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  1 CRIMES DA DITADURA MILITAR: Relatório sobre as atividades de persecução penal desenvolvidas pelo MPF em matéria de graves violações a DH cometidas por agentes do Estado durante o regime de exceção (2008-2012)

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Relatório sobre as atividades de persecução penal desenvolvidas pelo MPF emmatéria de graves violações a DH cometidas por agentes do Estado durante oregime de exceção(2008-2012)

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    CRIMES DA DITADURA MILITAR:

    Relatrio sobre as atividades de persecuo penal desenvolvidas pelo MPF em

    matria de graves violaes a DH cometidas por agentes do Estado durante o

    regime de exceo

    (2008-2012)

  • 2

    Ministrio Pblico Federal Procuradoria Geral da Repblica 2a Cmara de Coordenao e Reviso (Criminal e Controle Externo da Atividade Policial) Raquel Elias Ferreira Dodge (SPGR) Coordenadora Jos Bonifcio Borges de Andrada (SPGR) Oswaldo Jos Barbosa Silva (SPGR) Carlos Augusto da Silva Cazarr (PRR4) (suplente) Carlos Alberto Carvalho de Vilhena Coelho (PRR1) (suplente) Luiza Cristina Fonseca Frischeisen (PRR3) (suplente) Grupo de Trabalho Justia de Transio: Ivan Cludio Marx (PRM-Santa Maria) Coordenador Sergio Gardenghi Suiama (PR-SP) Coordenador Substituto Andr Casagrande Raupp (PRM-Uruguaiana) Andrey Borges de Mendona (PRM-Santos) Eugenia Augusta Gonzaga (PRR3) Ins Virgnia Prado Soares (PRR1) Joo Raphael de Lima (PRM-Araguana) Luana Vargas Macedo (PRM-Marab) Luiz Fernando Voss Chagas Lessa (PR-RJ) Marcelo da Mota (PR-SC) Marlon Alberto Weichert (PRR3) Melina Alves Tostes (PRM-Marab) Tiago Modesto Rabello (PRM-Petrolina) Redao: Andr Casagrande Raupp, Ivan Cludio Marx, Marlon Alberto Weichert, Melina Alves Tostes, Sergio Gardenghi Suiama e Tiago Modesto Rabelo. Reviso final: Sergio Gardenghi Suiama, Ivan Cludio Marx e Raquel Elias Ferreira Dodge. Equipe de apoio: Diego Kazuro Hosoda (secretrio PR-SP) e Elouise Bueno Ariede (estagiria de direito PR-SP). Braslia, maro de 2013. Procuradoria Geral da Repblica SAF Sul Quadra 4 Conjunto C Braslia/DF CEP 70050-900 PABX: (61) 3105-5100 Pgina Web:

  • 3

    SIGLAS UTILIZADAS NO RELATRIO 2CCR 2a Cmara de Coordenao e Reviso do Ministrio Pblico Federal

    ADCT Ato das Disposies Constitucionais Transitrias

    ADPF - Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental

    AGU Advocacia Geral da Unio

    ALN Ao Libertadora Nacional

    CADH Conveno Americana de Direitos Humanos

    CC Cdigo Civil

    CEMDP-SEDH - Comisso Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polticos da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica

    CID Comisso Interamericana de DH

    CIE Centro de Informaes do Exrcito

    Corte IDH Corte Interamericana de Direitos Humanos

    CP Cdigo Penal

    CPP Cdigo de Processo Penal

    CR Constituio da Repblica

    DH Direitos Humanos

    DOI-CODI - II Exrcito Destacamento de Operaes de Informaes - Centro de Operaes de Defesa Interna do II Exrcito (SP)

    DEOPS Departamento Estadual de Ordem Poltica e Social

    GTJT Grupo de Trabalho Justia de Transio

    GTT Grupo de Trabalho Tocantins

    HC Habeas Corpus

    IPL Inqurito Policial

    JF Justia Federal

    MP Ministrio Pblico

    MPF Ministrio Pblico Federal

    OBAN Operao Bandeirantes (SP)

    OEA Organizao dos Estados Americanos

    ONU Organizao das Naes Unidas

    PC do B Partido Comunista do Brasil

    PF Polcia Federal

    PIC Procedimento Investigatrio Criminal

    PM Polcia Militar

  • 4

    PGR Procuradoria Geral da Repblica

    PR Procuradoria da Repblica/Procurador da Repblica

    PRM Procuradoria da Repblica no Municpio

    PRR Procuradoria Regional da Repblica/Procurador Regional da Repblica

    RESE Recurso em Sentido Estrito

    SPGR Subprocurador Geral da Repblica

    STF Supremo Tribunal Federal

    TJ Tribunal de Justia

    TRF Tribunal Regional Federal

    VPR Vanguarda Popular Revolucionria

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    NDICE I. Apresentao.

    II. Introduo.

    III. Histrico.

    IV. Teses institucionais adotadas pela 2CCR e pelo GTJT.

    A. Obrigaes positivas do Estado brasileiro em matria penal. A sentena do

    caso Gomes Lund e o direito internacional dos direitos humanos.

    1. Estado da matria no direito internacional dos DH.

    2. Pontos resolutivos da sentena relacionados persecuo penal de

    graves violaes a DH cometidas durante o regime militar. Obrigaes

    dirigidas ao MPF.

    2.1. Inexistncia de conflito real entre a ADPF 153 e a sentena de

    Gomes Lund.

    B. O desaparecimento forado como crime de sequestro permanente e no

    exaurido.

    C. O desaparecimento forado como crime imprescritvel e insuscetvel de anistia

    V. Aes penais propostas at 2012.

    A. Os sequestros de Maria Clia Corra, Hlio Luiz Navarro de Magalhes; Daniel

    Ribeiro Callado; Antnio de Pdua e Telma Regina Cordeira Corra no mbito da

    represso Guerrilha do Araguaia.

    B. O sequestro de Aluzio Palhano no DOI-CODI do II Exrcito.

    C. O sequestro de Divino Ferreira de Souza no mbito da represso Guerrilha

    do Araguaia.

    D. O sequestro de Edgar de Aquino Duarte no DOI-CODI e no DEOPS de So

    Paulo.

    VI. Atividades de investigao conduzidas pelo MPF e dirigidas apurao de mltiplos crimes.

    Depoimento: Quando uma porta se abre (Maria Amlia de Almeida Teles

  • 6

    Comisso de Familiares de Mortos e Desaparecidos Polticos)

    Depoimento: Histrico das Lutas dos Familiares de Mortos e Desaparecidos

    Polticos (Victria Lavnia Grabois Olmpio Grupo Tortura Nunca Mais/RJ)

    VII. Concluso.

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    I. APRESENTAO

    Toda transio diferente. Todavia, no importa onde se concretize,

    a verdadeira justia de transio s se realiza quando traz justia para as

    vtimas. O cerne do conceito de justia de transio, criado h poucas dcadas,

    inclui, a um s tempo, acesso das vtimas verdade, justia penal e

    reparao, da derivando o conjunto de medidas que, no mbito daquela

    sociedade, propiciam a conciliao, a paz, a democracia e o Estado de direito.

    A proporo de acesso das vtimas verdade, justia e

    reparao, que tem propiciado uma transio verdadeira, varia de pas para

    pas, de comunidade para comunidade. A anistia frequentemente invocada

    como elemento de conciliao, mas muitas vezes apontada como elemento

    inibidor do acesso verdade, justia penal e reparao.

    No Brasil, recente atuao do MPF abriu uma nova vertente na

    concretizao da justia de transio, com o ajuizamento de aes penais por

    crimes da ditadura e com a abertura de muitas investigaes para fins penais.

    Este trabalho tem sido coordenado pela 2 CCR, que criou um GT

    para auxili-la nesta funo. Este relatrio preliminar, feito pelo GT, registra atos

    de persecuo penal desenvolvidos pelo MPF em relao a graves violaes de

    direitos humanos que caracterizam crimes e os argumentos jurdicos utilizados

    para fundament-los. O MPF assume, na persecuo penal destes crimes, o

    papel de realizador de um dos componentes da justia de transio e oferece

    este relatrio preliminar para estudo e conhecimento pblicos.

    Raquel Elias Ferreira Dodge Subprocuradora-Geral da Repblica

    Coordenadora da 2 CCR

  • 8

    II. INTRODUO

    O GTJT foi constitudo pela Portaria 21 da 2a Cmara de

    Coordenao e Reviso do MPF, datada de 25.11.11, e teve sua constituio

    ampliada e modificada pelas Portarias 28 (de 31.01.12), 36 (de 08.05.12), 47 (de

    02.08.12) e 51 (de 28.08.12). Nos termos do art. 1 da Portaria 21, incumbe ao

    grupo examinar os aspectos criminais da sentena da Corte IDH no caso Gomes

    Lund vs. Brasil1 com o objetivo de fornecer apoio jurdico e operacional aos

    Procuradores da Repblica para investigar e processar casos de graves

    violaes a DH cometidas durante o regime militar. Segundo o 1 do mesmo

    artigo, cabe tambm ao GTJT buscar fomentar ambiente propcio para a

    reflexo sobre o tema e para a tomada de posies institucionais e no

    isoladas sobre a questo. Para tanto, a portaria atribuiu ao grupo as funes

    de: a) definir um plano inicial para a persecuo penal; b) identificar os casos

    abrangidos pela sentena aptos incidncia da lei penal; c) definir o juzo

    federal perante o qual sero propostas as aes penais, de acordo com as

    disposies internacionais e os dispositivos constitucionais e legais; d) examinar

    a investigao de crimes de quadrilha, nos casos em que os vnculos

    estabelecidos ainda durante a ditadura militar permaneceram ntegros at

    momento recente ( 3 e 4 do mesmo artigo).

    O GTJT atualmente constitudo pelos seguintes membros: Andr

    Casagrande Raupp (PRM-Uruguaiana), Andrey Borges de Mendona (PRM-

    Santos), Eugenia Augusta Gonzaga (PRR3), Ins Virgnia Prado Soares (PRR1),

    Ivan Cludio Marx (PRM-Cachoeira do Sul), Joo Raphael de Lima (PRM-

    Araguana), Luana Vargas Macedo (PRM-Marab), Luiz Fernando Voss Chagas

    Lessa (PR-RJ), Marcelo da Mota (PR-SC), Marlon Alberto Weichert (PRR3),

    Melina Alves Tostes (PRM-Marab), Sergio Gardenghi Suiama (PR-SP) e Tiago

    Modesto Rabello (PRM-Petrolina). Foram escolhidos, respectivamente como

    Coordenador e Coordenador Substituto do GTJT, os PRs Ivan Cludio Marx e

    1 Corte IDH, Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil. Excees preliminares, Fundo, Reparaes e Custas. Sentena de 24 de novembro de 2010. Srie C, N 219.

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    Sergio Gardenghi Suiama.

    Para o grupo, a instaurao de procedimentos individuais de

    investigao voltados cabal apurao dos crimes cometidos durante o regime

    militar possui inegvel valor histrico, independentemente da propositura de

    ao penal em cada um dos casos. Isto porque nunca houve, na Histria do

    Brasil, a instaurao de uma investigao2 para apurar o que aconteceu a Ana

    Rosa Kucinski, Aluzio Palhano, Edgar de Aquino Duarte, Paulo Stuart Wright e

    a outras centenas de brasileiros mortos ou desaparecidos em poder de agentes

    estatais.

