remanescentes das comunidades dos quilombos

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A constituição brasileira de 1988 abriu caminho para o desenvolvimento depolíticas de reparação em relação à escravidão africana no Brasil. Dentre elas,destacam-se a possibilidade de titulação coletiva de terras a comunidades negrastradicionais reconhecidas como “remanescentes de quilombos” a o reconhecimentooficial de patrimônios imateriais relativos à herança de populações escravizadas. O“Jongo do Sudeste”, manifestação de canto, dança e percussão cuja origem é atribuídaaos africanos escravizados das antigas áreas cafeeiras do sudeste do Brasil foireconhecido como patrimônio cultural brasileiro em 2005. Este artigo abordahistoricamente a construção desses novos marcos legais e seu impacto na produção denovos atores políticos coletivos a partir da valorização da identidade negra e damemória de antepassados cativos. Para tanto, analisa especialmente o processo deidentificação como remanescente de quilombo de três comunidades negras do estado doRio de janeiro, com base em pesquisa desenvolvida durante nossa participação comoespecialistas na construção dos relatórios técnicos que subsidiaram os procedimentoslegais da titulação de suas terras pelo poder público

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  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 1

    Remanescentes das Comunidades dos Quilombos: memria do cativeiro, patrimnio cultural e direito reparao.

    Martha Abreu e Hebe Mattos

    Universidade Federal Fluminense

    A constituio brasileira de 1988 abriu caminho para o desenvolvimento de

    polticas de reparao em relao escravido africana no Brasil. Dentre elas,

    destacam-se a possibilidade de titulao coletiva de terras a comunidades negras

    tradicionais reconhecidas como remanescentes de quilombos a o reconhecimento

    oficial de patrimnios imateriais relativos herana de populaes escravizadas. O

    Jongo do Sudeste, manifestao de canto, dana e percusso cuja origem atribuda

    aos africanos escravizados das antigas reas cafeeiras do sudeste do Brasil foi

    reconhecido como patrimnio cultural brasileiro em 2005. Este artigo aborda

    historicamente a construo desses novos marcos legais e seu impacto na produo de

    novos atores polticos coletivos a partir da valorizao da identidade negra e da

    memria de antepassados cativos. Para tanto, analisa especialmente o processo de

    identificao como remanescente de quilombo de trs comunidades negras do estado do

    Rio de janeiro, com base em pesquisa desenvolvida durante nossa participao como

    especialistas na construo dos relatrios tcnicos que subsidiaram os procedimentos

    legais da titulao de suas terras pelo poder pblico.

    O Artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias da

    Constituio Brasileira de 1988 reconheceu direitos territoriais aos remanescentes das

    comunidades dos quilombos, garantindo-lhes a titulao definitiva pelo Estado

    Brasileiro1. A partir da anlise de casos concretos relativos ao estado do Rio de Janeiro,

    o presente trabalho discute alguns desdobramentos polticos e culturais da aprovao

    desse Artigo, diretamente articulados com a implementao do Decreto do governo

    federal n. 3.551, de 4 de agosto de 2000, que permitiu considerar, como patrimnio da

    nao, manifestaes culturais imateriais. Ou seja, saberes, celebraes, lugares e

    formas de expresso, musicais e festivas, dos diferentes grupos formadores da sociedade

    brasileira, especialmente os afro-descendentes, passam a receber o ttulo de Patrimnio

    brasileiro (Abreu 2007)2.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 2

    Para entender a redao do Artigo 68 e sua incluso nas disposies transitrias

    da constituio preciso levar em considerao, primeiramente, o fortalecimento dos

    movimentos negros no pas, ao longo da dcada de 1980, e a reviso por eles proposta

    da memria pblica da escravido e da abolio. imagem da princesinha branca,

    libertando por decreto escravos submissos e bem tratados, que durante dcadas se

    difundiu nos livros didticos brasileiros, passou-se a opor a imagem de um sistema cruel

    e violento, ao qual o escravo negro resistia, especialmente pela fuga e formao de

    quilombos. Numa leitura restrita do dispositivo constitucional, apenas os remanescentes

    dos acampamentos de escravos fugidos estariam amparados pela nova lei.

    No entanto, a maioria das muitas comunidades negras rurais espalhadas pelo

    pas, em conflito pelo reconhecimento da posse tradicional de terras coletivas, ento

    majoritariamente identificadas como terras de preto (Almeida 1989 e 2002), nem

    sempre se associava idia histrica clssica do quilombo. Muitos dos grupos

    referenciados memria da escravido e posse coletiva da terra, em casos estudados

    por antroplogos ou historiadores nos anos 1970 e 80, tinham seu mito de origem em

    doaes senhoriais realizadas no contexto da abolio (Soares 1981; Slenes 1996). Do

    ponto de vista desses grupos, alm da referncia tnica e da posse coletiva da terra, os

    conflitos fundirios vivenciados no tempo presente habilitava-os a reivindicar

    enquadrar-se no novo dispositivo legal do Artigo 68.

    Juristas, historiadores, antroplogos e, em especial, a Associao Brasileira de

    Antropologia (ABA), tiveram importante papel nessa discusso (Price 1999)3. Tendo

    em vista o crescimento do movimento quilombola a partir de final dos anos 1990,

    passaram a predominar, no campo antropolgico e jurdico, as interpretaes que

    consideravam a ressemantizao da palavra quilombo para efeitos da aplicao da

    proviso constitucional, valorizando o contexto de resistncia cultural que permitiu a

    viabilizao histrica de tais comunidades (ODwyer 1995 e 2002; Almeida 1996;

    Gomes 1996).

