relatório sobre integração regional na américa do sul (2006)

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  • 8/7/2019 Relatrio sobre integrao regional na Amrica do Sul (2006)

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    Relatrio sobre IntegraoRegional na Amrica do Sul

    Histria e Perspectivas

    Projeto Dilogo entre Povos

    Abril de 2006

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    NDICE1-Introduo 3A Integrao no Continente 3Um Panorama da Onda de Esquerda na Amrica do Sul 5Sntese deste relatrio 6

    2-Mercosul: histria e instituies 7Histria 7A Participao Social no Mercosul 9Conflitos nas relaes bilaterais 10

    3-Relaes Mercosul-Comunidade Andina 12ALCSA 12Infraestrutura: a IIRSA 13Comrcio: acordos internacionais e perfil das trocas 16

    4-Mercosul para alm da Amrica do Sul 18

    Alca e Unio Europia 18O Grupo dos 20 na OMC 18China e Liga rabe 19

    5-Recursos Naturais 22Soja 22Petrleo e Gs 23gua 25

    6.Segurana Humana e Paz 26Coca 27Violncia urbana 29

    Misses de Paz da ONU: Haiti 30

    7- Algumas idias para entender Amrica Latina e Caribe 31

    8- Direitos Humanos e Cidadania 31

    Direitos e Democracia 31Movimentos sociais: ndios, sem-terra, piqueteros, feministas 33Migrantes 36

    9 -Economia e Finanas 3610- EUA, o o 13 pas da Amrica do Sul 4111- Alternativas: o caso Alba 43Anexo 1: Estatsticas Sociais da Amrica do Sul 44Anexo 2: Fontes de Informao na Internet 47Anexo 3: Mapa Bases dos EUA e Recursos Naturais 48

    Lista de Tabelas:Tabela 1 Marcos Institucionais do Mercosul 8;Tabela 2: rgos do Mercosul - 9Tabela 3: Indicadores dos Pases da Amrica do Sul - 13

    Tabela 4: Aprovao Democracia na Amrica do Sul - 32Tabela 5: Liberdade de Imprensa na Amrica do Sul - 32Tabela 6: Taxa de Inflao (mdias anuais), 1980-2003 -39

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    Tabela 7: Crescimento do PIB, 1990-2003 - 39Tabela 8: Taxa de Desemprego Urbano, 1990-2004 - 40Tabela 9 : Analfabetismo - 44Tabela 10: Porcentagem de Populao Urbana - 45Tabela 11: Expectativa de Vida ao Nascer (2000-2005) - 45Tabela 12: Desigualdade entre Gneros - 46

    Tabela 13: Indicadores de Bem Estar Social - 46

    1-Introduo

    A Integrao no Continente

    Nos ltimos 25 anos, os processos de integrao regional na Amrica do Sul avanaram bastante,como uma tentativa de lidar com o agravamento da situao econmica e social do continente apsa crise da dvida externa em 1982. Os objetivos deste trabalho so fazer um balano dessesprocessos, com nfase no Mercosul, e propor alternativas do ponto de vista das organizaes dasociedade civil.

    Por Amrica do Sul, entende-se o continente limitado ao norte pela Colmbia e ao sul pelaArgentina. O conceito diferente de Amrica Latina, definio mais ampla que inclui Caribe,Amrica Central e Mxico - regies cuja dependncia econmica com os EUA mais profunda, econsolidada em acordos de livre comrcio como o Nafta e o Cafta. Porm, algumas estatsticasapresentadas neste estudo fazem referncia Amrica Latina, principalmente os dados produzidospelo Sistema ONU, que trabalha com essa classificao geogrfica.

    antiga a idia de que existe unidade na Amrica do Sul, para alm das divises em fronteiras eEstados. Esse foi um dos princpios que norteou a luta pela independncia das colnias espanholas

    no continente, impulsionando a ao de Bolvar e San Martn. A idia da integrao era facilitadapela histria comum, fruto da colonizao, e da proximidade cultural e lingstica.

    Contudo, os pases formados recm-independentes logo se fragmentaram e travaram conflitosviolentos entre si, como a Guerra da Trplice Aliana (1864-1870, Argentina, Brasil e Uruguaicontra Paraguai) e a Guerra do Pacfico (1879-1884, Chile contra Peru e Bolvia). Tentativas deorganizar congressos pan-americanos no resultaram em avanos polticos e durante a maior partedo sculo XIX houve grande desconfiana entre as repblicas hispano-americanas e a monarquiaescravista do Brasil, que tambm se diferenciava por ter como idioma o portugus.

    Alm disso, a lgica econmica que havia prevalecido desde os tempos coloniais era a da

    integrao ao mercado internacional pela agroexportao para Europa e EUA. Os laos comerciaisentre as naes sul-americanas eram frgeis, bem como a baixa quantidade (ou mesmo ausncia) deem estradas, linhas de navegao e infraestrutura entre esses pases. Da poca da independncia atas guerras mundiais, a maior parte do comrcio da Amrica Latina era feito com as potnciaseuropias, em particular a Inglaterra e a Frana. Elas tambm eram as maiores investidoras nocontinente, controlando ferrovias, empresas de transporte, servios urbanos e o treinamento eaparelhamento das foras armadas.

    Com o tempo, os EUA se tornaram a potncia hegemnica nas Amricas, superando os europeus.Reealizaram intervenes militares no Mxico, em diversos pases do Caribe e da Amrica Centrale se colocaram como obstculo a qualquer processo de integrao regional que escapasse ao

    controle de Washington. A criao das primeiras associaes continentais de integrao, como aOrganizao dos Estados Americanos (1948) ocorreu no incio da Guerra Fria, quando os EstadosUnidos agruparam seus aliados em associaes regionais. Os estadounidenses substituram os

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    europeus na Amrica do Sul em todos campos: comrcio, investimentos, treinamento militar etc.

    Sem embargo, os laos com a Europa continuaram fortes, em particular na influncia cultural daFrana, nas parcerias econmicas e cientficas com Alemanha e Inglaterra, e no relacionamentocom as ex-metrpoles coloniais, Espanha e Portugal. A influncia europia persiste aps aredemocratizao, inclusive com os movimentos sociais e sindicatos estabelecendo parcerias mais

    intensas com suas contrapartes na Itlia, Frana ou Espanha do que com os EUA. Capitais europeus,principalmente espanhis, tambm estiveram muito presentes nos processos da privatizao sul-americanos nos anos 90.

    Aps a Segunda Guerra Mundial houve o crescimento do interesse pela integrao como umaferramenta para o desenvolvimento, estimulada pela experincia europia e pelo pensamento daComisso Econmica da ONU para Amrica Latina e Caribe (CEPAL), cujos estudos tiveramgrande influncia na formulao de polticas pblicas do modelo de industrializao porsubstituio de importaes. A CEPAL tambm foi decisiva no impulso s primeiras tentativas deintegrao entre os pases latino-americanos, como a Associao Latino-Americana de LivreComrcio (Alalc), criada em 1960, que tentou formar um mercado comum no continente.

    A Alalc fracassou em funo das dificuldades de conciliar a abertura comercial com as demandasprotecionistas do modelo de substituio de importaes, e tambm pelos conflitos polticoscrescentes nos anos 60 entre ditaduras militares (Brasil, Argentina) e democracias (Chile,Colmbia). Contudo, essa primeira tentativa de integrao deu frutos, como a formao do PactoAndino em 1969, que reuniu os pases dessa regio e serviu de base para a criao da ComunidadeAndina de Naes, trs dcadas depois.

    A retomada dos processos de integrao nos anos 90 simultnea a duas amplas transformaes: aredemocratizao da Amrica do Sul, com a queda das ditaduras militares, e o colapso do modelodo Estado desenvolvimentista, promotor da industrializao por substituio de importaes. Esseparadigma foi trocado pela implementao de reformas neoliberais nos moldes definidos peloConsenso de Washginton, que incluem abertura econmica, privatizaes, adeso a regras depropriedade intelectual, patentes, proteo de investimentos e nfase na atrao do capital externo.

    Portanto, a criao do Mercosul ocorre no formato do chamado regionalismo aberto, de insero economia globalizada. Regionalizao e globalizao aparecem como processos complementares naanlise de diplomatas brasileiros:

    A regionalizao uma globalizao em miniatura. Cada processo de integraoregional reproduz, num espao mais restrito, mas, com maior veemncia, as

    principais caractersticas da globalizao: multinacionalizao do processoprodutivo, diversificao e acelerao dos fluxos de capital, interpenetrao daseconomias, convergncia de valores e padres culturais.

    Um pas que se engaja em um processo de integrao torna-se mais apto a participardo processo de globalizao. Ganha experincia no trato econmico internacional,recebe estmulos para buscar maior competitividade, amplia o leque de mercadosconsumidores e fornecedores. Quem regionaliza, globaliza melhor.

    H contudo uma diferena importante entre regionalizao e globalizao: osprocessos de integrao regional esto sujeitos a um acompanhamento poltico de

    que o processo de globalizao ainda carece em grande medida.1

    1 Srgio Florncio e Ernesto Fraga, Mercosul Hoje, So Paulo: Ed. Alfa-mega, 1998, p. 95

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    A histria do Mercosul marcada pela tenso entre enxergar o bloco como parte de um modeloliberal de insero na economia internacional ou consider-lo como um passo rumo construo dealternativas que escapem s limitaes desse paradigma, como a dependncia com relao aospases desenvolvidos. Tal disputa central para a ao das organizaes da sociedade civil e atingiuo auge durante as crises financeiras de 1998-2002.

    Um Panorama da Onda de Esquerda na Amrica do Sul

    O incio do sculo XXI marcado por vitrias da esquerda na Amrica do Sul. Comeando com aVenezuela em 1998, quase todos os pases do continente elegeram governos progressistas, comoLus Incio Lula da Silva (Brasil, 2002), Nstor Kirchner (Argentina, 2003), Tabar Vazquez(Uruguai, 2004), Evo Morales (Bolvia, 2005) e Michelle Bachelet (Chile, 2006). Esses presidentestm origens polticas, trajetrias e prticas bastante diversas, mas possuem em comum discordnciacom os cnones neoliberais vigentes ( exceo do Chile), nfase na maior participao do Estadocomo instrumento de desenvolvimento e justia social, passado de lutas sociais contra as ditadurasmilitares do continente e defesa da cooperao sul-sul e do processo de integrao regional.

    A Venezuela iniciou o ciclo de esquerda no continente aps uma dcada de turbulncias polticasque incluiu duas tentativas de golpe militar e o impeachment de um presidente por corrupo. Aascenso de Chvez e as lutas sociais no pas so inseparveis das disputas pelo petrleo (ver seo5). A Venezuela onde as reformas sociais foram mais longe, e tambm o local em que os choquesentre direita e esquerda se tornaram mais violentos, com a tentativa de um golpe militar contraChvez, boicotes econmicos e grandes manifestaes contra e a favor do presidente.

    No Brasil, a eleio de Lula se deu como parte normal do processo democrtico. O Partido dosTrabalhadores (PT) j tinha quase 25 anos e havia administrado diversos estados e municpiosbrasileiros, alm de ter forte presena no Congresso. Mas os meses que antecederam a vitria deLula foram marcados por temores do mercado financeiro e elevao da cotao do dlar e do riscopas. Esses receios comearam a diminuir quando o candidato divulgou durante a campanha aCarta ao Povo Brasileiro, comprometendo-se a manter os acordos assumidos com o FMI.

