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Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Comunicação e Expressão Pós-Graduação em Estudos da Tradução Gabriela de França Nanni Relatos de uma experiência: Uma tradução comentada do romance La Fin de la Nuit de François Mauriac Dissertação apresentada ao Curso de Pós- Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federald e Santa Catarina (UFSC), como requisito para obtenção do grau de mestre me Estudos da Tradução; área de concentração: Processos de Retextualização; linha de pesquisa: Teoria, crítica e história da Tradução. Orientador: Marie Hélène Catherine Torres Florianópolis 2007

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Universidade Federal de Santa Catarina

Centro de Comunicação e Expressão

Pós-Graduação em Estudos da Tradução

Gabriela de França Nanni

Relatos de uma experiência:

Uma tradução comentada do romance La Fin de la Nuit de

François Mauriac

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-

Graduação em Estudos da Tradução da

Universidade Federald e Santa Catarina

(UFSC), como requisito para obtenção do

grau de mestre me Estudos da Tradução;

área de concentração: Processos de

Retextualização; linha de pesquisa: Teoria,

crítica e história da Tradução.

Orientador: Marie Hélène Catherine Torres

Florianópolis 2007

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Aspiro antes à fiel indiferença, mas bastante pausada para suportar a vida

e, na sua indiscriminação de crueldade e diamante, capaz de sugerir o fim sem a injustiça dos prêmios.

(Carlos Drummond de Andrade)

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Agradecimentos

Ao término de mais uma etapa de minha vida, gostaria de agradecer a todos

aqueles que ao longo desses dois anos de mestrado estiveram ao meu lado

compartilhando seus saberes, apoiando minhas decisões ou simplesmente oferecendo

um ombro amigo nos momentos difíceis.

Aos professores Mauri Furlan e Andréia Guerrini, pelas sugestões pertinentes

dadas para a redação de meu texto por ocasião da minha qualificação.

Ao professor Werner Heidermann, pelos preciosos ensinamentos teóricos ao

longo da disciplina Teorias da Tradução (2004/02), da qual participei como aluna

especial e que me possibilitou direcionar meu pré-projeto de mestrado.

Às colegas da secretaria, Emy, Rosane e Maria Ivone, pela gentileza e prontidão

na resolução de questões burocráticas.

À Capes, pela bolsa de estudo oferecida, que me possibilitou uma maior

tranqüilidade no último ano do curso.

À minha mãe Santuza Mônica e ao meu padrasto Vanildo Pereira, pelo

encorajamento, pelo exemplo de profissionalismo, e, sobretudo, pelo amor

incondicional.

À minha querida amiga, Eleonora Frenkel, pelas discussões teóricas que tivemos

ao longo do curso e por seu exemplo de determinação e perseverança.

À minha amiga irmã, Juliana Barnack, por sua amizade incondicional e pelo

carinho nos momentos difíceis que atravessei no primeiro ano de curso.

À minha orientadora, pela confiança depositada em minhas escolhas e sem a

qual certamente não teria feitos minhas próprias descobertas, e, sobretudo, pelo exemplo

de profissionalismo e de força que ela representa. Merci!

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Resumo O presente trabalho constitui uma reflexão crítica acerca da tradução inédita do romance

La Fin de la Nuit (1935) de François Mauriac. Com base no estudo crítico de François

Mauriac e de sua obra, nos conceitos teóricos de “(re) escritura” e da “tradução

enquanto crítica” de Antoine Berman, assim como nos pressupostos teóricos acerca da

literatura, apresentaremos comentários que visam justificar nossas escolhas de tradução.

Nossos comentários focalizar-se-ão, sobretudo, na problemática suscitada durante a

reprodução das imagens e do tom, os quais, a nosso ver, constituem a força expressiva

do romance La Fin de la Nuit.

Résumé

Le travail proposé constitue une réflexion critique de la traduction inédite du roman La

Fin de La Nuit (1935) de François Mauriac. En nous appuyant sur l’étude critique de

François Mauriac et de son œuvre, sur les concepts de “ (ré) écriture” et de “traduction

en tant que critique ”, d’Antoine Berman, ainsi que sur les présupposés à propos de la

littérature, nous présenterons des commentaires afin de justifier nos décisions de

traduction. Nos commentaires se centreront, surtout, sur la reproduction des images et

du ton, qui, à notre avis, constituent la force expressive du roman La Fin de la Nuit.

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Sumário

Introdução......................................................................................................................... 3 Capítulo I .......................................................................................................................... 8

Sobre o autor e sua obra ............................................................................................... 8 1.1 Mauriac no Brasil ................................................................................................... 8 1.2 O romancista e sua trajetória ................................................................................ 12 1.3 Mauriac e a exigência católica.............................................................................. 15 1.4 O trágico em Mauriac ........................................................................................... 21 1.5 Graças a um certo dom de atmosfera.................................................................... 27

Capítulo II....................................................................................................................... 32 Teorias da Tradução ................................................................................................... 32 2.1 Tradução e Literatura............................................................................................ 32 2.2 Tradução e Crítica ................................................................................................ 37

Capítulo III ..................................................................................................................... 46 Bastidores da tradução................................................................................................ 46 3.1 Recuperando as imagens ...................................................................................... 46 3.2 Reconstruindo o tom............................................................................................. 63

Considerações finais ....................................................................................................... 69 Bibliografia..................................................................................................................... 71

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Não nos formamos quando nos contentamos em mobilizar com leveza e comodidade o que há em nós. Cada artista, como cada homem, é somente um ser particular e, como

tal, sempre dependente de um lado. É por isso que o homem deve também acolher nele, na teoria e na prática, tanto quanto isso lhe seja possível, o que é oposto à sua

natureza. Que o frívolo busque o sério e o severo, que o severo tenha diante de seus olhos um ser leve e fácil, que o forte seja medido pelo delicado, o delicado pela força, e

cada um desenvolverá ainda mais sua natureza porque parecerá afastar-se de si mesmo. (Goethe)

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Introdução

O presente trabalho consiste numa reflexão teórica acerca das escolhas

realizadas durante o processo tradutório do romance La Fin de la Nuit de François

Mauriac.

Neste romance o autor retoma a heroína de Thérèse Desqueyroux (1927), já

traduzido pelo poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade em 1943 e recentemente

republicado pela editora Cosac & Naif, na coleção Prosa do Mundo. A escolha de La

Fin de la Nuit se deve, primeiramente, ao fato de que se trata de uma tradução inédita da

obra de um autor reconhecido internacionalmente. Em segundo lugar, por tratar-se de

uma romance que enlaça prosa e poesia com grande maestria, acreditamos ser sua

tradução para o português um grande desafio para o tradutor-pesquisador. Desafio que

nos caberá ao mesmo tempo superar e a partir dele suscitar questões pertinentes para os

estudos da tradução. Conforme adverte Antoine Berman, um dos teóricos norteadores

do nosso trabalho, a tradução, uma vez que não falava por si mesma, permaneceu por

muito tempo uma atividade subterrânea, oculta. O fato da definição dos problemas da

tradução ser assumido por não tradutores - teólogos, filósofos, lingüistas e críticos - fez

com que ela fosse assimilada à outra coisa, isto é, à (sub-) literatura, à sub(crítica), à

lingüística aplicada, etc. Enfim, para Berman, “as análises feitas quase exclusivamente

por não tradutores comportam fatalmente, quaisquer que sejam suas qualidades,

numerosos ‘pontos cegos’ e ‘não pertinentes’”. (BERMAN, 2002, p.12).

Objetivamos, portanto, além de apresentar a tradução inédita do romance La Fin

de La Nuit (1935), definir a tarefa da tradução a partir do próprio fazer tradutório.

Nossa metodologia parte do estudo crítico do autor François Mauriac e de sua

obra, apoiado principalmente no estudo de Nelly Cormeau1 intitulado L’Art de François

Mauriac, passando por uma discussão acerca das teorias da tradução e da literatura, e

terminando com a tradução propriamente dita, etapa esta onde nossa concepção da

tradução será reafirmada e/ou redimensionada.

Em Mauriac no Brasil resgataremos um pouco da opinião dos críticos locais a

respeito de Mauriac e de sua obra. Nessa parte, no intuito de compreender o lugar

1 Crítica literária Outras obras da autora Physiologie du Roman. Prix Malpertuis de l’Académie de langue et de Littérature Française (La Renaissance du livre, Bruxelles) Littérature existentialiste : Le Roman et le Théâtre de Jean Paul Sartre.

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ocupado por Mauriac na literatura brasileira, consideraremos algumas questões

levantadas pelos “estudos descritivos” da tradução, o qual preconiza uma análise dos

problemas e motivações que orientam a tradução enquanto processo – o que permite

compreender a concepção e função da tradução num determinado contexto e época,

assim como seu papel na evolução de uma determinada literatura. Embora pouco se

tenha discutido a respeito da tradução das obras de Mauriac, é válido considerar a

importância da tradução de suas obras para evolução dos escritores locais, já que

Mauriac foi traduzido no Brasil por grandes escritores como Carlos Drummond e

Raquel de Queiroz.

Em O romancista e sua trajetória discutimos a trajetória do escritor francês, as

influências de escritores como Flaubert, Gide, Pascal, Baudelaire, entre outros, assim

como o lugar ocupado por Mauriac na literatura francesa; o papel de Mauriac na

literatura francesa, como veremos, foi extremamente profícuo, pois além de seus

romances serem considerados grandes clássicos, Mauriac pode também ser considerado

um dos maiores representantes do jornalismo francês de sua época.

Em Mauriac e a exigência católica procuramos explicar a obra do escritor a

partir de um olhar sobre sua infância; essa parte do trabalho foi extremamente

reveladora, visto que a psicologia como temática predominante em Mauriac encontra

suas raízes em sua educação jansenista.

Em O trágico em Mauriac discutimos acerca das características do trágico no

romance La Fin de La Nuit. Essa característica está presente em toda obra do escritor

francês, porém, é em La Fin de la Nuit, cujo tema tratado é o sofrimento da personagem

principal, que o trágico se revela com maior intensidade. A importância de

considerarmos este aspecto da obra de Mauriac reside no fato que é ele que define o

estilo do autor e, portanto, ao longo da tradução, fomos inevitavelmente levados a

respeitar essa característica.

Em Graças a um certo dom de atmosfera procuramos demonstrar que apesar da

psicologia ocupar um lugar preponderante na obra de Mauriac, é a partir do universo

físico que o autor traduz o drama interior de seus personagens. Nesse sentido, a

compreensão das imagens na obra do escritor se revelou fundamental para que, ao longo

da tradução, a força expressiva de seus romances fosse respeitada.

Uma vez delineados os aspectos acima mencionados, passaremos à discussão

das teorias da tradução e sua relação com as teorias literárias. Como veremos, ao

promovermos um diálogo entre tradução e literatura em Tradução e Literatura,

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procuramos explicar o papel daquela na evolução das literaturas locais. Nesse sentido,

lembremos que, de acordo com Berman em A prova do estrangeiro: Cultura e tradução

na Alemanha romântica (2002), a constituição de uma história da tradução é a primeira

tarefa de uma teoria moderna da tradução (p.12). De acordo com a colocação de críticos

como Alfredo Bosi e Antônio Cândido, constataremos a importância da tradução para a

formação dos escritores autóctones e, conseqüentemente, para o enriquecimento da

literatura local. Essa parte do nosso trabalho além de resgatar a importância da tradução

para a constituição e aperfeiçoamento das culturas, corrobora com as noções de “(re)

escritura” e “tradução enquanto crítica” que serão discutidas no capítulo seguinte.

No tocante à teoria da tradução, discutida em Tradução e Crítica, defenderemos

a prática tradutória enquanto uma forma privilegiada de crítica e, para tanto, nos

apoiaremos principalmente nos conceitos de “(re) escritura” e de “tradução enquanto

crítica” de Antoine Berman, assim como nas colocações do autor russo Bakhtin em

Questões de Literatura e de Estética: A teoria do romance, onde o autor discute os

conceitos de forma e conteúdo, conceitos cuja compreensão é, como veremos, de

extrema importância quando encaramos o fazer tradutório como uma forma privilegiada

de crítica.

Discutidos os conceitos teóricos acerca da tradução e da crítica literária,

apresentaremos em Bastidores da Tradução as discussões acerca da tradução

propriamente dita, isto é, acerca das escolhas e das dificuldades encontradas durante o

processo de tradução. A fim de justificarmos as escolhas realizadas durante a tradução,

procuramos, neste capítulo, promover um diálogo entre as questões discutidas no

capítulo primeiro e no capítulo segundo.

Tendo em vista a importância das imagens e do tom na obra do escritor francês,

conforme visto no capítulo primeiro, os Bastidores da Tradução foi subdividido em

Recuperando as imagens e Reconstruindo o tom.

Ao longo do capitulo 3, redimensionaremos algumas noções teóricas discutidas

ao longo do nosso trabalho, visto que, no intuito de reproduzir o estilo da obra original –

imagens e o tom – seremos levados em alguns momentos a realizar escolhas pautadas

numa interpretação pessoal; entretanto, de modo geral, as questões levantadas em

Bastidores da Tradução nos revelarão que uma tradução fundamentada no estudo

acerca da obra e do autor e numa determinada teoria da tradução é de extrema

relevância para que o tradutor-pesquisador não transforme sua atividade num exercício

puramente intuitivo mas, ao contrário, seja capaz de justificar suas escolhas a partir de

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argumentos que estejam em consonância com o conhecimento prévio do autor e da obra,

das teorias da literatura e da tradução.

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Je n’ observe pas, je ne décris pas, je retrouve, et ce que je retrouve, c’est le monde étroit et janséniste de mon enfance pieuse, angoissée et repliée, et la province où elle

baignait […] Tout s’est passé comme si la porte eut été a jamais refermée en moi, a vingt ans, sur ce que devait être la matière de mon œuvre.

François Mauriac (Vue sur mes romans).

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Capítulo I

Sobre o autor e sua obra

1.1 Mauriac no Brasil

A decisão de verter para a língua portuguesa uma obra do escritor francês

François Mauriac, La Fin de La Nuit, remete, inevitavelmente, ao lugar ocupado por ele

no contexto brasileiro2; além, é claro, de aludir ao papel da literatura traduzida na

configuração do sistema literário autóctone, visto que este polêmico romancista

católico, como ficou conhecido, foi traduzido no Brasil por escritores do porte de

Raquel de Queiroz e Carlos Drummond de Andrade; empresa que torna, pois, legítima a

indagação sobre a importância da tradução na formação literária dos escritores

brasileiros. Porém, respondê-la, exigiria um estudo à parte que se desvirtua do propósito

entrevisto aqui.

No entanto, é possível recorrer a algumas fontes ricas em informações a

propósito da ‘translação’ de um autor e sua obra, leia-se, o conjunto de práticas que

determinam o lugar que ambos irão ocupar no sistema literário de chegada. A este

respeito, ao falar do “espaço de jogo” próprio à tradução, o teórico da tradução Antoine

Berman relembra que:

Cet espace de jeu est lui-même pris dans espace plus vaste, celui de la translation d’une œuvre dans une langue culture. Cette translation n’advient pas qu’avec la traduction. Elle advient aussi par la critique e de nombreuses formes de transformations textuelles (ou même) non textuelles qui ne sont pas traductives (BERMAN,1995, p.17).

2 Obras de Mauriac traduzidas no Brasil* MAURIAC, François. Thérèse Desqueyroux. Trad. de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Cosac & Naifi, 2002. ______.Genitrix. Trad. Célia Gambini. Rio de Janeiro: Globo, 1987. ______.O Mistério Frontenac. Trad. Eunice Gruman. Rio de Janeiro: Globo, 1988. ______ Galigai. Trad. José Geraldo Vieira. São Paulo: Mérito, 1953. ______.O Deserto do Amor. Trad. Raquel de Queiroz. Rio de Janeiro: Livros do Brasil, 1966. * Essas informações foram encontradas através de buscas nos endereços eletrônicos das seguintes bibliotecas: Biblioteca nacional www.bn.br, Biblioteca da UFSC www.bu.ufsc.br, Biblioteca da USP www.dedalus.com.br, Biblioteca da UFMG www.bu.ufmg.br, Biblioteca da Unicamp www.unicamp.br

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Nesse sentido, é valido consultar a crítica literária brasileira, Lucia Miguel

Pereira, que no ensaio intitulado “Incomunicabilidade e moral em Mauriac”3 trata de

questões no mínimo pertinentes para situar a literatura francesa no Brasil em meados do

século XX:

[...] de uns anos a esta parte tem diminuído sensivelmente a influência da cultura francesa. [...] Vários fatores, de origens e valores muito diversos, causas psicológicas e causas materiais parecem ter concorrido para esta mudança (PEREIRA, 1992, p.90).

A autora elege como principal fator a emergência dos problemas sociais e suas

conseqüências sobre a inteligência; uma época em que a concepção do homem e da arte

passa a adquirir o cunho político do marxismo em detrimento das bases estabelecidas

pela Revolução francesa. As repercussões são ainda maiores quando observadas num

contexto em que “há como um começo de simbiose entre o espírito e o ambiente”.

No entanto, ela afirma que há certos escritores que conseguem vencer as

barreiras e se impor ao menos nos círculos intelectuais. Dentre estes escritores encontra-

se Mauriac, cujas obras refletem “algumas das mais altas manifestações do espírito

contemporâneo: e lê-las significa se deixar empolgar por elas” (PEREIRA, 1992, p. 91).

Tratando especificamente da obra a que me proponho traduzir, La Fin de la Nuit,

que consiste no retorno da heroína de Thérèse Desqueyroux – traduzida por Drummond

oito anos depois4 Pereira procura definir o lugar e a significação deste livro em sua obra.

Embora nos dois romances que o precederam – Le Noeud de Vipères e Le Mystère

Frontenac percebe-se uma conversão do autor “no sentido de ter se tornado menos

crispado, de ter enfim se rendido à ação misericordiosa da Graça, e à doçura da simpatia

na vida humana” (PEREIRA, 1992, p. 92), La Fin de la Nuit, segundo Pereira,

“representa uma parada na vida do escritor. E representa também uma grande vitória de

sua probidade” (1992, p.93). Qualidade esta também observada por Drummond no

prefácio dedicado a sua tradução de Thérèse Desqueyroux:

É exato que os sentimentos evangélicos não fazem bons livros, mas não o é menos que os livros de Mauriac, escritos por quem conhece muito bem o ofício literário, não sofrem a influência negativa desses sentimentos e só podem ser interpretados à luz deles, em que pese aos

3 Ensaio originalmente sem título. In: Gazeta de Notícias. Rio de janeiro, 31/3/1935, p.8, coluna “Livros”. 4 A tradução de 1927 teve sua primeira edição brasileira em 1943, sob o título de Uma gota de veneno, pela editora irmãos Pongetti, do Rio de janeiro. O prefácio de Drummond foi posteriormente incluído em Confissões de Minas (1944).

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próprios depositários intransigentes da verdade cristã (DRUMMOND, 2002, p.12).

Tanto a crítica quanto o poeta parecem concordar em um ponto a respeito de

Mauriac, embora o veredicto deste último tenha sido pronunciado oito anos depois.

Otto Maria Carpeaux, no ano em que Drummond lança sua tradução, escreve o

ensaio Mauriac, no qual discute longamente o autor e sua obra. Tentando justificar a

polêmica em torno da alcunha de Mauriac, ele argumenta:

Chamam-lhe “romancista católico” porque, como católico, reconheceu a realidade do pecado, e como romancista, descreveu-a, ou melhor, transfigurou-a”. [...] Quem reconheceu a realidade do pecado, dificilmente pode transfigurá-lo, e a transfiguração se faz em detrimento da realidade. A sinceridade humana e a sinceridade literária de Mauriac, ambas fora de dúvida, contradizem-se (CARPEAUX, 1943, p.180).

Apesar de desfavorável, a observação de Carpeaux é seguida do reconhecimento

de que o conteúdo da obra de Mauriac pode ser sintetizado com a seguinte frase: “La

franchise est un hommage que la vertu rend au vice” (CARPEAUX, 1943, p. 181).

De fato, embora tenha sido um romancista atormentado com o problema da

culpa e do resgate, sua obra reflete o testemunho de um homem cuja motivação provém

antes de sua realidade carnal que espiritual; o rótulo de “romancista católico” lançado

sobre ele pode parecer um pouco simplista na medida em que, Mauriac, “cheio de vida

existencial”, além de superar literariamente todos seus confrades precedentes - por

exemplo, Paul Bourget e Henry Bordeaux -, difere destes por ter reconhecido a

realidade do pecado.