    A promulgao do Decreto sobre o patrimnio imaterial, em 2000, reforou este

    ponto de vista e abriu caminhos para os quilombolas conferirem valor de patrimnio

    cultural sua prpria histria, memria e expresso cultural. Desde a Constituio de

    1988, os artigos 215 e 216 j apontavam importantes possibilidades de mudana na

    concepo de patrimnio cultural. imagem de um patrimnio cultural brasileiro

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 3

    identificado apenas a construes suntuosas de pedra e cal, passou-se a agregar a idia

    de um patrimnio imaterial, identificado com expresses culturais populares. A

    Constituio de 1988 ampliou a noo de direitos e estendeu s prticas culturais essa

    noo. Garantiu a promoo e a proteo do patrimnio cultural brasileiro,

    compreendido de uma forma mais ampla em termos culturais e sociais: bens de

    natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de

    referencia identidade, nao, memria dos diferentes grupos formadores da

    sociedade brasileira. Dentre eles, claro, encontravam-se os afrodescendentes.

    A perspectiva aberta com os artigos constitucionais tornou-se uma larga avenida

    depois da aprovao do Decreto 3.551 de 2000 e uma das bandeiras do Ministrio da

    Cultura, desde a posse do Presidente Luis Incio Lula da Silva, em 2002. Com alguns

    exemplos pode-se ter uma rpida avaliao dessa repercusso. Em 2004, j se

    encontravam registrados, como patrimnios imateriais brasileiros, alm da pintura

    corporal e arte grfica do grupo indgena Wajpi, o ofcio das Paneleiras de Goiabeiras,

    o Crio de Nossa Senhora de Nazar, o ofcio das Baianas do Acaraj, a Viola de cocho

    e o Samba de Roda do Recncavo Baiano. Este ltimo recebeu, em 2005, o ttulo de

    Obra-prima da Humanidade. No mesmo ano, o Jongo do Sudeste, expresso cultural

    protagonizada por populaes afrodescendentes das antigas regies escravistas de caf

    do sudeste do Brasil - que receberam as ltimas levas de africanos escravizados no pas,

    na primeira metade do sculo XIX - tornou-se Patrimnio Cultural Brasileiro. O

    Decreto 3.551 permitiu que todo um conjunto de bens culturais de perfil popular e de

    reconhecida presena afrodescendente, como o samba de roda, o acaraj, o tambor de

    crioula, o samba e a capoeira, recebesse reconhecimento at mesmo internacional.

    Com abrangncia nacional, o processo de emergncia das novas comunidades

    quilombolas, ainda que gestado majoritariamente em contextos de conflitos territoriais,

    se apresenta hoje estreitamente associado ao movimento paralelo de patrimonializao

    da cultura imaterial identificada com populaes afro-brasileiras. Segundo o decreto

    4887, de 20/11/2003, que regulamenta o artigo 68, em termos legais, a caracterizao

    dos remanescentes das comunidades dos quilombos ser atestada mediante

    autodefinio da prpria comunidade, entendo-as como grupos tnicos-raciais,

    segundo critrios de auto-atribuio, com trajetria histrica prpria, dotados de

    relaes territoriais especficas, com presuno de ancestralidade negra relacionada com

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    a resistncia opresso histrica sofrida. A posse de patrimnios culturais relativos

    experincia da escravido e memria da frica ou do trfico, exemplos contundente

    da resistncia opresso histrica sofrida, fortaleceu as reivindicaes e transformou-

    se em moeda de legitimao do processo de demanda pela posse de territrios ocupados

    coletivamente por descendentes das ltimas geraes de africanos trazidos como

    escravos ao Brasil. Todos eles, de uma forma geral, remanescentes de um campesinato

    negro formado no contexto da desagregao do escravismo no pas, ao longo da

    segunda metade do sculo XIX.

    Em 2003, cento e setenta e oito comunidades estavam formalmente referidas

    como remanescentes de quilombo no Sistema de Informaes das Comunidades afro-

    brasileiras (SICAB) na pgina da Fundao Cultural Palmares, setenta delas ento j

    tituladas4. Ainda pela Fundao Palmares, em 2009, 1342 comunidades quilombolas,

    agora classificadas como parte integrante do patrimnio cultural brasileiro, encontram-

    se certificadas. Levantamento do Centro de Geografia e Cartografia Aplicada (Ciga) da

    Universidade de Braslia (UNB), sob a direo do gegrafo Rafael Sanzio, registrou 848

    ocorrncias em 2000 e 2.228 territrios quilombolas em 2005 (Sanzio 2001: 139-154, e

    2005)5.

    As novas formas de se conceber a condio de patrimnio cultural nacional tem

    permitido que diferentes grupos sociais, utilizando as novas leis e o apoio de

    especialistas, revejam as imagens e alegorias de seu passado. Passem a decidir sobre o

    que querem guardar e definir como prprio e identitrio, atravs de festas, musicas e

    danas, tradio oral, formas de fazer ou locais de memria. O Decreto abriu a

    possibilidade para o surgimento de novos canais de expresso cultural e luta poltica

    para grupos da sociedade civil. Antes silenciados, esses grupos so detentores de

    prticas culturais imateriais, avaliadas como tradicionais, o que tem sido fundamental

    para o processo de reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombo.