    O governo Lula executou a poltica econmica ortodoxa herdada de seus predecessores e realizoualiana com os partidos tradicionais de direita. Porm, implantou mudanas alocando mais verbaspara polticas sociais de distribuio de renda, apoiando a agricultura familiar, a busca de seguranaalimentar, o combate ao racismo e o fortalecimento das relaes externas com outros pases emdesenvolvimento. Em 2005 o governo foi atingido por uma srie de denncias de corrupo quelevaram ao afastamento de ministros e de lderes do PT. Embora a popularidade do presidente tenha

    permanecido elevada, houve tenses entre o governo e muitos dos movimentos sociais que formamsua base de apoio, e que criticaram tanto a corrupo quando a conduo da economia.

    Na Argentina, Kirchner era o governador pouco conhecido da remota provncia de Santa Cruz aoser eleito presidente em 2003. Havia se oposto ao seu colega do Partido Justicialista, presidenteCarlos Menem, que implantou o neoliberalismo na Argentina e levou o pas a uma grande crise. Aoassumir o poder em meio a uma situao de descrena nos polticos e catstrofe econmica,Kirchner iniciou reformas significativas. Renegociou a dvida externa em termos vantajosos para opas, retomou o crescimento econmico e retomou os julgamentos dos crimes da ditadura militar.

    No Uruguai, Tabar Vzquez foi eleito em 2004 pela Frente Ampla, uma coligao de partidos de

    esquerda que rompeu com o domnio bipartidrio de Conservadores e Liberais, que vinha desde osculo XIX. As dificuldades na economia e os problemas no relacionamento com Argentina e Brasilo levaram a atitudes controversas, como retomar negociaes para um tratado de livre comrcio

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    processo de integrao. Segurana Humana e Paz aborda os conflitos no continente em torno docrime organizado e os problemas sociais que envolvem as plantaes de coca na regio andina. Emalgumas idias para entender Amrica Latina e Caribe, busca-se enfatizar a importncia da relaoda regio com o Caribe, principalmente Haiti e Cuba, a fim de se compreender melhordeterminados desdobramentos militares e diplomticos que afetam o processo de integrao.Direitos Humanos e Cidadania examina os avanos como a ascenso dos movimentos indgenas e

    os impasses, como a persistncia da violncia.

    A oitava seo, Economia e Finanas, traa um painel da macroeconomia sul-americana nosltimos anos, analisando a evoluo da inflao, crescimento do PIB e taxa de desemprego. Altima parte discute alternativas ao processo de integrao, como as propostas da Alba e da AlianaSocial Continental. Seguem-se a concluso e dois anexos contendo dados estatsticos e uma lista desites com informaes sobre o processo de integrao. Em, EUA, o 13 pas da Amrica do Sul,deixada para o final, antes de um estudo das alternativas, menciona-se, justamente, o papel dosEUA na Amrica do Sul e Caribe, demonstrando a sua grande insero em ambas as regies, o queteria at influenciado a formulao da Alba, como uma alternativa venezuela s propostasamericanas para a integrao regional.

    2- Mercosul: histria e instituies

    Histria

    O Mercosul foi criado em 1991, com a assinatura do Tratado de Assuno, mas seus antecedentesesto na dcada de 1980, numa srie de acordos de cooperao econmica e poltica entre Argentinae Brasil. Os dois pases tiveram conflitos srios durante as respectivas ditaduras militares,principalmente pelo uso dos rios internacionais do Cone Sul para a gerao de hidroeletricidade.Tambm houve rivalidade no desenvolvimento de programas nucleares, sem que nenhum dosEstados conseguisse obter armas atmicas.

    A ditadura argentina entrou em colapso em 1983, aps a derrota do pas para o Reino Unido naGuerra das Malvinas. A brasileira terminou pouco depois, em 1985, ao fim de um longo processode transio que comeara 10 anos antes. Os governos civis recm-empossados buscaram eliminar oentulho autoritrio e iniciaram uma aproximao diplomtica. As dificuldades econmicas ps-crise da dvida tambm foram um fator decisivo, na medida em que impulsionavam ambos os pasesa buscar mercados na Amrica do Sul para contrabalancear o relativo isolamento dos centrosfinanceiros dos EUA e da Europa, em funo das moratrias decretadas em 1982.

    Os entendimentos Argentina-Brasil englobaram acordos de preferncias comerciais e umimportante tratado de cooperao e transparncia na rea nuclear. Logo essa aproximaoaprofundou-se e comeou a discusso sobre a construo de um mercado comum, nos moldes doestabelecido na Europa. Na segunda metade dos anos 80, Uruguai e Paraguai juntaram-se snegociaes, completando os quadros fundadores do Mercado Comum do Sul (Mercosul).

    O Mercosul foi formado nos moldes do chamado regionalismo aberto, no qual a aberturacomercial o elemento essencial do processo de integrao. Os membros do bloco criaram entre siuma zona de livre comrcio e adotaram com relao aos produtos vindos de fora do acordo umatarifa externa comum (TEC), que pode chegar a 20%. Portanto, o bloco forma uma unio aduaneira,embora o objetivo seja alcanar uma integrao mais profunda, com livre circulao de pessoas,

    capitais e coordenao de polticas macroeconmicas. Eventualmente se discute a adoo de umamoeda nica, seguindo o exemplo da Europa.

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    Em seus primeiros anos (1991-1998) o Mercosul estimulou o crescimento de 400% do comrcioentre os pases-membros 2. O potencial atraiu a participao do Chile e da Bolvia, que se juntaramao bloco na categoria especial de membros-associados. Isto , recebem preferncias comerciaismas no tm os deveres e direitos polticos dos membros plenos, como a negociao conjunta deacordos internacionais como a Alca e a adeso TEC. Em 2006, todos os pases andinos(Colmbia, Equador, Peru, Venezuela) j haviam se tornado membros-associados do Mercosul. Isso

    tornou o bloco a referncia principal para se debater integrao na Amrica do Sul.

    A fase inicial de prosperidade foi interrompida pelos efeitos das crises financeiras internacionais(sia e Rssia) sobre a Amrica do Sul, que levou desvalorizao cambial no Brasil, gravssimasituao na Argentina e a dificuldades grandes em outros pases do continente. Nesse contextoturbulento, discordncias comerciais agravaram-se e o bloco estagnou. Chegou a ser discutida apossibilidade de que ele regredisse a uma zona de livre comrcio, reduzindo sua capacidade decoordenao poltica e focando meramente no aspecto econmico.

    Tambm houve avanos. Em 1998 assinou-se o Protocolo de Ushuaia, que reconheceu ademocracia como condio fundamental para a participao no bloco. Pases que sofressem golpes

    militares poderiam ser excludos do Mercosul ou submetidos a sanes econmicas. A clusulademocrtica foi implementada em funo das crises polticas no Paraguai, onde o general LinoOviedo ameaava as instituies com a possibilidade de um golpe. A presso dos outros membrosdo bloco foi importante para levar a uma soluo negociada entre os paraguaios.

    Outro sucesso foi a criao do Tribunal Permanente de Previso, para lidar com disputascomerciais. o primeiro rgo supranacional do bloco, cujas decises tm que ser aceitas pelospases membros, semelhana do que ocorre com as instituies jurdicas da Unio Europia.Tradicionalmente, o Brasil havia se oposto a esse tipo de arranjo, preferindo utilizar sua hegemoniapara impor seus objetivos atravs de rgos inter-governamentais.

    O quadro abaixo sintetiza os marcos institucionais do Mercosul, destacando o que cada um delestrouxe ao bloco. O texto do tratado e dos protocolos est disponvel no site da SecretariaAdministrativa do Mercosul.

    Tabela 1 Marcos Institucionais do Mercosul

    Acordo Data Decises

    Tratado de Assuno 1991 Criao do Mercosul, com suas regrascomerciais e instituies inter-governamentais.

    Protocolo de Ouro Preto 1994 Estabelece personalidade jurdica internacionalpara o Mercosul, que passa a poder negociaracordos como bloco.

    Protocolo de Ushuaia 1998 Criao da clusula democrtica

    Protocolo de Olivos 2002 Estabelecimento do Tribunal Permanente deReviso, dedicado a disputas comerciais,primeiro rgo supranacional do bloco.

    Fonte: Secretaria Administrativa do Mercosul (www.mercosur.int)

    2 Luiz Felipe Lampreia, Diplomacia Brasileira: palavras, contextos, razes, Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999,p. 299.

    http://www.mercosur.int/http://www.mercosur.int/
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    A estrutura institucional do Mercosul passou por modificaes ao longo dos anos, mas mantevecaractersticas essenciais, como o foco no Poder Executivo de cada pas-membro, no que osocilogo uruguaio Gerardo Caetano denomina hiperpresidencialismo. H pouco espao para aparticipao do Poder Legislativo, das unidades subnacionais (governos de estados, provncias oumunicpios) e menos ainda para a influncia das organizaes da sociedade civil.

    As decises mais importantes no Mercosul so tomadas por presidentes, ministros das relaesexteriores e ministros da economia, com assessoria de representantes de outros rgos dasadministraes do poder central.

    A tabela 2 resume os dados sobre os principais rgos do Mercosul:

    Tabela 2: rgos do Mercosul

    rgo Funes Membros

    Conselho do Mercado Comum Conduo poltica do bloco. Ministros das relaes exteriores

    e da economia.Grupo Mercado Comum Executar as decises do

    Conselho do Mercado ComumRepresentantes dos ministriosdas relaes exteriores,economia e bancos centrais.

    Comisso de Comrcio Assessorar o Grupo MercadoComum nos temas comerciais

    Representantes dos EstadosPartes

    Secretaria Administrativa Apoio operacional ao bloco arquivos, organizao deeventos, difuso de informaes

    Diretor indicado pelo GrupoMercado Comum, mais equipetcnica de apoio

    Comisso ParlamentarConjunta Harmonizar legislaes,implementar decises doConselho e do Grupo,eventualmente dar pareceres econsultorias a esses dois rgos

    Parlamentares dos Estados Partes

    Foro Consultivo Econmico eSocial

    Representar setores sociais eeconmicos do bloco

    Representantes da sociedadecivil, em especial sindicatos eassociaes empresariais

    Foro Consultivo de Municpios,Estados Federados, Provncias e

    Departamentos.

    Facilitar cooperao e dilogoentre governos subnacionais

    dos pases do Mercosul.

    Representantes de governossubnacionais no bloco

    Tribunal Permanente deReviso

    Julgar controvrsias comerciais Cinco rbitros indicados pelosEstados Partes

    Parlamento do Mercosul Entra em funcionamento emdezembro de 2006.

    Parlamentares indicados pelaComisso Parlamentar Conjunta.

    Fontes: Protocolo de Ouro Preto, Protocolo de Olivos e site www.encontromercosul.com.br

    A Participao Social no Mercosul

    Recentemente, houve mudanas na direo de mais democracia no bloco, como a criao do foroconsultivo das unidades subnacionais. Foi fundada a Casa do Cidado do Mercosul, que publica

    http://www.encontromercosul.com.br/http://www.encontromercosul.com.br/
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    cartilhas e documentos sobre direitos e legislao do bloco. O passo mais importante, no mdioprazo, o estabelecimento do Parlamento do Mercosul, que entra em funcionamento em dezembrode 2006. At 2014 ele ter poucos poderes e seus membros sero eleitos de forma indireta, pelosparlamentos nacionais. Contudo, a instituio pode ampliar sua influncia a partir das pressessociais.

