religião e tecnologia; religion and technology
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Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003 41
Religião e TecnologiaRELIGION AND TECHNOLOGY
Resumo Em certos círculos acadêmicos, desenvolveu-se a idéia da obsolescência da
religião em face do avanço extraordinário e inexorável da tecnologia. Por essa razão,
ainda se atribui uma superioridade à tecnologia em comparação à religião. No entan-
to, ambas são fatores igualmente determinantes no processo da evolução cultural do
ser humano. Tanto uma quanto a outra atuam na natureza humana, insuflando os de-
sejos que constroem nossa história e nosso cotidiano. Estão ligadas uma à outra por
laços mais estreitos do que costumamos imaginar. Embora sejam construções autô-
nomas, guardam entre si relações que vão desde o estabelecimento das primeiras con-
dições fundamentais de vida da espécie à criação dos mitos que permeiam nosso ima-
ginário ainda nos dias de hoje. Além disso, ambas atuam nas pessoas, inspirando o de-
sejo de transcendência, conjugação, descoberta sobre o mistério, prazer e sedução.
Palavras-chave TECNOLOGIA – RELIGIÃO – TRANSCENDÊNCIA – CONSCIÊNCIA –
SER HUMANO – DEUSES.
Abstract The obsolescence of religion in the face of technology progress is an idea de-
veloped around some academic circles. For that reason, to technology is attributed a
great superiority over religion. However, both technology and religion have been de-
cisive agents on the human being’s process of cultural evolution. They both operate
in the human nature exciting those desires that daily build our history and life. They
are attached to each other through ties that are closer than we usually imagine. Al-
though they are independent cultural constructions, they keep between themselves
some relationships that extend from the establishment of the first basic life conditi-
ons to the creation of myths which permeate our imaginary world. Moreover, they
both act on the human being awakening the desires of transcendence, union, the dis-
covery of mystery, pleasure, and seduction.
Keywords TECHNOLOGY – RELIGION – TRANSCENDENCE – CONSCIENCE –
HUMAN BEING – GODS.
NABOR NUNES FILHOUniversidade Metodista dePiracicaba (UNIMEP, Brasil)
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omo nasceram e se desenvolveram a religião e a tecno-
logia? Haverá alguma precedência de uma em relação
à outra? São antagônicas entre si?
A irrupção do racionalismo na modernidade contri-
buiu para que herdássemos uma visão bipartida a res-
peito das coisas que nos cercam. A oposição cartesiana
entre a razão, res cogitans, e o corpo, res extensa, trouxe
à reflexão sobre a realidade uma exacerbação do dua-
lismo inaugurado por Platão e corroborado pela teologia cristã, tornando
difícil uma análise do mundo sem dividi-lo em pares de opostos exclu-
dentes: bem e mal, certo e errado, vida e morte etc. Diante disso, desen-
volve-se uma visão da realidade segundo a qual tudo gira em torno de ei-
xos contrários e inconciliáveis. Tal visão é transportada do universo do
pensamento ao contexto das ações e atitudes do cotidiano, e até das de-
cisões políticas em nível internacional. Ainda hoje, em algumas rodas de
cientistas e pensadores, a religião e a ciência são consideradas forças es-
sencialmente antagônicas. Não deixando por menos, o positivismo de
Augusto Comte, no século XIX, valendo-se de sua hierarquização dos
três estados evolutivos do conhecimento, preconizou a derrocada do es-
tado religioso, substituído pelo estado positivo. Inaugura-se, dessa forma,
a concepção de superioridade da tecnologia (atributo do último estado)
sobre a religião, situação ainda firmemente sustentada por alguns cien-
tistas e duramente atacada por religiosos que apregoam o inverso.
O propósito do presente texto é mostrar que, conquanto estejam
em lados diversos e empreguem diferentes métodos, religião e tecnologia
são partes integrantes do desenvolvimento humano como elementos es-
senciais, indispensáveis e complementares da nossa aventura histórica.
O PASSAPORTE PARA A TRANSCENDÊNCIAUma das marcas dos seres humanos, talvez a razão intrínseca de sua
peculiaridade, é o que se pode chamar de transcendência. Trata-se da ca-
pacidade de ir além dos limites estabelecidos e impostos. A sobrevivência
da espécie humana deve-se à sua capacidade de transcender as fronteiras
da realidade perceptível. Essa transcendência manifesta-se em vários as-
pectos da aventura humana. A primeira estrofe do poema de Augusto
dos Anjos, intitulado “Eu”, pode nos ajudar a refletir sobre esses aspec-
tos.
Sou uma sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Polipo de recônditas reentrâncias,
Larva do caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias.1
1 ANJOS, 1982, p. 12.
CCCC
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Sem fazer uso da palavra, o poeta vale-se de
uma afirmação eloqüente dessa transcendência
humana sob, pelo menos, três aspectos. O pri-
meiro é o espacial. Nós não ocupamos os espaços
senão em razão de espaços transcendentes a eles.
Em outras palavras, os motivos de estarmos em
determinado lugar são resultado da nossa neces-
sidade de ocupar um espaço situado sempre além
daquele ocupado. Não desejamos estar apenas
em um determinado lugar, mas em outros, ao
mesmo tempo. Nossos espaços reais são, via de
regra, menores do que os queremos. Com a ex-
pressão Do cosmopolitismo das moneras, o poeta
sugere que são muitos nossos lugares de origem
e dos nossos desejos de estar. Na realidade, nós
nascemos e renascemos em muitos lugares, ou
seja, em cada lugar em que, por exemplo, estive-
mos com alguém, quer na presença, quer na es-
pera, quer na lembrança. Dessa forma constata-se
a grandeza da vida humana, no fato de penetrar-
mos e permanecermos em muitos e diferentes lu-
gares, e de a eles passarmos a pertencer. Nossa
vida não se deixa caber dentro de quaisquer limi-
tes geográficos. Nosso coração está atado, como
por uma espécie de fio elástico, a muitas cidades,
ruas, praças, bosques e jardins pelos quais transi-
taram nossos desejos, e em que foram vividos
momentos de grande significação. Nosso mundo
é do tamanho desse elástico, que se alonga inde-
finidamente sem jamais partir-se.
