organização dos homens não jaz no pensar,
mas na produção. Por esse motivo, o trabalho, entendido como uma prática
transformadora sobre a qual toda a sociedade se estrutura, torna-se uma das noções
centrais para explicar a gênese do reflexo estético. Estamos, portanto, diante de um
aparato conceitual que entende que, para cada momento histórico, há um determinado
momento material a ele correspondente, o que equivale a dizer que o conjunto de
valores ligado a certa quadratura histórica não pode ser compreendido em sua essência
se privado do contexto que lhe deu origem. Apoiado por esse conjunto de ideias, Lenin
constrói a sua teoria do reflexo, compreendendo que a consciência, o pensamento e as
sensações humanas são reflexos da concretude do real na mente dos homens. Diante
desse conjunto de noções, configura-se, portanto, uma concepção materialista de mundo
que entende que a realidade objetiva não é um mero dado exterior, pois o mundo social
é uma criação dos homens, que é consciência.
Voltamos, assim, ao ponto que destacamos anteriormente: o mundo
histórico e a arte são criações materiais humanas dotadas de sentido. Desta feita, os
referenciais teóricos sobre os quais foram erigidas as estéticas levam o leitor a perceber
218
a completa superação de Lukács das influências idealistas tão marcantes em sua
juventude. O contraste que buscamos ressaltar é o de que, na “Estética de Heidelberg”,
se solidificou a ideia de que o mundo era construído a partir da ideia de vivência, o que
nos levou à noção da arte como criação do espírito. Na “Estética”, essa formulação é
radicalmente superada, de modo que o mundo e a arte passam a ser entendidos como
criações materiais dos homens, possíveis, somente, no decurso de um processo histórico
evolutivo.
O velho Lukács investiga, na estética de maturidade, o movimento da
subjetividade em direção à esfera estética, a fim de compreender a origem do reflexo
artístico. Para explicá-lo, afirma a necessidade da retomada do processo metabólico do
trabalho, pois entende que, por meio dessa prática transformadora, as sociedades se
organizam e se assentam. Consequentemente, as indagações acerca do mundo da arte
devem ser aclaradas a partir do princípio de humanização do próprio homem, efetivado
por meio do trabalho. Diante dessa noção, Lukács afirma que o sujeito, ao se relacionar
com os objetos do seu entorno, conhece e, por conseguinte, passa a dominar o espaço
em que está inserido. Tal aspecto conduz o autor a uma ideia fundamental para a
composição da “Estética”, a de que o conhecimento de si do sujeito não acontece sem o
conhecimento do conjunto das relações que ele trava com o mundo. Em outras palavras,
assegura-se a correlação entre o ato de objetivação e o desenvolvimento da sensibilidade
humana, o que, transposto à criação artística, acarreta na noção de que a conexão
instituída entre o conhecimento de si e o conhecimento do mundo está na base do
equilíbrio entre objetividade e subjetividade no processo de criação. O que afirmamos é
que, à medida que o sujeito conhece o mundo e a si mesmo, passando a dominar o
entorno, ele, por decorrência, sente que o alheamento presente na sua relação com o
mundo diminui; o que suscita uma relação entre sujeito e entorno em que aquele passa a
perceber o mundo como algo que lhe corresponde, que lhe é familiar, um mundo como
pólis, como lar. Em decorrência desse movimento, Lukács afirma que o sujeito estético
percebe a possibilidade da ampliação de sua personalidade na vivência artística.
Essa evolução histórica inaugura um tipo de representação estética voltado à
mundanidade, o que se justifica a partir da noção de que, se o homem ampliou a sua
práxis, o seu domínio intelectual e prático sobre si e sobre o mundo, a resposta artística
219
para tal conformação originou a representação dos objetos vinculados indissoluvelmente
ao espaço que os rodeia, materializando, no mundo da obra de arte, uma viva interação
entre esses elementos. Lukács compreende, assim, que a obra de arte é, portanto,
expressão da vida humana, isto é, objetivação dos conteúdos humanos do homem. Daí,
retomamos, novamente, um ponto crucial no que tange à distinção das duas estéticas: a
arte não é criação do Espírito, mas criação material dos homens.
As considerações precedentes deixam claro que a estética de maturidade
compreende o processo de captação da realidade pelo artista de forma ativa. A este
procedimento estão relacionadas particularidades históricas, como classe social,
contexto cultural e histórico. Consequentemente, a fundamentação materialista da
estética se ancora na concepção de que as produções ideológicas não podem ser
autônomas em relação à práxis humana, isto é, os valores estão, sempre, historicamente
determinados por um conjunto de forças materiais e por uma cultura determinada, de
modo que as obras de arte podem ser explicadas, somente, a partir da totalidade sócio-
histórica à qual pertencem. A relação entre o objeto artístico e a História é, portanto,
consolidada na visão do velho Lukács, o que nos conduz à afirmação de que a obra de
arte assume a tarefa de plasmar os conteúdos humanos profundamente subjetivos e
profundamente objetivos da vida, traduzindo-se em um objeto que compreende a
projeção das tensões, contradições e características típicas latentes de um dado
momento histórico. Estamos, por conseguinte, diante da teoria realista de composição
artística, sistematizada por Lukács em seus escritos da década de 1930.
Encontramos, nesta ocasião, outro ponto de inflexão no que tange às
estéticas deste autor: a obra de arte não é mais concebida como um receptáculo de
vivências subjetivas e atemporais, mas como o reflexo realista dos conteúdos humanos
historicamente latentes de certa quadratura histórica. Soma-se a isso a filiação diversa
das duas estéticas: na “Estética de Heidelberg”, o autor entendia a vivência como
categoria mediadora da relação entre a subjetividade humana e a arte, ao passo que, na
“Estética”, as noções de trabalho, história e reflexo são centrais para a compreensão da
gênese artística e da relação entre sujeito e obra de arte. Depreende-se desses aspectos,
um projeto de juventude calcado no entendimento do mundo humano, intitulado plano
da realidade vivida, como uma esfera de dispersão, em que o homem é muito mais
220
possuído por essa realidade do que ele mesmo a controla. A noção de história, portanto,
está fora desse sistema, nos conduzindo a uma compreensão de mundo que carrega em
si um caráter de atemporalidade.
Desta feita, somos levados a afirmar que o mundo representado na estética
de juventude não carrega o imperativo de que precisa ser mudado, já que é construído
pela vivência. A obra de arte, como seu receptáculo, não envolve, portanto, nenhum
caráter crítico no que tange à vida dos homens, ao passo que, na “Estética”, o objeto
artístico, entendido como reflexo da realidade, é constituído como crítica da vida. Esse
movimento é esclarecido pela concepção lukacsiana de mundo construída a partir do
materialismo histórico, a qual concebe a obra de arte como criação material dos
homens, ancorada em um tempo histórico particular. Nesse sentido, a partir do
momento em que os sujeitos passam a dominar o entorno e alargam o seu mundo
externo e interno, desenvolvem o reflexo e a sensibilidade estética, construindo um
mundo artístico que reflete os conteúdos humanos mais essenciais, da forma mais fiel
possível. Não debateremos, por ora, o processo de criação artística, já que o faremos na
seção seguinte. Voltar-nos-emos, doravante, à ideia de forma artística presente na
“Estética” de maturidade, mais um ponto que acentua, substancialmente, a divergência
teórica relativa ao pensamento estético do jovem e do velho Lukács.
Como afirmamos, as formações estéticas são entendidas pelo Lukács tardio
como reflexos da realidade objetiva. A verdade e o significado dessas formações
residem, essencialmente, na capacidade de tais reflexos de captar a realidade de modo
fiel, reproduzindo-a em sua forma verdadeira, o que, consequentemente, evoca, no
sujeito receptor, a imagem da realidade contida nesses reflexos. Para que esse processo
ocorra, são compactados, na obra de arte, os conteúdos que serão por ela refletidos. Tal
processo, intitulado redução homogênea, decorre do potencial da forma artística
traduzido pela articulação de uma gama de conteúdos humanos voltados à criação de
uma totalidade orgânica, unitária e fechada. Lukács esclarece que a tarefa da forma
artística, na “Estética”, consiste, justamente, em tornar universalmente vivenciável um
conteúdo substancial para a humanidade. Sublinhamos, na ocasião, o termo
universalmente.
221
É necessário, por conseguinte, enfatizarmos a primazia do conteúdo sobre a
forma na “Estética”, esclarecendo que, somente um conteúdo intrinsecamente
relacionado ao destino da humanidade, ou seja, um conteúdo substancial pode assim
originar uma imputação de forma realmente profunda pelo artista. Resgatamos, desse
modo, um princípio essencial presente em toda a estética de maturidade: o de que a
forma é sempre a forma de um conteúdo determinado. Nesse sentido, nem o artista mais
notório pode realizar a identidade de forma e conteúdo no objeto estético se essa relação
é inexistente, ou mesmo incipiente. Desta feita, a forma não é mais uma força geradora
de sentido, pois os conteúdos dispostos no plano da vida cotidiana já o portam; ela é,
sobretudo, um elemento que materializa no objeto artístico os conteúdos essenciais da
humanidade, fazendo com que o sujeito receptor possa ter uma relação desfetichizada
com os conteúdos dispostos na obra. A História, ao entrar em cena na construção da
“Estética”, aniquila o caráter místico atribuído à forma nos escritos de juventude do
autor, traduzido, essencialmente, pela ideia de que o objeto só ganha sentido a partir do
momento em que recebe a forma. Esta, por sua vez, assume, para o velho Lukács, uma
noção histórica, pois a quadratura histórica em que nasce a obra e de onde são retirados
os seus conteúdos já demanda uma forma que emana desses mesmos conteúdos.
O entendimento do velho Lukács volta-se, portanto, à preponderância do
conteúdo sobre a forma na “Estética”, impulsionado, por conseguinte, pela ligação
indissolúvel entre História e conformação artística; o que acarreta na ideia de que a
vivência estética autêntica é uma vivência de conteúdo. Nesse sentido, a formulação da
primazia da forma sobre o conteúdo, subjacente à “Estética de Heidelberg”, corrobora,
ainda mais, para intensificar as divergências teóricas entre as estéticas do autor.
3.2. A ideia de gênio na estética de juventude versus a ideia de criação
artística na estética marxista ou a Aristocracia Espiritual versus o Homem
Universal
O processo de criação artística e o delineamento da figura do artista são
temas caros a qualquer autor que pretenda tratar de questões relacionadas à estética. As
obras de Lukács, por conseguinte, não se furtaram a essas discussões; pelo contrário,
222
debateram de forma consistente tais assuntos, nos permitindo conhecer seu pensamento
acerca da temática. Nesta seção, o nosso objetivo consiste em retomar os principais
temas relacionados ao processo de criação, em ambas as estéticas, para que seja possível
verificar de que modo o jovem e o velho Lukács entendem, respectivamente, a criação
artística nas obras mencionadas.
Como aferido em momentos anteriores, a tônica acentuadamente
irracionalista da filosofia da vida, especialmente aquela ligada à filosofia de Dilthey,
consiste na centralidade da categoria da intuição, a qual assume o papel de novo órgão
do conhecimento. A definição do termo está ligada à ideia de uma revelação súbita da
consciência subjacente a um processo de pensamento que, até então, se desenvolvia no
âmbito do inconsciente, procedimento que encontra certa equivalência com a noção de
êxtase, marcante no movimento barroco. De acordo com essa tendência filosófica, para
que a compreensão de algum fenômeno fosse possível, argumentava-se em favor da
ideia de que algo irracional emanava de todo ato de compreensão, como a própria vida,
que não podia ser representada por nenhuma classe de formas de ordem lógica.
Consequentemente, o ato de compreensão assumiu, no interior dessa tendência, um
caráter adivinhatório e irracional, desdenhando, assim, qualquer possibilidade de
obtenção de uma certeza demonstrativa, pois a vivência recriada, intrínseca ao processo
de compreensão, não era entendida como suscetível a exames de valor no que tangia ao
conhecimento. No âmbito estético, a filosofia da vida susteve a ideia de que a
interpretação, apreendida como um compreender recriador, carregava em seu seio um
caráter genial. Depreende-se desse conjunto de noções uma psicologia responsável pela
construção e fundamentação daquilo que pode ser chamado de doutrina secreta de uma
determinada aristocracia espiritual estético-historicista.
As influências teóricas presentes na estética de juventude resultam, assim,
no sujeito do individualismo metodológico, o qual descarta a ideia de captação do real.
Lukács, ao invés de explicar o indivíduo por meio de sua interação e de seu
posicionamento numa sociabilidade, centra-se no sujeito do individualismo
metodológico e se volta para a compreensão de seu interior, no intuito de explicar por
qual motivo o mundo vivenciado se configura de determinada maneira. Esse sujeito não
tem vínculos com a História, isto é, ele é concebido a partir de certo caráter atemporal.
223
Estamos diante, portanto, de um indivíduo que porta em si uma habilidade inata de
transposição dos conteúdos de sua subjetividade - inconscientes (forma da experiência)
- a partir da utilização de uma forma técnica adequada - momento consciente. Esse
indivíduo, denominado gênio, realiza a comunhão da forma da experiência e da forma
técnica, procedimento entendido como condição a priori do processo criativo. Nesse
sentido, a clareza consciente e o momento inconsciente são princípios sempre
congregados no artista.
A fenomenologia da criação é entendida, portanto, como um movimento de
superação da subjetividade do artista, que se realiza no momento em que o sujeito
criador transpõe os conteúdos de sua subjetividade para a obra de arte a partir da técnica
formal adequada. Esse procedimento revela, gradativamente, a busca de uma
objetividade que se realiza na criação da realidade objetiva e autossuficiente
(monadológica) da obra de arte, originando, na composição do objeto artístico, uma
realidade superior, denominada por Lukács realidade utópica.
