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SECRETARIA DA JUSTIÇA E DEFESA DA CIDADANIAFUNDAÇÃO INSTITUTO DE TERRAS DO ESTADO DE SÃO PAULO
“JOSÉ GOMES DA SILVA”DIRETORIA ADJUNTA DE RECURSOS FUNDIÁRIOS
GERÊNCIA DE ARRECADAÇÃO E PROJETOS
RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICO SOBRE OS REMANESCENTES DA COMUNIDADE DE QUILOMBO DO
JAÓ/ITAPEVA-SP
MARÇO/2000
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 03
2. A ATUALIZAÇÃO DO CONCEITO DE QUILOMBO: O PRIMADO DA IDENTIDADE E DO
TERRITÓRIO NAS DEFINIÇÕES TEÓRICAS.................................................................... 05
3. BREVE CARACTERIZAÇÃO HISTÓRICA E ATUAL DO MUNICÍPIO DE ITAPEVA E
ARREDORES ................................................................................................................... 12
4. ORIGEM DA COMUNIDADE ........................................................................................ 16
4.1. HISTÓRIA E MEMÓRIA: OS REGISTROS ORAIS .................................................................... 16
(seguido da Genealogia do Jaó em anexo)
4.2. A ANÁLISE DOCUMENTAL................................................................................................... 18
(seguido das cópias da documentação consultada)
5. OCUPAÇÃO ESPACIAL E ORGANIZAÇÃO SOCIAL E ECONÔMICADA COMUNIDADE ........................................................................................................... 20
5.1. PARENTES E VIZINHOS ...................................................................................................... 21
5.2. O USO DA TERRA E AS RELAÇÕES DE TRABALHO ................................................................ 24
5.3. O JAÓ HOJE: INFRA-ESTRUTURA E RELAÇÕES SÓCIO-POLÍTICAS ......................................... 27
5.4. OS LIMITES TERRITORIAIS DO JAÓ .................................................................................... 35
6. CONCLUSÃO ............................................................................................................... 37
7. BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 39
ANEXO - Depoimento de Sr. Hilário Martins sobre a origem do Jaó .............................. 42
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta uma série de elementos concernentes à
comunidade denominada Jaó, localizada no município de Itapeva (sudoeste do
Estado de São Paulo), com o escopo de estabelecer sua tipificação frente à
condição de Remanescentes de Comunidade de Quilombo, pleiteada pelos
seus integrantes, permitindo-lhes, assim, o direito à regularização das terras que
ocupam, previsto no artigo n.º. 68 do Ato das Disposições Transitórias da
Constituição Federal de 1988, sob o enunciado: “Aos remanescentes das
comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” .
Baseado em critérios antropológicos de fundo teórico, este Relatório
Técnico-Científico1 buscou analisar dados advindos tanto da pesquisa direta com
a comunidade quanto de fontes secundárias levantadas por pesquisa documental,
a fim de retratar os aspectos etnológicos que possibilitam a reconstrução da
história da comunidade e o resgate de sua origem étnica e da sua identidade
grupal, esta última fundamentada tanto pelas redes de sociabilidade calcadas no
parentesco quanto pela relação material e simbólica que o grupo mantém com a
área que ocupa.
1 A criação desta categoria de investigação denominada Relatório Técnico Científico, bem como os parâmetros que o norteiam, são resultantes dos esforços do Grupo de Trabalho criado pelo Governo do Estado de São Paulo por meio do Decreto nº 40.723, de 21 de março de 1996, que tinha por objetivo fazer proposições visando a plena aplicabilidade dos dispositivos constitucionais conferentes do direito de propriedade aos remanescentes das comunidades de quilombos em território paulista. Foi integrado por representantes da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania, Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva”, Secretaria do Meio Ambiente, Procuradoria Geral do Estado, Secretaria de Governo e Gestão Estratégica, Secretaria de Cultura, Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra no Estado de São Paulo, Subcomissão do Negro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção São Paulo e Fórum Estadual de Entidades Negras. Os trabalhos deste Grupo levaram à criação: a) do Programa de Cooperação Técnica e de Ação Conjunta para identificação, discriminação e legitimação de terras devolutas do Estado ocupadas por remanescentes de comunidades de quilombos e de sua regularização fundiária, implantando medidas sócio-econômicas, ambientais e culturais e b) de um Grupo Gestor para implementação do Programa. O Programa e o Grupo Gestor foram criados por meio do decreto nº 41.774 de 13 de maio de 1997..
Esta reconstituição interpretativa do modo de vida da comunidade,
contemplando suas estratégias de reprodução econômica, social e cultural, visa,
sobretudo, demonstrar a singularidade da ocupação humana empreendida no
espaço físico em questão - não obstante suas características genéricas de uma
população rural tradicional - por tratar-se de um grupo cujas raízes remontam ao
ocaso de uma determinada relação social historicamente datada, qual seja, a
escravidão e, desta feita, constitui-se em segmento social específico, dotado de
uma identidade política portadora de direitos assegurados constitucionalmente.
Nas palavras de ALMEIDA (1997:125), tal disposição do Estado em
institucionalizar a categoria de populações remanescentes de comunidades de
quilombos “evidencia a tentativa de reconhecimento formal de uma transformação
social considerada como incompleta. A institucionalização incide sobre resíduos e
sobrevivências, revelando as distorções sociais de um processo de abolição da
escravatura limitado, parcial”.
Por conseguinte, tendo em vista que este trabalho atende às
necessidades pontuadas no Decreto Estadual 41.839/98, que regulamenta o artigo
3º da lei n.º 9.757/97, está ele inserido neste contexto de uma política afirmativa
do Estado em relação às comunidades negras rurais que, lograda sua libertação
formal dos senhores brancos e do jugo escravista, ainda anseiam por uma
libertação efetiva que as incorpore en fait ao universo de bem-estar material que
lhes é devido, bem como configure uma nova auto-identificação positiva e plena
de orgulho e cidadania.
2. A ATUALIZAÇÃO DO CONCEITO DE QUILOMBO: O
PRIMADO DA IDENTIDADE E DO TERRITÓRIO NAS
DEFINIÇÕES TEÓRICAS
O reconhecimento, por parte do Estado, da existência de comunidades
negras rurais como uma categoria social carente de demarcação e regularização
das terras que ocupam longevamente e às quais se convencionou denominar
comunidades remanescentes de quilombos, traz à tona a necessidade de
redimensionar o próprio conceito de quilombo, a fim de abarcar a gama variada de
situações de ocupação de terras por grupos negros e ultrapassar o binômio fuga-
resistência, instaurado no pensamento corrente quando se trata de caracterizar os
quilombos.
Em 1740, reportando-se ao rei de Portugal, o Conselho Ultramarino
valeu-se da seguinte definição de quilombo: “toda habitação de negros fugidos,
que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos
levantados e nem se achem pilões nele”. Esta caracterização descritiva
perpetuou-se como definição clássica do conceito em questão e influenciou uma
geração de estudiosos da temática quilombola até meados dos anos 70, como
Artur Ramos (1953), Edson Carneiro (1957) e Clóvis Moura (1959). O traço
marcadamente comum entre esses autores é atribuir aos quilombos um tempo
histórico passado, cristalizando sua existência no período em que vigorou a
escravidão no Brasil, além de caracterizarem-nos exclusivamente como expressão
da negação do sistema escravista, aparecendo como espaços de resistência e de
isolamento da população negra.
Embora o trabalho destes autores seja importante e legítimo, ele não
abarca, porém, a diversidade das relações entre escravos e sociedade
escravocrata e nem as diferentes formas pelas quais os grupos negros
apropriaram-se da terra. Flávio dos Santos Gomes (1995:36), explicita tal
diversidade ao forjar o conceito de “campo negro”: “uma complexa rede social
permeada por aspectos multifacetados que envolveu , em determinadas regiões
do Brasil, inúmeros movimentos sociais e práticas econômicas com interesse
diverso” .
No entanto, foi a produção científica ainda atada a exegeses restritivas e
pouco plásticas que subsidiou a luta política em torno das reivindicações da
população rural negra que, sofrendo expropriações incessantes, se colocava como
um segmento específico no palco dos movimentos sociais. Desta forma, a
denominação quilombo se impôs no contexto da elaboração da constituição de
19882.
Esta visão reduzida que se tinha das comunidades rurais negras refletia,
na verdade, a “invisibilidade” produzida pela história oficial, cuja ideologia,
propositadamente, ignora os efeitos da escravidão na sociedade brasileira
(GUSMÃO, 1996) e, especialmente, os efeitos da inexistência de uma política
governamental que regularizasse as posses de terras de grupos e/ou famílias
negras após a abolição, extremamente comuns à época, conforme comprovam os
estudos de CARDOSO (1987).