O segundo aspecto dessa transcendência é
o cronológico. Nosso tempo não é o agora. O
instante que estamos passando, ou que está pas-
sando por nós, não nos contém. Ele depende do
que vivemos em instantes anteriores e do que
projetamos para os vindouros, próximos ou dis-
tantes. Podemos até dizer que o instante que pas-
sa é uma síntese de todos os instantes, passados e
futuros. Na verdade, o tempo presente é uma ilu-
são. A luz do sol que ilumina o ambiente onde
trabalho é de dez minutos atrás. Hoje se desco-
bre a existência de corpos celestes com um atraso
de milhões de anos. Isso também se dá nas di-
mensões menores. Há um ínfimo lapso de tempo
até que eu consiga enxergar aquela foto na minha
parede. Nosso hoje é um tempo passado, e não
apenas no aspecto físico, mas no seu contexto
pessoal. Escrevo agora este texto porque decidi
fazê-lo antes desse momento, que passa a ser a
cumulação de um passado próximo. Portanto, o
meu instante não é o agora, mas o de há pouco
até agora. Por sua vez, tudo o que fazemos desse
presente é transformá-lo numa plataforma para
outros tempos que virão. O que nos move em
nosso hoje é sempre um hoje que ainda não acon-
teceu.
Há também o aspecto histórico da
transcendência. Não somos produtos desse mo-
mento histórico que passa. Venho de outras eras,
ou seja, o que sou é um resultado do que foi se
formando ao longo dos muitos séculos da histó-
ria humana, e até da pré-história. Sou a cumula-
ção de processos há muitos séculos iniciados. O
que vivo hoje foi criado antes de mim. Isso não
só do ponto de vista de uma evolução natural,
como ocorre com os demais seres vivos, mas me-
diante o complexo processo a que chamamos de
história. Ao lado das injunções de caráter bioló-
gico que a espécie humana sofreu igualmente
com os outros organismos, ela mesma produziu,
por seus próprios atributos, um conjunto de
transformações de natureza mais complexa que, a
cada era e em cada diferente lugar, foram aos pou-
cos plasmando o que somos hoje. Isso também,
não apenas do ponto de vista do passado. A his-
tória não é somente o registro do que foi, mas é
a projeção do que será, mediante a análise do que
foi e do que está sendo. Ela também se precipita
no futuro, embora nem sempre assim seja enten-
dida. O valor da história reside na sua capacidade
de nos fornecer dados para nossos posiciona-
mentos hoje e nossa preparação para o que virá
amanhã.
A religião e a tecnologia são instrumentos
dessa transcendência. Elas surgem no contexto
da humanidade para atender aos anseios dos seres
humanos de verem ultrapassadas as condições
impostas pela natureza. Enquanto a máquina nos
torna mais rápidos e fortes do que fisicamente
somos, transcendendo, dessa forma, os limites
que a natureza nos instituiu, a fé religiosa nos
transporta para universos mágicos onde as lógi-
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cas e as leis naturais são transpostas. Ambas pro-
porcionam ao ser humano, cada uma ao seu pró-
prio modo e dentro de suas peculiaridades, o
mergulho nas realidades incomensuráveis do uni-
verso. Assim, por meio de sofisticados telescó-
pios, a tecnologia nos permite hoje penetrar os
segredos das galáxias, em busca da revelação dos
mistérios do cosmo. Enquanto isso, a religião,
através de mitos e rituais, procura trazer esses
mistérios para dentro de nós, a ponto de fazê-los
parecer estar sempre ao nosso alcance. A obser-
vação dos céus nos permite entrar em contato di-
reto com o passado até de milhões de anos, ao
mesmo tempo em que faz precisas previsões de
futuros fenômenos estelares, enquanto pela reli-
gião redescobrimos as influências de nossos an-
cestrais e projetamos o tempo da vida para depois
da vida.
A DIMENSÃO HUMANAA espécie humana surgiu no cenário do pla-
neta, estimam os estudiosos, há cerca de quatro
milhões de anos. Durante todo esse tempo desen-
volveu-se o processo complexo a que se chamou
de hominização. As mais atualizadas teorias dão
conta de que essa hominização se deu a partir da
era terciária, com a crescente diminuição das áreas
florestais, onde os primatas dividiam e competiam
entre si os cada vez menores recursos das árvores.
Aos poucos, as savanas foram engolindo as flores-
tas, obrigando alguns desses primatas a se aventu-
rar nas planícies emergentes. Ao descerem das ár-
vores, entretanto, esses primeiros hominídeos pas-
saram a enfrentar problemas vários, entre os quais,
a escassez de alimentos e a ameaça de poderosos
predadores. É dessa época que datam os primeiros
vestígios do Homo faber, há aproximadamente um
milhão de anos. Há cerca de oitocentos mil anos,
os hominídeos dominaram o fogo. Nascem, as-
sim, os primeiros indícios de uma tecnologia rudi-
mentar, representada pela confecção e manipula-
ção de utensílios e instrumentos de caça. A cres-
cente utilização das mãos proporcionou um me-
nor esforço nas mandíbulas, de modo a redesenhar
as configurações do crânio, abrindo espaço para a
expansão da massa cerebral. Destarte, durante
todo esse processo de hominização, foi emergindo
uma função complexa denominada consciência.
Nos últimos cem mil anos, o ser humano domi-
naria os metais e, nos últimos dez mil, esboçam-se
as primeiras manifestações da escrita organizada e,
conseqüentemente, da cultura. A formação da
consciência atinge um nível próximo do que te-
mos hoje.