    O governo da Argentina criou um conselho consultivo da sociedade civil dentro do Ministrio dasRelaes Exteriores. Em funcionamento desde 2003, seu foco a participao social no processo deintegrao sul-americano, e rene representantes de mais de mil organizaes da sociedade civil,bem como funcionrios dos governos centrais e provinciais.3

    As organizaes da sociedade civil dos pases do bloco questionam a pouca participao quepossuem nos processos decisrios relativos integrao regional, a comear pela falta detransparncia e pelo pouco acesso informao. Cerca de 60% dos documentos produzidos pelosrgos do Mercosul foram declarados de carter reservado, incluindo o projeto da cartilha doCidado bloco e uma consultoria sobre participao social no processo decisrio.

    O espao institucional reservado sociedade civil, o Foro Consultivo Econmico e Social, no tempoder decisrio, emitindo apenas recomendaes. Apesar disso, oferece possibilidades importantesde atuao, que vem sendo utilizadas principalmente por sindicatos e associaes empresariais nasnegociaes econmicas internacionais.

    O Conselho Industrial do Mercosul (CIM) foi fundado em 1993 pela Unio Industrial Argentina, aConfederao Nacional da Indstria, do Brasil, a Cmara de Indstrias do Uruguai e a UnioIndustrial do Paraguai. O CIM realiza ao menos quatro reunies por ano para debater os temasligados ao bloco e emitir recomendaes aos governos.

    O setor privado participa das negociaes da Alca atravs dos Foros Empresariais das Amricas,que antecedem as reunies ministeriais desse processo. Os Foros so o espao onde os empresriosdiscutem os temas de seu interesse e buscam posies comuns para pressionar os governos.

    Os sindicatos tambm adquiriram importante acmulo de experincia na integrao regional,sobretudo pela ao da Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul, que atua no FrumConsultivo Econmico e Social e no subgrupo de relaes trabalhistas, emprego e seguridade social(subordinado ao Grupo Mercado Comum).

    Desse modo, os sindicatos participam de discusses envolvendo uma grande quantidade de temas,como polticas de gerao de emprego, migraes, formao profissional, assistncia mdica,

    proteo contra acidentes de trabalho etc. A mobilizao sindical foi fundamental para a aprovaoda Declarao Scio-Trabalhista do Mercosul e mais ainda em sua implementao: Este talvez sejao principal desafo do sindicalismo do Mercosul no nvel institucional (...) Esta tarefa se realiza deforma tripartita em cada pas e depois no rgo regional onde finalmente se decide que tipo demedidas se adotam para o real cumprimento dos direitos trabalhistas. 4

    Conflitos nas relaes bilaterais

    Tema importante, e pouco comentado a marginalizao dos chamados scios menores do

    Mercosul, Paraguai e Uruguai, ambos dependentes economicamente de seus dois vizinhos maiores,3 O conselho est descrito em http://www.mrecic.gov.ar/ccsc/index.htm.4 Citado no site da Coordenadora, http://www.ccscs.org/html_particp_instituc/ccscs_partic_instituc.htm.

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    Argentina e Brasil.

    O caso paraguaio ganhou destaque em 2005, quando o pas assinou acordo militar com os EUA,pelos quais 400 soldados estadunidenses se instalaro numa base prxima regio da TrpliceFronteira entre Paraguai, Argentina e Brasil. O governo paraguaio concordou em isentar essa tropada jurisdio do Tribunal Penal Internacional, que poderia julgar crimes cometidos por eles.

    O acordo foi interpretado pelos analistas como parte de uma barganha comercial. O cenrio ps-11de setembro tornou a Trplice Fronteira estratgica para os EUA, que nela passaram a concentrarrecursos policiais e militares, na suspeita de que o crime organizado da regio financie gruposterroristas. As aes incluem presses para polticas de segurana mais intensas na rea. O Paraguaise valeu do interesse estadunidense para firmar acordos de cooperao militar e pressionar o Brasilem temas comerciais, como o preo da energia produzida na gigantesca usina binacional de Itaipu tambm pesou o exemplo da Bolvia, com sua nova Lei de Hidrocarbonetos.5

    O Uruguai no possui importncia semelhante para a segurana internacional, e tem demonstradoseu descontentamento atravs do anncio de negociaes para um acordo de livre comrcio com os

    EUA. Embora alguns tenham ficado surpresos, pela proposta vir do governo de esquerda de TabarVasquez, os uruguaios se sentem ressentidos de sua excluso de importantes negociaes dentro doMercosul. Um exemplo foi a assinatura, em 2006, do Mecanismo de Adaptao Competitiva(MAC), no qual o Brasil fez concesses Argentina, como adoo de cotas e salvaguardas.Uruguaios e paraguaios sequer foram ouvidos durante as discusses, que envolveram as duasmaiores economias do Mercosul.

    Argentina e Brasil tambm enfrentam dificuldades, alm das controvrsias comerciais. A polticaeconmica conservadora adotada por Lula o colocou em choque com Kirchner, em especial durantea complexa renegociao da dvida externa argentina. Apesar do processo ter culminado com umacordo vantajoso para o pas, Kirchner se decepcionou com a falta do apoio de Lula, que preferiu ocompromisso com FMI. Rivalidades regionais tambm vieram tona quando o Brasil decidiuinvestir na candidatura a membro permanente do Conselho de Segurana da ONU, para desgostodos argentinos, que ao longo da maior parte dos sculos XIX e XX disputaram a liderana docontinente com os brasileiros.

    No entanto, o Brasil tambm fez concesses Argentina, como no caso do MAC, adotado porpresso de Kirchner. O acordo estabeleceu o recurso a salvaguardas por setores em ambos os pasesque se sintam ameaados por importaes em massa do outro parceiro. A aplicao do MACprecisa ser aprovada por uma comisso de especialistas, convocados caso a caso, e tem duraolimitada at 2009. O acordo foi criticado pelas contradies com as normas da OMC e com o

    prprio Tratado de Assuno, que criou o Mercosul. Os liberais condenam a implementao demedidas restritas ao comrcio.

    Porm, os diplomatas brasileiros e argentinos justificam o MAC com base na noo de que arelao estratgica entre os dois pases importante demais para ficar a cargo das oscilaes domercado e precisa ser regulado pelo comrcio administrado. A preocupao com o processo dedesindustrializao na Argentina, que se iniciou com a poltica econmica neoliberal da ditaduramilitar de 1976-1983 e se agravou com as medidas semelhantes adotadas nos anos 90.

    Recentemente, a alta dos preos do petrleo deu a Venezuela maior capacidade para se tornar umaliderana regional na Amrica do Sul. Algumas medidas do governo Chvez, particularmente em

    parceria com Kirchner, configuram alternativa s abordagens do Brasil. Os dois presidentes5 Para uma anlise da situao, ver Monica Hirst, As relaes Brasil-Paraguai: baixos incentivos no latu e strictu

    sensu, revista Poltica Externa, v. 14, n.3, dez. 2005.

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    lanaram a idia da cooperao na rea da TV, criando o canal Telesur, dedicado a notcias daAmrica Latina. Chvez comprou cerca de US$1 bilho em ttulos da dvida externa argentina,ajudando o pas num momento decisivo de presso dos credores internacionais. A Venezuelatambm se tornou um importante investidor na Amrica do Sul, construindo refinarias eencomendando navios no Brasil e assinando acordos energticos e de cooperao tcnica com aBolvia.

    Em meio a tantos problemas no Mercosul, o governo brasileiro lanou em 2006 iniciativas paracontemplar os parceiros dos bloco, concedendo vantagens comerciais ao Uruguai (possibilidade dopas participar de licitaes pblicas para fornecer alimentos merenda escolar brasileira) edesenvolvendo programas de cooperao social em sade e educao com o Paraguai, velho pedidodaquele pas.6

    3-Relaes Mercosul-Comunidade Andina

    ALCSA

    O Mercosul no o nico processo de integrao na Amrica do Sul. A experincia da ComunidadeAndina de Naes (CAN) remonta ao Pacto Andino de 1969. Com modificaes a sada do Chilee a entrada da Venezuela ele serviu de base institucional para a formao da CAN, em 1996.

    Desse modo, a integrao regional na Amrica do Sul se deu atravs de dois processos sub-regionais principais. A articulao entre ambos fundamental para a formao de um bloco deamplitude continental. Coube ao Brasil buscar a iniciativa, s vezes de modo encarado comdesconfiana pelos pases vizinhos, que enxergam nas propostas a tentativa brasileira de assumir ahegemonia na regio.

    Em 1994 o Brasil lanou a idia de formar a rea de Livre Comrcio Sul-Americana (Alcsa). Aproposta foi feita no mesmo ano em que os EUA defenderam a criao da rea de Livre Comrciodas Amricas (Alca) e no passou desapercebido aos analistas internacionais o propsito brasileirode afirmar sua prpria zona de influncia. Para se ter uma noo da importncia econmica daAmrica do Sul, e do peso do Brasil na regio, preciso analisar os dados:

    Tabela 3: Indicadores dos Pases da Amrica do Sul

    Pas Populao rea PIB (em US$bilhes)

    ndice deDesenvolvimento

    Humano

    Argentina 39.537.943 2.766.890 km2 182 0,863

    Bolvia 8.857.870 1.098.580 km2 10 0,687

    Brasil 186.112.794 8.511.965 km2 605,6 0,792

    Chile 15.980.912 756.950 km2 97 0,852

    Colmbia 42.954.279 1.138.910 km2 100,9 0,785

    Equador 13.363.593 283.560 km2 31,4 0,759

    Guiana 765.283 214.970 km2 0,82 0,72

    Guiana Francesa ** 195.506 91.000 km2 N/D N/D

    Paraguai 6.347.884 406.750 km2 7,6 0,755

    6 Brasil cede mais para tentar salvar o Mercosul, O Globo, 16/03/2006.

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    Pas Populao rea PIB (em US$bilhes)

    ndice deDesenvolvimento

    Humano

    Peru 27.925.628 1.285.220 km2 73,3 0,762

    Suriname 438.144 163.270 km2 1,39 0,755

    Uruguai 3.415.920 176.220 km2 17 0,84Venezuela 25.375.281 912.050 km2 118,3 0,772

    Fonte: World Factbook 2006.

    ** OBS: a Guiana Francesa um departamento de ultramar da Frana e no forma um pasindependente. Em geral ela excluda das sries estatsticas sobre Amrica do Sul.

    Ou seja, o Brasil representa sozinho quase metade do PIB e da populao sul-americana, numdesequilbrio regional profundo. Contudo, em termos de desenvolvimento humano a primazia cabe

    Argentina, Chile e Uruguai, pases com longo histrico de polticas sociais e sociedades que atrecentemente eram pouco desiguais o quadro se alterou com as reformas neoliberais e as crisesdos anos 80/90.

