relatório final de pós-doutorado

45
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: CURRÍCULO Relatório Final de Pós-Doutorado INTERDISCIPLINARIDADE E O CUIDADO AO HUMANO NA FORMAÇÃO DO DOCENTE DA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONCEITOS, PRÁTICAS E PERSPECTIVAS Supervisor: Prof. Dr. Ivani Catarina Arantes Fazenda Pós-Doutorando: Prof. Dr. Fernando Cesar de Souza Período: De março 2014 a agosto 2015 SÃO PAULO, SP AGOSTO 2015

Upload: others

Post on 25-Nov-2021

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO:

CURRÍCULO

Relatório Final de Pós-Doutorado

INTERDISCIPLINARIDADE E O CUIDADO AO HUMANO NA

FORMAÇÃO DO DOCENTE DA EDUCAÇÃO BÁSICA:

CONCEITOS, PRÁTICAS E PERSPECTIVAS

Supervisor: Prof. Dr. Ivani Catarina Arantes Fazenda

Pós-Doutorando: Prof. Dr. Fernando Cesar de Souza

Período: De março 2014 a agosto 2015

SÃO PAULO, SP

AGOSTO 2015

2

Falar de cura é falar de doença. Ora, poderá falar de doença alguém que não seja

médico, nem psiquiatra, nem psicanalista? Creio piamente que sim. As noções de

trauma ou de traumatismo, de ferida e de vulnerabilidade pertencem à consciência

comum e ao discurso ordinário. É exatamente a este fundo tenebroso que o perdão

propõe a cura. Mas de que maneira? Gostaria de situar o perdão na enérgica ação de

um trabalho que tem início na região da memória e que continua na região do

esquecimento.

(Paul Ricoeur, 1996)

3

SUMÁRIO

1 – Introdução................................................................................................ 4

2 – Justificativa.............................................................................................. 6

3 – Objetivos................................................................................................ 11

4 – Metodologia........................................................................................... 11

5 - Discussão e resultados

5.1 - Pontes entre Educação e a Saúde: uma questão vital.................. 12

5.2 – A tríade do cuidado de si, do outro e da escola........................... 14

5.3 - Contradições pedagógicas numa escola que cuida...................... 17

5.4 - Vivendo os paradoxos numa clínica que educa............................ 26

5.5 - Quem cuida dos cuidadores, e quem forma os formadores? ....... 31

5.6 - A arte da escuta como prática da formação humana.................... 32

6 – Conclusão............................................................................................. 37

7 - Bibliografia............................................................................................ 39

8 – Atividades didático-pedagógicas de suporte ao pós-doutorado........... 42

9 – Atividades didático-pedagógicas desenvolvidas durante o pós-

doutorado................................................................................................... 43

10 – Artigos científicos e textos de suporte ao pós-doutorado.................. 44

11 – Artigos científicos e textos publicados durante o pós-doutorado....... 44

4

1 - INTRODUÇÃO

Os ensaios transcritos nesse relatório foram produzidos entre 2010 e

2015, sendo possível dividi-los em dois momentos de equivalente importância:

de 2010 a 2013 ocorreram as intervenções pedagógicas com docentes da

Educação Profissional numa Instituição no Estado de São Paulo, e também

houve o estreitamento da parceria com a área da Saúde: daí denominamos

esse período de produção de suporte ao pós-doutorado. Nos anos de 2014 e

2015, o período do doutoramento, houve a concentração na formação de

equipes educacionais das Unidades Escolares da Secretaria Municipal de

Educação, por intermédio de uma Diretoria Regional de Ensino na cidade de

São Paulo, e a ampliação do público alvo desse relatório: de docentes da

Educação Profissional para professores da educação básica pública,

ampliando, também, a parceria com os profissionais da saúde.

Essa trajetória de pesquisa nasceu da presença da ESCUTA como

prática de transformação didática e profissional, superando as superficialidades

de uma formação docente estandardizada, àquela que trata as pessoas como

mera plateia. Falar de cuidado e vivenciar uma escuta atenta é aproximar as

pessoas dos sentidos de aprender e rever suas missões como profissionais da

educação ou da saúde. Motivo pelo qual essa pesquisa estar pautada na

metodologia da pesquisa-ação como instrumento qualitativo. A noção de

pesquisa-ação para Barbier, (2002, p. 67) “É a de uma arte de rigor clínico,

desenvolvida coletivamente, com o objetivo de uma adaptação relativa de si ao

mundo.”

Toda a produção de dados do pós-doutoramento na Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo ganhou concretude e solidez a partir das

vivências com docentes e equipes administrativas diante dos paradoxos entre a

ciência da educação e a arte da escuta como intervenção existencial.

Alicerçados no cuidado, na formação de professores e na interdisciplinaridade,

5

essa escrita abre à expansão do conhecimento, numa plasticidade com

contornos de autorias e legitimidades, pois segundo HUF (2003, p.45), “a

ciência, metodologicamente, separa para estudar; porém, as relações

orgânicas, os impulsos primitivos, as necessidades de gratificações corporais,

afetivas e espirituais funcionam como uma totalidade”, descortinando as

atitudes de esperança e coragem mescladas organicamente como forças

motrizes da constância para acreditar numa Educação que pede calma.

Sabe-se que todos os espaços de aprendizagens (escolas e/ou clínicas)

têm buscado diferentes metodologias que amenizem as violências vividas por

seus partícipes, daí o cuidado não focado na cura física, mas arraigado aos

novos desenhos curriculares que oportunizam a qualidade de vida individual

com reflexos numa saudável convivência coletiva. A prática do cuidado esteve

presente na formação docente, e reconduziu as pessoas às suas próprias

constituições de autonomias e autorias ao longo da vida, impulsionando-as às

diferentes historicidades e criticidades. O acolhimento foi intencional nas

redescobertas do ato de professar e na competência de tratar de si mesmo e

do outro.

Daí que a sala de aula pede certa leveza didática e permanente

presença amorosa. A escola está repleta de sons ainda desconhecidos: por

isso uma prática da escuta que anteceda aos costumeiros falatórios.

6

2 - JUSTIFICATIVA

A importância desse relatório para as Ciências da Educação e/ou

Ciências da Saúde é movimentar uma espiral de auto formação que pede certa

inovação, respeitando a tradição; que traz a individualidade, sem deixar de

iluminar o coletivo e; que acolhe a diferença, ao mesmo tempo em que eleva a

igualdade entre as pessoas. Estas contradições ampliam a prática docente e

torna as comunidades educativas como gestoras de suas próprias histórias.

Caminhou-se na certeza de que os polos da teoria e da prática

necessitam de certa elasticidade conceitual que convirjam às vivências de bem

estar, tão urgentes nas relações humanas, numa tratativa de responder e

compreender o porquê é necessário perceber o autocuidado como um agir

essencialmente inato do ser humano. Foi um exercício interdisciplinar

concentrado na coerência entre os discursos e as práticas dos Projetos

Políticos Pedagógicos ou das Políticas Públicas de Educação, e também da

Saúde, colocando-os para dialogar entre si.

Com a elaboração de uma metodologia colaborativa do cuidado ao

humano capaz de desmistificar a escola atual como local de extremas

violências ou fracassos, esse relatório iluminou as situações de paz e

solidariedades cotidianamente presenciadas, mas pouco noticiadas pelos

canais midiáticos. Foram pensados em indicadores do cuidado e da escuta a

partir das narrativas dos docentes durante as vivências, para além da leitura

descritiva dominante, pois segundo GRONDIN:

“Entender no significa compreender y dominar. Es como el respirar y el amar: no sabe uno a ciencia cierta qué es lo que nos mantiene en ello y de donde viene el viento que hace fluir vida en nosotros, pero sabemos que todo depende de ello, y que nosotros no dominamos nada” (GRONDIN, 2003, p.42).

7

Como apresentado na proposta de pós-doutoramento no final de 2013,

as justificativas abordavam apenas a formação do docente da Educação

Profissional na arte do cuidado, mas durante o percurso cronológico dos

últimos 15 meses, esses levantamentos qualitativos se expandiram e tornaram-

se aderentes para os professores da educação básica pública também.

Essa expansão se deu porque muito dos debates e encontros

pedagógicos sobre o cuidado foram gestados há quatro anos, principalmente

com as parcerias pelo campo da saúde e medicina, dinamizando o conceito de

cura como metáfora descrita cientificamente na defesa do doutorado em

Educação: Currículo, em 2009, compartilhado com Ricoeur, 1994, p.10:

“produzir metáforas bem, dizia Aristóteles, é perceber o semelhante”.

O período de 2014 e 2015 foi marcado pela adoção das práticas da

escuta vindas da filosofia, sociologia e pedagogia mediante as experiências

entre os profissionais da educação e da saúde com claros objetivos de

aproximar a saúde da escola na promoção de comunidades mais saudáveis.