Há, no entanto, uma dimensão da consciên-
cia que talvez não possa ser detectada pelos mé-
todos científicos. O desenvolvimento da cultura
deve-se a dois elementos fundamentais de que a
consciência dotou os hominídeos. O primeiro re-
fere-se à descoberta de sua fragilidade, face aos
novos desafios do mundo ao redor, e o segundo,
à recusa a aceitar essa fragilidade. Albert Camus
afirma que “o homem é a única criatura que se re-
cusa a ser o que ela é”.2 Imaginemos uma cena,
que pode ter durado algumas dezenas, e até cen-
tenas, de milhares de anos, em que um dos nos-
sos ancestrais precisa remover uma pedra que
bloqueia a entrada de uma caverna. Ele usa seu
corpo e toda sua força muscular em vão. Desco-
bre, então, que é frágil. Porém, não desiste e põe-
se a observar o problema de outra maneira. Tem-
pos depois, percebe que há nas imediações uma
pedra menor e um tronco de árvore caído. De re-
pente (esse de repente pode ter durado alguns sé-
culos), surge-lhe uma idéia: coloca a pedra menor
mais próxima da maior, enfia uma das extremida-
des do tronco ao pé desta e, usando como base a
menor, faz um movimento para baixo, pressio-
nando a outra extremidade do tronco. Aos pou-
cos, a pedra maior vai se movendo, até ser total-
mente removida da entrada da caverna. Assim
surgiu, de acordo com essa imagem, a alavanca
que, nesse contexto, representa a tecnologia.
Ninguém sabe se foi exatamente dessa maneira
que aconteceu, porém, poderia ter sido. Também
sabemos que Ícaro não foi um personagem his-
toricamente verídico, mas sua estória é uma exce-
lente metáfora do surgimento dos artefatos voa-
dores.
2 ALVES, 1983, p. 14.
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Vemos aí, em ação, dois momentos funda-
mentais da consciência. O primeiro é a constata-
ção da fragilidade: o indivíduo humano não pode
mover a pedra, nem alçar vôo, usando seus pró-
prios recursos físicos. O segundo é a recusa: ele
não aceita ser frágil, nem ser condenado ao apri-
sionamento sobre a Terra, e cria os mecanismos
para superar seus limites.
Mas o processo da consciência não se limita
ao contexto do universo biofísico. Ela abrange o
universo existencial por meio de uma constatação
mais preocupante, ligada à contingência extrema
da morte. O ser humano sabe que vai morrer.
Ocorre que ele se recusa também a se submeter
a mais essa contingência. Precisa resolver mais
esse problema e cria as diversas soluções vincula-
das à perspectiva da imortalidade. O poeta Fer-
nando Pessoa se expressa de uma maneira elo-
qüente quando afirma: “Todos nós sabemos que
morremos; todos nós sentimos que não morre-
remos. Não é bem um desejo, nem uma esperan-
ça, que nos traz essa visão no escuro de que a
morte é um mal-entendido: é um raciocínio feito
com as entranhas, que repudia”.3 Nasce, assim, a
religião, que é um conjunto de mediações cultu-
rais destinadas a ajudar o gênero humano a lidar
com a morte e a encontrar uma expressão para
sua recusa a morrer. Todos os povos e civilizações
que se desenvolveram, na história oficial ou fora
dela, organizaram sua vida social e política, sua
economia, sua ética de acordo com alguma pers-
pectiva de imortalidade.
Diante disso, podemos afirmar que a reli-
gião e a tecnologia possuem uma origem comum,
ou seja, o desenvolvimento da consciência huma-
na. É significativo o fato de os arqueólogos des-
cobrirem que os mais antigos indícios de utensí-
lios e instrumentos de caça encontrados são do
mesmo período dos vestígios de sepulturas. A
construção de sepultura denuncia a existência de
alguma maneira pela qual uma comunidade lida
com a morte. Desde então, tanto a religião como
a tecnologia têm contribuído de forma eqüitativa
no desenvolvimento cultural da espécie humana
até os nossos dias. Não é possível privilegiar uma
em detrimento da outra sem correr o risco de co-
meter sérios equívocos conceituais. E nem se
pode dizer que elas surgiram dentro de um con-
texto de franca oposição, como até pretendem al-
guns, porém, numa situação de complexa intera-
ção.
O ASPECTO MÍSTICO DA TECNOLOGIANão há aqui nenhuma intenção de trans-
formar a tecnologia em categoria religiosa. No
entanto, queremos mostrar alguns componentes
místicos que a cercam. Ordinariamente, se tem
pensado que a experiência mística é privilégio de
alguns escolhidos e acontece tão somente através
da linguagem religiosa. De acordo com Victor
Hellen, Henry Notaker e Jostein Gaarder, “a ex-
periência mística pode ser caracterizada, resumi-
damente, como uma sensação direta de ser um só
com Deus ou com o espírito do universo. (...) O
místico experimenta, pelo menos por instantes, a
sensação de ser indivisível de um eu maior – não
importando que ele dê a isso o nome de Deus, es-
pírito universal, o eu, o vazio, o universo ou qual-
quer outra coisa”.4
Segundo essa visão, a experiência mística
não está necessariamente ligada a alguma divin-
dade formalmente estabelecida, mas configura-se
numa relação de intimidade com algo ou alguém
com quem a pessoa se sente uma. Assim, desco-
brir a beleza de um pôr-do-sol e sentindo-se par-
te desse fenômeno, e ele parte de nosso mundo,
é um momento de êxtase místico. Uma certa len-
da conta que um monge saiu para dar uma volta
fora dos limites do mosteiro e, havendo se assen-
tado num banco de jardim, pôs-se a contemplar
atentamente a cena de um passarinho cantando
num galho de árvore próximo. Passado algum
tempo, ele retornou ao mosteiro, mas percebeu
que o porteiro era desconhecido e não o reconhe-
ceu. Apresentou-se declinando seu nome, mas
este não constava no livro oficial da portaria da
instituição. Após muito se procurar, devido à sua
natural insistência, finalmente seu nome veio a
3 PESSOA, 1986, p. 179. 4 HELLERS; NOTAKER; GAARDER, 2000, p. 33-34.
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ser descoberto num livro muito antigo e empo-
eirado. Havia trezentos anos que ele saíra para
dar um simples passeio. Essa estória nos faz pen-
sar na singular experiência dos místicos.