    Infraestrutura: a IIRSA

    Embora a Alcsa no tenha prosperado, foram pensados outros projetos. Na I Reunio de Presidentesda Amrica do Sul, em 2000, foi lanada a Iniciativa para a Integrao da Infraestrutura RegionalSul-Americana (IIRSA), um conjunto de grandes obras de infraestrutura para o continente, emsetores como energia e transportes. O ento presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso jtinha planos nesse sentido desde 1997, a partir de conversas com os dirigentes do BancoInteramericano de Desenvolvimento:

    ... o Mercosul a plataforma a partir da qual j estamos trabalhando para aconstruo da zona de livre comrcio que abranger o conjunto das Amricas. Trata-se de um processo necessariamente gradual, que dever passar pela conformaode um espao integrado nas Amrica do Sul, a caminho da integrao hemisfrica,sem excluso de qualquer outra regio... Chamo a ateno dos presentes para asoportunidades extraordinrias de negcios que a integrao est gerando em termosde infraestrutura necessria para fazer a interligao fsica entre os pases daAmrica do Sul. Um bom exemplo o gasoduto de 3.500 km ligando o Brasil e a

    Bolvia, que comear a ser construdo brevemente e que representa uminvestimento da ordem de quatro bilhes de dlares.7

    A IIRSA teve incio lento, mas ganhou impulso a partir de 2003, em particular pelo interessedemonstrado pelos governos Lula (Brasil) e Chvez (Venezuela) em financiar estradas, usinas egasodutos. Emblemticos dessa nova fase so megaprojetos como a construo de hidreltricas noRio Madeira, na fronteira do Brasil com a Bolvia, e do chamado Gasoduto do Sul ou GasodutoBolivariano que iria de Puerto Ordaz (Venezuela) a Buenos Aires, num custo estimado de US$25bilhes.

    Essas iniciativas foram recebidas com entusiasmo por empreiteiras e grandes empresas, que as

    7 Fernando Henrique Cardoso, citado em Lus Cludio V. G. Santos, A Amrica do Sul no Discurso DiplomticoBrasileiro . Tese apresentada ao Curso de Altos Estudos do Ministrio das Relaes Exteriores do Brasil, 2005,p.83.

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    encaram como rica fonte de lucro, sobretudo no setor do agronegcio. Boa parte das exportaes dosetor precisa atravessar a Amrica do Sul rumo ao Oceano Pacfico, de onde segue para osmercados consumidores na China e na ndia.

    As organizaes da sociedade civil e redes latino-americanas possuem uma viso diferente daintegrao, tendo protestado, ressaltando os impactos scio-ambientais da IIRSA, como devastao

    florestal e de recursos hdricos, deslocamento populacional, diminuio da biodiversidade eaumento da poluio. Tambm se preocupam com a ausncia de transparncia e controle social emobras que lidam com valores bilionrios e envolvem atores poltico-econmicos de influnciaconsidervel. As manifestaes ocorrem de forma especialmente contundente contra o Gasodutodo Sul. As entidades, entre as quais est a Rede Brasil sobre Instituies Multilaterais (da qual oIbase participa na coordenao) vm expressando seu descontentamento. Segue a carta:

    Organizaes da Sociedade Civil de diferentes pases mas principalmente do Brasil, venezuela eArgentina, entregaro uma carta dirigida as presidentes Nstor Kirchner (Argentina), Luz IncioLula da Silva (Brasil) e Hugo Chvez (Venezuela), chamando ateno destes governos para aexecuo do projeto gasfero chamado Gasoduto do Sul. A carta ser entregue aos presidentesque estaro reunidos em Assuno (Paraguai), no prximo dia 19 de abril para discutir aconstruo do gasoduto.A carta chama ateno para os impactos na Amaznia resultantes da construo domegagasoduto que partiria desde a desembocadura do rio Orinoco (Venezuela), atravessando ocorao da Amaznia no Brasil at chegar a Buenos Aires (Argentina) com o objetivo detransportar 150 milhes de metros cbicos de gs venezuelano por dia para a Argentina e Brasil e,possivelmente, Uruguai. A construo do gasoduto de oito mil quilmetros trar consequnciasambientais desastrosas, atravessar reas ecolgicas importantes, comprometendo o futuro dopas. O projeto orado em 20 bilhes de dlares percorrer 522,5 quilmetros de uma regioquase intocada da Amaznia, com biodiversidade desconhecida e onde vivem 22 populaesindgenas.O projeto Gasoduto do Sul no leva em considerao o grave impacto para a Amaznia,considerada o maior reservatrio de gua doce, de biodiversidade e habitat natural de muitos

    povos indgenas e tradicionais. Esta mal chamada integrao, no conduziria nem a unidade, nemo bem-estar dos povos do sul j que est fundamentada na explorao dos recursos .........A obra pode causar ainda problemas no regime dos rios que sero atravessados pelo gasoduto,impactos como barramento, poluio das guas e eroso. Este projeto acrescentar dvidaecolgica e social da regio.A simples apresentao deste faranico projeto -sem consultar a sociedade civil, parlamentares eoutros Ministrios como o Meio Ambiente -, que alm dos impactos scio-ambientais carece decoerncia econmica, financeira e estratgica, viola Convnios e Acordos de DireitosEconmicos, Sociais e Culturais (DESC) e outros tratados internacionais assinados por nossospases, e tem sido elaborado por meios oficiais sem contar com estudos prvios necessrios emtermos de factibilidade e impacto ambiental, scio-cultural e econmico.O atual modelo de hidrocarbonetos est destruindo nossa diversidade scio-ambiental e assim

    irresponsvel continuar tendo uma viso de desenvolvimento baseado nesse modelo. Assimsendo, necessrio fomentar o desenvolvimento de fontes renovveis de energia, com baseecolgica, que possam fornecer um combustvel seguro, duradouro e scio-ambientalmente,economicamente, e politicamente responsvel...

    Os interesses beneficiados pela IIRSA incluem os governos dos EUA, ndia e China, empresastransnacionais e rgos de fomento como o BID. Washington tem pressionado os governos sul-americanos a adotar o formado das Parcerias Pblico-Privadas para tocar adiante os mega-projetos.Por este instrumento, as empresas privadas realizam obras ou prestam servios ao governo, quegarante o retorno mnimo aos investimentos. As PPPs so criticadas como uma maneira do Estado

    arcar com eventuais prejuzos das firmas, que guardam os lucros para si.

    Mais do que as divergncias em torno de um projeto especfico, o que est em jogo no conflito entre

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    governos e organizaes da sociedade civil a disputa pelo modelo de desenvolvimento que devepautar a integrao regional.

    Em novembro de 2004, houve a III Reunio de Presidentes da Amrica do Sul em Cuzco, no Peru ena ocasio foi aceita a proposta brasileira de criar a Comunidade Sul-Americana de Naes(CASA), frum que agrupa Mercosul, CAN, Guiana e Suriname. O projeto ainda est no incio e foi

    recebido com algum ceticismo e desconfiana por pases como Argentina, que se preocupam com apossibilidade de que a CASA seja um instrumento para a consolidao da hegemonia do Brasilsobre o continente.

    Os pases do Mercosul e da CAN tambm participam conjuntamente de outras organizaesregionais, com a Organizao dos Estados Americanos (que rene todos os pases das Amricas,menos Cuba, e est sediada em Washington), o Grupo do Rio (frum de articulao dos paseslatino-americanos) e Organizao do Tratado de Cooperao Amaznica (OTCA). Esta ltima recente e pouco conhecida, mas apresenta possibilidades interessantes para as organizaes dasociedade civil.

    O Tratado de Cooperao Amaznica foi assinado em 1978, reunindo Bolvia, Brasil, Colmbia,Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. O objetivo era desenvolver aes conjuntas para omanejo da bacia amaznica, e o acordo se baseou em disposies semelhantes sobre outros riosinternacionais, como o Danbio. Inovou ao tratar da cooperao entre pases em desenvolvimentopor uma perspectiva diferente do habitual enfoque econmico. Seus temas eram meio ambiente esade pblica, vistos como questes que exigiam ao transnacional.

    Ambos os assuntos ganharam em importncia em anos recente e a presso dos grupos scio-ambientalistas se fez sentir. Em 2002 foi criada a OTCA, com sede em Braslia, com o propsito demelhorar a implementao dos objetivos do tratado. A organizao firmou diversos convnios comagncias da ONU e organismos internacionais e est se tornando uma parceira interessante paraorganizaes da sociedade civil que atuem na regio amaznica.

    Podem-se destacar, portanto, oito dimenses fundamentais da IIRSA:

    Primeira dimenso: Internamente Amrica do Sul, os projetos de integrao econmica propostosno mbito da IIRSA no alteram a dinmica do comrcio regional e apenas reforam o carterassimtrico, desequilibrado mesmo, em favor da maior economia regional, o Brasil. A lgica IIRSAtambm provoca o desligamento do nordeste brasileiro do restante do pas, ao no considerar, emseus eixos, os nove Estados nordestinos, onde vive um tero da populao nacional;

    Segunda dimenso:Refora o papel da Amrica do Sul de plataforma de exportao de bens combaixo valor agregado localmente;

    Terceira dimenso: Nessa dinmica, a IIRSA no considera uma enorme poro do continente aregio do nordeste brasileiro, onde vivem cerca de 60 milhes de pessoas;

    Quarta dimenso: Se por um lado Venezuela, em primeiro lugar, e Brasil, secundariamente,rejeitam a Alca (rea de Livre Comrcio das Amricas), com a IIRSA, que facilitaria o transportede mercadorias numa rea de livre comrcio, esses dois governos demonstram que permaneceminteressados em eventualmente aderirem Alca, se perceberem nessa proposta uma brecha paramaterializarem seus projetos individuais estratgicos.

    Quinta dimenso: Para reforar o carter livre cambista da IIRSA, bom retomar um segundoobjetivo desta Iniciativa, o da convergncia normativa, para alm da construo da infra-estrutura:

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    Para viabilizar os investimentos em infra-estrutura regional, necessria a vontade poltica dosgovernos para promover e facilitar o dilogo entre as autoridades reguladoras e de planejamentodos pases, com finalidade de alcanar a compatibilidade entre as regras que regem e orientam asatuaes da iniciativa privada na regio, diz o texto Ferramenta de trabalho para o desenho deuma viso estratgica da integrao fsica sul-americana, orientador das discusses entre osgovernos (financiadores, em ltima instncia, e o capital privado, operador sugerido para a IIRSA;

    Sexta dimenso: Como diz a ata de fundao da Comunidade Sul-Americana de Naes (CSN), emseu stimo e ltimo princpio orientador, os projetos da IIRSA devem ser desenvolvidosexclusivamente atravs de parcerias pblico-privadas, em que cada ente desempenharia o papel quedeles o mercado espera: o Estado financiando as obras e o capital privado, auferindo os lucros dessesistema de construo e operao de infra-estrutura.

    Stima dimenso: O Estado atravs de seus entes financeiros viabilizar a IRRSA atravs do Bid,coordenador tcnico e financeiro, da Corporao Andina de Fomento (CAF), Bndes, pelo Brasil, eo Fonplata, o Fundo Financeiros para o desenvolvimento da Bacia do Prata que atenderia aosprojetos no Cone Sul da Amrica do Sul, alcanando regies da Argentina, do Brasil e do Uruguai

    que contribuem para a formao da bacia hidrogrfica do Rio do Prata;

    Oitava dimenso: Alm desses planejamentos estratgicos, a IIRSA e seus projetos pararecemtentar se beneficiar de um excesso de liquidez que ora se verifica no mercado internacional definanciamentos de grandes projetos de infra-estrutura. Indcios apontam para uma sada importantede capitais antes investidos em aplicaes financeiras puras em direo ao suporte econmico paraesses projetos, o que estaria gerando uma disputa entre Bid, Bndes, CAF, Fonplata, Banco Mundiale banco Europeu de Investimentos pela primazia de financiar esses projetos, que estariam lastreadospor latas taxas de retorno para os finaciadores.