Todos os relatos foram descritos nos diários de bordos1 dos participantes das

vivências com objetivo de legitimar na escrita os sentidos do humano. Outro

viés praxiológico desse período foi à ação preventiva de uma didática

construída coletivamente entre o pesquisador e seus grupos, dentro dos

princípios sociológicos de reconhecimento e formação, desconstruindo uma

docência que opta pela didática unilateral postulada pelo autoritarismo e

distante das demandas sociais.

1 O diário de bordo é composto por um caderno de 50 páginas, com ou sem linhas, e com imagens ou textos colados. O (a) aluno (a) é convidado (a) a redigir suas descobertas em cada aula de maneira anônima, deixando seus escritos para os (as) alunos (as) de outras turmas. Assim desenvolvemos a importância do registro e seu compartilhar.

8

Daí temos as teorias e os teóricos que formaram o constructo basilar

desse trabalho, entre eles Axel Honneth em sua “luta por reconhecimento”

(2003); o filósofo da fenomenologia Paul Ricoeur com seu “percurso do

reconhecimento” (2006); ou ainda do pedagogo René Barbier com o conceito

de “escuta sensível” (1996), incluindo os estudos sobre a “interdisciplinaridade”

de Ivani Fazenda (1993, 2006, 2012). Outros autores como Leonardo Boff,

Jean Grondin, Jiddu Krishnamurti e Dulce Huf subsidiaram as práticas da

escuta e as vivências do cuidado na formação docente, agora não exclusivo ao

do ensino profissionalizante, mas também aos profissionais da saúde e aos

professores, coordenadores pedagógicos, diretores, secretárias e agentes da

educação básica, em seus ciclos formativos.

Inicialmente foi percebido que, durante uma formação de adultos, toda a

atividade lúdica precisa ser caracterizada como um convite ao grupo, sem

causar constrangimentos, ou seja, em qualquer dinâmica de grupo que envolva

jovens ou adultos, é necessária evitar a obrigatoriedade, a intimidação e a

infantilização. Como um convite, as situações que provocam a vexação devem

ser excluídas da didática da formação de docentes, o que Honneth nos diz: “a

vexação tenta reproduzir a forma alemã krankung (também humilhação,

ofensa), que remete ao termo krank (doente, enfermo) e seus derivados”.

(HONNETH, 2011, p. 218)

Portanto, o reconhecimento, a escuta, a interdisciplinaridade e a

aprendizagem colaborativa formam a base para uma pedagogia do cuidado,

estabelecendo novas roupagens à didática atual na formação de professores e

nos diálogos permanentes com os profissionais da saúde, como demonstrado

no diagrama abaixo:

9

DIAGRAMA DA ARTE DO CUIDADO E DA ESCUTA

Para que haja uma movimentação orgânica entre os conceitos do

diagrama, as pessoas precisam ser convidadas a refletir sobre suas jornadas

de reconhecimentos, pois é sabido que desde 1960 iniciou-se um movimento

de reunificação das ciências e dos campos disciplinares com claros objetivos

de diálogos e intercâmbios. O cuidado é vivido e não decorado quando as

pessoas se movimentam para dentro de si mesmas, e que para FOUCAULT:

“Ninguém pode cuidar de si sem se conhecer. O que nos tinha

colocado na pista de uma coisa interessante, que era que o tal

princípio, para nós tão fundamental, do gnôthi seautón (do

conhecimento de si) repousa em e é um elemento do que é

fundamentalmente o princípio mais geral, a saber: cuidar de si

mesmo.” (2010, p. 43)

•APRENDIZAGEM COLABORATIVA

•PRÁTICA INTERDISCIPLINAR

•RECONHECIMENTO•ESCUTA

Percurso formativo

Cuidado de si

Cuidado do outro

Cuidado da escola

10

Para que o ciclo de cuidados (de si, do outro e da escola) seja ativado,

faz-se necessário estabelecer alguns vínculos articulados com as práticas e

experiências docentes. Ao iniciar um percurso formativo, a escuta precisa ser

acionada, diferentemente ao ato de ouvir, escutar é estimular todos os sentidos

para compreender o entorno. Acontece que ao movimentar o cuidado de si, é

importante que as jornadas de reconhecimentos sejam lançadas como

questões vitais: o que é para mim o reconhecimento? Como entender os

princípios de autoreconhecimento? Como reconhecer no outro as minhas

próprias expectativas?

Na ativação do cuidado do outro, são estabelecidas as bases

colaborativas das ações formativas. E assim, o cuidado da escola se completa

com os sentidos e as práticas da interdisciplinaridade na promoção da

aproximação dos campos da Educação e da Saúde, num ato de respeito e

generosidade.

11

3 - OBJETIVOS

Geral

Buscar um diálogo franco e interdisciplinar que aproxime a Saúde da

Educação, estabelecendo mecanismos eficazes para a implantação de

ambientes saudáveis que dinamize os atuais desenhos de formação docente,

numa tratativa de responder a pergunta: Como formar professores da

Educação Básica na perspectiva da interdisciplinaridade e do cuidado ao

humano?

Específicos

Estabelecer uma relação crítica em torno do cuidado ao humano nas

equipes da escola ou da clínica

Elaborar uma metodologia com alicerces da arte do cuidado e da escuta

na formação do docente da educação básica

Desmistificar a escola atual como local de violências ou fracassos,

evidenciando as situações de paz e solidariedades

Aproximar os conceitos e práticas da área da Saúde para a escola e a

formação docente

4 - METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa prática de abordagem qualitativa que busca a

sistematização dos processos formativos do docente da Educação Básica

durante suas formações pelas vivências do cuidado e das práticas da escuta.

Tem como modalidade a pesquisa de campo onde os fatos são observados

tal como ocorrem, sem isolamento ou controle das suas variáveis, porém

estabelecendo as relações vivenciadas entre os conceitos apresentados e seus

impactos via narrativas de seus participantes.

12

5 - DISCUSSÃO E RESULTADOS

5.1 - Pontes entre a Educação e a Saúde: uma questão vital

Falar de cuidado é compreender a incompletude da própria vida, eis um

desafio dos pesquisadores em Ciências da Educação: recriar suas

investigações para além da razão que tende às fixações blocadas e episódicas

da realidade social. É urgente uma pesquisa fluida por leituras diferentes

daquelas postas nas ciências naturais. Investigar a escola é não ater-se na

hierarquização das evidências ou categorizações, mas sim deixar-se levar

pelas dinâmicas dos espaços comunitários.

Por isso que as narrativas de autoconhecimento e reconhecimentos

mútuos entre os participantes desse relatório ampliaram suas escutas envoltas

de ousadias e desprendimentos. Notou-se que o silêncio não é mera

prostração diante da vida, mas a ativação da força inata que nos faz

compreender que toda a palavra tem efeito de intervenção social, e carrega um

alto grau de intencionalidades, pois quando se fala, traz-se um encadeamento

de ideias e ideologias.

A sala de aula foi escolhida como lugar de convergências de práticas

interdisciplinares. Para os gregos, “medicus” é aquele ou aquela que cuida da

saúde de alguém, e para os mesmos gregos, o “paidagogós” é aquele ou

aquela que guia o saber do outro, então a elaboração de uma arte do cuidado

ampara ambos os territórios como num jogo de espelhos.

A pedagogia pode abraçar o cuidado quando reaprendermos que nosso

corpo dá sinal de fadigas ou estresses e onde o tempo de descanso for

considerado como uma prática de qualidade de vida, e não de ociosidade ou

13

“vagabundagem”. É preciso dialogar sobre as questões vitais que movem

nossos organismos, seja o próprio corpo físico ou o corpo político.

É preciso quebrar os paradigmas de que a arte do pensar esteja fixada

num determinado estrato social ou econômico de nossas atuais sociedades,

onde para muitos basta apertar parafusos e seguir normas, sem garantir-lhes o

tempo ao ócio, à descontração e ao entretenimento. A escola, ou “scholé” para

os gregos, é o local do ócio. Um ócio que renova o espírito, permite a prática

da crítica e autocrítica, e reorganiza a saúde do corpo físico. Só conseguiremos

acolher os diferentes e exercitar a tolerância dentro das escolas ou clínicas

quando acontecer uma simbiose entre o discurso e a prática educativa.

A pedagogia pode ser curativa quando conseguirmos amenizar os

choques entre as culturas familiares e populares diante da cultura escolar, essa

última teima em impor alguns regulamentos sem discutir seus sentidos ou

propósitos para com sua comunidade discente, pois “el hombre culto es aquel

que está dispuesto a conceder vigencia a los pensamientos de otra persona”

(GRONDIN, p.49, 2003).