Mas e a tecnologia? Ela é capaz de facultar
esse tipo de experiência? Numa entrevista recen-
te, o ex-piloto de Fórmula Um, Émerson Fitti-
paldi, afirmava algo dessa possibilidade ao dizer
que, às vezes, sentia-se como se ele e o seu auto-
móvel fossem uma só pessoa. É bem verdade que
a máquina em si mesma não é nenhum deus. No
entanto, ela possui esse atributo de comunhão
com o ser humano. Os seres humanos criaram a
máquina como Deus criou os seres humanos,
ambos com a finalidade de manter uma comu-
nhão com sua respectiva criação.
Além disso, a máquina nos ajuda a nos
aproximarmos dos deuses. Uma das razões disso
é que a máquina está muito ligada aos mitos. Jo-
seph Campbell afirma:
os automóveis adentraram a mitologia.
Adentraram os sonhos. E as aeronaves es-
tão a serviço da imaginação. O vôo da ae-
ronave, por exemplo, atua na imaginação
como libertação da terra. É a mesma coisa
que os pássaros simbolizam, de certo mo-
do. O pássaro é um símbolo da libertação
em relação ao aprisionamento à terra, as-
sim como a serpente simboliza o aprisio-
namento à terra. A aeronave desempenha
esse papel hoje.5
Talvez não seja por acaso que os autódro-
mos fiquem lotados e que os mezaninos dos ae-
roportos sejam os seus lugares mais freqüenta-
dos, pois, em ambos os espaços, as pessoas bus-
cam ao menos testemunhar uma experiência
mística, ou algo próximo a ela. A máquina ofere-
ce ao homem essa chance de comunhão com algo
além de si mesmo, pois atua como uma espécie
de extensão do nosso corpo. Talvez também não
seja por acaso que o proprietário de um automó-
vel, de tão ligado ao seu veículo, perturbe-se ao
perceber um leve arranhão em sua pintura. Ora,
esse leve risco não interfere em nada no funcio-
namento da máquina, porém, se o dono dela sur-
preender o seu autor, será capaz de ir com ele às
vias de fato. Por outro lado, é impossível não sen-
tir a emoção que a velocidade cria em nosso sis-
tema nervoso ao pilotar um veículo possante e
dos mais velozes. Uma das causas prováveis de
acidentes automobilísticos pode ser a entrega to-
tal da pessoa a essa emoção, uma espécie de êx-
tase ao volante. A relação homem/máquina é ca-
paz até de produzir sentimentos, como, por
exemplo, o ciúme, e até a saudade. Não seria essa
situação uma espécie de ensaio a uma experiência
mística?
Além da dimensão detectada pelos nossos
sentidos e os instrumentos tecnológicos mais so-
fisticados, existe uma espécie de mundo diferen-
te, movido por leis absurdas que contrariam as
regras impostas pela experiência quotidiana. Re-
fere-se isso ao mundo da magia. É nesse universo
mágico que existem lugares e acontecem fatos
fantásticos, como milagres, paraísos, infernos,
encarnações, nascimentos virginais etc., e onde
habitam seres maravilhosos, como mitos, deuses,
demônios, fadas, bruxas etc. Esse mundo dos so-
nhos e mistérios existe. Sua existência, porém,
possui natureza diferente da dos elementos de-
tectáveis pelos sentidos e pelo método científico.
É uma existência extrafísica, que se manifesta na
dimensão do imaginário, coletivo ou individual, e
tem origem na nossa capacidade de sonhar. Se-
gundo Gaston Bachelard,
antes da cultura o mundo sonhou muito.
Os mitos saíam da terra, abriam a Terra
para que, com o olho dos seus lagos, ela
contemplasse o céu. Um destino de altu-
ras subia dos abismos. Os mitos encon-
travam assim, imediatamente, vozes de
homem, a voz do homem que sonha o
mundo dos seus sonhos. O homem ex-
primia a terra, o céu, as águas. O homem
era a palavra desse macroântropos que é o
corpo monstruoso da terra. Nos devaneios
cósmicos primitivos, o mundo é corpo
humano, olhar humano, sopro humano,
voz humana.6
5 CAMPBELL, 1992, p. 19. 6 BACHELARD, 1996, p. 180.
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A tecnologia também está ligada a esse uni-
verso mágico. Primeiramente, porque constrói os
meios para o adentrarmos. O cinema, por meio
dos efeitos tecnológicos especiais, pode abrir o
Mar Vermelho de forma visível e incontestável
para todos os olhos, afundar várias vezes o Tita-
nic e fazer o Superman voar a incríveis velocida-
des. Tudo isso é fruto da tecnologia aliada à ima-
ginação humana. Através do computador pode-
se hoje navegar pelo imenso mundo da virtuali-
dade, o chamado ciberespaço. Aliás, falando so-
bre o interior de um computador, Joseph Cam-
pbell assim se expressa: “É um milagre o que
acontece naquela tela? Você já examinou por den-
tro uma dessas coisas? Não dá para acreditar. É
toda uma hierarquia de anjos... todos sobre as
placas. E aqueles pequenos tubos – aquilo são mi-
lagres”.7
Em segundo lugar, a máquina abre as pers-
pectivas dos milagres que os seres humanos mo-
dernos esperam. Esses milagres estão, em geral,
vinculados ao fenômeno da velocidade. Um jato
supersônico, um carro de corrida, uma nave es-
pacial são bons exemplos disso. Eles permitem à
pessoa humana a proeza de quase manipular o
tempo e o espaço, transformando-os em elemen-
tos dóceis aos seus comandos. Provavelmente
não cheguemos jamais a ponto de esse controle
ser total, uma vez que, para isso acontecer, tería-
mos de atingir a velocidade da luz. Ocorre que
todos sabemos que chegaremos a velocidades
cada vez maiores que a do som. Isso porque a tec-
nologia não pode prescindir da capacidade huma-
na de sonhar, que é, em suma, a mesma causa e
efeito dos milagres.
