religião e tecnologia; religion and technology

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Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003 41 Religião e Tecnologia RELIGION AND TECHNOLOGY Resumo Em certos círculos acadêmicos, desenvolveu-se a idéia da obsolescência da religião em face do avanço extraordinário e inexorável da tecnologia. Por essa razão, ainda se atribui uma superioridade à tecnologia em comparação à religião. No entan- to, ambas são fatores igualmente determinantes no processo da evolução cultural do ser humano. Tanto uma quanto a outra atuam na natureza humana, insuflando os de- sejos que constroem nossa história e nosso cotidiano. Estão ligadas uma à outra por laços mais estreitos do que costumamos imaginar. Embora sejam construções autô- nomas, guardam entre si relações que vão desde o estabelecimento das primeiras con- dições fundamentais de vida da espécie à criação dos mitos que permeiam nosso ima- ginário ainda nos dias de hoje. Além disso, ambas atuam nas pessoas, inspirando o de- sejo de transcendência, conjugação, descoberta sobre o mistério, prazer e sedução. Palavras-chave TECNOLOGIA RELIGIÃO TRANSCENDÊNCIA CONSCIÊNCIA SER HUMANO DEUSES. Abstract The obsolescence of religion in the face of technology progress is an idea de- veloped around some academic circles. For that reason, to technology is attributed a great superiority over religion. However, both technology and religion have been de- cisive agents on the human being’s process of cultural evolution. They both operate in the human nature exciting those desires that daily build our history and life. They are attached to each other through ties that are closer than we usually imagine. Al- though they are independent cultural constructions, they keep between themselves some relationships that extend from the establishment of the first basic life conditi- ons to the creation of myths which permeate our imaginary world. Moreover, they both act on the human being awakening the desires of transcendence, union, the dis- covery of mystery, pleasure, and seduction. Keywords TECHNOLOGY RELIGION TRANSCENDENCE CONSCIENCE HUMAN BEING GODS. NABOR NUNES FILHO Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP, Brasil) nanfi[email protected]

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Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003 41

Religião e TecnologiaRELIGION AND TECHNOLOGY

Resumo Em certos círculos acadêmicos, desenvolveu-se a idéia da obsolescência da

religião em face do avanço extraordinário e inexorável da tecnologia. Por essa razão,

ainda se atribui uma superioridade à tecnologia em comparação à religião. No entan-

to, ambas são fatores igualmente determinantes no processo da evolução cultural do

ser humano. Tanto uma quanto a outra atuam na natureza humana, insuflando os de-

sejos que constroem nossa história e nosso cotidiano. Estão ligadas uma à outra por

laços mais estreitos do que costumamos imaginar. Embora sejam construções autô-

nomas, guardam entre si relações que vão desde o estabelecimento das primeiras con-

dições fundamentais de vida da espécie à criação dos mitos que permeiam nosso ima-

ginário ainda nos dias de hoje. Além disso, ambas atuam nas pessoas, inspirando o de-

sejo de transcendência, conjugação, descoberta sobre o mistério, prazer e sedução.

Palavras-chave TECNOLOGIA – RELIGIÃO – TRANSCENDÊNCIA – CONSCIÊNCIA –

SER HUMANO – DEUSES.

Abstract The obsolescence of religion in the face of technology progress is an idea de-

veloped around some academic circles. For that reason, to technology is attributed a

great superiority over religion. However, both technology and religion have been de-

cisive agents on the human being’s process of cultural evolution. They both operate

in the human nature exciting those desires that daily build our history and life. They

are attached to each other through ties that are closer than we usually imagine. Al-

though they are independent cultural constructions, they keep between themselves

some relationships that extend from the establishment of the first basic life conditi-

ons to the creation of myths which permeate our imaginary world. Moreover, they

both act on the human being awakening the desires of transcendence, union, the dis-

covery of mystery, pleasure, and seduction.

Keywords TECHNOLOGY – RELIGION – TRANSCENDENCE – CONSCIENCE –

HUMAN BEING – GODS.

NABOR NUNES FILHOUniversidade Metodista dePiracicaba (UNIMEP, Brasil)

[email protected]

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omo nasceram e se desenvolveram a religião e a tecno-

logia? Haverá alguma precedência de uma em relação

à outra? São antagônicas entre si?

A irrupção do racionalismo na modernidade contri-

buiu para que herdássemos uma visão bipartida a res-

peito das coisas que nos cercam. A oposição cartesiana

entre a razão, res cogitans, e o corpo, res extensa, trouxe

à reflexão sobre a realidade uma exacerbação do dua-

lismo inaugurado por Platão e corroborado pela teologia cristã, tornando

difícil uma análise do mundo sem dividi-lo em pares de opostos exclu-

dentes: bem e mal, certo e errado, vida e morte etc. Diante disso, desen-

volve-se uma visão da realidade segundo a qual tudo gira em torno de ei-

xos contrários e inconciliáveis. Tal visão é transportada do universo do

pensamento ao contexto das ações e atitudes do cotidiano, e até das de-

cisões políticas em nível internacional. Ainda hoje, em algumas rodas de

cientistas e pensadores, a religião e a ciência são consideradas forças es-

sencialmente antagônicas. Não deixando por menos, o positivismo de

Augusto Comte, no século XIX, valendo-se de sua hierarquização dos

três estados evolutivos do conhecimento, preconizou a derrocada do es-

tado religioso, substituído pelo estado positivo. Inaugura-se, dessa forma,

a concepção de superioridade da tecnologia (atributo do último estado)

sobre a religião, situação ainda firmemente sustentada por alguns cien-

tistas e duramente atacada por religiosos que apregoam o inverso.

O propósito do presente texto é mostrar que, conquanto estejam

em lados diversos e empreguem diferentes métodos, religião e tecnologia

são partes integrantes do desenvolvimento humano como elementos es-

senciais, indispensáveis e complementares da nossa aventura histórica.

O PASSAPORTE PARA A TRANSCENDÊNCIAUma das marcas dos seres humanos, talvez a razão intrínseca de sua

peculiaridade, é o que se pode chamar de transcendência. Trata-se da ca-

pacidade de ir além dos limites estabelecidos e impostos. A sobrevivência

da espécie humana deve-se à sua capacidade de transcender as fronteiras

da realidade perceptível. Essa transcendência manifesta-se em vários as-

pectos da aventura humana. A primeira estrofe do poema de Augusto

dos Anjos, intitulado “Eu”, pode nos ajudar a refletir sobre esses aspec-

tos.

