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Diretoria José Flávio Sombra Saraiva (diretor-geral)Antônio Carlos LessaAntonio Jorge Ramalho da RochaLuiz Fernando Ligiéro

COLEÇÃO RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Conselho Editorial Estevão Chaves de Rezende Martins (presidente)Amado Luiz CervoAndrew HurrelAntônio Augusto Cançado TrindadeAntônio Carlos LessaDenis RollandGladys LechiniHélio JaguaribeJosé Flávio Sombra SaraivaPaulo Fagundes VizentiniThomas Skidmore

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CARLOS PIO

Direitos desta edição reservados ao

Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI)Universidade de BrasíliaCaixa postal 440070919-970 – Brasília, DFTelefax (61) 307 1655

[email protected]: www.ibri-rbpi.org.br

Impresso no Brasil 2002

Efetuado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacionalconforme Decreto nº 1.825, de 20.12.1907

C837r Pio, CarlosRelações internacionais: economia política e globalização

/ Carlos Pio. – Brasília: IBRI, 2002.164 p. ; 23cm. (relações internacionais; 8)

ISBN 85-88270-08-0

1. Relações internacionais. 2. Relações econômicasinternacionais. 3. Política econômica. I. Instituto Brasileirode Relações Internacionais. II. Título. III. Série

CDD-327.11

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Prefácio ........................................................................................ 7

Apresentação ................................................................................ 9

Introdução ................................................................................. 13

1. Os condicionantes da ação humana e o desenvolvimentoeconômico ............................................................................ 19Incerteza ............................................................................... 21Escassez ................................................................................ 22Racionalidade individual ....................................................... 24Instituições, ideologia, normas sociais e cultura ...................... 30As instituições e a economia política do desenvolvimentoeconômico ............................................................................ 44

2. Grupos de interesse, instituições e desenvolvimentoeconômico ............................................................................ 47Bens públicos e a lógica da ação coletiva (Olson) ................... 48Ação coletiva orientada por ideologias ................................... 59Instituições como bens públicos ............................................ 59Os grupos e suas preferências institucionais ............................ 61Grupos de interesse, instituições e performance econômica .... 63

3. Mercado e desenvolvimento econômico ................................ 67O que é o mercado? .............................................................. 67Incerteza ............................................................................... 73Divisão social do trabalho, especialização e ganhos decomércio .............................................................................. 77Sistema de preços .................................................................. 87Falhas de mercado: direito de propriedade, igualdades deoportunidade, externalidades e defesa da concorrência ............ 92Conclusão ............................................................................ 98

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4. Economia internacional e desenvolvimento econômico ....... 101Teoria do comércio internacional e desenvolvimento ........... 101O equilíbrio do balanço de pagamentos e odesenvolvimento sustentável ............................................... 114Os regimes e as políticas cambiais ........................................ 120O risco cambial .................................................................. 122

5. Estado e desenvolvimento econômico ................................. 125Estado e desenvolvimento: requisitos para uma ação eficaz ... 129Três modelos de desenvolvimento econômico e o papel doEstado: liberalismo ............................................................. 134O papel do Estado .............................................................. 139Qual o papel do Estado no modelo ISI? .............................. 151Modelo de Industrialização Orientada paraExportações (IOE) .............................................................. 152O papel do Estado no modelo IOE .................................... 155

Bibliografia ......................................................................... 157

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Este livro de Carlos Pio preenche um importante vazio nocampo da economia política internacional em língua portuguesa. CarlosPio é um dos mais brilhantes professores brasileiros de Ciência Políticae Relações Internacionais da geração formada no período do pós-GuerraFria. A literatura predominante de relações internacionais em línguaportuguesa não dá suficiente importância ao fato de que a economialiberal de mercado tornou-se, desde 1989, o único modelo viável paraqualquer país que queira trilhar o caminho do progresso material. Olivro de Pio mostra, com grande rigor conceitual e analítico, comofunciona essa economia de mercado. Com base nos grandes pensadoresda economia política (Smith e Ricardo), o autor explica com muitaclareza os principais conceitos que nos permitem entender o mundoatual: incerteza, escassez, utilidade, produtividade, eficiência, preferênciasindividuais, ação coletiva, bens públicos, grupos de mercado, grupospolíticos, inovação tecnológica, falhas de mercado, comérciointernacional, vantagens comparativas, liberalização comercial, regimecambial, internacionalização econômica.

A grande expansão dos cursos de Relações Internacionais, nosúltimos anos, gerou a necessidade deste livro, para que os estudantespossam compreender como os Estados e os atores não-estatais operamnuma estrutura profunda, constituída pela economia global demercado, estrutura essa que é produto da emergência dessa economiaem luta contra as várias economias baseadas no trabalho forçado, entreos séculos XVI e XIX, e de uma gigantesca batalha vitoriosa contra asdiversas economias de planejamento centralizado, durante o século XX(fascismo, comunismo e nacionalismos da periferia).

Com a leitura deste livro, os estudantes de relações internacionaispoderão compreender por que a construção de uma economia demercado vem sendo o único caminho para as diversas economias

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nacionais (Europa ocidental, Ásia, Europa oriental e América Latina)se inserirem com sucesso na globalização.

Eduardo ViolaProfessor titular do Departamento de Relações Internacionais da

Universidade de Brasília

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Este livro faz parte da coleção Relações Internacionais, organizadaacademicamente pelo Instituto Brasileiro de Relações Internacionais(IBRI), com o apoio da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), sobo alto patrocínio da Petrobras. A coleção, constituída de dez títulos aserem lançados, gradualmente, objetiva a formação das novas geraçõesbrasileiras na área, mas também atende à demanda crescente da opiniãopública nacional interessada nas novas conformações internacionais eávida por conhecer, de forma sistemática e organizada, os grandes temasque envolvem a construção de um novo ordenamento internacionalneste milênio.

Os estudos acerca das relações internacionais têm merecidoatenção especial por parte dos grandes editores, não apenas nos centrosculturais de tradição na área, como Paris, Londres ou Nova Iorque.Lançamentos de novos títulos e reedições de obras clássicas animam avida intelectual e política das universidades e editoras em muitas partesdo mundo. Livreiros de países latino-americanos, europeus e asiáticosexibem ao público leitor ampla escolha de novos títulos dedicados aosdesdobramentos mais recentes da vida internacional. Estudos de caso,investigações teóricas e extensas sínteses históricas são cada vez maisconsumidos por numerosas pessoas, ávidas pela compreensão domundo.

A internacionalização das sociedades, a ampliação dos mercados,o impacto dos processos de integração regional e a economia políticada globalização são alguns dos fenômenos que despertam atençãocrescente. Mas há razões adicionais, como a crise de identidade dasnações acentuada pela realidade pós-bipolar e a fragmentação teóricada ciência política ligada aos estudos dos fenômenos internacionais,para explicar a animação editorial que se observa em torno do estudodas relações internacionais.

O interesse dos leitores brasileiros tem esbarrado, no entanto,em uma limitada reflexão própria acerca das relações internacionais.

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Preferiu-se traduzir novos manuais e adotar teorias da moda a enfrentaro desafio da compreensão e da explicação a partir de circunstânciasvividas. Foi-se buscar nos outros, equivocadamente, as razões daspróprias vicissitudes. Confundiu-se, algumas vezes, teoria comideologia. Absorveu-se e divulgou-se nas salas de aula grande quantidadede textos de qualidade discutível. Produzidos com o objetivo precípuode doutrinar os desavisados, levando-os a crer que as relações entre ospovos, Estados e culturas chegou a seu ápice com a liberalização dosmercados e com a economia política da globalização, esses textos nãorealizam o desafio intelectual de desvendar as entranhas das relaçõesinternacionais contemporâneas.

As contingências do Brasil exigiam, assim, uma coleçãoconcebida por estudiosos comprometidos com a renovação doconhecimento a partir de uma perspectiva própria acerca das relaçõesinternacionais, como aliás se procede em toda parte. No entanto, pormais objetiva que se pretenda que ela seja, todo esforço nessa área dereflexão está condicionado por, informação, motivações, formação elegado cultural.

Por conseguinte, a coleção Relações Internacionais vem supriruma grande lacuna. Preocupado com a percepção inédita, por parte dasociedade brasileira, dos constrangimentos internacionais que impõemajustes de ordens diversas à formulação e implementação das políticaspúblicas, do ponto de vista econômico, social e de segurança, o InstitutoBrasileiro de Relações Internacionais (IBRI) resolveu utilizar suacondição de instituição decana nos estudos internacionalistas no Brasilpara, com seus parceiros, abrir a avenida da reflexão comprometidacom um olhar nacional sobre os grandes fenômenos da vidainternacional que envolvem a sociedade brasileira.

Estratégia comum alinha autores e livros. Em primeiro lugar,eles pretendem contribuir para a formação da crescente mão-de-obrabrasileira interessada em compreender os desafios internacionais etraduzi-los adequadamente para os atores sociais com interesses cujarealização sofrem impactos diretos ou indiretos do meio internacional.Em segundo lugar, os autores observam, com apreensão, o crescimentoexponencial da comunidade brasileira de estudantes dos cursos de

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graduação em Relações Internacionais a partir da década de 1990 e,como conseqüência, da necessidade de prover base sólida para odesenvolvimento dessas novas formações. Em terceiro lugar, preocupaa cada um dos autores da coleção o plano secundário a que a tarefa deprodução de livros paradidáticos foi relegada, no Brasil, diante do rápidosurgimento de um público consumidor, ávido por boa bibliografiaque cumpra os requisitos formais de apresentação do conteúdo mínimopreconizado pela Comissão de Especialistas de Ensino de RelaçõesInternacionais do Ministério da Educação.

José Flávio Sombra SaraivaOrganizador da Coleção Relações Internacionais

Brasília, novembro de 2002

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Não se pretende que este seja um livro-texto sobre a economiapolítica do desenvolvimento. É apenas uma introdução ao tema quese mostra um dos mais complexos do pensamento econômico. Nãose trata, assim, de um ensaio original acerca do desenvolvimento, masda organização, que espero coerente, de argumentos lançadosesparsamente por uma miríade de autores. Considerei apropriadoapresentá-los como integrando uma visão mais ampla da problemáticapolítica que marca o processo de desenvolvimento econômico. Porconta disso, o estudioso que pretende aprofundar-se no tema aquitratado deve ser desde o início advertido para este fato e convidado aprosseguir sua investigação, buscando os textos originais que meserviram como fonte e inspiração.