    2 exceo dos procedimentos 180/2009-13 (da PRM-Marab, dirigido investigao dos desaparecimentos e mortes resultantes da represso chamada Guerrilha do Araguaia) e 2008.71.03.001525-2 - IPL 116/2008 (da PRM-Uruguaiana, voltado apurao do desaparecimento de Lorenzo Ismael Vias) infra referidos. No MP Militar do Rio de Janeiro havia um inqurito anterior prolao da sentena do caso Gomes Lund e voltado apurao do sequestro do deputado federal cassado Rubens Paiva. Na esfera administrativa, deve ser registrada a cognio efetuada pela CEMDP, no mbito de 475 requerimentos de indenizao formulados por familiares de mortos e desaparecidos polticos, com fundamento na Lei 9.140/95. Observa-se, porm, que os procedimentos administrativos da CEMDP no tinham o escopo especfico de determinar a autoria do ilcito, mas to somente demonstrar a relao de causalidade entre a ao estatal e o homicdio ou desaparecimento, para fins de reparao.

  • 10

    III. HISTRICO

    As primeiras iniciativas do MPF3 de responsabilizao penal dos

    agentes de Estado envolvidos em graves violaes a DH durante o regime

    militar datam dos anos de 2008 e 2009. Nesse perodo, os procuradores Marlon

    Weichert e Eugnia Gonzaga protocolizaram oito notcias-crime4 seis na PR-

    SP, uma na PR-RJ e uma na PRM-Uruguaiana requerendo a instaurao de

    PICs com vistas apurao de casos de sequestro/desaparecimento forado e

    homicdio/execuo sumria envolvendo contra os dissidentes polticos Flvio

    de Carvalho Molina5, Luis Jos da Cunha6, Manoel Fiel Filho7, Vladimir Herzog8,

    Aluzio Palhano Pedreira Ferreira9, Luiz Almeida Arajo10, Horacio Domingo

    Campiglia11, Mnica Susana Pinus de Binstock12, Lorenzo Ismael Vias e Jorge

    Oscar Adur13.

    O caso de Lorenzo Vias, remetido PRM de Uruguaiana - RS,

    refere-se ao sequestro de um militante da organizao de esquerda Movimento

    Peronista Montoneiro, supostamente preso em territrio nacional e levado

    Argentina por agentes da represso. Segundo a notcia-crime, Vias pretendia

    exilar-se na Itlia e teria sido detido no Brasil ao atravessar a fronteira, em Paso

    de Los Libres Uruguaiana. A investigao do caso, requisitada pelo PR Ivan

    Cludio Marx PF em 19 de junho de 2008, foi a primeira das novas tentativas

    de punio dos agentes do Estado pelos crimes cometidos durante o ltimo

    3 Antes h o registro de iniciativas isoladas, na Justia Militar e na Justia Estadual, todas resultando em arquivamento com base na Lei de Anistia. 4 Includas no CD-R anexo. 5 Procedimento n.o 1.34.001.005988/2008-15, posteriormente convertido no IPL 181/2009-3, e autos judiciais n. 2009.61.81.013046-8. Os autos foram distribudos 7 Vara Federal Criminal Federal de So Paulo. 6 Procedimento n.o 1.34.001.003312/2008-97, autos judiciais n. 2008.61.81.012372-1, distribudos 1a Vara Criminal de So Paulo. 7 Procedimento n.o 1.34.001.006086/2008-04. 8 Procedimento n.o 1.34.001.001574/2008-17, autos judiciais n. 2008.61.81.013434-2, distribudos 1a Vara Criminal de So Paulo. 9 Procedimento n.o 1.34.001.001785/2009-3. 10 Procedimento n.o 1.34.001.002034/2009-31. 11 Procedimento n.o 2009.51.01.0809410-8, 7 Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro. 12 Procedimento n.o 2009.51.01.0809410-8, 7 Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro. 13 O caso de Vias foi apurado no processo n.o 2008.71.03.001525-2 - IPL 116/2008. Nessa investigao foi includo posteriormente o caso de Jorge Oscar Adur.

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    regime militar no Brasil. Na mesma investigao tambm foi includo o caso do

    padre catlico argentino Jorge Oscar Adur, desaparecimento na mesma data e

    em circunstncias similares s de Lorenzo Vias.

    Na PR-SP, nos anos de 2008 e 2010, os procuradores naturais de

    trs procedimentos (casos de Lus Jos da Cunha14, Vladimir Herzog15 e Flvio

    de Carvalho Molina16) requereram judicialmente o arquivamento das

    investigaes instauradas, com fundamento na prescrio, intangibilidade da

    coisa julgada formal (caso Herzog) e anterioridade e taxatividade da lei penal no

    que se refere definio de crimes contra a humanidade (caso Lus Jos da

    Cunha). Dois desses pedidos de arquivamento, referentes s investigaes dos

    homicdios de Herzog17 e Cunha, foram homologados pela 1a Vara Criminal

    Federal da Subseo de So Paulo.

    O pedido de arquivamento do caso de Flvio Molina, todavia, foi

    apenas parcialmente homologado pela 7a Vara Criminal Federal de SP18. O juiz

    federal Ali Mazloum, titular daquela vara, homologou o arquivamento com

    relao aos crimes de sequestro, homicdio e falsidade ideolgica, amparado na

    Lei de Anistia (argumento no utilizado pela procuradora natural do caso).

    Entretanto, no homologou o arquivamento com relao aos crimes de

    ocultao de cadver em razo de sua natureza permanente (o que afastaria a

    aplicao da anistia e da prescrio). Ademais, a respeito desse delito, afirmou

    que, durante a execuo do delito, surgiu uma nova norma que previu sua

    imprescritibilidade. Trata-se do art. 5, inc. XLIV, da Constituio de 88, segundo

    o qual constitui crime inafianvel e imprescritvel a ao de grupos armados,

    civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrtico. De

    acordo com a deciso do magistrado, o crime investigado se amolda

    perfeitamente previso constitucional, resultando-lhe aplicvel a

    14 Segundo consta da notcia-crime, Lus Jos da Cunha foi torturado e morto em 13.07.73 nas dependncias do DOI/CODI em So Paulo. 15 Torturado e morto no DOI-CODI do II Exrcito, em 25.10.75. 16 Morto em novembro de 1971, tambm no DOI-CODI de So Paulo. 17 Em razo do esgotamento dos recursos internos satisfao dos interesses dos familiares de Herzog, o arquivamento foi submetido CIDH, tendo a Comisso, em maro de 2012, admitido a petio e determinado a notificao do Estado brasileiro. 18 A deciso judicial encontra-se no CD-R anexo.

  • 12

    imprescritibilidade j que, ao momento do surgimento da nova Constituio, no

    havia cessado a permanncia do crime.

    Ainda antes da prolao da sentena da Corte IDH no caso Gomes

    Lund, no ano de 2009, a investigao relacionada ao desaparecimento de

    Horacio Domingo Campiglia e Mnica Susana Pinus de Binstock, sequestrados

    em 13 de maro de 1980, tambm foi arquivada com fundamento na prescrio.

    O procurador natural do caso asseverou que seria discutvel a considerao dos

    atos cometidos durante a ditadura brasileira como crimes contra a humanidade

    (tema que estaria por ser decidido pelo STF na Extradio 97419), bem como

    que resultava inaplicvel a imprescritibilidade em razo da no adeso do

    Estado brasileiro Conveno Internacional sobre a Imprescritibilidade dos

    Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade (1968). Afirmou, ademais,

    que a aplicao de direito costumeiro internacional importaria em violao ao

    princpio constitucional da legalidade penal. Sendo assim, requereu o

    arquivamento do caso sem prejuzo de retomada das investigaes com base

    no artigo 18 do CPP, caso, eventualmente, seja reconhecida a inexistncia de

    causa extintiva da punibilidade. O juiz homologou o arquivamento em 10 de

    setembro de 2009, por 'assistir razo ao MP'.

    Tambm em 2009, foi arquivada a investigao criminal relativa

    morte de Joo Goulart20, instaurada a partir de representao de familiares do

    ex-presidente. Em 05.06.09, a procuradora natural do procedimento21

    fundamentou o arquivamento unicamente na prescrio. O juiz federal da 2a

    Vara Criminal de Porto Alegre homologou o pedido em 28.08.09.

    Logo aps a sentena de Gomes Lund, a 2CCR teve a

    19 STF. Ext./974. Relator Min. Marco Aurlio, j. 06.08.09, DJE n 156 de 19.08.09. 20 Representao Criminal n 2009.71.00.013804-2 - RS, 2 Vara Federal Criminal de Porto Alegre. Deposto pelo sistema ditatorial cvico-militar em abril de 1964, o ex-presidente morreu em 6 de dezembro de 1976, na estncia de sua propriedade, na Provncia de Corrientes - Argentina. Posteriormente, surgiram suspeitas de que a morte de Jango poderia no ser decorrente de causas naturais (enfermidade), mas sim de um homicdio fruto de um organizado plano, do qual teriam participado agentes de Estado de vrios pases, dentro do marco da conhecida Operao Condor. O corpo, curiosamente no submetido a necropsia, foi trasladado ao Brasil, onde foi sepultado. 21 Representao Criminal n 2009.71.00.013804-2RS, 2 Vara Federal Criminal de Porto Alegre.

  • 13

    oportunidade de examinar um recurso contra o arquivamento indireto promovido

    pelo PR Kleber Marcel Uemura, primeiro procurador natural das investigaes

    dos casos de Aluzio Palhano Pedreira Ferreira e Luiz Almeida Arajo. O caso

    foi relatado pela PRR Mnica Nicida Garcia e submetido deliberao da

    Cmara em 07 de fevereiro de 2011. No voto, tanto a relatora quanto a SPGR

    Raquel Dodge citam a sentena da Corte IDH como fundamento para deixar de

    homologar o arquivamento das apuraes relacionadas ao sequestro de

    Palhano e Arajo. Afirmam tambm a competncia do MPF e da JF para

    promover a persecuo penal dos responsveis pelas graves violaes a DH

    cometidas durante o regime militar.

    Em razo das obrigaes impostas ao MPF pela Corte IDH na

    sentena de Gomes Lund, e em decorrncia do prprio entendimento firmado

    pela 2CCR nos dois casos por ela apreciados, foram realizadas uma reunio

    interna e dois workshops internacionais, estes em parceria com a Secretaria

    Nacional de Justia, o Centro Internacional para a Justia de Transio e a

    Procuradoria Federal dos Direitos do Cidado, alm da prpria 2CCR.