Sou uma sombra! Venho de outras eras,

Do cosmopolitismo das moneras...

Polipo de recônditas reentrâncias,

Larva do caos telúrico, procedo

Da escuridão do cósmico segredo,

Da substância de todas as substâncias.1

1 ANJOS, 1982, p. 12.

CCCC

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Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003 43

Sem fazer uso da palavra, o poeta vale-se de

uma afirmação eloqüente dessa transcendência

humana sob, pelo menos, três aspectos. O pri-

meiro é o espacial. Nós não ocupamos os espaços

senão em razão de espaços transcendentes a eles.

Em outras palavras, os motivos de estarmos em

determinado lugar são resultado da nossa neces-

sidade de ocupar um espaço situado sempre além

daquele ocupado. Não desejamos estar apenas

em um determinado lugar, mas em outros, ao

mesmo tempo. Nossos espaços reais são, via de

regra, menores do que os queremos. Com a ex-

pressão Do cosmopolitismo das moneras, o poeta

sugere que são muitos nossos lugares de origem

e dos nossos desejos de estar. Na realidade, nós

nascemos e renascemos em muitos lugares, ou

seja, em cada lugar em que, por exemplo, estive-

mos com alguém, quer na presença, quer na es-

pera, quer na lembrança. Dessa forma constata-se

a grandeza da vida humana, no fato de penetrar-

mos e permanecermos em muitos e diferentes lu-

gares, e de a eles passarmos a pertencer. Nossa

vida não se deixa caber dentro de quaisquer limi-

tes geográficos. Nosso coração está atado, como

por uma espécie de fio elástico, a muitas cidades,

ruas, praças, bosques e jardins pelos quais transi-

taram nossos desejos, e em que foram vividos

momentos de grande significação. Nosso mundo

é do tamanho desse elástico, que se alonga inde-

finidamente sem jamais partir-se.

O segundo aspecto dessa transcendência é

o cronológico. Nosso tempo não é o agora. O

instante que estamos passando, ou que está pas-

sando por nós, não nos contém. Ele depende do

que vivemos em instantes anteriores e do que

projetamos para os vindouros, próximos ou dis-

tantes. Podemos até dizer que o instante que pas-

sa é uma síntese de todos os instantes, passados e

futuros. Na verdade, o tempo presente é uma ilu-

são. A luz do sol que ilumina o ambiente onde

trabalho é de dez minutos atrás. Hoje se desco-

bre a existência de corpos celestes com um atraso

de milhões de anos. Isso também se dá nas di-

mensões menores. Há um ínfimo lapso de tempo

até que eu consiga enxergar aquela foto na minha

parede. Nosso hoje é um tempo passado, e não

apenas no aspecto físico, mas no seu contexto

pessoal. Escrevo agora este texto porque decidi

fazê-lo antes desse momento, que passa a ser a

cumulação de um passado próximo. Portanto, o

meu instante não é o agora, mas o de há pouco

até agora. Por sua vez, tudo o que fazemos desse

presente é transformá-lo numa plataforma para

outros tempos que virão. O que nos move em

nosso hoje é sempre um hoje que ainda não acon-

teceu.

Há também o aspecto histórico da

transcendência. Não somos produtos desse mo-

mento histórico que passa. Venho de outras eras,

ou seja, o que sou é um resultado do que foi se

formando ao longo dos muitos séculos da histó-

ria humana, e até da pré-história. Sou a cumula-

ção de processos há muitos séculos iniciados. O

que vivo hoje foi criado antes de mim. Isso não

só do ponto de vista de uma evolução natural,

como ocorre com os demais seres vivos, mas me-

diante o complexo processo a que chamamos de

história. Ao lado das injunções de caráter bioló-

gico que a espécie humana sofreu igualmente

com os outros organismos, ela mesma produziu,

por seus próprios atributos, um conjunto de

transformações de natureza mais complexa que, a

cada era e em cada diferente lugar, foram aos pou-

cos plasmando o que somos hoje. Isso também,

não apenas do ponto de vista do passado. A his-

tória não é somente o registro do que foi, mas é

a projeção do que será, mediante a análise do que

foi e do que está sendo. Ela também se precipita

no futuro, embora nem sempre assim seja enten-

dida. O valor da história reside na sua capacidade

de nos fornecer dados para nossos posiciona-

mentos hoje e nossa preparação para o que virá

amanhã.

A religião e a tecnologia são instrumentos

dessa transcendência. Elas surgem no contexto

da humanidade para atender aos anseios dos seres

humanos de verem ultrapassadas as condições

impostas pela natureza. Enquanto a máquina nos

torna mais rápidos e fortes do que fisicamente

somos, transcendendo, dessa forma, os limites

que a natureza nos instituiu, a fé religiosa nos

transporta para universos mágicos onde as lógi-

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cas e as leis naturais são transpostas. Ambas pro-

porcionam ao ser humano, cada uma ao seu pró-

prio modo e dentro de suas peculiaridades, o

mergulho nas realidades incomensuráveis do uni-

verso. Assim, por meio de sofisticados telescó-

pios, a tecnologia nos permite hoje penetrar os

segredos das galáxias, em busca da revelação dos

mistérios do cosmo. Enquanto isso, a religião,

através de mitos e rituais, procura trazer esses

mistérios para dentro de nós, a ponto de fazê-los

parecer estar sempre ao nosso alcance. A obser-

vação dos céus nos permite entrar em contato di-

reto com o passado até de milhões de anos, ao

mesmo tempo em que faz precisas previsões de

futuros fenômenos estelares, enquanto pela reli-

gião redescobrimos as influências de nossos an-

cestrais e projetamos o tempo da vida para depois

da vida.

A DIMENSÃO HUMANAA espécie humana surgiu no cenário do pla-

neta, estimam os estudiosos, há cerca de quatro

milhões de anos. Durante todo esse tempo desen-

volveu-se o processo complexo a que se chamou

de hominização. As mais atualizadas teorias dão

conta de que essa hominização se deu a partir da

era terciária, com a crescente diminuição das áreas

florestais, onde os primatas dividiam e competiam

entre si os cada vez menores recursos das árvores.