O livro assenta-se em uma constatação contra-intuitiva: se odesenvolvimento fosse tarefa fácil e se os caminhos para obtê-lo fossemóbvios, não haveria como explicar o fracasso de tantos países esociedades. A despeito disso, há, ao longo de todo o texto, um claroreconhecimento de que existem, sim, conclusões a tirar da históriamais recente do mundo no que diz respeito à análise dos fatores queservem de estímulo e dos que funcionam como obstáculo ao avançodas condições de bem-estar e segurança econômica. Ou seja, há formasmais ou menos efetivas de buscar o progresso material. A resposta paraa perpetuação da pobreza e do atraso, assim como para a degeneraçãoeconômica de sociedades e países outrora desenvolvidos, está em suadificuldade para criar, manter ou aprimorar instituições capazes depromover a emergência de um ciclo virtuoso entre a ação individualorientada para interesses particulares e a realização de interesses coletivos.

É justamente nessa interseção entre os interesses dos indivíduose o aperfeiçoamento da ordem político-econômica que florescem osestudos de economia política. Quais são os mecanismos quepossibilitam a cooperação entre indivíduos livres, auto-interessados eque não raro concorrem pela posse de recursos escassos a fim de realizar

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interesses nem sempre compatíveis? Quais são, por outro lado, ascondições institucionais que permitem a prevalência desses mecanismossobre outros menos eficazes na promoção da cooperação social? Eis oquebra-cabeça que permeia todos os estudos de economia política.

Neste livro, assumo que mercado e democracia seriam respostaspara as duas perguntas apresentadas acima. Como se verá, no decorrerda argumentação, as regras que garantem o funcionamento de umaeconomia de mercado são as mais apropriadas – mesmo estando, naprática, longe da perfeição – para estimular a cooperação econômicaentre indivíduos diferentes e orientados por motivos diversos. Istoporque, onde existe, o mercado opera para livrar a sociedade dospreconceitos que lhe são mais caros, os quais diferenciam as pessoas apartir daquilo que aparentam e não do que realmente são. O mercadoestá fundado na idéia da liberdade individual e também na da igualdadeobjetiva, o que contraria aquilo que, freqüentemente, o senso comumaponta. A igualdade objetiva (diferente da igualdade substantiva deque falam os autores da tradição marxista) está fundada na crença deque todos são iguais perante as leis e, por isso mesmo, cada um é livrepara construir sua diferença, desde que preservada a liberdade de todosos demais para fazer o mesmo.

A democracia, por seu turno, uma vez que submete as açõesdo Estado à vontade da maioria (respeitados os direitos das minorias),sem diferenciar os cidadãos em termos do que parecem e do quepossuem, também opera no sentido de livrar a sociedade dospreconceitos que, intrinsecamente, a constituem e inibem o progresso.Em grande medida, não plenamente, a democracia é um procedimentopor meio do qual cada indivíduo se faz representar no processo decisóriodo Estado com o mesmo peso – um homem, um voto. E é justamenteisso que legitima as intervenções do Estado na vida política, econômicae social, o que é fundamental para que haja a possibilidade de cooperaçãoentre indivíduos com interesses nem sempre compatíveis.

Nesse sentido, mercado e democracia são mecanismos nãoapenas compatíveis, mas também necessários para promover acooperação – social, econômica e política – em sociedades complexas,

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isto é, marcadas pela existência de indivíduos que se preocupamprimordialmente com a realização de seus interesses particulares.

Mas democracia e mercado também se reforçam mutuamentecomo condições institucionais que promovem a eficiência alocativados recursos escassos disponíveis numa dada sociedade. Comoinstrumento para transformar as vontades difusas da maioria emações concretas de governo, a democracia preserva os interessescompartilhados pela maioria dos cidadãos. Em praticamente todas associedades complexas, a maioria dos cidadãos compartilha a crença deque o Estado deve preservar um âmbito de liberdades individuaisbásicas. Entre essas, destacam-se alguns aspectos econômicos que semostram essenciais para a existência do sistema de mercado. Em suma,a democracia reforça e preserva as condições institucionais apropriadasà vigência do mercado e o faz por meio da imposição de limites àatuação de todas as forças individuais e coletivas capazes de subvertê-lo, a começar pela “domesticação” do próprio Estado, submetido àvontade soberana do eleitor.

Em contrapartida, o avanço do mercado se faz por meio datransformação do mérito individual no princípio máximo – senão único– a determinar o nível de bem-estar a que fará jus cada indivíduo.Com isso, o mercado abomina a ingerência de qualquer força exógenana arena econômica para determinar ganhadores e perdedores. O riscoe a incerteza são elementos constitutivos das interações de mercado. Jáa intervenção do Estado, como elemento exógeno a ela, é toleradaapenas quando é vista como capaz de reduzir o risco e a incerteza pormeio da imposição de regras justas e universais. Logo, a operação domercado reforça a crença na funcionalidade da democracia já que, sobesta, o Estado é compelido a agir em nome da maioria, sem eliminaros direitos elementares da minoria.

Assim fica mais fácil compreender por que sociedadesgovernadas por regimes autoritários ou totalitários, nas quais as regrasde mercado passaram a ser toleradas, viram surgir pressões favoráveisàs liberdades democráticas. Da mesma forma, países nos quais os direitosde contestação pública ao governo foram ampliados também

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experimentaram demandas pela ampliação das liberdades econômicasindividuais.

No entanto, o que acaba de ser dito obriga que se responda àseguinte questão: por que a ampliação das liberdades que caracterizamo mercado e a democracia é fortemente resistida nas sociedadeseconômica e politicamente mais fechadas?

A resposta não parece difícil: nessas sociedades – invariavelmentemais pobres do que suas vizinhas mais abertas – há grupos que sebeneficiam da ordem vigente, do status quo, e que se sentem ameaçadose, por isso, resistem às propostas de mudança institucional que, nolongo prazo, poderiam beneficiar a maioria da população.

Essas são algumas das questões tratadas ao longo do livro.Espero que a forma escolhida para abordá-las cative os leitores e estimulenovas empreitadas pelo terreno, ainda muito controverso, da análisede economia política. Optei por um tratamento direto e objetivo(mesmo quando superficial) de questões muito complexas. Contudo,procurei fugir de grandes simplificações e evitar os lugares comunsque, infelizmente, ainda caracterizam uma grande quantidade detrabalhos da área.

Como viso atingir o estudante de graduação que inicia suaaproximação às principais questões da economia política contemporânea,procurei deixar trilhas ao longo do texto para motivá-lo a aprofundarseus próprios conhecimentos. Assim, o leitor se deparará com freqüênciacom termos e expressões em itálico, os quais indicam tratar-se de umconceito ou de uma noção que dispõe de definição e tratamentoparticulares. O leitor mais interessado é, portanto, incentivado aconsultar um dicionário de economia a fim de apreender o significadomais complexo dos termos assim destacados.

Por fim, algumas breves palavras de agradecimento. Ao ProfessorJosé Flávio Sombra Saraiva, editor da Coleção Relações Internacionaisdo Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI), sem cujaperseverança e incansável dedicação a este empreendimento eu jamaisteria me imposto a obrigação de escrever este volume. Aos meus colegasdo Departamento de Relações Internacionais da Universidade de

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Brasília, Antonio Jorge R. da Rocha e Alcides Costa Vaz, pelo estímulopara que terminasse a redação a tempo de publicá-la. E, finalmente, ameus colegas Marcus Faro de Castro e Eduardo Viola, que sempre meincentivaram a transpor a tênue fronteira que separa a Ciência Políticada Economia. Este livro é dedicado aos meus bons alunos, cujacuriosidade, ceticismo e desconfiança para com as idéias mais simplesme obrigaram a buscar formas diretas e objetivas de discuti-las eapresentá-las. Espero ter tido sucesso.

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Toda explicação que se preze precisa ter coerência e lógica. Nasciências sociais, esse requisito exige uma vinculação entre os fenômenossociais (políticos, econômicos, culturais) que se pretende explicar, asrazões que levam os atores a realizarem suas escolhas e os fatores externosaos indivíduos que afetam a dinâmica da interação entre atores distintoscom objetivos e/ou estratégias diferentes. A própria natureza das ciênciashumanas faz dos indivíduos os agentes dos processos sociais. Por isso,iniciaremos nossa exploração da economia política da globalização pormeio da investigação dos fatores que influenciam as escolhas dosobjetivos e dos meios para realizá-los.

O objetivo deste capítulo é, portanto, indicar as razões quenos permitem explicar como os indivíduos se comportam nossubsistemas econômico e político, que compõem o sistema social. Porque perseguem determinados objetivos? Como elaboram suas estratégiaspara realizar os objetivos escolhidos para sua vida? Como as escolhasde seus objetivos e de suas estratégias são afetadas pelas condições emque os indivíduos estão inseridos, ou seja, pelo ambiente? Quais são osfatores mais importantes que constituem o ambiente? E, como nãopoderia deixar de ser, num livro sobre economia política, quais são asconseqüências das estruturas constitutivas da ordem social para ofuncionamento das economias?

Para responder a essas perguntas, utilizaremos alguns conceitoscentrais da economia política contemporânea, como: incerteza, escassez,racionalidade, interação estratégica, ideologia, normas sociais e cultura.

O argumento aqui desenvolvido considera:

1. que os indivíduos são capazes de raciocinar, ou seja, deorganizar de forma coerente as informações a respeito domundo exterior a ele e, diante delas, tomar decisões queenvolvem, em primeiro lugar, a escolha de determinadosobjetivos para a sua vida e, em segundo, a forma como

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deve combinar os recursos que estão à sua disposição(tempo, capacidades físicas e intelectuais, propriedadesmateriais, etc.) para realizar tais objetivos;

2. que a determinação de seus objetivos, assim como dos meiosa serem utilizados para realizá-los, depende da forma comocada indivíduo concebe o mundo, de suas crenças e de sua(s)ideologia(s). São as crenças e ideologias que nos indicam:como o mundo funciona (por exemplo, relações de causae efeito entre determinadas ações e suas prováveisconseqüências) e como devemos guiar nossas ações (o que ébom e o que é mau, o que nos é e não é permitido, o quenos é e não é aceitável, o que devemos e não devemosvalorizar, o que podemos e não podemos esperar que outraspessoas façam, etc.);

3. que aquilo que um indivíduo escolhe realizar com osrecursos à sua disposição e como decide combiná-losdepende, em maior ou menor grau, de como ele avalia asações potenciais, reais ou futuras, assim como as reações,dos demais indivíduos com os quais precisa interagir afim de que seus objetivos sejam concretizados. A issodenominamos “interação estratégica”;

4. que todas as escolhas e percepções referidas acima ocorremsob o signo da incerteza e da escassez. Na vida em sociedade,temos certeza a respeito de pouquíssimas coisas e, mesmonesses casos, sabemos que podemos estar errados quanto apraticamente tudo, inclusive quanto às nossas próprias açõesdiante de determinados condicionantes. Na verdade, nãotemos controle sobre os resultados de nossas ações, nemcapacidade de prever plenamente como outros indivíduosreagirão a elas. Muito menos certeza temos sobre as escolhasque serão feitas pelos demais indivíduos e sobre como nosatingirão de fato. O que podemos ter são percepçõesaproximadas sobre as crenças, os interesses, as alternativaspercebidas e as preferidas pelos outros, assim como aspossíveis repercussões que terão sobre nós. A escassez étambém um fato inescapável: os indivíduos dispõem de

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menos recursos do que seria necessário para realizar todosos seus desejos e necessidades;

5. que, com vistas a reduzir as incertezas inerentes à vida social,os indivíduos constroem instituições, formais e informais,as quais estimulam determinadas formas de comportamentoe desestimulam outras. Com isso, o comportamentoindividual e as interações sociais ganham uma certaestabilidade, à medida que o comportamento guiado portais instituições criam a possibilidade de previsão por partede cada um a respeito do que os demais devem preferir efazer em determinadas circunstâncias;

6. que as instituições formais e informais (normas sociais eculturais), ao promoverem determinadas formas de com-portamento, afetam a performance econômica da sociedade.