Não está sendo aqui afirmado que a tecno-
logia faz milagres, mas apenas que ela abre as pos-
sibilidades para experimentar a sua influência, ao
menos no desejo das pessoas, o que é, sem dúvi-
da, algo grandioso. Não é um milagre voar à ve-
locidade do som, ou falar com alguém que está
do outro lado do mundo através de um aparelho
celular. O milagre reside no desejo de que isso
pudesse vir acontecer.
Milagre pode ser entendido como uma rup-
tura momentânea das leis físicas e biológicas,
provocada por forças extranaturais e mediante a
vontade soberana de um ser sobrenatural. Assim,
são milagres o andar por sobre as águas, a
ressurreição de um morto, a multiplicação de
pães etc. No vôo de um supersônico não está
presente uma força sobrenatural, nem a vontade
soberana de um deus. Além do mais, não se pode
dizer que exista aí uma ruptura dos processos da
natureza, porém, uma utilização diferenciada e
complexificada das próprias leis naturais. Todavia,
a máquina mexe com a área sensível da natureza
humana, suscitando emoções e expectativas bem
próximas da dimensão do milagre. Está claro que
tecnologia não produz os milagres. Entretanto,
ela é capaz de fazer emergir, de dentro da subje-
tividade humana, o desejo, que é a principal fonte
dos milagres. Também a religião não os opera,
mas atua na vida humana de maneira idêntica.
Ambas influem na nossa vida, provocando dese-
jos de que a realidade seja ao menos diferente.
CONTATO COM O SAGRADOCampbell faz alusão a uma anedota envol-
vendo um ex-presidente norte-americano. “Eise-
nhower entrou numa sala repleta de computado-
res e propôs às máquinas a seguinte questão: exis-
te um Deus? Todas começam a funcionar, luzes
se acendem, carretéis giram e após algum tempo
uma diz: Agora existe”.8 Talvez seja essa uma ma-
neira bem-humorada de falar sobre tal proximi-
dade com o sagrado que a máquina nos propor-
ciona, ou seja, a intimidade da tecnologia com as
divindades.
Os seres humanos são criadores de deuses,
que são criadores de seres humanos, que são cria-
dores de deuses, formando, assim, um fantástico
ciclo vicioso que não se fecha e nem possui um
começo definido. Não se pode dizer quem criou
quem primeiro. Assim, os seres humanos têm
necessidade de serem criados para criar, e os deu-
ses, necessidade de criar para serem criados e
vice-versa. Essa é a fórmula dialética que encon-
7 Ibid., p. 21. 8 CAMPBELL, 1992, p. 20.
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tramos para expressar a relação entre o humano e
o divino. Nessa relação, porém, existem frontei-
ras bem claras, limites estabelecidos: o ser huma-
no não pode ser deus e o deus não pode ser hu-
mano. Somente o cristianismo é que quebrou
esse segundo princípio, por meio da teologia da
encarnação do Verbo de Deus. Embora essa teo-
logia represente uma espécie de ruptura com o
paradigma religioso, o cristianismo ainda preser-
va, inclusive na sua prática litúrgica, a consciência
dessa separação. Além do mais, a encarnação só
se manifesta numa única direção, ou seja, a hu-
manização de Deus, porém, não a divinização do
homem.
Essa fronteira foi um dia estabelecida e as
várias tradições religiosas desenvolveram suas re-
presentações míticas para explicar como isso
aconteceu. A tradição judaica conta a estória da
quebra de um interdito divino de não se comer
do fruto que representava o conhecimento do
Bem e do Mal. O resultado foi a expulsão do jar-
dim e a separação total entre a criatura humana e
Deus. Ocorre que, em virtude de uma necessida-
de mútua, há uma tentativa de religação. Essa re-
ligação só é possível em face da separação em que
ambas as partes buscam sinais da presença da ou-
tra. Dessa forma, os deuses revelam-se de várias
maneiras e os seres humanos respondem de ma-
neiras várias e vice-versa. No entanto, tudo o que
podem conseguir é chegar o mais perto possível
da linha divisória, sem jamais atingi-la, menos
ainda ultrapassá-la. Assim, os seres humanos cria-
ram os mais variados meios para chegar perto da
fronteira. Entre eles estão os rituais religiosos,
mas não só. Há também os meios criados e de-
senvolvidos pela tecnologia.
Entramos numa sala de projeções cinema-
tográficas ou ligamos o aparelho de televisão e
vemos, nas respectivas telas, imagens de pessoas
comuns em variadas situações. Mas essas pessoas
deixam de ser comuns pelo fato de parecerem es-
tar em muitos lugares ao mesmo tempo. A tec-
nologia é capaz de transformá-las em quase deu-
ses, conferindo-lhes até o atributo da onipresen-
ça. Talvez seja por essa razão que milhares de pes-
soas procuram ver, tocar, abraçar as estrelas e os
astros da TV e do cinema, como se estivessem to-
cando e abraçando o próprio Deus, ou alguns dos
seus anjos. Essas estrelas e esses astros, embora
não se confundindo com deuses, são posiciona-
dos, pelos meios tecnológicos, numa zona mais
próxima da fronteira. São como sacerdotes que
quase chegaram lá.
Nosso alvo, no entanto, não é apenas che-
gar perto. É a ultrapassagem, a invasão dos espa-
ços do segredo – sagrado, secreto, sacro – dos
deuses o que desejamos. Por pretender ultrapas-
sar é que chegamos perto. Essa proximidade é pe-
rigosa, mas traz momentos de extrema emoção.