Aos poucos, as savanas foram engolindo as flores-

tas, obrigando alguns desses primatas a se aventu-

rar nas planícies emergentes. Ao descerem das ár-

vores, entretanto, esses primeiros hominídeos pas-

saram a enfrentar problemas vários, entre os quais,

a escassez de alimentos e a ameaça de poderosos

predadores. É dessa época que datam os primeiros

vestígios do Homo faber, há aproximadamente um

milhão de anos. Há cerca de oitocentos mil anos,

os hominídeos dominaram o fogo. Nascem, as-

sim, os primeiros indícios de uma tecnologia rudi-

mentar, representada pela confecção e manipula-

ção de utensílios e instrumentos de caça. A cres-

cente utilização das mãos proporcionou um me-

nor esforço nas mandíbulas, de modo a redesenhar

as configurações do crânio, abrindo espaço para a

expansão da massa cerebral. Destarte, durante

todo esse processo de hominização, foi emergindo

uma função complexa denominada consciência.

Nos últimos cem mil anos, o ser humano domi-

naria os metais e, nos últimos dez mil, esboçam-se

as primeiras manifestações da escrita organizada e,

conseqüentemente, da cultura. A formação da

consciência atinge um nível próximo do que te-

mos hoje.

Há, no entanto, uma dimensão da consciên-

cia que talvez não possa ser detectada pelos mé-

todos científicos. O desenvolvimento da cultura

deve-se a dois elementos fundamentais de que a

consciência dotou os hominídeos. O primeiro re-

fere-se à descoberta de sua fragilidade, face aos

novos desafios do mundo ao redor, e o segundo,

à recusa a aceitar essa fragilidade. Albert Camus

afirma que “o homem é a única criatura que se re-

cusa a ser o que ela é”.2 Imaginemos uma cena,

que pode ter durado algumas dezenas, e até cen-

tenas, de milhares de anos, em que um dos nos-

sos ancestrais precisa remover uma pedra que

bloqueia a entrada de uma caverna. Ele usa seu

corpo e toda sua força muscular em vão. Desco-

bre, então, que é frágil. Porém, não desiste e põe-

se a observar o problema de outra maneira. Tem-

pos depois, percebe que há nas imediações uma

pedra menor e um tronco de árvore caído. De re-

pente (esse de repente pode ter durado alguns sé-

culos), surge-lhe uma idéia: coloca a pedra menor

mais próxima da maior, enfia uma das extremida-

des do tronco ao pé desta e, usando como base a

menor, faz um movimento para baixo, pressio-

nando a outra extremidade do tronco. Aos pou-

cos, a pedra maior vai se movendo, até ser total-

mente removida da entrada da caverna. Assim

surgiu, de acordo com essa imagem, a alavanca

que, nesse contexto, representa a tecnologia.

Ninguém sabe se foi exatamente dessa maneira

que aconteceu, porém, poderia ter sido. Também

sabemos que Ícaro não foi um personagem his-

toricamente verídico, mas sua estória é uma exce-

lente metáfora do surgimento dos artefatos voa-

dores.

2 ALVES, 1983, p. 14.

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Vemos aí, em ação, dois momentos funda-

mentais da consciência. O primeiro é a constata-

ção da fragilidade: o indivíduo humano não pode

mover a pedra, nem alçar vôo, usando seus pró-

prios recursos físicos. O segundo é a recusa: ele

não aceita ser frágil, nem ser condenado ao apri-

sionamento sobre a Terra, e cria os mecanismos

para superar seus limites.

Mas o processo da consciência não se limita

ao contexto do universo biofísico. Ela abrange o

universo existencial por meio de uma constatação

mais preocupante, ligada à contingência extrema

da morte. O ser humano sabe que vai morrer.

Ocorre que ele se recusa também a se submeter

a mais essa contingência. Precisa resolver mais

esse problema e cria as diversas soluções vincula-

das à perspectiva da imortalidade. O poeta Fer-

nando Pessoa se expressa de uma maneira elo-

qüente quando afirma: “Todos nós sabemos que

morremos; todos nós sentimos que não morre-

remos. Não é bem um desejo, nem uma esperan-

ça, que nos traz essa visão no escuro de que a

morte é um mal-entendido: é um raciocínio feito

com as entranhas, que repudia”.3 Nasce, assim, a

religião, que é um conjunto de mediações cultu-

rais destinadas a ajudar o gênero humano a lidar

com a morte e a encontrar uma expressão para

sua recusa a morrer. Todos os povos e civilizações

que se desenvolveram, na história oficial ou fora

dela, organizaram sua vida social e política, sua

economia, sua ética de acordo com alguma pers-

pectiva de imortalidade.

Diante disso, podemos afirmar que a reli-

gião e a tecnologia possuem uma origem comum,

ou seja, o desenvolvimento da consciência huma-

na. É significativo o fato de os arqueólogos des-

cobrirem que os mais antigos indícios de utensí-

lios e instrumentos de caça encontrados são do

mesmo período dos vestígios de sepulturas. A

construção de sepultura denuncia a existência de

alguma maneira pela qual uma comunidade lida

com a morte. Desde então, tanto a religião como

a tecnologia têm contribuído de forma eqüitativa

no desenvolvimento cultural da espécie humana

até os nossos dias. Não é possível privilegiar uma

em detrimento da outra sem correr o risco de co-

meter sérios equívocos conceituais. E nem se

pode dizer que elas surgiram dentro de um con-

texto de franca oposição, como até pretendem al-

guns, porém, numa situação de complexa intera-

ção.