Assim, antes de indicar como os indivíduos se comportam, épreciso saber que faremos aqui apenas aproximações em relação àrealidade. Delinearemos um modelo ou um mapa, se preferirmos aanalogia com a cartografia. Este será, por necessidade, insuficiente paranos dar uma idéia exata da realidade, como é próprio dos mapas, masservirá como uma aproximação razoável. Não indicaremos, portanto,a verdade, a realidade, mas uma visão simplificada de seus aspectosmais significativos.

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A incerteza é uma das principais características do mundoexterior ao indivíduo. Ninguém sabe, com precisão, como explicar e,especialmente, antecipar o funcionamento de uma boa quantidade deprocessos (sociais, econômicos, políticos, culturais) que envolvem ainteração de mais de um indivíduo. Os indivíduos têm apenasimpressões ou crenças (beliefs) a respeito de como o mundo funciona,sobretudo porque a forma como ele funciona é determinada pela formacomo se comporta o conjunto dos indivíduos.1

1 Mais adiante, discutiremos o papel das normas sociais, da cultura e das instituições, quemoldam essas impressões.

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É necessário introduzir a dimensão de incerteza, nos estudosde economia política, porque ela “afeta a forma como as pessoasexpressam suas preferências”, ou seja, seus objetivos (Shepsle &Bonchek, 1997, p. 17). As incertezas sobre o mundo podem dizerrespeito às preferências dos outros indivíduos, à forma como elesreagirão às nossas ações, às conseqüências reais de suas ações e reaçõesem termos da nossa capacidade e probabilidade de realizar nossosobjetivos, à ocorrência de eventos aleatórios que não são controlados emuitas vezes nem mesmo conhecidos por nós (Shepsle & Bonchek,1997, p. 17).

As crenças que mantemos são justamente aproximações arespeito de como o mundo funciona, e servem para minimizar asincertezas que marcam nossa existência. Nossas crenças espelham umaintuição a respeito “da eficácia de um dado instrumento oucomportamento para obter algo que queremos” (Shepsle & Bonchek,1997, p. 17). Nosso sistema de crenças deriva de variadas fontes epode estar constantemente submetido a testes e a reformulações. Paratanto, basta que, diante dos eventos que observamos ou que nos afetam,estejamos dispostos a questionar sua validade quando reflete asimplificação da realidade.

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Rousseau inicia a segunda parte de seu Discurso sobre as origens e osfundamentos das desigualdades entre os homens com a seguinte afirmação:

O primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer:‘isso é meu’, e encontrou pessoas bastante simples para acreditarnele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantoscrimes, guerras, mortes, misérias e horrores não teria poupadoao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapandoos buracos, tivesse gritado a seus semelhantes: Fugi às palavrasdesse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutospertencem a todos, e que a terra não é de ninguém.

Pode ser verdade, como diz Rousseau, que a escassez, assimcomo seus efeitos mais severos, entre os quais a desigualdade material,

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tenha surgido em razão do estabelecimento da propriedade privada eda possibilidade de acumulação quase ilimitada.

Para os nossos propósitos neste livro, entretanto, bastareconhecermos que a escassez é um fato da vida. Todos a conhecemosde perto e pouco precisa ser dito para explicá-la. Apesar disso, muitasvezes nossas próprias percepções acerca da realidade – nossas crenças arespeito do que é possível fazermos e o que podemos esperar que osoutros façam – desconsideram o próprio fato de que há escassez, assimcomo seus efeitos sobre as escolhas individuais, coletivas ou deorganizações, como o próprio Estado. Freqüentemente, somos levadosa pensar, idilicamente, que não há restrições relevantes que dificultemou mesmo impeçam a consecução dos desejos e das necessidadesindividuais e/ou coletivas, o que chamamos wishful thinking.

Da percepção de escassez dos recursos com os quais contamospara realizar nossos objetivos seguem-se, de modo geral, trêsconseqüências para a forma como os indivíduos tomam decisões.Primeiro, derivamos da escassez a percepção de que os recursos de quedispomos só podem ser utilizados de maneira limitada. Assim, somosobrigados por ela a levar em conta a necessidade de escolher entrealternativas mutuamente excludentes (trade-offs) envolvendo nossaspreferências, ou seja, que precisamos encontrar uma solução decompromisso entre essas preferências e os recursos de que dispomospara realizá-las. Segundo, e em decorrência do ponto anterior, a escasseznos coloca diante da existência de uma dimensão relativa para o valordos bens (tangíveis e intangíveis) que constituem nossas preferências, àmedida que o consumo (produção) de um inviabiliza o de qualqueroutro com o mesmo recurso.2 É o que os economistas chamam decusto de oportunidade. Por fim, a escassez põe indivíduos racionais naposição de buscarem a melhor combinação possível dos recursosdisponíveis a fim de elevarem ao máximo sua utilidade, ou seja, o

2 Assim, sabemos que se gastarmos R$ 100,00 para adquirir um par de sapatos, não poderemosutilizar os mesmos R$ 100,00 para comprar as duas camisas que desejamos. (Ou seja, apósgastarmos R$ 100,00 para adquir os sapatos, estaremos R$ 100,00 mais pobres.) O preçode um par de sapatos pode, pois, ser expresso em termos absolutos e relativos: R$ 100,00 ouduas camisas.

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benefício que retiram do uso de tais recursos. A estratégia preferidapor tais indivíduos será sempre aquela que maximize os benefícios eminimize os custos para o agente, ou seja, a estratégia que se caracterizepela eficiência na administração dos recursos escassos. Quando aumentaa eficiência do conjunto de transações que compõem uma economiaverifica-se um aumento da produtividade dessa economia, que vem aser o fator mais importante para a consecução do desenvolvimentoeconômico sustentável.

De acordo com o argumento sobre escassez avançado até aqui,podemos dizer que todos os recursos à disposição dos indivíduos –seus ativos (assets)3 – são escassos: seu tempo, sua inteligência, sua saúde,sua força, seu dinheiro e todos os seus recursos materiais. Por contadisso, a questão da ação racional, eficiente, está no centro de qualquerdiscussão consistente de economia política. É também por isso que asanálises sobre os fatores que afetam o potencial de desenvolvimentoeconômico de um país ou região centram-se na avaliação dos fatoresque afetam o crescimento da produtividade, à proporção que o aumentoda riqueza e do bem-estar dependerá, especialmente, da elevação daeficiência na administração dos recursos escassos disponíveis.

Partindo da idéia de eficiência como atributo individual, oseconomistas procuraram encontrar as bases para avaliar a eficiência paraa coletividade. Pareto foi quem formulou de modo mais preciso o queseria o padrão de eficiência na distribuição dos recursos numacoletividade: uma distribuição é melhor que outra, portanto maiseficiente, se melhora os benefícios percebidos de pelo menos umindivíduo sem prejudicar a condição de nenhum outro. A distribuiçãodos recursos da sociedade será ótima – Eficiência Paretiana ou PontoÓtimo de Pareto – sempre que for impossível realocar uma parte dosrecursos entre os indivíduos sem prejudicar ao menos um deles.

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A discussão sobre racionalidade individual é muito extensa enão apresenta um consenso pleno em torno de sua principal questão:

3 No sentido de bens, propriedades e atributos, materiais ou imateriais, que têm valor epodem ser usados para pagar dívidas.

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afinal, os homens são ou não racionais? No entanto, sendo nossoobjetivo neste livro apresentar uma aproximação da realidade, parapoder compreender seus aspectos mais importantes e buscarregularidades, somos levados a responder afirmativamente a essapergunta. Sim, os homens são, na maior parte das vezes, e especialmentenas questões mais importantes, racionais.

Mas o que realmente significa a afirmação de que o homemcomum é racional? Por racional queremos dizer que o indivíduo templeno domínio e controle sobre o mundo à sua volta? Que sabeexatamente quais são os melhores meios para realizar seus objetivos?Que pode separar os objetivos certos dos objetivos errados? Nada disso!

A literatura que trata da racionalidade diz que racional é oindivíduo:

• primeiro, que é capaz de formular preferências ou metas (istoé, escolher seus objetivos) consistentes com suas crenças arespeito do mundo e do ambiente em que está inserido.Em princípio, podemos dizer que suas preferências precisamser lógicas, em termos daquilo que se sabe ser passível deobtenção, das ações que são necessárias para realizá-las e,por fim, dos recursos necessários (custos) para tal;

• segundo, que é capaz de ordenar (estabelecer prioridadesentre) suas múltiplas preferências, indicando as que são maise menos desejadas;

• terceiro, cujo ordenamento de preferências é transitivo, istoé, consistente internamente – o que na prática significa dizerque se uma pessoa prefere com mais intensidade a alternativa“A” à alternativa “B” e prefere a “B” à “C”, deve logicamentepreferir a “A” à “C”;

• quarto, cujas crenças, que moldam sua forma de compreendera realidade e tomar decisões, são racionais. O que significadizer que a maneira como tais crenças explicam ofuncionamento do mundo (relações de causa e efeito) sãorazoáveis: crenças sobre as conseqüências mais prováveis dedeterminados cursos ou estratégias de ação (meios), crenças

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sobre como as ações de outros indivíduos ou grupos podemafetar a capacidade do indivíduo para realizar seus interesses,crenças sobre a forma mais eficiente de usar seus recursosescassos para realizar suas preferências, etc.;

• quinto, que avaliam os recursos disponíveis e as restriçõesexistentes no momento de escolher o que desejam e comopretendem realizar suas preferências; e,

• sexto, cujas ações representam a escolha dos meios (estratégias)mais eficientes para realizar as preferências, dadas as crençase as restrições (Caporaso & Levine, 1992, p. 129-30).

