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Endossos Institucionais

ABORDA - Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos REDUC - Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos

Koinonia – Presença Ecumênica e Serviço Organização de Diretos Humanos Projeto Legal

Programa da Saúde do Trabalhador Adolescente (NESSA/UERJ) Instituto Carioca de Criminologia

Associação Ipê Rosa Articulação de ONG’s Aids de Goiás

Grupo Oxumaré Núcleo de Estudos sobre Redução de Danos em Goiás

Programa de Redução de Danos Águia Morena Rizoma Princípio Ativo – Por uma nova política de drogas

Casa Servo de Deus Grupo Salvhe – Solidariedade e Apoio na luta contra o vírus da hepatites

Grupo Solidariedade é Vida Movimento de Redução de Danos do Maranhão

Ananda - Associação Interdisciplinar de Estudos sobre Plantas Cannabaceae ALIA - Associação Londrinense Interdisciplinar de Aids

REBRARD - Rede Brasiliense de Redução de Danos do Distrito Federal

Endossos Pessoais Gilberta Acselrad: Núcleo de Estudos Drogas/Aids e Direitos Humanos (LPP/UERJ)

Juçara Portugal Santiago: ICW Brasil – Comunidade Internacional de Mulheres Vivendo com HIV/Aids

Este relatório é fruto do esforço de ativistas e militantes em distintas organizações sociais. Ele traduz uma

leitura da realidade das políticas de drogas no Brasil, construída a partir de uma perspectiva crítica para com os direcionamentos hegemonicamente constituídos para fazer frente ao complexo fenômeno das

drogas na contemporaneidade. Trata-se de um olhar multidisciplinar, pois compreendemos que as drogas ultrapassam e articulam distintos campos do conhecimento humano. A compreensão deste fenômeno,

bem como a intervenção na realidade, não pode prescindir das contribuições de todas as ciências.

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Sumário

1. Introdução: A nova estrutura do Direito Penal das drogas no Brasil: antecedentes e estatuto político-criminal da Lei 11.343/2006 ........ 04

1.1 A Lei do Crime Organizado no cenário global da repressão ao narcotráfico .................................................................. 05

1.2 O Regime Integralmente Fechado plus ......................... 07

1.3 O Estatuto Político-Criminal da Lei 11.343/06: retórica preventiva, ênfase repressiva ............................................. 09

1.4 Considerações finais ...................................................... 11

2. Políticas de drogas e violência estrutural .................................... 13

2.1 Incremento do comércio ilegal de armas, genocídio de jovens, em especial de jovens afros-descendentes ............... 19

2.2 Incremento da participação infanto-juvenil em atividades de trabalho perigoso do plantio, distribuição e proteção da cadeia produtiva das substâncias qualificadas como ilícitas . 22

2.3 Incremento da criminalização de setores das camadas populares com aumento da população encarcerada e precrização dos serviços do sistema judiciário .................... 24

2.4 Uma face rural ignota dessa violência armada, letal, provocada pela política de drogas repressiva e belicista ..... 24

2.5 Considerações finais .................................................... 26

3. Políticas de saúde para pessoas que usam álcool e outras drogas no Brasil ............................................................................................ 28

3.1 Comunidades Terapêuticas: uma resposta diante do vazio estatal? ................................................................ 31

3.2 Sistema público: desafios e avanços para a efetivação da universalidade e da integralidade ............................ 33

3.3 Lei Seca para o álcool no Brasil – Avanço ou retrocesso? ................................................................... 37

3.4 À guisa de conclusão .............................................. 39

4. Políticas de drogas e cidadania ................................................. 42

4.1 O Movimento Antiproibicionista no Brasil: tensões com o instituído ........................................................... 42

4.2 O Movimento social de Redução de Danos: tensões instituintes ................................................................... 45

5. Referências ............................................................................... 48

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1. A nova estrutura do Direito Penal das drogas no Brasil: antecedentes e estatuto político-criminal da Lei 11.343/20061

A necessidade de reforma integral do texto da Lei de Drogas de 1976 vinha sendo debatida no Congresso Nacional brasileiro desde o início da década de 90. Segundo as exposições de motivos dos inúmeros projetos que tramitavam concomitantemente, a defasagem conceitual e operacional do estatuto impunha reformulação global. Ocorre que os posicionamentos quanto a disfuncionalidade da Lei 6.368/76 pendiam da crítica antiproibicionista, com apresentação de projetos com medidas despenalizadoras e descriminalizantes, ao diagnóstico da necessidade de incremento da punitividade.

O principal texto em discussão entre os congressitas foi o denominado Projeto Murad (Projeto de Lei 1.873/91), base da Lei 10.409/02. Fruto das conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Narcotráfico de 1991, instaurada para investigação da Conexão Rondônia – rede de tráfico de drogas existente na Amazônia que demarcava a posição brasileira de país trânsito do comércio internacional –, o projeto marcou a política de recrudescimento do sistema de controle das teias de comércio, estabelecendo novas categorias de delitos, sobretudo daquelas condutas associadas às organizações criminosas e suas políticas de financiamento.

Paralelas ao Projeto Murad, duas propostas firmadas pelo Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) direcionavam a política brasileira de drogas para além do repressivismo, readequando as figuras criminais e as penas previstas na Lei 6.368/76 desde abordagem centrada na lógica da redução de danos.

A pluralidade de propostas acabou por harmonizar o texto original do Projeto Murad, integrando-lhe algumas concepções diversas sobre o problema, cujo resultado foi a distinção substancial dos juízos de reprovabilidade legal relativos às condutas de comércio e porte para uso pessoal. Deste processo parlamentar nasceu a Lei 10.409/02.

O texto da Lei 10.409/02 aprovado pelo Congresso Nacional, apesar de manter o caráter delitivo da conduta de porte para uso pessoal2, optava pelo rito e pelas alternativas pré-processuais estabelecidas na lei que regula o procedimento nos delitos de menor potencialidade ofensiva (Lei 9.099/95), adotando explícitas medidas descarcerizantes. Em relação às hipóteses de comércio, porém, reproduzia a incriminação das condutas previstas no art. 12 da Lei 6.368/76, mantendo as mesmas quantidade e espécie de pena3. A incrementação da punitividade vinha na definição de

1 Professor Titular de Direito Penal e Criminologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto alegre, Brasil. O presente relato é síntese do apresentado no livro “A Política Criminal das Drogas no Brasil”, 4. ed., Rio de janeiro: Lumen Juris, 2007. 2 “Art. 20. Adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, em pequena quantidade, a ser definida pelo perito, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Penas e medidas aplicáveis: as previstas no art. 21. 3 “Art. 14. Importar, exportar, remeter, traficar ilicitamente, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, financiar, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar a consumo e oferecer, ainda que gratuitamente, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, sem autorização do órgão competente ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena: reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e multa”.

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novas figuras típicas, notadamente da incriminação autônoma do agente financiador de grupo ou associação destinada ao tráfico4.

Contudo, após a aprovação no âmbito legislativo, a íntegra do capítulo referente aos delitos e às penas recebeu veto da Presidência da República, entrando em vigor apenas sua parte processual. O veto da matéria penal derivou, na prática forense, situação anômala e inédita: a aplicação conjugada de dois textos com fundamentos e historicidade diversas. Assim, no que tange ao processo penal, a Lei 10.409/02 obteve plena vigência, restando a estrutura material do direito penal (delitos e penas) atrelada à antiga Lei 6.368/76.

Cabe, portanto, para esboçar o complexo quadro das reformas legais e das práticas repressivas que desembocam na nova Lei de Drogas brasileira (Lei 11.343/06), realizar o percurso que define seu rito processual inquisitório (Lei 10.409/02 e Lei 9.034/05 – Lei do Crime Organizado), e que densifica os suplícios na estrutura da execução da pena (Lei 10.792/03 – Regime Disciplinar Diferenciado). Isto porque a emergência da Lei 11.343/06 ocorre sob o signo da repressão às organizações criminosas responsáveis pelo comércio ilegal de entorpecentes. Os textos em análise, reflexo do amplo processo de descodificação da matéria operado pelas reformas parciais, consolidam, pela importância que o estatuto de drogas tem na definição do perfil do sistema penal brasileiro, a desjudicialização material da Justiça Criminal brasileira.

1.1 A Lei do Crime Organizado no Cenário Global da Repressão ao Narcotráfico

A Lei brasileira de combate ao crime organizado nasce inspirada nos modelos normativos italianos de repressão às organizações mafiosas. Todavia, em decorrência do discurso econômico-transnacional da década de 90, centrado no controle geopolítico dos cartéis colombianos (Cartel de Cali e de Medelín)5 e em face das especificidades da criminalidade nacional, seu discurso ficou atrelado preponderantemente às questões relativas ao tráfico ilícito de entorpecentes e de armas. Variações momentâneas ocorreram na identificação das organizações criminosas voltadas à prática de delitos econômicos e contra a administração pública.

Apesar deste direcionamento punitivo, é importante perceber a dificuldade de identificação de tais fenômenos em nossa realidade, pois “todo diagnóstico social é muito problemático e discutível no Brasil, como sabemos, porque temos uma carência quase absoluta de investigações e dados empíricos. Apesar disso, talvez possamos

4 “Art. 15. Promover, fundar ou financiar grupo, organização ou associação de 3 (três) ou mais pessoas que, atuando em conjunto, pratiquem, reiteradamente ou não, algum dos crimes previstos nos arts. 14 a 18 desta Lei: Pena: reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos, e multa”. 5 Rosa del Olmo lê a divulgação da idéia dos cartéis na década de 90 a partir da teoria da rotulação e verifica que tais identificadores compõem sistema de metarregras empregados aleatoriamente e com enorme grau de sensacionalismo. Ao referir-se ao caso paradigmático do Cartel de Medelín, acredita simplesmente que o termo era aplicado a “quatro rudes rapazes colombianos”. Contudo, como faz parte do sistema de metarregras, a classificacão produz graves efeitos em termos de recrudescimento do sistema punitivo: “Eles são de fato muito rudes e muito ricos [Cartel de Medelín], porém, esta publicidade sensacionalista construída em torno deles, apenas os converte, ao menos no discurso, em ‘Super-homens do inferno’, o que acaba glorificando-os e contribui para a proliferação de novelas escritas na América Latina sobre suas vidas” (OLMO, O Impacto da Guerra Americana à Droga sobre o Povo e as Instituições Democráticas da América Latina, p. 592).

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arriscar que o crime organizado em nosso território, ou seu lado mais saliente, esteja ligado ao tráfico de drogas e de armas, corrupção (fraude contra o erário público ou contra a coletividade), furto e roubo de automóveis e roubo de cargas.”6

O problema de identificação empírica de redes de criminalidade organizada, não apenas no Brasil, produz inúmeras dificuldades interpretativas, fato que em matéria de poder punitivo amplia as malhas de criminalização. Hassemer aduz que “os especialistas ainda não conseguem chegar a um consenso sobre no que ela [criminalidade organizada] realmente consiste. A participação de bandos bem organizados ou a atividade criminosa em base habitual e profissional não parecem critérios suficientemente claros (...). O que a criminalidade organizada realmente é, como ela se desenvolve, quais suas estruturas e perspectivas futuras, não sabemos precisar. A definição atualmente em circulação é por demais abrangente e vaga, sugere uma direção em vez de definir um objeto, não deixa muita coisa de fora.”7 A indefinição dos parâmetros de identificação do fenômeno é reproduzida na própria Lei 9.034/95, cujo texto é omisso e desprovido de quaisquer elementos classificatórios/definitórios próprios, dado que se percebe pela remessa do conceito de crime organizado ao tipo de quadrilha ou bando previsto no art. 288 do Código Penal (art. 1º, Lei 9.034/95).8

Doutrinariamente, a ausência de vítimas individuais (vitimização difusa), a escassa visibilidade dos danos causados e o modus operandi gerencial (internacionalização, profissionalização e divisão de trabalho) apontariam critérios relativamente seguros de conceituação do crime organizado em contraposição à criminalidade tradicional (criminalidade de massa).

Entretanto a projeção do olhar à experiência das drogas impossibilita qualquer fechamento conceitual, visto que “(...) a política de drogas é um dos poucos campos onde a criminalidade organizada e a criminalidade de massas se encontram: a C. O. [criminalidade organizada] compreende o comércio internacional de estupefacientes; por outro lado, o pequeno tráfico e outras formas de criminalidade que os dependentes de droga praticam para manterem seu vício constituem uma boa fatia da criminalidade de massas.”9

É na densificação da estrutura processual inquisitória, porém, que a Lei 9.034/95 fomenta a reestruturação do processo penal relativo ao tráfico de entorpecentes. O ingrediente mais decisivo desta trágica experiência é a recriação do juiz inquisidor, na definição de não apenas da gestão, mas da produção, em diligência

6 GOMES, Crime Organizado, p. 126. 7 HASSEMER, Segurança Pública no Estado de Direito, p. 24. 8 Na tentativa de fechamento da tipicidade aberta criada pela Lei 9.034/95, a doutrina propôs alguns requisitos mínimos necessários para sua configuração. Em relação ao número de pessoas, o pressuposto seria aquele estabelecido no art. 288 do Código Penal. Não obstante, seria fundamental a presença de alguns dos seguintes indicadores: (a) organização estável e permanente; (b) previsão de acumulação de riqueza indevida; (c) hierarquia estrutural; (d) uso de meios tecnológicos sofisticados; (e) recrutamento de pessoas e divisão funcional das atividades; (f) conexão estrutural ou funcional com o poder público; (g) ampla oferta de prestações sociais (clientelismo); (h) divisão territorial das atividades; (i) alto poder de intimidação; (j) real capacidade de fraude difusa; e, (l) conexão local, regional, nacional ou internacional com outra organização criminosa (GOMES, Crime..., pp. 70-77). Para Hassemer, p. ex., o elemento estruturador da criminalidade organizada seria o poder de corrupção das instituições encarregadas da repressão (HASSEMER, Perspectivas de uma Moderna Política Criminal, p. 95). 9 HASSEMER, Segurança..., p. 35.

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pessoal e sigilosa, da prova (elementos de convicção, art. 3º), em qualquer fase da persecução criminal (investigação e cognição) (art. 2º).

Aliada à marca inquisitória no principal elemento de caracterização dos sistemas processuais (gestão da prova), a Lei 9.034/95 institui o retardamento do flagrante com a ação controlada (art. 2º, II), cria possibilidades amplas de acesso aos dados fiscais, bancários, financeiros e eleitorais (art. 2º, III), possibilita interceptação ambiental e de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos (art. 2º, IV) e autoriza a infiltração de agentes da polícia nas organizações (art. 2º, V). Outrossim, determina a identificação criminal compulsória (art. 5º), premia a delação (art. 6º), proíbe a liberdade provisória com ou sem fiança (art. 7º) e nega a possibilidade de apelar em liberdade (art. 9º).

A introdução em nossa legislação de “(...) algumas novidades no processo penal, novidades que provêm da Idade Média e agora viraram pós-modernas”10, define o estilo de atuação dos operadores do direito na instrumentalização da política criminal beligerante. Assim, o pensamento defensivista, impregnado na cultura jurídica embriagada pelas legislações emergenciais, justifica a constante ruptura com os direitos e garantias fundamentais, sobretudo aquelas garantias processuais cuja finalidade é justamente estabelecer o limite da intervenção.11 Como lembra Fauzi Choukr, “o devido processo legal aplicado em sua integralidade passou a ser considerado como um formalismo incômodo (...)”, visto que a lei brasileira do crime organizado, no bojo das leis de exceção, cria “(...) nichos próprios de interpretação que desmoronam o incipiente labor de edificação da cultura da normalidade.”12

Pode-se, portanto, aderir com tranqüilidade às constatações de Cervini13 sobre a Lei 9.034/95: (a) trata-se nitidamente de legislação de emergência baseada na legislação italiana de exceção; (b) é inadequada às exigências constitucionais de tutela dos direitos e garantias fundamentais; (c) sacrifica os princípios da publicidade, devido processo legal e presunção de inocência; (d) recria sistema inquisitório; e (e) produz processos espetaculares, nos quais o sistema penal é visto como único instrumento de resolução de conflitos sociais.

1.2 O Regime Integralmente Fechado Plus

Em meados de 2003 a imprensa nacional passou a divulgar a tramitação no Congresso Nacional de Projeto de Lei cujo objetivo era a modificação da estrutura normativa da política penitenciária, com a instituição do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). A normativa criava, no caótico sistema penitenciário brasileiro, forma absolutamente diversa de apartação do preso rotulado como ameaça à segurança social.

10 ZAFFARONI, Globalização, Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito, p. 17. 11 Neste sentido, advoga Chiavario: “assim, é justamente a defesa da sociedade contra o crime organizado que sempre mais vezes é usada como justificação para a limitação de direitos e garantias individuais, que são também fundamentais (freqüentemente, e sobretudo com referência à esfera dos direitos ‘processuais’): com o suspeito – muitas vezes, infelizmente, fundado... – para o qual a luta contra as organizações criminais torna-se pouco mais que um pretexto para pressões autoritárias e até mesmo liberticidas” (CHIAVARIO, Direitos Humanos, Processo Penal e Criminalidade Organizada, p. 27). 12 CHOUKR, Processo Penal de Emergência, p. 139. 13 CERVINI, Nuevos Aportes al Analisis del Delito Organizado, pp. 248-254.