O ASPECTO MÍSTICO DA TECNOLOGIANão há aqui nenhuma intenção de trans-

formar a tecnologia em categoria religiosa. No

entanto, queremos mostrar alguns componentes

místicos que a cercam. Ordinariamente, se tem

pensado que a experiência mística é privilégio de

alguns escolhidos e acontece tão somente através

da linguagem religiosa. De acordo com Victor

Hellen, Henry Notaker e Jostein Gaarder, “a ex-

periência mística pode ser caracterizada, resumi-

damente, como uma sensação direta de ser um só

com Deus ou com o espírito do universo. (...) O

místico experimenta, pelo menos por instantes, a

sensação de ser indivisível de um eu maior – não

importando que ele dê a isso o nome de Deus, es-

pírito universal, o eu, o vazio, o universo ou qual-

quer outra coisa”.4

Segundo essa visão, a experiência mística

não está necessariamente ligada a alguma divin-

dade formalmente estabelecida, mas configura-se

numa relação de intimidade com algo ou alguém

com quem a pessoa se sente uma. Assim, desco-

brir a beleza de um pôr-do-sol e sentindo-se par-

te desse fenômeno, e ele parte de nosso mundo,

é um momento de êxtase místico. Uma certa len-

da conta que um monge saiu para dar uma volta

fora dos limites do mosteiro e, havendo se assen-

tado num banco de jardim, pôs-se a contemplar

atentamente a cena de um passarinho cantando

num galho de árvore próximo. Passado algum

tempo, ele retornou ao mosteiro, mas percebeu

que o porteiro era desconhecido e não o reconhe-

ceu. Apresentou-se declinando seu nome, mas

este não constava no livro oficial da portaria da

instituição. Após muito se procurar, devido à sua

natural insistência, finalmente seu nome veio a

3 PESSOA, 1986, p. 179. 4 HELLERS; NOTAKER; GAARDER, 2000, p. 33-34.

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ser descoberto num livro muito antigo e empo-

eirado. Havia trezentos anos que ele saíra para

dar um simples passeio. Essa estória nos faz pen-

sar na singular experiência dos místicos.

Mas e a tecnologia? Ela é capaz de facultar

esse tipo de experiência? Numa entrevista recen-

te, o ex-piloto de Fórmula Um, Émerson Fitti-

paldi, afirmava algo dessa possibilidade ao dizer

que, às vezes, sentia-se como se ele e o seu auto-

móvel fossem uma só pessoa. É bem verdade que

a máquina em si mesma não é nenhum deus. No

entanto, ela possui esse atributo de comunhão

com o ser humano. Os seres humanos criaram a

máquina como Deus criou os seres humanos,

ambos com a finalidade de manter uma comu-

nhão com sua respectiva criação.

Além disso, a máquina nos ajuda a nos

aproximarmos dos deuses. Uma das razões disso

é que a máquina está muito ligada aos mitos. Jo-

seph Campbell afirma:

os automóveis adentraram a mitologia.

Adentraram os sonhos. E as aeronaves es-

tão a serviço da imaginação. O vôo da ae-

ronave, por exemplo, atua na imaginação

como libertação da terra. É a mesma coisa

que os pássaros simbolizam, de certo mo-

do. O pássaro é um símbolo da libertação

em relação ao aprisionamento à terra, as-

sim como a serpente simboliza o aprisio-

namento à terra. A aeronave desempenha

esse papel hoje.5

Talvez não seja por acaso que os autódro-

mos fiquem lotados e que os mezaninos dos ae-

roportos sejam os seus lugares mais freqüenta-

dos, pois, em ambos os espaços, as pessoas bus-

cam ao menos testemunhar uma experiência

mística, ou algo próximo a ela. A máquina ofere-

ce ao homem essa chance de comunhão com algo

além de si mesmo, pois atua como uma espécie

de extensão do nosso corpo. Talvez também não

seja por acaso que o proprietário de um automó-

vel, de tão ligado ao seu veículo, perturbe-se ao

perceber um leve arranhão em sua pintura. Ora,

esse leve risco não interfere em nada no funcio-

namento da máquina, porém, se o dono dela sur-

preender o seu autor, será capaz de ir com ele às

vias de fato. Por outro lado, é impossível não sen-

tir a emoção que a velocidade cria em nosso sis-

tema nervoso ao pilotar um veículo possante e

dos mais velozes. Uma das causas prováveis de

acidentes automobilísticos pode ser a entrega to-

tal da pessoa a essa emoção, uma espécie de êx-

tase ao volante. A relação homem/máquina é ca-

paz até de produzir sentimentos, como, por

exemplo, o ciúme, e até a saudade. Não seria essa

situação uma espécie de ensaio a uma experiência

mística?

Além da dimensão detectada pelos nossos

sentidos e os instrumentos tecnológicos mais so-

fisticados, existe uma espécie de mundo diferen-

te, movido por leis absurdas que contrariam as

regras impostas pela experiência quotidiana. Re-

fere-se isso ao mundo da magia. É nesse universo

mágico que existem lugares e acontecem fatos

fantásticos, como milagres, paraísos, infernos,

encarnações, nascimentos virginais etc., e onde

habitam seres maravilhosos, como mitos, deuses,

demônios, fadas, bruxas etc. Esse mundo dos so-

nhos e mistérios existe. Sua existência, porém,

possui natureza diferente da dos elementos de-

tectáveis pelos sentidos e pelo método científico.

É uma existência extrafísica, que se manifesta na

dimensão do imaginário, coletivo ou individual, e

tem origem na nossa capacidade de sonhar. Se-

gundo Gaston Bachelard,

antes da cultura o mundo sonhou muito.

Os mitos saíam da terra, abriam a Terra

para que, com o olho dos seus lagos, ela

contemplasse o céu. Um destino de altu-

ras subia dos abismos. Os mitos encon-

travam assim, imediatamente, vozes de

homem, a voz do homem que sonha o

mundo dos seus sonhos. O homem ex-

primia a terra, o céu, as águas. O homem

era a palavra desse macroântropos que é o

corpo monstruoso da terra. Nos devaneios

cósmicos primitivos, o mundo é corpo

humano, olhar humano, sopro humano,

voz humana.6

5 CAMPBELL, 1992, p. 19. 6 BACHELARD, 1996, p. 180.

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Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003 47