A este respeito, Lucia Miguel Pereira pronunciou o seguinte: “para Mauriac,

escritor católico, a moral não mudou, evidentemente. Mas Mauriac romancista tem de

refletir os pontos de vista dos meios que pinta” (PEREIRA, 1992, p.93). Seu êxito

residiria, entre outros, no fato de que o escritor lança mão dos sentimentos íntimos de

suas personagens – a despeito dos códigos alheios e indiferentes com que outrora os

casos de moral eram resolvidos –, para que os leitores compartilhem seus esforços pela

concepção da honra.

Esclarecida a concepção dos críticos brasileiros a respeito da temática

inconfundível do escritor francês, cabe ainda comentar o que estes têm a dizer a respeito

do seu estilo. Para tanto, nada mais esclarecedor que consultar novamente o prefácio de

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Drummond. O poeta se refere à “atmosfera Mauriac”, que surge da capacidade do

artista em atribuir ao mínimo pormenor um valor poético e fazer com que os mais

simples gestos de uma personagem se transformem em paisagens, em que se “percebe

um cheiro de frutas maduras, sente que está fazendo calor, ouve o apito do trem”

(DRUMMOND, 2002, p.12), e ainda: “é a galope que ele nos conta a história de

Thérèse, com resíduos de monólogo interior, fazendo luz não sobre os objetos e os

fatos, mas sobre a lembrança deles” (DRUMMOND, 2002, p. 14).

Linguagem do monólogo nos diz Carpeaux, “o romance de Mauriac é composto

de árias, como uma ópera, o que ocasiona os efeitos dramáticos” (CARPEAUX, 1943,

p.176). Ainda segundo o crítico, como todo romance tradicional francês, a construção

psicológica de Mauriac gira em torno do pecado, e seu estilo surge da “união virtuosa da

inquietação romântica e da estilização clássica”. Já Lucia Miguel Pereira afirma que

[...] seu estilo, todo seu, sem nada da harmonia habitual da frase francesa, com períodos ora arredondados e suculentos como frutos, ora incisivos e cortantes, tem muito pouca importância se comparado com o seu poder criador, esse sim, representa a razão de seu êxito. Porque as sua criaturas vivem, com uma vida mais real do que muita gente de carne e osso, que todos procuram sua companhia (PEREIRA, 1992, p.92).

Para questões que vão além de Mauriac romancista, há também um livro –

publicado por Roberto Alvim Corrêa em 1951 –, época em que os escritos de Mauriac

desfrutavam de “un retentissement mondial” -, cuja discussão gira em torno de Mauriac

ensaísta católico. Faceta não menos interessante para compreender as relações que o

escritor mantinha com Deus, com a natureza, com o amor e consigo próprio, na medida

em que, conforme coloca Corrêa,

Mauriac romancier, peut, a la rigueur, prétendre n’avoir rien de commun avec l’empoisonneuse Thérèse Desqueyroux, tandis que l’essayiste exprime directement sa pensée e sa sensibilité, il nous le livre sans le truchement d’un monde inventé (CORRÊA, 1951, p.14).

Da análise de alguns ensaios de Mauriac - Dieu e Mammon, Souffrances e

Bonheur du Chrétien, Journal, entre outros -, Corrêa pretende confirmar a formulação

que segue : “l’essayiste Mauriac nous donne la clef de l’écrivain, qui est chrétien”

(CORRÊA, 1951, p.13). Ao cabo de sua empresa, nos diz ele:

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[…] ses personnages sont-ils eux mêmes des êtres vivants. Ils ne nous en obligent pas moins à prendre position non pas seulement pour ou contre eux, mais pour ou contre ce que Mauriac tient pour vrai : la réalité d’une transcendance qui nous permet d’accomplir notre destin de chrétiens. […] L’excès de ses romans répond à une technique aussi bien qu’à l’expression de son tempérament – à une technique que détermine l’élan créateur, lequel est rythme. Il fait partie de sa probité e de son authenticité (CORRÊA, 1951 , p. 165).

1.2 O romancista e sua trajetória

Mauriac faz parte da geração literária que se apresenta por volta da década de

1920-1930 e cuja juventude é vivida durante os anos que precederam a primeira guerra

mundial. Deste celeiro saíram escritores tais como Roger Martin du Gard, George

Duhamel, Jules Romain, André Maurois, Jean Giradoux, Jean Cocteau, Jacques Rivière,

etc. Ao contrário de seu conterrâneo Jacques Rivière, integrante do meio promotor da

Nouvelle Revue Française, o jovem bordelês Mauriac foi, preferencialmente,

freqüentador dos círculos católicos e dos salões bem pensantes, como, por exemplo, da

Réunion des Étudiants, onde era presidente, responsável pelos cadernos de poesia

Temps Présent e colaborador da Revue de la Jeunesse. Em 1909, ele faz sua estréia

através da poesia, publicando, por conta própria, Les Mains Jointes.

Sua carreira literária foi impulsionada pelo mestre da escola tradicionalista

Barrés, que, através de Bourget, descobre a coletânea de poemas e a publica no Écho de

Paris. Na ocasião da publicação de Les Mains jointes, Barrés anexa uma nota dizendo:

Depuis vingt jours je me donne la musique charmante de cet inconnu, dont je ne sais rien, qui chante à mi-voix ses souvenirs d’enfance: un ami mort jeune, ses amies volées, ses premières détresses, toute une vie facile, préservé, scrupuleuse, rêveuse d’enfant catholique... (MAJAULT, 1946, p.20)

Dois anos depois, Mauriac publica l’Adieu à l’adolescent, uma coletânea de

poemas menos elegíaca e ligeiramente marcada pelo testemunho de um homem já

atormentado pelos desejos carnais. Embora viesse a publicar ainda mais duas coletâneas

de poemas, Orages (1925) e Le Sang d’Atys (1940), é enquanto romancista que o autor

se afirmou. Seus primeiros romances, L’Enfant chargés de chaînes (1912) e La robe

prétexte (1913), considerados monografias, testemunham as primeiras crises de alma de

um rapaz de boa família que teria se inspirado em leituras como Un Homme Libre e les

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Nourritures terrestres. (SIMON, 1953, p.14). Estoura a primeira guerra mundial e

Mauriac, cujo estado de saúde apresentava-se então fragilizado, é obrigado a se retirar, o

que o dispensa de compor seus romances de acordo com a atualidade trágica. Seus

primeiros romances, La Chair e Le Sang (1920) e Préséances (1921) já expressam o

patético interior a que se inclina o autor, seu gosto pelos mistérios das almas e a

inquietação interior; porém, pelo fato de que esses elementos ainda estivessem

imperfeitamente fundidos e sorrateiramente introduzidos, seu publico não os detectaria

logo de início, retendo, sobretudo do segundo, as cenas da vida de província e a sátira

social.

Nelly Cormeau (1951) observa que os primeiros quatro romances de Mauriac

podem ser considerados cadernos de exercício: influências barresianas demasiadamente

visíveis e pouco decantadas em L’Enfant chargé de chaînes; alusões literárias pouco

digeridas em La Robe Pretexte; paralelismo demasiado evidente entre os personagens

de la Chair et le Sang e Préseances, embora estes dois apresentem mais autonomia e

testemunhem um maior domínio do autor em relação à técnica romanesca.

Já o historiador de literatura Pierre de Boisdeffre destaca em seu livro Le roman

français depuis 1900 que os primeiros romances de Mauriac passaram despercebidos

devido às limitações do universo apresentado pelo autor: uma classe burguesa prestes a

desaparecer, uma única cidade, uma ou duas paisagens, a Lande ou os vinhedos, uma

atmosfera religiosa. O sortilégio de Mauriac só viria a se impor com le Baiser au

Lépreux (1922); a técnica de Mauriac neste romance, segundo o historiador, pode ser

comparada a de Marcel Proust, uma vez que ambos substituem a duração linear do

relato clássico por uma abordagem do tempo apreendida, por meio de sensações e

lembranças, na espessura orgânica do instante. Essa empresa foi assim definida por

Proust: “Il y a pour moi une géométrie plane et une géométrie dans l’espace. Eh bien,

pour moi, le roman ce n’est pas la psychologie plane, mais la psychologie dans l’espace.

Cette substance invisible du temps, j’ai tenté de l’isoler” (PROUST apud

BOISDEFFRE, 1979, p.25).

A partir do Baiser au Lepreux, a profundidade psicológica e a sonoridade

poética que pertencem a uma das mais seguras tradições do romance francês se fizeram,

mais ou menos presentes, em todos os seus romances seguintes : Le Fleuve du Feu

(1922), Genitrix (1923), Coups de Couteaux (1926), Désert de l’Amour (1925), Destins

(1927), Thérèse Desqueyroux (1926), Ce qui était perdue (1929), Le Nœud de Vipères

(1932), le Mystère Frontenac (1933), La fin de la Nuit (1935), Les anges noirs (1936),

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Plongées (1938), Les chemins de la mer (1939) e La Pharisienne (1941). Nesse mesmo

período o autor publicou biografias e monografias dedicadas a Racine, Pascal e sua

irmã, René Bazin, Proust, Jacques Riviére e André Lafon, o livro de memórias

Commencements d’une vie e alguns ensaios como Le jeune homme, La Province, Petits

essais de Psychologie Religieuse, Bordeaux, Dieu et Mammon, Trois Grands Hommes

devant Dieu, Souffrances et Bonheur d’un Chrétien, Le jeudi saint, Le Roman, Le

Romancier et ses Personnages, La vie de Jésus.

Em 1938 o autor faz sua estréia como dramaturgo com Asmodée, encenado no

mesmo ano na Comédie Française. Entre suas peças de teatro estão Les mal Aimés

(1945), Passage du Malin (1948) e Le feu sur la terre (1951). Após uma interrupção de

dez anos da sua atividade de romancista, ele publicou um conto, le Sagouin (1951),

considerado uma obra prima do gênero noir e um curto romance, Galigai (1952).

Enquanto jornalista, Mauriac colaborou com diferentes revistas e jornais como

Écho de Paris e Fígaro. Essa atividade, diga-se de passagem, lhe valeu acusações de

conformismo por parte dos jovens católicos de esquerda, pois o jornalista Mauriac,

“agacé par les réflexes révolutionnaires”, era “[...] trop honnête homme et trop grand

seigneur pour dépendre du mot d’ordre d’aucun parti” (SIMON, 1953, p.16). Apesar de

a direita literária ter sido praticamente eliminada durante a segunda guerra mundial,

estar envolvida na colaboração ou no culto ao Marechal, François Mauriac pode ser

considerado uma exceção: por exemplo, juntamente com Bernanos, ele denunciou

crimes cometidos por Franco na Espanha em nome da Igreja. (DENIS, 2000, p.256)

Posteriormente, o cronista do Figaro mostra-se um anticomunista confesso, que,

por ocasião de uma reunião do Comitê National foi afastado, assim como Paulhan e

Schumberger, porque se recusou a “la chasse aux sorcières” que alguns e sobretudo os

comunistas queriam empreender (DENIS, 2000, p.262). Porém, isso não o impediu de

julgar livremente e reagir contra os possíveis erros americanos; atitude de coragem que

coloca Mauriac entre os maiores representantes do jornalismo francês.

A ambas as atividades, intelectual e literária, não lhe faltaram consagrações:

Grand Prix du Roman em 1925 (Le Désert de l’amour) , Presidência da Société des

Gens de Lettres em 1932, eleição a Académie Française em 1933, e em 1953 é

reconhecido internacionalmente, com o prêmio Nobel de Literatura. Neste último,

Mauriac é recompensado “pour l’analyse pénétrante de l’âme et l’intensité artistique

avec laquelle il a interprété dans la forme du roman la vie humaine” (DENIS, 2000, p.

21). De fato, sua obra pode ser sintetizada com as palavras acima, pois, ao buscar nos

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lugares mais recônditos do coração humano uma resposta para o conflito existencial, ele

expressou em seus romances a vibração e a qualidade sonora inerentes à poesia.

A prosa de Mauriac teve inúmeras influências: de Chateaubriand e Flaubert,

herdou a prosa eufônica e compassada, porém purificou-a do ritmo oratório por

influências contemporâneas; a melodia clássica de Gide forneceu-lhe a ondulação exata,

as dissonâncias leves, a variedade de tempos verbais, as mudanças acertadas do

advérbio e do adjetivo; com Pascal aprendeu a noção da concisão e a confiança de

estilo; com Racine aprendeu a unir o concreto e o abstrato e a envolver de lirismo a

dicção pura. (SIMON, 1953, p.33).

Do ponto de vista substancial, muitos o aproximam de Proust, pois assim como o

autor de Temps Perdu, Mauriac “cherche la substance vitale de son oeuvre en lui-même,

dans le fond authentique de sa conscience, dans ses souvenirs et spécialement dans ceux

qui ont cette saveur et cette fraîcheur de source : dans ses souvenirs d’enfant” (SIMON,

1953, p. 42).

1.3 Mauriac e a exigência católica

Ao falarmos da obra de Mauriac é necessário, primeiramente, voltarmos um

olhar sobre a infância do autor, pois é a partir dela que desvelamos seu caráter e,

conseqüentemente, o conteúdo intrínseco de sua obra.

Mauriac nasceu em Bordeaux em 1885. Filho de latifundiários, ele teve uma

infância burguesa e profundamente marcada pelo jansenismo5. Um acontecimento

marca sua infância: a morte de seu pai. Sua mãe, então viúva, muda-se com ele e seus

quatro irmãos para a casa de sua avó.

Sobre sua infância em Bordeaux o autor escreveu, em Commencement d’une vie,

páginas repletas de emoção e simplicidade e de onde depreendemos a fonte de sua

sensibilidade e de sua misticismo. O autor fala da tristeza que o acompanha ao longo de

sua infância por nunca ter conhecido seu pai, da mudança para a casa de sua avó e das

5 O movimento conhecido como jansenismo, baseado nas obras de Santo Agostinho, buscava de forma extremamente austera o resgate da disciplina e da moral religiosa. Os jansenistas criticavam a ênfase na responsabilidade humana, pois defendiam a idéia de que o homem já nascia predestinado à condenação ou à salvação, independentemente de suas ações. A participação de intelectuais importantes como Antoine Arnaud, Jean Racine e Blaise Pascal deu a este movimento um forte caráter político. (informações retiradas da revista Cult, 88, ano VII).

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noites em que ele e seus quatro irmãos se reuniam em volta de sua mãe para as orações

e durante as quais, Nous savions que l’être infini exige des enfants qu’ils dorment les mains en croix sur leur poitrine. Nous entrions dans le sommeil les bras repliés, les paumes comme clouées sur notre corps, étreignant les médailles bénites et le scapulaire du Mont Carmel que pour le bain même il ne fallait pas quitter. Ces cinq enfants serraient contre eux, d’une étreinte déjà passionnée, l’invisible amour [...] Quel enfant était-je dans cette atmosphère? Un enfant triste et que tout blessait. (SIMON, 1953, p.103).

Diferente da maioria das crianças de sua idade, o pequeno Mauriac tinha horror

das multidões e por isso fazia da solidão um refúgio para suas leituras ou para se

representar mundos imaginários. Porém, esses altos inocentes eram quase sempre

interrompidos pela voz de um Deus terrível e reprovador, pois, devido a sua rigorosa

educação religiosa, desde pequeno Mauriac aplicou-se em espiar e perseguir em seu

coração o mínimo sinal de impureza.

As repressões e proibições de uma forte educação religiosa, ao marcarem sua

infância, marcariam e definiriam inevitavelmente sua obra futura. Conforme afirmou

Nelly Cormeu,

Ses barrières unis à celles de la religion, font d’un enfant chaste un enfant refusé. Mais toutes ses passions, tous ces élans refoulés s’accumulent au fond de son cœur, y fermentent, y gonflent: il faudra un jour que – vie aventureuse ou œuvre palpitante – l’orage éclate, que l’incendie flambe, que déferle le fleuve de feu. (1951, p.20)

As barreiras de que fala Cormeau dizem respeito ao meio provinciano em que

cresceu o autor, mas cujo senso crítico apurado soube, desde cedo, desvelar a hipócrita

comédia. Nesse sentido cabe um parêntese para relembrar que o autor se mostrará

indiferente, enquanto romancista, a tudo aquilo que é coletivo, isto é, a estrutura social

representada pelos burgueses e seu farisaísmo religioso e familiar, e inclinar-se-á

sobremaneira sobre indivíduos isolados, cujos vícios e virtudes criam laços de amor

indissolúveis e freqüentemente dolorosos. Para o historiador de literatura Claude

Magny, a obra de Mauriac, por apresentar de maneira superficial o mundo do dinheiro e

da família apoiada pela herança, sem, portanto, questionar seus valores, acaba por

garantir um retorno aos valores individuais e coletivos do passado: “la bourgeoisie se

trouve justifiée sentimentalement par le souvenir de promenades adolescentes dans la

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forêt landaise ou l’évocation de jours heureux coulés chez les bons pères” . (MAGNY,

1950, p.145)

Mais tarde, sua crítica do coração humano encontraria inspirações na poesia de

Baudelaire, visto que sua prosa também nasce de uma inquietação interior, que opõe ao

sentimento de grandeza a condição de miséria e ao iluminismo de grandeza o realismo

do vício e do pecado (THIBAUDET, 1950, p.323). Exceto a vida secreta de uma grande

capital, três elementos que constituem a matéria comum da poesia de Baudelaire podem

ser observados na prosa de Mauriac: um cristianismo interior, uma inteligência crítica, a

aliança da prosa com a poesia. A aliança entre prosa e poesia será abordada em seguida,

quando discutiremos a expressão estilística do autor.

Quanto ao cristianismo interior e à inteligência crítica, estes remetem

inevitavelmente à diferenciação que se faz na história literária entre os escritores

“católicos”, representados por Bordeaux, Bourget, Bazin, entre outros, e os escritores

“cristãos”, representados por Mauriac, Bernanos e Julien Green a partir da década de

vinte do século passado na França. De acordo com Boisdeffre, enquanto os primeiros

defendiam a posição da Igreja associando-a a dos conservadores, os segundos

pretendiam tornar viva e concreta a exigência católica (1979, p.37). Mauriac, ao ver na

religião uma incitação ao fervor e não um sistema de proibições e regras como queriam

os moralistas, acabou se definindo um místico. A significação psicológica de sua obra

vai além da descrição dos fenômenos da consciência e de sua interpretação, pois

repousa sobre uma metafísica, ou o que Simon chamou de teologia do pecado. Porém,

diferente dos moralistas, que vêem o pecado como a violação da lei divina, o católico

Mauriac, enquanto místico, o considera o resultado da uma negação da criatura em

relação ao seu criador, isto é, o desvio do amor divino para si próprio ou para as coisas

finitas.

A inquietação do romancista está longe de se esgotar em torno da questão moral,

que preconiza uma conduta a seguir, impondo um sistema de preceitos e de proibições,

mas ao contrário, ela é orientada sobre questões espirituais que, iluminadas pelas idéias

de Santo Agustinho, procuram justificar o pecado como o resultado da ausência de amor

no ser humano. Assim, por um lado, a questão da salvação, para ele, estaria ligada à

busca do amor, pois somente os que amam e ardem interessam aos olhos de Deus:

“mieux vaut brûler que ne rien sentir...[...] le christianisme ne souffre pas les cœurs

médiocres” (MAURIAC apud SIMON, 1953, p.78). Por outro lado, ele acredita que o

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pecado é muitas vezes o resultado de um coração que se engana, de um chamado de

amor que se evade.

Nesse sentido é possível ainda fazer uma distinção entre ele e seu

contemporâneo Bernanos, porque diferentemente deste, que denunciava no homem um

instinto pecaminoso que conduz inevitavelmente a destruição de si próprio, a posição de

Mauriac, mais humanista, implica um olhar menos suspeito em relação à natureza

humana; para ele, o homem só escolhe o caminho do mal porque desconhece as

verdadeiras aspirações da alma, e distraído por suas paixões e privado da Graça, ele

sucumbe ao pecado (SIMON, 1953, p.78).

Embora Mauriac acredite que, diferentemente do mundo terreno, o mundo

divino é incomensurável, e, que, portanto, inevitavelmente, cedo ou tarde se opera uma

espécie de projeção do ser em Deus, cujo fim é a perda do indivíduo no infinito, ele

conserva a lembrança das delícias criminais do mundo, pois, enquanto homem, o

católico Mauriac reconhece que “[...] les saints mis à part – l’homme ne peut pas

demeurer sans cesse dans l’époptie; mystique, mais créature de chair et de sang, pétrie

de pitié, de tendresse, de douceur et de frénésie, vulnérable à toutes les formes d’amour”

(CORMEAU, 1951, p.172).