    Os debates conduzidos no mbito desses ambientes de trabalho

    resultaram na criao, em 25 de novembro de 2011, do GTJT. Desde antes da

    criao formal do grupo, todavia, seus membros j vinham se dedicando, sem

    prejuzo de suas funes regulares, a aprofundar os estudos sobre os

    mecanismos de implementao da sentena de Gomes Lund no mbito interno,

    com o objetivo de garantir a maior eficcia possvel aos pontos resolutivos

    relacionados persecuo penal das violaes a DH, respeitados todos os

    parmetros de legalidade. Com esse objetivo, elaborou-se uma Nota Tcnica22 a

    respeito do direito comparado, seguida de um produtivo debate (em conjunto

    com os procuradores naturais dos procedimentos) acerca das teses jurdicas a

    serem adotadas nas aes penais. A criao do GTJT e a atuao integrada

    com os procuradores naturais da PR-SP, PR-RJ, PRM-Petrpolis, PRM-Campos

    de Goytacazes e PRM-Marab foram responsveis pelo expressivo aumento de

    novas investigaes instauradas, demonstrado no quadro 1:

    22 Anexada ao CD-R.

  • 14

    Quadro 1: procedimentos em andamento no MPF, aes j ajuizadas e arquivamentos (2008-2012)

    O quadro acima foi extrado dos dados constantes da planilha

    anexa, a qual consolida toda a atuao do MPF em matria de

    responsabilizao dos autores de graves violaes a DH cometidas durante o

    regime militar. A planilha contabilizou 193 PICs em andamento23, quase todos instaurados nos ltimos dois anos sendo 136 na PR-RJ, 53 na PR-SP24 e os

    demais nas PRs e PRMs citadas. Os PICs referem-se a crimes cometidos contra

    183 vtimas, nestas no includas as pessoas vitimadas no mbito da represso

    Guerrilha do Araguaia25. Os procuradores de Marab optaram por manter um

    nico procedimento para apurar a totalidade dos casos de desaparecimento

    forado e execuo sumria l ocorridos.

    O quadro 2 abaixo indica o nmero de PICs instaurados, segundo

    a conduta delitiva apurada:

    23 Aos quais devem ser somados seis procedimentos arquivados e quatro aes penais em andamento para totalizar 203 procedimentos arquivados, em andamento e com aes penais ajuizadas. 24 Como se sabe, os maiores centros de represso poltica do regime militar (nomeadamente os Destacamentos de Operaes Internas do Exrcito - DOIs, o Centro de Informaes da Marinha CENIMAR, os Departamentos Estaduais de Ordem Poltica e Social e as Casas da Morte clandestinas) estavam instalados no eixo Rio-So Paulo; da a concentrao das investigaes nessas duas PRs. 25 . Assim, o nmero total de vtimas cujos casos encontram-se em apurao no mbito do MPF o indicado neste relatrio, acrescido dos casos em apurao no PIC da PRM-Marab. A compilao apontou tambm a ocorrncia de alguns procedimentos duplicados na PR-RJ, motivo pelo qual o nmero de procedimentos maior do que o nmero de vtimas.

  • 15

    Quadro 2: procedimentos segundo o tipo de crime apurado

    At o presente, foram ajuizadas quatro aes penais e

    homologados seis arquivamentos. As aes penais ajuizadas (descritas no item

    V, infra) referem-se todas a crimes de sequestro, cometidos contra seis vtimas

    na regio do Araguaia e duas vtimas em So Paulo. Como j mencionado, os

    casos relacionados a seis outras vtimas foram arquivados com fundamento na

    extino da punibilidade dos agentes pela ocorrncia da prescrio. As vtimas

    so: Lus Jos da Cunha, Vladimir Herzog, Horacio Domingo Campiglia, Mnica

    Susana Pinus de Binstock, Joo Goulart e Eduardo Leite26. A investigao

    relacionada ao desaparecimento de Lorenzo Ismael Vias e Jorge Oscar Adur

    foi arquivada por falta de provas de que o sequestro tenha ocorrido em territrio

    nacional.

    O GTJT entende que as aes penais e as investigaes instauradas

    do parcial cumprimento obrigao estabelecida no ponto resolutivo 9 da

    sentena do caso Gomes Lund, consistente no dever do Estado brasileiro de

    promover a persecuo penal das graves violaes a DH cometidas durante o

    26 O arquivamento foi pedido pela Procuradora natural da investigao, Carolina Loureno Brighenti, nos autos da Pea Informativa n 1.00.000.008947/2011-74, distribuda 1 Vara Federal Criminal de So Paulo. O caso referia-se ao sequestro, tortura e homicdio de Eduardo Leite, cometido por agentes da Polcia Civil de So Paulo e agentes do Exrcito, em 1970. O requerimento se baseou exclusivamente na prescrio do crime. No se fez referncia anistia, no obstante essa tenha sido anteriormente declarada constitucional pelo STF na ADPF 153 julgada em abril de 2010. Em 22 de fevereiro de 2012, o Judicirio homologou o arquivamento, considerando prescrito o crime.

  • 16

    regime militar. O GTJT tambm entende que a instaurao de investigaes

    formais um dever do Estado brasileiro para com as vtimas dessas violaes e

    a seus familiares, os quais reivindicam, h quatro dcadas, providncias do

    Estado em relao apurao do que ocorreu com seus prximos.

    A 2CCR tem fornecido aos procuradores naturais o suporte material

    necessrio realizao de diligncias. Inobstante a natural dificuldade de

    produo de provas aps dcadas, as aes j propostas e as investigaes em

    andamento revelam a importncia jurdica e histrica de se apurar a verdade de

    gravssimos fatos criminosos cometidos no mbito da represso sistemtica

    contra dissidentes polticos.

    O GTJT acredita que as provas produzidas nos autos dos

    procedimentos de investigao tem especial valor histrico, pois ampliam o

    conhecimento, consolidam e sistematizam, em relao a cada uma das vtimas,

    indcios e elementos, at agora esparsos, constantes de velhos arquivos ou

    presentes na memria das testemunhas dos acontecimentos. Em conjunto com

    os procuradores naturais dos feitos, os membros do GTJT recolheram provas de

    interesse pblico geral, como o depoimento de cerca de 12 horas dos agentes

    da represso Marival Chaves Dias do Canto e Cludio Antnio Guerra, que

    jamais haviam sido formalmente ouvidos por rgos do Estado. Os dois, e as

    outras quase cento e cinquenta testemunhas j ouvidas pelo MPF em diversas

    unidades da Federao, forneceram importantes elementos de convico para a

    recuperao das histrias individuais e coletivas de um perodo crucial da

    histria brasileira.

  • 17

    IV. TESES INSTITUCIONAIS ADOTADAS PELA 2CCR E PELO GTJT.

    A. Obrigaes positivas do Estado brasileiro em matria penal. A sentena do caso Gomes Lund e o direito internacional dos DH.

    1. Estado da matria no direito internacional dos DH.

    Uma crescente e visvel nfase nos deveres dos Estados em matria

    de proteo a DH por intermdio do sistema jurdico-criminal tem sido uma das

    marcas do direito internacional do ps-2a Guerra. Sobretudo a partir da dcada

    de 1990, tratados e decises de cortes internacionais vm explicitando que os

    direitos reconhecidos pelos sistemas regionais e universal incluem deveres

    estatais correlatos, relacionados criminalizao de certas condutas

    atentatrias a esses direitos e organizao de um servio voltado

    persecuo criminal efetiva de seus autores. Tais deveres so entendidos, em

    geral, como inderrogveis e, dentre estes, alguns so de natureza cogente. o

    caso, por exemplo, da obrigao cogente internacionalmente reconhecida de

    criminalizao e represso ao genocdio27.

    Provises dirigidas persecuo penal de certas violaes podem ser

    encontradas nos seguintes tratados internacionais de DH assinados pelo Estado

    brasileiro: Conveno para a Preveno e a Represso do Crime de Genocdio

    (1948); Conveno Internacional sobre a Eliminao de Todas as Formas de

    Discriminao Racial (1969); Conveno contra a Tortura (1984); Conveno

    Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985); Conveno

    Interamericana sobre o Desaparecimento de Pessoas (1994); Conveno

    Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violncia Contra a Mulher

    (Conveno de Belm do Par, 1994); Protocolo Facultativo Conveno

    sobre os Direitos da Criana referente venda de crianas, prostituio infantil

    e pornografia infantil (2000) e Protocolo Adicional Conveno contra o Crime

    27 Conveno para a Preveno e Represso do Crime de Genocdio. Aprovada pela Resoluo 260 A (III) da Assembleia Geral da ONU em 09 de dezembro de 1948. Assinada pelo Brasil em 11 de dezembro de 1948 e ratificada em 15 de abril de 1952.

  • 18

    Organizado Transnacional Relativo Preveno, Represso e Punio do

    Trfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianas (2000). No julgamento da

    Ao Declaratria de Constitucionalidade n.o 19 ADC 19, inclusive, os

    Ministros do STF lembraram os deveres de proteo penal assumidos pelo

    Estado brasileiro na Conveno de Belm do Par, ao confirmarem a natureza

    incondicionada da ao penal pblica em casos de violncia domstica contra

    as mulheres28.

    Tambm no mbito dos organismos internacionais de DH, o dever

    estatal de proteo por meio do sistema de justia criminal tem sido fortemente

    ressaltado. Em geral, as Cortes Europeia e Americana de DH fundamentam

    essa obrigao nas clusulas dos tratados que estipulam o dever dos Estados

    Parte de assegurar e proteger o direito das vtimas e tambm nas que garantem

    a estas um remdio efetivo contra a violao constatada. Especificamente, as

    cortes internacionais entendem que, no caso de graves violaes a certos

    direitos (v.g. vida, integridade fsica, liberdade, no-discriminao), a atuao

    estatal feita exclusivamente por meio de leis no-penais pode no ser suficiente

    efetividade da proteo. No sistema europeu, o primeiro precedente a esse

    respeito foi X. and Y. v. The Netherlands29, um caso de abuso sexual de uma

    adolescente com deficincia mental, no qual a Corte Europia frisou que a

    proteo conferida pela lei civil em caso de ilcitos como os cometidos contra Y

    insuficiente. (...) Efetiva dissuaso indispensvel nesta rea e s pode ser

    alcanada atravs de provises criminais; com efeito, por meio dessas

    provises que o assunto normalmente regulado. 28 Frisou-se [durante o julgamento da ADC] que, na seara internacional, a Lei Maria da Penha seria harmnica com o que disposto no art. 7, item c, da Conveno de Belm do Par (Artigo 7. Os Estados Partes condenam todas as formas de violncia contra a mulher e convm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, polticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violncia e a empenhar-se em: ... c. incorporar na sua legislao interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessrias para prevenir, punir e erradicar a violncia contra a mulher, bem como adotar as medidas administrativas adequadas que forem aplicveis) e com outros tratados ratificados pelo pas. Sob o enfoque constitucional, consignou-se que a norma seria corolrio da incidncia do princpio da proibio de proteo insuficiente dos direitos fundamentais. Sublinhou-se que a lei em comento representaria movimento legislativo claro no sentido de assegurar s mulheres agredidas o acesso efetivo reparao, proteo e justia. (noticiado no Informativo 654 do STF, ed. de 06 a 10.02.12). 29 Corte Europia de DH, X e Y vs. Pases Baixos, sentena de 26 de maro de 1985. Srie A, No 91.