Ao fazer a crítica do conceito de quilombo estabelecido pelo Conselho
Ultramarino, ALMEIDA (1999:14-15) mostra que aquela definição constitui-se
basicamente de cinco elementos: 1) a fuga; 2) uma quantidade mínima de fugidos;
3) o isolamento geográfico, em locais de difícil acesso e mais próximos de uma
“natureza selvagem” que da chamada civilização; 4) moradia habitual, referida no
termo “rancho”; 5) autoconsumo e capacidade de reprodução, simbolizados na
imagem do pilão de arroz. Para ele, com os instrumentos da observação
etnográfica “se pode reinterpretar criticamente o conceito e asseverar que a
situação de quilombo existe onde há autonomia, existe onde há uma produção
autônoma que não passa pelo grande proprietário ou pelo senhor de escravos
como mediador efetivo, embora simbolicamente tal mediação possa ser
2 Sobre o fortalecimento da organização política dos grupos negros e a incorporação da questão quilombola ao seu rol de reivindicações, v. Flávio dos Santos Gomes (1996:105).
estrategicamente mantida numa reapropriação do mito do “bom senhor”, tal como
se detecta hoje em algumas situações de aforamento” .
O autor exemplifica situações que contrariam esses cinco elementos da
definição, como o caso do quilombo Frechal, no Maranhão, localizado a cem
metros da casa grande, ou casos onde o quilombo esteve na própria senzala,
representado por formas de produção autônoma dos escravos que poderiam
ocorrer – e de fato ocorriam –, sobretudo em épocas de decadência de ciclos
econômicos, fossem agrícolas ou de mineração. Diversos trabalhos mais recentes
a respeito de comunidades negras com origem mais diretamente relacionada à
escravidão têm demonstrado que a economia interna desses grupos está longe de
representar um aspecto isolado em relação às economias regionais da Colônia, do
Império e da República.
Não obstante esta integração das formas mais ou menos autônomas de
atividades produtivas empreendidas pelos escravos à economia geral, é preciso
ressaltar que o trabalho livre sobre a terra não garantiu, de forma alguma, o
acesso dos ex-cativos a ela no momento posterior à Abolição. Ao contrário, a
exclusão do segmento populacional negro em relação à propriedade da terra foi
peremptoriamente estabelecida por meio de uma série de atos do poder legislativo
ao longo do tempo. Ainda durante a escravidão, a Lei de Terras de 1850, veio
substituir o direito à terra calcado na posse por um direito auferido via registros
cartoriais que comprovassem o domínio de uma dada porção de terra. O direito
legítimo adquirido através da posse efetiva é uma noção do “direito costumeiro”3,
que até hoje regeu a relação do campesinato tradicional com a terra, incluindo os
grupos camponeses negros.
Como já foi assinalado por outros autores4, os grupos que hoje são
considerados remanescentes de comunidades de quilombos se constituíram a
3 Conceito explicitado por Margarida Maria Moura (1988).4 Ver especialmente Alfredo Wagner Almeida (1987/1988) e Neusa Gusmão (1996). No primeiro encontramos: “As denominadas terras de preto compreendem aqueles domínios doados, entregues ou adquiridos, com ou sem formalização jurídica, a famílias de ex-escravos a paritr da desagregação de grandes propriedades monocultoras. Os descendentes de tais famílias permanecem nestas terras semproceder ao processo formal de partilha e sem delas se apoderarem individualmente” (p.45).
partir de uma grande diversidade de processos, que incluem as fugas com
ocupação de terras livres e geralmente isoladas, mas também as heranças,
doações, recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao
Estado, simples permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no interior
das grandes propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante a vigência
do sistema escravocrata quanto após a sua extinção.
Dentro de uma visão ampliada, que considera as diversas origens e
histórias destes grupos, uma denominação também possível para estes
agrupamentos identificados como remanescentes de quilombo seria a de “terras
de preto”, ou “território negro”, tal como é utilizada por vários autores5, que
enfatizam a sua condição de coletividades camponesas, definida pelo
compartilhamento de um território e de uma identidade.
A promulgação da constituição e a necessidade de regulamentação do
Artigo 68 provocaram discussões de cunho técnico e acadêmico6 que levaram à
revisão dos conceitos clássicos que dominavam a historiografia sobre a
escravidão, instaurando a relativização e adequação dos critérios para se
conceituar quilombo, de modo que a maioria dos grupos que hoje, efetivamente,
reivindicam a titulação de suas terras, pudesse ser contemplada por esta
categoria, uma vez demonstrada, por meio de estudos científicos, a existência de
uma identidade social e étnica por eles compartilhada, bem como a antigüidade
da ocupação de suas terras.
Desta forma, o conceito de quilombo que norteia o trabalho desenvolvido
pela Fundação ITESP é aquele que foi produzido pela Associação Brasileira de
Antropologia (ABA) e ratificado pelo Grupo de Trabalho (vide nota de rodapé 1):
“toda a comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos vivendo da
5 Ver Almeida (op.cit.), Gusmão (op.cit.), Andrade, (1988) e Acevedo Marin (1995).6 Especialmente no III Encontro Nacional sobre Sítios Históricos e Monumentos Negros (Goiânia: 1992); na Reunião do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, da Associação Brasileira de Antropologia (Rio de Janeiro, outubro de 1994), e na reunião técnica “Reconhecimento de Terras Quilombolas Incidentes em Domínios Particulares e Áreas de Proteção Ambiental” (São Paulo, abril de 1997).
cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o
passado”.
Assim, em consonância com o moderno conceito antropológico aqui
disposto, a condição de remanescente de quilombo é também definida de forma
ampla e enfatiza os elementos identidade e território. Com efeito, o termo em
questão indica: “a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões
e contextos e é utilizado para designar um legado, uma herança cultural e material
que lhe confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um
lugar específico”7.
Este sentimento de pertença a um grupo e a uma terra é uma forma de
expressão da identidade étnica e da territorialidade, construídas sempre em
relação aos outros grupos com os quais se confrontam e se relacionam.
Estes dois conceitos são fundamentais e estão sempre inter-relacionados
no caso das comunidades negras rurais, pois “a presença e o interesse de
brancos e negros sobre um mesmo espaço físico e social revela, no dizer de
Bandeira, aspectos encobertos das relações raciais” (GUSMÃO, op.cit.:14). Estes
aspectos encobertos aos quais a autora se refere são a submissão e a
dependência dos grupos negros em relação à sociedade inclusiva, na qual foram
um dia escravos.
A identidade étnica é um processo de identificação de grupos em
situações de oposição a outros grupos. Frente a esta constatação, OLIVEIRA
(1976) elaborou a noção de identidade contrastiva para embasar as análises que
têm como centro interpretativo a identidade étnica de um grupo social. As
situações de oposição levam os grupos a elaborar os seus critérios de
pertencimento e de exclusão. Quando o confronto se estabelece entre um grupo
minoritário e os brancos, temos uma situação de submissão e dominação, de
hierarquia de status, a qual o autor denominou “fricção interétnica”. São
7 Garcia, José Milton (PPI/SP), publicado em Quilombos em São Paulo: tradições, direitos e lutas, org. Tânia Andrade (1997:47).
justamente estas relações interétnicas que se estabelece no convívio/confronto
das comunidades negras com a sociedade abrangente.
Ademais, esta submissão é sustentada por representações sociais que
justificam a inferioridade estrutural do grupo minoritário, as quais podemos
identificar como sendo racistas. É um racismo recalcado, escondido atrás de “um
sistema de valores que [...] tanto inibe manifestações negativas na avaliação ‘do
outro’ racial como estimula a apologia da igualdade e da harmonia racial entre
nós” (BORGES PEREIRA, 1996:76). A ocultação do racismo na sociedade
brasileira foi estimulada pelo discurso da democracia racial, da qual Gilberto
Freyre é um grande expoente, na década de 30, e que só começou a ser
contestado na década de 50 por Florestan Fernandes e Oracy Nogueira.
Em tal situação de desigualdade, os grupos minoritários reforçam suas
particularidades culturais e suas relações coletivas como forma de ajustar-se às
pressões sofridas, e é neste contexto social que constróem sua relação com a
terra, tornando-a um território impregnado de significações relacionadas à
resistência cultural. Não é qualquer terra, mas a terra na qual mantiveram alguma
autonomia cultural, social e, consequentemente, a auto-estima. Siglia Zambrotti
DÓRIA (1985) salienta que a identidade de grupos rurais negros se constrói
sempre numa correlação profunda com o seu território e é precisamente esta
relação que cria e informa o seu direito à terra.