De modo geral, há uma série de incompreensões sobre achamada “teoria da escolha racional” que podem ser facilmente descritase evitadas. Em primeiro lugar, o critério da racionalidade éprimordialmente aplicado à escolha dos meios, das estratégias, e nãodos fins. Por isso, muitos autores se referem ao caráter instrumental daracionalidade. Desse modo, observa-se que as crenças professadas poralguns indivíduos podem não ser racionais, assim como suas metas.Na maior parte das vezes, no entanto, os objetivos escolhidos (suaspreferências ou metas) são factíveis. Muitas das confusões em tornodo critério de racionalidade derivam da dificuldade de separarcomportamento racional de comportamento egoísta, auto-interessado.Como a racionalidade se aplica aos meios, aos procedimentos adotadospelo agente, não há contradição entre um comportamento racionalpara realizar uma preferência altruísta (Caporaso & Levine, 1992,p. 130). Um pai pode agir racionalmente (ou não) para realizar osdesejos do filho, assim como um mártir para ver sua causa realizada.

Um segundo motivo recorrente de confusão é o que envolve atransposição indevida da análise da racionalidade do indivíduo, agente,para a análise da racionalidade da ordem que resulta de interações entreindivíduos racionais. O problema aqui está em admitir que de umainteração entre dois ou mais indivíduos racionais pode resultar umabaixa sensível da satisfação de todos. Ora, não há logicamente nada aobjetar em relação a essa possibilidade e todos nós, em nossa vidacotidiana, enfrentamos situações que confirmam tal possibilidade. Nem

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por isso, chegamos à conclusão de que fomos irracionais por termosprocurado fazer uma análise criteriosa dos nossos interesses e dasalternativas existentes para alcançá-lo. Em algumas ocasiões, chegamosmesmo a admitir ex post que se tivéssemos agido “menos com a cabeçae mais com o coração” (que aqui significa agir de acordo com a emoçãoou a intuição) poderíamos ter feito avançar nossos interesses de maneiramuito mais eficaz ou eficiente. Noutras ocasiões, somos capazes deperceber – também ex post – que se tivéssemos qualquer indicação,subjetiva que fosse, a respeito do outro indivíduo com o qualinteragimos – sua religião, seu local de procedência, sua família, suaprofissão – poderíamos evitar o recurso à análise (e ao comportamento)estritamente racional e que, feita a contabilidade, nos prejudicou.O dilema do prisioneiro, o caso paradigmático da teoria da escolharacional, representa justamente esta possibilidade de indivíduos racionaisoptarem por estratégias que, quando agregadas, pioram a situação deambos. Vale repetir: a racionalidade é um critério aplicado às escolhasindividuais, no momento em que são realizadas. Nunca ao resultadoagregado – à ordem econômica ou política.

Muitas desconfianças em relação à escolha racional derivam dofato de que a racionalidade se aplica a indivíduos, mas não acoletividades. Já foi demonstrado que é provável que as preferênciasde um grupo heterogêneo de pessoas não sejam transitivas. Isso porque,se a preferência coletiva não é mais do que um agregado (a soma) devontades individuais, é possível que, quando chamados a ordenar trêsou mais preferências, a maioria dos indivíduos que formam acoletividade prefira a alternativa “A” à “B”, a alternativa “B” à “C” masque prefira a alternativa “C” à “A”, violando assim o critério detransitividade. Este fenômeno é conhecido como o Paradoxo de Arrows(Arrows, 1951).

Um quarto fator de incompreensão da teoria da escolha racionaldiz respeito à possibilidade de falha da racionalidade. De um lado,precisamos considerar que as escolhas individuais são sempre feitas emsituação de incerteza quanto ao futuro. As crenças são representaçõesimperfeitas da realidade – não há como aferir com segurança a qualidadedas informações de que se dispõe para tomar uma decisão e nem como

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julgar se a quantidade de informações colhidas é suficiente para eliminaros riscos como o de um viés de amostragem.4 Não há como ter certezasobre a melhor forma de combinar os recursos disponíveis. Tambémnão se sabe se, na realidade, o conjunto de oportunidades e restriçõespercebido está correto. Por fim, não há como precisar a reação que asações do agente provocarão nos demais indivíduos, reações que podemafetar o sucesso de suas estratégias. Assim, precisamos reconhecer que,mesmo quando nos esforçamos para agir de forma estritamenteracional, há uma chance razoável de que a racionalidade simplesmentefalhe. Uma vez mais, a racionalidade é um critério que deve ser avaliadoex ante, no momento em que as decisões são tomadas, e não ex post.

Uma quinta questão, facilmente transformada em desconfiançaquanto à possibilidade de uma ação racional, diz respeito a situaçõesem que a escolha racional simplesmente não é possível, ou seja, ondehá indeterminação. Indeterminação significa apenas que não há comodeterminar qual das alternativas é melhor para o indivíduo, dadas suaspreferências, suas crenças, seus recursos e as restrições percebidas.A indeterminação pode ocorrer em pelo menos dois casos: quando hápelo menos duas alternativas igualmente boas ou ruins, ou quando ascrenças são imperfeitas (evidências insuficientes devido a incertezasquanto ao futuro). Nesses casos, o indivíduo decide entre as melhoresalternativas (igualmente boas ou ruins) com base num outro critério,o qual não será necessariamente objetivo (Elster, 1994).

Esclarecidos esses pontos, devemos passar a uma questão designificativa importância para os estudiosos da economia política: comoavaliar as ações de um indivíduo tendo em vista suas preferências, suas

4 Uma amostra é “um conjunto (de indivíduos, eventos históricos, produtos, etc.) cujascaracterísticas ou propriedades são estudadas com o objetivo de estendê-las a outro conjuntodo qual é considerado parte”. Para que se possa estudar uma amostra e chegar a conclusõesgeneralizáveis para a população (o todo) é preciso que a amostra seja representativa dessapopulação. Utiliza-se o método de amostragem para evitar os custos (muitas vezesinsuperáveis) nos quais seria necessário incorrer para conhecer todos os indivíduos oueventos que compõem uma determinada população. Um viés de amostragem ocorre quandoa amostra estudada é diferente da população, ou seja, quando não é representativa. Porconta disso, as conclusões que forem tiradas por meio da análise da amostra não servirãopara entender o todo, a população.

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crenças e seus recursos? Caporaso e Levine (1992) adiantam doiscritérios: o da consistência e o dos requisitos de correspondência. Deacordo com esses critérios, uma ação é considerada racional se pode serdemonstrado que representou, no momento em que foi iniciada (istoé, ex ante), a melhor alternativa para satisfazer as preferências doindivíduo, dadas as suas crenças; que essas crenças eram racionais diantedas evidências disponíveis; e que a quantidade e a qualidade dasevidências disponíveis podem ser justificadas em termos de cálculos decusto e benefício (Caporaso & Levine, 1992, p. 130). Não faz sentidoconfrontar as escolhas com os resultados delas decorrentes para avaliarsua “racionalidade”, essencialmente porque os agentes tomam decisõesna incerteza e com informação imperfeita.

Diante do que foi citado, concluímos que, apesar de essencialpara a construção de teorias sobre o comportamento e as interaçõeshumanas, a simples atribuição de um caráter de racionalidade às açõesdos indivíduos acrescenta muito pouco ao estudo da economia política,à medida que o comportamento racional se faz sempre em condiçõesimperfeitas. Ora, se as crenças que os indivíduos possuem sãoimperfeitas e se as informações que usam para tomar decisões são quasesempre insuficientes para assegurar a realização de seus objetivos, não épossível derivar apenas do critério da racionalidade qualquerconseqüência mais significativa para o estudo do desenvolvimentoeconômico – o que nada mais é do que um processo social, portantodependente de interações sociais e não da racionalidade dos agentes.A afirmação de que os indivíduos são racionais de acordo com oscritérios discutidos não nos permite concluir, por exemplo, afirmandoque os países desenvolvidos (atrasados) são aqueles nos quais os homenssão mais (menos) racionais. Até porque, em todos os países, osindivíduos serão racionais da mesma forma.

Como explicar, portanto, que em certos países indivíduosracionais promovam o desenvolvimento econômico – aumento dariqueza e melhor distribuição da renda – ao passo que em outros paísesindivíduos também racionais sob os mesmos critérios não o façam?A resposta está na análise das instituições formais e informais quemoldam o comportamento individual. O argumento aqui avançado

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dirá que quando essas instituições apontarem para a consecução dointeresse comum, o desenvolvimento econômico, terá maior probabi-lidade de ser realizado.

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Como vimos, o comportamento racional é orientado pelosresultados que o agente espera obter ao optar por um determinadocurso de ação, ou estratégia. Essa escolha ou ação estratégica, no entanto,não se faz no vazio. Além de recorrerem às suas crenças sobre ofuncionamento do mundo, no momento em que se dispõem a agirpara maximizar sua utilidade os indivíduos também sofrem restriçõesprovenientes do mundo exterior.

Essas restrições podem ser tanto formais quanto informais.Exemplos das primeiras são as regras que estabelecem direitos depropriedade, níveis de tributação, serviço militar obrigatório, tarifasde importação, etc. restrições informais são, por exemplo, normassociais, religiosas ou culturais que estimulam determinados tipos decomportamento e desestimulam outros: a obrigatoriedade de ler a Bíbliaimposta por uma certa religião tende a difundir o hábito da leitura etudo o mais que vem com ele; dependendo do modelo educacional osindivíduos podem ser estimulados a questionar a realidade e a buscarsoluções criativas e inovadoras para os problemas existentes ou a aceitardogmas e a se comportar de maneira submissa e resignada diante domundo e da autoridade; certos valores sociais ou religiosos podemestimular tanto o trabalho árduo e a poupança como o desempenhode atividades improdutivas e mesmo destrutivas e o consumo imediato.

Independentemente de seu grau de formalização, as instituiçõesinibem o comportamento individual orientado estritamente porconsiderações utilitárias uma vez que criam estímulos para ocomportamento permitido e/ou custos para o comportamentoproibido. Inicialmente, nos interessaremos pelo papel de instituiçõesformais como condicionantes (nunca determinantes) das açõesindividuais. Em seguida, discutiremos o comportamento orientadopor normas sociais e pela cultura. Nessa exposição, estaremos sempre

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atentos às conseqüências das diferentes instituições para o desempenhoeconômico de cada sociedade.

De acordo com Douglas North, um dos mais eminenteseconomistas dedicados ao estudo das instituições formais, as instituiçõespolíticas e econômicas constituem as “regras do jogo” em qualquersociedade.5 Elas representam “restrições construídas pelo própriohomem que moldam a interação humana” e, em conseqüência,“estruturam incentivos nas trocas políticas, sociais ou econômicas”.6

Ainda segundo esse autor, o processo de mudança institucional é o que“molda a forma em que as sociedades se desenvolvem ao longo dotempo e, por isso, é a chave para entender as mudanças históricas”, querespondem pela performance (diferenciada) de cada economia (North,1990, p. 3).