    Nesse sentido o caso de So Jos da Serra exemplar. A divulgao e a

    visibilidade do Jongo, expresso cultural que articula msica, verso e dana, tornou-se

    uma importante estratgia na luta pela terra e pelo reconhecimento da identidade negra

    de um grupo de descendentes de escravos do municpio de Valena, no Estado do Rio

    de Janeiro, hoje oficialmente conhecido como o Quilombo So Jos da Serra, em

    Valena. Como afirmou o Sr. Manoel Seabra, um dos mais velhos membros da

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 5

    comunidade, em uma entrevista que nos foi concedida em 2004, a comunidade sabia o

    valor do Jongo tambor em suas palavras6. A dana e o batuque sempre expressaram

    um patrimnio do grupo. Entretanto, entendia, agora, a partir de contatos com diferentes

    intelectuais e especialistas, que o Jongo ganhava novos e importantes significados, para

    alm da comunidade. Em suas prprias palavras,

    A gente no sabia o valor que o tambor tem, mas o tambor tem muito, era um

    divertimento, a gente no sabia a responsabilidade, a gente que vem

    acompanhando, que sabe a responsabilidade dele, mas levava como divertimento

    e pronto. Mas isso tem valor, n? Pro mundo inteiro, n? Depois que a gente

    pegou (comeou) a lidar com vocs, que a gente viu que grande valor! ... Vamos

    conservar que muito importante 7.

    Segundo Robert Slenes, a emergncia do jongo hoje em vrias comunidades do

    sudeste, quilombolas ou no, uma das maiores evidncias da fora da presena de

    escravos centro africanos no sculo XIX (Slenes 2007). Palavras que podemos ouvir

    nas rodas de jongo do sculo XXI, faziam parte das vivncia de jongueiros escravos do

    sculo XIX e de seus antepassados centro africanos. Cantados com palavras africanas

    ou em portugus cifrado, seus significados no eram entendidos pelos no iniciados,

    facilitando a construo identitria entre os escravos. As proximidades lingsticas e

    religiosas dos povos Bantus certamente criaram elementos de coeso e de solidariedade

    nas experincias do cativeiro e na construo do jongo do sudeste ao longo do sculo

    XX.

    A presena das fogueiras, e consequentemente do fogo, remetiam a elementos

    simblicos importantes da religiosidade africana, como o culto aos ancestrais. Em toda

    a regio atlntica e at mesmo interiorana da frica Central, encontravam-se putas e

    tambores como o caxambu/angoma e seu companheiro menor; a palavra ngoma

    aplicava-se ao maior deles, de face nica e afinado ao fogo. A dana de casais ao centro

    da roda, marca registrada do jongo no Sudeste nos dias atuais, foi descrita por viajantes

    no sculo XIX, no interior de Luanda e Sudoeste de Angola. O canto e os versos, a

    interao entre um solista e o coro do tipo chamado-resposta, nos momentos de

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 6

    trabalho ou diverso, por sua vez, representavam um trao tpico das canes centro-

    africanas da regio do antigo reino do Congo. Ainda segundo Robert Slenes, diversos

    temas de pontos que conhecemos hoje eram cantados na regio de Congo e Angola, no

    incio do sculo XX, como desafios entre as lideranas locais, conhecidos como

    cumbas (Slenes 2007).

    A articulao entre a nova agenda patrimonial de valorizao de expresses

    culturais afro-brasileiras - elevadas a cones da resistncia opresso histrica sofrida

    - e as aes de reivindicao pela titulao de remanescentes de quilombo parece cada

    vez mais se expandir no velho sudeste escravista. Alm da comunidade de So Jos da

    Serra, outros grupos afro-descendentes do sudeste, em Guaratinguet (So Paulo), no

    Bracu e em Pinheiral (Rio de Janeiro), tm associado a memria da escravido com a

    valorizao do Jongo, patrimnio cultural herdado e reconstrudo pelos descendentes de

    escravos8. Apropriando-se desta associao, no novo contexto legal, as comunidades

    portadoras do Jongo reafirmam politicamente sua trajetria histrica e sua autenticidade

    tnica e cultural, ganhando visibilidade e novas perspectivas de sobrevivncia coletiva9.

    Os territrios do jongo no sudeste, situados em antigas terras litorneas ligadas ao

    trfico ilegal de africanos ou nas antigas fazendas de caf do vale Paraba fluminense e

    paulista acabam por inbricar-se com a emergncia de novos territrios quilombolas - ou

    vice-versa. O caso do Quilombo So Jos da Serra j foi considerado aqui e em diversos

    artigos (Mattos 2003, 2006, 2008). No presente texto iremos colocar em evidncia

    novos casos paradigmticos do mesmo movimento10

    .

    Antes, porm, preciso lembrar que a incorporao de uma agenda poltica

    patrimonial nas reivindicaes pelo direito terra e identidade quilombola no

    envolveu unicamente expresses culturais de msica e dana associadas escravido e

    afrodescendncia (Mattos e Abreu 2007)11

    . Envolveu tambm a percepo da prpria

    histria, memria e tradio oral do grupo como patrimnios, que precisam ser

    valorizados, lembrados e, desta forma, reparados. Os novos casos que apresentaremos

    demonstram que os grupos quilombolas comeam tambm a reivindicar reparaes

    materiais e simblicas, em nome de um dever de memria da sociedade brasileira em

    relao escravido e ilegalidade do trfico negreiro. Os remanescentes de quilombo

    passam a inserir-se, para alm da luta por terras tradicionais, em um esforo moral para

    que determinados acontecimentos no sejam esquecidos. Para que sejam registrados,

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 7

    como patrimnios do grupo, na memria pblica do pas, atravs da construo de

    locais de memria ou da incorporao de tais memrias e tradies orais na historia

    contada e divulgada nas escolas e universidades. Essas aes incorporadas histrica

    opresso dos termos da lei - assumem um sentido de direito reparao em funo do

    esquecimento e guetificao a que foram submetidas suas histrias ao longo do sculo

    XX.