Nesse sentido, de acordo com Simon, é possível destacar novamente na posição

de Mauriac influências de Baudelaire quando este diz: “[…] Les vices de l’homme, si

plein d’horreur qu’on les suppose, contiennent la preuve (quand ce ne serait que leur

infinie expansion) de son goût de l’infini” (BAUDELAIRE apud SIMON, 1953, p.78) ;

a lei moral que o autor pretende comunicar através de seus personagens não parte da

distinção entre os bons e os maus; para ele, o pecado sem remissão estaria sobretudo nos

coração secos, medíocres, indiferentes, nas consciências obtusas ou ausentes, nos seres

automatizados pelos ritos sociais e impregnados de preconceitos mesquinhos. De acordo

com o estudo de Joseph Majoult em Mauriac et l’art du roman, sua ambição não seria

edificar os santos, mas sim despertar no ser a religião e a fé, “une résonnance capable de

la sortir du néant, à alerter les faux fidèles, à flageller les fausses vertus des pharisiens”

(1946, p.227).

É através da oposição dos mais variados caracteres, que sua obra, cujo princípio

essencial é o conhecimento do homem, busca desvendar e comunicar uma verdade mais

abrangente e mais voltada para o humano. Porém, é interessante destacar que a exemplo

de Pascal, o qual “ne renie rien de l’homme; il traverse tout l’homme pour atteindre

Dieu”, mas que afirma também “qu’il n’y a rien de saint dans la nature” (PASCAL apud

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CORMEAU, 1951, p.177) Mauriac se depara com a mesma exigência cristã, e por isso,

concebe um Deus na mesma atmosfera intransigente do jansenismo: “ce Dieux terrible

toujours aux aguets est un Dieu jaloux qui veut être le seul aimé” (MAURIAC apud

CORMEAU, p.177)”.

Seus personagens podem ser divididos em quatro grandes famílias. A primeira,

pouco numerosa, é composta pelas almas santas que encontraram rapidamente a paz de

Cristo; estas almas, desprovidas de drama interior, são relegadas ao segundo plano,

servindo apenas para iluminar o drama alheio, que surge inevitavelmente do conflito

entre o amor carnal e o amor de Deus. A segunda família é composta pelas almas

mortas – como o marido de Thérèse Desqueyroux – intelectualmente e moralmente

nulas, ou ainda, pelas almas promíscuas e mundanas, como Bob Lagave de Destins;

estas almas, por serem vazias e egoístas, e, portanto, sem drama, também se constituem

apenas como comparsas da ação. A terceira família é composta pelas almas privadas de

amor, cujo exemplo mais marcante é Thérèse Desqueyroux. Essa família constitui-se

como a mais numerosa porque, repleta de drama interior, é nela que o autor encontra o

potencial trágico que, como veremos no capítulo seguinte, caracteriza sua obra.

Segundo Cormeau (1951, p.139) o título de um de seus romances, Le désert de l’amour,

caberia a maioria deles, posto que grande parte dos personagens que povoam seus livros

encontra-se perdido em meio às areias áridas desse deserto. Finalmente, a quarta família

é composta pelos cristãos fiéis que ouviram a palavra de Deus, receberam o batismo,

aceitaram as leis da Igreja e experimentaram a comunhão da sacristia (SIMON 1953,

p.80).

Já Nelly Cormeau, divide os personagens de Mauriac em duas classes

antinômicas. Por um lado, segundo ela, há os apaixonados, cuja sensibilidade é a mais

palpitante e também a mais vulnerável e por outro, os medíocres, os corações mornos.

Segundo a estudiosa, o drama nasceria “tantôt du choc de ces groupes antagonistes,

tantôt du heurt de ces ardents se meurtrissant entre eux, enfin, de l’antinomie intérieure,

de la lutte de la conscience avec la passion, du conflit de Mammon avec Dieu” (1951,

p.83).

Nesse sentido, é o próprio Mauriac que nos fornece a chave para compreender o

processo de composição de suas personagens. Em o Romancista e suas personagens o

escritor declara que – em resposta àqueles que gostariam que suas personagens fossem

criaturas mais virtuosas ou o julgam perseguí-las com um certo sadismo –, por mais

horríveis que possam parecer – por exemplo, Thérèse Desqueyroux –, os heróis de seus

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romances são desprovidos do que mais abomina no mundo: “a complacência e a

satisfação consigo mesma” e prossegue,

[...] quando se estudam seres em seu momento mais baixo e na maior das misérias, pode ser bonito obrigá-los a levantar um pouco a cabeça. Pode ser bonito tomar suas mãos tateantes, atraí-los, obrigá-los a soltar os mesmos gemidos que Pascal queria arrancar do homem sem Deus... (MAURIAC, 2002, p.172).

O autor afirma em seguida que não visa com isso edificar seus personagens, mas

sim recuperar a “chama primitiva” que não pode deixar de existir neles.

O procedimento acima pode ser observado, por exemplo, em Le Nœud de

Vipères, que retrata, fundamentalmente, a história de uma redenção. Contudo, em La

Fin de la Nuit, como coloca o próprio autor em prefácio,

Au lecteur qui souhaite que toute œuvre littéraire marque les étapes d’une ascension spirituelle, et qui peut-être s’étonnera de cette descente aux enfers ou de nouveaux je l’entraîne, il importe de rappeler que mon héroïne appartient à une époque de ma vie déjà ancienne et qu’elle est le témoin d’une inquiétude dépassée (Id., 1998 , p.5).

Esta atitude provocou críticas severas, como demonstra o ensaio ‘seminal’ de

Jean Paul Sartre, M. François Mauriac et la liberté, cuja discussão gira em torno dos

procedimentos ‘contraditórios’ do católico Mauriac ao realizar sua tarefa como

romancista. Ao ler o romance La Fin de la Nuit, Sartre constata que o destino da heroína

Thérèse é conduzido não somente pelo vício de seu caráter, mas também por um poder

sobrenatural. Estes dois fatores, segundo Sartre, são incompatíveis, visto que o primeiro

só pode ser constatado pela própria heroína, enquanto o segundo requer uma série de

observações feitas do exterior. Apesar de poética e contemplativa, a idéia de uma

Thérèse que tem seu destino já traçado não corresponde à arte do romance, pois este

deve ser ação e o romancista não pode abandonar o campo de batalha e julgá-los como

se fosse Deus. Ao fazer isso, ainda segundo Sartre, Mauriac acaba por assassinar a

consciência de suas personagens, retirando delas toda e qualquer liberdade, e viola o

que, para ele, constitui uma lei fundamental do romance, isto é, “le romancier peut être

leur témoin ou leur complice, jamais les deux à la fois” (SARTRE, 1947, p.44).

Sartre, ao situar sua crítica no plano metafísico ao invés de situá-lo no plano

estético, acaba cometendo um deslize, posto que Mauriac não pretende com seu

romance ilustrar um problema metafísico, papel este reservado ao filósofo, mas sim,

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enquanto romancista obcecado pela sua personagem Thérèse Desqueyroux6, ele busca

dar continuidade a sua história, reivindicando-lhe uma nova e última encarnação.

Ademais, Sartre parece ignorar que, devido ao misticismo do autor, a consciência, que

se interpõe entre seus heróis e suas paixões e que constitui um terceiro personagem em

suas tramas, mantém inevitavelmente a presença de Deus como sua projeção metafísica.

Não obstante, para entender a personagem e seu drama é necessário evocarmos o

que Nelly Cormeau chamou de ponto de sutura entre a moral e a metafísica de Mauriac

e que define a concepção de liberdade do autor: [...] je t’aime jusqu’à exiger que tu

coopères à ta création. Je te fournis les éléments: l’or le plus pur, la plus triste boue

(1951, p.211). Isto é, uma vez fornecido os elementos, cabe a nós escolhermos o

caminho a tomar. Nesse sentido, a concepção de Mauriac se afasta imensamente do

determinismo jansenista; de acordo com Cormeau, é possível aplicar a todos os seus

personagens aquilo que o próprio Mauriac colocou em seu prefácio de La Fin de la

Nuit: [...] ce pouvoir départi aux créatures les plus chargées de fatalité, ce pouvoir de

dire non à la loi qui les écrase (MAURIAC, 1935, p.5).

1.4 O trágico em Mauriac

O caráter patético do tema tratado, isto é, o sofrimento da personagem principal,

e a ressonância do tom de la Fin de la Nuit nos revelam um romance trágico. E a fim de

corroborar com a afirmação acima, lançaremos mão, ao longo desse capítulo, entre

outros, de algumas observações de Nelly Cormeau em seu estudo já citado L’Art de

François Mauriac acerca dos critérios do trágico presentes na obra do autor.

Antes de comentar tais critérios, a autora destaca a diferença entre o trágico

moderno, característico da obra de Mauriac, e o antigo; enquanto o segundo se baseia

numa metafísica que retira do individuo qualquer responsabilidade e liberdade,

privando-o de qualquer capricho e tentativa de esforço – o herói trágico se encontra

abandonado, podendo, portanto, vir a despertar ao mesmo tempo terror e piedade - o

trágico moderno, graças à influência do cristianismo e a noção de Messias, baseia-se

numa metafísica que considera a união entre o céu e a terra, onde o homem não é mais

6 Mauriac lhe dedica dois romances, Thérése Desqueyroux e La fin de la Nuit , dois contos, Thérèse chez le médecin e Thérèse chez le docteur, além de uma breve aparição em Ce qui était perdu.

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um ser perdido nas trevas, ele é “la proie de malheurs qui lui sont commensurables,

soumis à une puissance qui ne dépasse plus, grâce à l’intercesseur, son atteinte et sa

compréhension”. (CORMEAU, 1951, p.258).

Os personagens trágicos de Mauriac, conscientes do mundo e de si mesmos,

sabem que, como já vimos, seu drama interior se insere num drama mais vasto e

invisível, cuja significação lhes escapa. A análise psicológica a que se aplica o autor,

cujo objetivo é o desvendar o coração do homem, não parte de um ponto de vista lógico

e racional que pretende retratar e fixar a complexidade da vida, mas sim de um ponto de

vista que considera a indeterminação e o mistério da vida.

A fim de atingir os segredos mais recônditos do coração humano, o autor se vale

de um critério fundamental do trágico, a profundidade psicológica. Conforme afirmou

Nelly Cormeau, assim como Racine, o autor recupera em profundidade aquilo que ele

perde em extensão; a visão que o autor possui do interior vai de encontro ao que ele

próprio falou sobre arte de Marcel Proust:

Ce n’est point d’observation qu’il faut parler à propos de lui, mais d’absorption: il a tout observé au long de sa jeunesse en apparence futile; il s’est incorporé ce monde qu’il a ensuite retrouvé au-dedans de lui par un des grands miracles poétiques de notre littérature.. (MAURIAC apud CORMEAU, 1951, p.269)

A exemplo de Proust, Mauriac pode, ao descrever aquilo que lhe era

consubstancial, nos restituir, não um universo completo, mas um universo autêntico e

durável.

Graças a uma inteligência aguda e a uma sensibilidade exacerbada o autor

consegue pintar o sofrimento de forma simples e emocionante, de modo a despertar no

leitor a impressão do possível, da verossimilhança, remetendo-lhe a uma tragédia da

qual ele mesmo poderia ser o protagonista. Nesse sentido é interessante lembrar que o

próprio Mauriac, em O romancista e suas personagens (2002), ao tentar explicar o

porquê alguns personagens de romances sobrevivem na memória de seus leitores,

destaca que isso se deve a que estes esperam daqueles esclarecimentos sobre si mesmos

ou ainda a solução de seus próprios enigmas. Esses personagens, ainda segundo

Mauriac, fixariam a tal ponto os leitores porque, diferentemente de outros personagens

de contorno mais definido, eles conservam uma parte de mistério, de incerto. Falando

especificamente do romance Thérèse Desqueyroux, primeiro romance em que a heroína

de La Fin de la Nuit aparece, Mauriac coloca:

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Por que Thérèse Desqueyroux quis envenenar seu marido? Esse ponto de interrogação contribui muito para reter entre nós sua sombra dolorosa. A partir dela, algumas leitoras puderam refletir sobre si mesmas e procurar, ao lado de Thérèse, alguma luz sobre seu próprio segredo; uma cumplicidade talvez.(MAURIAC, 2002, p.168)

Para representar a relação entre o pensamento ativo e o ser que age, o autor se

vale do monólogo interior, posto que este procedimento não impõe nenhum limite e

nenhuma restrição ao desenvolvimento e ao curso de uma existência. Porém, seus

romances se distanciam sobremaneira daqueles de autores como Joyce, Woolf e

Faulkner, pois diferentemente destes que se apóiam numa filosofia do comportamento

que procura descrever aquilo que o homem faz e diz, ele, graças a um duplo jogo de

intuição e introspecção, interessa-se ao homem pensante que age em função de seus

pensamentos. (MAJAULT, 1946, p.91)

Dessa forma, observa-se claramente nos romances de Mauriac uma subordinação

da intriga à psicologia, também característica do trágico, o que faz com que ela seja

destinada à arte do tempo e não do espaço; o trágico ultrapassa o drama, à medida que,

ao se valer de uma crise e/ou de um tormento, “[...] il l’étale si l’on veut, il l’amplifie de

telle sorte qu’on décèle sans peine que s’y joue toute un destin” […] le tragique engage

une vie entière ; le passé aussi bien que le présent”. (CORMEAU, 195, 261).

A fim de demonstrar que os romances do autor não apresentam de maneira

alguma uma trama ardilosamente tecida, um emaranhado de fatos que se confundem e

se complicam tal como vemos nas histórias policiais, ou ainda, catástrofes

extraordinárias ou aventuras prodigiosas, basta relembrarmos os acontecimentos que

marcam alguns de seus romances: Genitrix, duas mortes; Le Baiser au Lépreux, uma

morte e um casamento; Le fleuve de feu, um encontro; Le désert de l’Amour, um homem

que exerce sua profissão e um adolescente que freqüenta a escola da cidade vizinha;

Destins, um jovem doente que convalesce em sua cidade natal; Le Nœud de Vipères, a

vida de uma família onde materialmente nada acontece de sensacional. (CORMEAU,

1951, p.266)

Portanto, trata-se para Mauriac de destacar da superfície espessa e da duração de

uma existência, o ou os episódios marcantes capazes de elucidar e explicar os

movimentos de um ser ao longo de sua existência. A partir das circunstâncias, o

romancista adentra o mais profundamente possível na alma de suas criaturas a fim de

arrancar delas suas emoções mais secretas.

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Nada ilustra melhor essa tentativa do que o ciclo de Thérèse Desqueyroux: uma

tentativa de morte em Thérèse Desqueyroux, que, embora se trate de um acontecimento

extraordinário, sua descrição constitui a menor parte da obra e nada mais é do que uma

sombra projetada na memória da personagem; uma visita ao médico em Thérèse chez le

médecin; uma estadia num hotel em Thérèse à l’hôtel; e finalmente, a recepção de uma

filha que vem procurar a ajuda de sua mãe em La Fin de la Nuit.

Para compreender de que forma o autor, ao se esquivar do acontecimento, não

prejudica o ritmo de seus romances, façamos um paralelo entre sua citação a respeito de

Proust apresentada anteriormente e sua colocação em O romancista e suas personagens,

onde o autor afirma que o romancista, ao retratar a vida, deve “esforçar-se por

reproduzir essa sinfonia humana em que todos estamos enredados, em que todos os

destinos prolongam-se e penetram-se mutuamente”.(MAURIAC, 2002, p.166). Ora, é

justamente essa visão que o autor possui do interior que confere aos seus romances

“quelque chose de haletant, de pressé, de contracté même” (CORMEAU, 1951, p.269);

ao traduzir a palpitação ardente que sacode as almas o autor consegue despertar nos

leitores uma verdade a tal ponto gritante que ela poderia emanar de seus próprios

corações.

A partir de um ponto de vista especificamente estético, a emoção patética que

anima suas cenas e caracteriza sua tragicidade provém da textura concisa da trama, da

concentração, da sobriedade das réplicas, das atitudes e dos gestos.

Destacaremos a seguir, com base no estudo de Nelly Cormeau (1951, p.271-

311), alguns dos procedimentos que o autor utiliza para alcançar a intensidade trágica

característica de sua obra e cujos exemplos, quando encontrados no romance La Fin de

la Nuit e considerados pertinentes no tocante à sua transposição para o português, serão

apresentados no capítulo destinado aos comentários: a intensidade da emoção e o poder

trágico surgem, por vezes, da colusão estabelecida entre a singularidade do personagem

e a humanidade comum e é alcançada, por exemplo, através das passagens bruscas ao

nós, que obrigam o leitor a se sentir intimamente ligado ao personagem; em outros

momentos, o autor consegue despertar a lembrança de uma experiência vivida através

de uma imagem, da aproximação de duas palavras aparentemente contraditórias, de uma

repetição ou ainda de uma breve reflexão; o testemunho de um sofrimento pode vir a

impressionar, às vezes, através da junção de palavras redundantes, ou através da

atestação de uma experiência geral; por vezes o tom patético de seus solilóquios é

conseguido através do tutoiement brusco do personagem para com ele mesmo, tornando

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ainda mais vivo seu debate interior, ou do tutoiement inesperado do autor para com a

sua criatura, obrigando-a a recuperar a consciência, a lucidez (nesse caso, autor e

personagem se confundem a tal ponto que a interpelação repentina pode transformar,

num piscar de olhos, a tensão interior em paroxismo); o mesmo tutoiement pode à vezes

se tornar uma forma de encantamento, em que o herói é, subitamente, estimulado a

meditar, se emocionar e/ou se torturar com suas lembranças; algumas vezes esta

intensidade pode ser apenas um momento fulgurante que surge de um movimento

espontâneo e irrefletido do personagem diante de uma descoberta inesperada; também

pode surgir de uma comparação breve e urgente; outras vezes ela nasce da acumulação

rápida e ofegante de ondas sucessivas de sentimentos ou pensamentos que se precipitam

uns sobre os outros, definindo assim o ritmo da frase (figura retórica chamada de

acumulação).

Como não poderia deixar de ser, sua obra pode ser considerada trágica graças ao

pano de fundo metafísico, porque assim como no teatro antigo, há em seus romances um

espectador invisível que assiste a tudo e constantemente e furtivamente desce sobre a

cena. Conforme colocou Cormeau, o sentimento metafísico, qualquer que seja ele,

amplia inevitavelmente os estados extremos, pois, se a felicidade nos faz acreditar numa

presença bondosa espalhada pelo mundo, o excesso da dor nos incita a questionar os

mistérios eternos, “[…] à chercher de quelle source jaillit et vers quel océan coule notre

destin.” (CORMEAU, 1951, p.282).

A presença constante da infância na obra de Mauriac pode também ser

considerado um elemento trágico. O autor, ao fazer das meditações retrospectivas de

seus heróis uma síntese viva, acaba por intensificar o sentimento do trágico, pois, caso

contrário, isto é, se a memória pudesse ser abolida, os sofrimentos do presente não

seriam ampliados pela lembrança doces da infância e também, ao inserir um estado de

alma doloroso na trama de toda uma existência, o autor acaba por atribuir a esta uma

feição de destino.

Por exemplo, em La Fin de la Nuit, na última etapa da vida de Thérèse, o autor,

ao evocar um simples barulho, faz ressurgir na memória da personagem todo o peso da

responsabilidade de seu ato criminal:

Le heurt de l'assiette sur le marbre de la commode, le flacon débouché, une cuiller remuée dans une tasse, c'est du fond des années que ce tintement remonte jusqu'à cette femme folle de peur. Ainsi elle l'entendait autrefois dans la torpeur de la sieste, et elle se hâtait de

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verser la dernière goutte de poison pour que la paix régnât de nouveau et que la muette mort pût achever son œuvre sans troubler le silence de la chambre et du monde. (MAURIAC, 1935, p.145)

Façamos um parêntese para destacar que o tempo em Mauriac é apreendido

enquanto duração interna e graças à tensão trágica que desencadeia pontos salientes e

minutos cruciais, ele forma uma continuidade sem hiato, isto é, sem períodos de folga.

Também, a percepção do tempo em sua obra se define através de uma densidade

extrema onde a imanência no presente do que está por vir e do passado se traduz pela

retidão de uma linha única em conformidade com a posição respectiva dos diversos

momentos do tempo racionalmente apreendidos; portanto, não há em seus romances

qualquer sinal de subversão cronológica da composição romanesca, como rupturas,

retornos súbitos e lapsos etc.

A fim de nos fazer sentir a densidade da duração e a compenetração dos

momentos considerados distintos e sucessivos do ponto de vista espacial, o autor se vale

de um “poder de sugestão” (para retomar um termo de Cormeau) que consiste em

condensar em um “golpe seco e único” a realidade evocada - seja ela pensamento,

sentimento, lembranças, criaturas e objetos. Esse poder de sugestão é alcançado através

de alguns procedimentos formais como, por exemplo, o uso de demonstrativos, a

inserção brusca do presente, os apostos, as antíteses, as repetições, as acumulações, as

apóstrofes, elipses e etc.