A maior parte destes grupos que hoje vem reivindicar seu direito
constitucional o faz como um último recurso na longa batalha para manterem-se
em suas terras, as quais são alvo de interesse de membros da sociedade
envolvente, em geral grandes proprietários e grileiros, cuja característica essencial
é tratar a terra apenas como mercadoria. José de Souza MARTINS (1991:43-60)
explicita as características dessa relação dos homens com a terra, mediada pelo
capital, em que esta passa a ser “terra de negócio” em oposição à “terra de
trabalho”. Em conseqüência da cobiça que esta lógica de mercado despertou, os
camponeses foram pressionados com expedientes espúrios, tais como o auxílio
do aparato judicial e violência física direta, que agiram no sentido de negar-lhes o
direito de obter o registro legal de suas posses, invariavelmente muito mais
antigas do que o tempo mínimo requerido pela legislação para a sua
transformação em propriedades.
Portanto, não se deve imaginar que estes grupos camponeses negros
tenham resistido em suas terras até os dias de hoje porque ficaram isolados, à
margem da sociedade. Pelo contrário, sempre se relacionaram intensa e
assimetricamente com a sociedade brasileira, resistindo a várias formas de
violência para permanecer em seus territórios ou, ao menos, em parte deles8.
Finalmente, devemos salientar que é devido às considerações teóricas e
às constatações históricas aqui apresentadas que estudiosos das comunidades
negras rurais - e, particularmente, da legislação pertinente à questão quilombola –
têm buscado rediscutir e recaracterizar o conceito de quilombo. Tal intento, ainda
em curso, tende a aprimorar-se quanto mais os organismos responsáveis pela
identificação, reconhecimento e auxílio às comunidades quilombolas ampliem e
otimizem suas atividades, gerando mais dados que contribuam para o desvendar
científico das lacunas referentes aos grupos quilombolas que marcam a
historiografia nacional.
8 Muitas das comunidades rurais negras já pré-identificadas no Estado de São Paulo mantém uma pequena parcela de seus territórios, estando o restante ocupado por fazendeiros ou posseiros, alguns destes últimos com o consentimento dos próprios grupos quilombolas; os primeiros, entretanto, invariavelmente chegaram às terras em questão valendo-se da ingenuidade das comunidades ou mesmo da coerção física para apoderar-se dos territórios negros.
3. BREVE CARACTERIZAÇÃO HISTÓRICA E ATUAL DO
MUNICÍPIO DE ITAPEVA E ARREDORES
O município de Itapeva está localizado no sudoeste do Estado de São
Paulo, obedecendo às seguintes coordenadas geográficas: 23º57 de latitude sul e
48º53 de longitude oeste. Suas divisas atuais são fronteiriças aos municípios de
Itaberá, Itaí, Itararé, Paranapanema, Buri, Capão Bonito, Ribeirão Branco, Apiaí,
Nova Campina, Taquarivaí e Guapiara. Contando com uma área total de 1.830,9
km2, Itapeva é o segundo maior município do Estado. A área de seu perímetro
urbano é de 17,26 km2, na qual vivem 59.824 habitantes; a população rural, de
21.456 habitantes, encontra-se distribuída nos 1.813,64 km2 restantes, totalizando
um contigente populacional de 81.280 habitantes.
Ao cruzarmos estas variáveis de área com aquelas relativas à distribuição
da população, atingimos os seguintes indicadores da densidade demográfica: 44,4
hab/km2 (total), 3.466 hab/km2 (zona urbana) e 11,8 hab/km2 (zona rural)9. O
enorme desequilíbrio demonstrado pelos dados no que diz respeito à ocupação
humana nas zonas rural e urbana reflete o traço marcadamente concentrador do
processo de configuração fundiária perpetrado ao longo da história brasileira.
Segundo a profª. Leonor Ribeiro de Oliveira10, o espaço físico que hoje
abriga Itapeva era, no início do século XVIII, a sesmaria do sorocabano Tomé de
Almeida Pais, granjeada por ele como prêmio por serviços militares prestados à
9 Dados atuais do município (Fonte: Prefeitura Municipal de Itapeva, SMPS – Secretaria Municipal da Promoção Social).10 Leonor Ribeiro de Oliveira é itapevense e, empenhada em registrar a história do seu município, escreveu um livro infantil paradidático (Itapeva para crianças, 1992, 2ª edição), editado pela Prefeitura Municipal de Itapeva e a mim gentilmente presenteado pelo Sr. Newton de Moura Muzel, secretário municipal de Educação e Cultura. Ainda que o referido opúsculo trate-se de uma obra dirigida às crianças, foi de extrema valia no que diz respeito aos caminhos históricos pormenorizados – datas, nomes - que explicam o surgimento do município de Itapeva.
Coroa. O sesmeiro construiu seu casarão às margens da “estrada geral”11, que
ligava a capitania de São Paulo ao extremo sul da colônia. Ali, muitos viajantes
pernoitavam e invernavam seus animais.
Aberta em 1728 por Cristóvão de Abreu, esta estrada substituía as antigas
picadas abertas aleatoriamente pelos viajantes, estreitas e, não raro, rapidamente
encobertas por outra vegetação. O novo caminho servia, primacialmente, para dar
passagem permanente a tropas de muares e reses.
À Coroa, interessava uma melhoria generalizada da Capitania, “como
meio de aumentar a arrecadação do Estado e de proteção ao extremo sul da
Colônia ameaçado pelos espanhóis” (CORRÊA, 1997:53).
Sob essa prerrogativa, iniciada pelo governador D. Luís Antônio de Souza
Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, logo após a restituição da autonomia
administrativa da capitania de São Paulo, o sudoeste paulista começava a passar
por transformações de ordem infra-estrutural. Embora tal região passasse ao largo
das zonas cafeeiras de grande interesse para os investidores, não esteve
incólume às investidas perpetradas em consonância às políticas de “invasão do
sertão” e tampouco era peça desnecessária ao sistema agrário que se instituía.
Cabe ressaltar que o comércio de muares e gado vacum era a principal atividade
econômica da região sorocabana, que se transformou, também, em importante
posto de arrecadação fiscal. Maria Tereza PETRONE (apud CATELLI JR.,
1993:68) nos dá uma idéia do volume de transações comerciais efetivadas nas
feiras da cidade, apresentando os seguintes números: 25 a 30 mil muares
passavam por ano nas feiras, nas décadas de 1820/1830 e o capital circulante
nestas ocasiões representava de 3,5% a 5,5% do total do Império.
Podemos entender, então, que essa região de Sorocaba dedicou-se ao
comércio de muares e também à pequena agricultura para abastecimento interno
11 Em correspondência do Capitão General Antonio Manoel de Mello e Castro e Mendonça, datada de 1728, encontramos referência à ‘estrada geral’: “a estrada que vai da Villa de Sorocaba até Lages e daque para o continente de Viamão hé toda povoada de fazendas de criar, para o que serve quazi toda a terra de huma e outra parte desta estrada. Entre estas fazendas há também alguns campos devolutos, a que chamam de invernada, porque nestes campos costumão parar as tropas e Boyadas” (apud CORRÊA, Dora S. (1997:74).
como parte de uma teia de formações político-econômicas maior, ou seja, se
Minas Gerais estava restrita à atividade aurífera enquanto o sul do país se via às
voltas com invasões espanholas, cabia à província de São Paulo fornecer meios
de transporte e víveres para essas regiões12.
Uma das diretrizes da política do governo do Morgado de Mateus era
adensar o elemento populacional nos territórios mais ermos da capitania. Para
tanto, ele formalizou a existência de pequenos povoamentos, principalmente às
margens da ‘estrada geral’, “fundando vilas entre freguesias separadas pelo
sertão” ( CORRÊA, op.cit.:53).
Entre elas, estava a Vila de Faxina, situada ao lado esquerdo do rio Apiaí-
Guaçu (cerca de dezoito quilômetros da atual Itapeva). Para fundar oficialmente a
vila, em 20 de setembro de 1769, foi nomeado Antônio Furquim Xavier Pedroso.
Em 1785, a Vila de Faxina foi transferida para o povoado de Itapeva, pois
lá passava a ‘estrada geral’, passando a se chamar Vila de Itapeva. Em 1833,
recebeu o nome de Itapeva da Faxina. Em 1861, a vila alçou o estatuto de cidade,
denominando-se Faxina, e mais tarde, em 1872, passou a ser comarca. Em 1938,
a Comarca de Faxina tornou-se Comarca de Itapeva, sua denominação atual.
A constituição humana do município de Itapeva e dos arredores contou
com dois grupos étnicos, além dos portugueses: os índios e os negros
escravizados.