    Os casos do Bracu

    A histria, a memria e a trajetria do Quilombo do Bracu, uma comunidade

    prxima da cidade de Angra dos Reis, demonstram muito bem esse movimento. Seus

    moradores, descendentes de antigos escravos, tornam hoje pblica uma rica tradio

    oral a partir da qual constroem sua identidade como remanescentes de quilombo. As

    tradies orais e memrias dos descendentes de escravos de Santa Rita do Bracu

    dialogam frequentemente com registros escritos e eruditos sobre o passado e fornecem

    subsdios para que se construa uma outra histria dos ltimos anos da escravido e do

    trfico atlntico, at ento esquecida, como seus protagonistas.

    Um determinado repertrio de narrativas transmitidas oralmente de pai para

    filho, como patrimnios valiosos, animou e justifica hoje a permanncia do grupo do

    Bracu na regio, em meio a diversas tentativas de expulso, desde o final do sculo

    XIX. No centro das narrativas, a preservao da memria da doao de lotes de terra

    para um grupo de ex-escravos, antepassados de muitos dos atuais moradores, no

    testamento do Comendador Jos de Souza Breves, em 1878, grande produtor escravista

    de caf e proprietrio de inmeras fazendas. Os lotes de terra doados em uma de suas

    fazendas, a beira do mar, no litoral sul do atual estado do Rio, estabeleceram o territrio

    atual da comunidade e sua rede de parentesco e solidariedade. a memria dessa

    herana em terras que acabou transformando os herdeiros em guardies e testemunhos

    da histria dos usos da antiga fazenda para o recebimento de africanos recm chegados,

    prtica ento j ilegal pelas leis do pas.

    A tradio oral, transmitida atravs de muitos causos - como definem os

    moradores do Quilombo do Bracu - constitui uma das mais importantes bases da

    identidade do grupo e de manuteno de seu territrio. Contar causos de antepassados

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 8

    escravos para os filhos, sobrinhos e netos foi, sem dvida, uma estratgia dos mais

    velhos de uma comunidade no letrada para que o passado permanecesse no presente,

    para que no se esquecesse, especialmente, o direito propriedade da terra e herana

    recebida.

    Atravs de conversas e histrias, repetidas na hora do trabalho com a farinha,

    falava-se sobre o Breves e sobre a vida de seus escravos. A tradio oral, ao lado dos

    pontos de jongo, faz referncia a histrias ambientadas na regio, do lado de c e de l

    da Serra da Bocaina, no vale do Paraba cafeeiro. O cenrio nelas apresentado so as

    antigas fazendas de caf ou as construes dos engenhos de acar e cachaa. Os

    protagonistas so escravos, em geral com nomes presentes entre os herdeiros do

    testamento do Comendador Jos de Souza Breves. O repertrio, tambm presente em

    outros quilombos do velho sudeste escravista, amplo. Refere-se a histrias hericas e

    mgicas de escravos, casos da violncia da escravido, histrias do bom Breves e do

    terrvel Pedro Ramos, senhor de terras vizinho tambm ligado ao trfico. Essa tradio

    oral, associada a uma determinada forma e entonao na narrao dos casos,

    compartilhada por diferentes famlias e dialoga com a prpria histria da regio,

    revelando acontecimentos at ento muito pouco conhecidas.

    O dilogo entre a tradio oral e as fontes escritas sobre a fazenda e a regio, ou

    a interligao entre a memria coletiva do grupo e a histria dos historiadores, to

    intenso que impressiona o pesquisador. Encontramos uma srie de registros escritos que

    envolvem os Souza Breves no trfico atlntico de escravos e que confirmam as histrias

    orais. Como nos contou o Sr. Moraes, um dos mais antigos moradores do quilombo do

    Bracu...

    Mas aqui era o ponto de embarque e desembarque do Comendador Souza

    Breves quando saia e chegava (...) Aqui um ponto que existia tambm, alm de

    ser de desembarque, era de engorde tambm, sabe? Tinha um lugar ai, que eu

    no posso dizer, onde os escravos quando chegava , pelo tempo que eles viviam

    no mar, eles no comiam bem, ento perdiam o valor, ficavam magros,

    emagreciam, ficavam abatidos. Ento ficavam sem valor. Ento eles escondiam

    por aqui.Passavam ali uns vinte dias.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 9

    A histria que eu sei (...) que (...), proibiram a venda dos escravos para c. Mas,

    no sei como que fizeram, que ainda roubaram l oportunidade e arrumaram

    uns escravos para trazer pra c, para vender novamente. Raptaram escravo l,

    encheram o navio e trouxeram pra c. Mas veio at aqui, numa ilha com um

    nome... Como ? Ilha Cunhanbebe. Uma ilha que tem pra trs (...)O barco

    entrava l (...) para entrar e trazia o pessoal para c. E ali quando observaram

    que vinha uma escolta atrs deles, pra prender eles, (...) diz que o navio tem um

    buraco, tinha um buraco que batia (...) a gua, aquele pino saia. Saia e abria um

    buraco e a gua invadia. Ento foi assim, alguns caiam na gua, outros jogavam

    lancha ngua, ento salvou bastante e morreu bastante e o barco afundou na

    ponta da ilha. Nos tempos atrs, ainda se via falar nesse barco, que as pessoas

    pescava muito nele, que dava muito peixe e o pessoal procurava sempre aquele

    ponto ali a modo de pescar

    (APCMMN/LABHOI/UFF, 01.0064, Manoel Moraes, morador do quilombo de

    Santa Rita do Bracu, fevereiro de 2007)12

    .

    Atravs desse depoimento do Sr. Manoel Moraes, neto de escravos de Jos

    Breves, reencontramos um caso que j tnhamos visitado em pesquisa anterior, mas que

    agora ganha novas dimenses: a perseguio do governo imperial, atravs da Polcia da

    Corte, a um desembarque clandestino, em 1852 (Abreu 1995). Esse desembarque, ao

    que tudo indica, foi um dos ltimos ocorridos nas guas da Baia de Angra, muito

    prximo da foz do Rio Bracu.