“As instituições reduzem a incerteza ao proverem a vidaquotidiana de uma estrutura”. As escolhas individuais (racionais) setornam menos imprevisíveis à proporção que os agentes interagemracionalmente sob uma mesma estrutura de incentivos e oportunidades(payoff structure) gerada pelo conjunto de instituições existentes, e quese aplicam a todos. Como as restrições impostas pelas instituiçõesincluem tanto aquilo que os indivíduos estão proibidos de fazer como,algumas vezes, sob que circunstâncias alguns indivíduos podem realizarcertas atividades, elas servem como o arcabouço sob o qual a interaçãohumana se realiza (North, 1990, p. 3-4). Dessa forma, podemos dizerque as instituições, ou regras do jogo, reduzem o grau de incerteza einstabilidade que naturalmente decorreria da interação de indivíduosmaximizadores de utilidade sob uma condição de anarquia.7

5 A partir daqui, utilizaremos o termo “instituições” para designar regras e códigos formais,institucionalizados. Sempre que quisermos nos referir a regras informais usaremos os termos“normas sociais” e “cultura”, este último de caráter mais geral.6 Para North, as normas sociais e cultura apresentam essa mesma característica.7 Neste sentido, é interessante considerar o argumento hobbesiano a respeito doestabelecimento da ordem civil, ou Estado. Hobbes, filósofo político contratualista doséculo XVII, dizia que o estabelecimento do Estado derivava do medo da morte quecaracterizava todo indivíduo na situação pré-estatal o “Estado de Natureza”. Nesta, apesarde dotado de toda liberdade para escolher suas preferências e as estratégias para realizá-las,o indivíduo compartilharia com todos os demais o medo de se deparar com alguém mais

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As instituições envolvem não apenas as restrições referidasanteriormente mas, para serem efetivas, precisam necessariamenteenvolver mecanismos para detectar comportamentos desviantes e imporsanções. Sem eles, sua efetividade tenderia a ser muito baixa, especialmenteem sociedades complexas, nas quais o grau de impessoalidade dasinterações sociais é mais elevado, o que inibe os constrangimentossocialmente impostos. Se a estratégia de violação das regras é ou nãocompensadora “depende obviamente da eficácia do monitoramento eda severidade da punição”. Por conta disso, “uma parte essencial dofuncionamento das instituições envolve arcar com os custos de averiguarviolações e de impor punições severas”, custos esses que são cobradosde todos os que participam da vida social (North, 1990, p. 4).

No caso específico das instituições econômicas, que dãogarantias à emergência de um sistema de trocas (mercado), a necessidadede criar e manter instrumentos para monitorar e impor sançõesrepresenta o que se convencionou chamar de custo de transação. Este érepresentado pelo custo de especificar e garantir os direitos depropriedade; pelo custo de medir os atributos dos bens e serviços quesão trocados; e pelo custo de policiar e impor os acordos feitosvoluntariamente entre os indivíduos (North, 1990, p. 27).

Os custos de transação, pagos por todos os indivíduos queparticipam da vida econômica (compradores e vendedores) existemem qualquer economia e são fundamentais para viabilizar ofuncionamento do mercado – sem eles, dificilmente haveria apossibilidade de indivíduos com interesses diferentes trocarem suaspropriedades para se satisfazerem mutuamente. No entanto, é precisoconsiderar que a simples necessidade de arcar com tais custos reduz aeficiência da economia, à medida que ao pagá-los todos os agentes

forte que ele. Numa tal situação, ele estaria arriscando suas liberdades e seus direitosnaturais, à medida que não havia como evitar que na ocorrência de um conflito qualquer elefosse morto por um outro. Assim, o fim do “Estado de Natureza” se dá, para Hobbes, pormeio da abdicação voluntária de parte fundamental das liberdades individuais em nome doestabelecimento de uma instituição neutra, o Estado – Leviatã – capaz de inibir a ocorrênciade conflitos entre os cidadãos, de julgar os conflitos que venham a emergir e impor assanções que resultem de tal julgamento.

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econômicos vêem reduzidos os seus ativos. Caso os custos de transaçãofossem menores, ou inexistentes, a parte da renda desviada por cadaindivíduo para bancá-los poderia ser usadas para aumentar a produçãoe/ou o consumo.

Por isso, a magnitude dos custos de transação é uma dimensãoprecisa do grau de ineficiência de uma economia, sendo, portanto, umelemento essencial da análise comparada do desenvolvimentoeconômico. Nos países em que os custos de transação são altos, ouseja, os agentes econômicos “desviam” uma parcela elevada de seusrecursos apenas para ter certeza de que suas transações serão concretizadasde acordo com seus interesses, o grau de desenvolvimento econômicoé mais baixo do que aquele verificado em países nos quais os custos detransação são baixos. Essa discrepância cria, por si só, a percepção deque as instituições inibem a capacidade de alguns indivíduos para realizarparte de seus interesses, os quais poderiam ser avançados caso as regrasque caracterizam o ordenamento fossem alteradas.

Ao restringirem e estimularem determinados padrões decomportamento, as instituições (e os custos de transação que elasenvolvem) estabelecem um ambiente econômico que pode ser tantoconducente ao desenvolvimento quanto um obstáculo a este. Muitosautores se dedicaram à tarefa de avaliar quais seriam as instituiçõesmais apropriadas ao desenvolvimento econômico, entendido como acriação de riqueza e a difusão de bem-estar entre os membros de umasociedade. Hoje, é possível dizer que há razoável consenso entreeconomistas, sociólogos e cientistas políticos em torno da necessidadede combinar graus elevados de democracia política com um regimeeconômico baseado na livre iniciativa (capitalismo). A democracia seapresenta como um conjunto de instituições – eleições livres e justas,direito universal de voto, liberdade para questionar as decisões públicas,direito de livre associação, entre outras – capazes de diminuir, senãoeliminar, a possibilidade de exercício arbitrário do poder político emprol de interesses particulares. A economia de mercado, por outro lado,compõe-se de instituições que estimulam os indivíduos a ofertar bense serviços demandados pela sociedade e a constantemente se preocuparcom o aperfeiçoamento e a inovação de métodos e produtos para

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elevarem seu padrão de bem-estar: liberdade para utilizar todas ascapacidades a fim de realizar seus interesses; submissão da capacidadede sobrevivência do indivíduo ao uso eficiente de seus recursos e desuas habilidades; direito de acumular propriedades criadas ou adquiridascomo resultado do esforço individual; entre outras. Essas instituiçõesgeram, como subproduto, o aumento sustentável da produtividade daeconomia.

Em qualquer sociedade, as instituições estão em constantemudança, a qual é quase sempre de natureza incremental. Com isso,os incentivos que as instituições estabelecem para a ação humanatambém mudam ao longo do tempo. Isso permite explicar como umaeconomia pode se tornar mais (ou menos) produtiva ao longo do tempo:ao reduzir (ou aumentar) os custos de transação impostos aos agenteseconômicos por suas instituições. Sempre que as mudanças institucionaispromoverem a redução dos custos de transação é possível esperar aumentoda produtividade e, em decorrência deste, desenvolvimento econômicosustentável.

Mas como explicar os processos de mudança institucional? ParaNorth, a mudança resulta da ação de empresários econômicos e políticos(entrepreneurs in political and economic organizations)8 os quais avaliampoder se beneficiar de alterações nas regras formais que estruturam avida econômica e política, e agem em defesa dessas modificações (North,1990, p. 8).9 Este é um dos aspectos centrais do argumento do autorpara explicar a existência e a prevalência até os dias de hoje de conjuntosinstitucionais que resultam em performances econômicas nacionais tãodistintas. Essa perspectiva apresenta ainda uma segunda vantagem aoestudioso da economia política do desenvolvimento econômico: elanos permite identificar a natureza eminentemente política dessesprocessos de construção e reforma institucional. Se há indivíduos egrupos que se beneficiam com o status quo institucional, e há ganhadorespotenciais com a sua alteração, o processo de reforma será resultante

8 Empresários aqui entendidos como agentes capazes de mobilizar recursos para realizarsuas preferências.9 No próximo capítulo, dedicado à ação dos grupos, trataremos mais detidamente dessaquestão.

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de um embate eminentemente político. Mas como se estrutura esseembate? Como os indivíduos podem conceber seus interesses se asquestões envolvidas são quase sempre complexas e inéditas, portanto,ainda não conhecidas pelo grupo?

É certo que quanto mais complexas e singulares as questõessobre as quais um indivíduo tem que decidir, menos informaçõesprecisas estarão à sua disposição e mais incertos serão os resultadospotenciais de cada uma das alternativas que ele for capaz de vislumbrarpara a sua ação. Nas questões mais simples do quotidiano, os indivíduosdispõem de uma série de teorias (derivadas da percepção e da experiênciaconcreta sobre como operam as instituições formais e informaisexistentes) e de um número suficiente de informações que explicam ofuncionamento do mundo e que podem ser usadas para prever osresultados de suas ações.

Já no caso de questões mais complexas e singulares, osreferenciais disponíveis – teorias e informações – simplesmente nãocapacitam os indivíduos a escolherem a melhor alternativa entre as queconseguem perceber. Nessas situações, as percepções subjetivas(modelos, teorias) que todas as pessoas possuem para explicar o mundoà sua volta – suas ideologias – assumem posição de destaque na definiçãode suas escolhas. Essas ideologias são representações normativas de comoo mundo deveria estar organizado (North, 1990, p. 22-23, nota 7) esão especialmente relevantes como guias para as escolhas feitas porindivíduos racionais em processos de construção e reforma institucionalem sociedades complexas.

Ainda segundo esse autor, em grande parte são as ideologiasque resolvem o problema da consecução de ação coletiva por indivíduosauto-interessados para provisão de bens públicos (instituições quebeneficiem os membros de um grupo), estudado por Olson (1965).10

Os embates políticos presentes nos processos de reforma institucionalse caracterizam pelo confronto entre grupos sociais que procuramrealizar suas preferências no futuro, por meio da mudança ou damanutenção dos incentivos criados pelas instituições os quais afetarão

10 Este problema será tratado no próximo capítulo.

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as ações de todos os membros da sociedade. Nesses contextos,fortemente marcados pela incerteza, ideologias diferentes provêm osindivíduos com interpretações particulares a respeito do mundo real edo mundo ideal, as quais servem como guias para as ações dosindivíduos no presente.

Em síntese, o desenvolvimento econômico sustentáveldependerá do constante aprimoramento das instituições que estruturama ação de indivíduos racionais. As instituições precisarão estimularescolhas individuais e coletivas que promovam a eficiência na alocaçãodos recursos escassos da sociedade e a inovação – a descoberta e oaperfeiçoamento de métodos, técnicas, insumos, produtos e mercadosconsumidores. Nesse sentido, precisam sempre reduzir os custos detransação. Por outro lado, as instituições precisam ser efetivas, emtermos de sua capacidade para inibir, senão eliminar, os comportamentosdesviantes.