Sobre o primeiro grupo, é mister lembrar que foram também escravizados
e posteriormente dizimados, mormente em fins do século XIX, como resultado da
política expansionista de conquista do sertão, marcada pela tentativa de concluir a
eliminação dos povos indígenas: “a marcha moderna acabou a obra de destruição
dos índios encetada na época colonial” 13
12 Além das divisas auferidas por meio do comércio de muares, havia ainda a produção de cana-de-açúcar, aguardente e outros gêneros produzidos apenas para o comércio interno.13 Pierre MONBEIG. Pioneiros e Fazendeiros em São Paulo, Hucitec, São Paulo, 1984 (p.132), apud CORRÊA (op.cit.:72).
Em Itapeva, assinala-se a presença dos índios das etnias Guainã e
Caingangue, confinados, no século XVIII em aldeamentos criados para fornecer
mão-de-obra para a lavoura e posteriormnete expulsos ou mortos pelos tropeiros e
negociantes de terras.
Quanto aos escravos negros, podemos dizer que, embora a região
sudoeste não tenha contado com uma grande massa de cativos - visto que as
atividades econômicas ali desenvolvidas não exigiam alto contingente de mão-de-
obra em comparação às lavouras de café e cana-de-açúcar -, registrou-se taxas
significativas de presença de escravos no universo populacional do município de
Itapeva. Em 1776, apenas sete anos após a fundação oficial da Vila de Faxina,
dentre uma população total de menos de mil habitantes, contabilizava-se 119
negros escravos14. Em 1836, o percentual de escravos em relação à população
total do município era 16,31%15.
A situação econômica peculiar da região sorocabana – fora do eixo de
produção para economia de exportação – explica porque a população escrava era
relativamente reduzida, se comparamos esta região a outras do tipo açucareiras
ou cafeicultoras. CATELLI JR. (op.cit: 70-71) compara a estrutura social de
Campinas – onde predominava a produção açucareira com vistas à exportação –
com a de Sorocaba: “Enquanto Campinas tinha, em 1836, 58,6% de população
escrava, esta proporção era de somente 23,2% em Sorocaba”.
E, não obstante essa presença menor da população cativa na região,
CATELLI JR. (op.cit.) ressalta a íntima ligação existente entre a comercialização
dos muares e o tráfico de escravos, inclusive o ilícito, após 1831, mostrando-nos a
relação seminal entre a história da escravidão no país e a região em questão.
Hoje, o município de Itapeva tem a produção de grãos e a extração de
minérios como suas principais atividades econômicas, além das propriedades
rurais que se prestam ao reflorestamento de pinus e eucalipto para a coleta de
resina.
14 Fonte: Arquivo do Estado de São Paulo, Registros de População dos Municípios Paulistas, caixa 0043/rolo 53.15 Fonte: J. F. de CAMARGO apud CORRÊA (op.cit.:84).
4. ORIGEM DA COMUNIDADE
4.1. HISTÓRIA E MEMÓRIA: OS REGISTROS ORAIS
O Jaó recebeu esta denominação há cerca de vinte anos, por conta da
construção, próxima ao espaço ocupado pela comunidade, da Estação Ferroviária
do Jaó.
Anteriormente a este fato, as terras da comunidade eram denominadas
Ponte Alta16 e faziam parte do patrimônio do fazendeiro Honorato Carneiro de
Camargo. O Sr. Hilário Martins, de 63 anos, um dos líderes da comunidade e
depositário de significativa memória histórica, é quem nos conta como sucedeu a
origem do Jaó17 .
Segundo o Sr. Hilário, Honorato Carneiro de Camargo mantinha contato
amistoso com os escravos da fazenda Pilão d’Água e conversava com eles
auxiliado pelo seu escravo de casa, que viria a se tornar seu filho adotivo. Após o
fim da escravidão, Honorato teria reencontrado quatro dos antigos escravos da
Pilão d’Água abandonados à própria sorte e resolveu levá-los consigo para a
Fazenda Lagoinha. Dentre esses escravos, estava o avô de Hilário, Joaquim
Carneiro de Camargo.
Joaquim e os outros três negros também teriam sido adotados pelo
fazendeiro Honorato, que dividiu suas terras passando um quinhão para cada um
deles. Para Joaquim, couberam as terras denominadas Sítio da Ponte Alta, onde
se estabeleceu com a esposa Josepha Paula Lima, filha de mãe índia e pai negro,
cozinheira da Fazenda Pilão d’Água.
16 Os moradores mais velhos lembram-se também da denominação Rincão dos Pretos para se referir ao Jaó.17 Ver depoimento integral do Sr. Hilário Martins sobre a origem do Jaó, anexado à p. 42.
O casal Joaquim e Josepha teve seis filhos: Elydio. Hemínia, Waldomira,
Diolinda, Elizina e Laurinda18. Joaquim faleceu quando os filhos ainda eram
crianças, cabendo a Josepha a tarefa de cuidá-los. Á medida que os filhos
cresciam e iam se casando, estabeleciam-se junto à mãe com seus cônjuges,
aumentando cada vez mais a população do sítio.
Duas das filhas, Diolinda e Waldomira, casaram-se com os chamados
homens do cerrado, dois irmãos de sobrenome Estevan, Maximiniano e José.
Uma terceira filha de Joaquim e Josepha, Laurinda, casou-se com o filho da irmã
dos Estevan, Florência Estevan. Elydio, Hermínia e Elizina casaram-se com
pessoas da vizinhança.
Constatamos, então, que foi baseada nesta ocupação de tipo familiar que
a comunidade rural negra do Jaó estabeleceu-se em seu território. Os eventos
aqui relatados nos dão conta, ainda, se tomarmos sua dimensão histórica mais
ampla, da situação de abandono e insegurança a que os ex-escravos foram
lançados imediatamente após o fim da escravidão, reforçando a necessidade de
aplicação das leis pertinentes à reparação das injustiças perpetradas contra os
segmentos negros da nossa sociedade.
18 Na realidade, Joaquim e Josepha tiveram oito filhos. Dois deles, João e Gilberto, faleceram ainda muito crianças, sendo que alguns dos moradores entrevistados sequer sabem da existência deles.
4.2. A ANÁLISE DOCUMENTAL19
A existência de atores e cenários dispostos na narrativa do Sr. Hilário sobre
a origem da comunidade é cabalmente atestada pelas fontes documentais. O
único ponto que suscita versões distintas é a forma pela qual o casal Joaquim e
Josepha obteve as terras que hoje conformam o Jaó.
De acordo com a documentação obtida pela historiadora Silvia Corrêa
Marques20, Honorato Carneiro de Camargo começa a comprar as terras que
originaram a Fazenda Lagoinha em 1894. O sítio da Ponte Alta era contíguo a
esta fazenda.
Um primeiro documento nos informa que Joaquim Carneiro de Camargo
teria comprado “uma parte de terras de cultura no Capão da Ponte Alta“ do casal
Prudente dos Santos Silva e Maria Loureiro de Melo21, em 24 de junho de 1889.
Não há menção do tamanho e dos limites das terras em questão.
Já um outro documento registra que Joaquim Carneiro de Camargo teria
comprado “campos de criar no lugar denominado Ponte Alta” da Câmara Municipal
de Itapeva, em 15 de março de 1897. Neste registro documental consta que a
área fruto da transação era de 37,45 alqueires (89,9 hectares), confrontando com
as propriedades de Luís de Camargo Melo Sobrinho, Joaquim Preto e Capitão
Ricardo Campolim de Almeida.
Por meio destas escrituras apresentadas, encontramos os registros de
compra de terras em oposição à história de doação ensejada pela comunidade.
Todavia, parece-nos bastante plausível que as versões possam não ser
excludentes.
19 Os documentos consultados para a elaboração deste item encontram-se anexados ao final do mesmo.20 Mestranda em História Social pela FFLCH-USP, Silvia Corrêa Marques pesquisa o Jaó com o auxílio financeiro da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).21 Sílvia C. Marques encontrou registros no Arquivo do Estado de São Paulo que confirmam que o casal em questão era, de fato, proprietário das terras nos arredores da gleba denominada Ponte Alta.
Em primeiro lugar, podemos trabalhar com a hipótese de que, ao adquirir
terras para a formação da Fazenda Lagoinha, Honorato tivesse fornecido o capital
para que Joaquim pudesse comprar as terras da Ponte Alta. Neste caso, não
deixaria de ter havido uma doação. A única ressalva é que tal conjectura abarcaria
apenas a escritura de compra datada de 1897, visto que, como já dito
anteriormente, Honorato teria iniciado a compra de terras que originaram a
fazenda Lagoinha em 1894.
Poderíamos também ignorar esta data de 1894, pensando que Honorato
poderia ter iniciado antes as tais aquisições de terra e subsidiado para Joaquim a
compra de terras na Ponte Alta de 1889 e também a de 1897, principalmente se
levarmos em conta que pode haver documentos não encontrados que registrem
compras de terras, por parte de Honorato, mais antigas que a data em questão22.