    A narrativa do Sr. Moraes , sem duvida, uma verso oral, trabalhada pelo

    tempo, do episdio que ficou conhecido como o caso do Bracu, ocorrido em 1852,

    quando o governo imperial no poupou esforos para mostrar que estava realmente

    decidido a eliminar o trfico de africanos para o Brasil. To decidido que, para capturar

    africanos ilegalmente escravizados, chegaria at mesmo dentro das senzalas de

    poderosos fazendeiros de caf na serra e no Vale do Paraba, na regio de Bananal,

    ento provncia de So Paulo, acima da fazenda Santa Rita do Bracu.

    Na verso do Sr. Moraes, muitos escravos morreram, pois o barco, para no

    ser encontrado, foi afundado. Temos evidncias que o navio negreiro em questo o

    Brigue Camargo - realmente afundou 13

    , pois seu capito deu ordens de atear fogo.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 10

    Pelos jornais de poca, entretanto, os africanos teriam desembarcado e distribudos entre

    senhores do vales do caf, serra acima. As mortes relatadas pelo Sr. Moraes podem ter

    sido de outros desembarques que se associaram a este na memria, ou podem ter sido

    omitidas nos debates que poca saram na imprensa brasileira.

    Em dezembro de 1852, 540 africanos procedentes do Quelimane e da Ilha de

    Moambique desembarcaram, segundo vrios jornais da cidade do Rio de Janeiro, do

    Brigue Camargo, nas terras da fazenda Santa Rita do Bracu14

    . A fazenda Santa Rita do

    Bracu possua todas as caractersticas de uma rea destinada recepo de africanos

    traficados na ilegalidade. Se vrios desembarques ocorreram tambm na Ilha da

    Marambaia - hoje tambm local de um quilombo - no incio da dcada de 1850, o

    desembarque do Bracu, por ter sido descoberto, divulgado e perseguido, foi exemplar.

    Evidenciou a rede de funcionamento do trfico de africanos no Atlntico aps 1831

    (Ferreira 1995 e 2001).

    Manoel Moraes, um dos mais velhos jongueiros da comunidade, h mais de 80

    anos vive nas antigas terras de Santa Rita do Bracu. Seus avs maternos e paternos

    foram escravos do Comendador Jos de Souza Breves. Preto Forro, como era

    conhecido seu av paterno, e Antonio Joaquim da Silva, pai de sua me, viveram os

    ltimos anos da escravido na fazenda. Ambos receberam suas alforrias ainda na dcada

    de 1870 e foram citados como legatrios da fazenda no testamento do Comendador,

    escrito em 1877 e aberto no ano de 1879. Muito provavelmente foram seus avs e pais

    que perpetuaram as memrias dos causos ao longo dos anos, transmitidas de gerao

    a gerao, como um patrimnio familiar e comunitrio.

    O av do Sr. Morais, Antonio Joaquim da Silva, escravo de Jos Breves,

    encarregado do engenho de cana de acar, viveu ou ouviu falar dos inmeros

    desembarques clandestinos de africanos que ocorreram no Bracu a partir da dcada de

    1840. O engenho no qual trabalhava Antonio Joaquim da Silva produzia essencialmente

    aguardente, mercadoria chave no comrcio de escravos na costa atlntica da frica.

    No restam dvidas de que as fazendas dos irmos Breves no litoral eram

    estruturadas para recepo de africanos recm-chegados da travessia Atlntica. Santa

    Rita do Bracu, adquirida por compra em 1829, alm de possuir estrutura para o

    desembarque de africanos, organizou-se produtivamente para o empreendimento

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 11

    atlntico. Deveria ser, antes do fim definitivo do trfico, a fazenda que garantia a seu

    proprietrio a maior fonte de renda (Loureno 2010).

    Alm do trfico, a lembrana da antiga produo de cachaa tambm evidente

    no Bracu. Atualmente ainda podem ser vistas as runas do velho engenho. Poucos

    vestgios verdade de um patrimnio tambm material que resistiu ao tempo e s

    mesmo algum que conhece o local pode mostrar as pedras dispersas e escondidas em

    um amplo espao com vegetao densa. Visitamos as runas, acompanhados do Sr.

    Romo, em 2007, morador da regio e descendente de africanos, segundo seu prprio

    testemunho. A me do Sr. Romo, chamada Maria Romo Custdio, contava que seus

    antepassados tinham vindo da frica. Como escravos, ao lado de muitos outros, teriam

    construdo o engenho.

    No novo contexto, o carter de crime contra a humanidade do trfico negreiro, e

    o papel de guardies da memria de tal prtica pelo grupo, assume cada vez maior

    relevncia na leitura pblica da tradio oral dos quilombolas do Bracu. Ao conferirem

    novos significados ao jongo, os herdeiros do testamento transformam-se em guardies

    da memria do trfico atlntico e da experincia do cativeiro. O patrimnio, construdo

    atravs de causos, memrias, jongos e runas, transforma-se em tributo s origens

    africanas de seus antepassados e confere direito, sentido e forma nova identidade

    quilombola do grupo.

    Pinheiral e Pedra do Sal: Locais de Memria

    No muito distante do Quilombo do Bracu, tambm em terras que pertenceram

    ao Comendador Jos de Souza Breves, mas j no alto da serra, nas margens do Rio

    Paraba do Sul, situa-se a pequena cidade de Pinheiral. Ali residem os que hoje

    reivindicam o ttulo de remanescentes de quilombo a partir de seu passado e do

    patrimnio cultural do jongo legado por seus antepassados. A maior parte descende de

    escravos de fazendas prximas e migrou para as proximidades do antigo casaro dos

    Breves, tambm ramal ferrovirio e escola agrcola nas primeiras dcadas do sculo

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 12

    XX, em busca de melhores oportunidades de vida ou expulsos de seus pequenos lotes de

    terra, em levas sucessivas, aps a abolio em 1888.