A tecnologia também está ligada a esse uni-

verso mágico. Primeiramente, porque constrói os

meios para o adentrarmos. O cinema, por meio

dos efeitos tecnológicos especiais, pode abrir o

Mar Vermelho de forma visível e incontestável

para todos os olhos, afundar várias vezes o Tita-

nic e fazer o Superman voar a incríveis velocida-

des. Tudo isso é fruto da tecnologia aliada à ima-

ginação humana. Através do computador pode-

se hoje navegar pelo imenso mundo da virtuali-

dade, o chamado ciberespaço. Aliás, falando so-

bre o interior de um computador, Joseph Cam-

pbell assim se expressa: “É um milagre o que

acontece naquela tela? Você já examinou por den-

tro uma dessas coisas? Não dá para acreditar. É

toda uma hierarquia de anjos... todos sobre as

placas. E aqueles pequenos tubos – aquilo são mi-

lagres”.7

Em segundo lugar, a máquina abre as pers-

pectivas dos milagres que os seres humanos mo-

dernos esperam. Esses milagres estão, em geral,

vinculados ao fenômeno da velocidade. Um jato

supersônico, um carro de corrida, uma nave es-

pacial são bons exemplos disso. Eles permitem à

pessoa humana a proeza de quase manipular o

tempo e o espaço, transformando-os em elemen-

tos dóceis aos seus comandos. Provavelmente

não cheguemos jamais a ponto de esse controle

ser total, uma vez que, para isso acontecer, tería-

mos de atingir a velocidade da luz. Ocorre que

todos sabemos que chegaremos a velocidades

cada vez maiores que a do som. Isso porque a tec-

nologia não pode prescindir da capacidade huma-

na de sonhar, que é, em suma, a mesma causa e

efeito dos milagres.

Não está sendo aqui afirmado que a tecno-

logia faz milagres, mas apenas que ela abre as pos-

sibilidades para experimentar a sua influência, ao

menos no desejo das pessoas, o que é, sem dúvi-

da, algo grandioso. Não é um milagre voar à ve-

locidade do som, ou falar com alguém que está

do outro lado do mundo através de um aparelho

celular. O milagre reside no desejo de que isso

pudesse vir acontecer.

Milagre pode ser entendido como uma rup-

tura momentânea das leis físicas e biológicas,

provocada por forças extranaturais e mediante a

vontade soberana de um ser sobrenatural. Assim,

são milagres o andar por sobre as águas, a

ressurreição de um morto, a multiplicação de

pães etc. No vôo de um supersônico não está

presente uma força sobrenatural, nem a vontade

soberana de um deus. Além do mais, não se pode

dizer que exista aí uma ruptura dos processos da

natureza, porém, uma utilização diferenciada e

complexificada das próprias leis naturais. Todavia,

a máquina mexe com a área sensível da natureza

humana, suscitando emoções e expectativas bem

próximas da dimensão do milagre. Está claro que

tecnologia não produz os milagres. Entretanto,

ela é capaz de fazer emergir, de dentro da subje-

tividade humana, o desejo, que é a principal fonte

dos milagres. Também a religião não os opera,

mas atua na vida humana de maneira idêntica.

Ambas influem na nossa vida, provocando dese-

jos de que a realidade seja ao menos diferente.

CONTATO COM O SAGRADOCampbell faz alusão a uma anedota envol-

vendo um ex-presidente norte-americano. “Eise-

nhower entrou numa sala repleta de computado-

res e propôs às máquinas a seguinte questão: exis-

te um Deus? Todas começam a funcionar, luzes

se acendem, carretéis giram e após algum tempo

uma diz: Agora existe”.8 Talvez seja essa uma ma-

neira bem-humorada de falar sobre tal proximi-

dade com o sagrado que a máquina nos propor-

ciona, ou seja, a intimidade da tecnologia com as

divindades.

Os seres humanos são criadores de deuses,

que são criadores de seres humanos, que são cria-

dores de deuses, formando, assim, um fantástico

ciclo vicioso que não se fecha e nem possui um

começo definido. Não se pode dizer quem criou

quem primeiro. Assim, os seres humanos têm

necessidade de serem criados para criar, e os deu-

ses, necessidade de criar para serem criados e

vice-versa. Essa é a fórmula dialética que encon-

7 Ibid., p. 21. 8 CAMPBELL, 1992, p. 20.

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tramos para expressar a relação entre o humano e

o divino. Nessa relação, porém, existem frontei-

ras bem claras, limites estabelecidos: o ser huma-

no não pode ser deus e o deus não pode ser hu-

mano. Somente o cristianismo é que quebrou

esse segundo princípio, por meio da teologia da

encarnação do Verbo de Deus. Embora essa teo-

logia represente uma espécie de ruptura com o

paradigma religioso, o cristianismo ainda preser-

va, inclusive na sua prática litúrgica, a consciência

dessa separação. Além do mais, a encarnação só

se manifesta numa única direção, ou seja, a hu-

manização de Deus, porém, não a divinização do

homem.

Essa fronteira foi um dia estabelecida e as

várias tradições religiosas desenvolveram suas re-

presentações míticas para explicar como isso

aconteceu. A tradição judaica conta a estória da

quebra de um interdito divino de não se comer

do fruto que representava o conhecimento do

Bem e do Mal. O resultado foi a expulsão do jar-

dim e a separação total entre a criatura humana e

Deus. Ocorre que, em virtude de uma necessida-

de mútua, há uma tentativa de religação. Essa re-

ligação só é possível em face da separação em que

ambas as partes buscam sinais da presença da ou-

tra. Dessa forma, os deuses revelam-se de várias

maneiras e os seres humanos respondem de ma-

neiras várias e vice-versa. No entanto, tudo o que

podem conseguir é chegar o mais perto possível

da linha divisória, sem jamais atingi-la, menos

ainda ultrapassá-la. Assim, os seres humanos cria-

ram os mais variados meios para chegar perto da

fronteira. Entre eles estão os rituais religiosos,

mas não só. Há também os meios criados e de-

senvolvidos pela tecnologia.

Entramos numa sala de projeções cinema-

tográficas ou ligamos o aparelho de televisão e

vemos, nas respectivas telas, imagens de pessoas

comuns em variadas situações. Mas essas pessoas

deixam de ser comuns pelo fato de parecerem es-

tar em muitos lugares ao mesmo tempo. A tec-

nologia é capaz de transformá-las em quase deu-

ses, conferindo-lhes até o atributo da onipresen-

ça. Talvez seja por essa razão que milhares de pes-

soas procuram ver, tocar, abraçar as estrelas e os

astros da TV e do cinema, como se estivessem to-

cando e abraçando o próprio Deus, ou alguns dos

seus anjos. Essas estrelas e esses astros, embora

não se confundindo com deuses, são posiciona-

dos, pelos meios tecnológicos, numa zona mais

próxima da fronteira. São como sacerdotes que

quase chegaram lá.