Passemos agora à discussão sobre o comportamento guiadopor normas sociais. A melhor definição para esse tipo de comportamentofoi apresentada por Jon Elster, um dos cientistas políticos que maiscontribuíram para os estudos sobre o comportamento humano. Deacordo com Elster:

A ação racional – seja ela econômica ou politicamenteorientada – está relacionada a resultados. A racionalidade diz,‘se você quer alcançar Y, então faça X’. A ação orientada por normassociais não é orientada por resultados. As normas sociais maissimples são do tipo ‘faça X’ ou ‘não faça X’. Normas maiscomplexas têm forma condicional: ‘se você fizer Y, então faça X’,ou ‘se outros fizerem Y, então faça X’. Uma norma ainda maiscomplexa diz: ‘Se seria bom que todos fizessem X, então faça X’.Para que tais normas sejam sociais elas devem ser compartilhadaspor outras pessoas e em parte sustentadas por sua aprovação edesaprovação. Tipicamente são também sustentadas pelasemoções que se desencadeiam quando as normas são violadas:embaraço, culpa e vergonha no violador; raiva e indignação nosobservadores. Muitas vezes uma norma para se fazer X éacompanhada por uma norma de nível mais elevado para puniraqueles que violam a norma de primeira ordem, onde a punição

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pode variar desde sobrolhos erguidos a ostracismo social (Elster,1994, p. 137, itálicos no original).

Desse trecho é importante destacar: a diferença entre ocomportamento racional orientado pelo cálculo superestimado entrecustos e benefícios e o comportamento orientado por normas sociais;a existência de diferentes graus de complexidade entre diferentes normassociais; o caráter social das normas; o papel das emoções e das sançõespara que as normas sociais sejam respeitadas.

Em relação ao primeiro ponto, é importante salientar que emmuitas das decisões tomadas por um indivíduo qualquer em seu dia-a-dia está presente uma séria contradição entre as alternativas querepresentariam a maximização de sua utilidade e aquilo que elerealmente faz. Basta sair à rua com uma criança de 8 anos – que estáem pleno processo de compreensão e internalização das regras sociais –para nos darmos conta que freqüentemente “sabotamos” nossosinteresses mais egoístas em nome de um interesse difuso no bomfuncionamento da sociedade. Por que a maior parte das pessoas páraao sinal vermelho mesmo quando não haveria perigo em ultrapassá-lo? Questões semelhantes podem ser feitas para inúmeras áreas de nossavida social, econômica e política, para constatarmos que sempre queseguimos uma norma ou convenção social, violamos o pressuposto damaximização da utilidade.

Há uma grande variedade de normas sociais, que podem seranalisadas de acordo com seu grau de complexidade. Normas simplespodem ser encontradas em situações simples. Como indica a citação,são do tipo “faça X” ou “não faça X”: “ceda seu acento no ônibus paragestantes e idosos” (mesmo que esteja exausto, por exemplo) e “nãojogue lixo no chão” (mesmo que não haja uma lixeira por perto).Normas mais complexas envolvem raciocínio mais elaborado: “se vocêreceber um presente, não pergunte quanto custou”, “se um estranholhe oferecer carona, não aceite”, “se você é novo no emprego, mostreserviço”, “se seus colegas estão chegando mais cedo ao trabalho, faça omesmo”, “se todos os moradores da rua devem contribuir para aconstrução de uma praça, então contribua”.

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Uma norma é social à medida que é compartilhada por muitaspessoas, as quais contribuem para a sua continuidade por meio de suasações e de suas reações públicas de apoio (aos que a respeitam) e dedesaprovação (com os que a violam).

Justamente pelo seu caráter social, o desrespeito a uma normageralmente provoca emoções tanto no violador quanto no observador.Por isso mesmo, as violações são geralmente evitadas ou feitas àsescondidas. No primeiro caso, temos a ocorrência do processo deinternalização das normas sociais, isto é, a sua transformação numarestrição auto-imposta. Como enfatiza Elster:

... normas não precisam de sanções externas para seremobedecidas. Quando as normas são intenalizadas, são seguidasmesmo que a violação seja inobservada e não exposta a sanções.(...) No processo de internalizar normas, as atitudes de outraspessoas são essenciais, mas uma vez que o processo foi completado,as normas permanecem como se fosse por si mesmas. Nãofuncionará argumentar que seguir a norma mesmo quando nãoobservado é um modo racional de economizar nos custos dedecisão. Às vezes uma pessoa sabe que teria muito a ganhar enada a perder por violar uma norma – nada, isto é, exceto oauto-respeito. Isso não quer dizer que as sanções são supérfluasuma vez que uma norma foi internalizada. A natureza humanasendo o que é, as sanções externas são um contrapeso útil para afraqueza de vontade (Elster, 1994, p. 144, itálicos no original).

No segundo caso, o próprio fato de violar uma norma àsescondidas já indica a existência de emoções como medo ou vergonha(de ser pego) por parte do agente. Podemos, portanto, concordar comElster:

... emoções intensamente sociais (orgulho, vergonha, inveja)desempenham um papel importante na operação de normassociais. Quando uma violação de uma norma provocaria inveja,o temor a ser invejado mantém os desviantes na linha, um temorque por sua vez desliza imperceptivelmente para as emoções devergonha e culpa que são os principais suportes das normas sociaisde modo mais geral (Elster, 1994, p. 89-90).

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De acordo com o antropólogo Clifford Geertz, devemos daro nome de “cultura” ao conjunto de normas sociais que governam ocomportamento de um povo – “um conjunto de mecanismos decontrole, planos, receitas, regras, instruções (o que os técnicos decomputador chamam de programa) para governar o comportamento”.11

Num livro recentemente organizado por Lawrence Harrison e SamuelHuntington, dois cientistas sociais da Universidade de Harvard, esteúltimo autor definiu o termo “cultura” de forma puramente subjetiva:“os valores, atitudes, crenças, orientações e pressupostos subjacentesque prevalecem entre o povo de uma dada sociedade” (Huntington,2000, p. 15). Nesses termos, Huntington e os demais autores queparticipam da coletânea Culture Matters – how values shape humanprogress se propõem a avaliar como a cultura afeta o alcance e a formapela qual diferentes sociedades atingem ou não o progresso, relativoao desenvolvimento econômico e democracia política. A cultura éestudada tanto como uma variável independente (causa) que explica odesenvolvimento e o atraso econômico, quanto como uma variáveldependente (que se quer explicar), em termos de mudanças políticas,econômicas ou de qualquer outra natureza afetam e, algumas vezes,removem barreiras culturais ao desenvolvimento econômico e político.12

Para relacionar cultura e progresso, muitos autores explorarama possibilidade de se identificar uma cultura do capitalismo, sistemaeconômico que deu sinais de vitalidade ao conduzir parte da humanidade

11 Citado por Laraia (2001. p. 62). Este texto também é importante se o leitor estiverinteressado em conhecer a evolução do conceito entre os antropólogos, assim como asprincipais diferenças ainda remanescentes entre os seguidores de distintas correntes daAntropologia.12 É digno de nota que, entre os autores desta coletânea há uma clara intenção de questionara validade do princípio do “relativismo cultural”, o qual rejeita qualquer forma de avaliaçãodos valores e práticas de outras sociedades. De acordo com Lawrence Harrison, editor dovolume, “o progresso, no sentido ocidental, se tornou uma aspiração universal. A idéia deprogresso – de uma vida mais longa e saudável, mais leve e mais recompensadora – não estálimitada ao Ocidente. (...) Eu acredito que a vasta maioria dos povos do planeta estariam deacordo com as seguintes asserções: a vida é melhor que a morte; saúde é melhor que doença;liberdade é melhor que escravidão; prosperidade é melhor do que pobreza; educação émelhor do que ignorância; justiça é melhor que injustiça” (Harrison, 2000, p. 26).

Esta postura lhe permite discutir os obstáculos que muitas culturas (valores, atitudes,crenças, orientações e pressupostos subjacentes) impõem ao progresso material das sociedades.

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a índices de progresso material nunca antes verificados. Seria issopossível? Vejamos:

O capitalismo é um sistema baseado na disposição de cadaindivíduo para melhorar sua própria condição social e econômica pormeio do trabalho. Os benefícios que cada um retira da interaçãoeconômica derivam essencialmente de suas habilidades para competire cooperar com outros indivíduos dotados dos mesmos direitos eliberdades, mas de recursos materiais e imateriais (inteligência, destreza,astúcia, força, etc.) distintos. Por isso, o capitalismo é um sistemaancorado em três pilares: direitos universais, concorrência e recompensapelo mérito.

Todo indivíduo é dotado de um conjunto de liberdades quelhe garantem o direito de se apropriar dos frutos de seu esforço. Senhorde suas capacidades – ativos materiais e imateriais escassos – o indivíduodepende unicamente do uso que delas faz para satisfazer suas necessidadese vontades (preferências), respeitadas as liberdades dos demais. Assim,as instituições que compõem o capitalismo estimulam cada um a oferecerbens e serviços demandados e valorizados pela sociedade, o que promovea ocorrência de um poderoso mecanismo social apelidado por AdamSmith de “mão invisível do mercado”. Note-se que os indivíduos utilizamseus ativos para produzir algo valorizado pelos demais e não aquilo quedesejam ou preferem – a não ser quando as duas coisas coincidem.

A oferta individual de bens e serviços se dá numa situaçãomarcada pela concorrência, a qual decorre das próprias liberdadesindividuais – todos têm o direito de usar seus ativos para produzir etransacionar o que é demandado pela sociedade. Indivíduos e firmastrabalham, assim, para igualar e superar as condições de qualidade epreço ditadas externamente – pela concorrência. À medida que o fazem,oferecem bens e serviços por uma combinação de qualidade e preçomais vantajosa para o consumidor – razão pela qual as condições debem-estar podem se disseminar para parcelas cada vez maiores dasociedade. A superação da concorrência se torna possível por meio dainovação, isto é, da descoberta e do aperfeiçoamento de novos métodos,técnicas, produtos, insumos e mercados.

Por fim, o capitalismo estabelece o princípio da remuneraçãopelo mérito: a cada um segundo as suas capacidades. Tudo mais sendo

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igual, os indivíduos que fizerem uso mais eficiente de seus recursosmateriais e imateriais serão mais bem recompensados.

Por tudo isso é que o desenvolvimento econômico dependetão fortemente do aumento da produtividade, que significa que asociedade está produzindo mais (riqueza) com os mesmos recursosescassos.13 E é justamente o aumento de produtividade que possibilita,a um só tempo, a acumulação – fundamental para o aumento dosinvestimentos – e a distribuição da renda (via aumento de salários).