O tom de Mauriac é caracterizado por elevações ardentes, jatos de chama, ondas

aceleradas que se elevam e caem num imenso rumor. Cormeau (1951, p.325) afirma ser

possível destacar na própria estrutura da frase, no seu movimento, na sua vibração, nas

imagens que ela ilumina e na emoção que a anima, a tônica: paixão e a dominante:

religião, por meio das quais se orquestram todos os temas do autor. Assim, sua

linguagem é caracterizada pela presença de palavras-chaves portadoras de um enorme

potencial afetivo, como Dieu, amour, coeur, souffrance, mort, exigence, désir, soif,

péché, que marcam os pontos de concentração da frase e formam feixes de luz quando

associadas a um epíteto que as sensibiliza e as personaliza; o autor dá preferência aos

adjetivos superlativos tais como terrible, démesuré, insatiable, inapaisable, infini,

éternel, deixando entrever a necessidade de superação que se encontra na origem de sua

sensibilidade e determina o estado trágico. O autor se aplica a criar termos que abrem

perspectivas, projetam o leitor num plano metafísico suscitando nele um estado

religioso de desolação ou esperança.

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A passagem que destacamos a seguir ilustra o tom ofegante do autor que serve

de prelúdio para sentido trágico do destino de Thérèse: son destin avait pris une figure

éternelle.

Des visages apparaissaient brièvement dans le champ de sa conscience puis s’effaçaient : ceux qui avaient tenu une place dans sa vie, du temps que les dés n’étaient pas encore jetés, que les jeux n’étaient pas faits, que les choses auraient pu être différentes de ce qu’elles avaient été. Et maintenant, tout était accompli : impossible de rien changer au total de ses actes ; son destin avait pris une figure éternelle. (MAURIAC, 1935, p.13)

1.5 Graças a um certo dom de atmosfera

Apesar da predominância incontestável da psicologia na obra de Mauriac, o

universo físico, longe de ser negligenciado, constitui um componente indispensável do

clima, um “reflex éloquent et tangible” do drama interior. Ele é para o romancista uma

condição necessária para conduzir o leitor ao mundo de seus personagens.

O caráter tenso e excessivo de seus personagens, a forma impetuosa do relato e o

balanço célere, mas carregado de poesia, encontram-se em estreita harmonia com os

lugares onde se passam os acontecimentos. É desse paralelismo entre a terra e o homem,

dessa união harmônica onde o canto da natureza reforça o canto interior que o autor

retira a essência de sua poesia.

Alguns críticos o acusam de uma certa monotonia, uma vez que o clima físico

que o autor descreve é quase sempre os verãos tórridos e ofuscantes, os incêndios de

pinheiros e as tempestades de Bordeaux, sua terra natal, esquecendo-se, porém, que é

este o clima que melhor se adapta ao clima ardente dos dramas interiores e à intensidade

das paixões desvairadas de seus personagens.

Aos que o condenam de monotonia, Mauriac, em O romancista e sua

personagens, procura justificar-se afirmando ser impossível para ele conceber um

romance se que ele tivesse presente em espírito a região e a casa em que viveriam seus

personagens e que não lhe serviria de nada estabelecer-se por qualquer período que

fosse numa região totalmente desconhecida, pois

Nenhum drama pode começar a viver em meu espírito se não o situo nos lugares em que sempre vivi. Preciso seguir minhas personagens de quarto em quarto. Muitas vezes sua face permanece indistinta para

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mim, conheço apenas a silhueta, mas sinto o cheiro de mofo no corredor que atravessam, não ignoro nada do que sentem a tal hora do dia e da noite, quando saem do vestíbulo e avançam para a escadaria. (MAURIAC, 2002, p.159)

O último parágrafo da citação acima remete à primazia que o autor atribui às

sensações; assim, da mesma forma que ele evita o relato minucioso dos acontecimentos,

ele esquiva-se deliberadamente da descrição minuciosa e completa da paisagem,

preferindo realizar a fusão entre o estado de alma e a paisagem por meio das sensações:

sensações táteis, sabores, cheiros, tinidos e sopros esparsos são recolhidos a fim de

sugerir a vida material e cambiante do romance, seu ambiente palpável, a presença

física das coisas, o habitat particular e concreto dos personagens e do drama que os

anima.

Uma vez que o autor traduz as paixões e os sentimentos com termos tomados

das forças elementares da natureza como a água, o fogo, a terra, o mar, a luz, os

barulhos e os odores, sua prosa exala a mesma poesia e pureza dessas forças. Além

disso, ao integrar o sentido cósmico em sua obra através de imagens, o autor amplia a

tragédia interior na proporção do mundo e assim acaba por reforçar o pano de fundo

metafísico já mencionado.

Para Nelly Cormeau, são as imagens que dão ao tom e ao estilo do autor sua

insubstituível qualidade poética, uma vez que

il pense, il sent et, par dessus tout, il écrit par images.[...] Ce sont elles qui créent la vibration, le chatoiement éblouissant, la respiration large et profonde, le goût de grand air –la magie et la puissance – de cette expression souveraine dont la beauté nous subjugue. (CORMEAU, 1951, p.333)

Assim, ao invés de nos apresentar uma analogia, o autor opera uma intima união

entre o estado de alma e a natureza, fazendo com que ambos se tornem cúmplices e se

expliquem mutuamente. Nesse sentido, Simon (1953, p.38), ao comentar a necessidade

do autor em refletir o drama interior por meio de sensações retiradas da natureza, afirma

ser possível aplicar a alguns de seus romances um subtítulo que os localiza no tempo e

no espaço: Le Baiser au Lépreux ou o verão no Lande, Le Désert de l’amour ou Talence

em meio às tempestades, Destins ou o sol sobre os vinhedos, Thérèse Desqueyroux ou

Argelouse sob a chuva. Para exemplificar, destacamos uma passagem do romance La

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Fin de la Nuit7, onde o desânimo e a paralisia de Thérèse frente aos acontecimentos são

sugeridos através da sensação de torpor provocado pela chuva.

Thérèse la suivait des yeux et déjà, à d'imperceptibles signes, découvrait que c'était une ennemie qui était entrée dans sa chambre; une ennemie mortelle. La maison était engourdie dans le silence pluvieux. Aucune sonnette ne marchait.(MAURIAC, 1935, p.145)

Dentre os principais temas representados pelas imagens por Mauriac estão: a

paixão e sua privação, a pureza da infância, as aspirações religiosas do autor e o seu

exagero em relação a qualquer desejo, e, finalmente, o drama dos seres que se espiam,

se agridem, se perseguem, se torturam e se destroem.

Para traduzir a paixão, o autor elege paisagens que evocam o sol tórrido, as

tempestades, a profundeza das florestas e os rios tumultuosos, enquanto sua privação é

representada por imagens tomadas do deserto. A nostalgia da pureza da infância que

atravessa de uma ponta a outra sua obra é traduzida através de imagens que evocam a

água, com suas fontes claras e borbulhantes. As aspirações religiosas e seu exagero em

relação aos desejos são representados por imagens marinhas, com sua ilusão de infinito,

suas tempestades, suas fúrias descontroladas e suas mudanças de maré. O drama dos

seres é muitas vezes traduzido por imagens tomadas da caça.

Cabe sublinhar que as imagens em Mauriac são caracterizadas por um

movimento de frase e por palavras que as reforçam, graças “à une science consommée

de sonorités privilégiées et charmeuses” (CORMEAU, 1951, p.339)

Apesar da simplicidade do tom e da concisão da frase as imagens em Mauriac se

caracterizam por longas ressonâncias, como atesta essa passagem de La Fin de la Nuit,

cuja aliteração da última frase reforça o desespero de Thérèse.

Et pourtant elle était sûre d’avoir atteint une extrémité : comme lors-que le trimardeur s’aperçoit qu’il a suivi un chemin ne menant nulle part et qui se perd dans les sables. Chaque bruit du dehors s’isolait de la rumeur humaine, prenait une valeur absolue : cette trompe d’auto, ce rire de femme, le grincement d’un frein.(MAURIAC, 1935, p.12)

Porém, não é só de termos tomados da natureza que o autor se vale para traduzir

os estados da alma, ele consegue também, com a mesma maestria, suscitá-los através da

7 A maior parte do romance La Fin de la Nuit se passa em Paris, porém, nos últimos capítulos, a personagem retorna à propriedade de seu marido, em Argelouse.

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descrição do aspecto material de objetos presentes nos cômodos das casas ou dos

apartamentos habitados por seus personagens. A seguir uma passagem de La Fin de la

Nuit onde a desolação de Thérèse por ter comprometido a felicidade de sua filha parece

ser reforçada pela descrição um pouco vertiginosa do cômodo em que ela se encontra.

Les yeux de Thérèse s'étaient accoutumés à la nuit. Elle voyait la forme de l'armoire, la masse du fauteuil, et cette vague lueur, sur les vêtements quittés, qui fusait des persiennes et qui n'était pas celle de l'aube.(MAURIAC, 1935, p.102)

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[...] A constituição de uma história da tradução é a primeira tarefa de uma teoria moderna da tradução. [...] É impossível separar essa história daquela das línguas, das culturas e das literaturas – ou ainda daquela das religiões e das nações. Também não

se trata de misturar tudo, mas de mostrar como em cada época ou em cada espaço histórico considerado, a prática da tradução articula-se à da literatura, das línguas,

dos diversos intercâmbios culturais e lingüísticos (BERMAN, 2002).

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Capítulo II

Teorias da Tradução

2.1 Tradução e Literatura

A tradução, enquanto fenômeno histórico, tem sido desde sempre negligenciada

pela pesquisa; considerada tão somente um epifenômeno da história, esta prática, por

não se tornar seu próprio objeto de estudo, era definida antes mesmo de ser estudada. A

problemática lançada por alguns teóricos da tradução como, por exemplo, Lambert, é a

de que a pesquisa em tradução se preocupava até bem pouco tempo em inferir acerca de

questões atomistas, focando-se basicamente na relação unilateral entre os textos

originais e suas traduções. Interessando-se à globalidade do processo de tradução, os

estudos descritivos propõem, além da abordagem dos textos, a análise dos problemas e

motivações que orientam a tradução enquanto processo, desencadeando,

conseqüentemente, questões fundamentais, a saber:

[...] qu’entend-on, à travers les cultures pour “traduire”? Comment traduit-on? Quelle est la fonction des traductions dans les littératures et principalement dans leur développement? Comment expliquer les crises et les révolutions en matière des traductions?(LAMBERT,1998, p.152).

Reivindicando o abandono das teorias normativas, os “estudos descritivos da

tradução” que tem seus maiores representantes em teóricos como Toury, Brisset e Even

Zohar preconizam um modelo sistêmico, que resulta da combinação de convenções

estrangeiras e autóctones em relação aos seus respectivos sistemas de comunicação,

visando, sobretudo, determinar a concepção da tradução em um determinado momento

histórico. Em termos descritivos, a literatura traduzida seria um sistema intermediário,

sendo o estudo de suas funções apto a nos conduzir ao interior da literatura e de seu

funcionamento. Ao adotar tal ótica, há de se levar em conta que mesmo zonas

assistêmicas podem influir na evolução dos sistemas autóctones (LAMBERT, 1998, p.

157).

Even Zohar distingue três situações em que a literatura traduzida pode

desempenhar papel preponderante no sistema literário de chegada que, por sua vez, deve

ser compreendido como parte integrante de um polissistema complexo que engloba

cultura, educação, linguagem e sociedade e são elas:

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[...] when a poly-system has not yet been crystallized, that is to say, when a literature is “young” in the process of being established; when a literature is either “pheriferical” (within a large group of correlated literatures) or “weak”, or both; when are turning points, crises, or literary vacuums in a literature. (ZOHAR, 1990, p.46)

Nesses casos, as escolhas dos textos são sempre feitas de acordo com a

compatibilidade com as novas abordagens e o suposto papel inovador que podem

desempenhar no sistema literário de chegada.

Esta última formulação pode perfeitamente ser aplicada a literatura brasileira,

visto que ao longo da nossa história literária a tradução desempenhou papel fundamental

para a formação dos escritores autóctones, e conseqüentemente, para o enriquecimento

da literatura local.

Antônio Cândido aponta em Formação da literatura Brasileira a contribuição

das literaturas estrangeiras no processo de enriquecimento da literatura local; segundo

ele, seria ingênuo pensar que uma literatura pudesse encontrar somente nos autores

locais o suficiente para elaborar sua visão das coisas e experimentar as mais altas

emoções literárias; se isto já é impensável no caso dos portugueses, o é ainda menos

para um brasileiro, pois “a literatura brasileira é recente, gerou no seio da portuguesa e

dependeu da influência de mais duas ou três para se constituir” (CANDIDO, 1977, p. 9).

Alfredo Bosi, em sua História Concisa da literatura brasileira evoca en passant a

influência das traduções poéticas na formação do gosto literário dos brasileiros.

Algumas versões brasileiras como O Vento e a Noite de Emily Brontë por Lúcio

Cardoso, As Flores do Mal de Baudelaire por Jamir Almansur Haddad, O cemitério

Marinho de Valéry por Darcy Damasceno, Três Cantos do Inferno por Dante Millano, A

Canção de Amor e de Morte do Porte-estandarte Cristóvan Rilke de Rainer Maria Rilke

por Cecília Meirelles, Seis Cantos do paraíso de Dante por Haroldo de Campos,

Mallarmagem (doze poemas de Mallarmé) por Augusto de Campos (tradução-invenção

reunidas em Verso Reverso e Controverso) entre outras, apesar de díspares,

[...] entraram para o tesouro comum da poesia que transcende os limites nacionais e ensina o homem a melhor conhecer o mundo e a si mesmo, construindo sobre o que é propriamente humano: a linguagem (BOSI, 1997, p. 545).

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No tocante à reformulação da poética brasileira em meados do século XX pelos

concretistas, é interessante notar que suas atividades de teorização e criação se deram

em grande parte a uma contínua tarefa de tradução; os concretistas fizeram desta prática

“um nutrimento do impulso criador”, valendo-se para tanto das idéias poundianas a

respeito da tradução como criação e como crítica. O caminho poético traçado por Pound

foi desde os primórdios influenciado pelas aventuras de tradução, através das quais o

poeta submetia seu instrumento lingüístico às mais variadas dicções e estocava material

para seus poemas, daí o porque de sua reivindicação pela categoria estética da tradução.

Tendo em vista que as duas funções da crítica são, segundo o poeta inglês, tentar

antecipar teoricamente a criação e em seguida a escolha, que consiste [...] na ordenação

do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa o mais

rapidamente possível encontrar-lhe a parte viva e perca o menos tempo possível com

questões obsoletas (CAMPOS, 1992, p.36), Campos considera que o trabalho de Pound

pode ser considerado ao mesmo tempo crítico e pedagógico, pois além de diversificar as

possibilidades do seu idioma poético, disponibilizou para os novos poetas e amantes de

poesia um repertório de produtos poéticos básicos; este último vivificado e

reconsiderado, pois de acordo com seu lema “Make it New” a tradução é uma forma de

dar nova vida ao passado literário.

O procedimento de tradução de acordo com os princípios poundianos pode ser

observado nas traduções dos dezessete Cantares do próprio Ezra Pound, nos dez

poemas de e. e. cummings traduzidos por Augusto de Campos, nas traduções-recriações

de dez fragmentos de Finnegans Wake de Joyce por Augusto de Campos e Haroldo de

Campos, além de outras experiências com textos “difíceis” de vanguardistas alemães,

hacaístas japoneses, trovadores provençais, metafísicos ingleses, canções de Dante e etc.

Conforme colocou Campos (1992),

[...] os móveis primeiros do tradutor, que seja também poeta e prosador, são a configuração de uma tradição ativa (daí não ser indiferente à escolha do texto a traduzir, mas sempre extremamente reveladora), um exercício de intelecção e através dele, uma operação de crítica ao vivo. (Campos, 1992, p.44).

O poeta e teórico vai ainda mais longe ao sugerir que se considere no ensino da

literatura o problema da amostragem e da crítica via tradução, desmistificando assim o

ensino estanque da mesma. A tradução como uma forma privilegiada de crítica estaria

apta, segundo Campos, a conduzir poetas, amadores e estudantes de literatura ao interior

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do texto artístico, desvelando assim seus mecanismos e engrenagens mais íntimos. A

crítica através da análise e comparação de material foi colocada em prática por Augusto

de Campos em Um lance de Dés do Grande Sertão, onde o autor coteja excertos do

Grande Sertão com outros (recriados do português) de Finnegans Wake de Joyce, a fim

de demonstrar as influências joyceanas na obra de Guimarães Rosa.

Certamente uma investigação mais aprofundada sobre as influências que podem

exercer certos textos estrangeiros sobre os escritores locais, devido a sua complexidade,

requer um estudo à parte. Porém, é possível verificar a partir das informações

apresentadas laconicamente acima que, como toda prática cultural, a tradução pode

implicar na reprodução criativa de valores. Se contrapusermos, por exemplo, a empresa

de um Joyce na Irlanda com a de um Guimarães Rosa no Brasil, constata-se que ambas

fazem parte de um projeto ainda maior, isto é, o rompimento com os modelos vigentes

por meio da subversão da língua e dos códigos nacionais e sociais a ela ligados, visando

com isso a constituição de seus respectivos espaços literários. De acordo com Casanova

(2002), os escritores oriundos de países desprovidos literariamente, na busca por uma

autonomia, são levados quase sempre a operar revoluções específicas contra as relações

de força que governam o espaço literário mundial, reiventando, criando e

reapropriando-se dos conjuntos de soluções disponíveis: novos gêneros literários,

formas inéditas, novas línguas, traduções, literarização dos usos populares da língua,

etc.

Todas estas declarações respaldam a reivindicação de Antoine Berman por um

melhor estatuto para a tradução; para ele, esta atividade não deveria implicar nenhuma

nostalgia, pois além de potencializar o original, a tradução promove o enriquecimento

da língua e a intensificação das trocas interculturais.

A tradução como forma de potencialização do original foi largamente discutida

pelos românticos alemães, sendo mais tarde retomada por Walter Benjamin. Nesse

sentido, cabe relembrarmos a noção de crítica desenvolvida pelos alemães, primeiros a

alertar que a crítica das obras não deveria se contentar simplesmente em enunciar uma

série de julgamentos baseados em regras estéticas e/ou na sensibilidade. Era preciso

antes, conforme coloca Berman – aludindo ao fragmento de Novalis sobre a tradução

mítica - que a crítica se preocupasse “em resgatar a pura idéia desta obra, seu caráter

puro e acabado” (BERMAN, 2002, p. 217). Ao aplicar para a tradução a noção de

crítica esboçada acima, os alemães a transformaram em parte constitutiva dessa crítica.

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A tradução enquanto forma sui generis de crítica, nas palavras de Walter

Benjamin,

[...] tende a expressar o mais íntimo relacionamento das línguas entre si. Ela própria não é capaz de revelar, nem é capaz de instituir esta relação oculta; pode, porém, apresentá-la, atualizando-a de maneira germinal e intensiva. [...] Essa tarefa consiste em encontrar na língua para qual se traduz a intenção, a partir da qual o eco do original é nela despertado. (BENJAMIN, 2001, p.202)

O que melhor representou essa relação foi certamente Hölderlin, que, como

atestam estas palavras de Berman em A prova do estrangeiro, “foi o primeiro que pela

radicalidade de sua empresa, abriu-nos para a necessidade de uma reflexão global e

aprofundada sobre o ato de traduzir na desconcertante multiplicidade de seus registros”

(BERMAN, 2002, p. 311). Berman procura demonstrar que as traduções de Hölderlin,

pertencentes antes ao domínio da experiência deste em relação à poesia grega do que ao

domínio da simples interpretação, vislumbraram possibilidades e necessidades

essenciais ao ato de traduzir; ao se voltar ao período virtual de formação da poesia

grega, as traduções do poeta suábio estabeleceram não somente uma relação sui generis,

mas, conforme colocou Berman,

[...] mais profunda, mais responsável que as outras relações: ela tem o poder de revelar o que, nessa obra, é origem (inversamente, ela tem o poder de ocultar de si mesma essa possibilidade), e isso indica que mantém com ela uma certa relação de violência (BERMAN, 2002, p.305).