Nosso alvo, no entanto, não é apenas che-

gar perto. É a ultrapassagem, a invasão dos espa-

ços do segredo – sagrado, secreto, sacro – dos

deuses o que desejamos. Por pretender ultrapas-

sar é que chegamos perto. Essa proximidade é pe-

rigosa, mas traz momentos de extrema emoção.

Tratando-se ainda da velocidade, podemos dizer

que não é apenas com a finalidade de chegar mais

cedo ao trabalho ou em casa que se pesquisa e se

investe em projetos de veículos mais rápidos. O

objetivo é atingir o limite que faz a diferença en-

tre ser humano e ser divino. Daí, provavelmente,

vem a grande admiração popular pelos pilotos de

corrida. Eles chegam mais perto desses limites. E,

falando em tecnologia, não podemos omitir os

programas de exploração espacial, mediante os

quais essa aproximação toma uma forma mais

fascinante. Os astronautas passam a ser os sacer-

dotes de uma nova investida em busca das novas

dimensões do mistério, ou seja, os espaços da di-

vindade, quer para confirmá-la quer mesmo para

negá-la. É significativo o fato de os chamados fil-

mes de ficção científica carregarem uma forte dose

de misticismo. O clássico de Stanley Kubrick,

2001: uma odisséia no espaço, é um bom exemplo

disso. Em várias ocasiões do filme está presente

um objeto misterioso, uma espécie de paralelepí-

pedo metálico. Sua primeira aparição se dá diante

dos primatas que, ao descobrirem-no numa certa

manhã, dele se aproximam hesitantes e excitados,

chegando até a tocá-lo. Segue-se a isso a cena

prodigiosa que retrata o despertar da consciência.

Em outra ocasião, esse mesmo objeto causa uma

série de transtornos numa base estabelecida num

planeta próximo, suscitando a necessidade de

uma investigação. Quando a expedição chega ao

local, e se posiciona para uma foto diante da coisa

desconhecida, seus membros são mortos, vitima-

dos por um som tenebroso. No final do filme, o

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mesmo objeto está numa sala diante do leito de

um bebê, espécie de mutante de um ancião. Há

nesse filme, e em outros, uma nítida intenção de

mostrar a tecnologia como um instrumento de

aproximação com o sagrado.

A religião cumpre sua função, nesse senti-

do, através dos diversos gestos e ritos que cada

cultura desenvolve. A dança, a oração, os sacrifí-

cios, as oferendas etc. são formas de uma espécie

de conspiração que representam caminhos e mo-

vimentos também em busca da invasão do espaço

sagrado. Ocorre, porém, que o religioso preten-

de, na realidade, que o sagrado o invada de volta.

Seus objetivos estão mais vinculados a uma ne-

cessidade de ser tomado, possuído, atingido pelo

sagrado, do que somente atingi-lo. Ora-se, dan-

ça-se, oferecem-se sacrifícios etc. para aplacar, ou

até despertar a nosso favor, a fúria dos deuses. Na

primeira hipótese, dizemo-lhes que nos deixem

em paz e, na segunda, que nos perturbem. Em

ambas, está também clara a necessidade divina de

invadir e ser invadido.

SEDUÇÃOÉ nesse contexto que acontece um jogo de

sedução. Queremos tentar aqui salientar o aspec-

to erótico da religião, como também da tecnolo-

gia. Tirante a arte, nada é mais sedutor na cultura

humana do que a tecnologia e a religião.

Em geral, se pensa que o jogo da sedução é

um jogo apenas entre sexos diferentes. Para mui-

tos, seduzir significa conseguir convencer alguém

do outro sexo a ser seu parceiro numa conjuga-

ção genital, efêmera ou permanente. Acontece

que a sedução independe da sexualidade. Ela per-

tence a uma ordem que desestrutura as ordens. A

palavra sedução tem origem latina – se-ducere:

afastar, desviar de seu caminho. Tem a ver, por-

tanto, com uma certa dose de transgressão. Trata-

se do jogo mais fascinante a que somos levados

pela nossa sensualidade. Seduzir é fazer certa pes-

soa mudar de direção, é transviar, ou seja, tirar de

certo itinerário previamente determinado. Essa

mudança de rumo não é feita por força de alguma

ordem infligida, mas mediante um convite. Sedu-

zir é convidar alguém a fazer parte do nosso

mundo. Precisam ser salientadas, nesse conceito,

pelo menos três implicações do jogo. A primeira

diz respeito ao aspecto do convite. Convite é algo

que pode ser ou não aceito. Não se trata de uma

imposição ou qualquer forma de chantagem,

como freqüentemente acontece nas estratégias

burguesas de persuasão. A pessoa verdadeira-

mente sedutora é capaz de lidar com a possibili-

dade concreta de sua sedução não resultar em su-

cesso. Seduzir não é reivindicar ou exigir alguma

coisa. Pelo contrário, a sedução é uma promessa

de dádiva de um objeto para cuja fruição se faz o

convite. Porém, o que é oferecido não pertence

ao universo físico, mas ao universo simbólico.

A segunda implicação é que o jogo da se-

dução pressupõe a absoluta igualdade de condi-

ções entre os parceiros. No processo de sedução

não se concebem as idéias da dominação e da

submissão. A sutileza desse jogo consiste em que

jamais se pode saber quem é que seduz ou quem

é o seduzido. Não é possível saber de onde surgiu

a iniciativa desse convite. Nesse sentido, Jean

Baudrillard nos dá uma significativa contribuição:

A lei da sedução é primeiro a de uma tro-

ca ritual ininterrupta, de um lance maior

onde os jogos nunca são feitos, de quem

seduz e de quem é seduzido e, em virtude

disso, a linha divisória que definiria a vi-

tória de um e a derrota de outro é ilegível

– e não há outro limite para esse desafio

ao outro de ser ainda mais seduzido ou de

amar mais do que eu amo senão a morte.9

Uma terceira implicação é que a sedução

pressupõe uma promessa de prazer. O mundo

para o qual eu convido alguém a participar é um

mundo presumivelmente fascinante, do qual vale

a pena alguém especial também tomar parte. É

um mundo prazeroso. Portanto, o sedutor preci-

sa formar um lastro de prazerosidade em seu cor-

po, e, só assim, adquire a prerrogativa de fazer um

convite a alguém para a doação de um prazer.