Nesta realidade superior, a técnica e a visão - esta compreendida como
resultado do domínio dos conteúdos inconscientes pela técnica formal - devem, ambas,
perder o seu caráter subjetivo. Por esse motivo, Lukács afirma que, na realização da
obra de arte, a técnica formal deve se tornar natural e invisível. Já a visão, identificada à
obra concluída, tem de perder todo o seu significado com e no objeto acabado, de
maneira que deve apontar indicadores ao artista que, em seu trabalho técnico,
necessariamente subjetivo, lhe conduzam à objetividade. A visão deve ser, por
conseguinte, a garantia de que a técnica como tal se dissolverá na obra realizada. Desta
feita, o gênio, diante da criação do objeto, é aquele que reconhece a necessidade da
harmonia praestabilita entre a técnica artística e o conteúdo e a realiza na composição
da obra de arte. Segundo Lukács, a personalidade do gênio é atormentada por uma
trágica incansabilidade, pois a relação que ele estabelece com a realidade da experiência
é marcada por uma ininterrupta e insuperável tensão entre o real e a utopia, de forma
que o seu comportamento em relação ao objeto estético se restringe a um empenho
infindável de alcance do inalcançável.
No intuito de sistematizar a fenomenologia da criação artística na estética de
juventude, podemos afirmar, primeiramente, que Lukács compreende o gênio como um
224
indivíduo que possui uma capacidade inata de transpor os conteúdos de sua
subjetividade para o objeto artístico, a partir da utilização da forma técnica adequada,
revelando uma comunhão da forma da experiência e da forma técnica no objeto estético,
procedimento intitulado harmonia praestabilita. O entendimento de como esse processo
se dá é um tanto obscuro na teoria estética do jovem Lukács: ele descreve, apenas, os
efeitos dessa adequação, dentre os quais podemos citar, à guisa de exemplo, a
dissolução da forma técnica na obra realizada. Nesse sentido, algumas perguntas se
somam na tentativa de um esclarecimento sobre a fenomenologia da criação. São elas:
Como as formas artísticas se originam? e De que modo o artista procede para ativar
essas formas no fazer artístico?
Se a leitura da estética de juventude suscita tais questionamentos, podemos
aferir que o próprio Lukács sentiu-se incomodado com essa lacuna, de modo que se
ocupou largamente do assunto já em 1914-15, no ensaio “A Teoria do Romance”, em
seus escritos sobre arte da década de 30 e, consequentemente, na “Estética”. Nessas
obras, a adequação entre forma e conteúdo pode ser explicada por meio da mediação da
história, no sentido de que, a partir da evolução da humanidade, novos contextos
históricos e filosóficos se impõem e engendram, logo, novas formas artísticas. Tal
entendimento não está presente na estética de juventude, pois o artista era visto como
gênio, ou seja, um ente contemplado com a capacidade inata de dação de forma aos
objetos de sua vivência, a fim de que pudesse recriá-las e plasmá-las no mundo fechado
da obra de arte. Essa afirmação nos conduz, portanto, à ideia de uma aristocracia
espiritual na estética de juventude, voltada ao entendimento de que só alguns espíritos
elevados recebem esse dom natural, possibilitando, por conseguinte, a compreensão de
que o desenvolvimento do espírito caminha de forma independente ao da realidade.
Essas considerações demarcam mais um aspecto que restringe as estéticas lukacsianas a
campos teóricos diversos, especialmente no que tange à compreensão do processo de
criação artística, pois a polarização entre a ideia de uma aristocracia espiritual, na
estética de juventude, e a noção de homem universal, presente na “Estética”, revela o
quão distantes são as visões de mundo do autor subjacentes a essas obras.
Prosseguiremos, portanto, apresentando os aspectos que demarcam essa divergência.
225
O velho Lukács não mede esforços para criticar a ideia da intuição como
instrumento do conhecimento ou como elemento constitutivo do conhecimento
científico, de modo que ela é considerada, somente, um complemento do pensamento
intelectual e, de forma alguma, a sua síntese. Consequentemente, a descoberta intuitiva
de uma conexão não institui jamais um critério de verdade ou de aproximação à
objetividade, pois, para o autor da “Estética”, é a verdadeira dialética o instrumento
capaz de expressar, pela via conceitual, o reflexo exato dos objetos presentes no mundo
real. A partir desse conjunto de noções e assentado sobre as bases da filosofia marxista,
Lukács assegura que a obra de arte tem como ponto de partida a existência de uma
realidade objetiva, a qual, por si só, já é capaz de fornecer verdades acerca de um
indivíduo concreto cuja sociabilidade é histórica e socialmente condicionada.
O autor institui, assim, a ideia de realismo, definindo tal noção como a
inevitável consequência do reflexo estético da realidade, e como uma tomada de posição
do artista diante do real. Nesse sentido, a missão destes está diretamente relacionada à
imitação da vida na obra de arte. Desta feita, é importante ressaltarmos que Lukács
imputa ao objeto estético a construção de uma realidade similar e fiel ao real,
estruturada de forma concreta e, também, sensível, por meio da qual a obra deve expor
um conjunto de determinações essenciais, ou seja, de conteúdos humanos que
ultrapassam o plano habitual da percepção cotidiana. A arte, portanto, tem uma missão
desfetichizadora, pois representa situações essenciais do desenvolvimento humano,
revelando as contradições inerentes ao processo social evolutivo. Nesse sentido, as
personagens representadas pelos artistas são reflexos da realidade, que revelam
situações criadas pelos homens e não circunstâncias próprias de uma condição humana
a-histórica; o que possibilita aos receptores a percepção dessas situações e, portanto, a
sua superação. Entende-se, portanto, que a obra de arte tem uma função social, podendo
assumir um papel de crítica da vida.
Frente às afirmações precedentes, podemos assegurar que a noção
aristocrática e irracionalista de gênio observada na estética de juventude é superada na
“Estética”, pois o artista não é mais compreendido como um ente alheio à necessidade
social da arte. Exige-se desse sujeito a elevação de sua subjetividade para além da
imediaticidade do plano da vida cotidiana, a fim de que ele capte as tendências e
226
contradições essenciais de um tempo historicamente e socialmente determinado,
plasmando-as na obra de arte. Para que esse processo seja exitoso, demanda-se do
artista uma seleção adequada de temas, de situações, de figuras e de comportamentos
típicos observados na realidade. São esses conteúdos que se tornarão rica matéria para a
composição da obra de arte, e deles emana a forma artística adequada e correspondente,
que vem à tona a partir de um processo de elaboração do conteúdo pelo artista. Desse
novo entendimento em relação à figura e ao papel do artista, depreende-se que a
substancialidade da obra se vê em uma relação de dependência com o sujeito criador,
traduzida, assim, pelo reconhecimento em si do artista da substância humana concreta.
Ele é, portanto, um sujeito que capta as tensões essenciais do processo social em que
está inserido e as reflete do modo mais fiel possível na obra de arte - o que denega a
ideia do objeto estético como um receptáculo de vivências.
O debate encaminha-se, assim, para a noção do partidarismo na criação
artística. Como já dissemos, para Lukács não existe arte neutra, pois o processo de
criação em si já consiste em uma tomada de partido do artista frente aos conteúdos da
realidade que ele se propõe a figurar. Não se deve recair, portanto, na ideia de
partidarismo como literatura panfletária ou como um desvio politicista, devendo-se ter
em mente, sobretudo, o fundamento ético intrínseco ao ato de composição. Devemos
lembrar que o autor foi um crítico da arte puramente panfletária e publicista, de modo
que, se é imputada ao artista a missão de refletir as tensões sociais, é necessário que, ao
desempenhar essa função, ele o faça sem pré-julgamentos, e que, ao mesmo tempo, se
porte diante do objeto a ser representado de forma interessada. Essa afirmação traduz-se
na ideia de que o artista deve alcançar uma proporção justa e equilibrada entre a
liberdade de criação e a necessidade social da arte.
Lukács busca, portanto, o entendimento do artista como alguém cujo papel
consiste em construir um mundo estruturado de forma a reproduzir fielmente a
realidade, mesmo que os seus próprios conteúdos individuais, suas crenças políticas,
seus valores, sua ética, estejam em total desacordo com as situações típicas que pretende
plasmar na obra. Ainda sobre essa questão, o autor afirma que a relação entre o sujeito
criador e o mundo deve ser rica, pois esse indivíduo deve refletir na obra um mundo do
qual ele faz parte e um mundo que ele mesmo comporta em sua subjetividade. Segundo
227
Lukács, o artista autêntico tem que intensificar a unidade entre o externo e o interno,
percebendo, pensando e sentindo o interno e o externo em sua unidade; procedimento
que o permite alcançar a substancialidade estética. O que estamos pontuando é a noção
de um sujeito que consegue alcançar um grau elevado de autoconsciência de si do
gênero humano no momento da criação artística, pois entra em contato com conteúdos
humanos essenciais, que passam a uni-lo aos feitos passados e presentes da
humanidade, de forma que conteúdos exteriores a ele se fundem ao seu núcleo humano,
formando, assim, uma unidade.
Esboçada na “Estética”, a figura do artista autêntico, isto é, realista, nos
conduz à percepção de que esse sujeito tem o seu mundo interior alargado e enriquecido
ao realizar o processo de composição, pois plasma na obra uma realidade superior,
desfetichizada e não estranhada, que se incorpora ao seu mundo subjetivo. Ao
materializar feitos humanos, destinos, figuras e situações típicas na obra de arte e, ao
lançá-la ao mundo dos homens como um objeto que adquire existência concreta e
autônoma, Lukács, consequentemente, constrói um perfil para o artista cuja
responsabilidade social está vinculada a ele próprio, mesmo que não possua tal intenção.
A obra de arte autêntica, isto é, realista, é um mundo fechado que porta a memória da
humanidade e seu valor social, portanto, já está em sua realização e, consequentemente,
na figura daquele que cria esse mundo, o artista.
3.3. Fenomenologia da recepção, mal-entendido e incomunicabilidade
da vivência versus experiência receptiva e catarsis
Na seção anterior, discorremos sobre o processo de criação nas estéticas
lukacsianas, e percebemos quão diversos são tais procedimentos no interno dessas
obras, de modo que a síntese dessa divergência pode ser resumida pela formulação, na
estética de juventude, de um sujeito do individualismo metodológico, o qual faz parte de
uma aristocracia espiritual, ao passo que, na estética de maturidade, o artista passa a ser
entendido como homem universal. Se aquele desenvolvia o espírito de forma
praticamente independente da realidade, o sujeito da “Estética” o faz a partir de sua
relação com o mundo, com a realidade. Essas noções, caras à ideia de criação artística,
228
são essenciais para a compreensão da experiência receptiva, tema sobre o qual
versaremos nesta seção.
Essencialmente no capítulo “A arte como “expressão” e as formas de
comunicação da realidade vivida”, em “Filosofia da Arte”, o jovem Lukács nega a
possibilidade da comunicação efetiva dos conteúdos essenciais e singulares das
vivências dos indivíduos no fenômeno de recepção da obra de arte. Como motivos dessa
impossibilidade, afirma-se que, por mais que os meios expressivos suscitem no receptor
a ilusão do retorno nostálgico a uma comunidade humana, esse fenômeno é puramente
aparente, pois os meios expressivos - como os gestos ou a entonação, sem a mediação
das palavras - não conjugam as determinações e não dispõem de contornos suficientes
para efetivar o processo comunicativo. Soma-se a isso a impossibilidade de se garantir a
comunicação da peculiaridade subjetiva daquilo que é diretamente vivenciado. A
dissensão entre signo e coisa é um dos traços que marca a impossibilidade da
comunicação da experiência individual, pois o signo é compreendido, segundo o jovem
Lukács, como algo abstrato, como uma redução incapaz de captar a qualidade particular
daquilo que é mais essencial, bem como não dá conta de abranger o caráter vivencial da
vivência.
O autor ainda afirma que os meios comunicativos podem falsear os
sentimentos e os humores do indivíduo, de forma que não se pode, portanto, afirmar se
a intensidade de uma mensagem expressiva é um elemento confiável no julgamento da
autenticidade de seu efeito, pois este pode ser gerado tanto pelos meios expressivos
quanto pela vivência. Outro ponto importante a ser levado em conta é a noção de que a
expressão, por mais verdadeira que seja, pertence ao receptor e, não, ao artista, pois é
aquele que se apropria e que apreende o conteúdo transmitido por este. É o sujeito
fruidor, portanto, que mobiliza as suas vivências e as suas experiências singulares,
reelaborando subjetivamente o material transmitido pelo artista e tolhendo aquilo que
não está de acordo com as suas vivências. Se esta é uma projeção do próprio sujeito na
realidade e é condicionada pelo outro, o receptor pode, somente, vivenciar no objeto as
características que se relacionam à sua estrutura individual.
Lukács afirma, por conseguinte, que o processo de recepção artística é
marcado por um mal-entendido (MiBverständnis), caracterizado pela não captação e não
229
absorção do sujeito fruidor daquilo que seria o verdadeiro conteúdo substancial da obra
de arte. Nesse sentido, esse indivíduo, que encerra em si suas vivências, alcança o
entendimento de que seus conteúdos subjetivos individuais não são comunicáveis,
semelhantes ou equivalentes àqueles alcançados no mundo fechado do objeto artístico.
Desse movimento, depreende-se que as demandas do sujeito fruidor de adequações do
mundo diante de sua realidade, postuladas pela obra de arte, podem, somente, se tornar
conscientes como conteúdos que não coincidem com aqueles substanciais plasmados na
obra; repercutindo em certa autonomia do comportamento desse sujeito frente ao objeto
estético. A vivência artística é, portanto, reafirmada como um mal-entendido, pois, no
processo de recepção, o fruidor não encontra a subjetividade do sujeito criador, não
realizando, assim, o seu desejo de retorno nostálgico a uma comunidade humana onde a
comunicação pode ser plenamente realizada. Como mencionamos, o receptor encontra,
somente, uma subjetividade autônoma. Desta feita, o solipsismo não pode, de fato, ser
superado na estética do jovem Lukács, o que não invalida, entretanto, o entendimento
da experiência artística como certo consolo transcendental, noção que será combatida e
abandonada por completo na “Estética”.