Tendo em vista as características do sistema capitalista, voltamosà pergunta pela qual iniciamos a discussão do tema cultura e progressoeconômico: é possível encontrar uma cultura mais apropriada aocapitalismo? O quadro 1, resume os principais argumentos utilizadospelos que respondem afirmativamente a essa questão:

O quadro apresenta de maneira sucinta os argumentos deMariano Grondona (2000) para explicar as dificuldades postas pelacultura latino-americana ao progresso econômico, mas acreditamosque pode ser generalizado para outros contextos culturais.14 Por ele épossível perceber que a cultura (os valores, atitudes, práticas e pressupostos)cria determinados padrões de comportamento nos indivíduos a elasubmetidos, os quais afetam a forma como esses mesmos indivíduosse comportam nas esferas econômica e política. Todos os traços culturaisde uma sociedade que promoverem comportamentos orientados para otrabalho criativo, o uso eficiente dos recursos escassos e o respeito àsliberdades dos demais indivíduos podem ser vistos como compatíveiscom a lógica do capitalismo. Já os que promoverem comportamentosantagônicos, poderão ser vistos como obstáculos ao progresso econômico.

De acordo com a tipologia elaborada por Grondona, umacultura favorável ao progresso econômico e político se caracteriza peloestímulo ao uso eficiente e intensivo dos recursos escassos da sociedade

13 De modo geral, os economistas mensuram produtividade em termos de produto por horade trabalho. Um aumento da produtividade ocorre sempre que o produto por hora trabalhadaaumenta.14 Na mesma coletânea organizada por Harrison e Huntington é também possível achartextos semelhantes sobre a cultura africana e asiática assim como sobre os valores culturaisde minorias étnicas presentes nos Estados Unidos, como negros, latinos e asiáticos (Harrison& Huntington, 2000).

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e ao respeito às leis que estabelecem o que os indivíduos podem e nãopodem fazer. Os valores e instituições disseminam uma visão do homemcomo um ser livre e racional, capaz de perceber as oportunidades e asrestrições que o mundo lhe impõe para criar riqueza e, assim, realizarseus desejos. Os indivíduos são levados a acreditar que todos são iguaisperante a lei, mesmo aqueles que se destacam por seu poder político eeconômico.

Quadro 1. Influência de fatores culturais sobre o potencial de progressoeconômico

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Todd Buchholz, um ex-professor de Economia da Universidadede Harvard, define a economia como “o estudo e a prática de fazerescolhas, num mundo no qual as pessoas querem beneficiar a si mesmas,mas não podem escapar da escassez” (Buchholz, 1995, p. 5). Nas páginasprecedentes, vimos em que circunstâncias as escolhas são feitas. Vale àpena resumir nossos principais achados até aqui:

1. os indivíduos são os agentes dos processos históricos poissão sempre e apenas eles que tomam decisões. Isso não querdizer que os indivíduos controlem o curso da história;

2. os indivíduos tomam decisões valendo-se de suaspreferências, de suas crenças, dos recursos que dispõem ouimaginam dispor e das restrições (reais ou imaginadas)impostas pelo meio;

3. as decisões são tomadas em contexto marcado pela incertezaquanto aos resultados das ações e pela escassez;

4. os indivíduos realizam escolhas com base em uma avaliaçãodos custos e dos benefícios potenciais envolvidos em cadauma das alternativas de ação, procurando elevar ao máximoos primeiros e reduzir os últimos;

5. no entanto, os indivíduos realizam escolhas tendo em vistaexpectativas socialmente construídas, e institucionalizadasem leis, códigos de conduta, costumes e tradições culturais;

6. as instituições formais e informais que regulam a vidaeconômica, política e social restringem as alternativas deação abertas aos indivíduos à medida que comportammecanismos para detectar e punir casos desviantes;

7. por isso, as instituições reduzem as incertezas envolvidas nainteração entre indivíduos racionais e maximizadores deutilidade;

8. tanto as instituições quanto as normas sociais e a cultura deum povo, à proporção que estimulam e inibem determinados

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padrões de comportamento, afetam a forma como aspessoas se comportam nas esferas da política e da economia.Por isso, é legítimo falar em culturas e instituições quepromovem o desenvolvimento econômico sustentado eoutras que o inibem;

9. por outro lado, tanto as instituições como as normassociais e a cultura sofrem mudanças constantes, as quaispodem aproximar ou afastar um país da rota em direção àprosperidade.

É justamente por conta desses três últimos pontos que asinstituições, as normas sociais e a cultura são consideradas, por muitosautores, essenciais para se entender por que subsistem, lado a lado,formas tão eficientes e tão ineficientes de organizar a produção e adistribuição de riquezas (North, 1990, 1981). Por que os governosdos países mais pobres não conseguem aprender com a históriaeconômica e transformar positivamente suas economias, de modo agerar mais e distribuir melhor a riqueza? Por que em tantos países osindivíduos são levados a agir de modo utilitário, desprezando, quandonão explicitamente violando, as normas mais elementares à convivênciasocial harmônica? Por que em tantos países subsistem instituições,normas sociais e valores culturais que estimulam os indivíduos a destruirao invés de criar riqueza?

A síntese do que os economistas e a história econômica nosensinam sobre o processo de desenvolvimento econômico é que eleestá intimamente ligado ao conjunto de instituições, normas sociais evalores culturais de uma nação.15 São eles que estabelecem as restriçõessob as quais os indivíduos racionais elegerão suas preferências e farãosuas escolhas a respeito de como combinar os recursos escassosdisponíveis para realizá-las. É também valendo-se deles que osindivíduos e grupos se mobilizarão para reformar as regras e os costumes.Portanto, é possível dizer que o desenvolvimento econômico será mais

15 Daqui por diante, usaremos apenas a expressão “instituições” para designar tambémnormas sociais e cultura.

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acentuado nos países cujas instituições promovam comportamentoscondizentes com as lógicas de criação e difusão da riqueza. Mas qualsão essas instituições? E como o processo de reforma institucional eevolução cultural pode criá-las?

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No capítulo anterior, apresentamos os principais condicionantesda ação humana e algumas de suas conseqüências mais evidentes para odesenvolvimento econômico. Reforçamos o fato de que os indivíduossão racionais, mas acrescentamos o papel central desempenhado pelasinstituições, pelas ideologias e pela cultura, como condicionantes dasações de indivíduos racionais. Em outras palavras, nosso argumento éque os indivíduos se comportam na política e na economia com baseem uma ação orientada para resultados, tendo em vista as opçõespermitidas pelas instituições efetivas – isto é, aquelas que incorporammecanismos para detectar e punir comportamentos desviantes.

Também chamamos atenção para os efeitos econômicos dasinstituições e da cultura, assim como para o fato de que ambas estãoem permanente processo de mudança. Essa mudança pode resultar defenômenos sociais (revoluções), políticos (guerras, invasões estrangeiras),econômicos (fome, descobertas tecnológicas, intensificação docomércio) e mesmo físicos, como catástrofes naturais (do fato de umasociedade ter sofrido um terremoto, por exemplo, pode provocar umestímulo inusitado à cooperação e ao associativismo, que pode alterarvalores e práticas culturais, assim como instituições formais).

Foi também referido no capítulo 1 que os indivíduos percebemos efeitos das instituições e da cultura do país sobre a performanceeconômica. Nesse sentido, é natural assumir que eles vão agir individuale coletivamente para alterar a estrutura de incentivos que essas instituiçõesinformam à ação dos agentes econômicos. Por conta disso, para osestudos de economia política o mais importante fator de mudançainstitucional – e mesmo cultural – é a ação dos grupos.

Neste capítulo, discutiremos os condicionantes da ação coletivaorientada para a reforma institucional. Partiremos de uma definiçãomais específica do termo “instituições”: como as regras politicamentechanceladas e que estabelecem o que os indivíduos podem ou não

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fazer para realizar suas preferências (suas metas e objetivos). De acordocom essa definição, são instituições tanto as políticas governamentais(policies), como o conjunto de regras que estruturam o regime político– democrático, semidemocrático ou autoritário – e o sistema degoverno – presidencialismo, semipresidencialismo, parlamentarismoou absolutismo – de um país.

Assim, estaremos preocupados em responder às seguintesquestões: quais são os incentivos (positivos e negativos) que afetam adisposição de um indivíduo qualquer para participar de um grupocujo objetivo é reformar as instituições e determinados aspectos dacultura do país? Como um grupo qualquer define sua estratégia deatuação? Há fatores estruturais que afetam a emergência de gruposcom determinadas características? O quê determina que a disposiçãode um grupo à ação seja maior que a de outro?

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Praticamente todo mundo que vive em sociedade compartilhadeterminados interesses ou preferências com outros indivíduos.À medida que duas ou mais pessoas (1) percebam essa coincidência,(2) imaginem ser mais vantajoso para si mesmas atuar de maneiracoordenada para realizá-lo ao invés de isoladamente, e (3) consigamestabelecer bases de confiança mútua, as condições para que se concretizeuma ação coletiva voltada para realizar um interesse coletivo estarãorealizadas.

A formação de qualquer grupo se dá em torno dos interessesque os indivíduos compartilham entre si. No entanto, se a percepçãopor parte dos indivíduos quanto à coincidência de seus interesses como de outras pessoas é razoavelmente corriqueira em qualquer sociedade,a formação de grupos de interesse para realização de um interessecompartilhado, ou bem público, é fenômeno muito mais raro. Muitosinteresses são compartilhados sem, entretanto, fomentarem a organizaçãoda coletividade com vistas a promover esse interesse comum.

Na maior parte dos casos, porém, o sucesso de uma açãocoletiva dependerá da capacidade de organização dos indivíduos. Em

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1914, o sociólogo alemão Robert Michels discutiu o fenômeno daorganização e afirmou:

Quer se trate de reivindicações econômicas ou políticas, aorganização se revela como o único meio de criar uma vontadecoletiva. E, à medida que ela repouse sobre o princípio do menoresforço, isto é, da maior economia de forças, a organização é, nasmãos dos fracos, uma arma de luta contra os fortes (Michels,1982, p. 15).

Mas, se é verdade que o êxito de muitos grupos depende desua capacidade de organização, esta envolve uma série de custos quedevem ser pagos pelos membros potenciais do grupo. A disposiçãodestes indivíduos para arcar, ex ante, com os custos da ação coletiva –que ninguém sabe se terá bom êxito – será determinante, na maiorparte dos casos, para que eles tenham alguma capacidade de agir emdefesa de seu(s) interesse(s) comum(ns).