  • 19

    No sistema interamericano, a Corte IDH estabeleceu seu primeiro

    precedente na matria em 1988, no julgamento do caso do desaparecimento

    forado do dissidente poltico Angel Manfredo Velsquez-Rodrguez, cometido

    por agentes do Estado de Honduras30. Naquela ocasio, a Corte afirmou que a

    obrigao estatal prevista no art. 1o da Conveno Interamericana, consistente

    no dever de garantir o livre e pleno exerccio dos direitos reconhecidos pelo

    tratado, implica no dever dos Estados de organizar o aparato governamental e,

    em geral, todas as estruturas pelas quais o poder pblico exercido, de modo

    que eles sejam juridicamente capazes de garantir a livre e plena fruio dos

    DH. E prossegue:

    Como conseqncia desta obrigao, os Estados devem prevenir, investigar e punir qualquer violao de direitos reconhecidos pela Conveno e, alm disso, se possvel, buscar reparar o direito violado e providenciar a compensao cabvel pelos danos resultantes dessa violao.31

    A jurisprudncia posterior do sistema interamericano consolidada

    especialmente em casos de desaparecimentos forados e execues sumrias

    perpetrados pelos governos autoritrios que dominaram o continente (v.g.,

    dentre outros, os casos Blake vs. Guatemala32, Durand y Ugarte vs. Per33,

    Bmaca Velsquez vs. Guatemala34, Goibur y otros vs. Paraguay35, Almonacid

    Arellano y otros vs. Chile, La Cantuta vs. Per) - fundamenta deveres estatais de

    proteo penal tanto na obrigao geral de prevenir e reprimir a ocorrncia de

    graves violaes a DH (art. 1o da CADH) como na obrigao de proporcionar s

    30 Corte IDH, Caso Velsquez Rodrguez vs. Honduras. Mrito. Sentena de 29 de julho de 1988, par. 103. 31 Caso Velsquez Rodriguez vs. Honduras, par. 166, cit. 32 Corte IDH, Caso Blake vs. Guatemala. Mrito. Sentena de 24 de janeiro de 1988. 33 Corte IDH, Caso Durand y Ugarte vs. Per. Fundo. Sentena de 16 de agosto de 2000. 34 Este fenmeno supone, adems, el desconocimiento del deber de organizar el aparato del Estado para garantizar los derechos reconocidos en la Convencin. En razn de lo cual, al llevar a cabo o tolerar acciones dirigidas a realizar desapariciones forzadas o involuntarias, al no investigarlas de manera adecuada y al no sancionar, en su caso, a los responsables, el Estado viola el deber de respetar los derechos reconocidos por la Convencin y de garantizar su libre y pleno ejercicio83, tanto de la vctima como de sus familiares, para conocer el paradero de aqulla. (par. 129 da sentena). 35 Corte IDH, Caso Goibur y otros vs. Paraguay. Fundo, Reparaes e Custas. Sentena de 22 de setembro de 2006.

  • 20

    vtimas um recurso efetivo contra atos que violem seus direitos fundamentais.

    Nessa hiptese, a Corte IDH interpretou os arts. 8o e 25 da Conveno para

    conferir tambm aos familiares das vtimas: (...) el derecho a que la desaparicin y muerte de estas ltimas sean efectivamente investigadas por las autoridades del Estado; se siga un proceso contra los responsables de estos ilcitos; en su caso se les impongan las sanciones pertinentes, y se reparen los daos y perjuicios que dichos familiares han sufrido.36

    A natureza cogente das obrigaes estatais em matria penal

    envolvendo certas violaes a DH (notadamente execues sumrias e

    desaparecimentos forados) ressaltada em diversos precedentes, dentre os

    quais cita-se La Cantuta vs. Per37, Almonacid Arellano vs. Chile38, Goibur e

    outros vs. Paraguai39; Chitay Nech e outros vs. Guatemala40 e Ibsen Crdenas e

    Ibsen Pea vs. Bolivia41, alm, claro, da prpria sentena proferida no caso

    Gomes Lund vs. Brasil.

    No caso Goibur, julgado em 2006, a Corte IDH delineou a

    possibilidade de controle jurisdicional de convencionalidade da proteo penal

    insuficiente conferida a certos direitos, ao julgar que o CP paraguaio no

    tipificava adequadamente as condutas de desaparecimento forado e tortura:

    [E]l Tribunal considera que si bien los tipos penales vigentes en el CP paraguayo sobre tortura y desaparicin forzosa permitiran la penalizacin de ciertas conductas que constituyen actos de esa naturaleza, un anlisis de los mismos permite observar que el Estado las tipific de manera menos comprehensiva que la normativa internacional aplicable. El Derecho Internacional establece un estndar mnimo acerca de una correcta tipificacin de esta clase de conductas y los elementos mnimos que la misma debe observar, en el entendido de que la persecucin penal es una va fundamental para prevenir futuras violaciones de derechos humanos. Es

    36 Corte IDH,Caso Durand y Ugarte vs. Per. Fundo. Sentena de 16 de agosto de 2000, p. 130. 37 Corte IDH,Caso La Cantuta vs. Per. Mrito, Reparaes e Custas. Sentena de 29 de novembro de 2006. 38 Corte IDH,Caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile. Excees Preliminares, Mrito, Reparaes e Custas. Sentena de 26 de setembro de 2006. 39 Corte IDH, Caso Goibur e outros vs. Paraguai, cit., par. 84. 40 Corte IDH, Caso Chitay Nech e outros vs. Guatemala. Excees Preliminares, Mrito, Reparaes e Custas. Sentena de 25 de maio de 2010, Srie C, N 212, par. 193. 41 Corte IDH,Caso Ibsen Crdenas e Ibsen Pea vs. Bolvia. Mrito, Reparaes e Custas. Sentena de 01 de setembro de 2010. Srie C, N 217, par. 197.

  • 21

    decir, que los Estados pueden adoptar una mayor severidad en el tipo especfico para efectos de una mejor persecucin penal de esos delitos, en funcin de lo que consideren una mayor o mejor tutela de los bienes jurdicos protegidos, a condicin de que al hacerlo no vulneren esas otras normas a las que estn obligados. Adems, la sustraccin de elementos que se consideran irreductibles en la frmula persecutoria establecida a nivel internacional, as como la introduccin de modalidades que le resten sentido o eficacia, pueden llevar a la impunidad de conductas que los Estados estn obligados bajo el Derecho Internacional a prevenir, erradicar y sancionar.

    A partir da anlise dos tratados de DH e da jurisprudncia

    internacional relacionada matria, possvel identificar as seguintes

    obrigaes positivas dos Estados em matria de proteo a DH atravs do

    sistema penal: a) dever de tipificar certas condutas como ilcitos criminais; b)

    dever de promover uma investigao sria, imparcial e minuciosa dos fatos,

    assumida pelo Estado como obrigao sua, e no como nus da vtima; c) dever

    de promover a persecuo penal, em juzo, dos autores das violaes (adotada

    especialmente no sistema interamericano); d) dever de cooperar com outros

    Estados na persecuo de crimes transnacionais; e) dever de estabelecer

    jurisdio criminal sobre violaes cometidas em seus territrios.

    preciso fazer especial referncia nfase dada pelo direito

    internacional dos DH aos deveres estatais relacionados s vtimas das violaes

    a DH. Tais deveres incluem: a) dever de proteger testemunhas e vtimas contra

    intimidaes e outras formas de vitimizao secundria; b) dever de garantir que

    os interesses e preocupaes das vtimas sejam apresentados e levados em

    conta em procedimentos criminais; c) dever de assegurar que as vtimas sejam

    informadas de todas as decises relevantes relativas ao seu caso; d) dever de

    assegurar proteo fsica e psicolgica e assistncia social s vtimas das

    violaes.

    nesse contexto, de crescente positivao no Direito Internacional

    Pblico das obrigaes de proteo a DH por meio dos sistemas nacionais de

    justia criminal, que a sentena da Corte IDH no caso Gomes Lund deve ser

    compreendida.

  • 22

    2. Pontos resolutivos da sentena relacionados persecuo penal de graves violaes a DH cometidas durante o regime militar. Obrigaes dirigidas ao MPF.

    A posio adotada pela 2CCR a respeito do cumprimento, pelo MPF,

    dos pontos resolutivos relacionados persecuo penal das graves violaes a

    DH cometidas por agentes do regime ditatorial est sistematizada em dois

    documentos homologados pelos membros da Cmara no ano de 2011, referidos

    como Documento 1 e Documento 242.

    No documento n.o 1, de 21 de maro de 2011, a 2CCR reiterou o

    dever do MPF de, na qualidade de titular exclusivo da ao penal pblica,

    cumprir, na maior medida possvel, os deveres impostos ao Estado brasileiro

    relacionados persecuo penal das graves violaes a DH cometidas no

    mbito da represso poltica a dissidentes do regime militar. Tais deveres esto

    assim sistematizados no documento:

    No que tange s atribuies criminais do MPF, a Corte IDH determinou ao Brasil conduza eficazmente a investigao penal para esclarecer os fatos, para definir as correspondentes responsabilidades penais e para impor efetivamente as sanes penais cabveis. Esta obrigao deve ser cumprida pelo Brasil em um prazo razovel, e as autoridades brasileiras devem adotar os seguintes critrios: a) levar em conta o padro de violaes de DH existente na poca, a complexidade dos fatos apurados, e o contexto em que os fatos ocorreram; b) evitar omisses no recolhimento da prova e seguir todas as linhas lgicas de investigao; c) identificar os agentes materiais e intelectuais do desaparecimento forado e da execuo extrajudicial de pessoas; d) no aplicar a Lei de Anistia aos agentes de crimes; e) no aplicar prescrio, irretroatividade da lei penal, coisa julgada, ne bis in idem ou qualquer excludente similar de responsabilidade criminal para eximir-se do cumprimento da obrigao determinada pela Corte; f) garantir que as autoridades competentes realizem, ex officio, as

    42 Includos no CD-R anexo.

  • 23

    investigaes criminais correspondentes obrigao determinada pela Corte e responsabilizem os agentes culpados. Para este efeito, devem ter a seu alcance e utilizar todos os recursos logsticos e cientficos necessrios para recolher e processar as provas; devem ter acesso garantido documentao e informao necessrias para elucidar os fatos e concluir, com presteza, as investigaes e aes criminais que esclaream o que ocorreu pessoa morta e s vtimas de desaparecimento forado; g) garantir a segurana das pessoas que participem da investigao, tais como familiares das vtimas, as testemunhas e os operadores de justia; h) assegurar a no realizao de atos que impliquem obstruo ao andamento do processo investigativo. 5. O Brasil deve assegurar o pleno acesso dos familiares das vtimas a todas as etapas da investigao e do julgamento dos responsveis, de acordo com a lei brasileira e as normas da Conveno Americana. Alm disso, os resultados dos respectivos processos devero ser publicamente divulgados, para que a sociedade brasileira conhea os fatos e seus perpetradores. 6. Finalmente, o Estado deve garantir que as aes penais movidas contra quem ou tenha sido funcionrio militar seja processada e julgada na jurisdio ordinria, e no no foro militar.43

    Para cumprir de maneira eficaz seu dever constitucional e a deciso

    da Corte Interamericana, o MPF deve, ainda segundo o documento, assegurar

    apoio institucional a seus membros com atribuio sobre cada caso concreto,

    inclusive com a definio de recursos logsticos e cientficos necessrios para

    recolher e processar as provas (...), acessar a documentao e informao

    pertinentes, (...) investigar os fatos denunciados, e conduzir, com eficincia, as

    aes e investigaes essenciais para esclarecer o que ocorreu a mortos e

    desaparecidos.