A formação docente pede a simplicidade didática sobre a sofisticação

metodológica ou curricular de uma sociedade apressada que excede em

parafernálias high tech. Utilizar a tecnologia a favor da escola é bem-vinda,

mas isso não pode impedir que as histórias de vidas fiquem encobertas nas

estruturas (in) disciplinadas do currículo. Que tal uma tecnologia da escuta para

a escola ou a clínica? Ou uma pedagogia do cuidado no ato de curar ou

ensinar? A Saúde e a Educação confirmam sua interdependência ao apoiar-se

num design interdisciplinar como um caminho comum, um estar-entre, e em

movimento constante.

14

5.2 – A tríade do cuidado de si, do outro e da escola

O cuidar de si e do outro foi apresentado na defesa do doutorado em

2009, e utilizado como uma metáfora conduzida pelo autor onde ficou

estabelecido um dos fundamentos da cultura de paz dentro das escolas, bem

como as diferentes formas de capacitar os professores no início do século XXI,

diante da pergunta A EDUCAÇÃO CURA AS PESSOAS?

Num movimento de expansão do itinerário de pesquisa do doutorado, o

‘cuidar da escola’ foi adicionado à pesquisa de pós-doutoramento a partir de

experiências vividas entre 2010 e 2015, com destaque às ações em outros

territórios do saber com objetivos de concretizar uma interdisciplinaridade que

chama pela ousadia e repousa nos paradoxos dos atos de educar e aprender.

A saúde é chamada a habitar a escola e suportar as demandas sociais

da atualidade, por isso desenvolver um corpo docente capaz de compreender

os reflexos da vida moderna em suas salas de aulas numa ação terapêutica.

Num estabelecimento de diferentes vínculos com o foco no design curativo.

Religar os dois campos do saber é efetivar as culturas da paz rumo a

qualidade de vida no trabalho escolar ou clínico, pois se percebe que os

ambientes saudáveis sedimentam a base para uma sociedade sustentável.

Mas, aonde mora o cuidado?

O cuidado foi mudando de agentes ao longo dos tempos, por exemplo,

na Idade Média (entre o ano 1.000 até 1.500 d.C) eram as famílias e a própria

comunidade que cuidavam das pessoas ditas “loucas, doentes ou pobres”.

Inclusive os hospitais não tinham como prioridade a cura de enfermidades ou

15

mesmo a presença de médicos, mas eram pontos de referência para

andarilhos e pedintes que necessitavam de abrigo e alimentação gratuita. A

igreja também se incumbia de recebê-los sob as diretrizes da misericórdia

divina na Terra.

No século XIX, com o advento da industrialização e com o êxodo urbano

em massa, viu-se o crescimento de estabelecimentos que cuidavam dos

doentes para intervenções médicas. Os hospitais alteraram sua razão primeira

(na Itália eram os ‘hospedales’ que cuidavam das pessoas) iniciando o ciclo de

institucionalização do cuidado, somado a entrada de profissionais para esse

atendimento: médicos, enfermeiros, psicólogos e, por fim, assistentes sociais.

Tudo para receber o necessitado que precisava de tratamentos numa

sociedade de “desconhecidos” espalhados pelas cidades que prometiam

empregos e modernidades a qualquer custo.

Assim, o cuidado para com essas ‘pessoas estranhas’ passa para

terceirizados técnicos das áreas de enfermagem, psicologia e assistência

social, num movimento de intensas transformações político sociais. Aqui uma

breve analogia quando as escolas recebem os novos alunos em cada turma no

início do ano letivo. Faz-se necessária uma didática capaz de acolhê-los?

Como é comumente observado nas falas de alguns profissionais da educação:

como posso cuidar dos filhos dos outros? De gente ‘estranha’?

Dialogar e valorar as práticas entre os profissionais da saúde sobre a

arte do cuidar para além das clínicas e hospitais é reconduzir a escola como

um local de acolhidas terapêuticas e interdisciplinares rumo a uma educação

de empoderamentos. Soma-se a tudo isso uma revisão do conceito do cuidado

enraizado no RECONHECIMENTO pelo viés filosófico de Paul Ricoeur e no

viés sociológico Axel Honneth. Não basta escutar o que é o cuidado, mas

centrar-se no cuidado ao escutar a si mesmo e as outras pessoas em suas

lutas por reconhecimentos.

16

Quando focamos no primeiro elemento da tríade – o cuidar de si –

somos lançados às descobertas dos sentidos pessoais, reconhecendo os

movimentos de dentro para fora, pois aprendemos com Heidegger:

“Para onde se dirige ‘o cuidado’, senão no sentido de reconduzir o homem novamente para a sua essência? Que outra coisa significa isto, a não ser que o homem (homo) se torno humano (humanus)? Deste modo então, contudo, a humanitas permanece no coração de um tal pensar; pois humanismo é isto: meditar e cuidar para que o homem seja humano e não desumano, inumado, isto é, situado fora da sua essência.” (p. 17, 2005)

Assim se estabelecem as reflexões num percurso introspectivo revelador

dos símbolos inertes em cada um de nós na ânsia pela vida. E imediatamente

surge outro questionamento: somos capazes de criar vínculos de cuidados

entre nossos desejos diante das expectativas alheias?

A vivência de cuidar de si traz uma capacidade de recuperar os saberes

e fazeres ainda fragmentados pela pressa e pela hiperespecialização das

ciências. Necessitamos de ensaios diários para a compreensão do que somos

e de como comunicamos nossa singularidade do agir.

A partir disso chamamos o segundo ator da tríade, o cuidar do outro.

Esse é um movimento de ‘mão dupla’, pois somos provocados de fora para

dentro e reagimos de dentro para fora. As atitudes de desapego e ousadia se

constelam no sentido de encontrar-se com o mundo do outro, e apreender com

ele. A chave movida nessa ação é a humildade diante do saber alheio. Cuidar

do outro é abrir-se para a escuta e para a espera, intencionalmente. Escutar

para além de ouvir e esperar para além de ausentar-se. Aqui a espera é

vigiada e a escuta é atenta, o que para FOUCAULT (2010, p. 43): “em outras

palavras, não se pode cuidar de si mesmo, se preocupar consigo mesmo sem

ter relação com o outro”.

17

Quando vivemos o terceiro e último ato da tríade, o cuidar da escola,

trazemos para reflexão o ato de olhar o impacto de nossas ações no meio

profissional. Palavras e intenções precisam transbordar de compaixão e

silêncios, como nos ensinou o médico François Xavier Bichat, no século XVIII,

“a saúde é o silêncio dos órgãos”, num exercício que apazigua a ansiedade e

os falatórios.

No percurso da tríade do cuidado deparamos com um dinamismo para

além das disciplinas ou ciências com tendências de claustros. Reconstruímos

nossa consciência humana nos processos curativos pela plenitude da

complexidade humana, ativadas diante do saber e do conhecimento.

5.3 - Contradições pedagógicas numa escola que cuida

“Vejo o vale do Anhangabaú e o cheiro de fogueira no preparo do alimento do morador de rua. Pessoas nos estranhavam. Talvez porque usávamos singelos cadernos ao invés de smarthphones.”

(Relato de um coordenador educacional durante o Circuito das Cidades Educadoras, 2014)

Observou-se nos últimos dois anos a importância da escuta que trata o

outro com respeito e dignidade. Esse foi o fundamento da arte do cuidado, da

abertura à escuta atenta e da construção coletiva das aulas que se constituíam

dentro de estruturas disciplinares. A compreensão do intervalo silêncio-palavra

é que motivou as pessoas a participarem ativamente da expansão do conceito

de cuidado e a entenderem que o movimento ‘eu-outro-escola’ forma a base de

uma pedagogia curativa. Assim, o diálogo se estabeleceu durante as aulas,

criando sentidos para os grupos, pois ratificamos com NICOLESCU:

“Podemos realmente dialogar? Cada pessoa tem seus pré-

julgamentos, suas convicções, suas representações

subconscientes. Quando duas pessoas tentam se comunicar,

inevitavelmente há um confronto: representação contra

representação, subconsciente contra subconsciente.”

(NICOLESCU, 2014, p. 305)

18

Dentro de um cenário carregado de contradições, pois historicamente a

escola se afastou da clínica e a educação desmembrou-se da saúde, esse

relatório traz uma linha investigativa centrada no cuidado ao humano com a

abordagem interdisciplinar. Há pontos de convergências capazes de mobilizar

as pessoas para (re) pensarem uma escola que cotidianamente se transmuta.

Estudar é, cada vez mais, a entrada ao mundo do trabalho para muitos

jovens e adultos, mas a formação discente pede tempo aos excessos

corporativos de capacitações estandardizadas. Por exemplo, alguns

professores relataram que há jovens buscando em seus itinerários formativos

uma velocidade que bloqueia a crítica, priorizando uma praticidade descolada

da cidadania e da solidariedade, o que os condiciona a “não-habitar” a

autonomia e a corresponsabilidade em sua formação. Para isso é preciso

equalizar uma metodologia educativa com o tempo de compreensão do ser

humano que se constrói a cada segundo, por isso a experiência de viver a arte

da escuta como a base de uma educação duradoura que transforma as vidas

nas comunidades.