    A rea do quilombo pretendida o que restou da suntuosa sede da fazenda do

    Pinheiro, local central e de residncia do poderoso comendador Jos de Souza Breves, e

    seu entorno, com o antigo jardim, os terreiros de caf e algumas antigas senzalas

    reformadas para residncias. Apesar de o casaro e sua restaurao ter sido

    reivindicado por outros grupos da regio nada foi feito nesta direo. Nem mesmo seu

    tombamento como Patrimnio Artstico e Histrico do Brasil ou do estado do Rio de

    Janeiro teve andamento.

    Os descendentes de escravos de Pinheiral e proponentes do quilombo, na maior

    parte jongueiros, h alguns anos utilizam o espao dos jardins e dos terreiros para

    danarem o jongo e contarem suas histrias em atividades culturais e educacionais da

    cidade. Atravs da posse definitiva das runas do casaro, pretendem criar um lugar de

    memria para o exerccio do direito de contar o passado de seu jeito e de celebrar a festa

    negra e a herana cultural de seus antepassados na luta contra a discriminao e o

    racismo.

    O quilombo de Pinheiral emergiu ento em um contexto de revitalizao de um

    patrimnio histrico e cultural negro inscrito em uma construo senhorial,

    representante do poder dos proprietrios de terras e escravos do Vale do Paraba. Seus

    integrantes defendem a manuteno e o revigoramento de uma memria e histria afro-

    brasileira na rea, marcada pelo jongo e pela escravido. Tem como objetivo dar

    visibilidade a um patrimnio cultural imaterial herdado de seus antepassados escravos e

    africanos, a partir de um outro patrimnio, arquitetnico e artstico, smbolo dos

    senhores dos velhos vales do caf.

    Os quilombolas de Pinheiral reivindicam ser legtimos herdeiros desse

    patrimnio cultural material, o casaro - construdo a partir do trabalho e sacrifcio de

    seus antepassados. Em diferentes perodos a histria dos afrodescendentes na regio foi

    ameaada e esquecida, em funo da sua precariedade material de vida. exatamente

    esse passado, transformado em patrimnio imaterial da comunidade e bandeira de luta e

    resistncia pela manuteno e reproduo de uma determinada histria e memria, que

    pretendem ver garantidos no antigo territrio do caf, no Vale do Paraba fluminense e

    paulista.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 13

    sabido que todo o ato de preservao de patrimnios culturais traz consigo a

    idia de que preciso salvar algo que est em perigo de desaparecimento ou se quer

    tirar do silncio e do esquecimento. As runas do casaro e o jongo somam-se em

    Pinheiral para testemunhar uma histria que no est escrita e que ainda precisa ser

    divulgada como instrumento de reparao aos descendentes de escravos e sua herana

    cultural. O jongo de Pinheiral, ao lado do Bracu, faz parte do Ponto de Cultura do

    Jongo do Sudeste.

    Ainda outro quilombo pode ser citado para demonstrar a relao entre a nova

    agenda patrimonial e as reivindicaes quilombolas. O quilombo da Pedra do Sal

    tambm emergiu de um contexto de discusso sobre os significados e os usos do

    patrimnio histrico e cultural negro, mas inscrito na zona porturia da cidade do Rio de

    Janeiro e reconhecido oficialmente a partir do tombamento da Pedra do sal, em 1987,

    como patrimnio material do Estado do Rio de Janeiro. Seus membros defendem a

    manuteno e o revigoramento de uma memria afro-brasileira na rea, marcada pelo

    samba, pelo candombl e pelo trabalho negro no porto, e pretendem visibilizar um

    patrimnio cultural imaterial herdado de seus antepassados escravos e africanos.

    Com o fim da escravido, no final do sculo XIX, ficaria ainda visvel o

    territrio negro no entorno da Pedra do Sal: ali nasceram os primeiros ranchos, se

    estabeleceram as casas que abrigavam, material e espiritualmente, os novos recm

    chegados, ex-escravos em busca de uma vida melhor na cidade do Rio de Janeiro aps a

    abolio, assim como importantes organizaes de trabalhadores negros no porto.

    Ameaados hoje de expulso da rea, o grupo de remanescentes do quilombo

    da pedra do sal reivindica ser o legtimo herdeiro deste patrimnio cultural, material e

    imaterial. Apesar de a Pedra do Sal j ser tombada como patrimnio material do Estado

    do Rio de Janeiro, esperam transformar seu espao fsico e simblico em espao de

    celebrao e encontro dos afrodescendentes da regio: um lugar de memria do samba,

    do candombl e do trabalho negro no porto. Todo dia 2 de dezembro, o grupo do

    quilombo da Pedra do Sal celebra, no Largo Joo da Baiana, essa histria e memria

    atravs da lavagem da pedra (rito simblico de purificao), do samba e de depoimentos

    de antigos porturios. Celebram sua continuidade histrica na regio.

    A rea referncia da Associao da Comunidade Remanescente de Quilombo da

    Pedra do Sal ampla e rene importantes marcos simblicos e territoriais identificados

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 14

    com a memria e a histria negras na regio porturia da cidade do Rio de Janeiro, entre

    o Largo de So Francisco da Prainha e o Morro da Sade: o territrio do mercado de

    escravos africanos, o Valongo; o cemitrio dos pretos novos; o movimento do porto e de

    seus antigos armazns, e a Pedra do Sal. Mas a Pedra do Sal, o Largo Joo da Baiana

    e seu entorno, que, por seu amplo reconhecimento e smbolo mximo de todo

    patrimnio afrodescendente na regio, representam mais objetivamente a rea pleiteada

    pela Associao da Comunidade Remanescente de Quilombo da Pedra do Sal. no

    entorno da Pedra do Sal que reside a maioria dos membros desta Associao e onde se

    registram os conflitos territoriais.