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O conteúdo do projeto apresentado causou espanto na comunidade jurídica vista a adoção explícita de formas absolutamente desumanas de execução da pena privativa de liberdade, especialmente aquela cumprida em regime fechado. Se a Lei do Crime Organizado e os dispositivos processuais da Lei 10.409/02 geravam juntamente à Lei dos Crimes Hediondos o incremento nos níveis de encarceramento (preventivo e executivo), bem como a ruptura com o sentido humanitário previsto na Lei de Execução Penal (LEP), a nova modalidade de execução cria espécie de regime integralmente fechado plus.

O projeto fora baseado em Portaria que o Governo do Estado de São Paulo havia instituído para controlar a série de incidentes ocorridos em seu sistema prisional (fugas, rebeliões e motins) durante o ano de 2002, sobretudo a megarrebelião provocada pela facção carcerária intitulada Primeiro Comando da Capital (PCC). A Portaria criava inúmeras restrições aos direitos dos presos considerados perigosos e definia severas sanções disciplinares àqueles identificados como membros de organizações criminosas. No entanto, o fato mais significativo e que impulsionou a federalização do RDD ocorreu em 2003, com o episódio Fernandinho Beira-Mar. A construção do anti-herói nacional personificado na figura do líder do Comando Vermelho (CV) agregou elemento para a implantação definitiva das medidas de maximização dos métodos de contenção.

Apesar da absoluta ilegalidade dos atos das Secretarias de Segurança de São Paulo e do Rio de Janeiro, pois não possuíam competência legal (critério de validade formal) para disciplinar a matéria, o RDD obteve ampla aplicação na condução da execução da pena dos suspeitos de participação em organizações criminosas, mormente aquelas envolvidas no tráfico de entorpecentes e de armas. Com forte apoio da imprensa, o Parlamento foi instigado a universalizar o regime diferenciado através de alteração na legislação federal.

A Lei 10.792/03 delimitou forma de execução da pena totalmente inédita, consagrando em Lei o suplício gótico vivido pelos condenados nos presídios brasileiros. Ao determinar medidas administrativas absolutamente lesivas dos direitos fundamentais, vinculando o ingresso do preso no regime diferenciado quando apresentar “alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade” (art. 52, § 1o, LEP) ou quando “recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando” (art. 52, § 2o, LEP), manifesta o assentimento dos Poderes Públicos com práticas arbitrárias, regularmente toleradas nas penitenciárias nacionais.

A possibilidade de impor ao preso o regime diferenciado ocorre não apenas quando da prática de faltas graves, mas, sobretudo, pela avaliação de conduta de risco à segurança pública, seja no cárcere ou em liberdade. Sancionado o preso (definitivo ou provisório) por falta grave ou sendo-lhe atribuído o rótulo de perigoso, poderá ser submetido ao regime diferenciado com as seguintes características: (a) duração de 360 (trezentos e sessenta) dias; (b) recolhimento em cela individual; (c) visitas semanais de duas pessoas, sem contar crianças, por 02 (duas) horas; (d) saída diária, por 02 (duas) horas, para banho de sol (art. 52, LEP).

A redução ao máximo das garantias processuais (direito de defesa) ao preso provisório e a imposição de barreiras à saída do sistema carcerário ao preso condenado fixa claramente a noção de inabilitação na execução penal brasileira. A reforma punitiva, nitidamente voltada à segregação e ao isolamento dos presos identificados

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como membros de organizações com participação no narcotráfico, ‘dobra’ a pena e ressignifica a disciplina carcerária.

1.3 O Estatuto Político-Criminal da Lei 11.343/06: Retórica Preventiva, Ênfase Repressiva

A inadequação histórica da Lei 6.368/76 após 30 anos de vigência, aliada ao amplo processo de descodificação do direito penal ocorrido durante a década de 90, tornaram absolutamente complexo o sistema brasileiro de controle de drogas ilícitas. A publicação de inúmeros estatutos penais que direta ou indiretamente afetam a política criminal de drogas e a tentativa frustrada de renovação normativa com publicação parcial do texto da Lei 10.409/02 ratificaram a ambigüidade e a contraditoriedade dos mecanismos de criminalização primária e secundária, expondo à sociedade civil e política a dificuldade das agências governamentais de desenvolvimento de política criminal razoavelmente coerente sobre drogas, seja proibicionista ou antiproibicionista.

Todavia, é possível perceber que as ações legais e administrativas – sobretudo as firmadas pelo Conselho Nacional Antidrogas (CONAD) nas versões e adendos aos Planos Nacionais Antidrogas (PANAD) –, embora expusessem de forma ambígua os objetivos e os instrumentos adequados à prevenção do uso e à repressão do comércio ilegal, acabavam por adequar a política criminal de drogas do Brasil àquela identidade histórica desenvolvida desde o advento da Lei 6.368/76. Outrossim, o sistema normativo extravagante correlato ao das drogas, apesar de intricado e dúbio, forneceu, direta ou indiretamente, importantes elementos de sustentação ao projeto de reforma, fornecendo condições de possibilidade para o advento da nova Lei de Drogas.

A sinalização da Lei 10.409/02 no sentido do incremento da repressão às inúmeras formas de comercialização e ao financiamento de organizações voltadas ao tráfico, paralelamente à recepção dos modelos de intervenção psiquiátrico-terapêutica em usuários e dependentes, projetaram a estrutura material (delitos e penas) e processual (investigação, processamento e julgamento) da Lei 11.343/06.

As condições internas favoráveis de reforma legal são legitimadas no plano externo pela consolidação hemisférica da ideologia da diferenciação. Natural, portanto, a adequação do novo estatuto ao discurso jurídico-político no que tange à forte repressão ao tráfico de entorpecentes e ao discurso médico-jurídico em relação ao usuário/dependente.

Embora perceptíveis substanciais alterações no modelo legal de incriminação, notadamente pelo desdobramento da repressão ao comércio ilegal em inúmeras hipóteses típicas e pelo processo de descarcerização da conduta de porte para uso pessoal, é possível afirmar que a base ideológica da Lei 11.343/06 mantém inalterado o sistema proibicionista inaugurado com a Lei 6.368/76, reforçando-o. Neste sentido, a lógica discursiva diferenciadora iniciada na década de 70 é consolidada no novo estatuto, em detrimento de projetos políticos alternativos (descriminalizadores) moldados a partir das políticas públicas de redução de danos.

O pêndulo estabelecido entre as graves sanções previstas aos sujeitos envolvidos individual ou organizadamente com o tráfico de drogas e a sutil implementação de medidas alternativas de terapêutica penal para usuários e dependentes, manifesta a lógica histórica da dupla face do proibicionismo: obsessão repressivista às hipóteses de comércio ilegal e idealização da pureza e da normalidade representada socialmente por condutas abstêmias (ideal da abstinência). Assim, o

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aumento desproporcional da punibilidade ao tráfico de drogas se encontra aliado e potencializa o projeto moralizador de abstinência imposto aos usuários de substâncias entorpecentes ou capazes de determinar dependência física ou psíquica.

Apesar de fundada na mesma base ideológica da Lei 6.360/76 (ideologia da diferenciação), é possível estabelecer importantes distinções entre os estatutos criminais. Se na Lei 6.368/76 há nítida sobreposição do discurso jurídico-político ao médico-jurídico pela instauração do discurso de eliminação do traficante (inimigo interno), cujo efeito foi densificar a repressão ao comércio ilícito e suavizar a resposta penal aos usuários e dependentes – notadamente após a edição da Lei 9.099/95 –, a Lei 11.343/06 nivela a importância dos tratamentos penais entre usuários e traficantes, criando dois estatutos autônomos com respostas punitivas de natureza distinta: alta repressão ao traficante de drogas, com imposição de severo regime de punibilidade (penas privativas de liberdade fixadas entre 05 e 15 anos); e patologização do usuário e do dependente com aplicação de penas e medidas.

Fundamental perceber, portanto, para que se possa dar a real dimensão às novas respostas punitivas trazidas pela Lei 11.343/06, que, apesar da crítica criminológica relativa ao fracasso da política hemisférica de guerra às drogas, não apenas a criminalização do comércio de entorpecentes e suas variáveis é mantida, como são aumentadas substancialmente as penas e restringidas hipóteses de incidência dos substitutos penais (v.g. penas restritivas de direito). Neste quadro, fundamental lembrar que “(...) as políticas contra as drogas na América Latina têm seguido os passos da ‘guerra contra as drogas’ proposta pelos EUA. Por esta abordagem, os governos pretendem livrar as sociedades das drogas com medidas repressivas. Após décadas de experiência, essa política colheu um retumbante fracasso. Mesmo assim, seus seguidores não se cansam de propor doses mais fortes do mesmo remédio.”14

Em relação ao porte para consumo pessoal, distante dos processos de descriminalização sustentados por políticas de redução de danos ocorridos em inúmeros países europeus nos últimos anos, têm-se a manutenção de sistema proibicionista estruturado na reciprocidade punitiva entre penas restritivas de direitos e medidas de segurança atípicas (medidas educacionais). Ofuscadas pelo sentido terapêutico, as medidas propostas enclausuram usuários e dependentes no discurso psiquiátrico-sanitarista, possibilitando diagnosticar que a pretensa suavização do tratamento penal ao usuário opera como inversão ideológica dos programas de redução de danos. Ou seja, apesar de estabelecer formalmente a impossibilidade de aplicação de pena carcerária aos sujeitos envolvidos com drogas – situação consolidada na realidade jurídica nacional desde a inclusão do porte para uso pessoal na categoria de delito de menor potencial ofensivo –, conserva mecanismos penais de controle (penas restritivas e medidas de segurança inominadas), com similar efeito moralizador e normalizador, obstruindo a implementação de políticas públicas saudáveis.

Conclui Rolim que “(…) experiências desse tipo [redução de danos] encerram verdades básicas que, entre nós, têm sido enterradas pelo discurso moralista dominante. O resultado é a ‘vegetação vingadora’ das quadrilhas de traficantes, dos massacres nas favelas, da superpopulação prisional, da ausência de alternativas de tratamento para os dependentes e da corrupção que atinge a polícia e se espalha por todas as instâncias de

14 ROLIM, A Síndrome da Rainha Vermelha, p. 174.

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poder. Por esses e outros efeitos, nunca foi tão evidente a necessidade de se mudar a política de drogas em nosso país.”15

1.4 Considerações Finais

A política criminal de drogas no Brasil, em sua expressão ideológica, legal e dogmática, demonstra a grande distância entre as funções declaradas (prometidas) e as funções realmente exercidas pelas agências de punitividade.

O Brasil, desde o início do século passado, mas principalmente a partir da década de sessenta, foi inserido no modelo transnacional de controle dos entorpecentes, adequando sua legislação e sua máquina administrativo-punitiva para saldar compromissos político-criminais assumidos com as agências centrais.

A Lei de Entorpecentes recentemente editada reforça o processo de globalização do controle social e reproduz em sua estrutura o rompimento gradual que as leis de emergência operam na principiologia constitucional do direito penal e do direito processual penal.

O processo de descodificação desestruturou totalmente a pretensão de rigidez, completude e coerência ínsita ao projeto de segurança jurídica forjado na Modernidade. Além das incoerências internas, nota-se que a Lei 11.343/06 criou dois estatutos penais absolutamente distintos, marcados pela ideologia da diferenciação, cujo direcionamento reforça os estereótipos de traficante e de dependente.

Com o advento da Lei 11.343/06, portanto, são reforçados no cotidiano repressivo os discursos distintos forjados na Lei 6.368/76 e que conduziram na segunda metade do século passado a política de repressão às drogas: o discurso médico-sanitário (estereótipo da dependência) e o discurso político-jurídico (estereótipo da criminalidade). Ambos proliferam a ideologia de diferenciação entre consumidor-doente e traficante-delinqüente, mantendo na contemporaneidade o padrão e a dinâmica das reformas das leis penais, processuais penais e executivas.

Todavia, para além da implementação dos estereótipos tradicionais, os discursos presentes na Lei de Entorpecentes fomentam a construção político-criminal da categoria inimigo – não-sujeito (de direitos) identificado com as pessoas envolvidas com o tráfico. Deflagra-se, no senso comum dos juristas e do homem de rua (every day theories), a idéia de políticas públicas de segurança pautadas pela lógica beligerante da eliminação dos incômodos. A ação conjunta dos mecanismos de salvaguarda pública (agências de punitividade) adquire, neste contexto, legitimidade repressiva cujos limites são dificilmente verificáveis e facilmente ultrapasados. Assim, a demonização dos envolvidos com drogas ocasionada pelo discurso maniqueísta fundamenta modelo político-criminal autônomo que passa a ser o tipo ideal da repressão criminal.

Durante a década de setenta as agências centrais identificaram como inimigos (externos) os produtores e exportadores de substâncias entorpecentes localizados nos países periféricos. A política repressiva derivada desta simplificação passou a influenciar diretamente a estrutura punitiva internacional. Como conseqüência, a ilusão do discurso central levou os países periféricos a estabelecer políticas extremamente autoritárias e dissociadas de sua realidade (marginal). A transnacionalização do 15 ROLIM, A Síndrome..., p. 175.

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controle, ao estabelecer padrões punitivos universais, não compreende e não respeita as autonomias culturais e políticas, gerando resposta repressiva em diafonia com os direitos e as garantias individuais. Ademais, ao incorporarem o modelo transnacionalizado, as agências da periferia identificam inimigos internos, proliferando a lógica da beligerância e densificando processos punitivos baseados na eliminação, na neutralização e na erradicação do elemento disfuncional (traficante, dependente, usuário).

A estrutura repressiva, portanto, passa a ser orientada através de falsas fragmentações da realidade. Todavia esta concepção não se restringe à prática das instituições e dos agentes que compõem o sistema punitivo, mas invade e integra elementos de cultura, recriando sistemas políticos (criminais) de exceção.

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2. Políticas de drogas e violência estrutural16

Há uma tradição nas ciências sociais no Brasil que o observa como um País no qual as relações sociais tendem a harmonia (Freire: 1933; Holanda: 1937). No entanto, a história das relações sociais, da Colônia aos dias atuais, indica a formação de uma nação na qual a concentração de renda, poder e conhecimento acompanha um conjunto de construções de relações de dominação e violação de direitos. A violência na dizimação das populações indígenas e no largo período da escravidão da população trasladada 16 Esta seção foi elaborada por Jorge Atílio Silva Iulianelli – doutor em Filosofia, assessor e coordenador de KOINONIA – Presença Ecumênica em Serviço, como contribuição desta instituição ao documento apresentado por ABORDA e REDUC em Beyond 2008, Viena 7-9 de junho.

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compulsoriamente da África e submetida a condições sub-humanas de atividade laboral. Não diferentes foram as condições de vida e trabalho das maiorias empobrecidas do País.

A opção das elites nacionais por um modelo de desenvolvimento dependente permitiu que o Brasil desenvolvesse, como chama Darcy Ribeiro (1992), seus moinhos de gente. Produziu-se uma sociedade da apartação social, na qual poucos são as convidadas e os convidados para o banquete dos incluídos socialmente. O Estado brasileiro, seu executivo e legislativo, esteve a serviço da manutenção dessa desigualdade social, produzindo a privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos. Este é um dos motivos pelos quais o sistema tributário nacional seja um dos poucos de caráter regressivo, no mundo moderno.

Segundo o Instituto Nacional de Pesquisa Econômica Aplicada, num estudo apresentado em 2008, 10% dos mais ricos no País concentram 75% do Produto Interno Bruto (PIB). De acordo com o estudo, os 10% mais pobres da sociedade comprometem 33% de seus rendimentos com tributos, enquanto os 10% mais ricos pagam 23%. Essa é uma das condições que gera no Brasil a maior concentração de renda no Planeta, que, segundo Márcio Pochmann, concentra em cinco mil famílias 46% do PIB. O Estado brasileiro foi projetado para atender os interesses de uma pequena minoria da população nacional, e esta lógica ainda não foi alterada, num País que tem 187 milhões de habitantes.

Numa sociedade desigual como a brasileira a violência é integrada à estrutura das relações sociais. É uma violência de caráter endêmico. É a continuidade de uma tradição autoritária, de assimetria das elites contra as não-elites, nas interações entre classes. Como diz Paulo Sérgio Pinheiro: a configuração política formal da democracia abriu condições para as manifestações de protesto, e graves conflitos sociais e econômicos passaram a ser expressos com maior liberdade. Esses movimentos, apesar do retorno ao constitucionalismo democrático, se chocaram com a continuidade das antigas práticas arbitrárias que sempre coibiram quaisquer tentativas de protesto autônomo da sociedade (1996, 7).

A institucionalização de mecanismos repressivos sobre as maiorias é de longa data no Brasil. Prisões arbitrárias, torturas, raptos, maus tratos, descasos, perseguições ou a opressão detectada na prisão, representam nitidamente o poder do Estado sabre a população marginalizada. E esse o ponto fundamental para a discussão: em que medida as mudanças dos regimes políticos no Brasil alteraram o cotidiano da maioria da população? A alteração é mínima ou inexistente. As rupturas políticas em nossa história praticamente não ocorrem. Novos governos, ao assumir o poder praticam velhas políticas e se preocupam em edificar um imaginário popular calcado na “nova ordem” vigente. A constatação dessa “longa duração” em nossa História é primordial para a compreensão da mentalidade sobre as práticas políticas e, principalmente, sobre as estratégias para a manutenção do poder.