Os públicos investigados no conceito do cuidado são: de um lado os

docentes e equipes administrativas de uma Instituição de Educação

Profissional, e de outro lado os professores, diretores, coordenadores

pedagógicos, secretárias e agentes escolares da Diretoria Regional de

Educação na cidade de São Paulo, bem como os agentes da área da Saúde.

No intuito de contextualização do público da Educação Profissional, faz-

se importante recorrer à história, onde foi evidenciado que o ensino

profissionalizante tem como premissa a entrada ao mundo do trabalho, bem

antes do século XIX:

19

Desde que o Príncipe D. João chegou ao Brasil, em 1888, foram criados

os primeiros cursos superiores não teológicos e os colégios das fábricas, que

podem ser considerados o início de um sistema de educação para o mundo do

trabalho. Um momento relacionado à escravidão. Com a Constituição de 1891,

oficializou-se a divisão entre a educação da classe dominante e a educação da

classe dominada – o povo, entre o trabalho intelectual e o trabalho manual. A

elite era preparada para o trabalho intelectual, enquanto os demais estavam

fadados ao trabalho braçal, repetitivo e às submissões fabris: um mecanismo

de controle e disciplina.

Na década de 1920, uma série de debates sobre a expansão do ensino

profissional, promovida pela Câmara dos Deputados, daria uma nova tônica à

questão ao propor a extensão do ensino profissional a ricos e pobres, e não

apenas aos “desafortunados”. (Referenciais para a Educação Profissional do

Senac, 2004, p. 19). Em 1931, o Decreto Federal nº 20.158 organizou o ensino

profissional comercial e estruturou os cursos profissionalizantes em âmbito

nacional. Percebe-se ainda que não havia uma formalização da educação

profissional. Para Gomes e Marins (2004, p. 37):

“Foi apenas na Constituição de 1937 que a educação profissional se viu pela primeira vez contemplada, ao ser reconhecido, através de documento oficial, o trabalho manual como parte da educação.”

Na Constituição de 1937 que se tratou pela primeira vez das escolas

vocacionais e pré-vocacionais como dever de Estado, que deveria ser

cumprido com a “colaboração das indústrias e dos sindicatos econômicos”

(classes produtoras), aos quais caberia “criar na esfera de sua especialidade

escolas de aprendizes, destinadas aos filhos de seus operários e associados”.

Nos anos 1940, Gustavo Capanema inicia a reformulação da educação

brasileira, a POLÍTICA CAPANEMA, com a criação do Senai (1942), e do

20

Senac (1946), devido a uma forte demanda de mão-de-obra para a indústria e

para o comércio.

Em abril de 1999, em Seul, na Coréia, aconteceu o segundo Congresso

Internacional sobre o Ensino Técnico e Profissional, organizado pela Unesco,

visando a renovação do ensino técnico e profissional (EPT), abordando a

questão do trabalho e outros desafios socioeconômicos dos primeiros anos do

século XXI. O resultado deste Congresso foi um conjunto de recomendações

sob o título: “O Ensino e a formação técnico profissional: uma visão para o

Século XXI”, exemplificado a seguir:

“[...] a globalização e a revolução das tecnologias de informação e de

comunicação mostram a necessidade de um novo modelo de

desenvolvimento centrado no ser humano. Nós concluímos que o

ensino técnico e profissional, parte integrante da aprendizagem ao

longo de toda a vida, tem um papel decisivo a desempenhar nesta

nova era porque ele constitui um instrumento eficaz para realizar os

objetivos de uma cultura da paz, do desenvolvimento sustentável do

ambiente, da coesão social e da cidadania internacional.”

Atualmente são evidenciadas diferentes competências profissionais para

assumir os postos de trabalho do mundo corporativo e industrial em constantes

transições, mais precisamente no campo da educação e da formação de

professores. Daí uma ampliação na formação dos docentes da Educação

Profissional a partir do ano 2000, com a expansão da oferta de vagas para os

alunos vindos das mais diversas camadas socioeconômicas, em todo o

território nacional, via Políticas Públicas de Inclusão Social para toda a Rede

Federal de Educação Profissional.

Desde 2010, a questão apresentada nas atividades pedagógicas com os

docentes da Educação Profissional numa Instituição do Estado de São Paulo

foi: As dimensões do cuidado na Educação, e não teve como objetivo o

tratamento físico ou medicamentoso, mas estava envolta em intervenções

educativas que impedem às “mortes sociais”, segundo HONNETH, pois

21

“Nos estudos psicológicos que investigam as sequelas pessoais da experiência de tortura e violação, é frequente falar de ‘morte psíquica’; nesse meio tempo, no campo de pesquisa que se ocupa, no caso da escravidão, com a elaboração coletiva da privação de direitos e da exclusão social, ganhou cidadania o conceito de ‘morte social” (HONNETH, p. 218, 2011).

E, assim aconteceu durante as intervenções pedagógicas com os

docentes e equipes administrativas durante o período de 2010 a 2013, onde as

pessoas conseguiram parar com seus tempos corporativos para refletir sobre o

cuidado de si, do outro e da escola, com mais de mil funcionários. Em cada

encontro, muitas descobertas interdisciplinares; em cada fala, um único

objetivo: repensar as práticas e alinhar os discursos. E em cada silêncio, uma

presença unificante e sagrada para cada integrante daquelas rodas de

conversas.

Em 2014 e 2015 deram-se efetivamente novos encontros com a

exploração do potencial educativo das cidades, ou seja, ao estudar a Carta das

Cidades Educadoras, escrita em 1999, na cidade de Barcelona, as práticas do

cuidado romperam as paredes das salas de aulas e ‘invadiram’ três cidades do

Estado de São Paulo. Essas atividades ocorreram com mais de 240

coordenadores educacionais do Senac São Paulo em três cidades: Araraquara,

São José dos Campos e a capital.

É possível afirmar que o ato de professar tem como base a mediação

dos processos de aprendizagens com características compartilhadas,

respeitando a crescente necessidade de abertura para o diálogo e a construção

da aula “com” os alunos, e não “para” eles. Por exemplo, os temas como

sustentabilidade, saúde, formação e didática adquirem importância no currículo

escolar quando envolvemos os alunos na compreensão dos impactos da ação

humana nos ambientes artificiais ou naturais.

22

O poder da escuta para além da sala de aula

Viu-se uma ampliação do conceito de cuidado que se deslocou da

formação individual intramuros para o cuidado das cidades com seus fascínios

e desgastes, trazendo a Proposta Pedagógica Institucional da Escola de

Educação Profissional para as demandas sociais de cada município submersos

em histórias de vidas, pois segundo JOSSO, 2012, p. 22:

“Esse conhecimento de si não se especializa em um ou em vários dos registros das ciências do humano; tenta, pelo contrário, apreender as suas complexas imbricações no centro da nossa existencialidade. Procura, pois, envolver os nossos diferentes modos de estar no mundo, de nos projetarmos nele, e de o fazermos na proporção do desenvolvimento da nossa capacidade para multiplicar, alargar, aprofundar as nossas sensibilidades para nós mesmos e para o mundo, para questionar as nossas categorias mentais na medida em que se inscrevem numa historicidade e numa cultura.”

Todos os participantes dos circuitos da escuta pelas cidades que

educam deixaram seus registros em livros comuns conhecidos como diários de

bordo, resultando num livro virtual que foi publicado em março de 2015. E suas

narrativas formaram um misto de história, de cidadania e de olhares nas

cidades, e assim, o conceito salta do campo teórico, e desponta para uma

prática colaborativa e repleta de sentidos, o que vimos no relato de outro

coordenador educacional durante o circuito das cidades, em 2014, dizendo “A

arte de rua invade os monumentos clássicos. Quem vive ali apropriou-se de

seu espaço. Sendo sua casa, fizeram sua própria decoração.”

Segundo a carta das cidades educadoras, temos como princípios:

Trabalhar a escola como espaço comunitário

Trabalhar a cidade como grande espaço educador

Aprender na cidade, com a cidade e com as pessoas

Valorizar o aprendizado vivencial

Priorizar a formação de valores

23

A vivência da escuta nas cidades

Entendemos que não é possível falar de autonomia na aprendizagem ou

dos princípios cidadãos com os alunos e docentes sem que percebamos as

influências das cidades e dos modos de convivência externos aos muros da

escola. Assim, durante as reuniões de 2011 e 2012 com docentes e equipes

administrativas da Educação Profissional, houve uma leitura crítica das

Diretrizes das Práticas Educacionais (documento oficial da escola), e até esse

momento a cidade permanecia “do lado de fora”, externo aos nossos

propósitos de buscar respostas as demandas internas.