    Como outros quilombos do litoral do Rio de Janeiro, Bracu, Marambaia,

    Campinho da Independncia e Rasa, o quilombo da Pedra do Sal tambm est

    relacionado ao local do trfico de escravos africanos para o Brasil. Pelo testemunho do

    desenhista Rugendas, no incio do sculo XIX, a rea da Pedra do Sal e da Prainha,

    serviu como primeira morada aos pretos novos que chegavam da frica (Rugendas

    1970: prancha 83) . Ali eles morriam ou se recuperavam para inventarem nova vida na

    nova terra. Em antigos locais de trfico de escravos, emergem comunidades

    quilombolas.

    Polticas de Reparao e Cidadania.

    Negro no cativeiro/ Passou tanto trabalho/ Ganhou sua liberdade/ No dia 13 de

    maio. Essa a letra de um jongo cantado ainda hoje em alguns dos novos quilombos do

    Sudeste. Neles no difcil encontrar entre os mais velhos aqueles que se dizem netos

    de um Treze de Maio e que so capazes de nos contar histrias do tempo do

    cativeiro, como os avs lhes contavam. Tal encontro ilustra de forma expressiva como

    pouco significativo, em uma perspectiva histrica, o tempo que separa o Brasil do

    sculo XXI de uma poca na qual os brasileiros se dividiam entre cidados livres e

    escravos (livres das mais diferentes origens e sobre os quais raramente se mencionava a

    cor; escravos todos os descendentes de africanos, muitas vezes com a cor ou a origem

    colada no prprio nome Jos Preto, Antnio Pardo, Maria crioula e assim por diante).

    Apesar disso, apenas uma minoria dos brasileiros afrodescendentes ainda se encontrava

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 15

    cativa naquele treze de maio de 1888, menos de 10 % da populao classificada como

    preta e parda no censo de 1872.

    Desde a poca da independncia, apesar da continuidade da escravido, baseada

    no direito de propriedade, um pensamento universalista, anti-racista e anti-trfico,

    desenvolveu-se no Brasil Toda uma gerao intelectual de homens de cor foi formada

    a partir desse liberalismo anti-racista e antitrfico, que s se tornaria abertamente

    abolicionista no final do sculo XIX. Ao aceitarem uma justificativa no racializada

    para a escravido metiam-se, entretanto, num beco sem sada, pois a linguagem racial

    permanecia, na prtica, como elemento de suspeio e hierarquizao. Todo

    afrodescendente livre, mesmo se proprietrio de escravos, encontrava-se

    dramaticamente dependente de um reconhecimento pblico da sua condio de livre,

    para no ser confundido com um escravo ou ex-escravo. A efetivao de uma tica do

    silncio em relao s cores dos cidados, pelo menos em situaes formais de

    igualdade, foi a resultante prtica desses embates, como a homenagem que o vcio

    presta virtude.

    O silncio sobre a cor como smbolo de cidadania foi uma experincia

    construda nas lutas anti-racistas do sculo XIX, que combatiam as hierarquias de cor

    entre a populao livre at ento vigentes na sociedade colonial. A legitimao no

    racial da continuidade da escravido ento afirmada no Brasil teve conseqncias.

    Embaralhou a linha de cor na sociedade brasileira, porm sem impedir a adoo

    pblica de projetos racistas de branqueamento, numa poca em que tais discursos

    tinham estatuto de conhecimento cientfico no pensamento ocidental. Ao longo do

    sculo XX, nem a construo da noo de democracia racial, nem a crtica a ela

    desenvolvida pelos movimentos negros, conseguiram ainda reverter os sentidos

    hierarquizados e desiguais das designaes de cor desde longo tempo presentes na

    sociedade brasileira. No modificaram tambm o recurso ao silncio como a forma mais

    usual de conviver com elas em situaes formais de igualdade.

    Como no sculo XIX, dizer-se negro ainda basicamente identificar-se com a

    memria da escravizao, inscritas em prticas culturais e na pele de milhes de

    brasileiros. Esta a base que empresta consistncia histrica discusso atual sobre

    polticas de ao afirmativa no Brasil a partir da auto-identificao como negro. No

    Brasil, nomear a cor ainda hierarquiza, pois implica quebrar o pacto de silncio sobre o

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 16

    passado escravo, celebrado entre os cidados brasileiros livres em plena vigncia da

    escravido. Passados mais de cem anos da abolio, quebrar com a tica do silncio,

    atravs de quilombos e jongos, apresenta-se paradoxalmente como caminho possvel

    para reverter tal processo de hierarquizao cristalizado no tempo e instaurar um

    universalismo almejado, mas no verdadeiramente atingido, desde o sculo retrasado.

    A identificao coletiva sempre processo e construo. S pode ser entendida

    levando em conta os contextos histricos e polticos. Tanto o silncio sobre a cor como

    tica social, quanto a reivindicao da cor, hoje, como bandeira de luta, so frutos

    diferentes da presena difusa do racismo na sociedade brasileira em suas complexas

    relaes com a memria do cativeiro.

    Rompendo com o princpio do silncio, emergiram primeiramente as terras de

    preto; mais tarde as memrias da escravido e do trfico, os jongos e os espaos de

    celebrao do passado africano. Os novos patrimnios culturais que emergem hoje,

    como os jongos, sambas de roda, maracatus e folias de reis, mesmo que nem sempre

    transformados em quilombos, tambm quebram o silncio e revelam um novo orgulho

    pelo passado, pautado por novas reivindicaes por direitos e reparaes.