A tradução passa, a partir de Hölderlin, a ser esse lugar onde as culturas e as

línguas se delimitam, daí o porquê, segundo Berman, suas traduções podem ser

consideradas históricas; também podem ser consideradas constitutivas do cenário

moderno da tradução na medida em que dão testemunho de uma escolha que contesta as

injunções culturais impostas pela tradição ocidental – que visam a apropriação e

redução do estrangeiro –, transformando a tradução em um “ato cultural criador”.

Para o teórico/tradutor francês Antoine Berman, é justamente a ausência de um

discurso que defina a tradução em termos criativos que permite que ela se mantenha

presa a uma dimensão na qual ela é sempre suspeita, pois o tradutor enquanto mero

mediador das obras estrangeiras encontra-se sempre diante do dilema ancilar: “trata-se

de servir à obra, ao autor, à língua estrangeira (primeiro senhor) e de servir ao público e

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à língua estrangeira (segundo senhor)” (BERMAN, 2002, p.15). Ao contrário, uma

tradução concebida de acordo com a visada ética, cuja essência “é ser abertura, diálogo,

mestiçagem, descentralização”, pode vir a contribuir para que esta prática seja retirada

de uma vez por todas de seu gueto ideológico.

2.2 Tradução e Crítica

Valendo-nos de conceitos teóricos acerca da literatura e da tradução tentaremos

tecer o fio condutor do processo tradutório do romance La Fin de la Nuit de François

Mauriac. Ao mesclar tais conceitos visamos redimensionar noções oriundas das relações

de oposição próprias à tradução tais como fidelidade e liberdade, letra e sentido, ganhos

e perdas, acréscimo e omissão, diferença e similaridade etc.

Antoine Berman, acredita que a tradução, uma vez que é ligada à linguagem,

deve se situar num espaço imprevisível, daí o porquê ele incita o tradutor a repousá-la

sobre um plano discursivo, aproximando-a da escritura; assim sendo, enquanto discurso,

a tradução passa a ser volátil e, conseqüentemente, não pode ser circunscrita num

espaço previsível (BERMAN, 1989, p.3). Ao adotar essa ótica pretendemos também,

assim como sugere o teórico francês, inverter a situação de “ancilaridade” da tradução,

visto que o trabalho de (re) escritura requer obrigatoriamente do tradutor um esforço

criativo a fim de que a verdade da obra possa ser restituída. Nesse sentido, é válida a

colocação de Berman em seu livro John Donne: Pour une critique des traductions, em

que ele, ao assinalar o parentesco estrutural entre crítica e tradução quando diz “qu’il se

nourrisse de livres critiques ou non pour traduire tel livre étranger, le traducteur agi en

critique à tous les niveaux” (BERMAN, 1995, p.40), destaca a importância desta para a

perpetuação, “realização”, circulação e “manifestação” das obras.

O teórico aponta, contudo, a tensão existente entre crítica e tradução, tensão esta

testemunhada pela freqüente falta de interesse dos críticos pelos problemas de tradução;

esta atitude por parte da crítica se deve, segundo Berman, ao fato de que ela ignora em

suas análises que “la critique d’une traduction est celle d’un texte qui, lui-même, résulte

d’un travail d’ordre critique” (BERMAN, 1995, p.41). Desse modo, ao negligenciar a

proximidade entre crítica e tradução, as análises se limitam a apontar a defectibilidade

dos textos traduzidos e, conseqüentemente, constituem-se como inibidoras das

potencialidades do trabalho de (re) escritura que implica esta atividade. Ao contrário,

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Berman acredita que, assim como para as obras, a crítica da tradução deveria se

desenvolver “dans une multiplicité de dimensions et de discours qui fait toute sa force et

sa richesse” (BERMAN, 1995, p. 41); ele sugere, portanto, um conceito de crítica das

traduções que reconheça o laço ontológico que liga à tradução aos seus originais.

Retomando o conceito de (re) escritura evocado acima, lembremos que dele

decorre o fato de que a tradução deve ser entendida a partir de um conjunto de inter-

relações sociais e culturais de ambas as culturas envolvidas, e não somente como uma

mera transposição lingüística. Ademais, além de a tradução exigir do tradutor o

conhecimento profundo da cultura de partida e da comunidade que ele representa, é

fundamental, no caso da tradução literária, que o tradutor também lance mão de

conhecimentos acerca dos conceitos teóricos da literatura e, especificamente, acerca do

autor e da obra que ele se propõe a traduzir. Portanto, a tradução literária não é uma

atividade isolada, mas ao contrário, ela se desenvolve através da articulação com outros

gêneros essenciais que presidem o destino das obras tais como a crítica, o comentário e

a análise.

Antes de apresentar algumas considerações acerca dos passos a serem seguidos

no que concerne à interpretação das obras artísticas, convém lembrar que, uma vez que

trabalho de (re) escritura é entendido não como tradução de uma língua e sim daquilo

que o discurso faz dela, o tradutor não deverá se contentar com a transposição do

sentido ou da significância, mas sim da totalidade do signo.

A este respeito, destacamos do estudo de Bakhtin em Questões de literatura e

estética: A teoria do romance (1988) sua colocação no tocante à conduta liminar que

deve assumir a estética literária ao abordar as obras literárias. O autor russo acredita que

uma análise estética concreta das obras deve partir de uma concepção que considere o

estudo do objeto estético na sua singularidade, devendo o analista, “compreender a

forma e o conteúdo na sua inter-relação essencial e necessária: compreender a forma

como forma do conteúdo, e o conteúdo como conteúdo da forma, compreender a

singularidade e a lei de suas inter-relações” (BAKHTIN, 1988, p.69). Para dar conta da

totalidade da obra literária torna-se indispensável compreender os elementos que a

compõem não somente a partir de uma única lei literária abstrata, mas também a partir

das leis possíveis do conhecimento e do ato, “pois a forma esteticamente significante

não engloba o vazio, mas a tendência semântica, autônoma e perseverante da vida”

(BAKHTIN, 1988, p.38).

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Nesse sentido, o tradutor, se sua intenção é transpor para sua língua os dois

elementos, o do conteúdo e o da forma, deve necessariamente lançar mão de uma

operação crítica que consiste em identificar os momentos significantes da obra,

momentos estes decorrentes da interação “essencial e axiologicamente tensa” de ambos

os sistemas nela presentes.

A fim de ilustrar a relação entre o conteúdo e a forma em uma obra literária, vale

transcrever o cotejo de uma passagem do romance Thérèse Desqueyroux com a tradução

de Drummond, onde percebemos a maestria do poeta brasileiro na transposição desses

elementos para língua de chegada. Trata-se de uma passagem em que Thérèse,

personagem principal, encontra-se entregue a suas imaginações e onde a descrição da

paisagem concorre na apreensão de sua reclusão. Primeiramente, o animismo e/ou

personificação do vento observado no original com o verbo gronder foi devidamente

reproduzido pelo poeta com o uso do verbo sussurrar, personificação essa altamente

significativa, uma vez que na passagem seguinte a intimidade de dois corpos unidos foi

por ela reforçada. A seguir, observa-se novamente a fusão entre a imaginação de

Thérèse – que tenta em vão reavivar em sua memória os encontros furtivos do passado –

e o silêncio imutável de Argelouse. Drummond se mostra sensível não só aos matizes,

ao empregar o verbo recompor e o substantivo ruído, como também ao ritmo pausado

que completa a monotonia da paisagem. Finalmente, é possível observar também, no

último parágrafo, a preocupação do poeta em recriar o ritmo da frase: o ritmo nela é

crescente e precipitado assim como as imagens que surgem na consciência de Thérèse.

Paris grondait comme le vent dans les pins. Ce corps contre son corps, aussi léger qu’il fût, l’empêchait de respirer; mais elle aimait mieux perdre le souffle que l’éloigner. […] Elle essayait de retrouver ses imaginations nocturnes; au reste il n’y avait guère plus de bruit dans Argelouse, et l’après midi n’était guère moins sombre que la nuit. En ces jours les plus courts de l’année, la pluie épaisse unifie le temps, confond les heures ; un crépuscule rejoint l’autre dans le silence immuable. [...] avec méthode, elle cherchait, dans son passé, des visages oubliés, des bouches qu’elle avait chéries de loin, des corps indistincts que des rencontres fortuites, des hasards nocturnes avaient rapproché de son corps innocent. (MAURIAC, 1927, p.151) Paris sussurrava como os ventos nos pinheiros. Esse corpo junto ao seu corpo, por mais leve que fosse, impedi-a de respirar; mas preferia perder a respiração a afastá-lo. [...] Procurava recompor suas imaginações noturnas; de resto quase não havia mais ruído em Argelouse e a tarde era pouco menos sombria que a noite. Nesses dias, os mais curtos do ano, a chuva espessa unifica o tempo, confunde as horas; um crepúsculo se liga a outro no silêncio imutável. [...] metodicamente, pesquisava no passado rostos

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esquecidos, bocas que amara de longe, corpos indistintos que encontros fortuitos, acasos noturnos haviam aproximado de seu corpo inocente. ( MAURIAC, 2002, p.127)

Comentaremos agora a entrevista concedida por David Arrigucci Junior, onde

ele discute métodos e técnicas de análise e interpretação da obra literária e que

permitem ao tradutor-crítico identificar os momentos significantes explicitados acima.

Nas palavras de Arrigucci, a interpretação da literatura “é a tradução em

linguagem daquilo que compreendo no modo de ser de uma obra literária” (mimeo, p.3).

O autor distingue duas atitudes básicas no tocante aos estudos literários: a explicação,

que consiste em considerar a estrutura significativa da obra em relação a suas estruturas

maiores (como por exemplo, a linguagem, a história, a cultura em geral, etc) e a análise

e interpretação, que consiste na “penetração na estrutura significativa da obra”. O autor

confere maior importância à segunda atitude, posto que o papel do intérprete é o de

compreender a obra a partir dela mesma8 e não somente traduzir o conjunto de signos a

partir de elementos externos, como acontece na atitude de explicação.

Apesar de o autor conferir maior importância à compreensão e à analise, ele não

deixa de sublinhar que a explicação constitui um preâmbulo fundamental para a análise

propriamente dita, à medida que é através dela que elementos objetivos do texto que

possam vir a emperrar ou dificultar a compreensão poderão ser elucidados: “[...] aos

poucos, quando bem conduzido, vai virando interno: os limites entre a explicação

externa e a análise podem ser tênues. Essa abordagem inicial é uma preparação do

terreno” (mimeo, p. 6). Arrigucci lembra que o processo de explicação pode ser

ancorado com livros a respeito do autor e de sua obra, que apesar de não chegarem ao

miolo da crítica podem abrir terreno para ela.

Chegamos agora à tarefa de compreensão, que, segundo Arriguci, refere-se ao

que não é explicável. Nessa altura, o crítico-tradutor deixará de lado o conteúdo de coisa

que está explicito e passará a se interessar ao conteúdo de verdade que “jaz por baixo”:

“o crítico está interessado no conteúdo de verdade, naquilo que mantém viva a chama

8 Aqui cabe um parêntese para destacar a colocação do teórico Todorov, num artigo intitulado Linguagem e Literatura (1970), a respeito da imanência da linguagem na literatura e, portanto, do estatuto particularmente privilegiado desta no seio das atividades semióticas: “Ela tem a linguagem ao mesmo tempo como ponto de partida e como ponto de chegada, ela lhe fornece tanto sua configuração abstrata quanto sua matéria perceptível, é ao mesmo tempo mediadora e mediatizada. A literatura se revela, portanto, não só como o primeiro campo que se pode estudar a partir da linguagem, mas também como o primeiro cujo conhecimento possa lançar uma nova luz sobre as propriedades da própria linguagem”. (TODOROV, 1970, p.54)

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da fogueira. Isto é tarefa da crítica literária e das operações internas. Estou falando da

análise e da interpretação” (mimeo, p.9)

A análise, de acordo com Arrigucci, consiste numa desmontagem, isto é, “é uma

divisão do todo em partes para o reconhecimento da funcionalidade que têm as partes no

todo” (mimeo, p.10). Porém, convém lembrar que esse reconhecimento interno, que

depende da constituição e da reorganização do todo, parte de uma interpretação pessoal

e afetiva, pois de acordo com Arrigucci:

Toda vez que eu abordo um texto ou uma obra de arte, eu abordo com tudo o que eu sou, com toda a experiência que eu tenho acumulada (da leitura do poeta em questão, da leitura de poetas similares da época, da história da época, de todo meu conhecimento pregresso etc), como a pessoa que sou.(mimeo, p.14)

Portanto, a tradução numa mesma língua assim como em outra língua dos

significados num sentido serão tão infinitas quanto forem os leitores-tradutores da obra.

Ademais, se considerarmos as obras de arte (prosa ou poesia) que conferem

primacial importância ao tratamento da palavra como objeto – isto é, em que a essência

e a função da informação estética estão vinculadas a seu instrumento, a sua realização

singular –, como é o caso da prosa-poética de Mauriac, somos levados, inevitavelmente,

a compartilhar algumas colocações de Campos, no artigo já mencionado no capítulo

anterior Da Tradução como criação e como crítica (1992). Segundo Campos, tais

textos, já que nos levam a admitir a impossibilidade de tradução, engendram,

conseqüentemente, “o corolário da possibilidade, também em princípio, da recriação

desses textos” (CAMPOS, p.34, p.34). Desse modo, nos parece que quanto maiores as

dificuldades apresentadas pelo texto original, maior será também a intervenção pessoal

do tradutor na recriação desse texto, o que torna, pois, mais evidente a autonomia do

texto traduzido em relação ao original, embora essa autonomia permaneça sempre

relativa. Nesse sentido, podemos fazer nossas a palavras de Berman:

Mais une traduction ne vise-t-elle pas, non seulement à “rendre” l’original, à en être son doublé (confirmant ainsi sa secondarité), mais à devenir, à être aussi une œuvre? Une œuvre de plein droit? Paradoxalement, cette dernière visée, atteindre l’autonomie, la durabilité d’une oeuvre, ne contredit pas la première, elle la renforce. Lorsqu’elle atteint cette double visée, une traduction devient un ‘nouvel original’”(BERMAN, 1995, p.42)

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Como então proceder para que a obra traduzida reproduza com a mesma

maestria os traços peculiares da obra primeira e com isso provocar no leitor da tradução

uma sensação similar àquela provocada nos leitores de partida? Eis ai um dos grandes

desafios da tradução literária. Acreditamos que o primeiro grande passo é o que nos

indica Arrigucci: penetrar na estrutura significativa da obra, dedicando-lhe uma atenção

flutuante que nos permita detectar os detalhes significativos – tais como, por exemplo,

as construções peculiares e o tom do autor do original – e com isso estabelecer “uma

cadeia coerente de significados na qual, em cada elo, está latente a totalidade” (mimeo,

p.13); num terceiro momento, que é a transposição dessa cadeia de significados para

uma outra língua, o tradutor será então inevitavelmente levado a “elaborar um sistema

racional de escolhas”.

É nesse sentido que Campos discorre a respeito da tradução enquanto “vivência

interior do mundo e da técnica do traduzido”:

Como que se desmonta e se remonta a máquina da criação, aquela fragílima beleza aparentemente intangível que nos oferece o produto acabado numa língua estranha. E que, no entanto, se revela suscetível de uma vivissecção implacável, que lhe revolve as entranhas, para trazê-la novamente à luz num corpo lingüístico diverso.(CAMPOS, 1992, p.43)

Ao adotarmos este processo – aceitando que a tradução é ao mesmo tempo

“transcriação” ou “transposição criadora” e “reflexividade crítica” (para retomarmos os

termos de Berman em sua conclusão de A Prova do Estrangeiro (2002)) – acabamos por

transformar a tradução, conforme pontua também esse teórico, numa nova forma de

expressão, à medida que o próprio movimento de operação interlinguística e

intercultural se transforma numa forma sui-generis de crítica capaz de revelar estruturas

ocultas. (BERMAN, 2002, p.21)

Ademais, tendo em vista a ética da tradução vislumbrada por Berman, é

necessário que essa transposição leve em conta as diferenças culturais e lingüísticas da

cultura a qual o texto pertence.

Para se ter uma idéia da complexidade desse processo quando tratamos de um

romance, vale citar o estudo já mencionado de Bakhtin, onde ele discute alguns

conceitos que gravitam em torno da estilística no romance.

Para o autor russo, a prosa romanesca, ao invés de ser entendida como um

discurso poético no sentido estrito, deve ser encarada como um fenômeno

plurilinguístico, plurilíngüe e plurivocal; considerada em seu conjunto, a prosa

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romanesca caracteriza-se por unidades estilísticas heterogêneas que repousam sobre

planos estilísticos diferentes, que são, portanto, submetidos a leis estilísticas distintas.

As unidades estilísticas de composição do conjunto romanesco são: a narrativa direta e

estilística do autor; a estilização de diversas formas da narrativa tradicional oral;

estilização de diversas formas da narrativa (escrita) semiliterária tradicional; diversas

formas literárias (escritos morais, filosóficos, científicos, declamação retórica,

descrições etnográficas, informações protocolares, etc).; discursos dos personagens

estilisticamente individualizados.(BAKHTIN 1988, p.74). A originalidade estilística da

prosa romanesca se daria então graças ao plurilinguísmo social e à presença de

diferentes vozes que transformam sua linguagem num sistema de línguas através da qual

se orquestram os temas, o mundo objetal, semântico, figurativo e expressivo.

Entretanto, segundo Bakhtin, “a orientação para a unidade”, no passado e no

presente das línguas, levou o pensamento filosófico-linguístico a se fixar nos aspectos

mais resistentes e menos ambíguos do discurso; como conseqüência, os estudiosos

acabaram por ignorar todos os gêneros verbais (folclóricos, retóricos, prosaicos,

literários) – presentes nas esferas sócio-semânticas mutáveis do discurso – portadores

das tendências descentralizantes da vida lingüística e participantes substanciais do

plurilingüismo.

Para Bakhtin, o discurso da prosa romanesca deve ser entendido enquanto

fenômeno dialógico, isto é, um discurso decorrente de interações complexas entre as

enunciações alheias no limites de uma mesma linguagem, entre outras linguagens

sociais no limite de uma mesma língua nacional e outras línguas nacionais nos limites

de uma mesma cultura e do mesmo horizonte sócio-ideológico. O processo de mútua-

interação do discurso e do objeto – influenciado pelos discursos alheios sobre o mesmo

objeto ou sobre o mesmo tema –, ao penetrar em todos os seus estratos semânticos,

torna complexa a expressão e influencia todo o aspecto estilístico do discurso no

romance. Segundo Bakhtin, “ao irromper com seu sentido e com a sua expressão através

do meio de expressões de acentos estrangeiros, harmonizando-se e dissociando-se com

ele em diversos aspectos, o discurso pode dar forma a sua imagem e ao seu tom

estilístico neste processo dialógico” (BAKHTIN, 1988, p.87).

Uma vez que a expressão estilística do autor sobre um determinado tema

depende de diferentes gêneros e atividades da linguagem, implicando, portanto,

escolhas em relação às múltiplas possibilidades oferecidas pela língua, a questão do

estilo na obra literária deixa de ser associada exclusivamente à personalidade do autor,

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isto é, deixa de ser pensada enquanto idiossincrasia de um enunciador ou enquanto

produto do engendramento de um texto auto-suficiente, e passa a ser tratada como um

conjunto de instâncias textuais que incluem, por exemplo, a esfera de produção,

circulação e recepção, o diálogo do autor com outros autores, atividades e discursos, da

mesma época ou de tempos e espaços diferentes etc.

Além desse aspecto da dialogicidade, Bakthin também chama a atenção para o

círculo subjetivo do ouvinte, no qual concorre a interação de diversos contextos, pontos

de vista, diversos horizontes, diversos sistemas de expressão e de acentuação, diversas

falas sociais (BAKHTIN, 1988, p.91).

Dados esses pressupostos acerca do discurso no romance e da compreensão

sempre subjetiva por parte do leitor-tradutor, um grande desafio ético se apresenta no

processo tradutório: reproduzir essa multiplicidade de vozes presentes no discurso

romanesco a partir de uma relação dialógica entre a língua-cultura materna e a língua-

cultura estrangeira.

Com base no que foi exposto até agora, podemos fazer nossas as conclusões de

Berman em seu livro A Prova do Estrangeiro, onde, ao reconhecer o tradutor enquanto

“indivíduo que representa, em sua pulsão de traduzir, toda uma comunidade em sua

relação com uma outra comunidade e suas obras” (BERMAN, 2002, p.318) desvela a

dimensão sui-generis que envolve a prática tradutória. Pretendemos, portanto, no

capítulo seguinte, apresentar comentários do processo tradutório que visem corroborar

com as reivindicações de Berman para que a tradução seja entendida como um processo

no qual entre em jogo toda a nossa relação com o Outro, e assim como ele, esperamos

dessa empresa de tradução:

[...] talvez um enriquecimento de nossa língua, talvez até mesmo um redirecionamento de nossa atividade literária; que possamos interrogar o ato de traduzir em todos os seus registros, abri-lo às outras interrogações contemporâneas, refletir sobre sua natureza, mas também sobre sua história, assim como sobre a de sua ocultação. (BERMAN, 2002, p.322-323).