    Comrcio: acordos internacionais e perfil das trocas

    O relacionamento entre Mercosul e CAN tambm se fortaleceu em termos comerciais. Os pasesandinos se tornaram membros associados do Mercosul e em 2003 foi assinado um acordo de livrecomrcio entre os dois blocos, que ser implantado num prazo de 18 anos, at a queda de todas asbarreiras e tarifas.

    Simultaneamente ao acordo Mercosul-CAN, Chile e Colmbia assinaram tratados iguais com osEUA, e Equador e Peru negociam o mesmo. Ou seja, a integrao sul-americana vista como peasecundria num processo de liberalizao comercial mais amplo, em que o parceiro principal dospases andinos so os Estados Unidos, destino de mais de 50% de suas exportaes.

    O comrcio entre os pases sul-americanos de cerca de US$64 bilhes anuais, que correspondem a23,2% do valor exportado por essas naes. Os principais exportadores da regio so Brasil (34,9%do total), Argentina (12,5%), Venezuela (12,4%) e Chile (11,6%).

    O intercmbio sobretudo de bens industrializados, que respondem por 80% do valor total. Osprincipais produtos comercializados so mquinas industriais, equipamentos de transporte, produtosqumicos, roupas, automveis e autopeas.8

    O perfil contrasta com as vendas da Amrica do Sul para fora do continente, onde observa-se outropadro, baseado na concentrao nas exportaes de produtos primrios e manufaturas baseadas

    em recursos naturais que representam 2/3 das exportaes totais, como nos casos de Argentina,

    8 Dados: Organizao Mundial do Comrcio. International Trade Statistics 2005.

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    Chile e Colmbia.9

    Contudo, isso no se deve a estratgias das indstrias nacionais do Brasil ou da Argentina, e sim aoplano de ao das transnacionais, que utilizam ambos os pases como plataforma de exportao parao resto do continente ou para os EUA. Isso explica o interesse dessas empresas (e dos governos)pelas obras do IIRSA, que melhoraro o transporte da sua produo.

    Alfredo da Mota Menezes e Pio Penna Filho10, em recente publicao divulgam dados de umdocumento chamado principais indicadores de integrao e desenvolvimento da ComunidadeAndina que mostra o que aconteceu, em nmeros, naquela regio integrada, entre 1970 e 2001:

    O documento da Comunidade Andina diz que a populao da rea duplicou entre1970 e 2001; que o PIB aumentou quase dez vezes; que o comrcio fora da zonaintegrada cresceu nove vezes; que as exportaes dentro da integrao aumentaram,naquele perodo, mais de 50 vezes; que os investimentos externos cresceram 25vezes; que aumentou cinco vezes o turismo interno; que caiu a menos da metade e amortalidade infantil e que a esperana de vida subiu de 60 para 69 anos no perodo.

    Em nmeros diretos, a publicao mais explcita. O PIB regional, em 1970, era de28,571 bilhes, chegando em 2001, a 283 bilhes de dlares ou quase dez vezesmais. A renda per capita regional, nos mesmos anos, era de 515 dlares e subiu paracerca de 2.200 dlares. As exportaes para pases fora da integrao cresceramnove vezes, de 5.380 bilhes para 50.173 bilhes, em 1970, para 44.778 bilhes,2001. A dvida externa total da rea, que estava um pouco acima de oito bilhes dedlares, saltou para 116 bilhes ou 14 vezes mais. A dvida pblica, que antes era de3,7 bilhes , em 2001, foi para 78 bilhes, 21 vezes maior. A dvida externa privadaque era de 4,3 bilhes de dlares, chega a 37,9 bilhes 21 anos depois, nove vezesmaior. O turismo tambm cresceu, passou de 133 mil turistas para 623 mil, ou cincovezes mais. Os investimentos estrangeiros na rea passaram de 3,4 bilhes para 84,5bilhes, ou 74 vezes maior. Tambm os investimentos internos cresceram, passandode 15 milhes para 1,1 bilhes de dlares.O grande salto, na verdade, foi exportao dentro da Comunidade Andina: passou de111 milhes para 5.631 bilhes de dlares ou 94 vezes maior. , de fato, umimportante mercado para o comrcio regional. Em 2001, por exemplo, a Bolviadestinou 27% de suas exportaes para a Comunidade, sendo que, no ano anteriorhavia destinado 21%. Colmbia vendeu 22%, em 2000, acima dos 17% do anoanterior. Equador destinou 18% de toda sua exportao para a CAN, que no anoanterior fora de 14%. Peru aumentou de 7% para 8%, entre 2000 e 2001. AVenezuela manteve seus 5% nos dois anos citados. Os dados mostram que as vendas

    internas aumentaram substancialmente desde que a CAN foi reativada,principalmente depois que se chegou ao entendimento sobre tarifas alfandegrias

    Observa-se, assim, a obteno de ganhos relevantes com o processo de integrao que escapam auma dinmica apenas econmica e comercial,apesar das condicionantes estruturais que marcammacroeconomicamente a regio, como ser analisado posteriormente.

    4 - Mercosul para alm da Amrica do Sul

    9 Ricardo Sennes et alli, Padres de insero externa da economia brasileira e o papel da integrao sul-americana.

    Anlise de Conjuntura, Observatrio Poltico Sul-Americano, maro de 2006. Disponvel emhttp://observatorio.iuperj.br.

    10 Alfredo da Mota Menezes, Pio Penna Filho. Integrao regional: Blocos econmicos nas Relaes Intrenacionais.Rio de Janeiro: Elsevier, 2006, pp.75-76.

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    Alca e Unio Europia

    O Mercosul tem negociado diversos acordos comerciais extra-hemisfricos, com a Unio Aduaneirada frica Austral (SACU), Canad, ndia, Egito, Marrocos, Israel, Conselho de Cooperao doGolfo e a busca de um (difcil) entendimento com a Unio Europia. O bloco tambm negocia de

    maneira unificada a Alca.

    Recentemente, o Mxico aproximou-se do Mercosul, principalmente em funo das perdaseconmicas que os mexicanos sofrem diante da competio chinesa. A idia de que com o Nafta oMxico teria uma onda de prosperidade como plataforma de exportao para os EUA e Canad,baseada em mo-de-obra barata, no se concretizou. Os custos chineses so bem mais baixos evantajosos para as transnacionais, e agora os mexicanos buscam opes reforando seus laos como Mercosul e assinando acordos de livre comrcio com Chile, Venezuela e Colmbia. Especula-seque o pas poder solicitar adeso como membro-associado do bloco.

    O comrcio do Mercosul com os demais pases em desenvolvimento tem crescido a taxas rpidas,

    em particular com a China, mas as relaes econmicas com os EUA e a Unio Europia seencontram em impasse. As naes ricas pressionam o Mercosul por concesses em reas comoservios, compras governamentais, propriedade intelectual, o que traria prejuzos econmicos elimitaria a capacidade do Estado em promover polticas pblicas de desenvolvimento e sade restringindo por exemplo a fabricao de medicamentos genricos. O Mercosul, por sua vez, querque os ricos diminuam seus subsdios agrcolas. Os principais interessados, so Argentina e Brasil,grandes exportadores no setor:

    ... pode-se dizer que a Argentina o pas mais prejudicado do mundo pelas polticasformuladas para os agricultores dos Estados Unidos e da Europa... Foi estimado que aliberalizao total do comrcio agroalimentar, somente na Europa, pouco menos queduplicaria as exportaes argentinas de cereais e oleaginosas ao Velho Continente, emultiplicaria por quase cinco vezes as de carne.11

    O processo da Alca exemplar nesse sentido. A proposta original foi apresentada na Cpula deMiami, em 1994 e inclua, alm da liberalizao comercial, temas sociais e ligados cooperaopara educao, sade e financiamento de infraestrutura. Foram abandonados nas negociaes, quese limitaram abertura de mercados.

    Alm disso, o Congresso dos EUA concedeu uma autorizao bastante limitada presidncia para

    conduzir as negociaes, excluindo 500 produtos agrcolas e temas caros ao Mercosul, como regrasantidumping. Os diplomatas do bloco chamam a ateno para o risco de que a Alca procure reverterganhos conquistados no mbito da Organizao Mundial do Comrcio, como as vitrias contra ossubsdios ao algodo e ao acar.12

    As negociaes para um acordo entre Mercosul e Unio Europia comearam em 1995. A agendainclui cincia e tecnologia, meio ambiente e combate ao crime organizado, mas o pilar aliberalizao comercial recproca. No entanto, a maioria das exportaes do Mercosul para a Europa de produtos agrcolas e a resistncia europia a diminuir seu protecionismo nesse setor muitogrande, particularmente na Frana. Tambm h conflitos com relao ao medo da UE que eventuais

    11 Lucas Llach e Pablo Gerchunoff, Entre la Equidad y el Crecimento, la economia argentina 1880-2002. BuenosAires: Siglo XXI, 2004, p. 113.

    12 Adhemar Bahadian e Maurcio Lyrio, Alca: um depoimento da co-presidncia brasileira. Revista PolticaExterna. v.14 n. 3, dezembro de 2005.

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    concesses no acordo com o Mercosul resultem no enfraquecimento de sua posio negociadora naOMC.

    A maior parte das controvrsias diz respeito proposta europia de aumentar as cotas deimportao dos produtos agrcolas do Mercosul, em troca de adeso por parte dos sul-americanos deregras de investimentos, patentes, servios e propriedade intelectual que vo alm daquelas

    definidas nos acordos da OMC. As organizaes da sociedade civil criticam as propostas europiase chamam a ateno para o mau resultado dos acordos da UE com o Mxico e o Chile, que notrouxeram benefcios a esses pases.13

    O Grupo dos 20 na OMC

    O Mercosul tambm tem importante papel no G-20 da OMC, que rene importantes pases emdesenvolvimento para negociar em conjunto, sobretudo em temas agrcolas. Todos os membrosplenos do bloco participam do grupo, bem como os associados Chile e Bolvia. Atuao que reforaa proposta inicial da criao mercosulina, como um modo de tornar mais eficiente a inserointernacional dos pases sul-americanos.

    O Brasil busca aproximao mais estreita com outros membros-chave do G-20, sobretudo ndia efrica do Sul. Os trs pases criaram um Frum de Dilogo em 2003. O Frum IBAS tem sidoapontado como uma inovadora experincia de articulao tricontinental entre pases do sul:

    A proposta inicial do IBAS era criar uma aliana tnue que pudesse apresentar vozcoesa nas sesses de barganha previstas para a Rodada Doha [da OMC] e queexerceria presso sobre as naes ricas de modo a alcanar posies comunsnas deliberaes do Conselho de Segurana da ONU. O IBAS posteriormenteampliou sua presena num dilogo anual envolvendo os ministros de relaesexteriores da ndia, Brasil e frica do Sul para discutir temas ligados aodesenvolvimento e possibilidade de abordagens conjuntas em lidar com asoito Metas do Milnio, que os pases do IBAS apiam ativamente.14

    O papel do G-20 na OMC tem sido alvo de controvrsias por parte das organizaes da sociedadecivil. Inicialmente ele foi saudado como uma iniciativa que favoreceria os interesses dos pases emdesenvolvimento dentro do jogo de poder do comrcio internacional. As tenses comearamquando o G-20 se afirmou como um espao para a defesa das posies dos grandes exportadoresagrcolas que buscam acesso facilitado aos mercados consumidores dos pases ricos.