    O Documento n.o 244, homologado pela 2CCR em 03.10.11, ratifica as

    concluses constantes do documento anterior e acrescenta ainda, a propsito

    das obrigaes em matria penal dirigidas ao Estado brasileiro, as seguintes

    observaes: a) o MPF deve dar incio investigao criminal para

    43 Documento 1, item 4, p. 03. Anexo. Disponvel tambm em: 44 Anexo. Disponvel tambm em:

  • 24

    responsabilizar os agentes das condutas violadoras de DH em episdios

    abrangidos pela deciso da Corte, e para identificar suas vtimas; b) para tanto,

    necessrio o estabelecimento de um plano de atuao criminal que defina as

    atividades e o trabalho a ser feito. Este plano de atuao dever ser

    coordenado, no mbito do MPF, pela 2CCR, sem olvidar, em momento algum, a

    inabalvel independncia funcional dos PR com atribuio natural para atuar em

    cada caso. (...) O intuito o de buscar que as decises e as respectivas

    responsabilidades sejam institucionalizadas, dentro da ideia de compartilhar

    institucionalmente as decises mais relevantes dos PR, segundo o princpio

    constitucional da unidade, que rege o MPF; c) o planejamento da persecuo

    penal deve-se valer da jurisprudncia internacional e comparada, especialmente

    referida pelo Direito Internacional dos DH. Na medida do possvel (...) devem ser

    consideradas as solues jurdico-penais adotadas por outros pases latino-

    americanos ou de semelhante tradio continental, que enfrentaram problemas

    similares.; d) para fins penais, independentemente do que se entenda por

    graves violaes de DH, a deciso da Corte IDH estabelece parmetros

    suficientes para o enquadramento penal das condutas luz do Direito Penal

    Internacional, cabendo ao MPF fazer a opo correta, que ser sustentada

    perante o Judicirio brasileiro; e) o planejamento da atuao do MPF deve

    abranger, necessariamente, a identificao e anlise dos casos que sero

    imediatamente objeto de persecuo penal, sem prejuzo do progressivo

    cumprimento da deciso da Corte e da observncia do princpio da

    obrigatoriedade da ao penal.

    2.1. Inexistncia de conflito real entre a ADPF 153 e a sentena de Gomes Lund.

    A posio adotada pelo GTJT e pelos procuradores naturais das

    aes penais propostas que os pontos resolutivos 3 e 9 da sentena de

    Gomes Lund no so incompatveis com a deciso proferida pelo STF no

    julgamento da ADPF 153, no mbito da qual se declarou a constitucionalidade

  • 25

    da lei que concedeu anistia aos que cometeram crimes polticos, ou conexos

    com estes, no perodo compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de

    agosto de 1979.

    Como bem observou Andr de Carvalho Ramos professor do

    Departamento de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade

    de So Paulo - o conflito entre as decises apenas aparente e pode ser

    solucionado pela via hermenutica, por meio da aplicao da teoria do duplo

    controle, segundo a qual os DH, em nosso sistema jurdico, possuem uma dupla

    garantia: o controle de constitucionalidade nacional e o controle de

    convencionalidade internacional. Qualquer ato ou norma deve ser aprovado

    pelos dois controles, para que sejam respeitados os direitos no Brasil, anota

    Ramos.

    No caso da Lei de Anistia, o STF efetuou o controle de

    constitucionalidade da norma de 1979, mas no se pronunciou a respeito da

    compatibilidade da causa de excluso da punibilidade com os tratados

    internacionais de DH ratificados pelo Estado brasileiro. Ou seja, no efetuou

    at porque no era esse o objeto da ao o chamado controle de

    convencionalidade da norma:

    [O] STF, que o guardio da Constituio (...) exerce o controle de constitucionalidade. Por exemplo, na ADPF 153, a maioria dos votos decidiu que a anistia aos agentes da ditadura militar a interpretao adequada da Lei de Anistia e esse formato amplo de anistia que foi recepcionado pela nova ordem constitucional. De outro lado, a Corte de San Jos a guardi da CADH e dos tratados de DH que possam ser conexos. Exerce, ento, o controle de convencionalidade. Para a Corte Interamericana, a Lei de Anistia no passvel de ser invocada pelos agentes da ditadura. Mais: sequer as alegaes de prescrio, bis in idem e irretroatividade da lei penal gravior merecem acolhida. Com base nessa separao v-se que possvel dirimir o conflito aparente entre uma deciso do STF e da Corte de San Jos. (...) No caso da ADPF 153, houve o controle de constitucionalidade. No caso Gomes Lund, houve o controle de convencionalidade. A anistia aos agentes da ditadura, para subsistir, deveria ter sobrevivido intacta aos dois controles, mas s passou (com votos contrrios, diga-se) por um, o controle de constitucionalidade. Foi destroada no controle de convencionalidade. Por sua vez, as teses defensivas de prescrio, legalidade penal estrita etc.,

  • 26

    tambm deveriam ter obtido a anuncia dos dois controles. Como tais teses defensivas no convenceram o controle de convencionalidade e dada a aceitao constitucional da internacionalizao dos DH, no podem ser aplicadas internamente.45

    A posio doutrinria de Andr Ramos foi acolhida pela 2a CCR no

    Documento 1 j citado, no qual se advoga a necessidade de se buscar uma

    soluo conciliatria voltada ao cumprimento da sentena de Gomes Lund, uma

    vez que o corolrio natural do reconhecimento de um tribunal internacional

    cumprir suas sentenas. Para no cumprir as obrigaes de persecuo penal

    contidas na sentena da Corte, afirma o documento, seria necessrio suscitar

    no STF a declarao de inconstitucionalidade do reconhecimento da jurisdio

    da Corte ou pedir interpretao conforme Constituio, com o objetivo de

    definir se as sentenas da Corte s devem ser cumpridas se estiverem

    alinhadas com a interpretao do STF.:

    preciso definir se o Brasil pode manter o reconhecimento da jurisdio da Corte e da CADH e, ao mesmo tempo, decidir no cumprir a sentena da Corte com base no argumento de que inconstitucional ou ofensivo competncia do STF. (...) A propsito, a Corte tem decidido que no possvel a denncia restrita do ato brasileiro de 1998 que reconheceu a jurisdio da Corte. Neste caso, restaria ao Brasil seguir o caminho de Trinidad e Tobago, que denunciou a CADH (art. 78 da Conveno), mas persistiria com a obrigao internacional de cumprir todas as sentenas de casos propostos por violaes ocorridas at um ano aps a data da denncia. Neste caso, continuaria a ter a obrigao internacional de cumprir a sentena do caso Gomes Lund.46

    Por esses motivos, a 2CCR e o GTJT entendem que no h

    incompatibilidade entre as decises judiciais da Corte IDH e do STF a respeito

    da Lei 6.683/79, uma vez que o tipo controle efetuado pelas duas decises

    diverso, o primeiro incidente sobre a compatibilidade da anistia concedida a

    agentes estatais com a CR, e o segundo sobre a validade do mesmo ato com

    referncia CADH. A conciliao das duas decises, por meio da aplicao da

    45 Andr de Carvalho Ramos, Crimes da Ditadura Militar: a ADPF 153 e a Corte IDH in Luiz Flvio Gomes e Valrio de Oliveira Mazzuoli (coord.), Crimes da Ditadura Militar - Uma anlise luz da jurisprudncia atual da Corte IDH, So Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, pp. 217-218. 46 Documento 1, cit.

  • 27

    teoria do duplo controle, foi adotada pela 2CCR nos dois documentos

    homologados a respeito do assunto e pelos procuradores de So Paulo e

    Marab nas quatro aes penais ajuizadas pelo MPF at a presente data.

  • 28

    B. O desaparecimento forado como crime de sequestro permanente e no exaurido.

    Quando confrontada com os parmetros institudos pelos tratados de

    DH e pela jurisprudncia do sistema interamericano, a legislao penal brasileira

    revela-se lacunar no que se refere tipificao de elementares e circunstncias

    da conduta definida internacionalmente como desaparecimento forado de

    pessoas. Os projetos em andamento no Congresso Nacional ainda no foram

    definitivamente aprovados, e o Estado brasileiro ainda no concluiu o processo

    de ratificao das Convenes Internacional e Interamericana sobre o

    Desaparecimento Forado de Pessoas47.

    A Corte IDH, na sentena de Gomes Lund, apontou a lacuna do

    direito interno, e instou o Estado brasileiro a dar prosseguimento tramitao

    legislativa e a adotar, em prazo razovel, todas as medidas necessrias para

    ratificar a Conveno Interamericana sobre o Desaparecimento Forado de

    Pessoas. Enquanto cumpre essa medida, acrescenta a sentena, o Estado

    dever adotar todas aquelas aes que garantam o efetivo julgamento e, se for

    o caso, punio dos fatos constitutivos do desaparecimento forado, atravs dos

    mecanismos existentes no direito interno.48

    47 Quando confrontada com os parmetros institudos pelos tratados de DH e pela jurisprudncia do sistema interamericano, a legislao penal brasileira revela-se lacunar no que se refere tipificao de elementares e circunstncias da conduta definida internacionalmente como desaparecimento forado de pessoas. Os projetos em andamento no Congresso Nacional para a tipificao do delito ainda no foram definitivamente aprovados. Ademais, o Estado brasileiro nem mesmo concluiu o processo de ratificao e promulgao das Convenes Interamericana sobre o Desaparecimento Forado de Pessoas e Internacional para a Proteo de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forado. Com efeito, a Conveno Interamericana foi aprovada em 09.06.94, em Belm do Par, tendo o Brasil subscrito seu texto no dia 10.06.94. O Congresso Nacional levou 7 anos para aprov-la, o que ocorreu com o Decreto Legislativo n 127, de 08.04.11. Desde ento, aguarda-se a expedio de decreto presidencial para sua promulgao em mbito interno. Da mesma forma, o Estado brasileiro no depositou perante a OEA a sua ratificao. No que diz respeito Conveno Internacional para para a Proteo de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forado, firmada em Paris no dia 06.02.07 e nessa mesma data assinada pelo Brasil, o seu texto foi aprovado pelo Congresso Nacional mediante o Decreto Legislativo n 661, de 01.09.10. Porm, a exemplo do que ocorre com a Conveno Interamericana, a Presidncia da Repblica no emitiu o decreto determinando sua incorporao ao direito interno (promulgao). Todavia, o Brasil para fins externos depositou sua ratificao perante as Naes Unidas em 29.11.10. 48 Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, cit., par. 192.

  • 29

    Na avaliao dos casos investigados e denunciados, a 2CCR e o

    GTJT adotaram como critrio o parmetro fornecido pelo PGR e pelo STF no

    julgamento das Extradies 974, 1150 e 1278, todas requeridas pela Argentina.