Toda violência é um ato de domínio. Por isso, ela pode ser compreendida como uma relação intersubjetiva e social de domínio de um ser humano sobre outro, provocando danos físicos, psicológicos e ou materiais (Michaud: 1989; Chauí apud Sallas: 1999, 25). Nas situações de violência co-existem as figuras do agressor e do agredido, dois papéis sociais. Assim, quem agride age de forma a violar, suprimir, coibir os direitos humanos do agredido. Essa dominação, que é a violência pode atingir níveis sociais de letalidade. Isso é gravíssimo. Logo, as manifestações de violência mais reconhecíveis, tais como a fome, a tortura, assassinato, roubo, preconceito, exploração

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do trabalho e sexual são reflexos de um conjunto de estruturas e práticas sustentáveis nas formas de poder existente (Silva: 2005, 20).

Na ordem social do modo de produção capitalista, entretanto, ainda que a ordem política seja a do estabelecimento do Estado de direito, se impõe à cidadania a capacidade de consumo. Assim, a mercantilização das relações sociais será o outro elemento definidor da interação violenta na sociedade brasileira. A cidadania é relativa à capacidade de consumo e aquisição do indivíduo. Isso determina o gradiente de tolerância social com a violência cometida. Se um indivíduo das camadas médias, ou enriquecido, age violentamente, a representação social dessa violência é menos aversiva que se a mesma ação é atribuída ou cometida por um indivíduo das camadas populares e empobrecidas.

Com efeito, o resultado dessa compreensão distorcida da realidade, ou melhor, dessa compreensão que abjura os princípios do Estado de direito e dos direitos humanos, do comportamento democrático e da justiça social, é uma leitura partida da sociedade. Nessa leitura, são perigosas as classes sociais empobrecidas, enquanto o restante da sociedade está acima do bem e do mal. Ainda mais na sociedade brasileira, que, como caracteriza Roberto da Matta, prevalece o você sabe com quem está falando como contraponto do jeitinho brasileiro como mapas de navegação social. O drama social brasileiro só pode ser encenado reificando a hierarquização dos privilégios sociais.

O senso comum termina por associar comportamentos violentos ao uso de drogas, ou à participação na cadeia produtiva das drogas. Com efeito (Minayo: 1998), considerando-se o caráter multifacetado da violência, análises empíricas têm evidenciado a relação entre uso de drogas e comportamento violento. O uso de álcool foi atestado como preceptor de comportamentos violentos, também o de cocaína, em que pese a diversidade de efeitos conforme o biotipo do usuário. Outra face do fenômeno é a vitimização daquelas e daqueles que estão nas fases de produção e distribuição dessas substâncias. Devemos considerar, portanto, que é ao menos complexa a relação possível de estabelecer-se entre drogas e violência.

Merece menção a construção social da ilegalidade de algumas substâncias que passaram a ser qualificadas como ilícitas. Abandonando o rigor da análise histórica, apenas de forma indicativa deve-se notar que o álcool e o tabaco nunca foram ilicitados no País. Há uma série de outras substâncias psicoativas que tem uso restrito e controlado medicinalmente. Existe, no Brasil, a permissão de uso religioso de alguma substância psicoativa (ayhuasca). Finalmente, há um conjunto de substâncias que estão qualificadas como ilícitas para cultivo, porte, distribuição ou consumo. Neste último conjunto estão substâncias tais como maconha, coca, ópio e seus derivados, assim como substâncias psicoativas obtidas por meio sintético, dentre as quais o ácido lisérgico. Doravante, estaremos nos referindo ao conjunto das substâncias psicoativas qualificadas como ilícitas pelo termo drogas.

Na divisão social do olhar criminalizador termina por se estabelecer que são violentos os empobrecidos, das periferias rurais e urbanas que estão encarregados da produção e comércio de substâncias qualificadas como ilícitas. Por contágio os filhos das camadas médias passaram a ser também criminalizados, em especial aquelas e aqueles que são usuários e procuram os serviços de distribuição nas periferias urbanas. Muito embora, como mencionado acima, se associe comportamento violento ao uso de determinadas substâncias psicoativas, sobretudo ao álcool, não seria possível deixar de

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inferir que um curso de comportamento violento não fosse realizado pelo mesmo indivíduo em estado de abstinência (Minayo: 1998).

No entanto, as drogas fazem parte de um circuito econômico. Sua cadeia de produção, como as demais cadeias, têm seu setor mais rentável distante da produção e distribuição, e mais próximos dos seus segmentos financeiros – os quais permanecem bastante ocultos. Deixando de lado importantes digressões históricas que explicariam a dispersão do cultivo de cannabis no Brasil, vamos atentar para a atualidade do elo produtivo desse segmento econômico. Nas zonas rurais, em especial no Nordeste, do Sul da Bahia ao nordeste setentrional, no Maranhão, e durante o período de 2006-2008 também em áreas da Amazônia, como Maués, se espraia o cultivo da cannabis sativa (em especial, entre 2003-2008 houve dispersão de áreas de produção para atender os mercados do Norte e Nordeste). Há também o cultivo por brasileiros e paraguaios, em especial no período de 2003-2008, na região paraguaia, fronteiriça ao Brasil, de Capitán Baldo, para o atendimento do mercado do Centro-Sul. Não se encontram ali os principais ganhos com esse mercado. Como agronegócio, essa atividade conta com abastecimento de insumos (sementes e insumos – neste caso, muitas vezes armas), e a distribuição da produção é realizada por atravessadores, detentores de redes de transporte e comercialização.

Há o cultivo de coca epadu no Norte do País. Até onde indicam as informações atuais, em que pese serem da imprensa e da Polícia Federal, não utilizada prioritariamente para consumo recreativo nacional. Ao que parece é tradição indígena amazônico-andina. Porém, já era indicada, na década de 1990, a existência de laboratórios de elaboração de cocaína, na Amazônia e no Cerrado, para atender o consumo do Centro-Sul, juntamente com a importação contínua dos países andinos. Também nesse caso a principal atividade lucrativa está nas mãos dos circuitos financistas, e de pesquisa e desenvolvimento. Efetivamente, lavradores, transportadores, vendedores – incluindo neste circuito de trabalho os gerentes operacionais – estão distante dos principais ingressos econômicos dessas atividades. Segundo a COAF, no Brasil são lavados 15 bilhões de dólares por ano de recursos advindos da economia do ilícito (Depoimento General Uchoa, Câmara Deputados, 2003).

Nas principais metrópoles brasileiras, não por um acaso, os principais centros de distribuição estão alocados nas periferias urbanas. Ali se aloca mão-de-obra barata e que aceita um risco tremendo – não por um acaso a maioria das crianças e jovens dessas periferias aceita se submeter à lógica do mercado formal, ou informal não-letal, enquanto uma pequena minoria se arrisca nos subterrâneos do mercado informal e letal. Esse mercado, como todo mercado, possui trocas imediatas. Uma das mais diretas é entre os lucros da mercadoria droga, e a mercadoria política, liberdade, segurança e proteção (Cf. Misse:2008), trocadas entre os operadores do mercado informal letal e os operadores do aparelho repressor, ou de seu substituto a gendarmerie ilícita (esquadrões da morte, milícias, grupos de extermínio). Não raras vezes os operadores da distribuição deste mercado informal letal, terminam por substituir os operadores do mercado político.

Em outros países no mundo existe a produção e distribuição de substâncias qualificadas como ilícitas, sem ter, no entanto, o circuito de violência que se tem no Brasil. No Brasil, a taxa de homicídios é de 26,9 por 100 mil; na França a taxa de homicídios é de 2,4 por 100 mil habitantes. Nos EUA, a mais embrutecida das nações industrializadas, o número é de 6,6. A Colômbia, se isto serve de consolo, tem taxa bem maior: 60 por 100 mil. Schwartzman (FSP, 13 março 2003) ao analisar estes dados indica satiricamente como solução para a violência no Brasil um duplo caminho:

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tornar-se um País rico, sem guerra civil. Como isso parece impossível, o caminho poderia ser, segundo ele, a legalização das drogas, porque com isso, efetivamente se atenuariam os envolvimentos com violência letal daquelas e daqueles que se vêem no mercado informal letal.

É o Estado e a ordenação política do proibicionismo parte do problema do ciclo de violência associado às drogas. Não extinguirá a violência e a conduta criminosa qualquer política de controle social não-proibicionista das drogas. Porém, ao que parece, em especial nos casos brasileiro e latino-americano, no qual o mercado informal letal se apresenta como alternativa para expressivo segmento da juventude, tal controle social não-proibicionista pode implicar em diminuição das taxas de homicídio. Na medida em que o Estado é parte do mercado informal letal pela via da corrupção e pela via da repressão, a manutenção da política de drogas proibicionista se apresenta como incrementadora dessa violência e de seus efeitos perversos. Mais uma vez, vale a observação que não deixará de haver corrupção e repressão, porém estarão associadas a outras atividades, que atualmente têm menor grau de letalidade.

Luiz Eduardo Soares identificou a principal matriz da violência letal no Brasil, o mercado informal de armas e de drogas. Como ele nos ajuda a refletir:

Efetivamente, o tráfico de armas e drogas é a dinâmica criminal que mais cresce nas regiões metropolitanas brasileiras, mais organicamente se articula à rede do crime organizado, mais influi sobre o conjunto da criminalidade e mais se expande pelo país. As drogas financiam as armas e estas intensificam a violência associada às práticas criminosas, e expandem seu número e suas modalidades. Esse casamento perverso foi celebrado em meados dos anos 1980, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo, ainda que antes já houvesse vínculos entre ambas. (Soares: EA 20(56), 2006)

As pesquisas sobre violência têm indicado que há uma componente econômica na deliberação do agente criminoso. Segundo Becker, o criminoso é um agente racional que pondera se ação criminosa lhe trará mais ônus, que benefícios econômicos. Com efeito, ao que parece, a desigualdade social é um ingrediente que acompanha o incremento de ações criminosas, bem como a ausência de mobilidade social, isso sem fazer as antigas associações entre delinqüência e pobreza. Alguns estudos empíricos indicam que maior mobilidade implica em menor criminalidade, e vice-versa (Fajnylber: 2000, 2 - mimeo). Bem como, a análise de Ignácio Cano indica que a vitimização pela violência, até onde o estado atual dos estudos permite dizer, também relaciona-se diretamente com a pobreza – talvez pela dificuldade de autodefesa (Cano: 2000, mimeo). Ou seja, a ausência de políticas sociais e a manutenção da desigualdade social é um forte ingrediente para a manutenção da violência.

Porém, como recorda Luiz Eduardo Soares, não se pode dar a esta afirmativa um caráter determinista. Se é verdade que o mercado ilegal letal de armas e drogas tem um maior incremento entre as atividades criminosas e é o maior responsável pelos altos níveis de homicídio, deve haver uma relação entre estes altos índices de homicídio e a persistência de uma política de drogas proibicionista e belicista, em ambientes de alta desigualdade social com baixa mobilidade. É possível identificar que a política de drogas proibicionista no Brasil gera efeitos perversos, tais como a alta taxa de homicídio de jovens. A intuição da defesa da saúde pública, que seria um elemento inspirador de tal política, não é cumprida.

Com efeito, a política de drogas presente na atual legislação (Lei 11.343/2006), persiste na intuição belicista da guerra às drogas. De fato, articulada,

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dentre outras, com a Lei do Tiro da Destruição (Lei 9.614/1998 e Lei 5.144/2004), cria-se um arcabouço legal que beira à inconstitucionalidades e quebra das Convenções Internacionais de Direitos Humanos. No caso da lei do abate, porque ela pressupõe a morte dos tripulantes e passageiros na aeronave, introduzindo a pena de morte. Isso faz parte de uma estratégia proposta pela ONU (Convenções de 1961, 1971 e 1988; e Protocolo de 1972) de fortalecimento do aparato legal para contenção da oferta e demanda de substâncias qualificadas como ilícitas. A criminalização das atividades produtivas e de distribuição, bem como de seus executores. Aqui cabe uma discussão não realizada no País sobre o trabalho indecente, a precarização do trabalho e o trabalho perigoso. Ficou simplesmente a criminalização das populações vulneráveis que se ocupam nesse mercado, como vimos, intencionalmente (conforme a teoria do cálculo racional) e em busca de superação dos constritores da desigualdade social e ausência de mobilidade.

Há na Lei 11.343/2006 uma abordagem menos repressiva em relação ao usuário. Porém, cria-se a figura do usuário traficante, que responde por crime hediondo, e todo usuário é qualificado como dependente químico, sujeito a tratamento de saúde. A mão forte do Estado pesa sobre o pescoço dos agentes econômicos dessa atividade. Em algumas cidades, como no Rio de Janeiro, a opção para a abordagem do tema foi a ocupação territorial, bélica, das comunidades nas quais existem núcleos de distribuição. Nos sertões nordestinos decidiu-se pela intensificação das operações de erradicação de áreas de plantio de maconha. Segundo o General Uchoa, titular da Secretaria Nacional Anti-Drogas-Senad, as operações de política de drogas seguem a metodologia do martelo e da bigorna: o martelo o braço forte do estado (em algumas alocuções do general substituído pelo leque que tem fechado todos os gomos) e a bigorna (que é a sociedade, parte do leque, mas sobre quem recaem as ações governamentais).

Há, porém, no discurso oficial pelos responsáveis pela política de drogas no Brasil a retórica de termos uma política que está distante do paradigma da guerra às drogas. A prática é a de ações repressivas e penalizantes para toda a cadeia produtiva das substâncias qualificadas como ilícitas. Trata-se de um empenho público do governo federal para extirpar essa cadeia produtiva. Até onde se pode notar o efeito de tal política, quanto ao seu propósito, é ineficaz. O consumo das substâncias qualificadas como ilícitas, bem como a sua produção e distribuição, têm aumentado no Brasil, conforme as avaliações do próprio governo federal. Por conseguinte, a quem beneficia a manutenção dessa atual política?

Do ponto de vista da construção da cidadania democrática esta atual política de drogas cria uma subcategoria de cidadãs e cidadãos. Todas aquelas e todos aqueles que são parte de algum elo da cadeia produtiva de drogas são uma espécie de subcidadãos. Inexiste presunção de inocência, uma vez identificado alguém em área de plantio de maconha, por exemplo, é imediatamente associado à atividade ilicitada. O proprietário da terra, na qual se cultiva, com sua anuência ou não, reconhecimento ou não, é criminalizado e tem a expropriação de sua terra. Nas incursões policiais nas comunidades de periferia a morte de jovens, e de pessoas encontradas ao longo do percurso da operação policial, são identificadas como autos de resistência, ou seja, morto em confronto com as forças de repressão do Estado, sem nenhuma investigação, apenas pelo Boletim de Ocorrência emitido pela própria autoridade policial que comandou a operação.

Reifica-se que o papel do Estado é reprimir e não servir à população. Os serviços básicos, de saúde, educação, abastecimento de água, saneamento, energia, habitação e transportes públicos, negados ou precarizados para essa população não entra

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no compito das ações prioritárias e necessárias. Substiui-se o Estado de direito pelo Estado Penal. Seria incorreto nos privar da arguta reflexão que sobre o tema fez Nilo Batista, a saber:

A política criminal hegemônica acaba, como a política econômica, surpreendendo pela generalidade de sua aceitação: partidos e lideranças com programas ou passados antagônicos terminam reunidos no discurso político-criminal. Da mesma forma que o discurso econômico único procura convencer-nos, o tempo todo, de que o sistema econômico regido pelo capital financeiro transnacional, tendo o FMI por spalla, constitui uma inevitabilidade histórica sem alternativas, assim também a política criminal correlata a tal sistema aparece como necessidade incontornável. (...)

(...) Esta política criminal hegemônica tem sua pauta. A questão das drogas ilícitas, cujas virtualidades no campo das relações internacionais apareceram mais claramente após o fim da guerra fria e reinaram absolutamente até o 11 de setembro, é certamente um dos itens mais complexos dessa pauta, projetando-se na geopolítica, que, das versões mais simplórias (países exportadores “agressores” x países consumidores “vítimas”) encontrou na criminalização de guerras civis e estados internos de beligerância o álibi perfeito. A criminalização da imigração ilegal, a lavagem de dinheiro e a responsabilidade fiscal são outros itens importantes dessa pauta. A rápida recepção e circulação de um conceito tão polêmico, tão essencialmente problemático quanto o de crime organizado – intensa e alegremente difundido pela mídia – torna-o suspeito de integrar o léxico desta política criminal, que também pretende globalizar o jargão criminológico. É o que se deu com o termo narcotráfico, maciçamente difundido desde o hemisfério norte: aqui ficamos nós a repeti-lo como papagaios, embora nem maconha, nem cocaína sejam narcóticos. Crime organizado, conceitualmente e no campo de aplicação pragmática, é algo que, como a bruxaria, pode ser aquilo que o juiz quiser que seja, do comércio local, de rua, de drogas ilícitas, até o que se costuma chamar de crime as business. É uma situação parecida com a do legislador ordinário perante o conceito de crime hediondo, que, ao contrário daquele dos juros reais, não se considerou devesse ser primeiro explicitamente construido antes de aplicado. Silva Sanchez se detém sobre estes ensaios de compatibilização dos sistemas penais nacionais, para evitar o que ele chama de “paraísos jurídico-penais”; bem, não conheço nada mais parecido com um “paraíso jurídico-penal” do que o campo de concentração de presos de Guatánamo. (...)