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Vous me dites que je fais trop attention à la forme. Hélas, c’est comme le corps et l’âme, la forme e l’idée, pour moi c’est tout un, et je ne sais pas ce qu’est l’un sans

l’autre. (Gustave Flaubert)

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Capítulo III

Bastidores da tradução

A proposta de apresentar uma tradução apoiada em comentários pretende

corroborar com a reivindicação de Berman para que a tradução se torne crítica e

comentário de si mesma, assumindo assim, além de seu estatuto prático, um papel

teórico.

Antes de adentramos nos comentários, vale destacar que nossa tradução foi

norteada, conforme tentamos demonstrar no capítulo anterior, pelos dois critérios

apontados por Berman em John Donne: pour une critique des traductions. Neste livro,

o autor, após nos apresentar um esboço de um método para as análises das traduções,

sublinha que o julgamento das mesmas, se quisermos evitar qualquer dogmatismo, deve

necessariamente considerar dois critérios, de ordem poética e ética: o primeiro reside no

fato de que o tradutor realiza, durante o processo tradutório, um verdadeiro trabalho

textual, mais ou menos em correspondência com o original, enquanto o segundo

consiste no respeito para com o original.

A seguir, justificaremos nossas escolhas tendo em vista o que foi exposto acerca

das características da obra de Mauriac no primeiro capítulo assim como os pressupostos

teóricos acerca da tradução e da literatura expostos no capítulo precedente.

3.1 Recuperando as imagens

Tendo em vista a importância das imagens9 na obra de Mauriac, este capítulo

pretende justificar as escolhas realizadas para reconstrução das mesmas. Como veremos,

muitas vezes essas escolhas foram relativamente fáceis, porém, outras vezes fomos

levados a operar algumas modificações para que a visualização dessas imagens pelo

leitor da tradução se aproximasse daquela dos leitores de partida. Essas modificações

são legitimadas à medida que nossa ‘posição tradutiva’10 parte do pressuposto de que a

obra traduzida deve, entre outros, procurar reconstituir o estilo do escritor estrangeiro, e,

9 Consideraremos imagem, de acordo com Othon Maria Garcia, “qualquer recurso de expressão de contextura metafórica, comparativa, associativa, analógica, através do qual se representa a realidade de maneira transfigurada” (1988, p.89) 10 No livro John Donne: pour une critique des traductions, Antoine Berman discute detalhadamente a importância da reconstituição da posição tradutiva por parte do crítico de traduções ao analisar uma tradução. Segundo o autor, embora muitas vezes o tradutor pouco se manifeste em relação ao seu trabalho, é possível reconstituir sua posição tradutiva através de suas escolhas de tradução.

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no caso da obra de François Mauriac, são as imagens que determinam o valor poético de

seu estilo.

Quando Thérèse, desolada, tenta convencer sua criada a não sair de casa, o autor

fixa o porte dessa última com um verbo comumente utilizado para descrever os

vegetais: jeune corps épanoui. A fim de recuperarmos a sutileza e a concisão na

descrição da imagem, optamos por traduzir a metáfora por jovem corpo em flor. Le costume tailleur qu’elle lui avait donné était trop étroit pour ce jeune corps épanoui. O tailleur que lhe dera estava um tanto justo para aquele jovem corpo em flor

Mais adiante, o autor descreve a fisionomia de Thérèse com a expressão front

dévasté. A tradução literal testa devastada é a que melhor convém para recuperar a

intenção do autor, uma vez que a união entre o estado de alma e a natureza faz parte de

sua expressão.

Elle perd ses cheveux comme un homme ; oui, elle a un front dévasté de vieil homme : “un front de penseur... ” prononce-t-elle à mi-voix. Ela perde seus cabelos como um homem; sim, ela tem uma testa devastada de homem velho: “uma testa de pensador...” pronuncia em voz baixa.

Para traduzir o desequilíbrio de Thérése, Mauriac utiliza uma imagem marítima.

Para que essa imagem pudesse ser visualizada pelos leitores brasileiros, foi necessário

sacrificar a concisão da expressão coloquial jeter de l’argent comme du lest,

transformando-a em jogar dinheiro como quem se livra de um lastro. Não optamos pelo

equivalente da expressão coloquial em português, jogar dinheiro fora, porque se o

fizéssemos, a passagem seguinte ficaria destituída de sentido.

Thérèse pourtant gardait ses habitudes d’autrefois, incapable de sortir dans Paris sans jeter l’argent comme du lest, pour s’élever un peu au-dessus de ce vide, pour atteindre, sinon au plaisir, du moins à l’étourdissement, à l’abrutissement. Thérése, no entanto, mantinha seus hábitos de outrora, incapaz de sair em Paris sem jogar dinheiro como quem se livra de um lastro, para se elevar um pouco acima daquele vazio, para alcançar, senão o prazer, ao menos o aturdimento, o abrutecimento.

Na passagem seguinte, o autor transforma as atitudes humanas em gestos

mecânicos com o uso da palavra manège. Optamos por traduzir por manobras em seu

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sentido figurado porque esse termo representa, de certa forma, a visão que Mauriac tem

da vida social, ou seja, para ele os indivíduos muitas vezes quando colocados em grupo

se automatizam para se adequarem às convenções sociais.

La moindre créature vivante dont, au café, elle suivait le manège, l’intéressait plus que ces images sur un écran. A mais insignificante criatura viva de quem, no café, ela acompanhava as manobras, interessava-lhe mais que aquelas imagens na tela.

O desespero de Thérèse na passagem abaixo é representado por uma imagem

tomada do deserto. A transposição semântica foi relativamente fácil. Dessa passagem

cabe comentar, primeiramente, a tradução de trimadeur por lacaio, ao invés de

andarilho, a fim de conservar o arcaísmo do termo francês; em seguida, optamos por

traduzir trompe por trompa, ao invés de buzina, e grincement por atrito, ao invés de

cantada, a fim de recuperar a aliteração do original, que reforça a apreensão dos

barulhos descritos. Consideramos extremamente importante recuperar este artifício do

autor, pois, como mencionado anteriormente, o autor se vale principalmente de

sensações para sugerir a vida palpável e cambiante do romance. Et pourtant elle était sûre d’avoir atteint une extrémité : comme lors-que le trimardeur s’aperçoit qu’il a suivi un chemin ne menant nulle part et qui se perd dans les sables. Chaque bruit du dehors s’isolait de la rumeur humaine, prenait une valeur absolue : cette trompe d’auto, ce rire de femme, le grincement d’un frein. E, no entanto, ela estava certa de ter atingido uma extremidade: tal o lacaio quando percebe ter seguido um caminho que não leva a lugar nenhum e se perde nas areias. Cada barulho de fora se isolava do rumor humano, adquiria um valor absoluto: aquela trompa de automóvel, aquele riso de mulher, o atrito de um breque.

Na passagem abaixo, cabe comentar a escolha do verbo romper para traduzir

jaillir. Optamos por esse verbo porque nos pareceu o que melhor recupera a polissemia

do verbo francês jaillir: manifestar-se repentinamente, atroar, romper barreiras etc.

Consideramos importante reproduzir essa polissemia, pois ao despertar no leitor os

sentidos visuais e auditivos, ela participa na apreensão catastrófica da imagem. Elle se leva, s’approcha de la table où était posé le phonographe, frémit à l’idée du vacarme possible, comme si les musiques prêtes à jaillir avaient eu ce pouvoir de renverser les murailles, de l’étouffer sous les décombres. Elle revint donc à son fauteuil et de nouveau regarda les flammes. Levantou-se, aproximou-se da mesa onde se encontrava o fonógrafo, tremeu com a idéia do estrondo possível, como se as músicas prestes

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a romper tivessem tido esse poder de derrubar as muralhas, de sufocá-la em meio aos escombros. Ela retornou então à sua poltrona e novamente olhou a chama.

No segundo capítulo, Thérèse recebe a visita inesperada de sua filha Marie.

Após trocarem algumas palavras, Marie faz um comentário anódino que leva Thérèse a

pensar que as palavras de sua filha nada mais são do que a reprodução de discursos

alheios. Tentamos reproduzir a força imagética da sua reflexão através do emprego de

um léxico que reproduzisse os sentidos figurados e concretos: assim, élément foi

traduzido por elemento, que traduz tanto o sentido de princípio como o de elementos da

natureza; couler foi traduzido por soçobrar a fim de retomar o sentido metafórico do

verbo em francês, isto é, perder-se, e ao mesmo tempo o sentido concreto de afundar.

Thérèse songeait : “ Ces paroles ne lui ressemblent pas ; elle répète les propos de son entourage. Jeune fille, j’ai dit les mêmes bêtises. En famille, les autres nous imposent leur élément : nous ne pouvons que nager dans cette eau saumâtre ; c’est déjà beau de ne pas couler ! ” Thérèse cismava: “Estas palavras não se parecem com ela; ela repete o discurso de seu meio. Moça, eu disse as mesmas tolices. Em família, os outros nos impõem seus elementos: não nos resta outra opção senão a de nadar nessa água salobra; já é nobre não soçobrar-se”.

Thérèse, após um debate extenuante com sua filha, adormece. Mauriac descreve

a cena de forma pitoresca. Como já mencionamos, o autor descreve os tormentos dos

personagens com imagens tomadas do mar. Assim, na passagem seguinte sua

consciência plena de mistérios é comparada ao mar: o repouso de Thérése toma a forma

do fundo do mar com elle coula à pic aux dernières profondeurs du sommeil, aucune

parole prononcée ne jaillit du fond de sa conscience. Em seguida, seu esgotamento é

traduzido pela expressão bête recrue. A visualização do cômodo é intensificada graças

ao apelo que autor faz aos sentidos: un tison rougeoyait. Tentamos reproduzir a força

imagética do repouso de Thérèse através do emprego do léxico comumente utilizado

pelos marinheiros, foi a pique e jorrar; vale lembrar que jorrar reproduz também a

sinestesia, pois pensamentos não jorram e sim surgem. O esgotamento de Thérèse,

assim como em francês, foi reproduzido com uma imagem tomada da caça: animal

assolado. Finalmente, tentamos apelar aos sentidos na descrição da cena com o verbo

lampejar, que, embora não remeta imediatamente a cor vermelha como é o caso do

verbo em francês, lembra o barulho da brasa estalando, ou seja, remete ao sentido

auditivo.

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Elle coula à pic aux dernières profondeurs du sommeil, et rien de ce qui s’était passé dans cette soirée ne lui revint en songe ; aucune parole prononcée ne jaillit du fond de sa conscience. La nature comblait de repos cette bête recrue. Dans la pièce voisine, un tison rougeoyait encore. Le petit jour éclaira les meubles en désordre, la chaise basse où Thérèse avait souffert, la bouteille de Champagne oubliée sur une console. Ela foi a pique até as útimas profundezas do sono, e nada do que se passara naquela noite lhe veio em sonho; nenhuma palavra pronunciada jorrava do fundo de sua consciência. A natureza enchia de repouso aquele animal assolado. Na peça vizinha, um tição ainda lampejava. A manhãzinha iluminou os móveis em desordem, a cadeira baixa onde Thérèse sofrera, a garrafa de champanhe esquecida sobre a consola.

Na passagem abaixo se percebe um dos procedimentos característicos de

Mauriac, ou seja, a transferência de imagens entre o estado de alma e a natureza. Assim,

Thérèse, durante um passeio, atormentada pela discussão que teve com sua filha, sente-

se indisposta, mas eis que a descrição do dia ensolarado vem como que para reconfortá-

la com a exclamação: Que le ciel était beau qui s’écartait autour de Saint-Germain de

Près!. Lembremos que o clima que melhor se adapta ao desolamento de Thérèse é a

chuva, como podemos perceber ao longo do romance. Já na passagem abaixo, a

paisagem, ao contrário, vem revelar seu contentamento. Tentamos reproduzir essa

transferência de imagens entre seu reconforto e a visão ensolarada do dia com o uso do

verbo descortinar para traduzir écartait.

C'eût été presque le bonheur sans cette gêne, cette sensation d'étouffément, sans cette présence de la mort dans sa poitrine... Que le ciel était beau qui s'écartait autour de Saint-Germain des Prés ! Qu'elle aimait la fatigue de ces jeunes visages qui riaient en la regardant ! Elle ne voulait pas mourir! Elle n'avait pas envie de mourir ! Teria sido quase um deleite sem aquele incômodo, aquela sensação de falta de ar, sem aquela presença da morte em seu peito... Como o céu, que se descortinava ao redor de Saint Germain de Près, estava belo! Como amava a lassitude daqueles jovens rostos que riam olhando para ela! Não queria morrer! Não tinha vontade de morrer!

Diante de sua própria indiferença em relação a sua filha, Thérèse se indaga se,

caso sua existência tivesse sido diferente do que tinha sido, ela teria mais consideração

em relação à Marie. Para representar as intempéries de uma existência, o autor usa um

vocabulário que remete aos obstáculos concretos de um percurso. Para reproduzir essa

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construção figurada, escolhemos o verbo avançar para traduzir écouler, e solavancos

para traduzir secousse.

Oui, si son existence se fût écoulée unie et sans secousse, Thérèse était sûre qu'elle aurait tout de même éprouvé, un soir, cette surprise qui l'avait saisie, la veille, en voyant entrer une femme qui était sa fille. Sim, se sua existência tivesse avançado de maneira uniforme e sem solavanco, mesmo assim, Thérèse tinha a certeza que seria apanhada, numa noite qualquer, por aquela surpresa que teve, na véspera, ao ver entrar uma mulher que era sua filha.

A seguir temos a descrição da cena em que Thérèse tenta se repousar após ter

tentado descobrir as verdadeiras intenções de George para com sua filha. Durante o

encontro ela se dá conta de que ele não pretende se casar e que ele é igual a todos os

rapazes que encontrara ao longo de sua vida: alguém incapaz de desviar a atenção de si

mesmo. O estado de apatia de Thérèse revela-se mais intenso graças à descrição do

ambiente externo. Durante a tradução levamos em conta a transferência de imagens que

opera o autor. Assim, o adjetivo terne foi traduzido por morno e a descrição dos

barulhos externos que revelam seu estado de alerta diante da eminência da chegada de

George ao apartamento (ela conseguira convencer o moço a aceitar o convite para jantar

com ela e Marie em sua casa) foi traduzido de modo a respeitar as aliterações que

despertam o sentido auditivo no leitor: freios rangentes para freins grinçants, além de

termos criado outra aliteração que não existia no original: gritos estridentes para cris

aigus. Procuramos operar compensações ao longo da tradução devido às

impossibilidades, lingüísticas e/ou culturais, de se reproduzir em outros momentos os

recursos estilísticos do autor.

Étendue sur son lit, Thérèse entendait le bruit de la vaisselle remuée. L'après-midi était terne ; les meubles luisaient faiblement. La vie habituelle menait son train d'autos, de camions, de freins grinçants. Les cris aigus d'une cour de récréation témoignaient que le monde continuait de se reproduire. Estendida em sua cama, Thérése escutava o barulho da louça remexida. A tarde estava morna; os móveis luziam suavemente. A vida cotidiana conduzia o curso dos autos, dos caminhões, dos freios rangentes. Os gritos estridentes de um jardim de infância testemunhavam que o mundo continuava a se reproduzir.

Na passagem seguinte o autor opera uma personificação do desespero: Lorsque

le désespoir qui vous tient desserre son étreinte. Essa personificação intensifica a dor de

Thérèse, e, portanto, entendemos ser fundamental reproduzi-la a fim de causar a mesma

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impressão no leitor da tradução. Entretanto, nesse caso, de acordo com nossa concepção

de que a tradução é também criação, tomamos a liberdade de interferir sutilmente na

construção da imagem, substituindo o verbo tenir pelo verbo apertar e o substantivo

étreinte por amarras.

Lorsque le désespoir qui vous tient desserre son étreinte c'est presque toujours pour une très petite cause d'ordre physique: une nuit de bon sommeil, un verre de vin... Il fait semblant d'être parti et ne s'est éloigné que de quelques pas ; nous savons qu'il reviendra ; Quando o desespero que a aperta afrouxa suas amarras, é quase sempre por uma minúscula causa de natureza física: uma boa noite de sono, uma taça de vinho...Ele faz de conta que se foi e se distanciou somente alguns passos; sabemos que ele voltará;

Na cena abaixo, Thérèse se sente acuada, apreensiva, incerta do que estaria por

vir, pois acabara de fazer a oferta de sua fortuna para que o casamento de sua filha

pudesse se realizar. A percepção de seu estado apreensivo é alcançada no original com o

uso da palavra abois para descrever os barulhos das carrocerias; porém, em francês, essa

palavra é comumente utilizada para descrever o desespero de um animal encurralado.

Embora saibamos que carrocerias não bramem, optamos pela reprodução dessa

transferência de imagens, traduzindo abois por latidos.

Elle ouvrit la fenêtre, se pencha sur la rue mal éclairée et encore bruyante. Les rideaux de fer des magasins s'abaissaient avec fracas. Les carrosseries noires glissaient sur la chaussée avec de brefs abois aux croisements. Ela abriu a janela, se dependurou sobre a rua mal iluminada e ainda barulhenta. As portas de ferro das lojas se abaixavam com estrondo. As carrocerias pretas deslizavam sobre o asfalto com ligeiros latidos nos cruzamentos.

A percepção do caráter dos personagens de Mauriac se realiza a partir da

comunicação que o autor estabelece entre o homem e a natureza, como se percebe na

passagem a seguir, onde o autor utiliza o adjetivo hagard, cuja primeira acepção em

francês é designar o comportamento dos animais que se encontram perdidos. Hesitamos

entre o adjetivo perdido e desnorteado, mas finalmente optamos por este último porque

o consideramos mais sugestivo que o primeiro para caracterizar o comportamento

animal do personagem.

Elle avança à travers les tables. Georges levé, avec son air légèrement hagard, lui présenta un autre garçon qu'elle n'avait pas vu : « C’est Mondoux... René Mondoux. »

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Ela avançou através das mesas. George em pé, com seu ar ligeiramente desnorteado, apresentou-lhe um moço que ela não vira: “Este é Mondoux... René Mondoux.”

A passagem a seguir descreve a cena em que Thérèse encontra-se embaraçada

diante do amigo de George. Tendo percebido que ela se equivocava no caminho que

tentava conduzir sua conversa com Mondoux, ela busca outro meio para agradá-lo. A

tensão da cena é alcançada através do emprego de um vocabulário que remete ao trato

dos animais. Assim, battit en retraite foi traduzido por recuar e amadouer foi traduzido

por amansar, moyens plus sûrs por meios mais certeiros, a fim de recuperar os sentidos

figurados e concretos das expressões francesas. Outro comentário que merece destaque

é a reconstrução da imagem que traduz a intensidade da felicidade de Thérése ao

perceber que com sua atitude ela acabara por provocar ciúmes em George: Alors l'orage

de joie creva qui s'accumulait dans son être depuis trois jours. Reconstruímos a

imagem com o uso de tempestade e do verbo rebentar, que em português designa o

surgimento de uma tempestade.

Aussitôt elle battit en retraite, prit le ton de l'humilité et d'instinct chercha à l'amadouer par des moyens plus sûrs : un certain regard attentif et grave, une certaine voix. Comme il n'en paraissait nullement ému, elle força jusqu'au ridicule ses pauvres effets et tout à coup s'aperçut que Georges Filhot l'observait. Alors l'orage de joie creva qui s'accumulait dans son être depuis trois jours. Mais que depressa ela recuou, adquiriu um tom de modéstia e instintivamente procurou amansá-lo servindo-se de meios mais certeiros: um certo olhar atento e grave, uma certa voz. Como ele não parecesse nem um pouco emocionado, ela forçou seus artifícios até o ridículo e de repente se deu conta de que George a observava. Então a tempestade de alegria rebentou, que se formava em seu ser há três dias.

A personificação do coração de Thérèse na passagem abaixo intensifica a idéia

da luta que Thérèse tenta travar contra seu problema de saúde: elle tiendrait son cœur

bien en main. Para reconstruirmos a imagem optamos pela expressão ela segurará as

rédeas de seu coração, comparando assim o órgão doente a um cavalo descontrolado.