    Na Extradio 974, o parecer do PGR sustenta que o pedido no poderia ser

    apreciado com base na Conveno Interamericana sobre o Desaparecimento de

    Pessoas, uma vez que o Estado brasileiro ainda no ratificou o tratado. Todavia,

    segundo o parecer49, o requisito da dupla tipicidade, exigido pelo art. 77, inciso

    II, da Lei 6.815, est ao menos parcialmente satisfeito em relao a condutas

    que, no direito brasileiro, subsumem-se ao tipo penal do sequestro - no caso

    especfico, a deteno seguida do desaparecimento de dissidentes polticos no

    Estado argentino, nos anos 1970:

    De acordo com as informaes prestadas pelo Estado requerente, o extraditando participou do sequestro de diversas pessoas, principalmente em 1976, as quais no foram libertadas at os dias de hoje. A despeito do tempo decorrido, no se pode afirmar que estejam mortas porque seus corpos jamais foram encontrados de modo que ainda subsiste a ao perpetrada pelo extraditando.50

    O argumento desenvolvido pelo PGR foi repetido pelo relator

    designado para o acrdo da Extradio 974, Ministro Ricardo Lewandowski:

    embora tenham passado mais de trinta e oito anos do fato imputado ao

    extraditando, as vtimas at hoje no apareceram, nem tampouco os respectivos

    corpos, razo pela qual no se pode cogitar, por ora, de homicdio.

    A impossibilidade de se considerar, ao menos em juzo cognitivo no

    exauriente, a cessao da permanncia do sequestro em conseqncia da

    morte presumida da vtima foi discutida de forma bastante aprofundada pelo

    Ministro Cezar Peluso, para quem, em caso de desaparecimento de pessoas

    sequestradas por agentes estatais, somente uma sentena na qual esteja fixada

    a data provvel do bito apta a fazer cessar a permanncia do crime de

    sequestro pois, sem ela, o homicdio no passa de mera especulao, incapaz

    de desencadear a fluncia do prazo prescricional:

    49 Cf. CD-R anexo. 50 STF. Ext./974, cit.

  • 30

    [P]ara que exsurja considervel presuno legal de morte, no basta o mero juzo de extrema probabilidade da morte de quem estava em perigo de vida (art. 7o, inc. I, do CC), havendo mister a existncia de sentena que, depois de esgotadas as buscas e averiguaes, produzidas em procedimento de justificao judicial, fixe a data provvel do falecimento ( nico). (...) Em outras palavras, essa norma no incide na espcie, simplesmente porque se lhe no reuniram os elementos de seu suporte ftico (fattispecie concreta), donde a idia de homicdios no passar, ainda no plano jurdico, de mera especulao, incapaz de desencadear fluncia do prazo prescricional. E incapaz de o desencadear ainda por outro motivo de no menor peso. que, falta de sentena que, como predica o art. 7o, nico, do CC, deve fixar a data provvel do falecimento, bem como na carncia absoluta de qualquer outro dado ou prova a respeito, no se saberia quando entraram os prazos de prescrio da pretenso punitiva de cada uma das mortes imaginadas ou de todas, que poderiam dar-se, como si acontecer, em datas diversas, salva cerebrina hiptese de execuo coletiva! E, tirando o que nasce de fabulaes, de modo algum se poderia sustentar, com razovel pretenso de consistncia, hajam falecido todas as pessoas que, segundo a denncia, teriam sido sequestradas, e, muito menos, assentar-lhes as datas provveis de cada bito.51 Na Extradio 1.15052, por sua vez, o STF no apenas tipificou o

    desaparecimento forado de militantes polticos argentinos como sequestro

    qualificado, como tambm afirmou que a natureza permanente e atual do delito

    afasta a regra da prescrio, nos termos do art. 111, inciso III, do CP:

    Extradio Instrutria. Priso preventiva decretada pela justia argentina. Tratado especfico. Requisitos atendidos. Extraditando investigado pelos crimes de homicdio qualificado pela traio (homicdio agravado por aleivosia e por el numero de participes) e sequestro qualificado (desaparicin forzada de personas). Dupla tipicidade atendida. Extino da punibilidade dos crimes de homicdio pela prescrio. Procedncia. Crime permanente de sequestro qualificado. Inexistncia de prescrio. Alegaes de ausncia de documentao. Crime militar ou poltico, tribunal de exceo e eventual indulto: improcedncia. Extradio parcialmente deferida. (...)

    51 Argumenta ainda o Ministro Peluso, no mesmo julgado: Ora, no h, ao propsito das hipotticas mortes das vtimas dos sequestros que se no resumem s onze pessoas nominadas no sumrio do processo (), e cuja mdia de idade, poca do desaparecimento, eram de pouco mais de vinte anos (), o que afasta certa probabilidade de morte natural -, nenhuma sentena, seja de declarao de ausncia, seja de declarao de morte presumida, de modo que, ainda quando, ad argumentandum tantum, se pudera, em simples conjectura, cogitar de circunstncias desconhecidas nestes autos, que, aliadas ao s decurso do tempo, induzissem alguma probabilidade do falecimento, faltariam, para caracterizao do corpo de delito indireto, os requisitos exigidos pelo prprio art. 7 de nosso CC. 52 STF. Ext./1150. Rel. Min. Crmen Lcia, j. 19.05.11, DJE n 116, 16.06.11.

  • 31

    4. Requisito da dupla tipicidade, previsto no art. 77, inc. II, da Lei n. 6.815/1980 satisfeito: fato delituoso imputado ao Extraditando correspondente, no Brasil, ao crime de sequestro qualificado, previsto no art. 148, 1, inc. III, do CP. (...) 6. Crime de sequestro qualificado: de natureza permanente, prazo prescricional comea a fluir a partir da cessao da permanncia e no da data do incio do sequestro. Precedentes. 7. Extraditando processado por fatos que no constituem crimes polticos e militares, mas comuns. (...) 11. Extradio parcialmente deferida pelos crimes de desaparecimento forado de pessoas, considerada a dupla tipicidade do crime de sequestro qualificado.

    Assim, a natureza permanente e atual dos desaparecimentos

    forados promovidos por agentes da ditadura militar afasta no apenas a

    prescrio penal, mas tambm a prpria extino da punibilidade concedida pela

    Lei de Anistia, pois a Lei 6.683/79 limita o alcance temporal da norma aos crimes

    cometidos no perodo compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de

    agosto de 1979. Uma vez que, segundo o entendimento explicitado pelo STF,

    s possvel afirmar a cessao do sequestro aps a localizao do paradeiro

    da vtima, ou aps a prolao de sentena que depois de esgotadas as buscas

    e averiguaes (...) fixe a data provvel do falecimento, a conduta dos agentes

    estatais responsveis por privar ilegalmente os desaparecidos polticos de sua

    liberdade, ocultando de todos (e especialmente de seus familiares) o seu atual

    paradeiro, caracteriza-se, em tese, como crime de sequestro no exaurido.

    Em termos processuais penais, o critrio utilizado pelo STF no

    julgamento das trs extradies o de que a comprovao do eventual

    homicdio da vtima sequestrada dependeria, na forma do que dispe o art. 159

    do CPP, de exame necroscpico direto ou indireto, identificando, dentre outros

    elementos, a causa da morte e a data provvel do falecimento. Ausente o corpo

    de delito direto ou indireto do crime contra a vida, no seria possvel afirmar a

    progresso criminosa do sequestro para o homicdio.

    A tese institucional da 2CCR foi adotada nas quatro aes penais

  • 32

    ajuizadas e acolhida pelos magistrados federais de 1o grau em trs delas53.

    Alm dos procuradores naturais das aes, tambm os PRRs Orlando Martello

    (PRR3) e Paulo Queiroz (PRR1) sustentaram a tese nos pareceres54

    elaborados, respectivamente, no RESE contra a deciso que rejeitou a ao

    penal proposta pelo crime de sequestro da vtima Aluzio Palhano e no HC

    impetrado por Sebastio Curi contra a deciso de recebimento da denncia na

    ao penal n.o 0001162-79.2012.4.01.3901.

    Contra a tese do MPF, objetou o magistrado que rejeitou a denncia

    oferecida em relao a Palhano que a Lei Federal 9140/95 teria encerrado a

    permanncia do sequestro ao reconhecer a vtima como morta, para todos os

    efeitos legais. Em resposta a esse argumento, o PRR Orlando Martello afirmou

    que:

    Realmente, a Lei 9.140/95 reconheceu como morto, dentre outros, Aluzio Palhano Pedreira Ferreira, que figura como vtima no presente caso. Entretanto, a respeito do alcance da Lei 9.140/95, a exposio dos motivos que orientaram a edio do diploma cristalina em restringi-los a efeitos de ndole reparatria da lacuna gerada aos direitos fundamentais de titularidade de vtimas e familiares em funo da atuao dos agentes estatais. Alm disso, resta claro que essa lei no encerra certeza quanto ao bito; ao contrrio, atrela a declarao do artigo 1 obteno do assentamento do bito, que no se d ex officio, mas mediante requerimento dos familiares. Verifique-se o trecho da exposio de motivos elaborada pelo Ministrio da Justia, da Fazenda e do Planejamento (EM 352, de 28.08.1995) e encaminhada Presidncia da Repblica, que contm essa explicao: Embora, nesse campo, nada comporte certeza slida, a lista arrola 136 pessoas que foram detidas por agentes, ao que tudo indica, pertencentes aos vrios braos do que se chamou sistema de segurana do regime de exceo que o Brasil viveu, e, a partir da, delas nunca mais se teve qualquer notcia. Caracterizou-se, assim, um ilcito de gravidade mxima praticado por agentes pblicos ou a servio do poder pblico: deviam guardar quem tinham sob sua responsabilidade e no o fizeram. Tal circunstncia serve de embasamento tico-jurdico para o Estado, como entidade perene e acima da temporalidade dos governos ou regimes, responsabilizar-se pelo dano causado e procurar reparar o procedimento condenvel de seus agentes independentemente da motivao que tenha determinado suas condutas. Objetivamente os representantes do Estado ou investidos de seus poderes no poderiam ter o comportamento materializado por atos e aes que afrontaram leis, mesmo as de exceo, ento vigorantes. A declarao de morte do anexo do art. 1, materializar-

    53 Cf. item V, infra. 54 Anexados no CD-R.

  • 33

    se- pelo assentamento de bito, se essa for a vontade dos familiares, pois nesse Projeto de Lei, salvo a declarao do art. 1, nada compulsrio ou ex-ofcio, pois, todas as possibilidades, nela contidas, dependem que os familiares, por vontade prpria, decidam obt-las. Assim, o familiar, com legitimidade para isso, requerer ao oficial do Registro Civil o assentamento de morte. Assim, se a materializao necessria aplicabilidade da declarao legal de bito no se verificou neste caso, no h que se valer de tal previso legal, ainda mais para fins de impedir a apurao de responsabilidade penal pelo desaparecimento da vtima. Como acertadamente sustentou o MP em sua manifestao preliminar, a norma em questo foi editada com o simples objetivo de favorecer os familiares dos desaparecidos polticos, possibilitando-lhes o recebimento de reparaes pecunirias e tambm a prtica de atos de natureza civil, notadamente nas reas de famlia e sucesses. No tinha em sua origem nenhuma pretenso de eliminar os bens jurdicos liberdade e integridade fsica da vtima, tutelados pelo art. 148 do CP. Outrossim, a edio de tal lei no tem o condo de afastar a exigncia do comando do artigo 158 do CPP, que impe, no mbito penal, a produo de prova da materialidade da infrao que deixar vestgios, como seria a morte de Aluzio Palhano Pedreira Ferreira. Alis, se durante a instruo probatria houver a devida comprovao da morte da vtima, o MPF poder, nos termos do artigo 384 do CPP, aditar a denncia, readequando-a ao tipo do homicdio, em concurso ou no com o sequestro, seguido da ocultao do cadver.55

    55 O parecer consta do CD-R anexo.

  • 34

    C. O Desaparecimento Forado como crime imprescritvel e insuscetvel de anistia

    Em 07 de fevereiro de 2011, a 2CCR invocou a sentena proferida

    pela Corte IDH no caso Gomes Lund para afirmar a imprescritibilidade e a

    vedao concesso de anistia a graves violaes a DH cometidas durante o

    regime de exceo:

    Em voto em separado, no julgamento j invocado, o Juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas ressaltou que (...) a jurisprudncia, o costume e a doutrina internacionais consagram que nenhuma lei ou norma de direito interno, tais como as disposies acerca da anistia, as normas de prescrio e outras excludentes de punibilidade, deve impedir que um Estado cumpra a sua obrigao inalienvel de punir os crimes de lesa-humanidade, por serem eles insuperveis nas existncias de um indivduo agredido, nas memrias dos componentes de seu crculo social e nas transmisses por geraes de toda a humanidade.56

    Nas quatro aes criminais iniciadas at o presente, o MPF sustentou

    a tese de que os sequestros cometidos pelos denunciados, j eram, poca do

    incio da execuo, qualificados como crime contra a humanidade, e, tambm

    por esse motivo, imprescritveis e insuscetveis de anistia.