(...) O Poder Judiciário brasileiro recebe todos os impactos dessa política criminal e de seus fundamentos econômicos. No processo de minimização do Estado, está o Judiciário, imobilizado na camisa de força orçamentária tão cara ao FMI, sujeito a perdas e reduções, seja para soluções arbitrais, seja para jurisdições internacionais ou regionais. Perante o desmerecimento do espaço público, qualquer procedimento que possa envolver a responsabilização de um magistrado terá divulgação similar à de uma catástrofe: hoje, no Brasil, aqueles que têm a responsabilidade funcional de velar pelo princípio da presunção de inocência dos cidadãos não desfrutam dessa garantia. Definitivamente, pretende-se que o Judiciário abandone sua missão, insubstituível para o estado de direito democrático, de conter todo o poder punitivo exercido inconstitucional, ilegal ou irracionalmente, para policizar-se, para ser um complacente espectador da criminalização secundária; para ser, numa palavra, uma espécie de capitão-do-mato dos foragidos da nova economia. Isto seria a ruína do Judiciário, seguida da ruína do estado de direito, com a implantação de um estado policial submisso à nova ditadura financeiro-virtual planetária.

(In: Batista, Nilo. Novas tendências do direito penal, mimeo, 12 maio 2003)

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A substituição do Estado de direito pelo Estado penal acarreta numa reformulação da cidadania, de seu exercício e de sua garantia e proteção. Há um campo aberto, o da criminalização secundária, operado pelos media que reforçam a noção do direito vingativo – de uma nova Lex Talionis.

A abordagem repressiva e belicista da política de drogas, no Brasil, produz o efeito direto de reforçar o mercado informal letal de drogas e armas. Ela torna este mercado um investimento de risco, e por isso um mercado altamente lucrativo. Não apenas economicamente, como construção de prestígio, de oferta de adrenalina, de oferta de poder local: não por um acaso é um mercado mais servido por mão-de-obra masculina e juvenil. Para o processo repressivo, a polícia adquire armamentos no mercado formal. Para contra-atacar e para disputar território, os trabalhadores em diversos segmentos da cadeia produtiva das substâncias qualificadas como ilícitas, também, adquirem armas, sobretudo no mercado informal e ilícito do comércio de armas.

2.1 Incremento do comércio ilegal de armas, genocídio de jovens, em especial de jovens afros-descendentes

Este circuito econômico fica condicionado à violência letal. Na medida em que a principal abordagem do Estado é a criminalização – ainda que existam os Centros de Apoio Psicológico para o atendimento aos usuários. Vale notar, que a postura repressiva e penal é dirigida sobretudo às camadas populares. O estigma é dirigido à participação produtiva ou de trabalho na cadeia produtiva das substâncias qualificadas como ilícitas. É alto o índice de homicídios, muitos contabilizados nas estatísticas como autos de resistência às ações policiais. Portanto, o resultado é circulação de armamentos e homicídios provocados por armas de fogo.

Finalmente, há que se notar a formação de enclaves de violência letal nas principais metrópoles do País, com interiorizações da violência letal forçada pela ação repressiva da polícia. O mapa da violência, elaborado por Jacobo Waisevitz indica que no País houve uma pequena queda das mortes por homicídio entre 2003-2006. No entanto, o Brasil continua com uma alta taxa de mortes por homicídio, sendo grande parte delas provocadas por ações de repressão à distribuição de drogas tornadas ilícitas:

Gráfico do Mapa da Violência, 2008

No ano de 1996, houve o registro no SIM/Datasus de 38.888 homicídios. Em

2006 o registro indicou 46.660 homicídios. Houve um aumento do número de homicídios no País nesse período, a uma taxa de incremento ao redor de 4,4% ao ano.

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Todavia, a taxa teve uma tendência de crescimento redução a partir de 2003. No ano de 2004, houve uma queda de 5,2% em relação ao ano anterior. Entre os anos de 2003 e 2006 houve uma queda de 2,6% ao ano. Os custos sociais do proibicionismo podem ser mensurados pelos efeitos perversos, as mortes por armas de fogo representam ao redor de 80% do número dos homicídios cometidos. No Brasil foram assassinados por armas de fogo entre 1979-2006, a impressionante quantidade de 650.375 indivíduos:

Meios utilizados 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Armas de fogo 31.515 33.373 34.124 36.081 34.187 33.419 33.284

Total de homicídios 46.082 47.899 49.640 50.980 48.374 47.578 46.660

Fonte: SIM/MS (Mapa da Violência)

Note-se que ao redor de 30% dessas mortes afetam a juventude. Ente 1996 e 2006 os homicídios de jovens, entre 15-24 anos passou de 13.186 para 17.312, crescendo 31,3% neste período. A maior parte dos homicídios juvenis ocorreram em regiões urbanas. Porém, dentre os 200 municípios com maior ocorrência de homicídios juvenis há uma distribuição da incidência nas cidades que estão ao redor do plantio de cannabis, onde ocorre trabalho perigoso para jovens. Eles ingressam intencionalmente nesta atividade e participam dela correndo risco de morte. Talvez fosse mais difícil explicar porque a maioria dos jovens camponeses, na mesma região, se submete a atividades laborais precária e sub-remuneradas; bem como nas áreas urbanas, nas quais a juventude das periferias se subordina às lógicas do mercado de trabalho precarizado e flexibilizado.

Fonte: SIM/MS – Mapa da Violência, 2008.

Este gráfico acima, tomado do Mapa da Violência de Jacobo Waiselfisz indica

que nesse período centenas de milhares de jovens foram assassinados, em sua maioria por armas de fogo. Certamente, é um equívoco atribuir-se a totalidade das mortes por armas de fogo ao proibicionismo e sua repressão dirigida à cadeia produtiva das substâncias qualificadas como ilícitas. Porém, como indicam vários analistas, a maior parte desses assassinatos são fruto dessa tensão social – e das sociabilidades geradas a partir dessa presença. Por isso, é um equívoco deixar de perceber a conexão entre esses homicídios e a política de drogas proibicionista. Trata-se de um genocídio juvenil. Foram mais de 200 mil jovens assassinados em uma década.

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E quando falamos de um genocídio geracional, temos que identificar que a maior parte dessas mortes afeta a população afro-descendente do País. Com efeito, são os jovens, afros-descendentes, moradores de periferia os mais diretamente afetados. Como é expresso no Relatório de Direitos Humanos, do Brasil, em 2005:

Aparentemente, a violência afeta a todos em igual intensidade: qualquer cidadão,independentemente de classe social, fenótipo, idade e sexo.As mensagens veiculadas pelos meios de comunicação reforçam essa percepção. Estudos mais recentes3, no entanto,mostram que nem todos são atingidos da mesma maneira pela violência.As taxas de homicídio, por exemplo, são mais altas nos bairros em que a renda média é menor e os serviços urbanos são mais deficientes.Além disso, os dados indicam que outro tipo de desigualdade caminha lado a lado com a distribuição desigual de riqueza, educação, saúde e saneamento entre brancos e negros no Brasil: os negros são os principais alvos da violência letal. (IDH-Brasil: 2005, 45).

Há um racismo também na produção e reprodução social da violência no País.

O quadro se repete ano a ano, para efeito ilustrativo é suficiente observar os dados de um dos anos, vejamos o ano de 2001:

Obs.: Tabela extraída do relatório de desenvolvimento humano, 2005.

As taxas de mortes da população não-afrodescendentes permanecem altas em

comparação a outros países. Porém, os homens negros, entre 15-39 anos, são vítimas da violência numa intensidade de duas a trez vezes superior aos não afro-descendentes. Note-se ainda que as mulheres pretas são assassinadas duas vezes mais que as mulheres brancas, e quatro vezes mais se anuímos que o identificador “parda” se refere, sobretudo, a afros-descendentes. Trata-se, pois, de dois genocídios: juvenil e racial.

2.2 Incremento da participação infanto-juvenil em atividades de trabalho perigoso do plantio, distribuição e proteção da cadeia produtiva das substâncias qualificadas como ilícitas

Os estudos sobre ingresso de jovens no trabalho perigoso do cultivo de substâncias qualificadas como ilícitas e na cadeia de distribuição dessas substâncias apresentam dados esclarecedores. Os contextos de violência letal implicam em relações de domínio entre as gerações. Muito embora a aderência às atividades seja intencional, a diferença de idade entre comandados e comandantes do movimento implica em diversas maneiras de subordinação. São crianças e adolescentes que adentram ao movimento

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com a função de, também, manusear armas de fogo, em operações de autodefesa, combate e resistência. O que torna um dilema esta situação é a necessária condenação do uso de armas para o extermínio de vidas humanas. E isso é terrível quer sejam as armas manuseadas por adultos, crianças ou adolescentes que tenham a intenção de causar dano, ou matar o inimigo. Em que pese a dificuldade da análise ética do fenômeno, é necessário identificar que este uso de armas está diretamente ligado ao controle de uma cadeia de produção que é pela lei qualificada como ilícita, com um modelo de repressão belicista – não há uma repressão fiscalizadora, ou um controle social de circulação desses bens, o que existe é o combate armado.

Os estudos (Dowdney: 2003, 2005; Observatório de Favelas: 2006; Iulianelli: 2005) indicam que o ingresso de crianças e adolescentes nas diferentes etapas da cadeia produtiva de substâncias qualificadas como ilícitas é intencional. Os estudos sobre o envolvimento com a distribuição do varejo indica que essa cooptação de crianças e adolescentes, em especial no Rio de Janeiro, foi intensificada nas décadas de 1980 e 1990. Segundo Dowdney, os menores de 18 anos representariam entre 50% a 60% do total da mão-de-obra empregada neste serviço. O processo de total integração e uso de armas de fogo não é imediato, pode levar meses, ou até mesmo anos. Crianças e adolescentes cumprem funções não-armadas ou armadas. A diferença entre o campo e a cidade, nesse tocante, é que no caso urbano o uso de armas têm que ver, sobretudo, com atividades de proteção à chefia; no caso do cultivo é para proteção da área cultivada – que pode ter usurpada o fruto do cultivo por outro grupo de plantadores, ou ser ameaçada por alguma operação policial (Observatório de favelas: 2005; Iulianelli: 2005).

Vale a pena notar que o critério para o cumprimento de diferentes funções, armadas e não-armadas, na cidade e no campo, não é etário. O critério é sociocultural, ou seja, se a criança ou o adolescente é considerado apto a operar determinada função, independente da idade, passa a ser considerado adulto o suficiente para agir. Isso também implica no olhar policial dirigido a essas crianças e adolescentes, eles passam a ser visto como ameaça imediata. Por conseguinte, eles passam a ser considerados fatais. O resultado é que há um duplo movimento. Do ponto de vista da ação policial são alvos, do ponto de vista da sociedade são considerados penalizáveis – o que na sociedade brasileira tem gerado um conjunto de discussões sobre a revisão da maioridade penal.17

A pesquisa conduzida pela equipe do Observatório de Favelas (2006) informa que existem alguns paradoxos que foram levantados a partir das entrevistas realizadas. Os três principais motivos indicados pelos participantes da pesquisa para a adesão de adolescentes e crianças ao tráfico de drogas foram: (1) ganhar muito dinheiro, 33%; (2) ajudar a família, 23%; (3) dificuldade em conseguir qualquer outro emprego, 9.1%. A soma percentual dessas categorias perfaz um total de 65.1% das respostas dos entrevistados. Nota-se que os principais motivos apresentados são de ordem econômica e diretamente ligados aos canalizadores culturais referentes ao consumo de bens e serviços. Existe, portanto, uma grande expectativa em alcançar autonomia econômica. Formato semelhante foi identificado nas áreas rurais, ainda que menos bem identificada. Porém, segundo Iulianelli (2006) o principal motivo de ingresso na atividade de cultivo de cannabis é a busca de autonomia econômica dos agentes.

17 No Brasil houve um conjunto de avanços em relação aos direitos das crianças, dos adolescentes e dos jovens. Com efeito, no ano de 1990 foi aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente, e se criou um sistema nacional de proteção dos direitos da criança e do adolescente. Em relação à juventude, no de 2004 foi instituída a Política Nacional de Juventude e a Secretaria Nacional de Juventude.

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2.3 Incremento da criminalização de setores das camadas populares com aumento da população encarcerada e precrização dos serviços do sistema judiciário

A população carcerária no Brasil, no período entre 1992-2003, mais que dobrou, passando de 114 mil para 290 mil indivíduos detidos pelas diferentes modalidades de crime. Este é um crescimento bem expressivo. Indica que as ações policiais repressivas cumprem um papel: o de banir da sociedade elementos considerados perniciosos. Esse papel repressivo não é desprezível. Não estamos a defender uma sociedade sem controle social. Estamos a indicar que há escaramuças sociais que terminam por reificar mecanismos de dominação contra as classes populares.

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional, Agência Brasil.

Este número, entretanto, chegou a 401.236 detido, no ano de 2006. O que

indica que num espaço extremamente menor, de três anos, houve um incremento de ações judiciais penalizantes. 85,6% desses detentos estavam alocados no sistema penitenciário, e o restante 15, 4% nas delegacias policiais – absolutamente fora dos preceitos jurídicos e administrativos. Segundo a professora Julita Lengruber, da Universidade Cândido Mendes, isso coloca o Brasil como o quarto país em população carcerária, atrás, apenas dos Estados Unidos, China e Rússia. Repetidas vezes os relatórios sobre Direitos Humanos no Brasil destacam as péssimas condições de vida a que são submetidos os detentos. Isso implica, por conseguinte, no inverso da intenção da pena, que é a ressocialização do indivíduo.

Segundo o Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para prevenção do delito e tratamento do delinqüente (Ilanud), no ano de 2003, dentre os detentos, 7,5% de todos os adolescentes provados de liberdade e 16,3% dos adultos maiores de 18 anos, foram detidos por crimes relacionados com drogas. Isso implica dizer que entre 10% a 20% das detenções, por porte e comercialização, poderia desinflacionar o sistema penitenciário, com uma outra abordagem de política de drogas. Da mesma forma, como isso implicaria em menor letalidade devida às atividades econômicas, dessa cadeia produtiva de substâncias qualificadas como ilícitas, implicaria em um desinflacionamento do atendimento de saúde pública, no que tange aos traumas e traumas ortopédicos. Seria um benefício para a vida econômica do País, facultando a inserção nas cadeias educacionais e econômicas um contingente anual de 20 mil jovens entre 15-24 anos

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2.4 Uma face rural ignota dessa violência armada, letal, provocada pela política de drogas repressiva e belicista

A pesquisa de 2005 (Iulianelli), sobre jovens no plantio de maconha permitiu algumas estimativas. Se aceitarmos as estimativas de Loïc Wacquant que as detenções de criminosos equivale entre 3-10% dos operadores do crime, e aplicarmos o mesmo para a quantidade de pés de maconha apreendidos, e se considerarmos como média a relação 100 mil pés/1,5 ha; e considerarmos que para cada área plantada há um responsável e cada 1,5 ha implica em 22 trabalhadores para a colheita, teríamos a seguinte estimativa para o Nordeste considerando os pés de maconha apreendidos pela Polícia Federal de janeiro a maio de 2005, e assumindo que a maior parte desta apreensão corresponde ao SMSF:

Total apreendido Área equivalente Responsáveis pelas áreas Total de trabalhadores na colheita

1.126.926 pés 67,6 ha 67-134 1452-2904

Total não-apreendido estimado Área equivalente Responsáveis pelas áreas Total de trabalhadores

na colheita

10.142.334 pés 608,4 ha 608-1216 13376-26732

Fonte: Resumo Executivo, Jovens construindo políticas públicas para a superação de situações de risco, no plantio da maconha, na região do Submédio São Francisco Edital 07/2003, MJ.

Podemos falar num total estimado entre 14.728-29.636 trabalhadores rurais

envolvidos nesta atividade no Nordeste se consideramos que as operações da Polícia Federal atingem 10% do total da área de plantio. Fato é que a Polícia Federal apreendeu em todo o País, entre janeiro e maio de 2005, 1.127.474 pés de maconha em 35.383 plantações. O que ratifica que as áreas de cultivo são de diminuta agrimensura. A atividade do cultivo rende na diária da colheita entre R$ 50 a R$ 200 (a cebola é de R$ 7 a R$ 12). O plantador de maconha, que ocupa 1,5 ha pode tirar até R$ 2.500 em três meses, o de banana, ocupando 3ha, em seis meses, pode tirar o mesmo – se tiver boa produção.

As condições de vida e trabalho desses jovens são absurdamente precárias. É um trabalho perigoso, pela constante ameaça dos outros grupos territoriais de cultivo e pela repressão policial. A jornada no período do cultivo é diuturna. Os jovens ficam encerrados nas áreas de cultivo entre três, a quatro meses. Estabelecem pequenos acampamentos, que são barracas de plástico ou pano, em pleno sertão, estendidas apenas par as dormidas. Fazem pequenas fogueiras para aquecer a comida. Dormem com as murissocas do sertão, com um olho fechado e outro aberto, pelo medo de perder o trabalho. O cultivo é exigente, as plantas precisam de três a quatro aguadas por dia. No período da colheita precisam agregar mão-de-obra adicional.