    Na conferncia ministerial da OMC em Hong Kong, em dezembro de 2005, o G-20 esteve ao lado

    dos EUA e conseguiu uma pequena reduo nos subsdios da Unio Europia para exportaesagrcolas. Contudo, esse movimento foi encarado como prejudicial ao mundo em desenvolvimento,que teve que fazer concesses significativas em tarifas de proteo industrial. Para Walden Bello,Brasil e ndia foram cooptados a fazer parte de uma nova elite na OMC:

    A razo para o colapso dos pases em desenvolvimento no foi tanto a falta deliderana, mas liderana que os trouxe para a direo errada. A chave para acatstrofe de Hong Kong foi o papel do Brasil e da ndia, lderes do famoso G-20... seu principal ganho no foi o impacto do acordo sobre suas economias, mas aafirmao de seu novo status como articuladores de poder [power brokers] dentroda OMC... Novos jogadores precisaram ser acomodados na elite. O crculo de poder

    13 Ver http://www.jubileubrasil.org.br/alca/campanhacontinental/campanhacontinental.htm.14 Kaia Lai,India-Brazil-South Africa: the Southern Trade Powerhouse Makes its Debut. Disponvel em

    http://www.coha.org/NEW_PRESS_RELEASES/New_Press_Releases_2006/06.18_IBSA.html.

    http://www.coha.org/NEW_PRESS_RELEASES/New_Press_Releases_2006/06.18_IBSA.htmlhttp://www.coha.org/NEW_PRESS_RELEASES/New_Press_Releases_2006/06.18_IBSA.html
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    teve que ser expandido para colocar a organizao novamente de p, e emmovimento.15

    China e Liga rabe

    Em termos econmicos, o parceiro mais forte do Mercosul no mundo em desenvolvimento a

    China. O pas entrou com vigor no mercado energtico e tambm se apresenta como um dosprincipais compradores de commodities agrcolas e minerais, como soja (Brasil), trigo (Argentina)e cobre (Chile). Os chineses tambm oferecem considerveis possibilidades de investimentos:

    Numa visita Argentina, ao Brasil e ao Chile em novembro de 2004, o presidente daChina Hu Jintao anunciou planos de investir US$100 bilhes na Amrica Latina aolongo de uma dcada. De incio, assinou um contrato de energia com o Brasil novalor de US$10 bilhes, para investimentos na infraestrutura de energia etransporte durante dois anos (a petrolfera chinesa Sinopec j tem um acordo deUS$1,3 bilhes com a Petrobras para construir um gasoduto de 2 mil quilmetros).Petrolferas chinesas tambm investiram em campos na Colmbia, Equador e

    Peru, e colocaram US$5 bilhes em projetos no litoral da Argentina.

    Alm de comprar ativos em energia, os chineses tambm investem em redes detransporte para ajudar a levar suas compras para casa. Empresas chinesas esto,por exemplo, reconstruindo as ferrovias da Argentina e reparando as estradas daVenezuela.

    A China tambm demonstrou interesse em construir e financiar vrios projetos paramodernizar o Canal do Panam. Uma empresa de Hong Kong j opera portos nosdois lados do istmo, levantando preocupaes entre alguns republicanos emWashington - e recentemente, Hilary Clinton - sobre a influncia efetiva daChina sobre a hidrovia.16

    Outra iniciativa importante a Cpula Amrica do Sul Pases rabes, realizada em Braslia em2005. A aproximao vai alm do comrcio, abarcando cooperao para o desenvolvimento e adefesa do multilateralismo e das resolues da ONU.

    No aspecto econmico, os pases rabes so grandes compradores da produo do agronegcio sul-americano. A Sadia, empresa brasileira que uma das maiores exportadoras de frango do mundo,vende cerca de metade da sua produo para as naes da Liga rabe. A Amrica do Sul tambm

    recebeu milhes de imigrantes da Sria e do Lbano ao longo da primeira metade do sculo XX.Essas pessoas e seus descendentes exerceram importantes funes na Argentina, no Brasil e naVenezuela, em particular na modernizao do comrcio, na medicina e na poltica no Brasil, cercade 10% dos parlamentares tm origem srio-libanesa, alm de vrios governadores estaduais eministros de Estado.

    Empresas sul-americanas de servios, como construo civil, so atuantes no mundo rabe.Venezuela e Brasil desenvolvem parcerias importantes no setor petrolfero, sendo que osvenezuelanos so membros da Organizao de Pases Exportadores de Petrleo (Opep), recurso

    15 Walden Bello, The Real Meaning of Hong Kong: Brazil and India Join the Big Boys Club, 22/12/2005.

    Disponvel em http://www.focusweb.org/index2.php?option=com_content&task=view&id=799&Itemid=36&pop=1&page=0

    16 Ben Schiller, "The axis of oil: China and Venezuela". Disponvel em www.opendemocracy.net/globalization-corporations/china_venezuela_3319.jsp

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    natural fundamental para sua economia.

    Embora a cooperao Amrica do Sul-Liga rabe seja positiva, h aspectos nesse processo quemerecem um exame mais detalhado. As posies de muitos pases rabes com relao democracia, direitos humanos, direitos reprodutivos e situao das mulheres problemtica e temdado origem a discordncias com as demandas mais progressistas da Amrica do Sul em fruns

    como as conferncias sociais da ONU.

    A Declarao de Braslia, documento final da cpula, faz afirmaes controversas relativas crisesinternacionais, inclusive ao genocdio no Sudo, onde milcias rabes massacram as populaesnegras do sul do pas, com apoio e financiamento do governo. Contudo, a postura apoiar asautoridade sudanesas:

    2.12. [os pases sul-americanos e rabes] Afirmam a integridade territorial do Sudoe a unidade o seu povo e exortam as partes interessadas a apoiar os esforos emfavor de uma paz abrangente e da reconstruo e do desenvolvimento desse pas;acolhem com satisfao as medidas adotadas pelo Governo do Sudo para

    facilitar a assistncia internacional crise humanitria em Darfour e manifestamseu grande interesse pelos esforos da Liga rabe e da Unio Africana nessesentido.17

    O caso exemplar para demonstrar que nos grandes entendimentos de cooperao entre os pasesem desenvolvimento predomina o enfoque econmico-comercial. Questes fundamentais como adefesa dos direitos humanos so vistas como incmodas, ou quando muito abordadas comodeclaraes retricas, sem efeitos prticos. Ser necessrio intenso acompanhamento dos debates epresso poltica por parte da sociedade civil para modificar esse quadro.

    O impulso da Amrica do Sul para fortalecer os laos econmicos e polticos com outras regies emdesenvolvimento ocorre num momento especial. Aps o 11 de setembro as prioridadesestadunidenses concentram-se no Oriente Mdio e na sia, o que d um pouco mais de margem demanobra aos pases sul-americanos. Por exemplo, o governo Chvez investiu cerca de US$2 bilhesno continente em 2005, mais do que a administrao Bush alocou para seus aliados na regio. 18

    Alguns analistas advertem o governo dos Estados Unidos de que preciso dar mais ateno Amrica do Sul.19

    Tal agenda possibilitou ao Brasil se posicionar como um importante intermedirio entre os EstadosUnidos e os pases sul-americanos, mediando crises como as da Venezuela e servindo como um

    fator de estabilidade, sobretudo por sua poltica econmica conservadora. Esse o contexto queexplica a amizade entre Bush e Lula, que surpreende a muitos.

    Contudo, o cenrio no significa que a Amrica do Sul esteja fora dos interesses do governo dosEUA. H uma agenda intensa que envolve comrcio, imigrao, narcotrfico e o controle derecursos naturais (petrleo, gs, biodiversidade) como ilustrado pela disposio das bases militaresestadunidenses no continente:

    [ entra mapa sobre militarizao e recursos naturais, elaborado por Ana Esther Cecea]

    17 Disponvel em http://www2.mre.gov.br/aspa/Decl/portugues.doc.18 Chvez, seeking foreign allies, spends billions. New York Times, 04/04/200619 Ver, por exemplo, Peter Hakim, Is Washington loosing Latin America?, Foreign Affairs, v.85, n.1,

    janeiro/fevereiro de 2006.

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    5- Recursos Naturais

    Soja

    Os recursos naturais tm papel fundamental nos processos de integrao regional em curso na

    Amrica do Sul. Terra, gua, petrleo e gs natural esto na base do comrcio da maioria dos pasesdo continente, bem como em sua matriz energtica e como diferencial para a atrao deinvestimentos externos. O uso e abuso dos recursos naturais esto no centro da disputa em torno deum novo modelo de desenvolvimento para a Amrica do Sul.

    Tais preocupaes vm do fato que o continente rene algumas das reservas naturais maisimportantes do mundo, riqussimas em biodiversidade e gua doce, como a Amaznia e o AqferoGuarani. Ao mesmo tempo, a expanso do agronegcio, sobretudo da soja, coloca em risco apreservao do meio ambiente e relana o conhecido debate sobre os custos do crescimentoeconmico.

    A demanda mundial por alimentos, impulsionada pelo crescimento acelerado da China e da ndia,levou ao boom do agronegcio na Amrica do Sul. O principal produto de exportao a soja,usada em leos, rao animal e alimentos.

    Na Amrica do Sul esto localizados dois dos maiores produtores mundiais de soja, Brasil eArgentina, sendo que o plantio se espalha rapidamente por Bolvia, Paraguai e Colmbia,substituindo culturas tradicionais, porm menos rentveis, como algodo e caf.

    Os emigrantes brasileiros tem se destacado como fazendeiros de soja em regies fronteirias ao pas, como os departamentos do Oriente, na Bolvia, e do Alto Paran e Canidey, no Paraguai. Osbrasileiros tm sido bem-sucedidos comercialmente e implementado modernizaes nas tcnicasagrcolas, mas entraram em conflitos com trabalhadores sem-terra paraguaios, virando alvoprincipal das ocupaes fundirias. Como os emigrantes brasileiros so 10% da populao do pas epossuem 40% das terras dos departamentos citados, fcil perceber a gravidade das disputas. 20

    H indicaes de que conflitos semelhantes possam ocorrer na Bolvia, onde os movimentos ruraistm pressionado o governo Morales para realizar uma reforma agrria a partir da distribuio dasterras dos fazendeiros brasileiros.

    Contudo, a atuao de pequenos e mdios fazendeiros no cultivo da soja minoritria. Trata-se deum complexo agroindustrial controlado por reduzido grupo de firmas transnacionais: Quatro

    empresas multinacionais decidem o preo de 84 por cento da soja colhida no Brasil e tornam osprodutores rurais seus dependentes desde a hora da compra da semente at depois da colheita.21

    Alm do impacto social e nas relaes trabalhistas, o fato de que a maior parte dessa produo desoja transgnica tambm preocupa, tanto pelas conseqncias desconhecidas das modificaesgenticas quanto pela dependncia que elas acarretam. Os agricultores que usam transgnicospassam a depender das empresas que as utilizam (em especial a Monsanto, que controla 90% domercado) para acesso s sementes.