No inventário de Joaquim e Josepha, datado de 1931, é utilizada a escritura
de 1897 como referência da partilha de bens entre os seis filhos do casal.
Também não foram encontrados registros formais da adoção de Joaquim
pelo fazendeiro Honorato. No atestado de óbito de Joaquim encontramos os
campos referentes à filiação em branco, como era praxe em documentos de
escravos.
Embora não haja um enlace perfeito entre a história da origem da
comunidade auferida por meio dos relatos orais e a documentação histórica
obtida, o que de mais importante podemos depreender de uma e de outra é que,
seja por meio da doação ou compra, o fato é que a comunidade do Jaó ocupa
seu território pelo menos desde 1897 e ali ampliou sua descendência,
cultivou a terra, enfim, reproduziu-se culturalmente, resistindo aos
preconceitos e às privações aos quais estavam expostos devido a sua
condição social e étnica.
22 A hipótese de que Honorato tenha comprado terras em momentos variados é justificada principalmente se levarmos em conta o fato de ser prática corrente, entre os proprietários rurais, adquirir paulatinamente porções de terra ao redor das suas próprias a fim de uniformizar limites, além de, obviamente, ampliar seu domínio.
5. OCUPAÇÃO ESPACIAL E ORGANIZAÇÃO SOCIAL E
ECONÔMICA DA COMUNIDADE
O Jaó dista cerca de 14 km do município de Itapeva. O acesso à
localidade se dá por meio de uma estrada de terra localizada à esquerda da
rodovia que liga Itapeva a Capão Bonito. A comunidade ocupa hoje um território
de 165,5679 ha. (68,4165 alq.), confrontando com as fazendas São Marco,
Rincão, Alba e Prelúdio, além dos sítios São Miguel Arcanjo I e II23.
À primeira vista, o Jaó pode ser considerado um bairro rural típico,
composto por famílias que coexistem em um mesmo espaço físico, subtilizado por
conta da precariedade material a que estão expostos os moradores. Contudo,
embora possamos observar claramente as características eminentemente rurais
do agrupamento no que tange as suas relações econômicas, passadas e
presentes, as peculiaridades do bairro aparecem mormente na organização
interna, calcada nos laços de parentesco endogâmicos ali estabelecidos, além do
fato de que a comunidade é etnicamente definida como uma comunidade negra
rural. Tal definição étnica24 diz respeito ao reconhecimento das diferenças que
marcam o grupo em contraponto à sociedade envolvente.
Assim, a comunidade do Jaó apresenta uma situação de sobreposição de
identidades: seus membros são camponeses que ocupam historicamente um
território definido, ou seja, a terra na qual trabalham, mas são camponeses
negros, em oposição à maioria da população da região, formada por
descendentes de brancos europeus, e, sobretudo, são camponeses negros
quilombolas, porque carregam a memória histórica da escravidão, do sofrimento
e da resistência de seus antepassados cativos.
Fornecer os elementos etnológicos que caracterizam esta identificação
complexa é o que se pretende ao longo deste capítulo.
23 Para visualizar as fronteiras do Jaó, v. planta e memorial descritivo em anexo (Fonte: Fundação ITESP/2000).24 Ver no capítulo 2 uma discussão mais detalhada sobre definição étnica e conformação das identidades.
5.1. PARENTES E VIZINHOS
Todos os moradores do Jaó são parentes entre si25. Os casamentos
sempre foram realizados dentro da comunidade, ou seja, primos e tios uniam-se
conformando uma parentela extensa. Os membros mais antigos do grupo contam
que esta prática não atendia nenhuma determinação imposta; ao contrário,
explicam que estes casamentos intrafamiliares aconteciam tão-somente em
virtude do interesse que os cônjuges despertavam um no outro, motivação idêntica
à observada nas relações de toda a nossa sociedade. Todavia, embora a
interpretação da comunidade sobre a sua própria prática seja absolutamente
válida, ao analisarmos as condições cotidianas de sociabilidade que permeavam o
grupo podemos presumir que o fator isolamento possa ter sido um forte elemento
condicionante dessa configuração endogâmica.
D. Caliza Paula Lima, de 74 anos, fala sobre as motivações deste
isolamento, no que diz respeito às relações de lazer :
“Nós era um corpo cansado, porque nós trabalhava, né? Chegava domingo, nós aprontava tudo [...] e nós deitava para descansar. E se saía uma festa no sábado, nós trabalhava o correr do dia todo, nós amanhecia acordado e no domingo dormia, né? Então a gente ia pouco [nas festas], porque era cansaço demais”.
D. Malvina Alexandre Campos, 59 anos, vai além e relata inclusive o
isolamento que reinava no interior da comunidade, expresso pela pouca
proximidade social e pelas relações cerimoniosas entre as famílias, ainda hoje
observáveis entre os mais idosos, que se tratam todos, mesmo sendo irmãos, por
senhor e senhora:
“Naquele tempo nós quase não era de sair, de estar um na casa do outro; era de costume de cada um, cada família na sua casa, nós quase não saía para lado nenhum. E tinha parente que eu não conhecia, morava no fundo aqui; a tia, mãe da Floriza, eu fui conhecer ela quando estava com dez anos e ela morava aqui no fundo. Nós não era de sair de casa, era só da casa para o serviço, do serviço para a casa, cada um fazendo o seu”.
25 As exceções são insignificantes dentro do universo endogâmico da comunidade. Há, especificamente, menos que uma dezena de casamentos em que um dos cônjuges é de fora do grupo de parentesco mais antigo.
Não obstante a presença destas relações marcadas por um certo grau de
distanciamento, há, entre os moradores do Jaó, um grande sentimento de
pertencimento a um grupo familiar único, ao qual se deve recorrer em momentos
de dificuldades, bem como auxiliar quando o pedido de ajuda é inverso,
conformando uma estreita rede de solidariedade mútua entre os membros do
grupo. O termo irmandade, presente na fala das pessoas ao se referirem aos
parentes, é utilizado para denotar não só a família nuclear, mas todos os
moradores do Jaó, segundo D. Caliza:
“mas as outras irmandade do bairro é que nós diz irmandade porque somos tudo primo-irmão. É tudo uma irmandade só, né, porque é tudo filho das irmãs da minha mãe, das minhas primas”.
O sistema de parentesco observado no Jaó está calcado na
matrilinearidade, ou seja, os indivíduos são identificados pela linhagem materna,
inclusive adotando o sobrenome da mãe. Também o sistema de herança é
matrilinear, compondo uma teia de ‘proprietários’ da terra eminentemente
feminina26. Outro elemento que reforça a figura de destaque da mãe na
organização da comunidade é a matrilocalidade: os filhos que se casam vem
residir em terras maternas, construindo suas moradias ao lado da que a mãe
habita, compartilhando o mesmo quintal27.
Assim, não causa estranhamento que todos na comunidade reconheçam-
se como membros de um extenso matriarcado fundado na figura de D. Josepha de
Paula Lima. D. Maria Rita, 92 anos presumidos, neta de D. Josepha e a mais
velha habitante do Jaó, conta que todos os netos chamavam D. Josepha de
mamãe, guardando o chamativo de mãe àquelas que o eram de fato. A grande
mãe, D. Josepha, é reverenciada pelos seus descendentes como a ‘pedra
fundamental’ da comunidade, uma espécie de liderança mítica que no passado foi
responsável pela união do grupo e pelas relações que a comunidade travava com
26 O sistema de transmissão de herança vigente no Jaó será mais bem detalhado no próximo item. 27 Atualmente, os padrões de matrilinaridade e matrilocalidade não estão tão visíveis no Jaó. As gerações mis novas não parecem respeitar estes modelos organizativos, provavelmente em função das mudanças ocorridas no uso e ocupação das terras, que veremos mais adiante. Não obstante, foi com extrema facilidade que resgatamos as conformações de parentesco no Jaó, pois elas estão absolutamente vivas na memória dos moradores mais idosos.
o mundo externo. D. Josepha conhecia todos os vizinhos, até mesmo os mais
distantes, devido a um de seus ofícios, o de parteira. Além disso, realizava
diversos serviços no entorno, principalmente pela sua fama de trabalhar
soberbamente com o pilão de farinha. Por meio das palavras de D. Caliza vemos
que o trabalho é o principal elemento associado à imagem de D. Josepha:
“Todos esses terrenos aqui eram dela [D. Josepha]. Então, depois, ela passou para as filhas, morreu ficou nas mãos das filhas (...) Ela vivia sempre assim trabalhando. O maior serviço dela era na fazenda lá, da Lagoinha e aqui para cá também tinha uma fazenda que ela trabalhava, da Esperança (...) Ela era uma mulher muito servideira, muito boa. Os fazendeiros por aí, tudo vinha buscar ela, levava para a casa deles, o que eles precisavam ela ajudava... ela era muito estimada”.