Temos que avançar em nossa reflexão. Sabemos que há ou manutenção, ou oscilação pendular ou crescimento no número de homicídios nas cidades do sertão de Pernambuco, do assim chamado Polígono da Maconha. Isso é o inverso da racionalidade da tendência nacional, apontada por Jacobo Waiselfisz. Porém, como ele mesmo chama a atenção, o escrutínio das situações municipais permite atentar mais pormenorizadamente para as necessidades dessas áreas. Levando em consideração os territórios do Alto Sertão e de Itaparica – ainda que tenhamos naquela lista de cidades duas do território de Petrolina e Juazeiro – vemos que isso é uma necessidade imperiosa.

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As operações de erradicação de pés de maconha não pararam em nenhum momento nesse período. Como se sabe, elas sofreram um incremento, naquela região, a partir de 1997. Efetivamente, a partir desse ano há um aumento do número de homicídios nessas cidades. Mais ainda, a política de erradicação durante o governo Lula foi ainda mais intensa. Talvez isso explicasse o aumento do número de homicídios em Santa Maria da Boa Vista (PE), por exemplo, cuja taxa média é de 38,2 (por mil habitantes). Até mesmo, em relação aos homicídios juvenis foi constatada uma queda entre 1997 e 2006, a partir de 2003. Essa queda foi bem menor proporcionalmente, passando dos quase 20 mil homicídios, em 2003, para 17,3 mil em 2006. Em Santa Maria da Boa Vista a taxa de óbitos por armas de fogo, em 2006, foi de 77,2/100 mil habitantes – o município tem 38 mil habitantes. Essa taxa subiu de 55,6 em 2002, para 77,2 em 2006.

Na cidade de Juazeiro houve um incremento do número de homicídios juvenis no período de 2002-2006. Em Petrolina, ao contrário, houve uma queda. Porém, ambas têm taxas maiores que 50/100 mil habitantes, para jovens. Essas circunstâncias são um indicativo da manutenção de uma ordem violenta na região. Não muito freqüente em cidades interioranas, com poucos habitantes, e que possuem como principal atividade econômica a agricultura familiar. Os elementos culturais gregários, de certa forma, perdem força para o elemento desagregador que é a perseguição policial e os confrontos entre os agentes da economia da cannabis sativa.

Todos esses fatos, como apontamos em outras ocasiões, e com o que também concorda, dentre outros, Sergio Vidal (2007), indicam a necessidade de uma regulamentação desses processos sociais. E isso não pode ocorrer apenas pelos mecanismos repressivos do Estado. É já passado o momento de discutir estratégias de superação da violência para além da mera repressão. É sim, repito, no meu ponto de vista, dever do Estado reprimir aquelas ações que colocam em risco a vida de terceiros – a defesa da segurança humana é obrigação do Estado de direito e deve ser mantida. Entretanto, isso não pode se dar com uma lógica que faz recrudescer a violência letal.

2.5 Considerações finais

O que fica evidenciado é a persistência da lógica da exclusão social. A política de drogas termina por ter esse conjunto de efeitos porque é mais um aspecto da desigualdade social do Brasil. Um olhar qualificado sobre a pobreza no Brasil a relacionará a construção da exclusão social ao aprofundamento das desigualdades sociais. Márcio Pochmann fez uma análise acurada da exclusão social no Brasil, e também da condição dos ricos no País. Ele nota que 5 mil famílias detêm 40% do produto nacional bruto. Ou seja, dos mais de 51 milhões de famílias, apenas 5 mil acumulam quase a metade da riqueza nacional. Isso é uma construção da história social do Brasil. Essa construção dos ricos no País foi incrementada nos últimos 30 anos, e há uma concentração geográfica dessas famílias nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte. Nessas cidades vivem 8 de cada 10 famílias ricas. As análises levam a crer que a concentração do poder em mãos do conservadorismo alimentou essa concentração de riqueza, poder e conhecimento. Isso não significa que não houve enfrentamentos e confrontos sociais diante desta trama histórica. Porém, cada luta repercutiu em um massacre dirigido pelas forças conservadoras.

A falta de democracia também contribuiu para a manutenção dessa realidade. Em 500 anos de história não mais que 50 foram os anos de Democracia. O autoritarismo predominou na história sociopolítica do País, o que contribuiu para a manutenção dos

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mecanismos sustentadores da concentração de renda, poder e conhecimento. Além disso, avalia Pochamann: Os apelos populares e progressistas do povo em favor da melhor repartição dos frutos do crescimento econômico ficaram de fora do núcleo de poder. Durante os períodos democráticos, mantiveram-se altas as demandas reprimidas pelas fases autoritárias, especialmente num ambiente de enorme heterogeneidade social e geográfica. As convergências necessárias para o desenvolvimento de um projeto revolucionário ou mesmo de natureza reformista ficaram subsumidas na administração das emergências e no congraçamento de articulações políticas entre distintos extratos de classe sociais, muitas vezes necessárias à governabilidade.

O longo período de autoritarismo, a força conservadora das elites, e os interesses desagregados das classes trabalhadoras, etnias, gênero, geração implicam na quase impossibilidade de reformas e revoluções. Por isso, as atuais políticas distributivas e compensatórias do Brasil não modificam a secular concentração de renda. No País persiste a concentração fundiária, uma estrutura tributária regressiva, que faz que os pobres paguem mais impostos que os ricos. Existem razões estruturais que impedem a distribuição de renda, poder e conhecimento. O Banco Mundial parece desconhecê-las, ou desprezá-las.

Quando se propôs, recentemente, a analisar as causas da desigualdade nacional, identificou o déficit educacional como a medida a ser enfrentada para combater a pobreza. Ora, a educação é apenas parte de um processo muito mais amplo, sendo necessária uma ampliação dos investimentos nela, porém apenas ela não é suficiente para modificar a desigualdade de renda, poder e conhecimento. O acesso aos direitos sociais fica, assim, obstaculizado. Fica claro que há um erro nessa teoria do capital humano, porque maior acesso à educação formal não tem correspondido a uma menor taxa de desemprego dos pobres. Sem dúvida é necessária a universalização da educação em todos os níveis, mas isto não é uma panacéia.

Um conjunto de medidas se faz necessário. Dentre elas não pode deixar de ocorrer uma alteração profunda da visão penalista e repressora da política de drogas. Apenas uma mudança, também nessa área, permitirá reverter o atual quadro da violência letal no País. O paradigma da guerra às drogas tem demonstrado sua exaustão e perversidade. A insistência nesse modelo de política tem um custo social, no Brasil, e socioambiental na América Latina, extremamente elevado. O limite da compreensão popular desse mal é sustentado pela disseminação e perpetuação das ideologias das classes perigosas vinculada ao mal do século, as drogas; que traz como resultado a ideologia corolária daquela: a guerra às drogas.

O atual modelo da política de drogas é um reforço da cadeia da exclusão e da desigualdade social em Países como o Brasil. Nossa intenção ao levantar o problema da violência letal e sua relação com a política de drogas é reforçar a necessidade de mecanismos de controle social das drogas na sociedade, que sejam referidos a outros modelos, que não o da guerra às drogas. Afinal, este modelo faz de nós todos inimigos e vítimas. Precisamos de um modelo social de controle da cadeia produtiva das substâncias qualificadas como ilícitas que reduza os danos da mesma. Nesse sentido, é necessário uma intensa atenção aos dilemas juvenis, as situações de precarização do trabalho humano e às necessidades de um atendimento de saúde psicológica qualificado para todas e todos.

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3. Políticas de saúde para pessoas que usam álcool e outras drogas no Brasil18

Para compreender o Estado da Arte com relação às políticas de atenção em saúde dirigidas a pessoas que usam álcool e outras drogas no Brasil, é preciso compreender algumas coisas a respeito do ordenamento das políticas de saúde, como um todo. Em 1986, foi realizada a 8ª Conferência Nacional de Saúde, onde foram construídas as bases do Sistema Único de Saúde (SUS). Aqueles eram os últimos anos da Ditadura Militar iniciada com o golpe militar de 1964, e o país gritava por democracia de diversas maneiras: em manifestações exigindo eleições diretas para presidente, nas greves por melhores salários, na luta contra a carestia e por direitos fundamentais. Como a saúde (FARIA & JATENE, 1995).

No rastro destas conquistas, o movimento da Reforma Psiquiátrica trouxe para o Brasil o debate sobre o modelo antimanicomial, que buscava a reverberação destes debates para o eixo específico da atenção em saúde mental (COSTA, 1984; AMARANTE, 1996). Deste modo, várias das conquistas do movimento da Reforma Sanitária encontravam desdobramentos complementares quanto ao modelo psiquiátrico brasileiro, constituindo garantias constitucionais para a promoção dos direitos humanos dos usuários dos serviços públicos de saúde mental. Esta informação é relevante, pois é justamente no campo da Saúde Mental que se produz, desde há muito tempo, as tecnologias de cuidado dirigidas a pessoas com uso problemático de álcool e outras drogas. Portanto, falar de uma reforma no sistema de saúde mental brasileiro significa falar em mudanças no modelo de atenção dirigido a pessoas que usam álcool e outras drogas, em toda a rede de serviços de saúde pública.

O problema é que, no caso brasileiro, os textos legislativos nem sempre se efetivam em políticas públicas adequadamente universais e equânimes. Se por um lado temos leis que nos dizem que “Saúde é um direito de todos e dever do Estado”, por outro lado convive-se diariamente com a inexistência de serviços públicos de atenção à saúde adequados às demandas de determinadas populações. Ou seja: a simples existência de leis e políticas não faz com que a realidade cotidiana necessariamente se modifique. O sistema de saúde brasileiro, que realiza em seus textos um projeto social radicalmente inclusivo e cidadão, quando confrontado com as necessidades cotidianas de milhões de cidadãos, depara-se com um quadro por vezes desolador: seja na quantidade de serviços e profissionais de saúde disponíveis à população (muito aquém do necessário), seja na qualidade do serviço prestado (muitas vezes reprodutor de 18 Esta seção foi elaborada por Dênis Roberto da Silva Petuco – cientista social, pesquisador do Núcleo de Educação, Avaliação e |Produção Pedagógica em Saúde (EducaSaúde) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como contribuição da Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos (ABORDA), para o documento apresentado por ABORDA e REDUC em Beyond 2008, Viena 7-9 de junho.

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lógicas que em nada se coadunam com princípios como universalidade, integralidade e eqüidade), o SUS ainda não alcança seus objetivos.

Também neste sentido, o movimento de Reforma Sanitária foi previdente, constituindo, para além da lei de regulamentação do SUS (LEI 8.080/90), uma lei de regulamentação do controle social (LEI 8.124/90)19. Objetivamente, constituiu-se um complexo sistema de participação social para acompanhamento e fiscalização sobre serviços e políticas de saúde (accountability), a partir de uma rede de conselhos de participação, desde o nível local, nas comunidades, até o nível federal20. Deles participam usuários dos serviços de saúde, associações e conselhos profissionais, representantes do governo, de sindicatos e associações comunitárias. Estes conselhos possuem caráter consultivo e deliberativo, e são bastante eficientes em sua tarefa, tendo contribuído sobremaneira para a construção e efetivação do SUS (CÔRTES, 2002; CORREIA, 2000). Mas, assim como as leis e políticas nem sempre são o bastante para garantir mudanças efetivas no cotidiano, o poder de pressão dos conselhos também é variável em cada cidade, e também pode variar de um governo para outro.

A partir do SUS, ocorrem importantes transformações no campo da saúde no Brasil. A Lei 8.080/90, conhecida como “Lei do SUS”, aponta os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (dentre os quais está expresso o princípio da participação popular). A Lei 8.142/90, por seu turno, regulamenta o controle social no âmbito da saúde, definindo um complexo sistema de instâncias que vão desde o âmbito local, ligado às comunidades e serviços, passando por níveis municipais e estaduais, até chegar ao Conselho Nacional de Saúde (CNS). Todos os conselhos, em maior ou menor grau, são compostos por representantes de categorias profissionais, prestadores de serviços, governo, movimentos sociais, sindicatos e usuários dos serviços. Misoczky (2002) nos fala da produção social do campo da atenção em saúde, ocorrendo de modo diferenciado após a Assembléia Constituinte de 1988, com a emergência de novos atores políticos (sindicatos, associações de bairro, estudantes, profissionais não médicos), e intensas transformações nos papéis de atores já instituídos (médicos sanitaristas e gestores).

Interessa-nos refletir sobre as tensões produzidas pela inscrição, no âmbito do SUS, de diversas demandas do movimento de Reforma Sanitária. Por um lado, a aprovação das Leis 8.080/90 e 8,142/90; por outro, a eleição de Fernando Collor de Mello, que marca o fim do ciclo desenvolvimentista e o ingresso no período neoliberal. O SUS cristaliza uma série de pontos bastante distanciados da agenda neoliberal, como a “preeminência do setor público e inclusão apenas complementar do setor privado” (FALEIROS et all, 2006, p. 116), e o modelo participativo de caráter popular, em oposição ao modelo autoritário e tecnocrático proposto pelos setores conservadores.

Não obstante, a efetivação do acesso universal para pessoas com uso problemático de álcool e outras drogas está longe de verificar-se. Por isto mesmo, o avanço do setor privado neste campo é bastante acentuado, com destaque para as

19 Assumimos aqui a definição de Maria Valéria Costa Correia (2000, p. 53), que diz que “[...] controle social envolve a capacidade que a sociedade civil tem de interferir na gestão pública, orientando as ações do Estado e os gastos estatais na direção dos interesses da coletividade. Conseqüentemente, implica o controle social sobre o gasto público”. 20 Inicialmente, a regulamentação do controle social estava inscrita na própria Lei 8.080/90 (Lei do SUS), cujo capítulo foi totalmente vetado pelo presidente Collor. Segundo Faleiros et all (2006, p. 112), “Esse veto à lei coloca o ‘bloco na rua’, relança o movimento sanitário e pressiona o poder legislativo para uma tomada de posição, no que seria logo traduzido na nº Lei 8.142/90 [...]”.

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clínicas privadas de tratamento e desintoxicação, e as Comunidades Terapêuticas (CT’s). Experiência emergente no contexto da Reforma Psiquiátrica, as CT’s buscavam construir autonomia e horizontalidade dentro do espaço do manicômio. Representaram, portanto, um primeiro esforço crítico ao modelo manicomial. No Brasil, entretanto, e especialmente quando se fala de espaços terapêuticos destinados a pessoas que usam álcool e outras drogas, as CT’s são majoritariamente organizadas por instituições de orientação religiosa. Recentemente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) emitiu portaria que regulamenta estas instituições (RDC N 101/2001). A partir deste documento, torna-se possível o exercício de algum nível de fiscalização, pelo menos no concernente a aspectos sanitários.

A partir da segunda metade dos anos 80, o Brasil começa a construir uma resposta mais organizada à epidemia de HIV/Aids. A primeiras campanhas identificavam os “grupos de risco” para a infecção: hemofílicos, homossexuais, usuários de drogas. Esta fórmula, tão preconceituosa quanto ineficiente como dispositivo de planejamento em saúde, foi substituída por uma lógica participativa, na qual populações antes consideradas “de risco” eram convidadas a participar do desenvolvimento e da fiscalização das políticas e estratégias de enfrentamento do HIV/Aids. É neste momento que as pessoas que usam drogas, até então vistos unicamente por uma lente criminalizante, emergem como grupo político que reivindica identidade e espaço político legitimado.

A interdição de discursos não sanitários, entretanto, dificultou a livre organização das pessoas que usam drogas. Espremidas entre visões que as colocam ora como criminosas, ora como doentes, as pessoas que usam drogas não lograram o mesmo nível de organização de outras populações chamadas ao debate pelo Programa Nacional de DST e Aids (travestis, prostitutas, gays e lésbicas). Os preconceitos para com estes grupos são tão poderosos quanto aqueles que se percebe existir contra as pessoas que usam drogas, mas há uma diferença determinante: não existem leis que criminalizam a identidade gay, lésbica, travesti e prostituta; no caso das pessoas que usam drogas, existem leis que as criminalizam, fazendo recair sobre elas não a proteção, mas o braço dos serviços de segurança pública, e do próprio sistema penal. Um caso de dupla violência estrutural: por um lado, o vazio das políticas de proteção; do outro, o peso das políticas de repressão.

A necessidade de uma política de enfrentamento do HIV junto a pessoas com uso de drogas (especialmente as drogas injetáveis), permitiu o surgimento de alguns enclaves neste contexto extremamente duro e conservador: os Programas de Redução de Danos (PRD’s). A partir deles, sistematiza-se uma rede de dispositivos de cuidado que permitem o acolhimento de pessoas com uso de drogas ilícitas, mesmo que estas não conseguissem ou não desejem parar com seu uso. Esta nova tecnologia de cuidado permite o acolhimento de pessoas que usam drogas, inclusive em suas demandas situadas além do desejo de abstinência21.

No Brasil, hoje, excluindo-se algumas posições mais radicais, nenhum pesquisador, político ou trabalhador da área da saúde questiona a necessidade de constituição de uma ampla e diversificada rede de serviços de saúde dirigidos a pessoas

21 Isto não significa que consideremos à Redução de Danos capaz de dar conta de todas as necessidades de saúde de pessoas que usam drogas. As demandas destas pessoas são muitas, e incluem, sim, serviços de apoio à busca e manutenção da abstinência. Mas, durante muito tempo, a abstinência foi o único desejo socialmente aceitável para esta população, produzindo a exclusão das pessoas que não se adaptavam a este modelo.

