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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Faculdade de Veterinária Departamento de Patologia Clínica Veterinária Disciplina de Bioquímica e Hematologia Clínica (VET03121) http://www.ufrgs.br/favet/bioquimica Relatório de Caso Clínico IDENTIFICAÇÃO Caso: 2004/1/07 Procedência: HCV-UFRGS N o da ficha original: 20036 Espécie: canina Raça: SRD Idade: 15 anos Sexo: macho Peso: 28,7 kg Alunos(as): Lorena Floriani Orlandini, Virginia Germani, Walter Prietsch de Andrade Ano/semestre: 2004/1 Residentes/Plantonistas: Médico(a) Veterinário(a) responsável: Simone Tostes de Oliveira ANAMNESE O animal chegou ao HCV com histórico de tosse que já durava 15 dias. Em uma agropecuária, foi indicado sulfa (antimicrobiano) e a tosse melhorou, mas a proprietária relatou que o cão apresentava dificuldade respiratória havia alguns meses. Nos três dias anteriores à consulta, esteve vomitando um conteúdo branco, e permanecia com a cabeça erguida e a boca aberta; normalmente, comia arroz com carne, mas se mostrava inapetente nos últimos dias; estava ingerindo pouco liquido e urinando pouco; a urina estava com uma coloração alaranjada. A proprietária notou que o animal estava ficando inchado. Também possuía um ferimento no dorso, mas já estava cicatrizado. O animal permanecia solto no pátio da casa, e não havia relato de presença de ratos. De acordo com a proprietária, o animal nunca havia ficado doente. No momento da consulta, o animal não estava recebendo nenhum medicamento. EXAME CLÍNICO Mucosas pálidas, ascite, edema subcutâneo, dispnéia e estertores pulmonares úmidos à auscultação. EXAMES COMPLEMENTARES Eletrocardiograma (Figuras 1 e 2): fibrilação atrial e contrações ventriculares prematuras (CVPs). Raio-X de tórax (Figura 3): presença de infiltração do parênquima pulmonar. Imagem compatível com efusão pleural. URINÁLISE Método de coleta: cateterização Obs.: Exame físico cor consistência odor aspecto densidade específica (1,015-1,045) amarelo-escura fluida sui generis límpida 1,055 Exame químico pH (5,5-7,5) corpos cetônicos glicose pigmentos biliares proteína hemoglobina sangue nitritos 7,0 - - ++ + + + - Sedimento urinário (n o médio de elementos por campo de 400 x) Células epiteliais: 8 Tipo: estratificadas e de transição Hemácias: 5 Cilindros: Tipo: Leucócitos: - Outros: Tipo: Bacteriúria: ausente n.d.: não determinado BIOQUÍMICA SANGÜÍNEA Tipo de amostra: plasma Anticoagulante: heparina Hemólise da amostra: ausente Proteínas totais: 51,2 g/L (54-71) Glicose: 92 mg/dL (65-118) ALP: 3,4 U/L (0-156) Albumina: 28,5 g/L (26-33) Colesterol total: 165 mg/dL (135-270) ALT: 34 U/L (0-102) Globulinas: 22,7 g/L (27-44) Uréia: 59 mg/dL (21-60) CPK: 303,0 U/L (0-125) BT: 2,20 mg/dL (0,1-0,5) Creatinina: 1,0 mg/dL (0,5-1,5) TG: 52,3 mg/dL (30-150) BL: 2,17 mg/dL (0,01-0,49) Cálcio: mg/dL (9,0-11,3) AST: 49,3 U/L (0-90) BC: 0,03 mg/dL (0,06-0,12) Fósforo: 5,0 mg/dL (2,6-6,2) GGT: 12,7 U/L (0-10) BT: bilirrubina total BL: bilirrubina livre (indireta) BC: bilirrubina conjugada (direta)

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Page 1: Relatório de Caso Clínico - Caninos - ufrgs.br · São Paulo: Roca, 1998. 1592 p. BISTNER, S. I.; FORD, R. B. Manual de procedimentos veterinários & tratamento de emergências