    Segundo o entendimento do GTJT, a qualificao dos sequestros de

    dissidentes polticos cometidos por agentes do Estado de Exceo como crimes

    contra a humanidade decorre de normas cogentes do direito costumeiro57

    internacional, que incluem o desaparecimento forado de pessoas cometido no

    contexto de um ataque sistemtico ou generalizado a uma populao civil, a

    essa categoria de crime internacional, para, dentre outros efeitos, submet-lo

    jurisdio universal, e declar-lo insuscetvel de anistia ou prescrio.

    Nas aes penais ajuizadas at o presente, o MPF afirmou que a

    56 2CCR, Voto 1022/2010 da PRR Mnica Nicida Garcia, nos autos dos Procedimentos 1.00.000.007053/2010-86 e Apenso 1.00.000.0118017/2010-01 (includo no CD-R anexo). 57 O costume fonte de direito internacional e, nos termos do art. 38 da Conveno de Viena sobre Direito dos Tratados, possui fora normativa vinculante mesmo em relao a Estados que no tenham participado da formao do tratado que reproduza a regra consuetudinria.

  • 35

    privao ilegal58 e clandestina da liberdade das vtimas, cometida por agentes

    estatais civis e militares envolvidos na represso a inimigos internos do

    regime59, seguida da recusa desses agentes em prestarem informaes sobre o

    paradeiro das vtimas, com o propsito de lhes negar a proteo da lei por um

    prolongado perodo de tempo, j era, ao tempo do incio da execuo, um ilcito

    criminal no direito internacional sobre o qual no incidem as regras de prescrio

    e anistia virtualmente estabelecidas pelo direito interno de cada Estado membro 58 A priso das vtimas referidas nas aes penais e de mais de uma centena de pessoas desaparecidas durante o regime de exceo ilegal porque nem mesmo na ordem jurdica vigente na data de incio da conduta delitiva agentes de Estado estavam legalmente autorizados a sequestrar pessoas e depois faz-las desaparecer. O art. 153, 12, da Constituio de 1969 estabelece claramente que a priso ou deteno de qualquer pessoa ser imediatamente comunicada ao juiz competente, que relaxar, se no for legal. Mesmo o Ato Institucional n.o 5, de 13 de dezembro de 1968, apesar de ter suspendido a garantia do habeas corpus para os crimes polticos, no excluiu o dever de comunicao da priso, nem autorizou a manuteno de suspeitos, em estabelecimentos oficiais e por tempo indeterminado, sob a responsabilidade de agentes pblicos. Portanto, ainda que a pretexto de combater supostos terroristas, no estavam os agentes pblicos envolvidos autorizados a sequestrar as vtimas, mant-las secretamente em estabelecimentos oficiais ou clandestinos e depois dar-lhes um paradeiro conhecido somente pelos prprios autores do delito. 59 Transcreve-se, a propsito, a reflexo feita por Marcelo Rubens Paiva: [U]ma pergunta tem sido evitada: por que, afinal, existem desaparecidos polticos no Brasil? Durante o regime militar, os exilados, no exterior, faziam barulho; a imagem do pas poderia ser prejudicada, atrapalhando o andamento do Milagre Brasileiro, que dependia da entrada de capital estrangeiro. No Brasil, o Exrcito perdia o combate contra a guerrilha: assaltos (expropriaes) a bancos, bombas em quartis, e cinco guerrilheiros comandados pelo ex-capito Carlos Lamarca rompem o cerco de 1.700 soldados comandados pelo coronel Erasmo Dias, no Vale do Ribeira. Estava claro que, para combater a chamada subverso, o governo deveria organizar um aparelho repressivo paralelo, com total liberdade de ao. criado o DOI-CODI. Jornalistas, compositores, estudantes, professores, atrizes, simpatizantes e guerrilheiros so presos. Muitos torturados. Passa a ser fundamental para a sobrevivncia das prprias organizaes de guerrilha soltar companheiros ou simpatizantes presos. A partir de 1969, comeam os sequestros de diplomatas. (...) Para os agentes da represso, passam a ser prioritrios a eliminao e o desaparecimento de presos. O ato consciente: um extermnio. Encontraram a soluo final para os opositores do regime, largamente utilizada pelas ditaduras chilena, a partir de 1973, e argentina, a partir de 1976; o Brasil foi um dos primeiros pases a sofrer um golpe militar inspirado nas regras estabelecidas pela Guerra Fria, e uma passada de olho na lista de desaparecidos brasileiros revela que a maioria desaparece a partir de 1970. Se no Brasil a idia da soluo final tivesse sido aventada antes, no seriam apenas 150 pessoas, mas, como no Chile e na Argentina, milhares. (...) O tema, portanto, no est restrito a uma centena de famlias. Quando leio (...) que uma fonte militar de alta patente diz que os ministros no vo se opor ao projeto da Unio, mas temem que essa medida desencadeie um processo pernicioso nao, me pergunto se os danos j no foram causados nos anos 70. Existem desaparecidos e desaparecidos, dos que combateram no Araguaia aos que morreram nos pores da Rua Tutia e da Baro de Mesquita, dos que pegaram em armas aos que apenas faziam oposio, como meu pai, que no era filiado a qualquer organizao, preso em 1971. Cada corpo tem uma histria: uns foram enterrados numa vala comum do Cemitrio de Perus, outros foram deixados na floresta amaznica, uns decapitados, outros jogados no mar. (Brasil procura superar soluo final in Janana Teles (org.). Mortos e Desaparecidos Polticos: reparao ou impunidade, So Paulo, Humanitas, 2001, pp. 53-54).

  • 36

    da comunidade das naes.

    A reprovao jurdica internacional conduta imputada aos agentes

    denunciados e a imprescritibilidade da ao penal a ela correspondente esto

    evidenciadas, segundo entendimento firmado pelo GTJT, pelas seguintes provas

    do direito costumeiro cogente anterior ao incio da execuo do delito: a) Carta

    do Tribunal Militar Internacional (1945)60; b) Lei do Conselho de Controle No. 10

    (1945)61; c) Princpios de Direito Internacional reconhecidos na Carta do Tribunal

    de Nuremberg e nos julgamentos do Tribunal, com comentrios (International

    Law Commission, 1950)62; d) Relatrio da Comisso de Direito Internacional da

    ONU (1954)63; e) Resoluo n. 2184 (Assembleia Geral da ONU, 1966)64; f)

    60 Agreement for the Prosecution and Punishment of the Major War Criminals of the European Axis, and Charter of the International Military Tribunal. London, 08.08.1945. Disponvel em: . O acordo estabelece a competncia do tribunal para julgar crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade namely, murder, extermination, enslavement, deportation, and other inhumane acts committed against any civilian population, before or during the war; or persecutions on political, racial or religious grounds in execution of or in connection with any crime within the jurisdiction of the Tribunal, whether or not in violation of the domestic law of the country where perpetrated. 61 Nuremberg Trials Final Report Appendix D, Control Council Law n. 10: Punishment of Persons Guilty of War Crimes, Crimes Against Peace and Against Humanity, art. II. Disponvel em: . Segundo o relatrio: Each of the following acts is recognized as a crime (): Crimes against Humanity. Atrocities and offenses, including but not limited to murder, extermination, enslavement, deportation, imprisonment, torture, rape, or other inhumane acts committed against any civilian population, or persecutions on political, racial or religious grounds whether or not in violation of the domestic laws of the country where perpetrated). 62 Texto adotado pela Comisso de Direito Internacional e submetido Assembleia Geral das Naes Unidas como parte do relatrio da Comisso. O relatrio foi publicado no Yearbook of the International Law Commission, 1950, v. II e est disponvel em: (The crimes hereinafter set out are punishable as crimes under international law: (a) Crimes against peace: (); (b) War crimes: (); (c) Crimes against humanity: Murder, extermination, enslavement, deportation and other inhuman acts done against any civilian population, or persecutions on political, racial or religious grounds, when such acts are done or such persecutions are carried on in execution of or in connection with any crime against peace or any war crime.). 63 Covering the Work of its Sixth Session, 28 July 1954, Official Records of the General Assembly, Ninth Session, Supplement No. 9 Article 2, paragraph 11 (previously paragraph 10), disponvel em (The text previously adopted by the Commission () corresponded in substance to article 6, paragraph (c), of the Charter of the International Military Tribunal at Nurnberg. It was, however, wider in scope than the said paragraph in two respects: it prohibited also inhuman acts committed on cultural grounds and, furthermore, it characterized as crimes under international law not only inhuman acts committed in connexion with crimes against peace or war crimes, as defined in that Charter, but also such acts committed in connexion with all other offences defined in article 2 of the draft Code. The Commission decided to enlarge the scope of the paragraph so as to make the punishment of the acts enumerated in the paragraph independent of whether or not they are committed in

  • 37

    Resoluo n. 2202 (Assembleia Geral da ONU, 1966)65; g) Resoluo n.o 2338

    (Assembleia Geral da ONU, 1967)66; h) Resoluo n.o 2583 (Assembleia Geral

    da ONU, 1969)67; i) Resoluo n.o 2712 (Assembleia Geral da ONU, 1970)68; j)

    Resoluo n.o 2840 (Assembleia Geral da ONU, 1971)69; k) Princpios de

    Cooperao Internacional na identificao, priso, extradio e punio de

    pessoas condenadas por crimes de guerra e crimes contra a humanidade

    (Resoluo 3074, da Assembleia Geral das Naes Unidas, 1973)70.