Il fallait que Thérèse eût le temps de se reprendre ; c'était la surprise qui avait eu raison d'elle. Demain soir, elle serait prête ; elle tiendrait son cœur bien en main. Precisava ter tempo para se recobrar; ela foi vencida pela surpresa. Amanhã à noite, ela estará pronta; ela seguraria as rédeas de seu coração.

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O trecho destacado a seguir evoca as lembranças de George dos passeios

vespertinos que ele fazia com Marie nos campos de Argelouse, cidade natal de Thérèse

e onde sua filha vivia atualmente. Valendo-se da aliteração prairie brûlé e vibration de

sauterelles, o autor consegue suscitar a sensação auditiva no leitor. A fim de reproduzir

esse efeito sonoro, optamos por uma tradução semanticamente aproximativa, traduzindo

prairie por planície, brûlée por ressequidas, vibration por ciciar e sauterelles por

cigarras, criando assim uma nova aliteração.

Ils se baignaient ensemble, au moulin ; ils s'étendent côte à côte sur la prairie brûlée, dans la vibration des sauterelles. Eles se banhavam juntos, no moinho; estendiam-se lado a lado sobre a planície ressequida, sob o ciciar das cigarras.

Abaixo mais um exemplo de aliteração que desperta o sentido auditivo no leitor.

A maioria das palavras em francês encontrou no seu correspondente imediato em

português esse efeito, como por exemplo: lierres e heras, récréation e recreio, trot e

trotes, freins e freios, bruits e ruídos, rumeur e rumor. Porém, trompe foi traduzido por

trompa, que além de recuperar a aliteração remete à época em que se situa o romance, já

que naquela época, 1935, as buzinas dos automóveis eram ainda precárias e sua forma

era parecida com a de uma trombeta. Foi possível criar também uma aliteração onde não

havia, reforçando, a nosso ver, ainda mais o efeito do original: tissus foi traduzido por

rede que se combinou a ruídos para bruit, e finalmente vacarme foi traduzido pela

palavra burburinho, cuja sonoridade, a nosso ver, reforça os ruídos descritos.

Piaillements dans les lierres des jardins, cris d'une récréation de quatre heures, trot des chevaux du Bon Marché, trompes et freins des autos qui ralentissent, tissu des bruits familiers, mourir ce serait ne plus entendre cette rumeur ; et vivre, c'était de demeurer assise, attentive à ce vacarme monotone. Se sacrifier d'un coup, d'un coup se racheter, s'exécuter, écraser la chenille... Pios nas heras dos jardins, gritos de um recreio das quatro horas, trote de cavalos do Bon Marché, trompas e freios dos autos que reduzem a marcha, rede de ruídos familiares, morrer seria não mais ouvir aquele rumor; e viver, significava permanecer sentada, atenta àquele burburinho monótono. Sacrificar-se de uma só vez, de uma só vez se recuperar, se executar, esmagar a larva..

Do trecho a seguir cabe comentar o uso do adjetivo empêtré para sugerir o

comportamento de George, que, como já vimos, faz parte da comunicação que o autor

estabelece entre a natureza e o homem. Assim sendo, optamos por traduzi-lo por

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empacado, adjetivo português comumente utilizado para designar o comportamento

animal, mas que também, em seu sentido figurado, serve para designar a atitude de

alguém que hesita, gagueja. Como forma de compensar a não reprodução da aliteração

souffler et s’essuyer, optamos por reforçar a atitude grotesca de George com o uso do

verbo bufar para traduzir souffler.

Dès le premier regard qu'elle jeta sur Georges, elle ressentit de la joie parce qu'il était bien le garçon ordinaire qu'elle se représentait depuis la veille, l'air empêtré avec son pardessus qu'il oubliait toujours de laisser dans l'antichambre, et cette manie de souffler et de s'essuyer le front, à la fois pour se donner une contenance et pour montrer l'effort que lui coûtait son exactitude. Assim que ela lançou o primeiro olhar para George, ficou alegre porque ele era exatamente o garoto ordinário que ela se representava na véspera, com o ar empacado em seu sobretudo que ele sempre se esquecia de deixar no vestíbulo, e aquela mania de bufar e de enxugar a testa, para ser dar ao mesmo tempo um ar de continência e mostrar o esforço que lhe custava sua justeza.

Imaginando a falta de perspicácia de Marie por não ter desconfiado que ela, sua

própria mãe, fosse capaz de despertar interesse em George, Thérèse devaneia

imaginando que o amor também procura nos seres, além da carne, “um segredo de

ardor, de ciência e de astúcia”... O original evoca imagética e auditivamente, através da

personificação do vento com a palavra chuchotement, o fato de que as ameaças podem

estar mais próximas do que imaginamos. Buscamos reproduzir essa personificação e a

sonoridade do termo em francês com uso do verbo sussurrar.

Mais l'amour cherche dans les êtres, au-delà de la chair, un secret d'ardeur, de science et de ruse que possèdent ceux-là seulement qui ont vécu. À cette heure-ci, Marie veille peut-être dans la grande chambre d'Argelouse que les pins entourent d'un chuchotement infini. Mas o amor procura nos seres, além da carne, um segredo de ardor, de ciência e de astúcia que possuem somente aqueles que viveram. Nesse momento, Marie talvez vele na grande casa de Argelouse que os pinheiros envolvem com um sussurrar infinito.

Após uma conversa em que George estava a ponto de confessar seu amor por

Thérèse, ela, ao mesmo tempo inconformada e com uma pontinha de satisfação, pede

para que ele vá embora. A decepção e tristeza de George são sugeridas pela expressão

chien battu. A fim de reproduzir a expressão de George, optamos por traduzi-la por cão

sem dono, uma vez que ela remete imediatamente ao desespero e à carência de quem

está sendo abandonado.

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Il se leva, lui jeta un regard de chien battu. Il remuait les lèvres ; sans doute, devait-il lui demander pardon. Ele se levantou, lançou-lhe um olhar de cão sem dono. Remexia os lábios ; sem dúvida, ele devia lhe pedir perdão.

A cena que acabamos de destacar prossegue, e a expressão de George é ainda

sugerida com expressões que remetem ao comportamento de um animal: bras ballants,

air surnois de mauvais chien. A fim de recuperar a imagem, traduzimos bras ballants

por braços agitados e air surnois de mauvais chien por ar matreiro de cão lazarento.

Quand elle fut assurée de pouvoir opposer au garçon un front sévère, un regard sans expression, elle tourna lentement son visage vers lui qui était debout au milieu de la pièce, les bras ballants, la tête basse, le regard en dessous, avec un air sournois de mauvais chien. Quando ela se assegurou de poder opor ao moço um semblante severo, um olhar sem expressão, virou lentamente seu rosto para ele, que estava de pé no meio do cômodo, braços agitados, com a cabeça baixa, o olhar caído, com um ar matreiro de cão lazarento.

Tendo em vista o exagero característico de Mauriac para expressar o sofrimento,

na passagem seguinte buscamos reproduzir a tragicidade do destino de Thérèse com o

emprego de deplorável destroço para traduzir triste épave e arruinada para traduzir

finie. A nosso ver, tais escolhas são sugestivas para recuperar a dimensão das

conseqüências que o ato criminal de Thérèse provocara em seu destino.

Elle était, disait-elle, une vieille femme qui n'avait rien à lui offrir. La plus grande preuve d'affection qu'elle lui pût donner c'était de le détourner d'une triste épave, d'une créature finie. Ela era, dizia, uma velha que não tinha nada a lhe oferecer. A maior prova de afeto que podia lhe dar era a de desviá-lo de um deplorável destroço, de uma criatura arruinada.

Na passagem a seguir, a paz que o ser humano encontra no amor é sugerida

através de termos altamente sugestivos: longue sieste au soleil, quietude animal.

Embora esses termos tenham sido facilmente traduzidos respectivamente por siesta ao

sol e quietude animal, percebemos que a palavra soumis sustenta a imagem inicial, e,

portanto, a fim de sugerir a idéia de domesticação animal implícita no original, optamos

por traduzi-la por dócil.

“ Il faudrait que la vie avec la créature que nous aimons fût une longue sieste au soleil, un repos sans fin, une quiétude animale... cette certitude qu'un être est là, à portée de notre main, accordé, soumis, comblé ; et que pas plus que nous-même il ne saurait désirer d'être

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ailleurs. Il faudrait à l'entour une telle torpeur que la pensée fût engourdie, afin de rendre impossible même en esprit toute trahison... ” “Seria preciso que a vida ao lado da criatura que escolhemos ou que nos escolheu fosse uma longa siesta ao sol, um repouso sem fim, uma quietude animal... aquela certeza de que um ser é lá, ao alcance de nossas mãos, sereno, dócil, pleno e que, assim como nós, ele não deseja estar alhures. Seria preciso que o pensamento fosse envolto por um torpor tamanho a fim de tornar impossível, até mesmo em espírito, qualquer traição...”.

A luta extenuante de Thérèse contra seu caráter pernicioso é sugerida na

passagem abaixo através de uma imagem significativa que sugere sua tendência

incontrolável em fazer mal às pessoas. Assim, ela é comparada a um escalador que tenta

incansavelmente subir, mas cujo percurso se mostra tão difícil que, a cada vez que ele

está quase no topo, um obstáculo o impede e ele volta novamente à estaca zero. A

reconstrução da imagem se mostrou relativamente fácil; porém, cabe comentar a

tradução da palavra bas-fond: uma vez que em francês esta palavra possui conotações

morais e físicas, optamos por uma palavra em português que reproduzisse essa

polissemia, traduzindo-a por fundo do poço. Elle disait qu'elle s'était débattue, qu'elle se débattrait jusqu'à son dernier souffle ; qu'autant de fois qu'il l'avait fallu, qu'autant de fois qu'il le faudrait, elle remonterait la pente jusqu'au nouveau point de rechute, comme si elle n'avait rien d'autre à faire au monde: s'arracher à un bas-fond et y reglisser, et se reprendre indéfiniment ; pendant des années, elle n'avait pas eu conscience que c'était là le rythme de son destin. Mais maintenant voici qu'elle est sortie de cette nuit. Elle voit clair. Ela dizia que se debatera, que se debateria até seu último suspiro; que todas as vezes que fora preciso, que todas as vezes que for preciso, ela subiria a ladeira até o novo ponto de queda, como se não tivesse outra coisa a fazer no mundo : escapar do fundo do poço e para lá escorregar, e se recobrar indefinidamente ; durante anos, ela não tivera a consciência que era esse o ritmo de seu destino. Mas agora eis que ela saiu daquela noite. Ela enxerga claro.

No trecho a seguir, vemos que o autor sugere a fixação do olhar de George em

Thérèse comparando aquele a um nocturne, que em francês pode remeter tanto às

pessoas com hábitos noturnos como a um animal noturno. Apesar de termos encontrado

notívago como tradução imediata, para que a imagem fosse mais rapidamente

apreendida, optamos por traduzi-la por morcego, que também remete a ambas as

conotações.

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Et lui ne répondait pas à son sourire, mais il la dévisageait avec une fixité de nocturne. E ele não respondia ao seu sorriso, mas a esquadrinhava com uma fixação de morcego.

A passagem abaixo precede às indagações de Thérèse em relação à decisão que

George acabara de tomar. Para atender ao pedido de Thérèse, ele dissera que

permaneceria na vida de Marie enquanto estivesse vivo, mas Thérèse, embora tenha

deixado transparecer que era exatamente isso que desejava, gostaria que George tivesse

se mostrado mais relutante. Em meio a pensamentos confusos, ora se indagando se sua

intenção, durante a conversa com George, era estragar a felicidade de Marie, ora se

indagando se essa união seria realmente feliz, ela resolve se repousar. Mas eis que

durante seu repouso, a descrição do ambiente que ela se encontra vem reforçar seu

desvario. Assim sendo, traduzimos a passagem de modo a reproduzir a imagem

vertiginosa sugerida no original: luz frouxa para vague lueur e que escorria das

persianas para qui fusait des persiennes.

Les yeux de Thérèse s'étaient accoutumés à la nuit. Elle voyait la forme de l'armoire, la masse du fauteuil, et cette vague lueur, sur les vêtements quittés, qui fusait des persiennes et qui n'était pas celle de l'aube. Os olhos de Thérèse se acostumaram à noite. Ela via a forma do armário, a massa da poltrona, e aquela luz frouxa, sobre as roupas deixadas, que escorria das persianas e que não era a da aurora.

Do encontro de Thérèse e Mondoux (amigo de George), que se sentia enciumado

por ela ter entrado na vida de seu amigo, destacamos essa passagem que traduz o

abismo existente entre eles. Para recuperar a imagem de que um oceano os separava,

traduzimos a expressão se fût tenu por um verbo que remetesse ao vocabulário dos

marinheiros: atracar.

Debout, dans cette petite chambre, et face à face, leur ami absent les séparait, comme si chacun d'eux se fût tenu sur le bord opposé d'une mer. Et ils ne possédaient rien en commun que leur angoisse. Em pé, naquele pequeno cômodo, e frente a frente, o amigo ausente os separava, como se cada um deles estivesse atracado no litoral oposto de um mar. E não possuíam nada em comum a não ser a angústia.

Na passagem abaixo o vocabulário de caça empregado para descrever a conduta

da personagem sugere com maestria sua natureza maléfica. A tradução procurou

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reproduzir a imagem utilizando um vocabulário que também remetesse à caça: d’une

main sûre por golpe certeiro, bête puante por animal fedorento, tanière por covil e se

tapir por se entocar.

Non qu'elle ait pu lui faire grand mal ; mais ce coup porté d'une main sûre l'aidait à mesurer son pouvoir, à prendre conscience de sa mission. Ce n'est pas étonnant que les gens se retournent sur son passage : une bête puante se trahit d'abord. Thérèse sentait sur elle des regards insistants. Elle allongeait le pas, impatiente de retrouver sa tanière, de se tapir. Não que pudesse ter lhe feito muito mal; mas aquele golpe certeiro a ajudava a medir seu poder, a ter consciência de sua missão. Não é de se admirar que as pessoas se virem quando ela passa: um animal fedorento trai em primeiro lugar a si próprio. Thérèse sentia os olhares insistentes na sua direção. Ela esticava o passo, impaciente em reencontrar sua toca/covil, em se entocar.

Thérèse, ao chegar a sua casa após a confrontação com o amigo de George,

depara com a síndica, que a olha com um olhar desconfiado. Como acabara de cometer

uma maldade, ela parece interpor uma lente de aumento entre elas e as pessoas, e por

isso, a expressão da síndica parece ser ainda mais significativa do que realmente era:

figure plate e grise, yeux de truie, de rate. Para sugerir a expressão animal da síndica

traduzimos os adjetivos plate e grise por tosca e cinzenta, respectivamente. Thérèse vit de tout près cette figure plate et grise où brillaient des yeux de truie, non : de rate. Quelle attention goulue! Thérèse viu bem de perto aquela feição tosca e cinzenta onde brilhavam olhos de porca, não: de ratazana. Que atenção gulosa!

Sentindo-se encurralada por todos os lados como um animal, Thérèse devaneia

em voz alta, chegando inclusive a atribuir poderes a suas palavras: elles les verrait

tomber comme des oiseaux morts avant d’avoir atteint leur but...A apreensão da

personagem é sugerida novamente através do emprego de um vocabulário de caça: gîte

pénétrer, veiller. Considerando a força imagética desses recursos, optamos por traduzir

but por alvo, gîte por toca, pénetrer por se embrenhar e veiller por levantar guarda. Aucune chance que ses paroles parviennent jusqu'au commissaire : elle les verrait tomber comme des oiseaux morts avant d'avoir atteint leur but. Aucune autre issue que de rester au gîte. C'était par l'escalier de service que l'ennemi y pénétrait. De ce côté-là surtout il fallait veiller. Nenhuma possibilidade que suas palavras cheguem até o delegado: ela as veria cair como pássaros mortos antes de terem atingido o alvo. Nenhuma outra saída a não ser ficar na toca. Seria pela escada

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de serviço que o inimigo penetraria. Principalmente daquele lado ali ela tinha que levantar guarda.

A felicidade de Marie ao receber a carta de George é reforçada pela descrição da

paisagem e dos ruídos externos: tiède soleil, le bourg était sonore, les scieries

chantaient...A sutileza dos termos utilizados em francês nos dão a impressão de uma

paisagem extremamente alegre e agitada. Tentamos recuperar essas sensações com

tépido para traduzir tiède, melódico para traduzir sonore, assobiavam para traduzir

chantaient e sacolejar para traduzir brinquebaler. Notemos que, ao escolher o verbo

assobiar, acabamos por criar uma aliteração que desperta o sentido auditivo, reforçando

assim a imagem; ademais, o verbo sacolejar recupera o sentindo de dançar, também

presente no verbo francês brinquebaler. Marie mangeait en regardant l'enveloppe qu'elle ouvrirait tout à l'heure dans sa chambre, après avoir donné un tour de clef. Ce jour de novembre rayonnait d'un tiède soleil ; le bourg était sonore ; les scieries chantaient dans le vent d'Est qui sentait la résine et l'écorce arrachée. Signe de beau temps : on entendait le petit train des chemins de fer économiques brinquebaler sur sa voie étroite. La vie était pleine de bonheur. Marie comia olhando o envelope que abriria logo mais em seu quarto, após ter trancado a porta. Aquele dia de novembro radiava com um sol tépido; a vila estava melódica; as serrarias assobiavam no vento de Leste que cheirava a resina e a cortiça arrancada. Sinal de bom tempo: ouvia-se o trenzinho das estradas de ferro secundárias sacolejar na sua via estreita. A vida se enchia de alegria.

A seguir, a submissão de Thérèse diante de sua filha que lhe interroga como se

fosse um juiz é visualizada através da expressão échine creuse de bête rendue. A fim de

reproduzir a imagem, buscamos uma expressão em português que remete imediatamente

à situação de submissão em que ela se encontra: crista baixa de animal encurralado. Mais Marie s'interrompt au milieu d'un mot. Non! cela ne peut faire partie d'un rôle, cet affreux tremblement qui secoue sa mère de la base au faîte, ni cette unique larme qui coule le long du nez et qu'elle n'essuie pas, ni ce regard d'épouvanté, et cette échine creuse de bête rendue... Mas Marie se interrompe no meio de uma palavra. Não ! aquilo não pode ser uma encenação, aquela terrível tremedeira que balança sua mãe dos pés a cabeça, nem aquela única lágrima que escorre ao longo de seu nariz e que ela não enxuga, nem aquele olhar assustado, e aquela crista baixa de animal encurralado…

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No trecho a seguir, há uma transferência de imagens entre o estado em que

Thérèse se encontra e a paisagem externa. Assim, os termos utilizados para descrever os

ruídos externos remetem imediatamente à tristeza da personagem: mornes roulements e

halètements d’une locomotive. Nossa tradução procurou recuperar essa transferência de

imagens com o uso de melancólica circulação e lamúrias de uma locomotiva,

respectivamente.

Que cette nuit ressemblait peu à ce qu'avait attendu la jeune fille ! Dès qu'elle écartait sa main engourdie, un gémissement de sa mère l'obligeait à la lui imposer encore sur le front. Elle avait froid. C'était Paris de nouveau, ses mornes roulements dans la nuit d'automne, ces halètements d'une locomotive vers les Halles. Como aquela noite não se parecia em nada com o que esperava a moça! Assim que afastava sua mão dormente, um gemido de sua mãe a obrigava a encostá-la de novo em seu rosto. Ela estava com frio. Era Paris de novo, a melancólica circulação na noite de outono, aqueles lamúrias de uma locomotiva rumo aos Halles

Ao final do romance, o estado de saúde de Thérèse a obriga a voltar para casa de

seu marido. Recuperando pouco a pouco seu bom senso ela começa a se tranqüilizar.

Quando ainda estava em Paris ela se imaginava completamente encurralada, e como

vemos na passagem abaixo, sua apreensão é sugerida através do vocabulário de caça:

meute e trace. A tradução retoma a imagem com os termos matilha e rastro,

respectivamente.

A partir de ce moment, toute complication fut abolie aussi bien pour Thérèse que pour les Desqueyroux. Elle était sûre de n'avoir plus rien à craindre : la mort se dressait entre cette femme exténuée et la meute qu'elle imaginait sur sa trace. A partir daquele momento, todo e qualquer complicação foi abolida tanto para Thérèse quanto para os Desqueyroux. Ela estava sossegada de não ter mais nada a temer: a morte se interpunha entre aquela mulher exausta e a matilha que imaginava sob seu rastro.