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com uso problemático de álcool e outras drogas. Por outro lado, a legislação brasileira não só encontra-se razoavelmente adequada à constituição de uma série de políticas de atenção a esta população, como se poderia até mesmo dizer que as exige. Resta, portanto, saber se este complexo sistema de leis e políticas alinhadas a uma perspectiva de respeito aos direitos fundamentais efetiva-se no cotidiano da vida, ou não.

Não. Nem a Constituição Federal, nem a Lei de Reforma Psiquiátrica (LEI 10.216/2001), tampouco a Lei 8.080/90, nenhum destes dispositivos conseguiu efetivar, no cotidiano da vida vivida, alguns dos principais princípios expressos em seus textos legais, especialmente no concernente às demandas sanitárias das pessoas que usam drogas. Não obstante, é possível perceber todo um esforço por parte de gestores e trabalhadores do campo da saúde para fazer avançar estes limites. Se por um lado estamos longe de alcançar a efetivação destes princípios, por outro, temos hoje todo um conjunto legislativo que nos permite pressionar o Estado, exigindo a consolidação de sistemas de atendimento a esta população.

O sistema judiciário, por meio do Ministério Público, tem muitas vezes contribuído para a garantia do direito constitucional de acesso universal à saúde. Entretanto, a falta de conhecimento e o despreparo dos operadores do Direito para a complexa e diversificada modelagem de assistência às pessoas que usam drogas obstrui a utilização das determinações judiciais como mecanismo de construção desta rede: a partir de uma perspectiva que confunde “atenção a pessoas que usam drogas” com “internação para desintoxicação”, juízes e promotores têm utilizado seu poder, não para exigir a consolidação de uma rede múltipla, mas para forçar prefeitos a internar as pessoas que usam drogas, mesmo quando o tratamento mais adequado não seria este. Este assunto foi tema de uma mesa muito concorrida no último congresso nacional da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e Adolescência. A prática cotidiana de encaminhamentos feitos por juízes e promotores para serviços de atenção, sem a supervisão de profissionais da saúde, ainda é bastante comum, especialmente para unidades de desintoxicação em ambiente hospitalar (UD’s), ou CT’s. No caso das UD’s, a compreensão que escapa aos magistrados é que este tipo de intervenção, quando descolada da construção de um itinerário terapêutico que envolva a família, e que prepare suportes para o retorno da pessoa ao convívio social, costuma resultar em retorno ao uso depois de poucos dias.

3.1 Comunidades Terapêuticas: uma resposta diante do vazio estatal?

No caso das CT’s, o descaso pode resultar em problemas ainda mais graves. Diante de um poder fiscalizador extremamente precário, tanto por parte do estado como de instituições que deveriam cumprir papel regulador, como a Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT), multiplicam-se os “depósitos de gente”, sem nenhuma condição sanitária e com projetos terapêuticos no mínimo duvidosos. Em algumas cidades brasileiras, é comum ver furgões que levam os internos de algumas destas comunidades para efetuarem a venda produtos (canetas, alimentos e artesanato), como forma de sustento da CT. Passam muitas vezes o dia inteiro em tal atividade, diante do que se pergunta: é este o modelo de atenção? É este o projeto terapêutico? Ir para as ruas, vender canetas nos semáforos?

Mas isto não é o pior. Proliferam também casos de tortura, violência e maus tratos em diversos destes centros. Em junho de 2007, a “Casa de Recuperação Renascer em Cristo”, em Ribeirão Preto, São Paulo, foi denunciada. A fiscalização encontrou, na mesma sala na qual se guardavam medicamentos, diversos porretes de madeira

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utilizados no espancamento dos internos. Em maio deste ano (2008), no Rio Grande do Sul, a “Associação Terapêutica Cristã” foi denunciada pelo Ministério Público por causa das denúncias de maus tratos. Diversos jovens apresentavam lesões corporais sérias, e relatavam uso de “eletro-choque” e de “espadas” como dispositivos de “disciplinamento”. Mas, para além destas práticas assumidas por todos como abusos, há ainda as práticas consideradas como “terapêuticas”, e que encontram questionamentos severos por parte de diversos estudiosos das ciências psi. Dentre estas se destaca o “confronto”, dispositivo amplamente utilizado nas CT’s. Trata-se de um evento no qual um dos internos vai para o centro de uma roda formada pelo conjunto dos outros internos. Ao longo desta reunião (que pode demorar horas, a depender da quantidade de internos da CT), a pessoa no centro da roda ouve tudo aquilo que os outros julgam errado em si, sem poder manifestar-se nem mesmo corporalmente. No “confronto”, o nível de crueldade costuma ser bastante elevado, mas varia de uma comunidade para outra, ou mesmo dentro de uma mesmo CT, de um monitor para outro.

É preciso esclarecer que este tipo de situação não ocorre na totalidade das CT’s. Há diversas destas instituições com longa trajetória de serviços prestados à sociedade, com projetos terapêuticos condizentes com critérios elevados de cuidado, presença de profissionais qualificados, e real compromisso com a qualidade da atenção. As experiências que denunciamos aqui dizem respeito a um contexto no qual o tratamento vale-se de diversos dispositivos para produzir uma “quebra no orgulho” das pessoas que usam drogas, por meio da utilização de discursos de diminuição do valor destas pessoas. Bastante ao avesso dos investimentos em fortalecimento da auto-estima, presentes em diversas linhas de cuidado, o que se verifica nestas CT’s situadas abaixo do padrão aceitável, é a busca sistemática do rebaixamento da dignidade como dispositivo terapêutico.

Outro “dispositivo terapêutico” bastante peculiar é o uso do trabalho como castigo diante de eventuais falhas disciplinares. Aliás, as próprias falhas merecem um olhar: para algumas destas comunidades, a conversa sobre o passado pode ser considerada uma indisciplina; em outras, conversar com uma pessoa que se encontra do outro lado de uma janela é o suficiente para punição. Não se permite questionar as regras, cuja quebra resulta em trabalho extra ou perda de alguns “privilégios” (sobremesa, televisão, esporte), ou mesmo da alimentação, em casos mais isolados, de CT’s mais despreparadas. Nos casos mais graves, de CT’s muito despreparadas, verifica-se a intervenção na alimentação coletiva: os internos podem ficar longos períodos com a alimentação restrita a um mingau de milho, por exemplo. Há relatos de CT’s nas quais, diante de problemas com a higiene nos banheiros, procedeu-se a retirada das portas dos sanitários, obrigando os internos à exposição durante o ato de defecar. Mas a punição mais comumente empregada é a destinação de determinadas tarefas, e a perda do dia de folga (domingo). Estas tarefas, muitas vezes, incluem atividades penosas e humilhantes, como ter de cavar um buraco, para logo em seguida, fechá-lo.

Outro problema sério diz respeito ao caráter religioso destas instituições. Nestes centros religiosos, a liberdade de culto esvai-se, numa afronta às mais fundamentais liberdades individuais. Em algumas, é expressamente proibida a simples presença de livros não religiosos, ou de religiões distintas daquelas manifestas pelo centro. Os cultos são considerados “atividades terapêuticas”, e a presença é obrigatória. Há inclusive relatos de centros nos quais os internos são acordados no meio da madrugada, conduzidos a um local de oração, para voltarem ao leito, depois de algum tempo.

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Convém salientar, por certo, que estes problemas mais sérios são verificados em uma minoria das CT’s. Porém, diante da quase total ausência de um sistema efetivo de fiscalização, as CT’s que se destacam por um bom modelo de atenção, com itinerário terapêutico definido, respeito aos direitos fundamentais e tratamento condizente com as necessidades dos internos, o fazem muito mais por convicção do que por uma obrigação imposta pelo Estado e pela sociedade.

Confiar nesta boa vontade, entretanto, é algo inadmissível. Urge a criação de dispositivos de regulação eficientes, que cubram não apenas os aspectos sanitários da instituição (tamanho dos quartos, número de banheiros, detalhamento técnico da cozinha...), e aspectos técnicos (presença de profissionais qualificados que possam responsabilizar-se pelo tratamento), mas também aspectos relacionados ao próprio projeto terapêutico da instituição. Sabemos da diversidade de escolas clínicas, especialmente no campo das ciências psi; entretanto, há padrões mínimos de qualidade, que precisam ser garantidos, sob pena de um laisez faire que nos impede de refletir, de pensar e de agir.

3.2 Sistema público: desafios e avanços para a efetivação da universalidade e da integralidade

O jornal Zero Hora, em sua edição do dia 10 de agosto de 2007, trazia uma ampla reportagem sobre uma mãe que precisou acorrentar seu filho como forma de mantê-lo afastado do uso de crack. O jovem, longe de manifestar revolta ou qualquer outro tipo de sentimento negativo para com a mãe, apenas dizia que não consegui se manter sem usar a droga, por mais que desejasse. A mãe, diante da cobrança dos jornalistas quanto à sua estratégia, perguntava: que outra saída existe?

Foto: Tadeu Vilani / Agência RBS

O uso de correntes a outras formas de aprisionamento para contenção de pessoas com uso compulsivo de álcool e outras drogas remonta as formas como muitas

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pessoas com sofrimento psíquico são tratadas, infelizmente, ainda hoje. Não é incomum ouvir-se de agentes comunitários de saúde (ACS’s)22 histórias sobre pessoas com transtornos mentais que são encontradas aprisionadas em suas casas, durante visitas domiciliares.

Quando encontram uma pessoa nesta situação, os ACS’s buscam operar uma rede de encaminhamentos que têm por objetivo a inclusão desta pessoa em algum dos serviços da rede substitutiva aos manicômios, que vem paulatinamente sendo construída no Brasil. Mas, quando o problema é o acorrentamento de jovens com uso abusivo de crack, as coisas complicam-se; pouquíssimas cidades possuem uma rede de atenção minimamente construída de modo a dar conta da complexidade da atenção a pessoas com uso problemático de álcool e outras drogas. Para a imensa maioria das mais de cinco mil cidades brasileiras, a realidade é a desatenção, ou, na melhor das hipóteses, a mera internação para desintoxicação, sem que se ofereça uma rede de serviços de suporte para o acompanhamento na saída do ambiente hospitalar. Isto quando se consegue acessar um serviço hospitalar de desintoxicação. No Brasil, a Reforma Psiquiátrica preconiza o fechamento de manicômios, e a abertura de leitos em hospitais gerais (LEI 10.216/2001). A Política de Atenção Integral ao Usuário de Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde (BRASIL, 2004), igualmente preconiza que esta população não deve ser internada em hospitais psiquiátricos. Estas normativas, extremamente adequadas, infelizmente não garantiram, até agora, a consolidação de uma rede de serviços substitutivos capaz de dar conta da demanda cada vez maior de pessoas que necessitam de acompanhamento, seja para os eventuais problemas decorrentes do uso problemático de álcool e outras drogas, seja para cuidados no sentido mais amplo.

No que diz respeito à internação para desintoxicação - estratégia muitas vezes necessária no início de um itinerário terapêutico – a carência de leitos é de tal modo brutal, que torna inclusive difícil iniciar uma reflexão acerca de quantos leitos seriam necessários para uma equalização do problema. Para piorar, emerge em diversas cidades do Brasil a denúncia de que muitos dos poucos hospitais que realizavam este tipo de procedimento passaram a se recusar a atender pessoas com uso de crack, com as mais diversas justificativas oficiais. Informalmente, o que diversos ativistas têm denunciado, sem que possam produzir provas a respeito, é que estas pessoas estão ficando sem atendimento por causo do medo que as equipes têm desta população.

Na esteira da construção de serviços substitutivos à lógica manicomial, o Ministério da Saúde tem investido pesado na criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). O primeiro CAPS foi criado em 1987. Hoje, são 1.181 centros espalhados em todo o território nacional, sendo 165 deles destinados ao tratamento especializado a pessoas com uso problemático de álcool e outras drogas (os CAPS-ad)23. Não obstante esta demonstração de vontade política do Estado Brasileiro é preciso que se diga: ainda há muito a ser feito, tanto no sentido de seguir investindo na garantia da universalidade, estendendo estes serviços à totalidade da população, quanto na busca de serviços que invistam na integralidade. A respeito disto, há duas coisas que 22 Os agentes comunitários de saúde (ACS’s) são trabalhadores de nível médio, inseridos em equipes do Programa de Saúde da Família (PSF). O PSF é uma estratégia de descentralização e capilarização do cuidado em saúde para todo o território nacional. Cada PSF conta com um médico, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e no máximo seis ACS’s. Esta equipe tem como responsabilidade a cobertura de um determinado território, e os ACS’s fazem a ligação entre equipe e comunidade, promovendo saúde diretamente nos locais em que as pessoas vivem. 23 Dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, Coordenação Nacional de Saúde Mental.

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precisam ser ditas: primeiro, é preciso que o Estado reconheça que os CAPS e os CAPS-ad, ainda que sejam dispositivos louváveis e necessários, são insuficientes para o atendimento das demandas de pessoas com uso problemático de álcool e outras drogas, e incapazes de promover a integralidade, se isolados de toda uma rede de outros serviços e políticas de Estado (leitos em hospital geral para desintoxicação, serviços de atenção especializada no tratamento da Aids, imunização e atenção para pessoas como sorologia positiva para hepatites virais, residenciais terapêuticos, programas de Redução de Danos, cooperativas sociais, geração de emprego e renda, seguridade social...).

Com relação à Aids, há uma série de questões pertinentes que nos ajudam a pensar nos atravessamentos e articulações entre saúde e cidadania. Até 1995, foram 23.455 casos de infecção por compartilhamento de seringas e outros equipamentos de uso de drogas24, perfazendo 27,5% dos 85.363 casos registrados até aquele momento. Desde então, este número vem caindo paulatinamente, chegando aos 10,1% dos casos registrados em 2007, e 19,7% da totalidade dos casos acumulados até aquele ano25. Tal realidade não pode ser explicada de modo simples, mas a partir de uma complexa rede causal, da qual se poderia destacar a implementação de ações de Redução de Danos, construídas com a participação de pessoas que usam drogas, não só como agentes políticos com voz ativa nas decisões acerca das políticas, mas também elevados à condição de trabalhadores de saúde26, seja em PRD’s municipais, seja em projetos de Redução de Danos implementados por ONG’s27. Além disto, também se deve creditar esta diminuição nos casos de Aids entre pessoas que usam drogas à migração da cocaína injetável para a cocaína fumada (crack e suas variantes).

Não obstante o esforço do PN Aids em garantir a universalidade da atenção em saúde, bem como em promover a inclusão e participação política de pessoas que usam drogas na elaboração e fiscalização das políticas de cuidado, o estigma resultante das dinâmicas de criminalização ainda faz recair efeitos nefastos sobre esta população. Segundo a pesquisadora Mônica Malta, em recente e premiado trabalho sobre esta população, resultado de sua tese de doutoramento na Fiocruz, apesar de o país manter um programa de Aids reconhecido internacionalmente como inclusivo, gratuito e universal, percebe-se que existe ainda uma fatia de pacientes que não conta com o acesso universal preconizado pelo SUS. Isso pode ser visto principalmente entre pessoas que usam drogas. Como razões para tanto, a pesquisadora aponta tanto questões pessoais (padrões de vida desregrado associado à dependência química que pode levar a problemas na aderência ao tratamento), quanto a inexistência de uma rede de apoio adequada às múltiplas necessidades destes pacientes. O fato é que pessoas que usam drogas vivendo com HIV e Aids tendem a começar o tratamento tardiamente, e conseqüentemente, tendem a ter uma menor resposta ao tratamento e uma sobrevida menor do que de outras populações28.

24 Durante muito tempo, sonegou-se a informação de que não era apenas o compartilhamento de seringas que expunha às pessoas ao risco de infecção pelo HIV, mas também o compartilhamento de outros equipamentos, com destaque para os recipientes de diluição, como pequenos copos de plástico ou colheres. 25 Dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, Programa Nacional de DST e Aids (PN Aids). 26 Este tema será aprofundado no capítulo sobre cidadania das pessoas que usam drogas. 27 Esta inclusão, entretanto, encontra limites diante da precariedade dos vínculos trabalhistas e da baixa valorização dos redutores de danos, que se reflete na precariedade e descontinuidade, ou mesmo na inexistência de remuneração. 28 A pesquisa aqui referida é resultante da tese de doutorado que será ainda defendida pela autora junto à Escola Nacional de Saúde Pública, ainda não se encontrando publicada de modo a poder ser referenciada.