Tratando-se ainda da velocidade, podemos dizer
que não é apenas com a finalidade de chegar mais
cedo ao trabalho ou em casa que se pesquisa e se
investe em projetos de veículos mais rápidos. O
objetivo é atingir o limite que faz a diferença en-
tre ser humano e ser divino. Daí, provavelmente,
vem a grande admiração popular pelos pilotos de
corrida. Eles chegam mais perto desses limites. E,
falando em tecnologia, não podemos omitir os
programas de exploração espacial, mediante os
quais essa aproximação toma uma forma mais
fascinante. Os astronautas passam a ser os sacer-
dotes de uma nova investida em busca das novas
dimensões do mistério, ou seja, os espaços da di-
vindade, quer para confirmá-la quer mesmo para
negá-la. É significativo o fato de os chamados fil-
mes de ficção científica carregarem uma forte dose
de misticismo. O clássico de Stanley Kubrick,
2001: uma odisséia no espaço, é um bom exemplo
disso. Em várias ocasiões do filme está presente
um objeto misterioso, uma espécie de paralelepí-
pedo metálico. Sua primeira aparição se dá diante
dos primatas que, ao descobrirem-no numa certa
manhã, dele se aproximam hesitantes e excitados,
chegando até a tocá-lo. Segue-se a isso a cena
prodigiosa que retrata o despertar da consciência.
Em outra ocasião, esse mesmo objeto causa uma
série de transtornos numa base estabelecida num
planeta próximo, suscitando a necessidade de
uma investigação. Quando a expedição chega ao
local, e se posiciona para uma foto diante da coisa
desconhecida, seus membros são mortos, vitima-
dos por um som tenebroso. No final do filme, o
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mesmo objeto está numa sala diante do leito de
um bebê, espécie de mutante de um ancião. Há
nesse filme, e em outros, uma nítida intenção de
mostrar a tecnologia como um instrumento de
aproximação com o sagrado.
A religião cumpre sua função, nesse senti-
do, através dos diversos gestos e ritos que cada
cultura desenvolve. A dança, a oração, os sacrifí-
cios, as oferendas etc. são formas de uma espécie
de conspiração que representam caminhos e mo-
vimentos também em busca da invasão do espaço
sagrado. Ocorre, porém, que o religioso preten-
de, na realidade, que o sagrado o invada de volta.
Seus objetivos estão mais vinculados a uma ne-
cessidade de ser tomado, possuído, atingido pelo
sagrado, do que somente atingi-lo. Ora-se, dan-
ça-se, oferecem-se sacrifícios etc. para aplacar, ou
até despertar a nosso favor, a fúria dos deuses. Na
primeira hipótese, dizemo-lhes que nos deixem
em paz e, na segunda, que nos perturbem. Em
ambas, está também clara a necessidade divina de
invadir e ser invadido.
SEDUÇÃOÉ nesse contexto que acontece um jogo de
sedução. Queremos tentar aqui salientar o aspec-
to erótico da religião, como também da tecnolo-
gia. Tirante a arte, nada é mais sedutor na cultura
humana do que a tecnologia e a religião.
Em geral, se pensa que o jogo da sedução é
um jogo apenas entre sexos diferentes. Para mui-
tos, seduzir significa conseguir convencer alguém
do outro sexo a ser seu parceiro numa conjuga-
ção genital, efêmera ou permanente. Acontece
que a sedução independe da sexualidade. Ela per-
tence a uma ordem que desestrutura as ordens. A
palavra sedução tem origem latina – se-ducere:
afastar, desviar de seu caminho. Tem a ver, por-
tanto, com uma certa dose de transgressão. Trata-
se do jogo mais fascinante a que somos levados
pela nossa sensualidade. Seduzir é fazer certa pes-
soa mudar de direção, é transviar, ou seja, tirar de
certo itinerário previamente determinado. Essa
mudança de rumo não é feita por força de alguma
ordem infligida, mas mediante um convite. Sedu-
zir é convidar alguém a fazer parte do nosso
mundo. Precisam ser salientadas, nesse conceito,
pelo menos três implicações do jogo. A primeira
diz respeito ao aspecto do convite. Convite é algo
que pode ser ou não aceito. Não se trata de uma
imposição ou qualquer forma de chantagem,
como freqüentemente acontece nas estratégias
burguesas de persuasão. A pessoa verdadeira-
mente sedutora é capaz de lidar com a possibili-
dade concreta de sua sedução não resultar em su-
cesso. Seduzir não é reivindicar ou exigir alguma
coisa. Pelo contrário, a sedução é uma promessa
de dádiva de um objeto para cuja fruição se faz o
convite. Porém, o que é oferecido não pertence
ao universo físico, mas ao universo simbólico.
A segunda implicação é que o jogo da se-
dução pressupõe a absoluta igualdade de condi-
ções entre os parceiros. No processo de sedução
não se concebem as idéias da dominação e da
submissão. A sutileza desse jogo consiste em que
jamais se pode saber quem é que seduz ou quem
é o seduzido. Não é possível saber de onde surgiu
a iniciativa desse convite. Nesse sentido, Jean
Baudrillard nos dá uma significativa contribuição:
A lei da sedução é primeiro a de uma tro-
ca ritual ininterrupta, de um lance maior
onde os jogos nunca são feitos, de quem
seduz e de quem é seduzido e, em virtude
disso, a linha divisória que definiria a vi-
tória de um e a derrota de outro é ilegível
– e não há outro limite para esse desafio
ao outro de ser ainda mais seduzido ou de
amar mais do que eu amo senão a morte.9
Uma terceira implicação é que a sedução
pressupõe uma promessa de prazer. O mundo
para o qual eu convido alguém a participar é um
mundo presumivelmente fascinante, do qual vale
a pena alguém especial também tomar parte. É
um mundo prazeroso. Portanto, o sedutor preci-
sa formar um lastro de prazerosidade em seu cor-
po, e, só assim, adquire a prerrogativa de fazer um
convite a alguém para a doação de um prazer.