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Faculdade de Veterinária Departamento de Patologia Clínica Veterinária Disciplina de Bioquímica e Hematologia Clínica (VET03121) http://www.ufrgs.br/favet/bioquimica

Relatório de Caso Clínico

IDENTIFICAÇÃO Caso: 2004/1/07 Procedência: HCV-UFRGS No da ficha original: 20036 Espécie: canina Raça: SRD Idade: 15 anos Sexo: macho Peso: 28,7 kg Alunos(as): Lorena Floriani Orlandini, Virginia Germani, Walter Prietsch de Andrade

Ano/semestre: 2004/1

Residentes/Plantonistas: Médico(a) Veterinário(a) responsável: Simone Tostes de Oliveira ANAMNESE O animal chegou ao HCV com histórico de tosse que já durava 15 dias. Em uma agropecuária, foi indicado sulfa (antimicrobiano) e a tosse melhorou, mas a proprietária relatou que o cão apresentava dificuldade respiratória havia alguns meses. Nos três dias anteriores à consulta, esteve vomitando um conteúdo branco, e permanecia com a cabeça erguida e a boca aberta; normalmente, comia arroz com carne, mas se mostrava inapetente nos últimos dias; estava ingerindo pouco liquido e urinando pouco; a urina estava com uma coloração alaranjada. A proprietária notou que o animal estava ficando inchado. Também possuía um ferimento no dorso, mas já estava cicatrizado. O animal permanecia solto no pátio da casa, e não havia relato de presença de ratos. De acordo com a proprietária, o animal nunca havia ficado doente. No momento da consulta, o animal não estava recebendo nenhum medicamento. EXAME CLÍNICO Mucosas pálidas, ascite, edema subcutâneo, dispnéia e estertores pulmonares úmidos à auscultação. EXAMES COMPLEMENTARES Eletrocardiograma (Figuras 1 e 2): fibrilação atrial e contrações ventriculares prematuras (CVPs). Raio-X de tórax (Figura 3): presença de infiltração do parênquima pulmonar. Imagem compatível com efusão pleural. URINÁLISE Método de coleta: cateterização Obs.: Exame físico cor consistência odor aspecto densidade específica (1,015-1,045) amarelo-escura fluida sui generis límpida 1,055 Exame químico pH (5,5-7,5) corpos cetônicos glicose pigmentos biliares proteína hemoglobina sangue nitritos7,0 - - ++ + + + - Sedimento urinário (no médio de elementos por campo de 400 x) Células epiteliais: 8 Tipo: estratificadas e de transição Hemácias: 5 Cilindros: Tipo: Leucócitos: - Outros: Tipo: Bacteriúria: ausente

n.d.: não determinado

BIOQUÍMICA SANGÜÍNEA Tipo de amostra: plasma Anticoagulante: heparina Hemólise da amostra: ausente Proteínas totais: 51,2 g/L (54-71) Glicose: 92 mg/dL (65-118) ALP: 3,4 U/L (0-156) Albumina: 28,5 g/L (26-33) Colesterol total: 165 mg/dL (135-270) ALT: 34 U/L (0-102) Globulinas: 22,7 g/L (27-44) Uréia: 59 mg/dL (21-60) CPK: 303,0 U/L (0-125) BT: 2,20 mg/dL (0,1-0,5) Creatinina: 1,0 mg/dL (0,5-1,5) TG: 52,3 mg/dL (30-150) BL: 2,17 mg/dL (0,01-0,49) Cálcio: mg/dL (9,0-11,3) AST: 49,3 U/L (0-90) BC: 0,03 mg/dL (0,06-0,12) Fósforo: 5,0 mg/dL (2,6-6,2) GGT: 12,7 U/L (0-10)

BT: bilirrubina total BL: bilirrubina livre (indireta) BC: bilirrubina conjugada (direta)