Para o velho Lukács, o homem conhece a si mesmo à medida que conhece e
domina o mundo à sua volta, ambiente em que ele próprio tem de viver e agir. Ao
ampliar esse domínio, surgem as obras de arte, que, de acordo com seu entendimento,
devem refletir, de forma justa e fiel, os conteúdos essenciais da realidade objetiva. A
partir desse entendimento, a experiência receptiva é compreendida como um processo
em que o fruidor se coloca diante de um mundo fechado, isto é, frente a uma totalidade
intensiva que reflete conteúdos humanos essenciais de maneira verdadeira, nos levando
a afirmar o caráter profundamente humanístico da experiência estética.
Soma-se a isso a noção de uma experiência receptiva calcada em uma
relação sujeito-objeto em que o fruidor capta e absorve conteúdos humanos que dizem
sobre o seu mundo e sobre toda a evolução humana. Nesse sentido, a consciência desse
homem é alargada e enriquecida na experiência receptiva. Em outras palavras, a
experiência estética proporciona ao sujeito fruidor a autoconsciência de si do gênero
humano, de modo que este se vê parte de uma universalidade: a humanidade. Embora
Lukács entenda essa experiência como um processo que estimula o ser humano a
230
conhecer tudo aquilo que o rodeia - os seus semelhantes, a sociedade em que vive, a
natureza, o seu campo de ação, dentre outros aspectos -, o autor afirma, ainda, que essa
experiência coloca o fruidor diante da compreensão dos estratos mais profundos do seu
próprio ser; realização que nunca poderia ser impetrada pelo sujeito a partir de uma
“pura” investigação de si próprio. Apontamos, assim, não apenas para um
enriquecimento desse homem em relação aos conteúdos que povoam o seu entorno,
mas, também, para um enriquecimento de seus conteúdos interiores; aspecto que aponta
para a experiência receptiva como um processo de autoconhecimento.
Além dos aspectos descritos, a vivência estética permite ao fruidor a
evocação da memória da humanidade, visto que, de acordo com Lukács, a obra de arte é
sua portadora, pois materializa os conteúdos que ampliam, enriquecem e aprofundam a
noção de homem e as suas relações com o entorno e com o gênero. A fruição é,
consequentemente, um fenômeno que coloca o sujeito frente aos destinos típicos já
vividos pela humanidade, de modo que podemos nos conectar a eles e revivê-los nos
objetos estéticos: esse movimento possibilita uma recepção artística em que o sujeito
incorpora os caminhos passados e presentes da humanidade bem como a consciência
dos homens que realizaram essas trajetórias. Ao fruidor, portanto, é ofertada a
possibilidade de participação efetiva na vida da humanidade. Sobre esse movimento,
também é necessário ressaltar a ideia de que a fruição estética possibilita a
transformação de um passado espacial e temporal em um momento presente vivido,
despertando, no receptor, a consciência de viver em um mundo do qual ele faz parte e
do qual é, ainda, co-criador.
Acerca dos efeitos imediatos da recepção das obras de arte, Lukács aponta
para dois pontos capitais. O primeiro deles reside no caráter predominante de conteúdo
que a vivência comporta, no sentido de que a relação entre o sujeito e o objeto estético
se concretiza esteticamente se a forma nasce conscientemente da evocação do conteúdo.
O resultado dessa concepção consiste na noção de que o sujeito estético é apresentado a
um mundo novo, que é, para ele, um tanto familiar. De acordo com Lukács, esse efeito é
necessário para que seja alcançado um resultado autêntico no momento da fruição. O
segundo ponto consiste na formulação de que a experiência estética não pode ser
alcançada efetivamente se não for evocada pela forma do objeto representado. Diante
231
dessa questão, o autor afirma a duplicidade particular da esfera artística no que tange ao
processo de recepção, acentuando o seu entendimento da relação entre forma e conteúdo
e a sua importância para a efetividade da experiência estética.
A recepção das obras de arte tem de resultar, de acordo com Lukács, em
uma transformação do sujeito fruidor de homem inteiro em homem inteiramente,
orientado, assim, para a universalidade de um meio homogêneo. O conteúdo humano
dessa transformação envolve uma suspensão ou afastamento do sujeito do plano da vida
cotidiana, de forma que se estabeleça um tipo de relação com a obra de arte cuja marca
é um comportamento receptivo que, imediatamente, acolhe o objeto da contemplação.
As tendências ativas do homem e a sua vontade de intervir efetivamente nos dados
concretos do mundo permanecem suspensas, o que faz com que Lukács observe um
traço passivo no comportamento receptivo; ao passo que, no processo de criação
artística, aponta para o domínio do princípio ativo, demarcado por uma transformação
gradual dos conteúdos essenciais da vida em identidade de forma e conteúdo.
A fim de que se efetive a transformação do homem inteiro em homem
inteiramente, é necessário que o meio homogêneo penetre na vida anímica do receptor,
orientando e evocando as suas vivências no momento da fruição estética. À ocasião, sua
forma habitual de contemplar o mundo é subjugada, pois a obra de arte coloca esse
sujeito diante de um mundo novo, dotando-o de novos conteúdos e lhe ofertando uma
nova maneira de concebê-los. A implicação dessa experiência é a recepção e a
apropriação pelo sujeito estético de um mundo com sentidos renovados, ou seja, a sua
psique se amplia e se enriquece a partir da captação desses novos conteúdos; processo
que resulta na catarsis.
Semelhante às demais categorias estéticas, a catarsis tem sua origem
primária na vida e, não, na esfera artística. Nesse sentido, ela é percebida como um
momento constante e significativo da vida social dos homens. Ao entendermos a obra
de arte como uma refiguração dos conteúdos essenciais da vida humana e ao
identificarmos a origem da catarsis nessa mesma vida, é assegurada uma
correspondência entre as categorias estéticas e àquelas subjacentes à vida humana.
Lukács define a catarsis, por sua vez, como um reflexo concentrado e conscientemente
produzido de comoções. Na esfera da vida cotidiana, ela se dá espontaneamente e
232
ocorre concomitantemente aos episódios que permeiam a vida dos homens, ao passo
que, no plano estético, ela se traduz quando, ao entrar em contato com o objeto estético,
o sujeito fruidor percebe, na refiguração do mundo fechado da obra de arte, a
reprodução de uma realidade elevada e superior, que é plasmada de forma a permitir ao
receptor um contato com um mundo - com uma totalidade intensiva - que tem como
marca a desfetichização dos conteúdos essenciais da vida dos homens. Em outras
palavras, essa elevação do mundo fetichizado a um mundo verdadeiramente humano é a
experiência da catarsis, de forma que, por meio dela, o receptor se humaniza.
De acordo com Lukács, a imediaticidade própria da esfera estética, quando
comparada à da vida cotidiana, é uma imediaticidade superada, pois se abre a
possibilidade da figuração de conteúdos gerais e essenciais da evolução humana, os
quais sofrem um processo de seleção, depuração, hierarquização e redução, para que
possam, assim, serem recebidos pelo sujeito fruidor. É justamente nesse sentido que o
mundo fechado da obra de arte é elevado e superior, pois é um mundo de caráter
verdadeiramente humano, revelado, por conseguinte, pela experiência catártica, que
proporciona a humanização do sujeito estético. A catarsis, portanto, dá sustentação à
missão desfetichizadora da arte ao revelar ao sujeito a fetichização subjacente à vida
cotidiana. Consequentemente, a possibilidade de defesa da integridade da humanidade
no plano da vida cotidiana torna-se real e objetiva, o que torna a obra de arte um veículo
pedagógico, pois a relação sujeito-objeto possibilita ao receptor a percepção “natural”
de alguns aspectos da vida, que, no plano disperso da cotidianidade, ficam
obscurecidos.
Esse entendimento nos conduz a uma compreensão da fruição artística como
defesa da integridade da humanidade no plano da vida cotidiana e como crítica da vida,
pois é aberta uma via para que o sujeito estético possa transformá-la no mundo real.
Diante dessa compreensão, a desfetichização e a catarsis possibilitam à arte realista a
realização de um papel fundamental na formação humana dos homens, pois reconcilia o
sujeito com o mundo do qual ele se separou. Ao refigurar os conteúdos essenciais da
realidade no mundo fechado da obra de arte, e ao criar um mundo elevado e superior, o
fruidor passa a se reconhecer no mundo dos objetos, o que assegura a possibilidade da
233
aproximação e, até mesmo, da identidade sujeito-objeto negada pelo trabalho estranhado
e fetichizante.
A experiência estética possibilita, portanto, a não rendição do sujeito à
fetichização e à alienação impregnadas no plano da realidade cotidiana, pois, ao se
reconhecer no mundo dos objetos e ao se sentir parte desse mundo, o sujeito estético
entende-se como seu co-criador, restabelecendo, por sua vez, a relação então rompida
entre o homem inteiro e o homem inteiramente. Diante dessas possibilidades, a arte se
apresenta como um meio para que o indivíduo, ao retornar à vida cotidiana enriquecido
pela experiência estética, possa construir uma relação sujeito-objeto autêntica. Como
mencionamos, a experiência catártica conduz o sujeito fruidor a viver o mundo como a
sua pátria, pois ele se reconhece como co-criador desse mundo e como parte do gênero
humano. Consequentemente se reconhece, ainda, como parte de todas as conquistas e de
todos os feitos históricos da humanidade. A partir dessa experiência, ele vivencia o
sentido humano, profundo e amplo de sua vida singular, sem que seja necessário o
aniquilamento de seus traços mais singulares. Simultaneamente, ele experimenta a sua
condição como homem universal, como parte da humanidade. Esse conjunto de noções
nos faz compreender a recepção artística como uma experiência em que o sujeito pode
atravessar e superar a barreira da alienação, de forma a realizar a crítica e a
transformação de sua existência e das relações que estabelece com o mundo. Essa
retroação da vivência estética, que incide sobre a subjetividade ativa do cotidiano dos
homens, é uma das mais importantes implicações da catarsis no que tange,
principalmente, ao caráter social da arte.
Podemos afirmar, portanto, que, a partir da “Estética” de maturidade,
Lukács delineia uma zona compartilhada entre a estética e a ética, cujo ponto de
convergência se dá a partir do entendimento da catarsis como:
[...] vivência da realidade intrínseca da vida humana, cuja comparação com a
realidade cotidiana produz, pelo efeito da obra, uma purificação das paixões
que se transforma em ética já no Depois da obra (LUKÁCS apud
PATRIOTA, 2010, p. 267).
Este Depois abre a possibilidade ao sujeito fruidor de uma possível
transformação existencial direcionada à realização de possibilidades humanas
autênticas, mais significativas, ricas e amplas. A vivência estética evoca, assim, a
234
possibilidade de um desenvolvimento humano em que o sujeito, sem apagar a sua
singularidade, reivindica para si as tarefas do gênero humano, vivenciando-as como
suas e compreendendo os traços comuns da vida do gênero e de sua própria existência.
O entendimento da eticidade apontará, segundo Lukács, para a harmonização dos
interesses genéricos e particulares do indivíduo, de forma que suas tomadas de decisão
terão como referência a sua própria generidade, mas orientadas, sobretudo, pela sua
superação.
A partir dessa breve descrição da recepção artística nas duas estéticas
lukacsianas, percebemos uma mudança bastante acentuada do entendimento de seu
autor sobre a questão, pois a arte deixa de ser concebida como a satisfação interior de
um desejo humano que não se efetiva, jamais, na vida prática dos homens. Ela passa a
ser concebida, sobretudo, como a expressão de uma realidade que, embora transcenda
os horizontes de vida usuais do indivíduo, aponta para a concreção de possibilidades
humanas reais. É importante ressaltarmos que, mesmo as obras que versam sobre
tempos remotos, ou aquelas já situadas em um tempo histórico longínquo do receptor -
como o romance histórico ou as tragédias - propiciam uma vivência estética objetiva, no
sentido de que propõem ao fruidor um resgate rememorativo de alguma experiência
universal situada em um tempo histórico particular. Desta feita, afirmamos que o intuito
da experiência receptiva não está centrado, como na estética de juventude, na
recordação do que se perdeu no passado, ou mesmo, na satisfação do desejo humano
nostálgico de se sentir parte de uma comunidade que resgata uma relação sujeito-objeto
idêntica de tempos idos e que oferece, assim, a superação do solipsismo. O abismo
transcendental e intransponível entre obra e objetividade, que fundamenta a ideia de que
a vivência é incomunicável na estética de juventude, é, portanto, superado na “Estética”,
pois a vivência propiciada pela arte deixa de ser algo fechado sobre si mesmo, e se abre
para a vida real do sujeito estético, para o qual é imposto o desafio do Depois da
experiência receptiva.
Observamos, por conseguinte, uma aproximação entre arte e vida na
“Estética”, pois os movimentos de recepção e de criação das obras de arte assumem
como princípio a vida substancial do homem e a evolução - passada, presente, ou
mesmo, as possibilidades futuras - da humanidade: este aspecto implica na percepção do
235
sujeito da substancialidade artística como a sua própria. A justificativa para tal
formulação pode ser traduzida quando, na realização do objeto estético, é revelada e
efetivada a subjetividade do artista e da humanidade, movimento que aproxima, ainda
mais, a relação entre arte e vida, assegurada, ainda, pela retroação da vivência estética
que incide sobre a subjetividade ativa do cotidiano dos homens, ou seja, pela catarsis.
O resgate, neste terceiro capítulo, dos aspectos que buscamos descrever,
debater e problematizar, encaminharão a nossa argumentação para a seção seguinte,
cujo objetivo consiste em definir a ideia de utopia nas estéticas de Lukács.