Outro aspecto importante das declarações de D. Caliza sobre D. Josepha
é a relação mantida com o entorno. Os vizinhos fazendeiros são vistos
amistosamente até hoje. No passado, na época de D. Josepha, podemos
vislumbrar, por meio do depoimento transcrito, a existência, inclusive, de uma
relação de interdependência. Pois se é fato que, como veremos adiante, a
existência de grandes fazendas próximas ao Jaó assegurou ocupação para a
mão-de-obra existente na comunidade, os fazendeiros também precisavam de D.
Josepha para auxiliar-lhes nos partos e fornecer-lhes os remédios caseiros que
fazia com ervas medicinais, além da série de outros préstimos elencados pelos
seus descendentes.
As relações de vizinhança no Jaó são, então, marcadas
fundamentalmente pelo trabalho, no que diz respeito ao contato com o entorno, e
pelo respeito, quando nos referimos à sociabilidade interna.
5.2. O USO DA TERRA E AS RELAÇÕES DE TRABALHO28
O uso da terra no Jaó sempre esteve voltado para a subsistência, para a
pequena agricultura de gêneros alimentícios visando o consumo interno. As
famílias lavradoras empreendiam seus roçados na área por eles denominada
capão, mais propícia à agricultura devido às qualidades do solo, em oposição ao
chamado campo, uma área no centro da gleba que abriga a comunidade e que
sempre foi usada como pasto. Na porção de terra fronteiriça à Fazenda Prelúdio,
um dos moradores do Jaó, o Sr. Aurélio, desenvolveu por mais de 30 anos
atividades de horticultura, estas sim gerando excedentes vendidos na cidade.
No Capão, as famílias tinham seus próprios limites para definir a área de
cada um delas. Segundo os moradores mais antigos, as porções de terra
familiares eram reconhecidas por meio de marcos naturais, preferencialmente as
grandes árvores ali existentes.
“Tinha as árvores; era assim: crescia aquelas matas e tinha aquelas árvores mais formadas; se eles iam roçar as plantas então aquelas grandes eles deixavam e estão até agora... e aquele que não tem, a gente que criou ali vai bem certinho onde é as divisa”
A manutenção desta forma de divisão da terra, bem como sua
transmissão ao longo das gerações – inclusive as transformações necessárias
para abarcar mais descendentes - era sustentada pelo sistema de parentesco
vigente no Jaó. A matriarca D. Josepha, valendo-se das árvores dispostas no
Capão, teria divido inicialmente as áreas de lavoura entre os seus seis filhos.
Estes, por sua vez, subdividiam as suas áreas entre seus filhos, assim que eles se
casavam.
E, embora o direito de herança fosse indistinto para homens e mulheres,
havia a preponderância, socialmente reconhecida, do direito feminino sobre a
terra. Para explicar tal configuração, podemos nos valer de dois aspectos: o
primeiro diz respeito ao fato de D. Josepha ter tido cinco filhas e apenas um filho, 28 O croqui de uso e ocupação históricos da terra encontra-se anexado ao final deste tópico.
Árvores que ainda existem na área denominada capão, utilizadas antigamente como marcos da divisão familiar das terras
(Fotos: Arquivo ITESP)
proporcionando às mulheres da família o controle da maior parte das terras; o
segundo, que parece ser mais determinante, é a constatação de que o trabalho de
lavoura no Jaó sempre foi uma atividade predominantemente feminina, enquanto
os homens do Jaó trabalhavam fora da comunidade, em ocupações assalariadas
nas fazendas vizinhas, conforme relatado a seguir:
“Toda vida, sempre, as mulheres estavam em frente. Tinha mulher aí que até arava, gradeava. No caso ali da D. Caliza, ela tem história para contar na vida dela; ela arava de burro, assim ó, cavalo assim, arava... elas [...] e pegavam foice, porque os homens não podiam por causa que iam para o serviço, então as mulherada entrava e ó, é foice, cavadeira, arado e assim fazia”. (D. Malvina Alexandre Campos)
“Os homens saíam para ganhar... tinham que eles ganharem lá nosso sustento. Eles, assim no sábado, às vezes domingo, aravam as terras, deixavam pronto, às vezes plantavam, que eles plantavam no chão plano, plantavam com a máquina, né, trator... e aquele chão de caída, então, nós pegava o xeque-xeque29 e aí nós mesmo fazia, nós limpava a terra, nós mesmo plantava”.(D. Caliza Paula Lima)
As mulheres do Jaó trabalhavam na porção de terra ganha da mãe e
também na porção de terra do marido que, por sua vez, também havia ganhado
de sua mãe. Os moradores do Jaó fazem questão de frisar esta última afirmação,
enfatizando a linha feminina de transmissão da terra.
As práticas agrícolas do Jaó compreendiam o cultivo de milho, arroz, feijão,
leguminosas em geral, hortaliças, ou seja, toda a sorte de produtos voltados ao
consumo interno.
“Plantava feijão, milho, arroz. Isso de cultura. E nos quintal nós plantava mandioca, batata-doce, cana-de-açúcar... alho eu cansei de plantar. Eu plantava cebola, alho...” (D. Caliza)
De acordo com as divisões das terras de plantação, cada família produzia
em sua porção de terra, invariavelmente seguindo os padrões de produtos
descritos nas falas dos moradores.
“Quando eu era mais menor, que meu pai sempre plantou, toda vida nós tivemos um pedacinho de terra nossa, então, unicamente ele
29 O ‘xeque-xeque’ a que D. Caliza se refere é um arado manual.
plantava feijão e milho, outras coisa ele não plantava porque a condição não dava. Plantava um pouquinho de feijão, um pouquinho de milho e assim ia tocando. Não tinha como cultivar mais terra por falta de dinheiro, não tinha semente, então daquele mesmo que colhia agora, guardava daquele mesmo para outra planta, plantava aquele mesmo, tirava daquele e assim ia indo”. (D. Malvina)
Não obstante houvesse essa divisão das terras por famílias e cada um
cuidasse da sua lavoura, os moradores do Jaó empreendiam redes de
solidariedade vicinal entre si. Segundo Antônio Cândido, são as relações calcadas
na ajuda mútua e no trabalho coletivo, características deste tipo de solidariedade,
que definem os limites do bairro rural: “Ë membro do bairro quem convoca e é
convocado para tais atividades [mutirão, troca de dias de trabalho]. A obrigação
bilateral é aí elemento integrante da sociabilidade do grupo, que desta forma
adquire consciência de unidade e funcionamento” (1987:67).
No Jaó, encontramos a prática das trocas de dia de trabalho, que
consistiam no fato de que quando algum dos responsáveis pela produção via-se
impossibilitado de trabalhar, o vizinho de lavoura o socorria e poderia folgar
quando o primeiro já estive reabilitado ou disponível, ou valer-se do mesmo auxílio
quando fosse sua vez de estar impedido quanto ao trabalho. Também o mutirão -
no qual os moradores se reúnem para prestar auxílio, em forma de trabalho, a um
dos seus pares, com a garantia de que também será ajudado pela coletividade
quando necessitar – era constantemente efetivado no Jaó, principalmente por
ocasião de colheitas e construção de moradias.
Outra manifestação das relações de solidariedade empreendidas no Jaó
erma observadas pela troca ou mesmo doação de alimentos entre os moradores.
D. Caliza recorda-se, por exemplo, da atitude de Maximiano Estevan que, durante
muitos anos, proprietário das duas únicas vacas então existentes na comunidade,
fornecia leite a todas as famílias do Jaó.
Desta forma, compreendemos que a comunidade em questão manteve, ao
longo da sua história, práticas sociais tradicionais, coadunantes ao universo
camponês brasileiro descrito por diversos estudiosos das ciências sociais30,
acrescidas das peculiaridades que o seu sistema de parentesco lhe confere.
30 Além de Antonio Candido, (op.cit.), v. Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973).
5.3. O JAÓ HOJE: INFRA-ESTRUTURA E RELAÇÕES SÓCIO-POLÍTICAS31
Habitam o Jaó, atualmente, 51 famílias, totalizando aproximadamente 250
pessoas. Os moradores residem em casas de pau-a-pique e barro batido, mas
paulatinamente essas habitações têm sido substituídas por outras de alvenaria,
financiadas pelo Projeto Complementando a Renda, implementado pela Secretaria
Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social, em conjunto com a Prefeitura
Municipal de Itapeva.