Quando isso ocorre, não é mais necessário recor-

rer aos subterfúgios econômicos e sociais das

chantagens, pois o próprio corpo se encarrega de

9 BAUDRILLARD, 1992, p. 29.

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emitir os signos dessa prazerosidade e irradiá-la

ao redor, tornando-se a pessoa uma pessoa atra-

ente. É a isso que, em linguagem teológica, cha-

ma-se graça, palavra originada do termo grego ká-

ris. Assim se conhece o indivíduo carismático, ou

seja, aquele em cuja presença sentimos uma onda

de prazer a nos invadir.

Essas três implicações se aplicam à sedução

da religião e da tecnologia. Os deuses são pródi-

gos em atrair; as máquinas igualmente. Há uma

espécie de carisma no mecanismo de uma máqui-

na que nos chama e atrai. O autor deste texto se

recorda bem de sua infância, como os trens que

passavam em frente à sua casa exerciam sobre ele

uma fascinação até perigosa, pois ele queria se

aproximar o mais possível para ver de mais perto

o funcionamento das alavancas que moviam as

rodas das antigas locomotivas a vapor. São fasci-

nantes tanto a decolagem de um Boeing quanto a

tela de uma televisão ou de um computador. Ao

indivíduo humano primitivo devem ter causado a

mesma fascinação as primeiras lanças atiradas e as

primeiras gravuras nas paredes das cavernas. São

convites a que participemos do seu mundo.

Os deuses são igualmente fascinantes, mas,

por uma razão inversa, nos seduzem porque não

se revelam. Ao contrário, eles se escondem. A se-

dução da religião implica a fascinação pelo distan-

te e inalcançável. Tudo o que simboliza o inaces-

sível pode se transformar num elemento de sedu-

ção. É assim que, na Idade Média, quando os ca-

valeiros e guerreiros deixavam suas esposas

protegidas nos famosos cintos de castidade, por

ocasião de sua participação em longas campa-

nhas, dava-se o fenômeno da sedução àquelas

mulheres pelos desconhecidos trovadores. A pai-

xão daqueles poetas pelas mulheres nobres estava

vinculada à sua condição de inacessíveis. Quem

sabe tenha daí nascido a prática da verdadeira se-

dução. E é essa a sedução cultivada pela religião

ao longo de todo esse tempo, da pré-história até

os dias de hoje.

Além disso, está embutida, tanto na religião

como na tecnologia, uma promessa de prazer.

Ambas estão a serviço da prazerosidade humana.

A religião aponta especialmente a perspectiva do

gozo eterno, mas não apenas isso. Há uma onda

de prazer que invade as pessoas participantes de

cerimônias religiosas, especialmente quando per-

meadas pelas manifestações corpóreas. Uma ce-

lebração religiosa é, portanto, a aceitação indivi-

dual e coletiva de um convite dos deuses a que as

pessoas participem do seu mundo de prazer. Aí,

nesse momento, homem e deus são parceiros,

sem nenhuma espécie de dominação ou submis-

são de qualquer um deles.

Por sua vez, a tecnologia é igualmente um

instrumento de gozo. Há sempre uma perspecti-

va de prazer vinculada ao uso de uma máquina.

Certamente não se pode afirmar ser uma sensa-

ção dolorosa a experiência de pilotar um automó-

vel. Não se trata, entretanto, somente de uma

sensação física, sensitiva, como a de aspirar um

perfume, fazer ou receber uma carícia, ou mesmo

a da experiência do orgasmo. Trata-se de um pra-

zer que se expressa mais simbolicamente na sen-

sação de controlar um universo complexo de me-

canismos engenhosos. É prazerosa, sem dúvida, a

sensação de voar em asa delta, não só pela expo-

sição do corpo a novos estímulos sensitivos, mas

também pela perspectiva de estar acima da mera

condição de mortal.

Há outro aspecto no jogo da sedução que

não se pode omitir. Trata-se do processo de fra-

gilização dos parceiros. Segundo Jean Baudrillard,

“Seduzir é fragilizar. Seduzir é desfalecer. É atra-

vés da nossa fragilidade que seduzimos, jamais

por poderes ou signos fortes. É essa fragilidade

que pomos em jogo na sedução, e é isso que lhe

confere seu poder”.10

Não por acaso o próprio Baudrillard afirma

que a sedução reside no mundo feminino. Bache-

lard certamente diria que a ela pertence ao com-

ponente feminino anima, que reside nas profun-

dezas da personalidade humana e representa,

contrariamente ao masculino animus, a sensibili-

dade, a ternura, a delicadeza. É bom observar que

não se está necessariamente referindo, ao falar em

masculino e feminino, ao aspecto da diferença

hormonal entre macho e fêmea. Feminino retrata

10 Ibid., p. 94.

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uma força que atua tanto nas mulheres quanto

nos homens. Expressa tudo o que diz respeito à

delicadeza, à graça, à sensibilidade. Quando nos

invadem as necessidades de exercer carinho e afe-

tividade, é o lado anima que está atuando. Isto

pode acontecer até aos mais arrogantes machões.

Uma pessoa que se permite ser seduzida é porque

se deixou domar pela anima. Esse é um dos gran-

des receios do ser humano nos dias de hoje, o de

ser seduzido, porque a sedução implica evidenciar

a fragilidade tanto do sedutor quanto do seduzi-

do.

Permitir ser seduzido ou permitir-se sedu-

zir é um exercício penoso a homens e mulheres

hodiernos, em geral movidos pelo animus, que se

consideram sérios e apostam no poder e na força.

Seduzir e ser seduzido significa depor as armas.