3.4. A ideia de Utopia no pensamento estético do jovem e do velho
Lukács
Compreender de que forma o tema da utopia está posto nas estéticas
lukacsianas nos conduziu, primeiramente, a um estudo de elementos fundamentais e
recorrentes da teoria estética. Percebemos que não seria possível delinear a noção de
utopia se o entendimento do que vem a ser o objeto estético, a sua criação e a sua
recepção não estivessem suficientemente sedimentados. Entendemos, ainda, após
releituras deste trabalho ainda inacabado, que, à medida que abordávamos elementos
fundamentais da teórica estética lukacsiana, a questão da utopia já estava, de certa
maneira, presente e, assim, pulverizada por todo o texto, especialmente, quando
abordamos temas como a criação, a recepção e o mundo próprio da obra de arte. Nesse
sentido, entendemos que a utopia está imbricada e impregnada na estrutura particular do
objeto estético e é a resultante de alguns processos artísticos, como ocorre, à guisa de
exemplo, com a experiência receptiva. Ao longo dessa seção, sistematizaremos a ideia
da utopia, que, como já mencionamos, está dissolvida ao longo deste trabalho, o que
reflete o seu lugar e o tratamento a ela atribuído nas estéticas lukacsianas.
Procederemos, portanto, descrevendo de que modo o tema da utopia está posto na
estética de juventude do autor, para, em um segundo momento, apresentá-lo em sua
obra de maturidade. Ao final da seção, mostraremos as divergências acerca do seu
entendimento nas estéticas, bem como apontaremos os desdobramentos possíveis da
questão. Antes de irmos direto ao ponto, indicaremos ao leitor um aspecto deveras
236
importante: a compreensão diversa da ideia de utopia nas duas estéticas, balizada,
principalmente, pelas bases teóricas que fundamentam essas obras.
O tema da utopia está presente em diversos momentos na estética de
juventude lukacsiana, de forma que, ao longo da sua leitura, pudemos localizá-los. A
seguir, remontaremos a discussão sobre a questão, iniciada a partir do debate sobre a
ideia de distância. Para Lukács, ao se realizar a harmonização de forma e conteúdo no
fazer estético, o mundo da obra de arte suscita o debate sobre a relativização do conceito
de distância ou de avizinhamento do sujeito receptor de uma possível realidade utópica,
ou da realidade própria da vida cotidiana, pois o universo próprio do objeto estético
coloca o fruidor diante de um mundo diverso da realidade cotidiana. Diante dessas
considerações, o autor reflete sobre a que distância objetiva a realidade está de uma
possível realização utópica, posta na obra como algo irrealizável.
Frente a tais afirmações, notamos que obra de arte realizada e a fruição
estética implicam na ideia de que o objeto artístico e seu campo próprio de atuação se
caracterizam por suscitar, nos sujeitos estéticos, uma noção de realidade que adquire e
assume novas formas. Nesse sentido, observamos que há, pragmaticamente, o plano da
vida cotidiana, onde o fruidor e o artista estão inseridos; entretanto, no momento da
criação artística, uma realidade outra se impõe quando este realiza a harmonização de
forma e conteúdo no objeto. Ao invés da realidade dispersa e caótica da vida cotidiana,
o artista, ao concluir a obra, alcança e realiza, conforme Lukács, uma realidade utópica,
o que enseja a seguinte afirmação: a obra de arte é a realização de uma realidade
utópica.
O mundo fechado da obra de arte estrutura-se, portanto, de uma forma
peculiar e bastante diversa daquela que estrutura a vida cotidiana. Naquela, todos os
conteúdos perdem o caráter de dispersão, pois se homogeneízam, possibilitando uma
relação sujeito-objeto em que o sujeito estético consegue reviver as suas experiências -
de modo pleno e autêntico - nos conteúdos plasmados pelo artista. Essa nova realidade
potencialmente reconecta, tanto o sujeito receptor quanto o artista, ao desejo humano
nostálgico de retorno a uma comunidade humana em que a relação sujeito-objeto é
pautada pela identidade, e em que, consequentemente, as relações são plenas de sentido.
É por esse motivo que, na esfera estética, a realidade ganha diversas proporções e é
237
relativizada, de modo que a realidade utópica que estrutura o mundo plasmado no objeto
estético se reveste de um caráter elevado, pois dá forma ao caos e preenche de sentido o
mundo disperso da realidade humana ordinária. Essa compreensão contribui
fundamentalmente para a definição do jovem Lukács sobre a obra de arte: um sistema
de relações fechado em si, ou seja, uma totalidade intensiva que se opõe ao sujeito
fruidor como uma experiência revivida, de forma a estabelecer uma relação com a
realidade cotidiana estruturada pela ideia de contraste, justamente, porque ela é a sua
realização utópica e não porque é a negação de sua superação. Nesse sentido, o papel do
artista consiste em transformar as possibilidades utópicas latentes e armazenadas na
fragilidade da experiência em uma realidade que pode ser, então, revivida pelo sujeito
fruidor.
Lukács reconhece, portanto, a imanência da categoria da utopia na
constituição e na realização do objeto artístico, e nos mostra de que maneira essa
realidade utópica - que no campo artístico consiste na criação de um mundo onde as
coisas fazem sentido e se harmonizam na relação que estabelecem reciprocamente -
pode ser alcançada. Assim, o alcance dessa realidade é estruturado e organizado por um
elemento central: o ponto de vista. É a sua função garantir uma relação homogênea e
direta entre todos os conteúdos selecionados para a composição da obra, de forma a
suscitar, no fruidor, a sensação de estar diante de um mundo em que os conteúdos
coexistem em harmonia plena, ideia traduzida por Lukács pela expressão “magma
universal”.
A relação homogênea e direta que se estabelece entre todos os conteúdos
está voltada para um único centro, que opera no sentido de fazer com que tudo conflua
para o ponto de vista: de onde tudo parte e para onde tudo retorna. Isto é, todos os
conteúdos convergem quando essa categoria opera na construção estética,
possibilitando, assim, a criação de uma realidade utópica em que a estranheza recíproca
das coisas é superada. Voltemos à noção de “magma universal”, de Popper, assumida
pelo jovem Lukács, que afiança e traduz de modo exemplar essa ideia. O ponto de vista,
que organiza e contribui para a geração da realidade utópica, funciona, também, como
um princípio purificador da realidade revivida pelo sujeito estético, possibilitando a
recepção artística aos moldes do jovem Lukács, cujo efeito é a possível superação
238
dialética da inadequação sujeito-objeto, o que só é possível a partir da consolidação de
um mundo estético que alcançou em si a materialização de uma realidade utópica.
Quando o ponto de vista homogeneíza os elementos dispersos da vida
cotidiana e estrutura a realidade utópica da obra de arte, é realizada, também, a
harmonia praestabilita entre forma e conteúdo. A partir de então, o objeto estético
revela nitidamente a realidade utópica do mundo ao qual faz referência, manifestando-a
na obra de modo adequado às formas da experiência do sujeito fruidor. No mundo da
obra de arte, as escolhas lexicais empreendidas pelo poeta ou cada conteúdo eleito pelo
pintor, por mais estranhos que sejam entre si, se harmonizam na conclusão do objeto
devido ao princípio da determinação formal, que estimula a criação artística à superação
dos paradoxos. Apresenta-se, assim, o conceito de forma pura, que está associado à
criação de um objeto que, segundo Lukács, instala na Terra o paraíso terrestre
verdadeiro. De acordo com essa concepção, o mundo da obra de arte, ou seja, a
realidade utópica, coincide com a construção de um mundo paradisíaco, onde não há
qualquer distância entre ser e dever-ser, um mundo cujo traço mais marcante é a
consonância com as exigências do sujeito fruidor, em que todos os desejos convergem
para a pura perfeição.
A argumentação empreendida em relação à forma pura, entretanto, levanta
um agravante, pois esse mundo paradisíaco para o qual a obra de arte é arrastada não
possui realidade, ou seja, ele é uma alegoria, uma cópia, um reflexo de uma distante
perfeição, que, segundo Lukács, pode, somente, ser aferido em senso subjetivo-
reflexivo. Essa formulação nos conduz, por conseguinte, à necessidade da noção da
utopia no sistema estético do jovem autor, pois, se é possível a conformação de um
mundo próprio na obra de arte, tal fenômeno só pode se configurar quando assume a
forma utópica. O que está em jogo é que a esfera estética induz o receptor a conferir ao
a posteriori da criação artística, ou seja, à obra concluída, a aparência de um a priori.
Essa afirmação pode ser esclarecida a partir da noção de que, por mais que existam
incalculáveis conteúdos reciprocamente estranhos no processo de composição da obra,
ao serem harmonizados, o sujeito receptor adquire a percepção de que o objeto artístico
concluído e os conteúdos selecionados para a sua composição possuem uma existência
em si a priori. Acerca dessa percepção, Lukács afirma que ela é, somente, uma
239
aparência, pois a obra de arte só pode se configurar a partir do processo de organização
e harmonização de elementos.
A realidade utópica deflagrada no mundo da obra de arte só pode se realizar
a partir do princípio da forma, que, na estética lukacsiana, ganha o status de forma-
utopia. Diante dessa questão, o nosso entendimento aponta para o papel da utopia como
pressuposto da forma artística. Segundo Lukács, a forma artística é como uma estrutura
purificada e idealizada cujo papel consiste em organizar os conteúdos díspares e
heterogêneos do plano da vida cotidiana, para, então, reorganizá-los, fazendo com que a
estranheza recíproca entre esse material seja dissolvida e, assim, substituída por uma
relação em que todos esses conteúdos, já homogeneizados, instituam uma afinidade
recíproca preenchida de sentido.
Para que a forma reúna essa potencialidade, é necessário que a
compreendamos como um meio expressivo que antecipa um modelo ideal daquilo que
ainda não é verificável e possível no plano da realidade vivida, mas que, no mundo da
obra de arte, é perfeitamente alcançado: um modelo em que a forma reconcilia, no
mundo interno do objeto estético, aquilo que lhe é distinto, de modo que, apesar de
reconhecer essa conciliação como algo meramente ideal, o caráter utópico da forma
aspira, de fato, a essa conciliação. É precisamente nesse sentido que a utopia é um
pressuposto da forma artística, validando a noção de forma-utopia, cujo movimento
subjacente a sua realização consiste, justamente, em uma contraposição à realidade
dada, a partir de uma projeção temporal para um plano outro, onde a possibilidade de
conciliação ser e dever-ser vigora como condição fundamental para a realização da
forma artística. Desta feita, abre-se a possibilidade para uma fruição estética que,
segundo Lukács, coloca o sujeito receptor diante de um mundo perfeito, cujo efeito
incide em sua realidade sensorial imediata, gerando uma sensação de superação do
sofrimento existencial, de modo que a alegria que emana dessa experiência nasce,
justamente, desse mundo perfeito, que, apesar de se mostrar presente para o fruidor,
aparenta emergir de outra região. Essa questão nos conduz, diretamente, à
fenomenologia da recepção.
A pergunta relevante sobre a experiência receptiva é a seguinte: a relação
sujeito-objeto, que decorre da vivência estética, envolve em si certo caráter utópico?
240
Para respondê-la, resgatamos a compreensão do jovem Lukács de que, ao fruir o objeto
estético, o receptor revive as suas próprias experiências de forma não estranhada, pois
reconhece que os conteúdos dispostos na obra estão de acordo com as suas demandas
existenciais, dado o estabelecimento da identidade sujeito-objeto que potencializa a
experiência de recepção do sujeito estético. Esse processo compreende um movimento
em que o indivíduo é suspenso do plano da vida cotidiana, de forma que sujeito e obra
são extraídos do fluxo histórico-temporal contínuo e alçados a um plano outro, onde a
efetivação da experiência estética pode ocorrer. Para Lukács, esse momento de
suspensão do fluxo histórico é responsável pela conquista da obra de arte de uma
existência situada além do tempo histórico, uma existência que é sempre renovada, pois,
apesar de ser produzida em um tempo histórico específico e de conquistar uma
existência fora do continuum temporal, a obra retorna a ele sucessivamente, de modo
que a sua existência e a vivência que dela se depreende é atualizada constantemente.
Existe, portanto, na estética de juventude, uma exigência para a realização
da experiência receptiva, a qual incide na criação de um plano deslocado da vida
cotidiana, em que a vivência estética se torna possível. Essa outra região pode ser
entendida como um plano paralelo à esfera da realidade vivida; paralelo, pois não pode
existir sem os seus motivadores, ou seja, a obra de arte e a relação de fruição que se
estabelece a partir da existência do objeto artístico. Paralelo, ainda, pois a obra de arte
só existe porque figura as vivências subjetivas do sujeito, as quais são extraídas, em
certa medida, da realidade cotidiana. Em outras palavras, este plano paralelo só existe
porque, primeiramente, existe a esfera cotidiana que oferece conteúdos para as
vivências humanas plasmadas na obra de arte. Nesse sentido, essa esfera tem a sua
existência implicada no plano da realidade vivida, pois seu surgimento depende dele. E
não apenas a sua origem, mas a noção de que a obra, que nasce no plano da realidade
vivida e que se alça a um plano paralelo no momento da fruição estética, retorna, por
conseguinte, à vida cotidiana como existência autônoma. Soma-se a isso a ideia de que a
obra de arte retorna, também, no sujeito fruidor, pois ele fora buscar a realidade utópica
que dentro dela foi criada, a qual, no momento de fruição, torna-se, ainda, parte desse
sujeito.
241
Esboçamos, assim, a demanda lukacsiana de um plano estético que efetiva a
recepção das obras de arte. Plano este que predicamos, até o momento, paralelo, pois a
sua estrutura, que compreende a suspensão do fluxo contínuo histórico e temporal,
permite ao sujeito fruidor a introjeção das vivências suscitadas pela obra de arte. Esse
plano, portanto, tem uma existência que depende da existência a priori da realidade
cotidiana e que se efetiva, após a fruição estética, nessa mesma realidade. É um plano
que pode ser definido por uma existência que permite ao sujeito se colocar diante de
uma realidade que ainda não existe, mas que deve existir, pois suas demandas
existenciais impetram essa existência, embora a estrutura da realidade cotidiana impeça
essa realização.