O bairro do Jaó dispõe de luz elétrica e água encanada, acessível por
meio de uma bomba d’água, localizada próxima ao Centro Comunitário, construído
pela Fundação ITESP em 1999, com recursos advindos da Fundação Cultural
Palmares. Também nas imediações funciona a Escola Municipal do Jaó, que
oferece ensino de 1ª à 4ª séries. Duas professoras dão aulas para 84 crianças da
comunidade. Os que completam o estudo disponível no local e desejam
prosseguir, deslocam-se até Itapeva por meio de transporte fornecido pela
prefeitura32.
Como foi dito anteriormente, os homens do Jaó sempre se empregaram
em atividades assalariadas nas propriedades vizinhas à comunidade. Nas últimas
duas décadas, devido ao aumento da população do Jaó e a conseqüente
diminuição proporcional das áreas de plantio, bem como a impossibilidade de
adquirir insumos para o cultivo, também as mulheres deixaram de trabalhar
prioritariamente dentro das terras do Jaó e passaram a buscar ocupação
assalariada no entorno.
Hoje, os homens encontram-se empregado em serviços gerais nas
fazendas e uma grande parte deles trabalha na inóspita atividade de carvoeiro. As
mulheres conseguem empregos esporádicos, em geral em épocas de colheita. Em
31 O croqui de uso e ocupação atuais da terra, referente à comunidade do Jaó, encontra-se anexado ao fim deste tópico.32 A Prefeitura Municipal de Itapeva está construindo uma nova escola no Jaó, mas não há previsões a respeito da possibilidade de ser incorporado o ensino de 5ª a 8ª séries na comunidade.
Moradias características do Jaó
(Fotos: Arquivo ITESP)
tais momentos, a necessidade de um pouco de dinheiro é tanta que as mães
retiram seus filhos da escola, interrompendo o período letivo, para que eles
também se empreguem na colheita e ajudem a amealhar uma renda um pouco
mais significativa para a família. Também para os homens vêm cessando os
postos fixos de trabalho, obrigando-os a encaixarem-se em atividades de
empreitada, também bastante escassas e, quando existentes, de curta duração,
por conta da crescente modernização das maquinarias agrícolas.
Em 1997, foram construídos três tanques de piscicultura no Jaó, por
iniciativa da deputada federal Terê da Paulina. Até agora, não houve
comercialização dos peixes, sendo a pequena produção consumida internamente
e, segundo alguns moradores, de maneira desordenada, incluindo a pesca com
tarrafa. Houve ainda registros de roubo de peixes efetuado por pessoas estranhas
à comunidade, o que levou o grupo a desistir de continuar com esta atividade, já
que necessitariam de mecanismos de proteção que não podem custear sozinhos.
A prefeitura municipal vem tentando implementar projetos de
desenvolvimento na comunidade, por meio de atividades agrícolas e pecuárias.
Enviou, por exemplo, no final de 1997, 27 matrizes de gado leiteiro, que ocupam
hoje a antiga área de plantio da comunidade, cercada e transformada em pasto, o
que desgosta imensamente os moradores mais velhos.
Também em 1997, tem início o trabalho da Fundação ITESP junto à
comunidade. Mediante verba da Fundação Cultural Palmares, são enviadas
sementes de milho e feijão, além de adubo, para estimular as atividades agrícolas
no Jaó.
Atualmente, a Fundação ITESP e a Prefeitura Municipal têm atuado
juntos, no sentido de desenvolver novos projetos de agricultura de subsistência e
também de geração de renda. A comunidade manifesta o desejo de uma fábrica
de blocos que possibilite emprego da mão-de-obra ociosa na comunidade, projeto
este cuja viabilidade econômica ainda não foi avaliada. Há também a perspectiva
do plantio de banana, em projeto assessorado pelos técnicos da prefeitura e da
Fundação ITESP, mediante o qual toda a comunidade trabalharia em conjunto.
Casa do Sr. José de Campos, em que se vê a cerca que delimita cada terreno de moradia
Crianças da comunidade enfileiram-se para entrar na escola
(Fotos: Arquivo ITESP)
Um dos principais problemas enfrentados pelos técnicos das instituições
citadas é a divisão interna existente há cerca de nove anos na comunidade. Após
1991, com a criação da Associação dos Moradores do Jaó, foram levadas a cabo
algumas tentativas de trabalho cooperado, que acabaram frustradas por
problemas diversos, desde intempéries climáticas até as formas de organização e
divisão coletiva do trabalho. Os moradores dividiram-se em dois grupos: um deles,
liderado pelo Sr. Hilário Martins, mantém a crença de que o trabalho coletivo é o
único meio pelo qual o Jaó poderia se desenvolver materialmente; já o grupo
capitaneado por Antônio Benedito, sobrinho do Sr. Hilário e atual presidente da
Associação, advoga que o trabalho deveria ser familiar, quando muito efetuado
por pequenos grupos de afinidade.
Entretanto, não só a divisão da comunidade é deletéria para que sejam
implantados projetos de desenvolvimento no Jaó. Também a ausência de
entendimento das significações simbólicas e das práticas materiais tradicionais da
comunidade, por parte de alguns agentes mediadores responsáveis pelos
projetos, prejudica sobremaneira a participação e aceitação de inovações que
poderiam vir a beneficiar o Jaó. É o caso, por exemplo, da atitude da Prefeitura
Municipal de passar o trator sobre a antiga área de plantio dos moradores,
destruindo a maior parte das divisas naturais - as árvores - que indicavam quais
eram as áreas de cada família.
Outro aspecto importante na compreensão das relações que o Jaó
mantém com o entorno é a religião. Em meados dos anos oitenta, começam a
instalar-se na comunidade igrejas de orientação evangélico-pentecostal, tais como
Luz Divina, Deus é Amor e Congregação Cristã do Brasil. Estas igrejas
caracterizam-se por um comportamento ascético bastante pronunciado e também
pela crença em uma ação divina efetivada no presente. Os chamados ‘crentes’
costumam transportar todos os acontecimentos de sua vida para uma esfera de
significação pautada pelos mandamentos de suas igrejas. Desta forma, há no Jaó,
ainda que em número reduzido, pessoas que não aceitam participar de projetos
institucionais porque eles não seriam “conduzidos por Deus”.
Também por conta das opções religiosas da comunidade – quase a
totalidade dos moradores é hoje ‘crente’ - há uma grande dificuldade em remontar
alguns aspectos da história pregressa do Jaó, principalmente no que diz respeito
às festividades e atividades lúdicas em geral. De uma certa forma, parece ter
havido uma ruptura com o passado marcado pelo catolicismo, pelos festejos
juninos, pelas procissões, eventos estes sobre os quais paira uma interdição
coletiva que os impede de serem rememorados. Esta atitude é reforçada
sobretudo no tocante às possíveis lembranças sobre legados culturais mais
antigos como, por exemplo, a dança chamada caruxé, uma espécie de capoeira
jogada por casais que seria originária da África, da qual apenas o Sr. Hilário
Martins, que não é adepto de nenhuma das igrejas, tem lembrança. Os demais
moradores consultados disseram não ter conhecimento da dança relatada pelo Sr.
Hilário e, em geral, sempre se mostraram bastante agastados quando as
conversas enveredavam por este caminho.
Assim, observamos por meio dos elementos aqui elencados, que os dois
aspectos principais que caracterizam o Jaó, hoje, são 1) a extrema precariedade
material na qual vive comunidade e 2) a rígida cosmologia religiosa predominante,
aliada aos valores tradicionais de divisão da terra e do trabalho aos quais os
moradores são apegados. Entendemos ser fundamental que os agentes
mediadores, sejam eles de qualquer instituição, atenham-se às peculiaridades e
idiossincrasias que conformam o universo social do Jaó, a fim de não desrespeitar
o modo de vida da comunidade e formular projetos que, passíveis de acomodação
e significação dentro da lógica do grupo, possam ser aceitos e contem com a
participação efetiva dos moradores da comunidade.
5.4. OS LIMITES TERRITORIAIS DO JAÓ
Como visto no Capítulo 4, a documentação que legitima a propriedade do
Jaó em nome dos herdeiros de Joaquim Carneiro de Camargo e Josepha de
Paula Lima – transcrição de escritura e o inventário do casal - registra a área de
90,63 hectares (37,45 alqueires) para as terras da comunidade. Medições
efetuadas pela prefeitura de Itapeva, em data ignorada, apresentam uma área de
165,77 hectares (68,5 alqueires). O trabalho realizado por técnicos da Fundação
ITESP, em janeiro de 2000, ratifica tais medidas, precisando-as numa área de
165,5679 ha (68,4165 alq.).
Segundo os membros da comunidade, não houve, ao longo do tempo,
nenhuma alteração significativa nos limites do território por eles ocupado. Relatam
apenas que algumas áreas de divisa, que apesar de não lhes pertencerem eram
usadas livremente, foram cercadas com a mudança de proprietários, impedindo a
continuidade do uso das mesmas pelo grupo.