Os heróis clássicos sempre se entregam, fragili-

zados, aos braços de suas amadas. E esse é outro

efeito da religião e da tecnologia: elas nos fragili-

zam, desarmam nossas defesas e nos preparam

para a grande entrega. Não é possível não se sen-

tir fragilizado quando da contemplação de um

fruto da tecnologia, como um moderno transa-

tlântico ou um computador. Ocorre, por outro

lado, que a máquina possui suas limitações. Em-

bora se apresente com uma manifestação de po-

der e infalibilidade, elas também falham. Seus me-

canismos, para funcionar a contento, precisam de

cuidados meticulosos que se efetuam em escalas

milimétricas. Elas precisam do carinho cuidadoso

dos humanos, que, às vezes, as tratam como se

fossem crianças indefesas ou amantes carentes.

Por sua vez, os deuses só podem ser alcan-

çados pelo caminho da fragilização da pessoa hu-

mana. Mas eles também são frágeis. Possuem

sentimentos e emoções. Na tradição cristã, te-

mos um deus que se torna homem e chora, en-

tregue totalmente à gama de sentimentos que

compõem a fragilidade humana. É bem verdade

que eles são poderosos e, muitas vezes, destrui-

dores. No entanto, apresentam também um qua-

dro de carência de afetividade, de ternura, de

atenção especial. É aqui, em essência, que tanto as

máquinas como os deuses são realmente seduto-

res.

CONCLUINDOComo é sabido, os primeiros hominídeos,

há cerca de três milhões de anos, já manejavam al-

guns objetos, como ossos de grandes animais, pe-

daços de troncos de árvores caídas, pedras etc.

como instrumentos de defesa e ataque. Era o

Homo habilis. Não se pode afirmar que já hou-

vesse uma tecnologia. Mais tarde, aproximada-

mente um milhão e meio de anos, o Homo habilis

manufaturava seus instrumentos, desenvolvendo

a capacidade de dar uma forma mais anatômica

aos seus artefatos e até ensaiar um tratamento es-

tético. Era o Homo faber. Até se pode dizer que

aí já se plantavam as primeiras sementes da tec-

nologia, como hoje a entendemos. Ainda não há,

nesse período, indícios de atividades de caráter

religioso, além da existência das sepulturas, po-

rém, são dados os primeiros passos para a com-

plexificação da sociedade e da linguagem, culmi-

nando no surgimento do Homo sapiens, que apa-

rece há aproximadamente cem mil anos. Para a

sobrevivência de uma sociedade tão complexa,

são criadas as regras de controle social e os inter-

ditos. Com o objetivo de que esses últimos fos-

sem gravados de maneira indelével nas mentes

dos indivíduos, entraram aos poucos em cena os

mitos, os espíritos e os deuses, que, por sua vez,

acumulavam as funções de provedores de meios

de sobrevivência e de proteção. Isso, no entanto,

não substituiu a técnica, mas representou um re-

forço a ela. Edgar Morin afirma que “mito, rito,

magia rematam a integração interna da sociedade,

envolvendo, precedendo, acompanhando as ativi-

dades práticas, as operações de funcionamento,

assim como o ciclo da vida individual, da nascen-

ça até a morte. Longe de eliminar os modos téc-

nicos ou de se fazer eliminar por eles, os modos

mágicos completam-nos e protegem-nos”.11

Assim, a sociedade pré-histórica desenvol-

veu-se por meio do aprimoramento de uma nas-

cente tecnologia e da criação de elementos de

onde surgem as grandes religiões. Da interação

desses elementos nasce essa complexa rede de

mediações a que chamamos de cultura.

11 MORIN, 1997, p. 163.

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52 Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003

Portanto, separar a religião e a tecnologia

em compartimentos fechados, dando-lhes cami-

nhos opostos e estabelecendo uma hierarquiza-

ção, é uma forma equivocada de pensar a cultura

e o próprio ser humano. Religião e tecnologia são

construções autônomas, é verdade, mas guardam

entre si mais semelhanças que diferenças, no con-

texto do desenvolvimento da humanidade. Uma

não fere a outra, nem se deixa pela outra ferir. Ao

contrário, ambas se reforçam, ou seja, contribuem

para um desenvolvimento mútuo. Cada uma

pode atuar exercendo uma forma de controle so-

bre as tendências de excesso da outra, restabele-

cendo-se o equilíbrio, sem o qual corremos reais

riscos de extinção como espécie.

Até mesmo quando fica em evidência o

lado cruel que ambas possuem, elas se comple-

mentam. Quando a religião assume a forma de

fanatismo, vale-se da tecnologia para a destruição

nas chamadas guerras religiosas e já foi até utili-

zada na criação dos instrumentos de torturas dos

inquisidores. E quantas vezes, por outro lado, a

tecnologia bélica, para se manifestar em seu po-

derio a serviço de conquistadores ou de déspotas,

tem necessitado dos argumentos oriundos da re-

ligião para a legitimação de uma hostilidade! Em

tempos normais, no entanto, a religião precisa da

tecnologia que lhe constrói os meios, como tem-

plos, instrumentos musicais, utensílios sagrados

etc., para sua atuação e comunicação no mundo

moderno. Por sua vez, a tecnologia precisa da re-

ligião, de cujo mundo mágico se alimenta, para

manter sobre nós seu carisma e sua fascinação.

Ambas têm estado igualmente presentes nos

mais decisivos momentos da vida humana e con-

tribuído juntas, dialeticamente integradas, para o

encantamento dos seres humanos em relação à

vida e ao cosmo.

Referências BibliográficasALVES, R. O Que é Religião. São Paulo: Brasiliense, 1983.

ANJOS, A. dos. Eu. São Paulo: Abril, 1982. (Literatura Comentada).

BACHELARD, G. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

BAUDRILLARD, J. Da Sedução. Campinas: Papirus, 1992.

CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Atena, 1992.

HELLERS, V.; NOTAKER, H.; GAARDER, J. O Livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

MORIN, E. O Paradigma Perdido: a natureza humana. Lisboa: Europa-América, 1997.

PESSOA, F. Obra em Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

______. O Livro do Desassossego. Lisboa: Europa-América, s/d.

Dados do autor

Teólogo, músico e poeta; mestre e doutor emeducação pela Universidade Metodista de

Piracicaba (UNIMEP), onde é compositor musicalno Núcleo Universitário de Cultura e professor na

Faculdade de Ciências da Religião.

Recebimento artigo: 31/mar./03

Consultoria: 1.º/abr./03 a 16/abr./03

Aprovado: 12/maio/03

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