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Outra questão a ser levantada, e que se relaciona não só ao PN Aids, mas de modo especial a esta área do Ministério da Saúde, diz respeito a sustentabilidade dos trabalhadores envolvidos na atenção a esta população, em oposição ao discurso oficial de prioridade para o tema. Há no Brasil, CAPS em que os psiquiatras recebem pouco mais de 500 dólares por mês. Para os trabalhadores com menor nível de escolaridade, a situação é ainda pior: redutores de danos, na maioria dos casos, são desrespeitados em seus mais fundamentais direitos trabalhistas, percebendo, na maior parte dos casos, remunerações abaixo do salário mínimo, ou simplesmente jogados na condição de voluntários. Há ainda o problema decorrente de lógicas de financiamento descontínuas, que fazem com que estes trabalhadores fiquem, por vezes, meses sem receber nenhuma remuneração, obrigando-os a buscar outras formas de sustentabilidade, por vezes absolutamente incompatíveis com a dignidade que se espera reconhecida em um trabalhador de saúde. Em 2006, durante o VI Congresso Brasileiro de Prevenção das DST e Aids, as duas grandes redes de Redução de Danos no Brasil (ABORDA e REDUC), exigiram, em um fórum dedicado ao tema, a constituição de um grupo de trabalho interministerial para o estudo de alternativas ao tema da precarização do trabalho dos redutores de danos. A proposta jamais teve encaminhamento efetivo, por mais que as associações tenham retornado ao tema em diversos momentos29.

Com relação as hepatites, também se observa um grande esforço do Estado Brasileiro em recuperar o tempo perdido com relação às vulnerabilidades específicas de pessoas que usam drogas, especialmente por via injetável. Em 1998, a pesquisa Ajude Brasil indicava que 77% das pessoas com uso de drogas injetáveis entrevistadas tinham sorologia positiva para hepatites dos tipos B e C. Em 2002, o Ministério da Saúde cria o Programa Nacional de Hepatites Virais (PNHV), com a tarefa de organizar e articular os esforços para o enfrentamento da epidemia de hepatites, epidemia esta que vulnerabiliza especialmente às pessoas que usam drogas injetáveis, de modo muito mais severo que a Aids. Até 2006, segundo o órgão, foram registrados 1.159 casos de hepatites do tipo B, tendo como provável via de infecção o uso de drogas, em um total de 31.735 casos (proporção de 3,65% das pessoas com sorologia positiva). Quanto a hepatites do tipo C, foram registrados 10.066 casos com igual via de transmissão presumida, para um total de 34.986 pessoas com sorologia positiva para o vírus (proporção de 28.78% das pessoas com sorologia positiva)30.

Por fim, outro aspecto que obstaculiza a integralidade e universalidade, são as resistências à articulação de redes de atenção constituídas por um conjunto de estratégias cada vez mais diversificadas. Têm sido cada vez mais freqüentes, é verdade, os esforços de cooperação entre trabalhadores de saúde situados em distintos pontos das redes de atenção, operando a partir de diferentes perspectivas de cuidado, construindo itinerários terapêuticos individualizados. Não obstante, são muitos os relatos de intolerância com a diversidade. Caso exemplar é o da Secretaria Especial de Prevenção à Dependência Química do Município do Rio de Janeiro. No site deste órgão da Prefeitura Municipal, estão expressas as opiniões do site a respeito de uma série de temas, dentre os quais, a Redução de Danos. O que se pode ler é uma série de informações distorcidas, que têm por objetivo o fortalecimento de discursos de oposição à Redução de Danos. Tais iniciativas, absolutamente inconcebíveis para uma instância governamental, demonstram que subsistem discursos e práticas de boicote à construção 29 Naquele momento, foi possível ouvir de técnicos do PN Aids e do PNHV que “esta não é uma questão para o Ministério da Saúde”. Isto soa muito estranho, vindo de representantes de um governo que constituiu, inclusive, um programa nacional para desprecarização do trabalho em saúde (BRASIL, 2006). 30 Dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, Programa Nacional de Hepatites Virais.

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de redes de cuidado que contemplem a complexidade e a diversidade com que o fenômeno do uso de drogas deve ser tratado. Afinal, não é com a diminuição do repertório de estratégias de cuidado que iremos melhorar o modelo de atenção para pessoas com uso problemático de álcool e outras drogas.

3.3 Legislação sobre álcool no Brasil – Avanço ou retrocesso?31

A partir de 20/06/2008, passou a vigorar a lei 11.705/08, que prevê severa punição ao condutor de automóveis que tiver consumido qualquer quantidade de álcool, além da comercialização de bebidas alcoólicas nas rodovias federais e em zonas rurais das estradas federais.

O presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva havia editado a Medida Provisória (MP) com a proibição da venda das bebidas alcoólicas tanto nas áreas urbanas quanto rurais das rodovias, mas o texto acabou modificado pelos parlamentares, resultando em uma nova votação na Câmara.

Uma taça de vinho ou uma lata de cerveja já serão flagrados pelo bafômetro, aparelho que será utilizado para verificação de concentrações de álcool no sangue. Até mesmo durante a ressaca o bafômetro poderá registrar vestígios de álcool no corpo.

Caso haja enquadramento criminal, a pena pode ir de seis meses a três anos de prisão, com direito à fiança. As penalidades administrativas são multa de R$ 955, sete pontos na carteira de habilitação32, apreensão do documento e do carro. O valor-limite é de 0,2% de álcool por litro de sangue, sendo que após este limite, o condutor será preso em flagrante.

Para os comerciantes que venderem bebidas alcoólicas nas áreas rurais das estradas, a multa será de R$ 1.500. Em casos de reincidência, o valor da multa será dobrado. Com mudança na MP, o homicídio praticado por motorista poderá ser doloso (com intenção).

Os índices de álcool serão verificados de três maneiras: o bafômetro, o exame de sangue e exame clínico, que servirá para indicar sinais evidentes de embriaguez como olho vermelho, alegria excessiva e falta de coordenação motora.

Importante frisar que o motorista que se recusar a fazer exames de bafômetros e de coleta de sangue para verificar a quantidade de álcool consumido estará sujeito às penalidades do artigo 165, do CTB.

No antigo (porém nem tanto!) Código Nacional de Trânsito, conforme artigo 165, Capítulo XV, “Das Infrações”, considera-se infração:

[...] dirigir sob a influência de álcool, em nível superior a seis decigramas por litro de sangue, ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica. Infração - gravíssima; Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir; Medida administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.

Parágrafo único. A embriaguez também poderá ser apurada na forma do art. 277.

31 Este texto foi elaborado por Daniela Piconez Trigueiros – psicóloga, como contribuição da Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (REDUC), para o documento apresentado por ABORDA e REDUC em Beyond 2008, Viena 7-9 de junho. 32 Pela legislação brasileira, o motorista que alcançar vinte pontos tem sua carteira de motorista apreendida por um ano.

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Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de haver excedido os limites previstos no artigo anterior, será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia, ou outro exame que por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.

Esta nova legislação em vigência aproxima-se de leis adotadas em países altamente conservadores, como os países muçulmanos, onde não é permitida nenhuma concentração de álcool no sangue, com penalidade de multas à prisão. Algumas nações islâmicas, como Arábia Saudita e Irã, a venda de bebidas alcoólicas é proibida no país.

Segundo dados pesquisados pela International Center For Alcohol Policies, entidade alocada nos Estados Unidos, mostram que a legislação brasileira é mais rígida do que a de 63 países pesquisados, que prevêem limite de concentração de álcool entre 3 e 8 decigramas por litro de sangue.

Entre os países da América do Sul, o Brasil tem a segunda legislação mais rígida - atrás apenas da Colômbia, que prevê tolerância zero para o álcool. Em países como Argentina, Venezuela e Uruguai, o limite legal de concentração de álcool no sangue varia de 5 decigramas por litro a 8 dg/l, destacando que o Uruguay é o mais tolerante entre estes países (8 decigramas por litro).

Nos EUA, esta lei varia a cada Estado, com o limite fica 1 a 8 dg/l. Menos tolerantes que o Brasil estão algumas nações do leste europeu, como Romênia e Hungria, onde o limite é zero. Outros países da Europa, como Alemanha, França, Espanha e Itália têm limites de 5 dg por litro, acima do brasileiro, apontando para legislações mais flexíveis sobre o tema.

Os ingleses também tem o limite de oito decigramas de álcool por litro, porém se o condutor for flagrado alcoolizado, responderá a uma acusação, suspensão da carteira de habilitação por um ano, além de seu nome numa ficha criminal. Se for considerada grave a infração, o condutor poderá pagar multas de até 5 mil libras e poderá também ser detido por seis meses. Se houver recusa para o teste do bafômetro, o condutor ficará detido por 12 horas.

Na França, este limite cai para 5 decigramas por litro, porém obriga todos os bares e casas noturnas a terem seus próprios bafômetros.

Inusitadamente na Rússia, com um dos piores índices de segurança no trânsito do mundo e que segundo dados do governo, no ano de 2007 cerca de 33 mil pessoas mortas em acidentes de trânsito, sendo metade desse número causado por motoristas bêbados, foi aumentado o limite para três decigramas de álcool por litro de sangue, permitindo aos motoristas que bebam um copo de cerveja antes de dirigir.

No Canadá, a legislação permite a concentração de 8 decigramas de álcool por litro no sangue, além da fiscalização intensa em outras legislações existentes sobre o tema.

Desde a aprovação da lei, a mídia impressa, radiofônica e televisiva anuncia o número de detenções realizadas nas estradas federais e nas cidades brasileiras, as excessivas multas aplicadas em motoristas que não passaram nos testes, o aumento das prisões em todos os Estados do Brasil, além da divulgação dos milhões de reais que tem se investido (e ainda serão) na “guerra contra o álcool”.

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Todo o aparato policial está nas ruas, sustentando o discurso de que esta é uma medida de Saúde Pública e que deverá ser perseguida de forma obstinada, até que não se tenha nunca mais ninguém ingerindo nenhuma quantidade de álcool antes de dirigir, ou até mesmo a ingestão de alimentos que contenham álcool em sua composição.

A ambigüidade se mostra de várias maneiras neste episódio atual no cenário brasileiro, mostrando mais uma vez que o governo brasileiro não pretende abrir mão das políticas antidrogas, com foco primordial na redução da demanda e da oferta.

Não há como negar os malefícios do álcool em situações que requeiram concentração e atenção. Um copo de cerveja, por exemplo, leva cerca de seis horas para ser eliminado pelo organismo. Uma dose de uísque requer um maior tempo de eliminação.

A crítica apontada, que se mantém ao longo destes anos, é a de que toda a política de drogas do Brasil não é tratada como uma questão de saúde, mas somente como uma questão policial.

A mídia nacional não publicou sequer uma linha sobre educação e prevenção ao uso prejudicial de álcool; não houve espaço para opiniões discordantes acerca da lei; não há cifras apresentadas que pretendam investir na Redução de Danos associada ao uso de álcool, à melhoria do transporte público e a garantia dos direitos da pessoa humana.

Já se escuta pelos quatro cantos deste país que o consumo de maconha irá aumentar... E o que poderemos fazer para instituir uma política SOBRE drogas que seja pragmática e adequada à cultura brasileira?

3.4 À guisa de conclusão

Percebe-se um esforço considerável por parte do Estado Brasileiro no sentido da efetivação dos princípios de universalidade, eqüidade e integralidade expressos nos textos das leis 8.080/90 (Lei que cria o Sistema Único de Saúde) e 10.216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica). São igualmente louváveis a consolidação de uma Política de Atenção Integral ao Usuário de Álcool e Outras Drogas, bem como os esforços da Coordenação Nacional de Saúde Mental em ampliar a rede de serviços substitutivos ao modelo manicomial previamente existente, com destaque para a ampliação do número de CAPS e CAPS-ad. A inclusão da Redução de Danos como estratégia integrante da resposta brasileira à epidemia de HIV/Aids também deve ser considerada um avanço, não apenas por ajudar a construir a integralidade, mas por constituir-se em real dispositivo de promoção de cidadania de pessoas que usam drogas. Além do mais, deve-se destacar a criação do Programa Nacional de Hepatites Virais, que vem devotando um interesse especial pela população de pessoas que usam drogas.

Não obstante todos estes esforços, a garantia de universalidade e da integralidade ainda está muito aquém da demanda emergente no cotidiano da vida vivida. Há muitas denúncias de hospitais que se recusam a receber pessoas com uso de crack para tratamentos de desintoxicação. Observa-se também uma crescente demanda por parte da população, que busca apoio nos serviços públicos de saúde, sem encontrar respostas. Sem recursos, as alternativas para os trabalhadores de saúde, muitas vezes, estão limitadas ao encaminhamento para CT’s, ONG’s e grupos de mútua ajuda, como AA’s e NA’s, que são estratégias por vezes adequadas, mas insuficientes para dar conta de uma demanda tão grande e complexa. Além disto, a hierarquização de serviços

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organizados pela sociedade civil como prioritários denuncia o vazio de políticas de Estado, e uma dinâmica já bastante conhecida, no caso brasileiro: as políticas afirmadas nos textos constitucionais não se efetivam no cotidiano do país.

Em seus discursos formais, representantes nos três níveis de governo costumam afirmar que a implementação de políticas de atenção a pessoas com uso problemático de álcool e outras drogas é prioridade. Na prática, a descentralização das ações de saúde entrega um “cheque em branco” nas mãos dos municípios, que em muitos casos realizam investimentos desprezíveis na solução destes problemas. Além disto, textos avançados como o da Política de Atenção Integral ao Usuário de Álcool e Outras Drogas (BRASIL, 2003), não conferem – nem ao governo, nem à sociedade civil – poderes efetivos que garantam a efetivação de suas lógicas por parte de governos municipais, que muitas vezes, prossegue investindo em ações desconectadas da política nacional de respeito aos direitos humanos desta população.

Com relação às iniciativas da sociedade civil, estas devem ser muito bem-vindas, mas sempre consideradas como complementares, e não centrais no enfrentamento dos problemas decorrentes do uso problemático de álcool e outras drogas.

O papel da sociedade civil deve ser contemplado em consonâncias com os princípios do SUS, na esfera do controle social e não como resultado de descompasso entre Estado e sociedade, visando exclusivamente a descentralização de recursos.

O controle social possibilita a participação da sociedade civil no planejamento, monitoramento e avaliação das ações empregadas por órgãos públicos, além da gestão compartilhada entre Estado e sociedade, comprometendo a todos na efetividade com qualidade, garantindo os direitos humanos na elaboração de políticas públicas.

O governo pode e deve incluir estas iniciativas comunitárias em seus planejamentos, mas jamais considerá-las como as principais estratégias, o que se verifica, em muitas cidades, no caso das CT’s e de ações de Redução de Danos implementadas por ONG’s. Além disto, tais iniciativas precisam ser cobertas por fiscalização, não só no que concerne aos contratos de repasse de recursos e adequação sanitária das instalações, mas naquilo que é o central em um processo de promoção de saúde: o itinerário terapêutico.

As estratégias para a busca de uma equação dos problemas relacionados com o uso problemático de álcool e outras drogas demonstram que persistem discursos inconciliáveis dentro do Estado Brasileiro. Ao lado de políticas governamentais e de iniciativas produzidas no âmbito do Ministério da Saúde, pautadas pelo respeito aos Direitos Humanos, dirigidos à promoção de saúde e cidadania, subsistem práticas conservadoras, apresentadas como grandes inovações. Tal é o caso de medidas como a criminalização de motoristas com uso de álcool, independente da quantidade. Não se trata, por certo, de dizer que não existem riscos em se conciliar álcool e direção, mas nos parece que a pena de prisão é um tanto quanto inadequada para tal infração.

Urge ao governo brasileiro intensificar investimentos em serviços de saúde para esta população, condizente com a magnitude do problema. Que estes investimentos sigam sendo direcionados à constituição de serviços alinhados às perspectivas da Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátrica, nos termos dos textos expressos nas leis 8.080/90 e 10.216/2001, bem como na Política de Atenção Integral ao Usuário de Álcool e Outras Drogas (BRASIL, 2004). É preciso que Ministério de Saúde e sociedade civil passem a contar com mecanismos de pressão mais eficientes (controle

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social), que possibilite exigir de estados e município a implementação de serviços de atenção alinhados a perspectivas de cuidado condizentes com o respeito aos direitos e à dignidade humana. Por fim, é mister que os trabalhadores destes serviços sejam respeitados em seus direitos e em sua dignidade, pois não se pode pensar em políticas de atenção em saúde mais equilibradas, se os profissionais dedicados à execução destas ações, no cotidiano, encontram-se por vezes em situação de extrema vulnerabilidade social.

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4. Políticas de drogas e cidadania33

De uma certa maneira, todos os artigos anteriores a este já abordaram alguns aspectos daquilo que aqui será um pouco mais aprofundado. Salo descreveu de que modo as legislações sobre drogas, no Brasil, sempre operaram de modo a restringir a cidadania de determinados grupos sociais; Atílio, por seu turno, mostra que estes grupos, inseridos em uma rede discursiva relacionada ao fenômeno “Drogas”, são expostos a um conjunto bastante específico de vulnerabilidades, demonstrando o caráter estrutural da violência que produz o genocídio de milhares de jovens pobres, ano após ano. Dênis nos fala da integralidade e da universalidade, princípios fundamentais do sistema de saúde brasileiro, mas ainda não efetivados no cotidiano da vida vivida, em especial por pessoas que usam álcool e outras drogas.

A partir de uma certa racionalidade, por certo hegemônica, só é permitido reconhecer às pessoas que usam drogas de duas formas distintas, mas não antagônicas: ou como doentes, ou como criminosos. Para os doentes, forjam-se dispositivos anátomo-políticos, e para os criminosos, dispositivos disciplinares (FOUCAULT, 2004).