Esse plano, essa outra região, essa dimensão paralela, portanto, é uma
dimensão utópica. Utópica, pois é um não-lugar que surge e que se efetiva a partir da
existência da realidade cotidiana. É utópico, pois é elevado, visto que congrega as mais
grandiosas demandas existenciais do ser. É utópico, ainda, pois cria condições para que
o sujeito perceba possibilidades mais elevadas, autênticas e potentes em sua existência.
Possibilidades estas que o homem alcança na sua relação com a obra de arte, pois busca
no objeto aquilo que ainda não possui em sua existência e introjeta em si essas novas
possibilidades, as quais ganham uma existência somente nesse mundo utópico da
recepção artística.
O tema da utopia, assim, aparece de forma decisiva na fruição estética e se
torna o seu pressuposto. Depende do caráter utópico dessa nova realidade a efetivação
da experiência artística receptiva. A noção de utopia na estética de juventude pode ser
traduzida como uma representação artística ou como um plano da realidade que
congrega a noção de elevação, de realização de plenas e autênticas possibilidades do
ser. Soma-se a isso a noção de utopia como algo que não está realizado na realidade
cotidiana, mas que deve ser cumprido, pois as demandas mais elevadas do ser assim o
querem. Embora exista uma aspiração direcionada à realização desse novo e elevado
estado, a quadratura histórico-filosófica da realidade cotidiana não oferece bases para
que ele se instale. Desta feita, depreende-se que o plano da realidade vivida, ou seja, da
vida cotidiana, não é terreno fértil para a consumação de uma realidade elevada, o que
nos conduz à noção de que a concretização e o alcance dessa realidade se dão, portanto,
242
no plano utópico da fruição estética e a partir da realidade utópica plasmada na obra de
arte, a qual é traduzida na forma da identidade, também utópica, de sujeito e objeto. O
papel da utopia para a estruturação da estética de juventude é, assim, de capital
importância, pois é decisivo para a consumação da relação sujeito-objeto no âmbito da
vivência artística.
Resgatemos alguns pontos fundamentais sobre o tema da utopia na estética
de juventude. Lukács afirma que a obra de arte é a realização de uma realidade
utópica, a qual, para ser configurada, demanda uma harmonização entre conteúdo e
forma artística, de modo que a utopia se torna um pressuposto da forma artística,
conduzindo o autor a denominá-la forma-utopia. Para que a relação sujeito-objeto se
estabeleça no campo artístico, é necessário que a experiência receptiva seja alocada em
um plano outro, em um não-lugar, o que motiva o nosso entendimento de que o plano
onde a vivência estética se efetiva é, por excelência, utópico. É somente nele que se
efetiva a relação sujeito-objeto idêntica que postula a realidade utópica configurada na
obra de arte. Desse modo, a utopia também carrega o sentido de uma realidade superior,
de uma alternativa ao existente e, por conseguinte, de um modelo possível a ser seguido.
Diante dessas formulações, somos conduzidos à seguinte questão: quais são os efeitos e
as consequências da experiência receptiva para o sujeito fruidor?
O sujeito fruidor, certamente, é impactado e transformado pela experiência
estética. Primeiramente, porque introjetou uma realidade elevada - utópica -, que lhe
possibilitou reviver as suas experiências, de modo pleno, nos objetos conformados na
realidade utópica configurada pelo mundo próprio da obra de arte. Esse movimento
desperta no sujeito a tentativa de viver no mundo dos homens o mundo utópico e
elevado plasmado no objeto artístico, o que conduz o resultado e o efeito da vivência
estética à noção de mal-entendido, pois, no plano da realidade vivida, estão vedadas
quaisquer possibilidades de relação idêntica entre sujeito e objeto, de uma comunicação
plena entre os homens e de uma vida rica de sentido. Tais afirmações nos conduzem à
noção de que o depois da experiência receptiva ressalta o abismo transcendental entre
sujeito-objeto, e alimenta a percepção dos sujeitos de que o plano em que se desdobra a
vida cotidiana é um conjunto caótico e desordenado de singulares esvaziados de sentido.
243
Esse sujeito estético se depara, portanto, com a impossibilidade de um fluxo metabólico
entre o mundo utópico configurado na obra de arte e o mundo objetivo onde ele atua.
A nova, autêntica e elevada possibilidade de vida que se oferece para o
sujeito estético na experiência receptiva se encerra no plano utópico da fruição. Encerra-
se porque a obra de arte torna-se uma espécie de consolação, pois ela não liberta o
sujeito para uma realização de suas plenas potencialidades no mundo objetivo, mas
ressalta, exatamente, o seu oposto, elemento que isola ainda mais o indivíduo moderno
para o interior de sua subjetividade, acentuando a ideia de solipsismo. O efeito da
vivência estética conduz o fruidor para uma realização que ocorre, somente, no interior
de sua subjetividade, configurando um movimento voltado para o interior, para um
retorno à subjetividade individual e, não, para o exterior, ou seja, para uma relação
plena de sentido entre o homem e o seu entorno. Se o mundo objetivo não é terreno
profícuo para a consumação de uma realidade elevada, tal realização encontra a sua
morada na esfera estética. Em síntese, podemos enunciar o efeito da experiência
receptiva nos seguintes moldes: como a realização subjetiva dos homens no mundo é
impossível, ela se realiza na obra de arte como utopia, na forma da identidade utópica
de sujeito e objeto.
A implicação de tal formulação é a configuração de uma relação distante
entre os planos da arte e da vida, pois o desenvolvimento do espírito é independente ao
da realidade na estética do jovem Lukács. Ao se perceber isolado em sua subjetividade,
esse sujeito estético dá margem à noção de que o mundo não pode ou não precisa ser
mudado; aspecto que ganha ainda mais solidez a partir da não introdução da noção de
história na estética de juventude. Ressaltamos, por conseguinte, o resultado da adesão
lukacsiana à filosofia da vida, essencialmente, à noção de vivência na estética. Como a
obra de arte tornou-se um receptáculo de vivências, a recusa da noção de história se
impôs, implicando, especialmente, em uma estética que privilegia a ideia da aristocracia
espiritual e do homem sem história em detrimento de um sujeito universal. Desta feita,
o fluxo possível entre os planos da arte e da vida objetiva fica praticamente
interrompido, pois é vedada - também pela relação fruidor e obra de arte - a
possibilidade da realização das plenas possibilidades humanas no mundo.
244
A utopia adquire, assim, um status deveras importante na estética do jovem
Lukács, pois além de se tornar um elemento fundamental para a efetivação da recepção
estética, ela é responsável pela possibilidade da realização subjetiva do sujeito fruidor
no mundo estruturado na obra de arte. Se não há configuração de uma realidade utópica
no objeto artístico, se a forma-utopia não age na harmonização de forma e conteúdo, e
se a vivência artística não está situada em um plano de caráter marcadamente utópico, a
relação sujeito-objeto no campo artístico não se efetiva. Dessa forma, o nosso raciocínio
aponta para a afirmação de que a noção de utopia é um dos elementos centrais na
estética de juventude, pois a sua não existência implica na impossibilidade da efetivação
da relação sujeito-objeto na esfera da arte.
Diante das noções que até então reunimos, percebemos que a ideia de utopia
é construída a partir da noção de um mundo elevado e superior, onde a relação idêntica
entre sujeito e objeto se efetiva. Erige-se, assim, a ideia de um mundo onde tudo faz
sentido, onde não vigora uma relação estranhada entre os objetos, e, por fim, um lugar
onde os homens podem realizar suas potencialidades de forma autêntica. Esse mundo
funciona, portanto, como um modelo. Notamos, ainda, que a noção de história está fora
da construção desse mundo estruturado utopicamente, pois, ao entender a obra de arte
como receptáculo de vivências subjetivas, a configuração do seu mundo é compreendida
como atemporal, essencialmente porque as vivências assim o são. A história também é
excluída quando levamos em conta o resultado da fruição, que consiste na possibilidade
do sujeito receptor de reviver as suas vivências subjetivas nos objetos plasmados na
obra, de modo consoante às suas demandas existenciais. A história não está implicada
no ato do fruidor de reviver as suas vivências na obra, essencialmente porque a estrutura
da vivência, como já foi dito, não é histórica.
Ao assumirmos que a noção de utopia está construída a partir da ideia de um
mundo elevado, porém a-histórico, que funciona como um modelo, entendemos que a
utopia está fundamentada na noção de algo que ainda não é, mas que, de certa forma, é
exigido pelo espírito e deve ser efetivado para que a vida dos homens seja plena e
superior. Devido à impossibilidade de realização no mundo objetivo, isto é, na história,
o sujeito estético encontra a possibilidade de desenvolvimento do espírito na realidade
245
utópica realizada da obra de arte, movimento que acarreta o distanciamento entre os
planos da arte e da vida, isolando o sujeito em sua subjetividade.
De acordo com a nossa compreensão, esse conjunto de noções é
absolutamente emblemático e, portanto, representativo do pensamento estético do
jovem Lukács, o qual é radicalmente superado pela “Estética”. Nessa obra, a
representação do mundo objetivo, dos seus agentes e de suas trajetórias serão
formalmente possíveis e comunicáveis, o que conduz ao entendimento da obra de arte
como um instrumento, também, de crítica da vida. Assim, a noção do abismo
transcendental como resultante da relação sujeito-objeto é confrontada, e a ponte
possível, que opera aproximando arte e vida, é erigida no pensamento estético do velho
Lukács.
Diante dessa mudança substancial, pergunta-se: de que modo o tema da
utopia se coloca na estética de maturidade? Para responder a essa pergunta, passaremos
pelo conceito de obra de arte e de mimese, pelo processo de criação e de recepção
artística e, por fim, pela noção de catarsis apresentados na “Estética”. Ao longo dessa
trajetória, o tema da utopia acena para o leitor, revelando o seu lugar, e assinalando, a
nosso ver, perspectivas importantes no que tange, inclusive, ao pensamento político do
velho Lukács.
Para este autor, as autênticas obras de arte congregam em si “(...) a
contraditória unidade do utópico e do antiutópico” (LUKÁCS, 1967, vol. 3, p.245,
tradução nossa). Essa afirmação é nosso ponto de partida para a compreensão do papel
da utopia na estética de maturidade. Ao adotá-la, esclareceremos, primeiramente, no que
consiste a essência não utópica da obra de arte, para, em um segundo momento,
argumentarmos acerca de seu oposto. Para tal realização, reiteramos que o mundo
próprio das obras de arte é erigido a partir da contraditória unidade do utópico e do
antiutópico, o que conduz o autor a afirmar que o seu traço não utópico reside na ideia
de que, na “Estética”, o mundo particular das obras de arte tem como marca a
cismundaneidade, isto é, ele se ocupa e, por conseguinte, refigura o homem, suas
potencialidades e o seu mundo. Nesse sentido, a configuração estética, por ser mimética,
não é utópica em sua essência.
246
Embora certas produções artísticas ensejem uma ativação da consciência
humana, apontando para algumas questões de forma antecipatória e utópica, esta não é a
essência da arte. Soma-se a isso a afirmação de Lukács de que, para a grande maioria
dos gêneros artísticos, a possibilidade de representação de perspectivas futuras existe,
apenas, como uma direção de movimento a ser indicada e depreendida do momento
presente que a própria obra materializa artisticamente. Na esfera estética, mesmo os
objetos artísticos que assinalam um mundo do devir para o receptor são vividos por ele
como seu mundo próprio, e não como algo que lhe é exterior. Por esse motivo, Lukács
afirma que a canção mais idílica ou a natureza morta mais rudimentar expressam, em
certa medida, um dever-ser que demanda do sujeito da cotidianidade o alcance da
unidade e da altura alcançadas na obra de arte, configurando o dever de uma vida
preenchida de sentido e autêntica.
A confirmação artística objetivada de um comportamento utópico e de
perspectivas futuras não é, portanto, uma reivindicação da esfera estética, de modo que
nenhum artista tem o dever de apresentar projeções acertadas para o futuro. A exigência
recai, por conseguinte, na apreensão, captação e conformação estética de conteúdos
essenciais da vida humana e oriundos de uma realidade histórica presente ou já vivida, o
que não exclui que esses mesmos conteúdos já reúnam em torno de si perspectivas e
tendências do porvir. Por esse motivo, Lukács admite que:
[...] nenhuma obra de arte é utópica, posto que, com seus meios, não pode
refletir mais do que o existente, de modo que aquilo que ainda não é, o
futuro, o em realização, não aparece na obra mais do que o que já está
presente no próprio ser, como preparação capilar do futuro, como precursor,
como desejo e ânsia, como recusa do presente, como perspectiva, etc.
Entretanto, ao mesmo tempo, toda obra de arte é utópica em comparação com
o empírico ser-assim da realidade que reflete; e é utopia no sentido literal,
como refiguração de algo que está aí sempre e nunca (LUKÁCS, 1967, vol.
3, p.245, tradução nossa).
A passagem supracitada justifica, em um primeiro momento, o caráter não
utópico da arte, o que confirma a nossa ciência de um imenso escopo artístico, que, ao
representar a realidade particular de seu tempo, ventilou perspectivas e tendências
futuras acertadas de comportamentos humanos ou de tendências políticas que já
constavam como formas embrionárias quando de sua representação. Pensemos, por
exemplo, em “Frankenstein ou o Moderno Prometeu”, escrito pela ainda jovem Mary
247
Shelley. Esse aspecto é um dos possíveis efeitos da conformação artística e não
exigência estrutural dessa mesma esfera. Nesse sentido, interessa-nos entender o que
Lukács pretende ao afirmar que toda autêntica obra de arte é, também, utópica.