    connexion with other offences defined in the draft Code. On the other hand, in order not to characterize any inhuman act committed by a private individual as an international crime, it was found necessary to provide that such an act constitutes an international crime only if committed by the private individual at the instigation or with the toleration of the authorities of a State.) 64 Disponvel em: . O artigo 3 da Resoluo condena, como crime contra a humanidade, a poltica colonial do governo portugus, a qual viola os direitos polticos e econmicos da populao nativa em razo do assentamento de imigrantes estrangeiros nos territrios e da exportao de trabalhadores africanos para a frica do Sul. 65 Disponvel em: . O artigo 1 da Resoluo condena a poltica de apartheid praticada pelo governo da frica do Sul como crime contra a humanidade. 66 Disponvel em: . A resoluo reconhece ser imprescindvel e inadivel afirmar, no direito internacional (...), o princpio segundo o qual no h prescrio penal para crimes de guerra e crimes contra a humanidade e recomenda que nenhuma legislao ou outra medida que possa ser prejudicial aos propsitos e objetivos de uma conveno sobre a inaplicabilidade da prescrio penal a crimes de guerra e crimes contra a humanidade seja tomada na pendncia da adoo de uma conveno sobre o assunto pela Assembleia Geral. 67 Disponvel em . A resoluo convoca todos os Estados da comunidade internacional a adotar as medidas necessrias cuidadosa investigao de crimes de guerra e crimes contra a humanidade, bem como priso, extradio e punio de todos os criminosos de guerra e pessoas culpadas por crimes contra a humanidade que ainda no tenham sido processadas ou punidas. 68 Disponvel em . A resoluo lamenta que numerosas decises adotadas pelas Naes Unidas sobre a questo da punio de criminosos de guerra e pessoas que cometeram crimes contra a humanidade ainda no estavam sendo totalmente cumpridas pelos Estados e expressa preocupao com o fato de que, no presente, como resultado de guerras de agresso e polticas e prticas de racismo, apartheid, colonialismo e outras ideologias e prticas similares, crimes de guerra e crimes contra a humanidade estavam sendo cometidos. A resoluo tambm convoca os Estados que ainda no tenham aderido Conveno sobre a Inaplicabilidade da Prescrio a Crimes de Guerra e Crimes contra a Humanidade a observar estritamente as provises da Resoluo 2583 da Assembleia Geral da ONU. 69 Disponvel em . A resoluo reproduz os termos da Resoluo anterior, de nmero 2712. 70 ONU. Princpios de Cooperao Internacional na identificao, priso, extradio e punio de pessoas culpadas por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Adotados pela Resoluo 3074 da Assembleia Geral em 03.12.1973 (War crimes and crimes against humanity, wherever they are committed, shall be subject to investigation and the persons against whom there is evidence that they have committed such crimes shall be subject to tracing, arrest, trial and, if found guilty, to punishment). Disponvel em:

  • 38

    Na Conveno das Naes Unidas sobre a No-Aplicabilidade da

    Prescrio a Crimes de Guerra e Crimes contra a Humanidade (1968)71, a

    imprescritibilidade se estende aos crimes contra a humanidade, cometidos em

    tempo de guerra ou em tempo de paz e definidos como tais no Estatuto do

    Tribunal Militar Internacional de Nuremberg de 8 de agosto de 1945 e

    confirmados pelas Resolues n 3 e 95 da Assembleia Geral das Naes

    Unidas, de 13 de fevereiro de 1946 e 11 de dezembro de 194672.

    Especificamente, o uso da expresso desaparecimento forado de

    pessoas difundiu-se no direito internacional a partir dos milhares de casos de

    sequestro, assassinato e ocultao dos cadveres de dissidentes polticos

    contrrios aos regimes ditatoriais instalados na Amrica Latina. Um dos

    primeiros registros internacionais do termo est na Resoluo 33/173, da

    Assembleia Geral das Naes Unidas73 (1978). A Resoluo, editada um ano

    antes da lei brasileira de anistia, convoca os Estados a: a) aplicar os recursos

    apropriados busca das pessoas desaparecidas e investigao rpida e

    imparcial dos fatos; b) assegurar que agentes policiais e de segurana e suas

    organizaes, sejam passveis de total responsabilizao (fully accountable)

    pelos atos praticados no exerccio de suas funes e, especialmente, pelos

    abusos que possam ter causado o desaparecimento forado de pessoas e

    outras violaes a DH; c) assegurar que os DH de todas as pessoas, inclusive

    aquelas submetidas a qualquer forma de deteno ou aprisionamento, sejam

    totalmente respeitadas.

    desnecessrio dizer que, malgrado as recomendaes

    internacionais dirigidas ao Estado brasileiro desde meados da dcada de 70,

    nenhuma investigao criminal efetiva a respeito dos desaparecimentos

    . 71 Adotada pela Assembleia Geral da ONU atravs da Resoluo 2391 (XXIII), de 26.11.1968. Entrou em vigor no direito internacional em 11.11.70. 72 Nota-se, sobretudo a partir dos trabalhos da Comisso de Direito Internacional da ONU, da dcada de 1950, e das resolues da Assembleia Geral da organizao, em meados dos anos 60, a ntida inteno de se prescindir do elemento contextual guerra na definio dos crimes contra a humanidade. 73 Disponvel em:

  • 39

    forados ocorridos durante o regime de exceo havia sido feita74 at a prolao

    da sentena da Corte IDH no caso Gomes Lund. Isso no significa, obviamente,

    que as condutas antijurdicas cometidas por agentes estatais durante o regime

    militar sejam indiferentes para o direito penal internacional: obviamente no o

    so, como se depreende dos documentos oficiais acima referidos, os quais, no

    entender do GTJT e dos procuradores naturais autores das aes penais

    ajuizadas, so aptos a demonstrar o costume cogente internacional e as

    consequncias dele aqui extradas.

    No mbito do sistema interamericano de proteo a DH, a Corte IDH,

    desde o precedente Velsquez Rodrguez vs. Honduras, de 1987, vem

    repetidamente afirmando a incompatibilidade entre as garantias previstas na

    CADH e as regras de direito interno que excluem a punibilidade dos

    desaparecimentos forados:

    150. El fenmeno de las desapariciones constituye una forma compleja de violacin de los derechos humanos que debe ser comprendida y encarada de una manera integral. 153. Si bien no existe ningn texto convencional en vigencia, aplicable a los Estados Partes en la Convencin, que emplee esta calificacin, la doctrina y la prctica internacionales han calificado muchas veces las desapariciones como un delito contra la humanidad (Anuario Interamericano de Derechos Humanos, 1985, pp. 369, 687 y 1103). La Asamblea de la OEA ha afirmado que "es una afronta a la conciencia del Hemisferio y constituye un crimen de lesa humanidad" (AG/RES.666, supra).75

    Igual entendimento pode ser encontrado nos seguintes julgados da

    Corte IDH: Blake vs. Guatemala76; Barrios Altos vs. Peru77; Bmaca Velsquez

    vs. Guatemala78; Trujillo Oroza v. Bolvia79; Irms Serrano Cruz vs. El

    74 Cf. nota 2, supra. 75 Corte IDH, Caso Velsquez Rodrguez vs. Honduras. Excees Preliminares. Sentena de 26 de junho de 1987. Srie C, N 1. 76 Corte IDH,Caso Blake vs. Guatemala. Excees Preliminares. Sentena de 2 de julho de 1996. Srie C, N 27 77 Corte IDH,Caso Barrios Altos vs. Peru. Reparaes e Custas. Sentena de 30 de novembro de 2001. Srie C, N 109. 78 Corte IDH,Caso Bmaca Velsquez vs. Guatemala. Reparaes e Custas. Sentena de 22 de fevereiro de 2002. Srie C, N 91. 79 Corte IDH,Caso Trujillo Oroza vs. Bolvia. Reparaes e Custas. Sentena de 27 de fevereiro de 2002. Srie C, N 92.

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    Salvador80; Massacre de Mapiripn vs. Colmbia81; Goibir vs. Paraguai82; La

    Cantuta vs. Peru83; Radilla Pacheco vs. Mxico84 e Ibsen Crdenas e Ibsen

    Pea vs. Bolvia85.

    A sentena do caso Gomes Lund vs. Brasil86 bastante clara no que

    se refere ao dever cogente do Estado brasileiro em promover a investigao e a

    responsabilizao criminal dos autores desses desaparecimentos. Tendo em

    vista a aplicabilidade do julgado para os casos investigados pelo MPF,

    importante transcrever mais extensamente trechos da sentena:

    137. Desde sua primeira sentena, esta Corte destacou a importncia do dever estatal de investigar e punir as violaes de DH. A obrigao de investigar e, se for o caso, julgar e punir, adquire particular importncia ante a gravidade dos crimes cometidos e a natureza dos direitos ofendidos, especialmente em vista de que a proibio do desaparecimento forado de pessoas e o correspondente dever de investigar e punir aos responsveis h muito alcanaram o carter de jus cogens. () 140. Alm disso, a obrigao, conforme o Direito Internacional, de processar e, caso se determine sua responsabilidade penal, punir os autores de violaes de DH, decorre da obrigao de garantia, consagrada no artigo 1.1 da Conveno Americana. (...). (...) 147. As anistias ou figuras anlogas foram um dos obstculos alegados por alguns Estados para investigar e, quando fosse o caso, punir os responsveis por violaes graves aos DH. Este Tribunal, a Comisso Interamericana de DH, os rgos das Naes Unidas e outros organismos universais e regionais de proteo dos DH pronunciaram-se sobre a incompatibilidade das leis de anistia, relativas a graves violaes de DH com o Direito Internacional e as obrigaes internacionais dos Estados. 148. Conforme j fora antecipado, este Tribunal pronunciou-se sobre a incompatibilidade das anistias com a Conveno Americana em casos de graves violaes dos DH relativos ao Peru (Barrios Altos e La Cantuta) e

    80 Corte IDH,Caso Irms Serrano Cruz vs. El Salvador. Excees Preliminares. Sentena de 23 de novembro de 2004. Srie C, N 118. 81 Corte IDH,Caso Massacre de Mapiripn vs. Colmbia. Mrito, Reparaes e Custas. Sentena de 15 de setembro de 2005. Srie C, N 134. 82 Corte IDH,Caso Goibur y otros vs. Paraguay. Fundo, Reparaes e Custas. Sentena de 22 de setembro de 2006. Srie C, N 153. 83 Corte IDH,Caso La Cantuta vs. Peru. Mrito, Reparaes e Custas. Sentena de 29 de novembro de 2006. Srie C, N 162. 84 Corte IDH,Caso Radilla Pacheco vs. Mxico. Excees Preliminares, Mrito, Reparaes e Custas. Sentena de 23 de novembro de 2009. Srie C, N 209. 85 Corte IDH,Caso Ibsen Crdenas e Ibsen Pea vs. Bolvia. Mrito, Reparaes e Custas. Sentena de 01 de setembro de 2010. Srie C, N 217. 86 Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, cit.

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    Chile (Almonacid Arellano e outros). 149. No Sistema Interamericano de DH, do qual Brasil faz parte por deciso soberana, so reiterados os pronunciamentos sobre a incompatibilidade das leis de anistia com as obrigaes convencionais dos Estados, quando se trata de graves violaes dos DH. Alm das mencionadas decises deste Tribunal, a CIDH concluiu, no presente caso e em outros relativos Argentina, Chile, El Salvador, Haiti, Peru e Uruguai, sua contrariedade com o Direito Internacional. A Comisso tambm r