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Caso clínico 2004/1/07 página 2 HEMOGRAMA Leucócitos Eritrócitos Quantidade: 11.400/µL (6.000-17.000) Quantidade: 5,89 milhões/µL (5,5-8,5) Tipo Quantidade/µL % Hematócrito: 39,0 % (37-55) Mielócitos 0 (0) 0 (0) Hemoglobina: 15,6 g/dL (12-18) Metamielócitos 0 (0) 0 (0) VCM (Vol. Corpuscular Médio): 66 fL (60-77) Bastonados 228 (0-300) 2 (0-3) CHCM (Conc. Hb Corp. Média): 40,1 % (32-36) Segmentados 9.006 (3.000-11.500) 79 (60-77) Basófilos 0 (0) 0 (0) Eosinófilos 114 (100-1.250) 1 (2-10) Monócitos 912 (150-1.350) 8 (3-10)

Morfologia:

Linfócitos 1.140 (1.000-4.800) 10 (12-30) Plaquetas Plasmócitos 0 (0) 0 (0) Quantidade: /µL (200.000-500.000) Morfologia: Observações: TRATAMENTO E EVOLUÇÃO O animal foi encaminhado para eutanásia, pois o proprietário não quis instituir tratamento. NECRÓPSIA (e histopatologia) Patologista responsável: Edson Moleta Colodel Na necropsia foram observadas dilatação cardíaca bilateral e endocardiose (Figuras 5 e 6). O fígado apresentava congestão (aspecto de noz-moscada) e aumento de tamanho (Figura 8). Os pulmões apresentavam coloração de tom castanho (Figura 9). Presença de ascite (Figura 7), hidrotórax e edema dos membros posteriores (Figura 4). DISCUSSÃO Hematologia: não foram encontradas alterações no leucograma do animal. O eritrograma apresentou aumento do CHCM, resultado que é indicativo de hemólise. Urinálise: a urina apresentava cor amarelo-escura e densidade acima de 1,050 no exame físico. No exame químico, foi encontrada uma concentração moderada de pigmentos biliares e uma leve proteinúria. O exame do sedimento mostrou células epiteliais estratificadas e de transição com média um pouco acima do normal, além de um leve aumento no número de hemácias. Uma densidade acima de 1,045 no cão indica capacidade normal de concentração urinária, principalmente em cães submetidos à baixa ingestão de líquidos. Sugerimos que os leves aumentos das células epiteliais e hemácias na amostra sejam devidos ao método de coleta: a sondagem do animal pode causar microlesões na uretra e bexiga, podendo ocorrer sangramento e descamação do epitélio. O aumento dos pigmentos biliares na amostra é provavelmente devido a hiperbilirrubinemia. A bilirrubinúria moderada pode ser resultado de obstrução biliar intra-hepática, o que é condizente com a hipótese de compressão dos ductos biliares devido à congestão hepática. Bioquímica sanguínea: a diminuição das proteínas totais no sangue se deve à diminuição das globulinas, visto que o valor de albumina sanguínea está dentro dos valores de referência para a espécie. A hipótese mais provável para esse fato é a diminuição na produção das globulinas pelo fígado, que pode ser devida à congestão hepática secundária ou à idade avançada do animal. A hiperbilirrubinemia e atividade aumentada da enzima gama-glutamiltransferase (GGT) são alterações encontradas nos quadros de redução do fluxo biliar (colestase). Na colestase também podem ser encontrados níveis séricos elevados de ácidos biliares, os quais não foram mensurados, e aumento na atividade da enzima fosfatase alcalina (FAL), que não foi detectado na amostra. Uma das causas da colestase é a obstrução biliar parcial intra-hepática provocada por tumefação difusa dos hepatócitos, como no caso da congestão hepática. Os níveis de bilirrubina livre aumentados, que foram encontrados, não são explicados pelo quadro de congestão hepática ou colestase, que o animal possivelmente apresentava. A atividade aumentada da cretina-quinase (CK), enzima abundante nos músculos esquelético e cardíaco, indica a ocorrência de danos musculares. Esta informação é compatível com os dados da necrópsia, onde foi evidenciada lesão do miocárdio. Além disso, antes da consulta e da coleta de sangue o animal se apresentava em constante estado de decúbito esternal ou lateral, fato que pode contribuir para agravar as lesões musculares e exacerbar ainda mais a atividade da CK e sua concentração no sangue. Comentários: os resultados dos exames laboratoriais, necrópsia e exames complementares confirmaram o diagnóstico clínico de insuficiência cardíaca congestiva (ICC) bilateral. A doença valvular atrioventricular degenerativa crônica, também conhecida por endocardiose ou fibrose da válvula mitral é a causa mais comum de insuficiência cardíaca em cães. Ocorre principalmente em animais