Para esclarecer essa questão, lembremos que a autêntica obra de arte é, para
o autor, realista. Isto é, ela se ocupa dos conteúdos mais fundamentais da essência
humana, de sua evolução, de suas vitórias e derrotas, da relação dos homens com a
sociedade e com a natureza. Levando em conta essa ponderação, Lukács afirma que o
problema da configuração estética se revela na forma de um contrassenso, ou melhor, na
unidade contraditória entre o utópico e o antiutópico, revelada a partir da seguinte
formulação: apesar da mimese artística ser, em sua essência, “não utópica”, ela gera, ao
projetar organicamente experiências autênticas do gênero humano em formas
individuais, uma imagem da realidade que apresenta um caráter utópico. Estamos,
portanto, diante de uma questão central: a estrutura particular da obra de arte comporta
um traço, ao mesmo, tempo, realista - pois é mimese do homem e do seu mundo - e
utópico - pois empreende em todos os objetos de representação a universalização do
singular. Retomemos a estética de juventude e o seu direcionamento voltado à noção de
que a realidade utópica do objeto artístico extrapolava o plano da realidade cotidiana, ao
passo que o velho Lukács dispensa essa ultrapassagem, apontando para o entendimento
de que uma das bases da esfera estética está em exasperar uma tendência que reside na
própria vida cotidiana.
Se a obra de arte mimetiza os conteúdos humanos essenciais de um
determinando tempo histórico, a relação entre o fruidor e o objeto estético permite a
transformação do homem inteiro em homem inteiramente. O conteúdo essencial dessa
metamorfose é aclarado a partir do entendimento de que, ao receber a obra, o sujeito
fruidor acolhe imediatamente o objeto que contempla em um movimento em que são,
momentaneamente, suspensas as suas tendências ativas e a sua vontade de intervir
efetivamente nos dados concretos do mundo onde habita, pois esse sujeito goza de um
período de suspensão do fluxo da vida cotidiana e passa a se orientar exclusivamente e
temporalmente para a contemplação de um conteúdo vital concreto, que, no mundo da
obra de arte, é formalizado e, então, refigurado como totalidade intensiva, traduzido na
248
figura de destinos, situações e personagens típicos. Para Lukács, somente na esfera
estética:
A tipicidade intensificada até a evocação se articulam para uma refiguração
da realidade, que, no conjunto ali conformado de homens e situações, de
objetos, relações e movimentos, é refletido e conformado artisticamente um
mundo humano particular e unitário (LUKÁCS, 1967, vol. 3, p.249, tradução
nossa).
Esse processo conecta o receptor - um sujeito repleto de características
particulares, como classe social, gênero, família, nacionalidade, etc., - aos conteúdos
essenciais do gênero humano, infundindo-lhe a autoconsciência de si do gênero
humano, pois ele passa a se vincular aos feitos presentes da humanidade, àqueles
pertencentes ao passado e às possíveis tendências futuras da evolução dos homens.
Logo, sem abrir mão de suas características particulares, esse sujeito é, ao mesmo
tempo, alçado à universalidade do gênero humano, processo do qual se depreende o seu
sentimento de pertencimento ao mundo onde habita, bem como é suscitada a
compreensão de que ele é o co-criador desse mesmo mundo. O sujeito receptivo,
portanto, desloca o seu entendimento do mundo e a sua relação estranhada para com ele
para uma noção do mundo como lar, como pátria, como pólis, como algo de que ele faz
parte; o que lhe desperta, enfim, a sensação de se reconhecer nas coisas do mundo e,
consequentemente, no mundo.
Essa experiência estética só é possível porque o universo próprio da obra de
arte é estruturado a partir da representação típica de figuras e destinos, de homens e de
situações que compreendem em si traços particulares, mas que, no mundo erigido no
objeto artístico, orientam-se pela generidade, pois o universo próprio da arte prevê essas
mediações. Essa vinculação entre o singular, o particular e o universal está contida na
autêntica obra de arte, pois está presente, de certa forma, na realidade objetiva. Se o
objeto artístico é um reflexo justo e fiel do mundo dos homens, é necessário que a arte
reflita esse atrelamento, obscurecido pelas relações fetichizadas vigentes no mundo
capitalista. A obra de arte deve, assim, lança luzes a essas relações estranhadas, no
intuito de revelar a verdade que se esconde por detrás dos véus do fetiche. Depreende-se
dessa noção, a missão desfetichizadora da arte.
249
O mundo plasmado no objeto artístico e contemplado pelo fruidor é,
portanto, elevado e superior, pois reconecta os sujeitos à generidade, tanto no que tange
à recepção artística quanto ao que concerne à estruturação interna do universo a ser
figurado pela obra. A partir da tipicidade pretende-se o reflexo das relações entre o ente
singular e o gênero humano, orientação suficiente para que o mundo da obra de arte seja
predicado elevado, o que conduz Lukács a afirmar que ele funciona, portanto, como um
modelo a ser contemplado e, por conseguinte, a ser seguido pelo homem. Soma-se a
isso a ideia do autor de que, na arte, o processo evolutivo da humanidade se refere
imediatamente a cada homem singular:
Pois a evocação artística propõe, primeiramente, que o receptor viva como
algo próprio a refiguração do mundo objetivo dos homens. O indivíduo deve
encontrar a si próprio - seu próprio passado ou seu presente - nesse mundo e,
assim, tomar consciência de si mesmo como parte da humanidade e de sua
evolução. A obra é capaz de despertar e desenvolver a autoconsciência do
indivíduo no mais pleno sentido da palavra (LUKÁCS, 1967, vol. 3, p.309,
tradução nossa).
Desta feita, o caráter utópico da obra de arte é traduzido pela ideia de um
modelo elevado de mundo em que as relações entre o homem singular e o gênero
existem e podem ser contempladas de uma forma desfetichizada pelo receptor na
estrutura particular do mundo da obra de arte. A utopia também está posta ao se afirmar
que é próprio da configuração artística que o processo evolutivo da humanidade se
refira imediatamente a cada homem singular no universo criado em cada obra de arte, o
que conduz à afirmação de que a obra de arte materializa singularidades esteticamente
universalizadas. É nesse sentido, portanto, que toda autêntica produção artística -
realista - é utópica, pois é a refiguração de algo que, como diz Lukács, está sempre e
nunca na vida dos homens, ou seja, a relação entre os homens singulares e o gênero
humano.
Ao assumir como seu objeto de figuração os esforços humanos, os
sentimentos, a relação do homem com a sociedade e com a natureza, em um movimento
orientado à completude e à realização humana, e, diante da materialização desses
conteúdos, proceder de forma que a realidade não seja afetada, isto é, que se mantenha o
seu reflexo justo; a obra de arte acaba por oferecer ao homem um modelo. Nele, por
250
exemplo, figuram potenciais humanos que virtualmente existem, mas, majoritariamente,
não se realizam no mundo, o que leva Lukács a afirmar que:
A realização tão pouco frequente alcançada na vida, na prática ética, aparece
na obra como a existência natural dos homens. Porém, não uma realização
em sentido abstrato geral, mas como a própria do hic et nunc do homem
representado em cada caso, como a concreta realização do homem em seu
concreto entorno, ou seja, como a consumação de sua particularidade
(LUKÁCS, 1967, vol. 3, p.245, tradução nossa).
É importante ressaltarmos que, no mundo próprio das obras de arte, a
possível realização das plenas potencialidades humanas é apresentada como algo natural
do homem; o que, no mundo capitalista, é obscurecido pela relação estranhada entre
sujeito e objeto. Daí, ressaltar a importância da arte realista, a qual pressupõe uma
articulação adequada e orgânica dos conteúdos figurados no objeto estético, o que
resulta na configuração de destinos de personagens que compreendem e que evocam o
ponto de vista do gênero humano e as necessidades e tarefas atribuídas ao homem ao
longo de sua marcha evolutiva e autoconstitutiva. Neste aspecto, precisamente, a
questão da utopia está posta, pois Lukács atribui à arte a missão de despertar os
indivíduos para o sentido mais pleno de sua humanidade, o que se efetiva a partir da
configuração de individualidades esteticamente universalizadas que representam o
ponto de vista do gênero humano. Patriota, ao retomar as ideias de Lukács, reforça,
assim, o caráter utópico da arte, afirmando que:
[...] em nenhuma das sociedades existentes até agora (este ponto de vista do
gênero humano) jamais foi alcançado objetivamente, nunca se objetivou em
um sistema de relações humanas reais, e nunca pôde determinar diretamente
a ação e o pensamento dos homens (LUKÁCS apud PATRIOTA, 2010, p.
247- 248).
Os sujeitos, desde sua hominização antropológica, buscam a construção de
bases materiais que visam integrar o indivíduo à totalidade das formas genéricas,
entretanto, como já mencionamos, o capitalismo se colocou como um entrave para essa
realização, pois esse sistema econômico, pautado pela divisão de classes, dificulta a
tradução da interiorização da generidade em vivência imediata e cotidiana, processo que
poderia ser alcançado, ao menos de modo aproximado, em uma quadratura que prezasse
por uma sociabilidade amplamente humanizada. Esse entrave, posto pela sociedade
capitalista, pode ser superado na esfera estética, pois a mimese artística tem o potencial
251
de transformar o ser-em-si da objetividade em um ser-para-nós do mundo, os quais são
representados na individualidade de cada totalidade intensiva que é a obra de arte. Essa
propriedade da esfera estética tem o poder de ampliar, alargar e aprofundar a
consciência do homem sobre a História, a sociedade, a natureza e sobre a sua própria
condição humana. Sendo assim, a experiência da recepção estética se configura como
um processo de autoconsciência do sujeito fruidor, levando ao entendimento da obra de
arte como espelho da autoconsciência:
O que o homem entregou generosamente à realidade objetiva (e à realidade
de si mesmo e de seus semelhantes) nas diversas formas de alienação, aquilo pelo qual ele possui em cada momento sua própria riqueza de pensamento,
retorna agora ao sujeito e o mundo é vivido como mundo próprio do homem,
como posse que nunca pode perder-se. Nestes dois atos inseparáveis nasce,
difunde-se e se aprofunda a autoconsciência humana. Estes atos inseparáveis
se unificam adequadamente, com pureza consumada, somente na arte
(LUKÁCS apud Patriota, 2010, p. 234).
Supera-se, assim, a ideia de solipsismo cara ao jovem Lukács, pois, na
“Estética” de maturidade, o singular se faz racional através da superação de seu
isolamento a partir do estabelecimento de suas mediações, o que corresponde, no campo
da arte, à afirmação de que a experiência estética da vivência da obra por um indivíduo
particular coloca esse mesmo sujeito diante de sua própria generidade. Nesse sentido,
Lukács salienta que a experiência estética consiste no reconhecimento de si no outro, o
que equivale a afirmar que a fruição da obra de arte permite a aquisição e o alargamento
da autoconsciência do gênero humano.
Se a ideia de gênero consiste no resultado das multifacetadas interações
entre os homens e demarca um espaço específico de ação e de autoconstrução, é válido
resgatar, como faz Lukács, a ideia de Marx de que não são diversas a vida individual e a
vida genérica do indivíduo, por mais que a forma de existência da vida individual
consista em uma forma mais particular ou mais geral da vida genérica. Marx apontava
que a questão do trabalho como atividade teleológica destinada a suprir uma
necessidade coletiva, mesmo que restrita a um pequeno coletivo ou a uma classe,
implicava, sempre, em uma determinada consciência genérica. Na esfera estética, ao
afirmar que o sujeito adquire autoconsciência do gênero humano, Lukács assegura que
este pode expandir o seu raio de ação. Entretanto, enfatiza que, por ser mimética, a arte
não exige, de antemão, nenhuma intervenção no mundo que afete os interesses
252
imediatos do indivíduo, o que não invalida a sua relação com a vida real. A
humanização não deve ser compreendida, apenas, nos processos econômicos, nas forças
estruturais da sociedade e no interior da luta de classes. A luta pela interiorização da
generidade - pela humanização de si - é compreendida pelo autor como responsabilidade
social dos artistas e dos intelectuais. Nesse sentido, Patriota, resgatando as ideias de
Lukács, afirma que:
É dever de ambos se rebelar contra o sistema manipulador e dar aos homens,
com suas obras, uma esperança mínima, uma perspectiva, ainda que
individual. Perspectiva que o artista põe a descoberto na medida em que
afirma criticamente a vigência do humano na história e no presente reificado,
na medida em que suas criações dão vida a sentimentos autênticos, os quais,
não importando o quão raro estes possam ser, constituem-se como
possibilidades intrínsecas do ser social (PATRIOTA, 2010, p.264).
A passagem mencionada resgata a importância do artista e do intelectual na
vida dos homens, pois eles são porta-voz da humanidade e, de certa forma, podem
indicar e oferecer possibilidades mais humanas de existência. O artista, por sua vez, ao
refigurar na obra o mundo dos homens, possibilita ao fruidor que tenha a vivência das
possibilidades intrínsecas do ser social, que, na obra de arte, se tornaram concretas. Essa
é a compreensão lukacsiana da ideia de catarsis:
Inclusive quando a arte - na poesia ou na música, por exemplo - contrapõe aparentemente ao homem um mundo do dever, este mundo toma na arte a
forma de um ser cumprido, e o homem que vive a segunda imediaticidade da
obra pode entrar em relação com esse mundo como se ele fosse seu mundo
próprio. Só no depois do efeito reaparece o caráter de dever-ser; mas também
nisso coincidem as grandes obras de arte, independentemente de que seu
conteúdo inclua ou não um dever-ser: até a canção mais pastoral ou o idílio
mais simples expressam, em certo sentido, um dever-ser, dirigem-se ao
homem da cotidianidade com a exigência de que ele alcance também a
unidade e a altura realizadas na obra. É o dever de toda vida plena (LUKÁCS
apud PATRIOTA, 2010, p. 264-265).