A primeira observação levantada nessa pesquisa foi que a presença de

um representante da biblioteca pudesse provocar mudanças tão significativas

no modo como eles lidavam com o espaço e com os alunos, que a biblioteca

começou a se abrir para a cultura, para os sons e para outros projetos que

ainda não habitavam esse local apenas “silencioso”.

Em 2013 foi decidido ‘invadir’ outros lugares para além das Unidades da

escola de educação profissional, e por isso nos ancoramos no conceito de

Cidades Educadoras. Todas as reuniões2 aconteceram em espaços públicos

ou cedidos, onde nosso grupo se misturava com os transeuntes e pedestres

quando construíram suas maquetes sobre as Diretrizes. Nesse ano não

apostávamos nos registros escritos, apenas imagens e depoimentos dos

participantes.

Em 2014 foi desenhado um circuito que passasse por pontos das

cidades (São Paulo, São José dos Campos e Araraquara) intencionalmente

selecionados para que as pessoas percebessem a cidade em movimento, com

2 Biblioteca Monteiro Lobato – SP; Biblioteca Mário de Andrade – SP; Parque da Água Branca – SP; Salão do Instituto Dom Bosco - SP; Pinacoteca do Estado - SP; Parque da Cidade – São José dos Campos; Escola Maria Peregrina – São José do Rio Preto.

24

todas as suas mensagens e realidades, e segundo Fazenda “escrever é

inscrever-se na vida.” (2013)

Na cidade de São Paulo foi usada uma sala de aula do Instituto

BOVESPA-BMF, que fica em frente ao Vale do Anhangabaú, centro da cidade.

Deixamos o período da manhã para o circuito silencioso, e solicitamos aos

participantes que registrassem tudo que eram afetados ou instigados.

Passamos pelo Vale, depois pela Praça Ramos de Azevedo, o Teatro

Municipal, Praça das Artes, Rua São João e Palácio dos Correios.

Em São José dos Campos ocupamos uma sala da Secretaria Municipal

do Meio Ambiente, dali partimos para o circuito pelo Parque da Cidade,

incluindo uma visita à casa do arquiteto Olivo Gomes e ao Museu do Folclore,

além das belas vistas dos jardins do Parque.

Em Araraquara foi a vez de utilizar o Palácio das Rosas, construída em

1951, no centro da cidade, onde partimos num circuito pelo Mercado Municipal,

Museu Ferroviário, Praça da Matriz e a Igreja Central. Vale ressaltar que todos

os lugares foram intencionalmente selecionados para que provocassem o

grupo a repensar a importância das cidades na Proposta Pedagógica da

escola.

Com duas horas de duração, os participantes registraram nos diários de

bordo as suas impressões em frases, traços ou desenhos, pois a memória foi

acionada o tempo inteiro. Momentos de singeleza e legitimidade da expressão

de seus autores. Alguns relatos dos coordenadores educacionais

demonstraram a importância de uma intervenção educativa pela arte do

cuidado e na prática da escuta:

“Das escutas do eu! A gente não se ouve, não se lê,

não se fala e nem se vê! A gente olha os outros, mas

25

não quer ver, que no outro existe o seu ser! É no outro

que residem as minhas tentações, minhas causas,

medos, escolhas e frustações. A cidade sou eu, a

escola sou eu, as ruas e os espaços são meus; mas

meus erros, ações, gestos, palavras e emoções quase

sempre não são meus. Meus olhos e ouvidos não são

meus! Precisam ser meus!”

“As estátuas sempre geladas. Observam docemente.

Do alto os anjos tentam proteger. Os bêbados, os

insanos. Enquanto isso os cupidos por sua vez.

Preparam as flechas certeiras. Vi uma mulher com ar

de apaixonada!”

“Eu vi? Quem eu vi? Eu percebi? O que percebi? O

velho. O homem de rua. O idoso. O pobre. A criança. O

futuro assaltante. O agressor? Eu ou Ele?”

“O que é a arte? Observamos lares em meio ao jardim.

Tanta beleza guardada para poucos. Mesas reservadas

ao som do fogo no réchaud é o mesmo da fogueira que

espanta o frio dos moradores da praça.”

“Quadrados ou redondos. Opacos ou translúcidos. De

que tipo você é? Que forma você tem? Se te enxergo

por inteiro. É porque você é feito de pedaços. Às vezes

translúcidos, às vezes, opaco. Às vezes redondo, às

vezes quadrado. Você é o que é. E eu te vejo como

sou!”

“Ir além das paredes da escola, enxergar através das

janelas, romper limites... O que há lá fora pode haver

também aqui dentro? As pessoas que caminham por aí

podem ser as mesmas que recebemos em nossa

escola?”

“Uau, quanto barulho! Ouço barulho de obra e vejo

muitas pessoas andando de um lado para o outro. O

menino de cabeça baixa, a mulher correndo e as

crianças andando rápido... e no final? Dois pássaros

comendo um mamão.”

Assim como experimentamos a escuta de si e do outro, escutar a cidade

e seus cidadãos contribuiu para a concretização do ato de ensinar e aprender,

rumo ao bem-estar da sociedade. Assim aconteceu na vivência pelas cidades

26

que educam, repleta de intencionalidades e aberta à AUTONOMIA, onde os

relatos foram livres partindo das provocações causadas pelos sons, vozes,

cores e aromas em ambientes externos, ora limpos, ora mal tratados. Segundo

o Dicionário Aurélio, AUTONOMIA é uma “aptidão ou competência para gerir

sua própria vida, valendo-se de seus próprios meios, vontades e/ou princípios”.

5.4 - Vivendo os paradoxos de uma clínica que educa

O que ficou evidenciado na construção dialética entre a Saúde e a

Educação é que a aceleração do modo de vida das pessoas as desloca de

suas percepções vitais, por exemplo, a pressa no ato de se alimentar tende aos

problemas gástricos, originando a automedicação, que pode causar mais

problemas. A ideia colocada durante as vivências foi a de aprender-com,

superando certa unilateralidade didática, principalmente quando “enchemos” os

alunos de coisas que obstruem o pensar autônomo, o que chamamos de

mesmices pedagógicas.

Sendo essa pesquisa fundamentada na arte da escuta com abordagem

interdisciplinar, há uma revisão urgente no excesso das especializações e

individualismos para “além do simples monólogo dos especialistas ou do

diálogo paralelo entre dois dentre eles, pertencendo a disciplinas vizinhas”

(JAPIASSU, 1976, p. 74-75). Pensar e repensar a formação de pessoas não se

limita as vivências dessas metodologias, mas assenta-se num período histórico

de revisão do homem em relação ao mundo e aos outros homens.

Estabelecida por uma parceria com um Instituto de Ensino Médico na

cidade de São Paulo, a arte da escuta ganhou destaque durante duas

intervenções educativas juntos aos alunos de pós-graduação em 2014, sendo a

maioria de formação em medicina e atuantes na profissão.

27

Os registros produzidos durantes as vivências da escuta foram postadas

nos diários de bordos dos alunos, e posteriormente apresentados como uma

ata redigida de maneira colaborativa, apresentada abaixo:

A vivência da escuta na área médica

No Workshop da Escuta ocorreu durante seis horas distribuídas em três

momentos (fevereiro, agosto e outubro), onde foi compreendido (um pouco) a

singeleza do ato de escutar estritamente ligada a uma diferente postura diante

da vida. Isso nos demandou outros focos de atenção e atuação. Segundo René

Barbier, a tríade DIREÇÃO-SIGNIFICAÇÃO-SENSAÇÃO fundamenta-se na

ação humana para a escuta sem preconceitos, pois escutar é mais do que

ouvir, como disse o educador Rubem Alves, durante uma conferência em 2002:

“O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de

maneira calma e tranquila. Em silêncio. Sem dar conselhos.

Sem que digam: ‘Se eu fosse você’. A gente ama não é a

pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só

é bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta.”

Por isso é preciso reforçar a sutileza que se constela na escuta entre as

pessoas, e delas para o mundo que as direciona ao imediatismo das respostas

e opiniões. Aprendemos assim! Dê opiniões ao máximo que puder, e assim

estará em evidência. Experimente entrar numa reunião e ao ser demandado

para um posicionamento, diga: um momento, deixe-me pensar! O que

aconteceria?

Vivenciar a escuta nos reposiciona à presença meditativa, segundo

Barbier (2002), já que a escuta “começa por não interpretar, por suspender

todo julgamento.” Assim, no intuito de aproximarmos o discurso com a prática

cotidiana da clínica ou do consultório, e quiçá, o da escola, trabalhamos

28

durante três aulas, descritas em atos, onde movimentamos os saberes, os

fazeres, as memórias e os sentidos. Alunos e alunas, como acredito que toda

obra é aberta, sintam-se a vontade para complementar.

Primeiro ato: os saberes!