    Os danos ao meio ambiente tm sido especialmente debatidos, visto que a monocultura da soja seexpande para regies de grande biodiversidade, como Amaznia, Xingu e Pantanal. O crescimento

    das plantaes costuma provocar deslocamento de populao e deixar atrs de si um rastro de20 Hirst, op. cit.21 Soja: um grande negcio. Srie de reportagens disponvel emhttp://www.radiobras.gov.br/especiais/soja/.

    http://www.radiobras.gov.br/especiais/soja/http://www.radiobras.gov.br/especiais/soja/http://www.radiobras.gov.br/especiais/soja/http://www.radiobras.gov.br/especiais/soja/
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    cidades mortas, para repetir a expresso que o escritor brasileiro Monteiro Lobato usou h 100anos para descrever o fenmeno semelhante provocado pela monocultura do caf. O trabalho doFrum Articulao Soja 22, que rene ONGs scio-ambientais, tem sido importante para chamar aateno para esses problemas.

    As cadeias produtivas da soja com freqncia ligam os plantadores sul-americanos s transnacionais

    do setor de alimentos, levantando questes sobre a responsabilidade social dessas empresas. Porexemplo, muito da rao animal base de soja chegando no Reino Unido vinda do Brasil produto de crime florestal e o McDonalds e os supermercados britnicos tem fechado os olhos destruio da floresta.23

    Os governos do continente tm dado apoio s iniciativas dos grupos empresariais do agronegcio,que em geral esto bem representados nos parlamentos nacionais e ainda oferecem a possibilidadede ganhos econmicos no curto prazo para equilibrar a balana de pagamentos, com conseqnciaspara o modelo de desenvolvimento adotado:

    ... a estratgia buscada para o ajuste do setor externo, objetivando elevar rapidamente

    os saldos comerciais em curto prazo, imps um desenho geral dedesenvolvimento que, mesmo de forma implcita, a conseqncia dessaopo pragmtica: uma enorme presso sobre os recursos naturais do solo e dosubsolo do pas, onde existe a possibilidade de ampliao rpida da participaodo pas no comrcio internacional a curto prazo, com gerao simultnea deexpressivo resultado positivo na balana comercial.24

    O padro persiste em outros tipos de cultivo, sobretudo o eucalipto. As grandes indstrias decelulose so responsveis pela disseminao do deserto verde, plantando reas gigantescas deeucalipto e pnus para servir de base sua produo. Embora a iniciativa seja apresentada comoecolgica e sustentvel, destri a biodiversidade. Tais prticas levam a conflitos com pequenosagricultores e povos indgenas.

    Um exemplo so os choques entre a Aracruz Celulose, uma das maiores empresas do setor, e oMovimento dos Sem Terra no Brasil, que tm ocupado terras da companhia e chamado a atenopara o problema scio-ambiental do deserto verde. Ironicamente, o Banco Nacional deDesenvolvimento Econmico e Social (BNDES), o mais importante rgo de fomento do governobrasileiro, acionista da Aracruz e tambm financia a expanso dos negcios da celulose no Brasil.Fatos que trazem tona o debate sobre o modelo de desenvolvimento promovido pelo Estado.25

    Petrleo e Gs

    Ao longo da dcada de 90, as questes relativas ao petrleo e ao gs natural tornaram-se centraispara a integrao sul-americana, devido descoberta de grandes reservas de gs na Bolvia e aoaumento dos preos do petrleo, que proporcionaram Venezuela a base econmica para suaspolticas sociais e seus projetos de cooperao internacional. O acesso a essas riquezas tambmresultou em grandes projetos de infraestrutura e em disputas polticas, que levaram inclusive agolpes de Estado e queda de presidentes.

    A Bolvia um dos pases mais pobres da Amrica do Sul e com a histria marcada pela espoliao

    22 http://www.cebrac.org.br/forumnovo/23 The 7,000 Km journey that links Amazon destruction to fast food. The Guardian, 06/04/2006.24 Adhemar Mineiro, Desenvolvimento subordinado ao modelo exportador. In: Rugidos e Sussurros Observatrio

    da Cidadania Relatrio 2005. Ibase, Rio de Janeiro, 2005, p.42.25 Ver Carlos Tautz, Um Mar de Eucaliptos. CD-ROM do Projeto MAPAS (Ibase, 2005).

    http://www.cebrac.org.br/forumnovo/http://www.cebrac.org.br/forumnovo/http://www.cebrac.org.br/forumnovo/
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    de recursos naturais (prata e estranho) por potncias estrangeiras ou grandes empresas, sem que essariqueza resultasse na melhoria de vida da populao. A instabilidade poltica tambm umaconstante no pas: foram mais de 200 golpes em cerca de 180 anos de vida independente. Almdisso, a sociedade boliviana marcada por alto grau de racismo e excluso com relao aos povosindgenas, que constituem a maioria da populao.

    Nos anos 90, a Petrobras descobriu enormes reservas de gs natural no pas, que totalizavam cercade 10 vezes o total conhecido at aquela data. A novidade estimulou expectativas de que o gs fossea chave para o desenvolvimento do pas, proporcionando empregos e recursos para o governo. Mascomo tantas vezes na histria boliviana, os recursos naturais do pas foram controlados por umpunhado de grandes empresas transnacionais: Petrobras, Repsol, BP e Enron. A estatal YPFB foiprivatizada e suas refinarias e gasodutos passaram para o controle dos estrangeiros.

    A indstria do gs de fato trouxe benefcios Bolvia, principalmente pelo aumento das receitas doEstado a Petrobras, a maior pagadora de impostos do pas, responsvel por 18% do PIBboliviano. No entanto, essa prosperidade no se traduziu em benefcios para a populao pobre. Aluta pelo gs se tornou o corao de uma srie de disputas no pas, lanando o questionamento sobre

    os objetivos dos processos de integrao. A quem beneficiam? O que est em jogo?

    Alm das rivalidades internas, o gs foi o estopim de disputas entre a Bolvia e o Chile, por conta deuma deciso do ex-presidente boliviano Sanchez de Lozada de exportar gs para os EUA, atravs deportos chilenos. Na Guerra do Pacfico (1879-1884), o Chile derrotou Peru e Bolvia pelo controledo salitre e do guano, existentes em grande quantidade no deserto do Atacama, zona fronteiriaentre as trs naes. Os chilenos tomaram territrios dos dois inimigos e em conseqncia deixarama Bolvia sem acesso ao mar, o que muito prejudica sua economia. A reivindicao martimacontinua a ser um tema controverso e que dificulta as relaes entre Chile e Bolvia. A deciso deSanchez de Lozada provocou tanta oposio popular que o presidente acabou renunciando.

    Evo Morales foi eleito presidente da Bolvia em 2005, aps trs anos de grande instabilidade econflitos. O primeiro indgena a assumir o poder no pas um lder sindical e campons, presidentede uma central de cocaleiros. Foi dos principais defensores da nova Lei de Hidrocarbonetos, queaumentou os impostos e royalties sobre o gs para 50%. Todas as empresas estrangeiras do setor,com exceo da Petrobras, entraram com processos judiciais contra o governo boliviano, mastambm negociam novos contratos. Uma medida sua radicalizou, em 1 de maio ltimo, as disputasem torno do setor de hidrocarbonetos, ou seja, o Decreto n 28.701, que nacionaliza o setor nopas. um documento de certa forma vago, pois rene apenas nove artigos e no esclarece o tipo denacionalizao, se com pagamento de indenizaes ou no, que o governo est disposto a realizar.A verdade que os impactos de tal medida ainda no podem ser avaliados com exatido, seja na

    Bolvia, ou nos outros pases da Amrica Latina, mas, de qualquer forma, ressaltam a importnciade se repensar os recursos naturais estrategicamente na regio e associ-los a um projeto dedesenvolvimento e integrao.

    A vitria de Morales, a princpio, teria aberto perspectivas para se chegar a um acordo sobre gscom a recm-eleita presidente do Chile, Michelle Bachelet, pas que tem grande demanda por esserecurso natural. Cerca de do gs consumido pelos chilenos vem da Argentina, que j deixou desuprir o abastecimento em momentos de crise. O parceiro lgico para diminuir a dependncia aBolvia, mas os problemas polticos tm impedido um entendimento entre os dois governos. 26

    O petrleo no centro das lutas polticas da Venezuela. A economia do pas extremamente

    dependente das exportaes petrolferas e os conflitos sociais venezuelanos tendem a acompanhar26 Cristina Alexandre, Flvio Pinheiro e Vitor Acselrad, As polticas do gs natural dos governos de Morales e

    Bachelet. Disponvel em: http://observatorio.iuperj.br.. Maro de 2006.

    http://observatorio.iuperj.br/http://observatorio.iuperj.br/http://observatorio.iuperj.br/
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    as oscilaes nos preos internacionais do produto. Nos anos 80, um perodo de baixa levou piorada situao social e a uma ampla revolta contra o governo, o Caracazo (1989). A sangrentarepresso contra os moradores dos bairros pobres da capital Caracas desacreditou ainda mais os doispartidos polticos hegemnicos (que se alternavam no poder desde 1958), j associados corrupoe ineficincia da administrao pblica. Nesse cenrio de crise das instituies, o tenente-coronelHugo Chvez tentou um golpe de Estado. Foi derrotado, mas estabeleceu-se como o principal lder

    da oposio ao sistema poltico tradicional. Em 1998, foi eleito presidente.

    No rastro dos atentados de 11 de setembro, da invaso do Iraque e de outras crises internacionais, opreo do petrleo disparou, dando ao governo Chvez recursos para implantar amplos programassociais, conhecidos como misses, em reas como sade, economia solidria, educao ehabitao popular. Os petrodlares tambm financiam as polticas de integrao sul-americana deChvez, conhecidas como Alternativa Bolivariana para as Amricas (Alba).

    A Venezuela de Chvez se tornou um ativo lder regional na Amrica do Sul, em parte para evitar oisolamento internacional de seu regime. Assinou acordos de cooperao com Cuba, trocandopetrleo por servios mdicos e educacionais. Criou um canal de jornalismo dedicado Amrica

    Latina, a Telesur, em parceria com a Argentina, a quem ajudou comprando ttulos da dvida externa.Ofereceu auxlio tcnico Bolvia, na rea de explorao de gs e petrleo. E iniciou grandes obrasde infraestrutura, como estradas, refinarias e o gigantesco projeto do Gasoduto do Sul.

    Contudo, o petrleo tambm deu a Chvez a possibilidade de interferir na poltica interna de pasesvizinhos, estimulando grupos oposicionistas na Colmbia e no Peru. Denncias de que estariafinanciando os guerrilheiros colombianos das FARCs e militares nacionalistas peruanos levaram atenses com os dois governos. Tambm entrou em conflito com o presidente mexicano, a quemcritica como submisso aos EUA. Os ataques recprocos entre Chvez e Bush so freqentes ebastante conhecidos, embora os Estados Unidos continuem a ser o parceiro econmico maisimportante da Venezuela, que um dos principais fornecedores de petrleo para o pas.

    gua

    Por sua importncia e escassez a gua um recurso natural vital e que os analistas apontam que serfonte de vrias disputas poltico-econmicas no sculo XXI. A Amrica do Sul rica em reservashdricas, na Bacia Amaznica e no Aqfero Guarani. Ainda assim, o acesso gua j impulsionaimportantes conflitos, sobretudo no campo da privatizao dos servios de abastecimento.