Na estética de juventude, a concepção do plano da vida cotidiana como algo
imutável, como a disjunção metafísica entre sujeito e objeto, impede a vivência catártica
do receptor, isolando-o em sua subjetividade e revelando a ele a enorme distância entre
o plano da arte e da vida empírica. Essa concepção é superada na “Estética” de
maturidade, pois arte e vida cotidiana se aproximam por meio da catarsis, de forma que
o fluxo metabólico entre ambos os planos ganha existência. Sendo assim, o receptor da
obra de arte, a partir da vivência estética, pode trazer à cotidianidade os conteúdos
253
vivenciados na obra de arte, tal qual um processo pedagógico, já que a catarsis implica
na retroação da vivência artística sobre a subjetividade ativa do cotidiano.
A “Estética” aponta, portanto, para uma zona em que estética e ética se
entrecruzam, o que pode ser confirmado pelo efeito da catarsis, cujo resultado consiste
na vivência da realidade intrínseca da vida humana cuja comparação com a realidade
cotidiana produz, pelo efeito da obra, uma purificação das paixões que se transforma em
ética no momento imediatamente posterior à fruição do objeto artístico. Este Depois,
intrínseco ao movimento catártico, possibilita que o sujeito fruidor sofra uma
transformação existencial direcionada à realização de possibilidades humanas
autênticas, mais significativas e amplas. A vivência estética evoca, assim, a
possibilidade de um desenvolvimento humano em que o sujeito, sem apagar a sua
singularidade, reivindica para si as tarefas do gênero humano, vivenciando-as como
suas e compreendendo os traços comuns da vida do gênero e de sua própria. A
compreensão da eticidade, conforme Lukács, aponta, assim, para a harmonização dos
interesses genéricos e particulares do indivíduo, de forma que as tomadas de decisão
desse sujeito são referidas à sua própria generidade, mas orientadas, sobretudo, pela sua
superação. Ao entender dessa forma a experiência receptiva, Lukács rompe
radicalmente com as matrizes teóricas de sua estética de juventude, pois o sujeito
estético é visto, na sua obra de maturidade, como um homem universal e histórico, o
que denega qualquer possibilidade de homologia com o sujeito estético entendido como
uma aristocracia espiritual e como a-histórico na estética de juventude. Dessa forma,
compreendemos que o modelo de homem e de mundo subjacentes às estéticas é
absolutamente diverso, o que nos leva a afirmar que o velho Lukács realmente rompe
com a sua estética de juventude.
Em passo conclusivo, no que concernem às nossas reflexões sobre a utopia
na estética de maturidade, é importante ressaltar que o caráter utópico nessa esfera não
reside, somente, no problema da configuração estética, que, por ser mimética, ou seja,
não utópica em sua essência, gera uma imagem da realidade que possui um caráter
utópico ao projetar organicamente as experiências autênticas do gênero humano em
formas singulares. O fenômeno da recepção, fundamentalmente no que tange à catarsis,
assume, também, esse caráter na “Estética”. Se a obra de arte é criada por um artista que
254
fala pelo coletivo e que busca plasmar na obra a universalização de formas singulares, a
recepção do objeto estético compreende um caráter utópico na estética de maturidade.
Se o sujeito receptor, em contato com o objeto estético, vivencia as
experiências mais legítimas do gênero humano em formas singulares, admitimos que a
obra de arte aponta para o fruidor uma gama de possibilidades intrínsecas do ser social,
que, no objeto estético, se tornaram concretas. A vivência dessas possibilidades e este
dever-ser colocado como possibilidade na obra conduzem o sujeito estético à busca de
um conteúdo humano que está à sua frente. A sua busca, traduzida como interiorização
da generidade, ou seja, como humanização de si, move esse sujeito adiante, a fim de que
ele coloque dentro de si aquelas possibilidades, configurando o movimento utópico da
recepção estética. Aqui, a aproximação entre arte e vida é evidente, pois a esfera
estética, a partir de suas particularidades, ganha uma função social na “Estética”.
Desta feita, se o sujeito que vivencia as obras de arte coloca dentro de si a
memória da humanidade, em um processo quase pedagógico de humanização, entrando
em contato com a generidade; e se, a posteriori, abre-se uma possibilidade de fluxo
metabólico entre as esferas da estética e da ética; consequentemente, o sujeito fruidor
sai engrandecido da experiência receptiva, pois o seu resultado é a possibilidade de um
ser potencialmente mais humano, o qual pode, por conseguinte, redirecionar as suas
práticas sociais de forma a privilegiar a realização de possibilidades humanas mais
autênticas, mais significativas, mais amplas e voltadas, assim, para os interesses
humanos coletivos, aspectos que corroboram a ideia de um mundo autenticamente
comunitário.
Se a construção de uma autêntica comunidade humana é possível, é inegável
que os seus agentes tenham uma orientação ética no sentido dos interesses da
coletividade, isto é, do bem comum. Sendo assim, a estética de maturidade lukacsiana,
ao atribuir ao conceito de catarsis o seu sentido aristotélico mais profundo - aquele em
que os elementos conscientes e inconscientes relativos às paixões se refiram, antes de
tudo, ao núcleo do sujeito, e se transformem, assim, em autoconsciência -, permite que a
obra de arte se torne um instrumento potente no amadurecimento dos sujeitos,
funcionando, também, como um instrumento revolucionário.
255
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Entre os anos de 2013 e 2014, os quais compreenderam a redação do projeto
que deu origem a esta tese, eu estava decidida a encarar a leitura integral da “Estética”
lukacsiana. Assim, a possibilidade do doutorado surgiu como um motivo a mais para
que eu canalizasse a minha atenção para esse objeto. Durante a redação do projeto, tive
a oportunidade de entrar em contato com um dos capítulos da “Estética de Heidelberg”,
intitulado “A relação sujeito-objeto na estética” (Die Subjekt-ObjektBeziehung in der
Ästhetik), que constitui, originalmente, um capítulo da estética do jovem Lukács,
publicado na edição de 1917-18 da revista “Logos”. O texto mencionado está longe de
constar entre os mais conhecidos do autor, diferentemente de suas obras célebres de
juventude, como “A alma e as Formas” (1911), “A Teoria do Romance” (1915-16) e
“História e Consciência de Classe” (1923).
A leitura de “A relação sujeito-objeto na estética” motivou a minha busca
pela “Estética de Heidelberg” e por referências bibliográficas que contribuíssem para o
entendimento e para a discussão da obra. Percebi, então, que havia pouquíssima
bibliografia nacional e internacional em relação à estética do jovem Lukács, o que
aguçou ainda mais a minha curiosidade de lê-la integralmente. Descobri, por
conseguinte, que os manuscritos da estética só vieram a público na década de 1970,
após a morte de seu autor e devido a um trabalho incansável de organização dos textos,
até então, dispersos, realizado pelos pensadores da “escola de Budapeste”. Ao longo da
redação do projeto de doutorado, eu havia lido, somente, alguns trechos da estética de
juventude, de forma que só entrei em contato com o texto integral no ano de 2015, em
Florença, quando consegui a sua tradução para o italiano.
À época da redação do projeto, percebi que poderia estudar não somente o
pensamento estético do Lukács maduro, mas, também, o seu pensamento de juventude.
Essa perspectiva me animou, pois, no ano de 2012, havia defendido o mestrado, no qual
investiguei a definição do gênero romanesco em dois momentos diversos do
pensamento do autor. Percebi que poderia realizar, novamente, um estudo comparativo,
voltado, então, às estéticas. Interessou-me a possibilidade de examinar os manuscritos
256
de Heidelberg, essencialmente, porque há pouquíssimas referências nacionais sobre o
texto bem como fiquei envolvida pela possibilidade de contribuir para esse debate.
O estudo da “Estética” motivou-me não apenas pela discussão ainda pouco
frequente sobre a obra na academia e, por conseguinte, nos cursos de Letras, mas por
sistematizar o pensamento de Lukács sobre arte; tema sobre o qual o autor se debruçou
durante toda a sua trajetória intelectual. Desta feita, a pergunta em que eu sempre
esbarrava era a seguinte: Qual é o papel da arte no conjunto das produções humanas?
Movida essencialmente por esse questionamento e diante dos estudos que eu já havia
empreendido sobre o pensamento lukacsiano voltado à literatura, a análise sistemática
das estéticas, certamente, contribuiria para que eu conseguisse formular uma resposta
para tal questão.
Munida de um caderno repleto de fichamentos, povoada de incertezas, mas
apegada a algumas convicções, conversei com o meu orientador, o professor Drº Carlos
Berriel, sobre a possibilidade de investigar de que forma o tema da utopia estava posto
nas estéticas lukacsianas, pois sabia, de antemão, que o jovem Lukács asseverava que a
obra de arte é a realização de uma realidade utópica. Essa afirmação fez com que eu
propusesse um estudo das duas estéticas orientado pela ideia de utopia. Enfim, estava
formulado o tema para a redação do projeto de doutorado. Restava-me, por conseguinte,
delinear as perguntas que caminhariam comigo ao longo deste estudo.
O primeiro questionamento, naturalmente, se traduziu na formulação: Em
que consiste a ideia de utopia nas estéticas de juventude e de maturidade de Lukács? A
resposta a essa pergunta, me conduziu, naturalmente, ao seguinte debate: Pode-se dizer
que há uma homologia entre as estéticas? Ao esclarecer tais questões, um conjunto de
perguntas foi se interpondo: O movimento de distanciamento ou de aproximação entre
arte e vida cotidiana apresentado nas estéticas se relaciona, de alguma forma, à ideia de
utopia? Se isso ocorre, quais são os desdobramentos dessa questão? A categoria da
utopia é a causa da aproximação ou do distanciamento entre arte e vida cotidiana, ou é,
somente, um dos fatores que contribui para essa relação?
Diante das reflexões suscitadas pelas perguntas mencionadas, outros
questionamentos delas decorreram, os quais estão diretamente relacionados ao
257
pensamento lukacsiano de maturidade. São eles: O processo de recepção das obras de
arte, descrito na “Estética” (1963), aponta para um sujeito estético munido de maior
potencial revolucionário? e A partir dessa reflexão, de que forma o tema da utopia está
implicado nessa questão? Essas duas perguntas nos encaminham, por fim, para o último
questionamento desta tese: Para o velho Lukács, a revolução permanente é a revolução
que se dá no âmbito da cultura?
Creio que, ao longo deste trabalho, argumentamos detidamente no sentido
de responder a algumas dessas questões. A seguir, de forma breve, reproduziremos, em
linhas gerais, os pontos essenciais relativos a cada uma dessas análises, para, a partir
deles, atendermos os questionamentos que ainda ficaram sem a devida solução.
Iniciaremos, por conseguinte, pela seguinte formulação: Em que consiste a ideia de
utopia nas estéticas de juventude e de maturidade de Lukács?
Resumidamente, podemos afirmar que o jovem Lukács entende a obra de
arte como a realização de uma realidade utópica. Quando configurada, essa realidade
oferece ao sujeito fruidor a oportunidade de reviver, de acordo com as suas demandas
existenciais, as suas vivências subjetivas em cada um dos conteúdos plasmados no
objeto artístico. Essa estrutura utópica, que subjaz o mundo da obra, permite, segundo
Lukács, uma relação sujeito-objeto idêntica. Sendo assim, para que o mundo próprio da
arte possa se materializar, exige-se que a forma artística seja revestida de caráter
utópico, pois é o poder totalizante da forma que permite a configuração de uma
realidade em que os elementos dispostos no objeto artístico estabeleçam reciprocamente
uma relação harmônica e plena de sentido.
Diante dessas questões, Lukács cria o termo forma-utopia, reforçando a
necessidade de demonstrar o potencial totalizante da forma artística, que permite a
configuração de um mundo onde tudo faz sentido, diferentemente do plano da vida
cotidiana, compreendido pelo autor como um plano de dispersão, caótico, despido de
sentido, onde a incomunicabilidade entre os sujeitos vigora. A utopia, portanto, é
entendida, na estética de juventude, como um modelo de realidade cujo traço mais
potente é a configuração de um mundo onde os homens se entendem efetivamente, onde
podem estabelecer relações autênticas, realizar suas plenas possibilidades e reviver suas
vivências subjetivas em cada um dos objetos presentes na obra de arte, de forma
258
consoante às suas demandas existenciais. Desta feita, o tema da utopia está colocado de
forma a apresentar um mundo novo ao homem, uma possibilidade daquilo que pode vir
a ser, mas que a realidade presente não oferece condições para tal. Depreende-se desse
entendimento, a afirmação de que o sujeito não se realiza no mundo, mas na forma da
identidade utópica de sujeito e objeto.
Na “Estética”, a formulação da ideia de utopia também compreende a noção
de modelo, mas, como já debatemos, de um modelo radicalmente diverso. Para o velho
Lukács, as autênticas obras de arte compreendem a unidade contraditória entre o
utópico e o antiutópico, traduzida pela ideia de que, embora a mimese artística seja, em
sua essência, antiutópica, ao projetar experiências autênticas do gênero humano em
formas singulares, como em personagens ou situações típicas, surge uma imagem da
realidade que apresenta um caráter utópico. Em outras palavras, podemos dizer que o
mundo próprio da obra de arte congrega um caráter antiutópico, pois exige o reflexo
justo do homem e do seu mundo, visto que é mimese; e demanda, ao mesmo tempo, um
caráter utópico, pois os objetos refigurados no mundo da obra manifestam a
universalização do singular.
O tema da utopia está ligado à ideia de que o mundo da autêntica obra de
arte figura trajetórias individuais sempre conectadas e orientadas à generidade. Desta
feita, sem prejuízo às suas singularidades, os conteúdos artísticos são elevados a sua
mais radical universalidade. É, precisamente, neste ponto que a utopia da arte está
colocada, pois o seu mundo permite essa configuração, que, na vida, está dispersa.