    Colonos, posseiros e trabalhadores em luta pela terra ou por direitos ao

    patrimnio herdado, ao identificarem-se primeiro como pretos e depois como

    quilombolas, tornaram-se sujeitos polticos coletivos. As metamorfoses sociais

    possveis a tais atores estiveram, entretanto, firmemente ancoradas na associao entre

    identidade negra e memria do cativeiro, seja como reminiscncia familiar, estigma ou

    expresso festiva e cultural.

    1 O texto integral do Art. 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias estabelece que Aos

    remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a

    propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos.

    2 A Constituio Federal de 1988, nos artigos 215 e 216, garantiu a promoo e proteo do patrimnio

    cultural brasileiro aos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referencia identidade, nao, memria dos diferentes grupos formadores

    da sociedade brasileira.

    3 Ver tambm, Cultural Survival Quartely - Volume 25 n. 4, Cambridge, 2002., dossi Marrons in the

    Amricas, especialmente o artigo de Jean Franois Verlan.

    4 Cf. Sistema de Informaes das Comunidades afro-brasileiras (SICAB) na pgina da Fundao Cultural

    Palmares do Ministrio da Cultura (www.palmares.gov.br , acessada em 03/09/2005).

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 17

    5 Ver tambm Segundo Cadastro Municipal dos territrios Quilombolas do Brasil,

    http://www.unb.br/acs/unbagencia/ag0505-18.htm

    6 O jongo no sudeste tambm conhecido como tambu e caxambu.

    7 Depoimento presente em Memrias do Cativeiro (DVD) (Mattos e Abreu 2005). Acervo Petrobrs

    Cultura Memria e Msica Negra, Arquivo Audiovisual do Laboratrio de Histria Oral e Imagem do

    Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense

    (APCMMN/LABHOI/UFF). Ver tambm www.historia.uff.br/jongos/acervo.

    8 Outros grupos quilombolas, se no praticam hoje o jongo, destacam a expresso como memria

    familiar, como o caso do Quilombo da Rasa, em Bzios/RJ, ou reconstroem a prtica a partir do

    contato com outros grupos quilombolas e jongueiros, como o caso do Quilombo do Campinho em

    Parati..A partir de nossos contatos com grupos jongueiros e/ou quilombolas do sudeste percebemos

    que a relao parece cada vez mais se expandir.

    9 A dinamizao do Jongo tem aberto caminhos de sobrevivncia aos jongueiros atravs da obteno de

    financiamentos de agncias governamentais, embora nem todos tenham assumido a luta pelo

    reconhecimento quilombola. Recentemente, foi fundado o Ponto de Cultura do Jongo, um

    instrumento institucional de implementao dos projetos de salvaguarda do IPHAN aps a elevao

    do jongo a patrimnio de cultural brasileiro (Salvaguarda do patrimnio imaterial: Decreto 5.753 de

    12 de abril de 2006). O Ponto de Cultura do Jongo/Caxambu, criado em 2008, uma ao de 13

    comunidades jongueiras do Estado do Rio de Janeiro, So Paulo, Minas Gerais e Esprito Santo nem todos quilombolas ou identificados com o movimento e do governo federal, atravs de uma grande articulao entre o Ministrio da Cultura, o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular

    (IPHAN) e a Universidade Federal Fluminense (UFF). Possui como objetivos, a articulao entre as

    comunidades e os saberes constitudos, a capacitao dos jongueiros, a pesquisa e a divulgao de

    seu patrimnio. O conhecimento, a divulgao e o intercmbio das histrias do Jongo/Caxambu entre

    as diversas comunidades jongueiras do sudeste tm fortalecido os laos identitrios dos grupos e

    demonstrado o quanto compartilham trajetrias e memrias. Paralelamente contribuem para sua maior

    visibilidade, especialmente nas escolas, de acordo com a Lei 10639/03, que estabelece a

    obrigatoriedade do Ensino de Histria e Cultura Afro-brasileira e Africanas. No se pode esquecer,

    contudo, que mesmo antes da mobilizao das agncias governamentais, e em perodo anterior

    prpria promulgao do Decreto 3551 de 2000, as comunidades e praticantes do jongo j tinham

    criado canais de comunicao, visibilidade e fortalecimento coletivos, atravs, por exemplo, da Rede

    de Memria do Jongo e dos prprios Encontros de Jongueiros.

    10 Para o relatrio enviado ao INCRA sobre a comunidade quilombola do Bracui contamos com a parceria

    das antroplogas Mirian Alves de Sousa e Patricia de Araujo Brandao Couto. Em Pinheiral, a

    dobradinha com Patrcia Couto tem sido valiosa e, certamente, trar desdobramentos acadmicos

    promissores.

    11 Entre as comunidades jongueiras e quilombolas no apenas o jongo pode ser identificado com o legado

    da escravido e abolio. Folias de Reis e Calangos tambm fazem parte de um repertrio cultural que

    articula identidade negra e patrimnio cultural. Trabalhamos essa questo no DVD Jongos, Calangos e Folias, Msica Negra, Memria e Poesia (Mattos e Abreu 2007).

    12 Acervo Petrobrs Cultura Memria e Msica Negra, Arquivo Audiovisual do Laboratrio de Histria

    Oral e Imagem do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense

    (APCMMN/LABHOI/UFF). Ver tambm www.historia.uff.br/jongos/acervo.

    13 Jornal do Brasil, 14 de maro de 2009. Entrevista com o pesquisador e arquelogo aqutico Gilson

    Rambelli.

    14 Entre os 540 africanos, apenas 60 eram mulheres. Arquivo Nacional. Srie Justia. IJ6 468.

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