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Caso clínico 2004/1/07 página 3 machos, idosos e de pequeno porte. As alterações patológicas nas válvulas se desenvolvem com a idade, e sua etiologia é desconhecida. À medida que a degeneração valvular avança, um volume cada vez maior de sangue se move improdutivamente nos dois sentidos entre o ventrículo e o átrio, diminuindo o fluxo para a aorta. Os mecanismos compensatórios acabam por causar a dilatação dos átrios e dos ventrículos. Desta forma, um problema primário na válvula mitral pode levar à dilatação do coração direito. Os sinais clínicos da ICC esquerda incluem tosse e dispnéia, enquanto são encontrados efusão pleural, ascite e edema dos membros posteriores na ICC direita. A congestão hepática passiva crônica é quase sempre conseqüência de uma disfunção cardíaca, está associada à endocardiose da válvula atrioventricular direita e é mais comum em cães velhos. Esse mecanismo leva à hipóxia persistente nas áreas centrolobulares, lesando os hepatócitos do centro do lóbulo e fazendo com que os sinusóides destas áreas fiquem dilatados e congestos (fígado com aspecto de noz-moscada). CONCLUSÕES Insuficiência cardíaca congestiva bilateral, possível obstrução biliar (colestase) parcial intra-hepática em decorrência do retorno venoso prejudicado; congestão hepática e tumefação dos hepatócitos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BIRCHARD, S. J.; SHERDING, R. G. Manual Saunders: clínica de pequenos animais. São Paulo: Roca, 1998. 1592 p.

BISTNER, S. I.; FORD, R. B. Manual de procedimentos veterinários & tratamento de emergências. 6. ed. São Paulo: Roca, 1996. 915 p.

CARLTON, W. W.; McGAVIN, M. D. Patologia veterinária especial de Thomson. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. 672 p.

LORENZ, M.D; CORNELIUS, L.D. Diagnóstico clínico em pequenos animais. 2. ed. Rio de Janeiro: Interlivros, 1996. 544 p.

MANUAL Merck de veterinária. 7.ed. São Paulo: Roca, 1996. 2170 p.

NELSON, R. W.; COUTO, C. G. Medicina interna de pequenos animais. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001. 1084 p.

FIGURAS

CVP FA

Figura 1. Eletrocardiograma de cão normal. Para fins de comparação. (© 2001 Veazie Veterinary Clinic)

Figura 2. Eletrocardiograma. Visualização de fibrilação atrial (FA) e contrações ventriculares prematuras (CVP). (© 2004 Simone Tostes de Oliveira)

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Caso clínico 2004/1/07 página 4

Figura 3. Raio X de tórax. Não é possível a visualização do coração devido ao acúmulo de líquidos na cavidade torácica. Infiltração do parênquima pulmonar e efusão pleural. (© 2004 Rochana Rodrigues)

Figura 4. Edema dos membros posteriores. O acúmulo de sangue nos tecidos leva ao edama dos membros, principalmente os posteriores. (© 2004 Edson Moleta Colodel)

Figura 5. Coração. Dilatação das câmaras cardíacas e endocardiose valvular mitral. (© 2004 Edson Moleta Colodel)

Figura 6. Coração. Aumento do tamanho devido à dilatação das câmaras. (© 2004 Edson Moleta Colodel)

Figura 7. Ascite. Extravasamento de líquido do leito vascular para a cavidade abdominal em decorrência da estase sanguínea. (© 2004 Edson Moleta Colodel)

Figura 8. Fígado. Aparência de "noz-moscada" devido à congestão e aumento de tamanho. (© 2004 Edson Moleta Colodel)

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Figura 9. Pulmão. Estagnação do sangue nos vasos causando edema e congestão pulmonar. (© 2004 Edson Moleta Colodel)