Depreende-se da experiência receptiva do fruidor, o contato com um mundo superior,
elevado, que lhe proporciona uma relação não estranhada com os objetos, aproximando,
assim, a relação sujeito-objeto. O fruidor, por conseguinte, deposita dentro de si algo
que está além, algo que ele busca no mundo da obra. Neste, o homem se reconhece, pois
vigora neste mundo uma diminuição do distanciamento entre sujeito e objeto,
configurando um lugar ideal. Este é o mundo elevado da obra de arte, a utopia. Vale
ressaltar que, na estética de juventude, há um direcionamento voltado à noção de que a
realidade utópica do objeto estético extrapola o plano da cotidianidade, ao passo que o
velho Lukács dispensa essa ultrapassagem, apontando para o entendimento de que uma
259
das bases da esfera estética está em exacerbar uma tendência que reside na própria vida
cotidiana.
Ao delinearmos de que forma o tema da utopia se manifesta em ambas as
estéticas, conseguimos adquirir mais informações para responder à pergunta: Pode-se
dizer que há uma homologia entre as estéticas? A nossa conclusão nos leva a afirmar
que não, pois, a nosso ver, o velho Lukács supera as suas concepções de juventude,
rompendo radicalmente com elas na “Estética”. Nesse sentido, o prefácio do autor à
“Teoria do Romance”, por exemplo, em cujo Lukács critica severamente a obra e o
referencial teórico nela presente, é bastante esclarecedor para mostrar ao leitor a sua
lisura intelectual em relação à questão da continuidade ou coerência do seu pensamento
estético. A postura lukacsiana de autocrítica em relação aos seus trabalhos de juventude
nos aponta para um autor muito mais comprometido com as ideias do que com o
chamado “carreirismo”. Sobre a estética de juventude, ele mesmo escreve em Nota à
obra que se recorda do benevolente interesse crítico que seus colegas Ernst Bloch, Emil
Lask e Max Weber despenderam ao referido estudo, o qual, segundo Lukács, se traduziu
em uma tentativa completamente falha. Vale ressaltar, aqui, quão importante seria um
estudo das autocríticas lukacsianas às suas obras, essencialmente, às de juventude, pois
esses textos nos revelam muito sobre as nuances do pensamento deste autor, revelando
chaves novas de leitura para a obra lukacsiana.
Após a análise das estéticas, concluímos estarmos diante de dois textos
cujas matrizes teóricas são definitivamente diversas. De certo, existe uma continuidade
temática, isto é, Lukács retoma no seu pensamento estético tardio temas já discutidos na
juventude, entretanto, é importante ressaltar que essa continuidade temática não se
traduz em um tratamento comum aos temais fundamentais ligados ao estudo da estética.
A definição de obra de arte, a sua criação, a sua recepção e a sua função no mundo dos
homens são elementos entendidos de forma radicalmente diferente nas obras analisadas.
Tentamos, ao longo de todo o capítulo 3, ressaltar essas divergências, o que nos levou,
portanto, a entender que as estéticas de Lukács contribuem essencialmente para a
revelação da sua compreensão da noção de sujeito e de mundo em dois momentos
diversos de sua trajetória intelectual.
260
Elencaremos, somente, alguns elementos que traduzem o contraste
apresentado nas estéticas. Na estética de juventude, o mundo é construído pelas
vivências subjetivas dos homens, de forma que a arte, que é criação do espírito, é
compreendida como um receptáculo de vivências e funciona para os sujeitos como um
consolo transcendental. Na “Estética”, o mundo é criação humana, logo, a arte é produto
material dos homens e reflete de modo justo e fiel o seu mundo. Sua missão é a
desfetichizadora e o efeito de sua recepção é a transformação do homem inteiro em
homem inteiramente. Diante desse conjunto de informações, depreendemos, ainda, que
a arte funciona como um instrumento pedagógico e como crítica da vida para o velho
Lukács, ao passo que o mundo não precisa ser mudado na sua estética de juventude,
pois o sujeito se realiza na realidade utópica da obra de arte, de forma que o
desenvolvimento de seu espírito independe da realidade objetiva e histórica. No extremo
oposto, está o sujeito apresentado na “Estética”, pois a sua realização se dá em um
tempo e espaço determinados do plano da vida cotidiana. Nesse sentido, temos o
confronto entre dois tipos de sujeito esboçados: aquele que é pensado a partir da ideia
de Aristocracia Espiritual e aquele entendido por meio da noção de Homem Universal.
Esboçadas essas questões, conseguimos responder à pergunta: O movimento
de distanciamento ou de aproximação entre arte e vida cotidiana apresentado nas
estéticas se relaciona, de alguma forma, à ideia de utopia? Se isso ocorre, quais são os
desdobramentos dessa questão? À medida que analisamos pontos fundamentais das
estéticas, percebemos que a visão de mundo e as matrizes teóricas de que Lukács
dispunha à redação desses textos implicavam substancialmente na relação entre vida e
obra de arte, de modo que a noção de distanciamento ou de aproximação entre tais
fatores é resultante da maneira que o autor enxergava o mundo, o sujeito e a obra de arte
em si.
Concluímos que, na estética de juventude, a relação entre arte e vida
cotidiana está marcada por um distanciamento, pois o sujeito fruidor, embora se realize
na realidade utópica da identidade sujeito-objeto configurada no mundo da obra de arte,
não alcança tal realização no mundo objetivo. Esse fracasso, marcado pela noção de
mal-entendido, ressalta o abismo transcendental que subjaz a relação sujeito-objeto no
plano caótico da vida cotidiana. Desta feita, a vivência artística funciona como um
261
consolo transcendental, pois o sujeito entra em contato com possibilidades mais
autênticas e potentes de vida no mundo da obra, mas está impossibilitado de realizá-las
na sua vida material, fator que ressalta a noção de solipsismo, pois o sujeito se volta à
sua subjetividade, impossibilitando um fluxo metabólico entre os planos da arte e da
vida cotidiana. Entendemos, portanto, que, na estética de juventude, há um
distanciamento entre os planos mencionados.
De modo diverso, compreendemos a relação entre arte e vida na “Estética”,
pois concluímos que há uma aproximação entre tais planos. Para justificar essa
afirmação, é necessário resgatar o que Lukács entende pelo Depois da experiência
receptiva das obras de arte. Para o autor, o sujeito fruidor se conecta com as
experiências passadas, presentes e com as perspectivas futuras do gênero humano ao
entrar em contato com o objeto estético, o que lhe proporciona a transformação do
homem inteiro em homem inteiramente, passando por um processo em que alcança a
autoconsciência de si do gênero humano. Desta feita, a vivência estética e também a
obra de arte podem ser entendidas como instrumentos de crítica da vida.
No mesmo sentido, podemos dizer que elas funcionam como um elemento
pedagógico, pois, ao absorver um alto teor de conteúdo humano, o sujeito estético pode
reorientar as suas práticas sociais no instante Depois da experiência receptiva. Se o
Depois possibilita ao sujeito fruidor uma transformação existencial orientada à
realização de possibilidades humanas autênticas e significativas, a fruição pode apontar
para um desenvolvimento humano em que o sujeito, sem se despir de suas
singularidades, toma para si as tarefas do gênero humano, pois a obra de arte permite
que ele as vivencie. Afirmamos que, neste momento, as esferas da arte e da vida
cotidiana se entrecruzam, pois, se o mundo das autênticas obras de arte exige o recurso
da tipicidade, ou seja, se as personagens e as situações refiguradas no objeto figuram
trajetórias individuais conectadas e orientadas à generidade, a vivência estética pode
assinalar ao fruidor um entendimento da eticidade que aponta para a harmonização dos
interesses genéricos e particulares do indivíduo, de modo que suas tomadas de decisão
no plano da vida cotidiana terão como referência a sua própria generidade, mas
orientadas, sobretudo, pela sua superação. Estamos, portanto, diante de um sujeito que
tem o potencial de orientar as suas práticas sociais para o bem comum. Identificamos,
262
aqui, a relação de aproximação entre arte e vida, pois o homem, enriquecido pela
experiência receptiva, pode trazer para o seu mundo todos os conteúdos que ele colocou
dentro de si na vivência estética, assegurando a possibilidade do fluxo metabólico entre
os planos da vida e da arte.
A partir de tais afirmações, a seguinte pergunta se interpôs: A noção de
utopia é a causa da aproximação ou do distanciamento entre arte e vida cotidiana, ou é,
somente, um dos fatores que contribui para essa relação? Acreditamos ter argumentado
suficientemente para validar a hipótese de que a utopia contribui para a distância entre
os planos da arte e da vida cotidiana, entretanto, não conseguimos, ainda, definir se ela é
o elemento definidor - a causa - dessa relação de aproximação ou de distanciamento.
Ficaremos, portanto, ancorados na ideia de que a utopia é um dos elementos mediadores
da relação entre o homem e a vida cotidiana.
A partir do conjunto de respostas que reunimos, podemos, então, responder
à pergunta: O processo de recepção das obras de arte, descrito na “Estética” (1963),
aponta para um sujeito estético munido de maior potencial revolucionário? Concluímos
que o entrecruzamento entre ética e estética e a noção de sujeito estético construídos por
Lukács aponta, certamente, para um homem que congrega em si um maior potencial
revolucionário. Se o resultado da experiência receptiva consiste na transformação do
homem inteiro em homem inteiramente, se o autor atribui à arte uma missão
desfetichizadora, e se existe um fluxo metabólico entre os planos da vida cotidiana e da
arte; estamos, seguramente, diante de uma concepção de sujeito cujo potencial
revolucionário é mais elevado. A partir dessa afirmação, de que forma o tema da utopia
está implicado nessa questão?
O tema da utopia se insere nessa discussão a partir do momento em que
Lukács afirma que toda a obra de arte comporta em si um caráter utópico, o qual reside,
justamente, na refiguração de um mundo próprio da obra cuja estrutura pressupõe
sempre a vinculação entre a singularidade e a universalidade, ou seja, entre a figuração
de personagens, situações, cenas e destinos típicos e a humanidade como gênero. Para
Lukács, essa conexão ininterrupta entre homem - singular - e humanidade - universal,
acontece desse modo e, somente, no mundo próprio da arte. A vida cotidiana e as
relações fetichizadas travadas no mundo capitalista não permitem que os homens
263
percebam sempre essa vinculação - singular, universal - ou que sejam a todo o momento
orientados por ela no decurso histórico. Aqui se interpõe a utopia, a possibilidade de
fruição de um mundo mais humano, mais elevado, isto é, superior. Um mundo que se
coloca como modelo daquilo que ainda não é, mas que pode vir a ser. Uma alternativa
ao existente.
Refletindo sobre as considerações apresentadas, surge a questão: Para o
velho Lukács, a revolução permanente é aquela que se dá no âmbito da cultura? Diante
do estudo que empreendemos e resgatando a biografia deste autor, não podemos ignorar
essa questão. Os escritos sobre arte e, principalmente, aqueles sobre literatura fizeram
parte de toda a trajetória intelectual lukacsiana. Não estiveram, somente, no seu
pensamento, mas povoaram, sobretudo, a sua residência em Budapeste, onde funcionou,
por muitos anos, o Arquivo Lukács, recentemente encerrado. A arte sempre se fez
presente na vida do autor. Quando jovem, foi um dos fundadores do grupo de teatro
Thália, juntamente a László Bánóczi e Sándor Hevesi, o qual perdurou por,
aproximadamente, quatro anos, entre 1904 e 1907. É claro que a sua relação com a arte
não pode, por si só, gerar a resposta à pergunta que nos fizemos, mas não é possível que
deixemos de lado este traço importante da biografia do autor.
A “Estética”, como uma de suas obras de síntese, revela de forma
substancial o modo que Lukács entendia o mundo e o homem, de forma que a arte,
indiscutivelmente, ocupa, para ele, um lugar muito importante na vida humana. O
objeto artístico e a vivência estética podem reordenar as percepções humanas e
reorientar a sociabilidade e as relações do homem com o mundo. Diante desses pontos,
acho complexo afirmar, rigorosamente, que o velho Lukács tinha em mente a noção de
que a revolução permanente é aquela que se dá na esfera da cultura. Infelizmente, não
acredito somar instrumentos suficientes para fazer tal declaração, mas tendo a acreditar
que o filósofo confirmaria essa afirmação. Certamente, uma pesquisa que se debruçasse
sobre as relações entre a “Estética” e a “Ontologia do ser social” poderia - e muito -
contribuir para esse debate, pois, talvez, no diálogo entre essas duas obras, esteja a
resposta categórica, que, nesta tese, não pudemos, infelizmente, oferecer. Para a
realização dessa empreitada, um ponto de partida proveitoso, certamente, poderia
264
resultar do seguinte questionamento: Por que Lukács interrompe a redação da “Estética”
e retoma o seu projeto de redação da Ontologia?
Seguramente, diversas perguntas ficaram perdidas ao longo das linhas desta
tese, pois é preciso tempo e maturação para conectar algumas pontas que ficaram soltas
ao longo do processo do doutorado. Não se pode negar, também, que os objetivos que
nos propomos à redação da tese direcionaram as nossas reflexões e as nossas leituras,
fazendo com que assuntos “paralelos” ou “secundários” não recebessem, sempre, a
devida atenção. Questões preciosas, muitas vezes, estão adormecidas nesses mesmos
assuntos. Outras tantas perguntas, infelizmente, não consegui responder, mas estão
todas elas compiladas nos meus cadernos, esperando para, quem sabe um dia, serem
respondidas. Acredito, ainda, que não fui capaz de formular vários questionamentos que
me escaparam durante a redação deste texto, mas o tempo burocrático não corresponde
ao tempo do pensamento intelectual; e a vida, felizmente, pode ampliar os prazos
rígidos que a academia determina. Esta tese, portanto, recebe aqui o seu ponto final, mas
se desdobrará, felizmente, nas reticências que traduzem tão bem o tempo próprio do
plano da vida.
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