Quando isso ocorre, não é mais necessário recor-
rer aos subterfúgios econômicos e sociais das
chantagens, pois o próprio corpo se encarrega de
9 BAUDRILLARD, 1992, p. 29.
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emitir os signos dessa prazerosidade e irradiá-la
ao redor, tornando-se a pessoa uma pessoa atra-
ente. É a isso que, em linguagem teológica, cha-
ma-se graça, palavra originada do termo grego ká-
ris. Assim se conhece o indivíduo carismático, ou
seja, aquele em cuja presença sentimos uma onda
de prazer a nos invadir.
Essas três implicações se aplicam à sedução
da religião e da tecnologia. Os deuses são pródi-
gos em atrair; as máquinas igualmente. Há uma
espécie de carisma no mecanismo de uma máqui-
na que nos chama e atrai. O autor deste texto se
recorda bem de sua infância, como os trens que
passavam em frente à sua casa exerciam sobre ele
uma fascinação até perigosa, pois ele queria se
aproximar o mais possível para ver de mais perto
o funcionamento das alavancas que moviam as
rodas das antigas locomotivas a vapor. São fasci-
nantes tanto a decolagem de um Boeing quanto a
tela de uma televisão ou de um computador. Ao
indivíduo humano primitivo devem ter causado a
mesma fascinação as primeiras lanças atiradas e as
primeiras gravuras nas paredes das cavernas. São
convites a que participemos do seu mundo.
Os deuses são igualmente fascinantes, mas,
por uma razão inversa, nos seduzem porque não
se revelam. Ao contrário, eles se escondem. A se-
dução da religião implica a fascinação pelo distan-
te e inalcançável. Tudo o que simboliza o inaces-
sível pode se transformar num elemento de sedu-
ção. É assim que, na Idade Média, quando os ca-
valeiros e guerreiros deixavam suas esposas
protegidas nos famosos cintos de castidade, por
ocasião de sua participação em longas campa-
nhas, dava-se o fenômeno da sedução àquelas
mulheres pelos desconhecidos trovadores. A pai-
xão daqueles poetas pelas mulheres nobres estava
vinculada à sua condição de inacessíveis. Quem
sabe tenha daí nascido a prática da verdadeira se-
dução. E é essa a sedução cultivada pela religião
ao longo de todo esse tempo, da pré-história até
os dias de hoje.
Além disso, está embutida, tanto na religião
como na tecnologia, uma promessa de prazer.
Ambas estão a serviço da prazerosidade humana.
A religião aponta especialmente a perspectiva do
gozo eterno, mas não apenas isso. Há uma onda
de prazer que invade as pessoas participantes de
cerimônias religiosas, especialmente quando per-
meadas pelas manifestações corpóreas. Uma ce-
lebração religiosa é, portanto, a aceitação indivi-
dual e coletiva de um convite dos deuses a que as
pessoas participem do seu mundo de prazer. Aí,
nesse momento, homem e deus são parceiros,
sem nenhuma espécie de dominação ou submis-
são de qualquer um deles.
Por sua vez, a tecnologia é igualmente um
instrumento de gozo. Há sempre uma perspecti-
va de prazer vinculada ao uso de uma máquina.
Certamente não se pode afirmar ser uma sensa-
ção dolorosa a experiência de pilotar um automó-
vel. Não se trata, entretanto, somente de uma
sensação física, sensitiva, como a de aspirar um
perfume, fazer ou receber uma carícia, ou mesmo
a da experiência do orgasmo. Trata-se de um pra-
zer que se expressa mais simbolicamente na sen-
sação de controlar um universo complexo de me-
canismos engenhosos. É prazerosa, sem dúvida, a
sensação de voar em asa delta, não só pela expo-
sição do corpo a novos estímulos sensitivos, mas
também pela perspectiva de estar acima da mera
condição de mortal.
Há outro aspecto no jogo da sedução que
não se pode omitir. Trata-se do processo de fra-
gilização dos parceiros. Segundo Jean Baudrillard,
“Seduzir é fragilizar. Seduzir é desfalecer. É atra-
vés da nossa fragilidade que seduzimos, jamais
por poderes ou signos fortes. É essa fragilidade
que pomos em jogo na sedução, e é isso que lhe
confere seu poder”.10
Não por acaso o próprio Baudrillard afirma
que a sedução reside no mundo feminino. Bache-
lard certamente diria que a ela pertence ao com-
ponente feminino anima, que reside nas profun-
dezas da personalidade humana e representa,
contrariamente ao masculino animus, a sensibili-
dade, a ternura, a delicadeza. É bom observar que
não se está necessariamente referindo, ao falar em
masculino e feminino, ao aspecto da diferença
hormonal entre macho e fêmea. Feminino retrata
10 Ibid., p. 94.
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uma força que atua tanto nas mulheres quanto
nos homens. Expressa tudo o que diz respeito à
delicadeza, à graça, à sensibilidade. Quando nos
invadem as necessidades de exercer carinho e afe-
tividade, é o lado anima que está atuando. Isto
pode acontecer até aos mais arrogantes machões.
Uma pessoa que se permite ser seduzida é porque
se deixou domar pela anima. Esse é um dos gran-
des receios do ser humano nos dias de hoje, o de
ser seduzido, porque a sedução implica evidenciar
a fragilidade tanto do sedutor quanto do seduzi-
do.
Permitir ser seduzido ou permitir-se sedu-
zir é um exercício penoso a homens e mulheres
hodiernos, em geral movidos pelo animus, que se
consideram sérios e apostam no poder e na força.
Seduzir e ser seduzido significa depor as armas.
Os heróis clássicos sempre se entregam, fragili-
zados, aos braços de suas amadas. E esse é outro
efeito da religião e da tecnologia: elas nos fragili-
zam, desarmam nossas defesas e nos preparam
para a grande entrega. Não é possível não se sen-
tir fragilizado quando da contemplação de um
fruto da tecnologia, como um moderno transa-
tlântico ou um computador. Ocorre, por outro
lado, que a máquina possui suas limitações. Em-
bora se apresente com uma manifestação de po-
der e infalibilidade, elas também falham. Seus me-
canismos, para funcionar a contento, precisam de
cuidados meticulosos que se efetuam em escalas
milimétricas. Elas precisam do carinho cuidadoso
dos humanos, que, às vezes, as tratam como se
fossem crianças indefesas ou amantes carentes.