Há, porém, ao menos um registro de tentativa de grilagem das terras do
Jaó. Segundo relatam os moradores, em 1990 alguns funcionários da fazenda São
Marco, fronteiriça ao Jaó, tentaram persuadir-lhes a assinar documentos de venda
de porções de terra da comunidade. Alguns moradores chegaram a assinar, mas
o Sr. Hilário Martins, tentando reverter a situação, após recorrer a várias instâncias
do poder público sem sucesso, conseguiu ser recebido pelo governador do Estado
de São Paulo à época, Orestes Quércia, que auxiliou a comunidade a invalidar os
documentos já firmados.
Tal evento, ocorrido há tão pouco tempo, denota a fragilidade da
comunidade no que diz respeito à preservação de sua propriedade e reitera a
necessidade do reconhecimento das terras do Jaó como território
quilombola, para que no futuro, caso a comunidade seja novamente
submetida à ameaça de perda de suas terras, possa se defender com maior
facilidade.
Assim sendo, é mister que sejam tomadas providências também para
retificar a área constante na escritura de propriedade das terras do Jaó,
concedendo à comunidade a legitimação da medida correta de seu território.
6. CONCLUSÃO
De acordo com o objetivo deste trabalho, elaboramos um estudo técnico-
científico sobre a comunidade do Jaó, levantando as suas origens históricas, as
configurações sociais sobre as quais ela está organizada e as condições de vida
que a caracterizam atualmente. Apresentamos, a seguir, as considerações finais
pertinentes:
- Considerando que o trabalho de pesquisa antropológica não deixa
dúvidas sobre a origem quilombola da comunidade do Jaó, formada por
descendentes de ex-escravos de uma antiga fazenda da região que, tendo
recebido terras como doação de seu senhor, tornaram-se camponeses num
contexto de acentuada subordinação à sociedade envolvente;
- Considerando que o mesmo procedimento antropológico também
comprovou a profunda ligação prático-simbólica da comunidade com o território
que ocupa e apontou a importância de sua manutenção para a implementação de
formas de produção que promovam melhorias na qualidade de vida da
comunidade, tal como enunciado pelo GT: “Isto quer dizer que o território, em todo
seu perímetro, necessário à reprodução física e cultural de cada grupo
étnico/tradicional só poder ser dimensionado à luz da interpretação antropológica
e em face da capacidade suporte do meio ambiente circundante tendo em vista a
necessidade de garantir a melhoria de qualidade de vida de seus habitantes,
através da implementação de projetos econômicos adequados, conservando-se os
recursos naturais para as gerações vindouras” (GT33, p.24);
- Considerando que a Comunidade do Jaó carece de instrumentos
institucionais, tal como o artigo nº 68 do ADCT para auxiliá-la a proteger o seu
território;
33 No decorrer desta conclusão, as citações identificadas como GT referem-se ao Relatório do Grupo de Trabalho, anteriormente referido na nota de rodapé número 1.
- Considerando a “vontade política e visão social do governo paulista de
atender e interpretar o mandamento constitucional, não só como obrigação estatal
imposta pela lei, mas principalmente como um ideal da democracia, de proteção
aos direitos humanos e respeito às minorias, a ser perseguido permanentemente
(...)” (GT, p. 5);
- Considerando que o GT reconheceu a necessidade de tratar de forma
diferenciada a identificação dos territórios de comunidades quilombolas, visto que
“o cadastro rural previsto pelo INCRA ou mesmo o cadastro de terras do
patrimônio imobiliário estadual usado para a ‘legitimação de posse’ e para
embasar as ações discriminatórias são incapazes de detectar apropriações
comunais extensas que compõem territórios tradicionais” (GT, p.17);
- Considerando que uma das diretrizes do Grupo de Trabalho dispõe
sobre a “necessidade de rever procedimentos técnicos e jurídicos dos órgãos
afeitos à questão do ordenamento fundiário, agrário, territorial e ambiental para
reconhecer e incorporar as diferenças étnicas e culturais proporcionando o
reconhecimento e a proteção, pelo Estado, dos segmentos portadores dessas
referências e de seus direitos” (p.18);
Concluímos:
- que os membros da Comunidade do Jaó são remanescentes de
comunidade de quilombo, de acordo com as definições que embasam os
critérios oficiais de reconhecimento adotados pelo Estado de São Paulo e
discutidas no capítulo 2 deste relatório, e devem, portanto, gozar dos
direitos que tal identificação lhes assegura.
MARIA CECÍLIA MANZOLI TURATTI Antropóloga
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ANEXO - Depoimento de Sr. Hilário Martins sobre a origem
do Jaó.
“Este Honorato Carneiro de Camargo era um fazendeiro que estava aqui no nosso lado: a Fazenda São Marco era a antiga Fazenda Lagoinha. O Honorato era fazendeiro velho ali no lugar, solteiro com 70 e poucos anos. Ele adotou um negro muito dedicado, sobreviveu com ele como companheiro, amigo, moravam junto, né, e quando veio os negros que foram comprados na África, eles trabalhavam assim na Fazenda Pilão d’Água.
Já estava logo para a princesa Isabel fazer a libertação dos negros. O Honorato começou a ir lá [na Pilão d’Água] e levava esse negrinho lá junto com ele, para conversar com os escravos. O Honorato Carneiro não tinha outros disfarce [diversão] na fazenda e ia lá conversar com o negros. Chegava lá os negros davam graça também não tinham assim um dialeto assim, como se diz, português, não falavam português, não entendiam e só através daquele negrinho é que eles podiam ficar sabendo alguma coisa interessante e o Honorato Carneiro também ficava sabendo da África, de onde veio, como é e como não é, o que eles estavam sentindo aqui no Brasil, trabalhando daquela maneira que eles trabalhavam.
Até que chegou um belo dia, aconteceu o quê? Veio a libertação dos escravos. Já tinham morrido muitos porque aqui eles não entendiam, gritavam com eles e eles não entendiam, eles jogava as pedras que carregava nas costas e saía correndo. Corriam e o senhor, que estava a cavalo, laçava eles e eles não agüentava a carreira do cavalo, caíam por terra e iam embora ‘de arrasto’. Muitos assim deixavam as tripas, se arrebentava tudo, arrastado pelos cantos, né? Morreram muitos e sobraram alguns, então ficou quatro negros desses que sobrou; depois que teve a libertação, sobrou quatro negros na coxilha, que tratava de coxilha lá no alto, lá no alto do campo, e o Honorato Carneiro, sabendo que tinha terminado a escravidão resolveu pegar aquele negro adotado e ir para lá.
Chegou lá, achou quatro negros no pé da árvore e então aquele negro que o Honorato acabou de criar, que morava com ele, perguntou para eles: - Pois é, e agora, foram libertos, o que vocês acham, gostaram? Não, eles acharam que para eles foi pior, que na escravidão eles sofriam, ficavam em ponto de morte, mas sabiam que tinham onde parar [morar], comiam e quando foram libertados não tinham pra onde ir, nem sabiam, nem entendiam ninguém, ninguém também levava interesse, o negro sempre foi o último, foi muito judiado, então não tinha valor, estava jogado como um cachorro. Não, cachorro tinha mais valor naquele tempo. Aí eles [os quatro negros] iam transmitindo para Honorato Carneiro aquele sentimento de que eles não tinham para onde ir, que eles estavam esperando a morte. E também como que eles iam voltar para a África, que não tinha maneira, não tinha recursos, nem sabiam para que lado que ficava e ficaram sem saída, então, esperando a morte chegar. Quando o fazendeiro foi até a fazenda, não conseguiu dormir de dó deles, saber que os homens tinham que morrer na coxilha do campo, sem comer, sem beber... pegou o negrinho e voltou lá, conversou com eles, perguntou se eles queriam vir para a fazenda e então trouxe eles para a Fazenda da Lagoinha, que é vizinha nossa aqui.
Chegou ali , ficaram um bom tempo com ele e o velho, que já viu que eles não tinham mais futuro pela idade que estava se passando, ele pegou e legitimou eles, como
o meu avô, que pegou o nome de Joaquim Carneiro de Camargo. E foi bom, porque depois que ele adotou os negros, ele repartiu as terras, um pedaço de terras para cada negro daqueles quatro negros. Para aquele que morava com ele, ele deu o resto da Fazenda.
Então, são quatro os negros que foram adotados. Só que na maneira que eles estavam adotados, em cima da terra, às vez iam pra outro lugar, né, de modo que aqueles fazendeiros foram entrando na terra deles, foram pegando deles, negociando com outros fazendeiros, e eles perderam a terra. Nós, como não saímos daqui, ficamos com as terras”.