    O caso da Bolvia emblemtico. A partir dos anos 80, o pas adotou um duro programa de ajusteestrutural, para conter a hiperinflao. O receiturio aplicado incluiu privatizao em larga escala.

    Na cidade de Cochabamba, os servios pblicos de abastecimento de gua foram comprados em1999 pelo consrcio multinacional guas de Tunari, que reunia empresas da Bolvia, Itlia,Espanha e EUA. Os novos donos fizeram o governo promulgar leis draconianas para regular o usodos recursos hdricos, impondo tarifas bem mais elevadas e a proibio de que a populao retirasseguas dos rios ou da chuva. No pas mais pobre do continente, em que a maioria das pessoassobrevive com menos de U$1 por dia, a nova legislao significava, na prtica, retirar dos maispobres o acesso gua.

    Os movimentos sociais bolivianos formaram a Coordenadora de Defesa da gua e da Vida, queagrupou representantes de diversos setores, como associaes de moradores, sindicatos,camponeses, aposentados, estudantes. As pessoas bloquearam ruas e estradas, ocuparam

    simbolicamente Cochabamba e enfrentaram polcia e exrcito. Em 2000, depois de meses deconflitos, o governo boliviano cancelou o contrato com o consrcio e cedeu a administrao doabastecimento de gua prpria Coordenadora. A chamada guerra da gua no foi somente um

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    conflito social localizado:

    A reinvindicao da Coordenadora, que gira em torno da gua, conseguiu articulara populao rural e urbana, em funo de que esse um recurso que afeta atodos. A gua, ao ser reivindicada como bem pblico e, na medida em que ademanda gira em torno do seu manejo segundo usos e costumes , questiona o

    programa neoliberal de destruio sistemtica dos espaos coletivos ecomunitrios. A demanda de gua a reivindicao de uma subjetividadeassociativa/comunitria, de solidariedade e apoio mtuo.27

    Os protestos no pas mais pobre da Amrica do Sul tiveram impacto numa das naes de maiordesenvolvimento no continente, o Uruguai. Ali, a sociedade civil teve fora suficiente para discutira privatizao da gua num referendo nacional, realizado junto com as eleies presidenciais, em2004. A mesma votao que deu a vitria Frente Ampla, de esquerda, decidiu que oabastecimento de gua deveria continuar a ser servio pblico.

    Na Argentina, o governo Kirchner decidiu reestatizar o abastecimento de gua de Buenos Aires, que

    havia sido privatizado para a empresa guas Argentinas, controlada pelo grupo francs Suez. Ocontrato foi anulado pelos argentinos por uma srie de razes que envolvem desde a m qualidadeda gua (com nitratos 50% alm do nvel aceitvel) at o preo elevado e as dificuldades deabastecimento. Segundo Kirchner:

    Tampouco estamos dispostos a aceitar qualquer preo, qualquer tarifa, como se agua fosse um bem inalcansvel. H empresas, h espaos na economia, quepodem ser rentveis, e h outros que precisam chegar s pessoas como um ato dejustia e dignidade.28

    A batalha da gua envolve o governo da Frana, que est imerso em outras disputas com relaos privatizaes, no setor eltrico argentino. O grupo Suez tem ameaado processar o governo daArgentina atravs de um tribunal do Banco Mundial.

    Outro destaque Aqfero Guarani, uma das maiores reservas subterrneas de gua doce do mundo,espalhado entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Possui imenso potencial para abastecimentode cidades, fazendas e indstrias. A gua de excelente qualidade pode ser consumidadiretamente, sem filtragem. Tambm quente, pode ser utilizada para reduzir o consumo deeletricidade (em aquecedores, por exemplo), para combater geadas e para irrigar regies ameaadasde desertificao, como certas parte do sul e do centro-oeste do Brasil.

    H preocupaes dos grupos scio-ambientais com as possibilidade de contaminao do aqfero, ede seu uso indiscriminado por parte de grandes empresas, temores reforados pelo pssimo histricodas transnacionais com relao agua, como examinados nos casos acima.

    6. Segurana e Paz

    A Amrica do Sul um continente com pouca violncia internacional. Nos ltimos 20 anos houveapenas uma breve e limitada guerra de um ms entre Peru e Equador, em 1995, rapidamenteencerrada por mediao entre os vizinhos. Mas h muita agresso dentro das fronteiras.

    27 Claudia Wasserman, Bolvia: histria e identidade. Uma abordagem sobre a cultura e a sociedadecontemporneas.. In: H. Arajo (org.) Os Pases da Comunidade Andina. Braslia: IPRI, 2003. v1, p.336-337.

    28 Pagina 12, 24/03/2006.

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    A violncia poltica foi marcante no perodo da proliferao das ditaduras militares, nas dcadas de60 e 70. Hoje, o problema persiste na forma de intimidao a inimigos polticos, aes de gruposguerrilheiros e paramilitares e outros ataques armados. Levantamento pioneiro realizado porpesquisadores argentinos e brasileiros calculou cerca de 1.600 vtimas polticas em 2005, entremortos, feridos e seqestrados.

    Os casos concentram-se na Colmbia (55%), Equador (27%), Bolvia (7,6%) e Argentina (4,3%).No primeiro pas, trata-se do conflito que h dcadas traz devastao e sofrimento. No Equador e naBolvia, diz respeito a choques durante as crises que derrubaram os presidentes Lucio Gutierrez eCarlos Mesa. Na Argentina, as vtimas ocorreram na represso a protestos sociais. Em pases comoUruguai e Chile, a pesquisa no encontrou ocorrncias de violncia poltica.29

    As altas taxas de crime nas grandes cidades da regio e o conflito colombiano, com suasconseqncias internacionais, so responsveis pela morte, ferimentos ou agresses a centenas demilhares de pessoas por ano. Quadrilhas de criminosos ligados ao narcotrfico e ao contrabandocom freqncia assumem o controle de bairros pobres e periferias, os mesmo de zonas remotas nointerior. Em pases como Brasil, Colmbia e Peru, a ao desses grupos de bandidos uma ameaa

    concreta ao Estado de Direito, pelos ataques a autoridades pblicas (policiais, juzes, promotores)ou pela infiltrao nas estruturas do poder poltico.

    Coca

    O cultivo da coca tradicional na regio andina da Amrica do Sul, em particular na Bolvia, Peru,Equador e Colmbia. A planta utilizada h milnios na alimentao, medicina e cerimniasreligiosas dos povos indgenas desses territrios. Contudo, a formao de uma poderosa indstriadas drogas e a demanda internacional pela cocana nos EUA e na Europa a partir dos anos 70transformaram a regio andina no epicentro de conflitos armados de escala devastadora, comimpactos sobre a democracia, o meio ambiente e as tradies sociais de milhes de pessoas.

    A partir da chamada guerra contra as drogas nos Estados Unidos, iniciada no governo Nixon,Washington alterou sua estratgia com relao Amrica Andina. O comunismo deixou de ser vistocomo a amea principal e o foco foi reorientado para o combate ao narcotrfico, inclusive compresses para que as foras armadas locais fossem utilizadas na tarefa. Na Colmbia e no Peru issoocorreu com grande amplitude, com conseqncias trgicas.

    As origens do conflito colombiano remontam a 1948, ano em que o lder liberal Jorge ElicerGaitn foi assassinado. O crime serviu de estopim revolta popular do Bogotazo, e doenfrentamento armado entre liberais e conservadores, a chamada La Violencia, cujo auge ocorreu

    entre 1948-1958, deixando cerca de 200 mil mortos.Em 1958 os partidos liberal e consevador chegaram a um acordo de diviso de poder, mas o pactoentre as elites no foi capaz de representar as demandas sociais da populao mais pobre e aviolncia continuou a imperar. Na dcada de 60 foram organizadas guerrilhas de inspiraomarxista das Foras Armadas Revolucionrias da Colmbia (FARCs) e do Exrcito de LibertaoNacional (ELN). Para combat-los, surgiram grupos paramilitares. Com o tempo, as organizaesarmadas acabaram envolvendo-se com o narcotrfico, em geral cobrando taxas para permitir ocultivo de coca nos territrios sob seu controle, executando seqestros por razes polticas ousimplesmente para ganhar dinheiro.

    Nos anos 80 e 90, houve um agravamento do conflito no auge, os grupos armados controlavam29 Marcelo Coutinho e Juan Claudio Epsteyn, Os Atuais Nmeros da Violncia Poltica na Amrica do Sul, Revista

    do Terceiro Setor, 10/02/2006.

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    cerca de 40% da Colmbia, cometendo assassinatos e atentados a bomba. Os EUA j tinham umprofundo envolvimento na guerra civil colombiana e em 1999 implantaram o Plano Colmbia, comverbas de U$7,5 bilhes para militarizar o combate ao narcotrfico e s guerrilhas. O volume dedinheiro tornou o pas o terceiro receptor de ajuda externa estadunidense, atrs apenas de Israel e doEgito.

    Os mtodos utilizados pelo governo da Colmbia e dos EUA provocaram repdio das organizaesda sociedade civil devido s repetidas violaes de direitos humanos, alm dos danos scio-ambientais, como destruio de plantaes com herbicidas txicos que causam problemas de sadeem seres humanos e poluem guas e florestas. Ao longo dos anos, o conflito colombiano tambmdeu origem a milhes de desplazados, refugiados que trocaram seu lar no interior pelas periferiasdas grandes cidades, ou fugindo para outro pas. Povos indgenas foram muito afetados e algunsesto ameaados de desaparecer.

    A guerra civil colombiana tambm cria tenses internacionais. Pases vizinhos - Venezuela, Brasil,Equador e Peru - temem a invaso de seu territrio por grupos guerrilheiros ou paramilitares, o queocorreu algumas vezes. Tambm tm medo que os EUA utilizem o narcotrfico como pretexto para

    intervenes militares na Amaznia. Ainda assim, os governos da Amrica do Sul no foramcapazes de articular uma coligao em busca da paz na Colmbia. H um precedente no Grupo deContadora, formado por pases latino-americanos, que intermediou negociaes de paz na AmricaCentral, no perodo das guerras civis dos anos 80, opondo-se s intervenes militares apoiadaspelos Estados Unidos.

    Durante o governo do presidente colombiano Andrs Pastrana (1998-2002) foram iniciadosdilogos com os grupos armados e criada uma zona desmilitarizada no interior do pas,administrada pelas FARCs. Contudo, o processo no avanou, com acusaes mtuas dedesrespeito aos acordos. Os atentados de 11 de setembro e a decretao da guerra contra o terrorpor parte do governo dos EUA tambm tiveram impacto sobre a Colmbia. O presidente lvaroUribe tomou posse em 2002 com uma grande votao e polticas de linha dura no combate sguerrilhas e aos paramilitares.

    No Peru, o governo de Alberto Fujimori (1990-2000) utilizou-se das ameaas segurana paraimplantar um regime autoritrio a partir do autogolpe de 1992, sob o pretexto de combater oterrorismo dos grupos Sendero Luminoso e Movimento Revolucionrio Tupac Amaru.

    Fujimori tambm conquistou as simpatias dos EUA abraando seu programa de combate militar aonarcotrfico. A maior parte das operaes ficou a cargo de seu principal assessor, VladmiroMontesinos, um ex-oficial do exrcito, expulso das foras armadas por corrupo. Ao longo dos