Partimos dos saberes existentes no campo da ESCUTA, sem

necessariamente esgotar suas possibilidades. Foram apresentados alguns

pilares da ESCUTA SENSÍVEL, por René Barbier, e também o sentido da

experiência e da PALAVRA, por Jorge Larossa Bondia. Elas (a escuta e a

palavra) compuseram nossa dinâmica e nossa melodia. Apesar da tendência

ao campo teórico, foi realizado o círculo da escuta com todos os alunos da área

da saúde.

Segundo ato: os fazeres!

No início do segundo ato foi apresentado o conceito complementar ao da

Escuta Sensível, o das CIDADES EDUCADORAS, e assim o grupo foi

convidado a refletir sobre os espaços públicos e espaços privados. E as

perguntas surgiram: Por que passamos pelas cidades e não conseguimos

vislumbrar seus cantos e encantos? Por que deixamos de ocupar os espaços

públicos como praças e coretos? Qual a nossa disponibilidade para escutar e

interagir com e na cidade? Por que deixamos todas as persianas fechadas

enquanto a cidade se apresenta iluminada e colorida do lado de fora? De quem

o do que nos protegemos?

Como a aula aconteceu no período noturno, o grupo foi convidado a

vivenciar a escuta fora da sala de aula, lá na Casa das Rosas (cidade de São

Paulo) e nos seus jardins, onde cada integrante recebeu um diário de bordo,

um lápis e uma lanterna. O silêncio foi solicitado! Após o término da visita,

29

conseguimos nos reunir na varanda do piso superior da Casa das Rosas e,

escutamos uns aos outros: simplesmente como tinha que ser! Os fazeres se

concretizaram pela disponibilidade e abertura ao novo, onde cada pessoa quis

apresentar suas sensações e significados. Tudo foi guardado em nossas

mochilas pessoais. Despedimo-nos, e pronto!

Terceiro ato: as memórias e os sentidos!

O terceiro ato ganhou status de resgate histórico, num dinamismo de

trazer em pauta aquilo que ficou em nossas memórias durante a visita à Casa

das Rosas. Redigir uma ata ou compartilhar uma experiência é demonstrar

coragem e desprendimento de cada autor. É ampliar as abordagens de

comunicação e relações pessoais. E assim, após dois meses da visita, algo

sutil permanecia na memória do grupo de “exploradores” da casa e do jardim,

num movimento “meio mágico, meio sincronicidade”. O exercício da escuta

requer reconhecimentos, pois quando “um cidadão me chamou pelo nome,

senti vontade de conversar com ele como se fosse um conhecido”, relembra

um aluno. E complementa: “a casa me obriga a mover devagar”.

Para além da aula, conseguimos embarcar num aprendizado de

silêncios com aquela “sensação de não querer falar nada após a vivência”.

Aquietar-se é bem-vindo também! Os textos e contextos foram respeitados, foi

possível que “ela entrasse num dos cômodos da casa, permanecesse sentada,

e lembrasse a história da família que viveu naquele local”. A escuta pela Casa

das Rosas não era uma excursão repleta de falatórios, mas uma experiência

desconcertante ou reconfortante.

Durante esse terceiro ato na última semana de outubro, o grupo foi

recuperando fragmentos daquela vivência, trazendo “aquilo que fazia sentido”.

Uma colega reafirmou que “visitou os cantos que não estavam iluminados e

que tirou o foco das luzes. Viu lugares fechados e aparentemente

30

abandonados”. Daí a abertura às novas perguntas e insights: “Quantos cantos

que não vemos por aí?” Ou lembranças meio adormecidas: “A luz da lanterna

me tornou criança novamente, aguçou a minha curiosidade”. E aquele jeito

cientista de agir: “Por que essa casa tem o nome de Casa das Rosas e não

tem rosas? Enquanto outro aluno respondeu: “Não há rosas, mas está cheio de

botões, tem que saber olhar”.

Escute um pouco mais!

“Fiquei em silêncio enquanto uma criança visitava seu amiguinho na UTI Infantil. Lembrei-me do processo de escuta e deixei que o pequeno visitante compreendesse o momento de doença e morte iminente pela qual passava o seu amigo. E ele compreendeu.”

(Relato da aluna de pós-graduação em Bases da Medicina Integrativa)

Definitivamente a “Casa das Rosas é um lugar raro, num tempo

acelerado. O estado de presença não precisa de local específico”. E o grupo

pode perceber que o progresso teima em nos afastar das histórias, pois “aqui,

onde fica a Casa das Rosas tinha um grande quintal, era um pomar, e meu

amigo era o vizinho”. O aprendizado com sentido se apresentou quando um

aluno lembrou: “no momento da roda havia um brilho em nossos olhos.”

Quantos sons permeavam a prática da escuta, incluindo “um coral que me

emocionou. Ele ajudava a realçar a arte da casa. Estávamos todos flutuando”.

Atos de bem querer e de presença se constelaram como uma “integração entre

o moderno e o antigo; uma convivência pacífica, sem que um destrua o outro.

Um permitindo que o outro exista em sua exuberância.”

Verdadeiramente pudemos compreender as dimensões curativas da

escuta, num movimento em comunhão. Olhar o casarão, os jardins e a “arte

que nos levou ao estado de introspecção automática”, foi decisivo para

transformar teorias em práticas. E então, depois daquela visita “comecei a tirar

31

fotos de lugares que nunca tinha visto. Lugares não destacados pela correria

na cidade.”, conclui outro aluno.

5.5 - Quem cuida dos cuidadores, e quem forma os

formadores?

Pactuamos com Hipócrates que “a vida é cura, a ciência é vasta, a

oportunidade esquiva a intervenção perigosa e o julgamento difícil. Não basta

que o médico faça o que é necessário, mas o doente e seus assistentes devem

fazer o que lhes compete. E as circunstâncias devem ser favoráveis”, e assim a

educação é uma condição permanente na vida das pessoas e os ambientes

precisam ser preparados para que a saúde se estabeleça, onde os processos

de cuidar de si, do outro e do mundo de efetivam gradativamente nos dois

campos: saúde e educação.

Se pudermos definir uma essência que abrace o cuidado encontramos o

REDIRE AD COR (em latim = retorna ao teu coração) reunindo nossa

capacidade inata de cura e de autonomia. Modificados por situações

saudáveis, não temeremos o desconhecido ato do saber, pois o conhecimento

tende a nos libertar de diversas amarras, lugar em que

“Só os espíritos estreitos permanecem prisioneiros de uma perspectiva epistemológica estritamente definida. Os grandes espíritos olham por sobre os muros da sua especialidade, ávidos de abraçar vastos horizontes e de realizar no seu pensamento uma enciclopédia em estado nascente.” (Gusdorf, 1960)

A experiência do docente ou do agente de saúde não se restringe ao

tempo de sala de aula ou à prática hospitalar, mas ao desejo de decidir

permanecer aprendendo com o outro em suas histórias de vidas. E assim,

estimulados pelo diálogo fraterno e o respeito mútuo em reverência a sabedoria

do outro, abrimo-nos a escuta.

32

Em busca de uma ampliação da consciência no ato de cuidar, utilizamos

uma proposta metodológica a fim de revisitar a formação docente ou médica

diante dos paradigmas atuais, envolto de um olhar científico aceitável diante da

fragmentação do saber. Mesclam-se os aspectos de abordagem universal,

numa dança entre singular-universal, simples-complexo ou doença-saúde.

No desbravamento de alguns territórios não compreendidos pela

cegueira de nosso campo profissional estanque, carregado de especializações,

não nos abrimos para outros sons, linguagens e complexidades da nossa

capacidade infinitamente criativa de ser e agir no mundo. A prática da escuta é

uma experiência que devolve ao sujeito a sua capacidade de autoconfiança e

autocontrole sobre sua vida e sua saúde, mesmo num estado de doença,

parecido com o fundamento da Medicina Integrativa, segundo LIMA:

“A medicina integrativa propõe uma parceria do médico e seu paciente para a manutenção da saúde. Começa, assim, por colocar o paciente como ator principal no processo, como seu próprio agente de saúde”, (LIMA, 2014).

5.6 - A pedagogia da escuta como prática da formação

humana

Dentro da proposta de ampliação das parcerias e aplicação do conceito

do cuidado e da escuta na formação docente, foi realizado no 1º semestre de

2015 o curso intitulado POR UMA PEDAGOGIA DO CUIDADO E DA ESCUTA:

DIÁLOGOS E PRÁTICAS INTERDISCIPLINARES EM SAÚDE E EDUCAÇÃO,

na Diretoria Regional de Ensino da capital paulista. Em três turmas e mais de

300 profissionais da rede pública de ensino básico, envolvendo Educação

Infantil, Ensino Fundamental I e II.