A seguir, a sensação que Thérèse tem de estar sendo apunhalada por sua filha e

sua conseqüente desolação é sutilmente insinuada através da descrição da paisagem

visualizada por ela: un matin morne où la pluie fouettait les vitres... Considerando a

importância da transferência de imagens na obra do autor bordelês, traduzimos a

passagem por numa melancólica manhã onde a chuva fustigava os vitrais. Un matin morne où la pluie fouettait les vitres, Thérèse ne douta plus d'être trahie lorsque Marie, couverte d'un ciré bleu, l'avertit qu'elle allait sortir et s'informa si elle n'avait besoin de rien. Numa melancólica manhã onde a chuva fustigava os vitrais, Thérèse não duvidou mais estar sendo apunhalada quando Marie, pintada de azul, avisou que ia sair e perguntou se ela não precisava de nada.

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Na passagem a seguir, vemos a tristeza de Thérèse enclausurada em seu quarto

sendo reforçada pelo clima chuvoso. A transferência de imagens é alcançada com o

emprego do adjetivo ruisselantes, que no sentido figurado é utilizado para designar as

lágrimas sendo derramadas, como, por exemplo, na expressão tout ruisselant de larmes.

Assim sendo, optamos por traduzir ruisselantes por lacrimejantes, que, embora mais

óbvio, reproduz, a nosso ver, a alusão às lágrimas da personagem.

Elle pensait à sa mère, dans la chambre de l'ouest aux vitres ruis-selantes, à son regard terrifié. Ela pensava em sua mãe, no quarto de oeste de vidros lacrimejantes, em seu olhar aterrorizado.

O trecho abaixo evoca a cena em que George, após receber a notícia de que

Thérèse, doente, voltara para Argelouse, desespera-se com a idéia de sua morte

iminente. A descrição da paisagem é altamente sugestiva para expressar o sofrimento do

rapaz: l’eau tombait goutte à goutte du toit et s’amassait entre les carreaux disjoint e la

houle de pin entourait la métairie abandonnée d’une lamentation infinie... No primeiro

trecho destacado, percebemos que o uso do adjetivo disjoints para carreaux, graças ao

seu sentido figurado, parece remeter ao fato de que, a partir daquele momento, a morte

de Thérèse os separaria; assim sendo, optamos pelo adjetivo desunidos. No segundo

trecho, a inquietação de George diante da notícia que acabara de receber, é reforçada

pela transferência de imagens marítimas e terrestres, houle de pins, e pela

personificação do barulho dos pinheiros lamentation infinie. Assim sendo, optamos por

uma tradução que recuperasse tanto transferência de imagens com a expressão marulho

dos pinheiros como a personificação do vento com a expressão lamúrias infinitas.

Il se tut ; puis Marie l'entendit murmurer : "Le monde sans elle..." L'eau tombait goutte à goutte du toit et s'amassait entre les carreaux disjoints. La houle des pins entourait la métairie abandonnée d'une lamentation infinie. Ele se calou. E seguida Marie o escutou murmurar: “O mundo sem ela...” A água caia gota a gota do teto e se acumulava entre os azulejos desunidos. O marulho dos pinheiros envolvia a fazenda abandonada com uma lamúria infinita.

As oscilações da consciência de Thérése são sugeridas através da imagem de

uma montanha, onde o limite da loucura seria o topo. Assim sendo, nossa tradução

reproduziu a imagem concreta com o uso de topo para sommet, encosta para versant. Ao

final, após as interrogações eloqüentes de quem se dá conta de que estava

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completamente desatinada, mas que acabara de recuperar a lucidez, percebemos a

transferência de imagem com a expressão le bouillard se déchirait, que foi traduzido de

modo a recuperar a idéia da verdade se revelando: a bruma se descortinava.

Parce que Thérèse avait atteint le sommet, déjà elle descendait l'autre versant : elle savait maintenant que la tasse ne contenait aucun poison et que Marie était innocente de ce crime. "J'étais donc folle puisque je le croyais ?" Mais tout le reste ? cet immense cauchemar ? Le brouillard se déchirait et ses yeux découvraient le monde réel. Porque Thérèse alcançara o topo, já ela descia a outra encosta: sabia agora que a xícara não continha nenhum veneno e que Marie era inocente daquele crime. “Logo era uma louca já que acreditava nisso? Mas e todo o resto? Aquele imenso pesadelo?” A bruma se descortinava e seus olhos descobriam o mundo real.

3.2 Reconstruindo o tom

Como discutimos no capítulo primeiro, o trágico define o tom da obra Mauriac,

e, portanto, ao reproduzir sua obra em outra língua acreditamos ser importante

considerá-lo. Segundo a definição dada por Jean Hytier num estudo consagrado ao

escritor André Gide e que poderia, segundo Cormeau, ser perfeitamente aplicado à

expressão de Mauriac, o tom seria:

[..] une séléction affective du langage par une attitude de conscience...le ton est cette nature intérmédiaire qui relie l’inspiration à la expression, qui va de l’une à l’autre et qui participe des deux. En sorte qu’on peut dire que le ton est à la fois le style de l’inspiration et l’inspiration du style. (HYTIER apud CORMEAU, 1951, p.325)

Ao longo dos comentários, observaremos também que o ritmo em Mauriac,

graças à sua sensibilidade e a sua predileção pelos conflitos interiores, é definido

segundo o estado de alma de seus personagens.

O drama da personagem Thérèse provém do fato de que ela se encontra

abandonada, solitária, pois devido à sua natureza destrutiva, as pessoas que dela se

aproximam não permanecem por muito tempo ao seu lado. Após a tentativa de

envenenamento de seu marido, em Thérèse Desqueyroux (1927), ela foi abandonada em

Paris pelo seu marido, que sobrevivera ao envenenamento. Desde então, suas relações

se resumiram a encontros efêmeros, e a única pessoa com que podia conversar era sua

criada, que nem sempre estava disposta a ouvi-la. A passagem abaixo resume seu

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desespero e o tom com que ela é descrita é nesse sentido bastante sugestivo. Para

recuperar o tom irônico optamos por traduzir monde clos por mundinho, a fim de

reforçar a condição miserável da personagem. Além disso, cabe comentar que tentamos

reproduzir o ritmo eloqüente da passagem conservando as repetições une paysanne, une

domestique, as vírgulas e a redução no gerúndio.

Thérèse tournait autour de ce monde clos : une paysanne, une domestique qu’elle gardait comme un morceau de pain bis dans sa prison, n’ayant pas le choix entre cette fille et une autre créature humaine. Thérèse girava ao redor desse mundinho: uma camponesa, uma doméstica que ela conservava como um pedaço de pão com farelo dentro de sua prisão, não tendo escolha entre aquela moça e qualquer outra criatura humana.

No trecho a seguir, o ritmo parece expressar a angústia de Thérèse através das

vírgulas, das repetições (d’une soirrée, d’une nuit), e do verbo raccrocher, que foi

traduzido por agarrar. Ao final do trecho, a raiva crescente da personagem, apreendida

com expressão vague de haine e facilmente traduzida por onda de raiva, é intensificada

com a vírgula situada logo após et comme toujours aussi. De acordo com o estudo que

fizemos do autor e de onde depreendemos seu estilo “galopante”, acreditamos ser

pertinente conservar as vírgulas tais quais elas se apresentam no original, embora muitas

vezes elas pudessem ser omitidas.

Devant la traversée solitaire d’une soirée, d’une nuit, elle s’était raccrochée, comme elle avait toujours fait, à la première créature venue. N’être pas seule, échanger des paroles, entendre respirer une jeune vie... Elle ne demandait rien d’autre, mais cela même n’était plus possible. Et comme toujours aussi, une vague de haine montait du plus profond d’elle-même : “ cette idiote serait vite perdue, et elle finirait sur le trottoir... ” Diante da travessia solitária de uma noite, de uma madrugada, ela se agarrara, como sempre fizera, à primeira criatura que aparecia. Não estar sozinha, trocar palavras, ouvir respirar uma jovem vida... Ela não pedia nada demais, mas nem isso era mais possível. E como sempre também, uma onda de raiva subia das profundezas de seu ser: “essa idiota estará logo perdida, e ela acabará na calçada...”.

A seguir a passagem eloqüente do solilóquio de Thérèse nos dá a idéia de

estarmos diante de uma peça de teatro. A tradução procurou reproduzir a interrogação

altamente sugestiva para expressar a lucidez da personagem com “a que ponto

chegou?” e o tom irônico e surpreso da exclamação Mais quoi!, que certamente

caracteriza o discurso do autor, foi reproduzido por Ora vejam!. O ritmo pausado da

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última frase parece servir para que os discursos de ambos se confundam e, portanto,

optamos por reproduzi-lo também.

Elle se regarda dans la glace et se dit à haute voix : “ Où en es-tu, Thérèse ? ” Mais quoi ! S’était-elle plus humiliée, ce soir, qu’à tout autre moment de sa vie ? Olhou-se no espelho e disse a si mesma em voz alta: “a que ponto você chegou, Thérèse?” Ora vejam! Humilhara-se mais, essa noite, que em qualquer outro momento de sua vida?

A seguir, a falta de pausas na interrogação participa, a nosso ver, da visualização

do longo caminho percorrido pelo móvel de Thérése, e a única vírgula ao final resume,

em um golpe seco, a conclusão do trajeto. Em seguida, a falta de conjunções nos mostra

a sobriedade teatral do autor na descrição dos movimentos da personagem. A tradução

procurou respeitar tais características através da reprodução quer da ausência de

vírgulas, quer de seu excesso.

Comment a-t-il pu accomplir toute cette route depuis la métairie d’Argelouse jusqu’à ce troisième d’une maison ancienne, rue du Bac ? Thérèse hésite un instant, prend un livre, le repose, ferme la bibliothèque, se rapproche de la glace. Como pôde atravessar toda aquela estrada desde a propriedade de Argelouse até aquele terceiro andar de uma casa antiga, rua do Bac? Thérèse hesita um instante, pega um livro, o devolve, fecha a biblioteca, aproxima-se do espelho.

O autocontrole de Thérèse diante de seu desespero é expresso na passagem

abaixo, após os dois pontos, com a frase em cinco tempos, onde o primeiro, com o

emprego do gerúndio, traduz seu movimento e os quatros últimos, graças ao paralelismo

rítmico, expressam a tranqüilidade reconquistada. A tradução respeitou os tempos do

original.

Elle en eut la certitude, au point de céder à un mouvement de terreur : s’étant de nouveau rapprochée de la cheminée, elle se regarda dans la glace et, d’un geste familier, fit glisser ses doigts, lentement, le long de ses joues. Ela teve certeza disso, a ponto de ceder a um movimento de terror: tendo se aproximado novamente da chaminé, olhou-se no espelho e, com um gesto familiar, deslizou os dedos, lentamente, ao longo de suas maças.

A seguir, o suspense da cena parece ser reforçado pela sua descrição pausada

(pontos e vírgula). Em seguida, o paralelismo rítmico das duas últimas frases assim

como a ressonância de lumière d’un reverbere dão maior relevo à descrição da imagem

vertiginosa. Assim sendo, a tradução optou por: conservar as pausas a fim de conservar

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o suspense, reproduzir o paralelismo rítmico e, finalmente, reproduzir a ressonância

com a expressão no fulgor de um refletor. Ademais, optamos pelo verbo bruxulear para

traduzir éclater a fim de reforçar a visão vertiginosa da personagem.

Thérèse alla à la fenêtre, l’ouvrit. Il pleuvait. La vitrine du pharmacien brillait encore. Le vert et le rouge d’une affiche éclataient dans la lumière d’un réverbère. Thérèse foi até a janela, a abriu. Chovia. A vitrine do farmacêutico brilhava ainda. O verde e o vermelho de um luminoso bruxuleavam no fulgor de um refletor.

No trecho que destacamos a seguir, a descrição dos pensamentos de Thérèse

seguem um ritmo contínuo e crescente, que são como que um prelúdio para o desfecho

trágico de seu destino. Procuramos reproduzir a primeira frase de modo a respeitar o uso

inadvertido das vírgulas. Ao final, procuramos reproduzir também o paralelismo

existente nas duas frases do original, uma vez que ele dá maior relevo à reflexão

conclusiva da personagem.

Des visages apparaissaient brièvement dans le champ de sa conscience puis s’effaçaient : ceux qui avaient tenu une place dans sa vie, du temps que les dés n’étaient pas encore jetés, que les jeux n’étaient pas faits, que les choses auraient pu être différentes de ce qu’elles avaient été. Et maintenant, tout était accompli : impossible de rien changer au total de ses actes ; son destin avait pris une figure éternelle. Rostos surgiam brevemente no seu imaginário em seguida se dissipavam: aqueles que ocuparam um lugar em sua vida, no tempo em que os dados ainda não foram lançados, que as jogadas não foram feitas, que as coisas poderiam ter sido diferentes do que eram. E agora, tudo estava feito: impossível não interferir na totalidade de seus atos; seu destino adquirira uma feição eterna..

A seguir, ainda no intuito de expressar o ritmo ofegante que expressa a profusão

de pensamentos que invadem a personagem, reproduzimos na tradução o uso

inadvertido de vírgulas do original e também a conjunção conectiva da última oração,

uma vez que, ao contrário das vírgulas, ela reforça a idéia de que os pensamentos

finalmente se tornaram mais tranqüilos. [...] tant d’êtres enfin qu’elle avait poursuivis, harcelés, qu’elle avait bouleversés, et qui l’avaient fuie ; pour ne point se laisser étouffer par cette ruée de fantômes, elle n’avait d’autres recours, au long de ses nuits sans sommeil, que de choisir l’un d’entre eux, que d’apprivoiser tel être insignifiant et de revivre en esprit une brève joie sans lendemain.

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tantos seres que ela perseguira, molestara, que ela transtornara, e que dela fugiram; para não se deixar sufocar por aquela profusão de fantasmas, ela não tinha outra saída, ao longo de suas noites sem sono, a não ser escolher um dentre eles, aprisionar tal ser insignificante e reviver em pensamento uma breve alegria sem porvir.

A eloqüência do tom da passagem abaixo é alcançada graças ao uso da segunda

pessoa, que interpela o leitor subitamente. Embora tenhamos decidido por utilizar você

como forma de tratamento ao longo do romance, em passagens como esta, o pronome

escolhido foi te, visto que o pronome a pode vir a despertar ambigüidade.

[...] l'ombre de Thérèse se serait tout de même étendue sur ce pauvre destin de Marie. Qui exige cette affreuse communion ? "Morte, je ne t'empoisonnerais pas moins... Que te donner ? l'argent....” [...] ainda assim a sombra de Thérèse teria recoberto aquele pobre destino de Marie. Quem exige essa terrível comunhão? “Morte, eu não te envenenaria menos... que te dar? o dinheiro...”

No trecho destacado a seguir, cabe comentar a reprodução das vírgulas na

tradução, uma vez que elas contribuem para reforçar a imagem descrita, isto é, de

alguém ofegante que tenta acalmar sua respiração.

Thérèse reprenait souffle, pareille à une danseuse, pendant l'entracte, appuyée contre le décor. Le drame était interrompu; il ne reprendrait pas sans elle. Thérèse retomava o fôlego, tal uma dançarina, durante o entreato, encostada ao cenário. O drama foi interrompido; não recomeçaria sem ela.

No trecho seguinte, a aceleração dos batimentos de Thérèse se torna perceptível

graças ao ritmo desordenado e ao exagero na descrição de seus movimentos cardíacos.

Assim sendo, procuramos reproduzir esse efeito com o emprego desordenado das

vírgulas, dos pontos e dos pontos-e-vírgulas assim como o exagero contido no desfecho

da passagem: batimentos enlouquecidos, corrida desordenada.

Le mal s'engourdissait mais demeurait présent. La main n'avait fait que desserrer son étreinte. Thérèse ne pensait plus à Marie, ni à Georges, ni à personne ; toute ramassée sur soi, attentive à ce désordre profond au centre même de son être, comme si cette fixité du regard intérieur eût suffi à tenir en respect l'organe dément, à apaiser ces battements fous, à enrayer cette course désordonnée, à l'arrêter au bord du vide. A dor se entorpecia mas permanecia presente. A mão nada fizera a não ser afrouxar suas amarras. Thérèse não pensava mais em Marie, nem em George, nem em ninguém; completamente compenetrada em si mesma, atenta àquela desordem profunda no centro de seu ser,

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como se aquela fixação do olhar interior fosse suficiente para controlar o órgão demente, para apaziguar aqueles batimentos enlouquecidos, para pear aquela corrida desordenada, para pará-la a beira do vazio.

O solilóquio seguinte, graças ao ritmo crescente e o tom altivo com que ele é

descrito, sugere perfeitamente a raiva repentina e desmesurada que emana da

personagem. A tradução procurou respeitar o ritmo com a reprodução das vírgulas e

para recuperar a altivez do tom traduzimos cette petite phrase por frasesinha de nada.

"Non ! gémit Thérèse. Non ! non !" Elle disait non à cette pensée qui lui venait, qu'elle voulait chasser; à cette crainte absurde, mais qui naissait dans sa chair, à cette angoisse sourde encore, mais qui allait croître, elle en était sûre, l'envahir, la posséder tout entière. Non, aucune menace dans cette petite phrase ; [...] Ah ! allait-il falloir, toute la nuit, ressasser ce tant que je vivrai, le tourner et le retourner jusqu'à la folie? “Não! gemeu Thérèse. Não! não!” Dizia não àquele pensamento que lhe ocorria, que ela queria afugentar; àquele medo absurdo, mas que emanava de sua carne, àquela angústia surda ainda, mas que ia crescer, estava certa disso, invadi-la, possuí-la por inteiro. Não, nenhuma ameaça naquela frasezinha de nada; [...] Ah! precisaria, todas as noites, remoer aquele enquanto eu viver, virá-lo e revirá-lo até beirar a loucura?

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Considerações finais

Nosso processo tradutório do romance La Fin de la Nuit de François Mauriac foi

norteado, conforme procuramos demonstrar, pelos conceitos de “(re) escritura” e “de

tradução enquanto crítica”, de Antoine Berman. Esses conceitos foram de extrema

importância para que, durante o processo tradutório, não fossemos intimidados,

enquanto tradutor, pela incessante polêmica que gravita em torno dessa atividade, a

saber, a tradução obrigatoriamente confinada às relações de oposição tais como

fidelidade e liberdade, letra e sentido, ou ainda, perdas e ganhos, acréscimo e omissão,

etc. Ao contrário, nossa escolha em realizar uma tradução a partir de uma reflexão

crítica, apoiada pela leitura de outras obras do autor, por escritos sobre a obra de

Mauriac assim como sobre os conceitos teóricos acerca da literatura, nos mostrou que

ser “fiel” à obra original, em alguns casos, exige do tradutor certa liberdade a fim de que

a expressividade de algumas passagens textuais peculiares possa ser reproduzida.

As questões suscitadas ao longo do nosso trabalho nos foram úteis para perceber

que, de fato, a tradução de uma obra literária requer sensibilidade e experiência, que ela

pode sempre ser melhorada, que traduzir não se resume a consultar dicionários e,

finalmente, que quanto maior a bagagem literária de um tradutor, maior será seu leque

de escolhas, e conseqüentemente, mais criatividade ele terá para a reconstrução das

passagens peculiares do autor.

As escolhas realizadas durante a tradução procuraram, na medida do possível,

considerar às diferenças lingüísticas de ambas as culturas envolvidas para que a

eticidade preconizada por Berman fosse respeitada; entretanto, no caso do romance La

Fin de la Nuit, diferentemente da abordagem exigida pelo romance social - onde a

tradução dos discursos dos personagens individualizados deve procurar respeitar as

diferenças lingüísticas e sociais - o universo apresentado por Mauriac, por pertencer

quase que exclusivamente a uma mesma classe social - a classe burguesa - não

apresenta, nesse sentido, maiores desafios para a tradução. Portanto, nossa preocupação

focalizou-se, sobretudo, na reprodução da expressividade do discurso poético de

Mauriac - as imagens e o tom.

Finalmente, embora tenhamos a consciência do caráter sempre inacabado de

uma tradução, a tradução inédita aqui proposta constitui, a nosso ver, um grande passo

para a divulgação de Mauriac no Brasil, cujas obras refletem temas sempre universais.

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Nesse sentido, as colocações de Goethe sobre o papel da tradução no processo

de formação das culturas possuem valor inestimável para a compreensão de que essa

prática, “ao abrir no nível da escrita uma certa relação com o outro”, participa

ativamente para o aperfeiçoamento do Próprio: Cada literatura acaba por se aborrecer consigo mesma, se na for regenerada por uma participação estrangeira. Qual sábio não goza das maravilhas que vê produzidas pelo reflexo e pela reflexão? E o que significa um reflexo no domínio moral, cada um o viveu, mesmo que de maneira inconsciente, e compreenderá, assim que tiver prestado atenção nisso, que lhe é devedor de uma grande parte de sua formação (GOETHE apud BERMAN, 2002, p. 118)

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