Por sua vez, os deuses só podem ser alcan-
çados pelo caminho da fragilização da pessoa hu-
mana. Mas eles também são frágeis. Possuem
sentimentos e emoções. Na tradição cristã, te-
mos um deus que se torna homem e chora, en-
tregue totalmente à gama de sentimentos que
compõem a fragilidade humana. É bem verdade
que eles são poderosos e, muitas vezes, destrui-
dores. No entanto, apresentam também um qua-
dro de carência de afetividade, de ternura, de
atenção especial. É aqui, em essência, que tanto as
máquinas como os deuses são realmente seduto-
res.
CONCLUINDOComo é sabido, os primeiros hominídeos,
há cerca de três milhões de anos, já manejavam al-
guns objetos, como ossos de grandes animais, pe-
daços de troncos de árvores caídas, pedras etc.
como instrumentos de defesa e ataque. Era o
Homo habilis. Não se pode afirmar que já hou-
vesse uma tecnologia. Mais tarde, aproximada-
mente um milhão e meio de anos, o Homo habilis
manufaturava seus instrumentos, desenvolvendo
a capacidade de dar uma forma mais anatômica
aos seus artefatos e até ensaiar um tratamento es-
tético. Era o Homo faber. Até se pode dizer que
aí já se plantavam as primeiras sementes da tec-
nologia, como hoje a entendemos. Ainda não há,
nesse período, indícios de atividades de caráter
religioso, além da existência das sepulturas, po-
rém, são dados os primeiros passos para a com-
plexificação da sociedade e da linguagem, culmi-
nando no surgimento do Homo sapiens, que apa-
rece há aproximadamente cem mil anos. Para a
sobrevivência de uma sociedade tão complexa,
são criadas as regras de controle social e os inter-
ditos. Com o objetivo de que esses últimos fos-
sem gravados de maneira indelével nas mentes
dos indivíduos, entraram aos poucos em cena os
mitos, os espíritos e os deuses, que, por sua vez,
acumulavam as funções de provedores de meios
de sobrevivência e de proteção. Isso, no entanto,
não substituiu a técnica, mas representou um re-
forço a ela. Edgar Morin afirma que “mito, rito,
magia rematam a integração interna da sociedade,
envolvendo, precedendo, acompanhando as ativi-
dades práticas, as operações de funcionamento,
assim como o ciclo da vida individual, da nascen-
ça até a morte. Longe de eliminar os modos téc-
nicos ou de se fazer eliminar por eles, os modos
mágicos completam-nos e protegem-nos”.11
Assim, a sociedade pré-histórica desenvol-
veu-se por meio do aprimoramento de uma nas-
cente tecnologia e da criação de elementos de
onde surgem as grandes religiões. Da interação
desses elementos nasce essa complexa rede de
mediações a que chamamos de cultura.
11 MORIN, 1997, p. 163.
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Portanto, separar a religião e a tecnologia
em compartimentos fechados, dando-lhes cami-
nhos opostos e estabelecendo uma hierarquiza-
ção, é uma forma equivocada de pensar a cultura
e o próprio ser humano. Religião e tecnologia são
construções autônomas, é verdade, mas guardam
entre si mais semelhanças que diferenças, no con-
texto do desenvolvimento da humanidade. Uma
não fere a outra, nem se deixa pela outra ferir. Ao
contrário, ambas se reforçam, ou seja, contribuem
para um desenvolvimento mútuo. Cada uma
pode atuar exercendo uma forma de controle so-
bre as tendências de excesso da outra, restabele-
cendo-se o equilíbrio, sem o qual corremos reais
riscos de extinção como espécie.
Até mesmo quando fica em evidência o
lado cruel que ambas possuem, elas se comple-
mentam. Quando a religião assume a forma de
fanatismo, vale-se da tecnologia para a destruição
nas chamadas guerras religiosas e já foi até utili-
zada na criação dos instrumentos de torturas dos
inquisidores. E quantas vezes, por outro lado, a
tecnologia bélica, para se manifestar em seu po-
derio a serviço de conquistadores ou de déspotas,
tem necessitado dos argumentos oriundos da re-
ligião para a legitimação de uma hostilidade! Em
tempos normais, no entanto, a religião precisa da
tecnologia que lhe constrói os meios, como tem-
plos, instrumentos musicais, utensílios sagrados
etc., para sua atuação e comunicação no mundo
moderno. Por sua vez, a tecnologia precisa da re-
ligião, de cujo mundo mágico se alimenta, para
manter sobre nós seu carisma e sua fascinação.
Ambas têm estado igualmente presentes nos
mais decisivos momentos da vida humana e con-
tribuído juntas, dialeticamente integradas, para o
encantamento dos seres humanos em relação à
vida e ao cosmo.
Referências BibliográficasALVES, R. O Que é Religião. São Paulo: Brasiliense, 1983.
ANJOS, A. dos. Eu. São Paulo: Abril, 1982. (Literatura Comentada).
BACHELARD, G. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
BAUDRILLARD, J. Da Sedução. Campinas: Papirus, 1992.
CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Atena, 1992.
HELLERS, V.; NOTAKER, H.; GAARDER, J. O Livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
MORIN, E. O Paradigma Perdido: a natureza humana. Lisboa: Europa-América, 1997.
PESSOA, F. Obra em Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
______. O Livro do Desassossego. Lisboa: Europa-América, s/d.
Dados do autor
Teólogo, músico e poeta; mestre e doutor emeducação pela Universidade Metodista de
Piracicaba (UNIMEP), onde é compositor musicalno Núcleo Universitário de Cultura e professor na
Faculdade de Ciências da Religião.
Recebimento artigo: 31/mar./03
Consultoria: 1.º/abr./03 a 16/abr./03
Aprovado: 12/maio/03
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