33

Para as aulas foi criado um instrumento de registro dos alunos que

chamamos de diários de bordo, focando três etapas da formação: a primeira

tratou dos percursos de reconhecimento e auto-reconhecimento. A segunda

promoveu uma reflexão acerca da mudança e das fases de transitoriedades da

vida humana. E a terceira abordou a escuta de si mesmo, do outro e da escola,

com exercícios da escuta sensível desenvolvido a partir dos textos de Rene

Barbier e Krishnamurti.

Dos relatos deixados nos diários de bordos, onde era facultativa a

inclusão do nome das pessoas, viu-se que a maioria dos participantes almejava

à docência desde a infância. Um misto de doação e metas traçadas por

iniciativas próprias ou com um exemplo dentro de casa impulsionou a escolha

de professar. Palavras como entusiasmo, renovação, confiança, dedicação e

desenvolvimento perpassam os textos detalhadamente descritos durante as

vivências da Pedagogia da Escuta.

Foram apresentados os fragmentos dos textos de Paul Ricoeur, de Axel

Honneth, de Ivani Fazenda e de René Barbier, num intuito de criar uma

atmosfera básica conceitual. A partir dessa breve apresentação, as pessoas

foram convidadas a vivenciar diversas práticas de autocuidado e de escuta

atenta. A poesia promoveu o encantamento das pessoas com objetivos de

envolvimento e empoderamentos, como exemplificado em alguns relatos de

professores, coordenadores pedagógicos, diretores, secretárias e agentes da

Educação Básica:

Sobre a escuta

“Esse tempo de curso veio reforçar a importância do educador

‘escutar’ a si próprio. Buscar o equilíbrio pessoal é o início para

uma escuta mais eficiente. Só assim será possível mediar o

que surge dentro da sala de aula, em nossa vida.”

34

“Escuto e mudo ou mudo porque escuto? O que se permite ao

escutar o outro? Permitimo-nos escutar o outro? O mundo nos

permite ser escutados. Terminei esse nosso encontro com

certezas? Não! Com certeza não! Saio com milhares de

incertezas e questões. E feliz porque agora, pós-tudo... mudo.”

Sobre a mudança

“Somos seres sociais e dependentes. Dependentes uns dos

outros para o cuidado, para o crescimento, para a mudança,

para a transformação, para exercitarmos a escuta. É

necessário parar, respirar, observar, cuidar, meditar, viver...

Viver o presente, o agora. Plenamente, intensamente,

calmamente, integralmente: o dom da vida!”

“Sigo mudar/ouvindo tudo/escutando o todo/respiro tudo e o

todo/vivo agora por tudo e por todos.”

“Lembrar. Fazer lembrar diariamente que somos um espírito

em um corpo, e não um corpo com um espírito. Um espírito

ilimitado, iluminado, perfeito e cheio de potencial.”

Sobre o cuidado

“Equilíbrio acima de tudo e saber falar, conseguir ouvir.

Cuidando do outro, estou cuidando de mim (palavras do

professor). Estou me sentindo um pouco curada também.

Quem sabe, atrevo-me dizer, um pouquinho melhor como

pessoa, como professora, como eu; mas bem melhor.”

“Pude refletir sobre minha vida pessoa e profissional. Vou

tentar e espero conseguir prestar mais atenção a mim mesmo,

baixar minhas expectativas para não cair em frustrações

desnecessárias. Aceitar o outro como ele é, sem querer

transformações. Enfim, ser mais feliz!”

35

Sobre as imagens, as narrativas pedagógicas e as poesias

Haroldo de Campos, 1960

Relatividade, de M. Escher, 1967

O jantar de ontem

Sob o cair da tarde de outono entrei naquele lugar. As pessoas que conversavam no corredor principal deram-me um leve sorriso de boas-vindas. Passei por salas e jardins bem cuidados e vi muita gente caminhando pelos cômodos, como quem habita uma casa. Senti-me acolhido naquela atmosfera familiar. Durante o jantar houve falas e gestos que se apresentavam minuciosamente num misto de cores e sabores “à la pistache e docinhos de goiaba”. E assim fui me percebendo através dos olhares, das marcas e das impressões dos anfitriões, no ir e vir de expectativas e silêncios. Como um rito de passagem, notei que alguns temperos que levava na bagagem perdiam seus gostos para a ocasião. Tudo muito natural, pensei! Daí adiante, coloquei na mesma mochila outros aromas de esperança e virtudes rumo ao “querer bem”, muito parecido a leve brisa que teimava em desarrumar nossos cabelos. Sob a lua crescente me despedi daquelas pessoas e jardins bem cuidados onde amplifiquei meus sonhos. E entre as portas e corações, de-coragem-me-nutri.

36

A menina e a avó

Uma menina entrou naquele lugar perguntando à sua avó os motivos da sua terceira transferência. As duas de mãos dadas foram apresentadas à sala e aos laboratórios. Um clima de surpresa e medo tomou conta das duas. O que é muito natural, pensou a avó! A menina permaneceu por um ano recuperando-se das marcas passadas de violações e silêncios. Nesse lugar ela conseguiu reaprender a cuidar da sua saúde, e os medos e as sensações de incompetências deram passagem a confiança e a autonomia. Lugar de terapias e terapeutas. E as duas de mãos dadas não cansavam de se perguntar: Será uma escola? Talvez. Ou um hospital? Quem sabe.

37

6 – Conclusão

Nota-se que arte do cuidado e da escuta só encontram sentidos quando

as pessoas vivem suas dinâmicas intencionalmente, ainda mais quando são

trabalhadas em atividades lúdicas ou corporais. Ao tocar no tema da

importância da respiração, é preciso exercitar uma boa respiração, ou ao falar

de hábitos saudáveis, é necessário vive-los em sala de aula. Somente a

utilização de textos ou slides não garantiriam a aderência com a vida real dos

participantes das vivências entre 2010 e 2015. Assim, a aproximação de temas

que ocupam o campo da Saúde aplicados na formação de profissionais da

Educação promoveu uma transformação na cultura organizacional das

comunidades escolares ou médicas.

Esse relatório apontou para uma didática colaborativa que pede o

exercício da autoria na tríade do cuidado: de si, do outro e da escola,

independentemente se é para um professor ou um agente da saúde. Na

elaboração de uma resposta parcial à questão Como formar professores da

Educação Básica na perspectiva da interdisciplinaridade e do cuidado ao

humano? viu-se um ressurgimento pela perspectiva de reconexão entre a

saúde e a educação.

Diante dos registros nos diários de bordos, o viés prático foi chamado a

ocupar a ordem quase mercadológica de “formar sem cessar” e, muitas vezes,

sem abordar a criticidade e a autoria dos “formandos”. Não basta falar do

cuidado sem vivenciá-lo. Não é cabível desenvolver uma arte da escuta sem

aquietar-se. Respeito e ousadia em criar ilhas de paz diante do caos do

cotidiano, estabelecendo os “momentos de interrupções”, segundo BONDIA

(2002). Esses momentos trazem certa esperança e coragem para as pessoas,

as instituições e os currículos escolares. Eis o motivo da ampliação do público-

alvo inicial aos estudos de pós-doutoramento: de profissionais da Educação

Profissional para professores da Educação Básica e agentes da área da

Saúde.

38

Pela prática da escuta e com o entendimento de que a escola ou

a clínica são essencialmente curativos, é possível desconstruir o forte símbolo

de massificação e padronização emoldurada nos ciclos de formação humana.

Acreditamos que os profissionais estão prontos a acolher as múltiplas

possibilidades de ação educativa interdisciplinar, adequando linguagens e

dando chances à imaginação e ao conhecimento anunciado nas experiências

acumuladas, pois “há um reiniciar em cada encontro onde o cuidado humano é

central e movimenta todo o ciclo de liberdades e autonomias”, segundo

SCIOTTI & SOUZA. (2013, p. 8-9)

39

7 – Bibliografia

ANTUNES, João Lobo. A Nova MEDICINA. Fundação Francisco Manuel dos

Santos, Lisboa, Portugal, 2012

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro X.

Barbosa. 5ª edição. São Paulo: Perspectiva, 1990a.

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Editora Martins Fontes, São

Paulo, 2005.

BARBIER, Rene. Escuta sensível na formação de profissionais da saúde.

Ver em http://www.barbier-rd.nom.fr/ESCUTASENSIVEL.PDF . Acessado em

08/072015

______________ A pesquisa-ação. Tradução Lucie Didio. Brasília, Editora

Plano, 2002.

BOFF, Leonardo. SABER CUIDAR: ética do humano e compaixão pela

Terra. Editora Vozes, 2008

BONDIA, Jorge Larossa. Notas da experiência e o saber da experiência.