Felizmente, a história não acabou. É sempre possível a construção de novos dispositivos, que façam funcionar novas dinâmicas sociais, mais solidárias, inclusivas. E estes processos, por certo, só efetivam-se a partir da participação direta das populações para as quais se elaboram determinadas políticas. O movimento social envolvido na luta contra a Aids, no Brasil, é uma demonstração clara disto; a partir do momento em que superamos o preconceito de noções como “grupos de risco”, foi possível elevar a condição de grupos, antes criminalizados, à condição de atores políticos, por meio do reconhecimento do Estado. Foi assim com prostitutas e travestis, por exemplo. A resposta Brasileira à epidemia do HIV, considerada referência mundial, foi construída a partir da participação direta destas populações.

As próximas linhas têm este objetivo: trazer alguns relatos sobre a mobilização de pessoas que usam drogas no Brasil, e dos obstáculos à construção de esferas públicas e de canais de expressão da cidadania de modo organizado e legitimado.

4.1 O Movimento Antiproibicionista no Brasil: tensões com o instituído34

O Brasil tem um longo histórico de criminalização de movimentos sociais. O próprio Estado brasileiro tem origem em um processo de construção que envolveu principalmente as elites, privilegiando interesses de atores sociais que já tinham acesso ao poder público. Desde a sua origem, o Brasil foi construído a partir dos interesses

33Para efeitos deste relatório, compreende-se cidadania como tradução de dimensões como reconhecimento por parte do Estado, expresso em termos de políticas públicas, e a participação política na vida da Polis. Deste modo, contemplamos tanto aspectos relacionados à garantia de direitos, quanto à participação ativa nas trocas e disputas que constituem o campo específico de que se fala (neste caso, o campo político-reflexivo constituído em torno das drogas, dos seus usos e das políticas relacionadas). 34 Esta seção foi elaborada por Sérgio Vidal – cientista social, coordenador da Ananda - Associação Interdisciplinar de Estudos sobre Plantas Cannabaceae, pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Sustâncias Psicoativas (GIESP), da Universidade Federal da Bahia, como contribuição para o documento apresentado por ABORDA e REDUC em Beyond 2008, Viena 7-9 de junho.

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econômicos e políticos de grupos privilegiados dentro da sociedade. Não poderia ser diferente em se tratando de políticas e leis voltadas para as pessoas que usam drogas.

Apesar de muitos terem se acostumado a ver o Brasil como um Estado Democrático consolidado, é sempre bom lembrar que o processo de redemocratização, datado a partir da Assembléia Constituinte de 1988, completará 20 anos em outubro desse ano. Lembrando isso, podemos afirmar que a Democracia Brasileira ainda está em processo de construção e que o país ainda depende da força dos movimentos sociais, e das pressões exercidas por eles, para aos poucos forjar os caminhos que de fato levem a um Estado onde todos possam sentir-se representados e com direito a participar na elaboração dessa Democracia.

Os movimentos sociais que lutam por mudanças nas políticas e leis sobre drogas no Brasil não são um fenômeno recente. Eles surgiram ainda durante a década de 1970, durante a fase final da Ditadura Militar (1964-88). As primeiras manifestações foram construídas dentro das universidades, redutos privilegiados onde ainda era possível construir uma resistência política e cultural aos esforços de censura e controle exercidos por parte dos militares. No final de década de 1970, início de 1980, diversos debates, seminários e outros encontros de cunho acadêmico e político foram realizados. A maioria dessas discussões giravam em torno do tema da legalização da maconha, buscando facilitar a articulação entre acadêmicos, intelectuais, artistas e o movimento estudantil. Além desses debates, também circulavam revistas, fanzines, panfletos e outros materiais informativos que buscavam realizar a divulgação de fatos e dados a respeito desses movimentos e do contexto antiproibicionista internacional.

Após esse período inicial, houve um vácuo durante a década de 1990 onde o debate ficou restrito a algumas manifestações de músicos e outros artistas, e esse tipo de manifestações só voltaram a ocorrer na década de 2000. No início dessa década ocorreram algumas manifestações como a Passeata Verde (São Paulo, Rio de Janeiro 2003, 2004 e 2005), as Passeatas pela Legalização das Drogas (Rio de Janeiro – 2004 e 2005), o Congresso Cannabis (Salvador - 2004) e algumas edições da Marcha da Maconha (Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre -2004 e 2006).

Este ano, quando parecia que o Brasil daria um exemplo de tolerância à diversidade de manifestação social e política, ocorreu um dos exemplos mais terríveis de criminalização dos movimentos sociais e de censura ao debate sobre políticas e leis sobre drogas. Entre abril e maio desse ano, o país reviveu cenas que lembraram o período da Ditadura Militar, quando a liberdade de expressão foi extinta, os movimentos sociais eram reprimidos de forma violenta e os manifestantes eram considerados criminosos e punidos pela Lei.

O site da Marcha da Maconha publicou diversas notas e artigos explicando os objetivos e princípios do movimento, baseados no respeito às Leis, à cidadania e aos Direitos Humanos. Além disso, o discurso do movimento sempre foi muito mais amplo do que a defesa da legalização da maconha enquanto droga, abarcando os aspectos do uso das partes não-psicoativas da planta, buscando ampliar o debate a respeito do tema.

Apesar disto, e dos membros da organização sempre terem buscado o diálogo com as autoridades e o respeito aos trâmites legais necessários para a realização do evento, no final de abril, uma onda de liminares que teve inicio em Salvador, expedidas pelo Ministério Público de 10 cidades, acabou recebendo aceitação por juízes que decidiram considerar o evento como apologético antes mesmo dele acontecer.

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A repressão teve início com a proibição da exibição do filme Grass (1999), do diretor canadense Ron Mann, que estava sendo promovida por estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. A direção da Faculdade de Geociências, onde ocorreria a exibição, proibiu o evento e acionou a segurança do campus e a Polícia Militar para coibir a exibição do vídeo. Após esse ato de censura, a reitoria da UFMG foi ocupada por cerca de 1 semana até que houvesse o compromisso de apurar as denúncias de abuso e ocorresse uma retratação pelo ocorrido.

No dia 21 de abril, 5 militantes do movimento no Rio de Janeiro foram presos em flagrante distribuindo panfletos de divulgação da Marcha, acusados de apologia ao crime. Tiveram suas imagens expostas em dezenas de jornais em todo o país e até meados de junho corriam o risco de serem punidos por divulgarem uma manifestação pacífica e democrática. O processo foi arquivado, livrando-os de irem a julgamento que ocorreria no dia 10 de julho, mas não houve qualquer tipo de retratação pelos danos morais provocados devido à prisão injusta ocorrida.

O golpe central no movimento deu-se a partir da expedição de liminares através de uma ação coordenada empreendida pelos Ministérios Públicos de quase vinte cidades brasileiras onde as Marchas estavam programadas para acontecer. A Marcha da Maconha, prevista para ocorrer em 14 cidades, foi proibida em Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, João Pessoa, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Santos. Nessas cidades, centenas de pessoas compareceram ao evento, muitas desavisadas da proibição, e mais de 50 delas foram detidas e acusadas de apologia ao crime, algumas inclusive sofrendo agressão policial.

Pacificamente e descontraídos seguem os manifestantes, até que por volta das 16:30h diversos policiais e amarelinhos se aproximam do som, solicitando a carteira de motorista do condutor do mini-trio, o qual demora uns 10 minutos para encontrá-la no meio de alguns CDs. Em seguida verificam o extintor... Tudo ok. Mas logo vem a ordem, não pode mais ligar o som. Direcionei-me ao policial responsável, acho que era tenente, e ele me disse que não poderíamos seguir com o som. Argumentei do porquê, pois a SEMAS havia autorizado, e a procuradoria do MP havia dito que a marcha de democracia podia acontecer por tanto que não se falasse em legalização da maconha. O policial me respondeu: "não quero saber se a SEMAS autorizou, o Coronel ligou dizendo que a ordem é de desligar o som". Perguntei de quem partiu a ordem e solicitei um documento. Ele respondeu: Não tem documento, e desligue. Percebi o que estava acontecendo, e para continuar dentro da "lei", desligamos o som.35

Apesar da proibição, no dia programado para o evento, 4 de maio, centenas de pessoas compareceram às ruas e em muitas capitais houve repressão violenta. Em João Pessoa, a polícia usou bombas de efeito moral, gás de pimenta, agrediu dezenas de pessoas e prendeu 9 acusados por apologia e distúrbio da ordem pública.

Os cavalos avançam para cima dos manifestantes com agressões, e os mesmo coagidos por "pura repressão", sem entender do porquê e qual motivo estavam sendo reprimidos. A polícia começa imobilizar alguns estudantes que são levados violentamente para as viaturas, e a partir disso o povo avança para resgatar alguns companheiros que nada fizeram para serem presos. Começa uma enorme pancadaria sobre os manifestantes, com spray de pimenta, gás de efeito moral, tiros com balas de borracha... Um policial perde o controle do cavalo que se agita em cima dos manifestantes, e cai de cara no

35 Relato de Fábio Fena, ativista antiproibicionista de João Pessoa, Paraíba. O relato está disponível em http://www.marchadamaconha.org/forum/index.php?act=Print&client=printer&f=30&t=283.

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chão; em seguida é atropelado por outro cavalo (o policial declarou para a mídia que levou uma pedrada).36

O evento só aconteceu sem impedimentos judiciais em Recife, Porto Alegre, Vitória e Florianópolis, com a presença de milhares de pessoas que se manifestaram de forma pacífica e sem ocorrência das anunciadas “condutas apologéticas”. Ainda hoje, alguns ativistas estão sendo investigados em Salvador, sob a acusação de praticarem “apologia ao crime”, incluindo aí pesquisadores reconhecidos nacional e internacionalmente, como Sergio Vidal e Edward MacRae. Ambos ainda estão sob investigação policial até o dia 2 de agosto, correndo o risco de serem indiciados criminalmente.

Fomos levados os 9 para uma sela, onde passei cerca de 2h. Lá nos conhecemos, fomos provocados por alguns policiais e ameaçados por um outro sem farda. Conversando conhecemos um rapaz que não estava na marcha e contou: quando voltava do seu trabalho viu o tumulto, e parou para tirar uma foto com o celular...rapidamente alguns policiais avançaram em cima dele com cacetetes e o celular vôou, e assim ficou perdido. Lamentamos bastante a situação dele e nossa revolta aumentou diante tanta injustiça e censura. Havia um outro, o soldado de Cuiabá que estava na mesma viatura que eu, que também não participava da passeata, mas foi surpreendido quando passava.37

Não é possível precisarmos se a tremenda reação à Marcha da Maconha se deve à aparente organização que o movimento conseguiu demonstrar ao fomentar manifestações em cerca de 15 cidades. Mas a magnitude alcançada pelo movimento construído quase que exclusivamente através do diálogo realizado pela Internet foi um dos principais fatores que provocaram a reação dos setores mais conservadores da sociedade brasileira.

4.2 O Movimento social de Redução de Danos: tensões instituintes38

Existem dois “mitos de origem” recorrentes quando se conta a história do nascimento da Redução de Danos. O primeiro está relacionado com o surgimento das terapias de substituição (Relatório Rollenston), na década de 20, na Inglaterra; o segundo, aos programas holandeses de trocas de seringas. A dividir estas duas experiências, além de seis décadas, estão o ambiente acadêmico (caso inglês), e o ambiente da sociedade civil (caso holandês).

Interessa-nos este ponto de partida para um olhar sobre o projeto político que a Redução de Danos vem construindo no Brasil, nestes quase vinte anos de história. Neste tempo, a Redução de Danos vem se consolidando, não só como tecnologia de cuidado com sua contribuição na constituição de redes diversificadas de atenção em saúde, mas também como ponto de aglutinação política para um movimento social: o movimento de Redução de Danos. Sob esta mesma identidade política, encontram-se experiências bastante diversificadas, que vão do teatro ao trabalho com travestis bombadeiras, da

36 Idem. 37 Ibidem. 38 Esta seção foi elaborada por Dênis Roberto da Silva Petuco – cientista social, pesquisador do Núcleo de Educação, Avaliação e |Produção Pedagógica em Saúde (EducaSaúde) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como contribuição da Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos (ABORDA), para o documento apresentado por ABORDA e REDUC em Beyond 2008, Viena 7-9 de junho.

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preocupação com o uso de anabolizantes, ao uso do crack, do pesquisador que realiza pesquisas e desenvolvimento em tecnologias sociais, ao redutor de danos que atua diretamente no trabalho de campo. São todos diferentes, mas também são todos redutores de danos.

Mas, que identidade é esta?

É múltipla. Pode significar tanto uma condição profissional, quanto uma identidade política. E é justamente neste espaço escorregadio da produção de um novo personagem no cenário clínico-político brasileiro, que o redutor de danos vem se situando. Um lugar precário e inseguro, mas também um lugar de potência, de invenção, que contribui para que o redutor se sinta ao mesmo tempo festejado e desvalorizado.

A Redução de Danos, nestes 19 anos de história no Brasil, e em especial as redutoras e os redutores de danos, vem constituindo, paulatinamente, verdadeiros enclaves em defesa de um outro olhar possível sobre as drogas e as políticas dirigidas às pessoas que as usam. O ambiente político-reflexivo do movimento de luta contra a Aids foi - ainda é - solo fértil para o desenvolvimento da Redução de Danos no Brasil. Afinal, foi no âmbito das políticas de Aids que se radicalizou o pressuposto de que as políticas de saúde devem respeitar às diferentes formas de ser e estar no mundo, bem como os limites e potencialidades de cada sujeito. Foi justamente no campo da Aids que se levou às últimas conseqüências a noção de Paulo Freire, de que o conhecimento não deve ser depositado na cabeça do aluno, mas construído de modo compartilhado, a partir das experiências concretas do educando (FREIRE, 1996; 2004).

Este projeto clínico da Redução de Danos está umbilicalmente ligado a um projeto político bastante definido. Apoiados em um princípio que está para além das noções de prevenção comumente apregoadas no campo político-reflexivo das drogas, os redutores de danos construíram uma prática sanitária alinhada com os pressupostos de promoção de saúde expressos no movimento de Reforma Sanitária, ou seja: saúde é muito mais do que ausência de doença, e deve estar sempre associada à cidadania (AROUCA, 2003).

Este tipo de perspectiva quanto à concepção de saúde, e mesmo com respeito às estratégias construídas no cotidiano, conduziram a uma luta pelo empowerment das pessoas que usam drogas. A partir de uma noção que percebia a experiência e os conhecimentos das pessoas a respeito de seu próprio uso de drogas como fundamentais na construção de tecnologias de cuidado, os discursos das pessoas que usam drogas ganham um novo estatuto, para além da escuta clínica. Neste sentido, a experiência brasileira em Redução de Danos passou a contar, desde muito cedo, com a presença de pessoas que usam ou usaram drogas nas equipes de trabalho (RIGONI, 2003; PETUCO, 2007).

Neste sentido, percebe-se que os redutores de danos operam como mediadores culturais entre as pessoas que usam drogas, seus discursos, e o campo político-reflexivo das drogas, permitindo a emergência de novas racionalidades, de novos discursos no seio de instituições e serviços de saúde, bem como nas esferas públicas e nas arenas de controle social, como os conselhos de saúde, por exemplo. Além disto, a busca de participação direta de pessoas que usam drogas na elaboração e reflexão sobre políticas e programas públicos (quase uma exigência em se tratando de políticas de Aids), permitiu a criação das primeiras associações de usuários de álcool e outras drogas no Brasil, como é o caso da Rede de Usuários de Drogas do Estado do Rio Grande do Sul (RUDE), e da Associação Pernambucana de Usuários de Álcool e Outras Drogas. Além disto, já se pode perceber a presença de redutores de danos em diversas instâncias de

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controle social (especialmente em conselhos municipais e estaduais de políticas sobre drogas, ou de saúde). No caso do Conselho Estadual de Entorpecentes do Estado do Rio Grande do Sul, não só os redutores de danos, mas a própria RUDE que possui assento, com direito a voz e voto. Por fim, vale ainda registrar que o ano de 2007 marcou a ampliação na participação de redutores de danos na Conferência Nacional de Saúde, evento mais representativo da participação política da população brasileira na elaboração e fiscalização das políticas de saúde no Brasil.

Mas, que não nos enganemos. Os exemplos aqui citados, ainda que extremamente importantes para registrar algumas conquistas do movimento de Redução de Danos em termos de ampliação da cidadania de pessoas que usam drogas, ainda está absolutamente aquém das necessidades reais desta população, em termos de reconhecimento político. Trata-se de experiências louváveis, mas absolutamente contra-hegemônicas no cenário brasileiro. Na maior parte dos casos, não existe espaço para a participação destas pessoas na elaboração das políticas construídas justamente para atendê-las. Na recente reunião ocorrida na cidade de Lima, Peru, também preparatória para a UNGASS Drogas 2009, o tema da participação política das pessoas que usam drogas nas instâncias de reflexão e elaboração de políticas públicas foi discutido no grupo do Cone Sul (Brasil, Uruguai, Argentina, Chile e Paraguai), e não obteve consenso justamente em função do voto de um dos representantes brasileiros no evento. O tema, portanto, está muito longe de um consenso. Mas, para as pessoas e organizações que corroboram este documento, trata-se da compreensão de que saúde, sem cidadania, ainda não é saúde.

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Contatos:

Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos – ABORDA http://[email protected]

Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos http://[email protected]

Koinonia – Presença Ecumênica em Serviço http://www.koinonia.org.br

[email protected]

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