Unicamp, Jan/Fer/Mar/Abr 2002, nº 19. Ver

http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LARROS

A_BONDIA.pdf . Acessado em 14/07/2015

BRASIL, Lei Federal nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as

diretrizes e base da educação nacional – LDB. Disponível em

www.planalto.gov.br. Acesso em 14/07/2015

______ Parecer 16/99, de 05 de outubro de 1999. Documento, Brasília, nº 457,

p. 3-73. Fixa as diretrizes curriculares nacionais para a Educação Profissional

de Nível Técnico. 1999ª. Disponível em www.planalto.gov.br . Acesso em

14/07/2015

40

BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. A Construção Amorosa do Saber: o

fundamento e a finalidade da Pedagogia Simbólica Junguiana. Editora

Linear B, São Paulo, 2011.

CAMPOS, Haroldo. Galáxias. São Paulo, Editora 34, 2011

CAIRUS, Henrique F., RIBEIRO JR, Wilson A. Textos Hipocráticos: o doente,

o médico e a doença. Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, 2005.

DAHLKE, Rudiger. A Doença como Símbolo. Editora Cultrix, São Paulo,

1996.

DEPRESBITERIS, Lea. Concepções atuais de educação profissional. 3ª

edição. Brasília, SENAI/DN, 2001

DERRIDA, Jacques. Pensar a Desconstrução. Editora Estação Liberdade,

São Paulo, 2005.

FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Didática e Interdisciplinaridade. Editora

Papirus, São Paulo, 2006.

_________. Práticas Interdisciplinares na Escola. Editora Cortez, São Paulo,

1993.

FAZENDA, Ivani C. Arantes, e SOUZA, Fernando Cesar. Diálogos

interdisciplinares em Saúde e Educação: a arte do cuidar. Revista

Educação & Realidade, v. 37, n.1, jan./abr. 2012

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Editora Graal, São Paulo, 1979.

___________ O governo de si e dos outros. Editora Martins Fontes, São

Paulo, 2010.

HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. São Paulo: Editora

Centauro, 2005.

HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos

sociais. São Paulo: Editora 34, 2003

JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e a patologia do saber. Editora

Imago, São Paulo, 1976.

41

LELOUP, Jean-Yves. Cuidar do ser: Fílon e os terapeutas de Alexandria.

Editora Vozes, Petrópolis, 2005.

MANACORDA, M. A. História da Educação: da Antiguidade aos nossos

dias. 4ª edição. São Paulo, Cortez, 1995

RICOEUR, Paul. Percurso do Reconhecimento. São Paulo, Edições Loyola,

2006

______________ O perdão pode curar? Ver em

http://www.lusosofia.net/textos/paul_ricoeur_o_perdao_pode_curar.pdf .

Acessado em 15/05/2015

SCIOTTI, Lucila M S, SOUZA, Fernando Cesar. Acolher e cuidar de gente

numa Instituição de Educação Profissional Brasileira: a

interdisciplinaridade possível. Boletim Técnico Senac, 2013. Ver em

http://www.senac.br/media/42516/os_boletim_web_9.pdf

SOUZA, Fernando Cesar. Do mito de quiron à construção da metáfora da

cura na escola. Tese de doutorado, PUC, 2009

WILLIAMS, Mark, PENMAN, Danny. Atenção Plena: como encontrar a paz

em um mundo frenético. Rio de Janeiro, Editora Sextante, 2010

UNESCO, Recomendação relativa à condição docente, 1966. Disponível em

www.unesco.org.br Acesso em 14/07/2015

________, Recomendações de Seul sobre o Ensino Técnico e profissional,

1999. Educação e Formação ao longo de toda a vida: uma ponte para o futuro.

Disponível em www.unesco.org.br. Acesso em 14/07/2015

42

8 – Atividades didático-pedagógicas de suporte ao pós-

doutorado

8.1 - Palestras realizadas nas Unidades Educacionais do Senac São

Paulo: num total de 58 encontros com mais de 1.500 docentes e equipes

administrativas, o foco foi o cuidado nas duas dimensões: cuidar de si e do

outro. Em todos os momentos foram utilizados os círculos de conversas nas

salas, com claros objetivos de comunhão. Não havia um resultado a ser

alcançado nessas andanças, mas um desejo compartilhado de QUERER-BEM.

Criação e execução do evento ÁGORA, destinado aos diretores de educação

profissional, numa dinâmica de talkshow com a presença de Ubiratan

D’Ambrósio, Carlos Amadeo Byington e José Pacheco.

8.2 - Parceria e Congresso internacional:

a) Três comunicações (2009-2011-2013) apresentadas na temática do

cuidado humano, formação docente e inclusão na educação. Parceria

estabelecida desde 2009 entre Grupo de Estudos e Pesquisas

Interdisciplinares (GEPI), da PUC/SP, com a Universidade de

Engenharias e Medicina de Saint Etienne, L’École des Mines, na França,

dentro dos Ateliês sobre a Contradição, que acontece a cada dois anos.

b) Como membro da Associação dos professores pesquisadores em

Ciências da Educação, AECSE, França, desde 2008. Objetivo: levar o

nome do Grupo de Estudos e Pesquisas em Interdisciplinaridade como

centro de pesquisas no Brasil.

c) Comunicador em dois congressos da AMSE (Associação Mundial de

Ciências da Educação), com o tema do cuidado humano e formação

docente.

43

d) Coordenador do Colóquio nº 14 intitulado Nuevos Escenarios y Desafíos

para los Sistemas Educativos de América Latina: una mirada crítica y

propositiva desde sus actores, dentro do Congresso AMSE 2013, numa

parceria com 4 coordenadores internacionais: do Chile, México,

Argentina e Uruguai.

9 – Atividades didático-pedagógicas desenvolvidas durante o

pós-doutorado

9.1 - Palestras realizadas nas Unidades Educacionais do Senac São

Paulo: palestras nas escolas Senac com docentes e equipes administrativas.

Atendimento de 180 pessoas.

9.2 - Palestra sobre Formação docente e o cuidado ao humano no

Ciclo de Formação e Reflexão da Diretoria Regional de Educação da Freguesia

do Ó e Brasilândia, em 2014. Total de participantes: 400

9.3 - Parceria com a prefeitura de Imperatriz, Maranhão (2014):

Palestra sobre Interdisciplinaridade e cuidado humano para professores da

Rede Municipal de Educação de Imperatriz, MA. Total de participantes:

3.000

9.4 - Parceria com a Diretoria Regional de Educação da Freguesia

do O e Brasilândia (2014 e 2015): Participação como docente no Programa

NENHUM A MENOS, de formação continuada com docentes, coordenadores

pedagógicos, secretárias, diretores e agentes educacionais das escolas da

rede municipal de educação do município de São Paulo. Título do curso:

Pedagogia da escuta e do cuidado. Público atendido: 1º semestre: 310

pessoas e 2º semestre: 520 pessoas.

44

10 – Artigos científicos e textos de suporte ao pós-doutorado

10.1 - Capítulo escrito com a professora Ivani Fazenda na revista

Educação & Realidade, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

intitulado Diálogos interdisciplinares em saúde e educação: a arte do cuidar.

Com periodicidade quadrimestral, essa revista é enviada a todas as

Universidades Federais.

10.2 - Capítulo escrito com a Dr. Lucila Sciotti no Boletim Técnico do

Senac, com o tema: Acolher e cuidar de gente em uma instituição de

educação profissional brasileira: a interdisciplinaridade possível. O Boletim é

enviado a toda a rede nacional do Senac com periodicidade bimestral e tiragem

de 5.000 exemplares.

11 – Artigos científicos e textos publicados durante o pós-

doutorado

11.1 - Parcerias e participações

a) Artigo escrito no Manual de Especialização dedicado à Medicina

Integrativa, intitulado Interdisciplinaridade e cuidado humano, com a

professora Ivani Fazenda. O Manual foi lançado durante o I Congresso

Internacional de Medicina Integrativa do Hospital Albert Einstein, em

2014. Esse capítulo tornou-se uma disciplina no curso de pós-graduação

de Bases da Medicina Integrativa, onde o pesquisador atua como

docente convidado.

b) Membro do grupo de estudos sobre Hermenêutica e Saúde na

Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, desde 2013.

Esse grupo tem a supervisão do prof. Dr. Ricardo Ayres

45

11.2 - Publicação de artigo com a ATRAMI – Atenção Transdisciplinar

Materno Infantil: Capítulo intitulado Transdisciplinaridade em saúde e

educação: a arte do cuidado, e escrito com a professora Ivani Fazenda será

apresentado em outubro 2015, na cidade do Rio de Janeiro, dentro do

Congresso Internacional de Pediatria. O livro trata da Atenção Médica na

abordagem Transdisciplinar.

11.3 - Publicações de revista na web: trabalho desenvolvido com

coordenadores educacionais do Senac São Paulo no conceito de cidades

educadoras, após as vivências nos municípios de São Paulo, São José dos

Campos e Araraquara, foi escrito um e-book utilizando a plataforma gratuita

ISSUU. O e-book é chamado DICIONÁRIO DAS CIDADES QUE EDUCAM.

Disponível em http://www.issuu.com/lapafaustolo/doc/dicionario