Este fenômeno foi discutido pelo economista Mancur OlsonJr., em seu livro A Lógica da ação coletiva (1965). Para Olson, a próprianatureza compartilhada dos objetivos a serem perseguidos – os benspúblicos – cria dificuldades para a constituição de grupos e para a suaatuação eficiente (medida pela oferta ótima do bem). De acordo coma definição olsoniana, que se tornou clássica na Ciência Política e naEconomia, um bem público é caracterizado por dois fatores: a não-exclusão e a não-rivalidade. De acordo com o primeiro, um bem públicoé aquele que beneficia indistintamente todos os membros de umacoletividade, ou seja, tanto os que pagaram quanto os que não pagaramos custos de sua provisão. Assim, ninguém pode ser excluído dasvantagens geradas pela ação coletiva.1 Já o critério de não-rivalidade(non-rivalry) estabelece que o consumo do bem por uma parte dacoletividade não reduzirá os benefícios à disposição dos demais. Umavez provido o bem público não haverá razão para que os membros dogrupo rivalizem para aproveitar os benefícios que ele proporciona, poistodos terão acesso a eles quando desejarem.

1 A ação coletiva é o agregado de ações individuais orientadas para a obtenção de bens públicos.

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Segundo o argumento de Olson, a não-exclusão e a não-rivalidade criam um paradoxo para a ação coletiva: um indivíduo racionalmaximizará sua utilidade (os benefícios que lhe cabem) se o bem públicofor provido sem que seja necessária a sua participação na ação coletiva,ou seja, com custo zero para ele. Isso ocorreria porque, além do(s)interesse(s) que um indivíduo compartilha com os outros membrosde seu grupo potencial, ele tem interesses específicos. O fato de teremmúltiplos interesses afeta a propensão de todo indivíduo a agircoletivamente. O conflito entre seus interesses específicos e coletivos ocoloca numa situação em que ele tem que decidir entre contribuir paraa ação coletiva e optar por um curso alternativo de ação que lhe beneficietanto quanto ou mais do que cooperando com o grupo.

Como um indivíduo racional decide o quê fazer em talsituação?

Olson diz que, primeiro, o indivíduo avaliará o impactopotencial de seu comportamento cooperativo – isto é, em prol da açãocoletiva – para a provisão do bem público. Ele estará disposto a agir deacordo com o interesse coletivo se estiver convencido de que o sucessoda ação coletiva depende de sua cooperação, ou seja, se ele achar quesua participação fará diferença para o êxito do grupo, o qual lhe trarábenefícios.

Simultaneamente, o indivíduo avaliará os benefícios que eleobterá com a provisão do bem público. Uma vez mais, ele se disporá acooperar para a ação coletiva se chegar à conclusão de que o benefícioa ser obtido é maior que os custos que precisará pagar para que a açãotenha êxito.

As duas avaliações referidas acima são, necessariamente,imperfeitas. Ninguém tem como saber de antemão (ex ante) quãoimportante será sua participação individual para o sucesso da açãocoletiva, nem qual parcela dos benefícios gerados pela provisão do bemlhe caberá. Imaginemos, por exemplo, que o bem público em questãoseja a construção de um espaço coletivo de lazer, uma praça, num bairroresidencial. Para realizá-lo, os moradores decidem criar uma associaçãopara pressionar a prefeitura. Cada membro potencial da coletividade –o bairro – tem um interesse na construção da praça, que, no mínimo,

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valoriza o imóvel em que mora. No entanto, também percebe quecooperar tem custos. Primeiro, todo indivíduo sabe que, uma vezconcluída, a praça beneficiará a todos indistintamente, ou seja,independentemente da pessoa ter participado ou não da ação coletiva.Segundo, ele sabe que se todos os moradores participarem domovimento pela criação da praça ele será apenas mais um entre muitose que, por isso, sua presença não será vital para o sucesso da ação.Terceiro, ele também sabe que o benefício obtido com a construçãoda praça será diminuído pelo fato de ter que compartilhar suas instalaçõescom todos os outros moradores do bairro e, quem sabe, com pessoasde fora do bairro.

Tendo em vista a percepção de que o peso de sua participação ébaixo (se apenas ele faltar, isso não fará a menor diferença para a forçade pressão do grupo), o custo relativo de cooperar se eleva pois, paracooperar, ele deixaria de fazer muitas outras coisas nas quais suaparticipação teria um peso mais determinante (como, por exemplo,ajudar seu filho nas tarefas escolares, sair com sua esposa, ou mesmodescansar). Noutras palavras, há custos de oportunidade envolvidos nadecisão de cooperar. Da mesma forma, o fato de que o benefício porele obtido será compartilhado com outras pessoas reduz o seu valorpara o indivíduo. Assim, o indivíduo maximizador de utilidade serálevado a não cooperar com a ação coletiva, ou seja, a não participar domovimento de pressão sobre as autoridades para a provisão do bempúblico (a praça). Ele tentará pegar uma carona (free ride) na ação(cooperativa) dos demais. No entanto, se todos os indivíduos sãoracionais, todos farão o mesmo cálculo e a ação coletiva não seconcretizará, isto é, o movimento de pressão não se realiza e a praçanão será construída. Todos saem perdendo, apesar de todos terem agidoracionalmente.2

Não é difícil concordar com Olson que indivíduos unicamentepreocupados em maximizar sua utilidade chegarão facilmente àconclusão de que, quanto maior o grupo, menor o peso de sua

2 Este resultado exemplifica o que foi dito no capítulo 1, quando discutimos o significado doconceito de racionalidade instrumental.

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cooperação para o sucesso da ação coletiva e menor o benefício queeles poderão obter com a provisão do bem público. Mediante o exemploanterior, quanto mais populoso o bairro, maiores as dificuldades parase realizarem ações coletivas. Em contrapartida, em grupos pequenoso peso da participação de cada indivíduo para o sucesso da ação coletivatende a ser maior do que nos grupos grandes (como eles são poucos,todos desempenharão ao menos uma função essencial). Da mesmaforma, a parcela do bem público apropriada por cada um dos membrosdo grupo tenderá a ser maior nos grupos pequenos. (No caso da praça,se poucos forem os usuários potenciais, será mais fácil para cadaindivíduo, por exemplo, ficar isolado da multidão e do barulho ouencontrar uma quadra de esportes vaga ou uma churrasqueira disponível).

Para Olson, normas sociais também influenciam a probabilidadede ocorrência de uma ação coletiva, mas tal efeito se dá em combinaçãocom o tamanho dos grupos. Como referido no capítulo 1, normassociais restringem o grau de liberdade dos indivíduos para agir apenascom base em considerações utilitárias. Nos grupos grandes, a participaçãode cada indivíduo passa praticamente despercebida dos demais, o queos deixa mais livres para optarem por estratégias maximizadoras, istoé, não-cooperativas (carona). Já nos grupos pequenos, os indivíduospodem ser compelidos a cooperar em razão de sua visibilidade pelosdemais integrantes do grupo, o que lhes impõe o cumprimento denormas sociais do tipo “se todos devem cooperar para a provisão dealgo que nos interessa enquanto coletividade, você deve cooperar”.

Do que acaba de ser citado deriva a crença olsoniana de queações coletivas voluntárias ocorrem apenas em grupos pequenos.O modelo interpretativo proposto por esse autor, apesar de muitoútil, não serve para explicar episódios como levantes populares erevoluções, os quais se caracterizam por serem movimentos voluntáriosde massa. Analisaremos essa questão na seção seguinte. Antes, porém,nos ocuparemos de demonstrar as condições sob as quais indivíduosracionais pertencentes a grupos grandes se dispõem a cooperar paraprover um bem público e que fatores determinam a dinâmica de entradae saída de indivíduos de um grupo. Vejamos inicialmente a primeiraquestão.

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Como vimos, em grupos grandes tanto a importância daparticipação de cada indivíduo para o êxito da ação coletiva quanto osbenefícios apropriados por um indivíduo em razão da provisão dobem público tendem a ser baixos. Por isso, o custo de oportunidadeda estratégia cooperativa tende a ser elevado. Por outro lado, em gruposgrandes a pressão social é insuficiente para produzir comportamentosorientados para a provisão do bem público, tendo em vista que cadaindivíduo é desconhecido dos demais. Assim, é difícil até mesmo aorganização do grupo, elemento imprescindível para o sucesso dequalquer ação coletiva, de acordo com os postulados de Olson.

Mas a simples observação da realidade nos coloca diante deum paradoxo: o modelo do ator racional nos leva a pensar que os casosde ação coletiva se limitariam aos grupos pequenos – com poucosmembros – mas somos freqüentemente confrontados com o sucessode estratégias perseguidas por grupos grandes, contendo dezenas,centenas e, muitas vezes, milhares de membros. A proliferação e ocrescimento de sindicatos de trabalhadores e empresários em todos ossetores da economia (indústria, serviços, agricultura) constitui sinal deque muitos indivíduos racionais optam por estratégias cooperativas –por exemplo a greve e o piquete para conseguir aumentos de salários –em grupos grandes, e que tais ações são freqüentemente bem-sucedidas.Como Olson explica isso?

Em primeiro lugar, Olson chama a atenção para a importânciade se considerar a intensidade das preferências dos indivíduos para seentender porque alguns se dispõem a pagar mais custos do que outrospara que a ação coletiva tenha sucesso. Indivíduos diferentes optampor um mesmo objetivo em intensidade diferente, algo que deriva dopróprio fato de que eles são diferentes – têm estruturas de preferênciasparticulares e percepções distintas sobre os mesmos fenômenos,inclusive sobre a parcela ou fração do bem público da qual poderão seapropriar. Os indivíduos que desejam intensamente um determinadobem certamente avaliam os benefícios que a provisão deste bem lhestrará de maneira distinta dos indivíduos que o desejam com menosintensidade. Dessa forma, muitos grupos podem ser considerados gruposprivilegiados por terem entre seus membros indivíduos dispostos a pagar

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custos muito mais elevados do que os demais para que um bem públicoseja provido, tendo em vista sua avaliação particular acerca de suasnecessidades ou dos benefícios que poderá obter com a provisão dobem. Muitos dos grupos grandes que conseguem agir coletivamentedevem sua efetividade à grande disposição de trabalho de uma pequenaparcela de seus membros que podem ser facilmente identificados comoum subgrupo – ao qual se denomina a diretoria, a comissão-executiva,o comitê de mobilização, a vanguarda ou outro termo que diferenciaseus membros dos demais integrantes do grupo.3 No entanto, é corretosupor que a provisão do bem público se fará num nível aquém(subótimo) do que seria coletivamente desejado, pois o indivíduo emquestão tem interesse em prover o bem na medida de suas necessidadese não das necessidades dos demais membros do grupo. Para Olson,quanto maior o grupo, menores as chances de que exista um indivíduodisposto a pagar mais para sua provisão. Por isso, é quase impossívelque esse fenômeno ocorra em grupos grandes, por conta da pequenaparcela apropriável por cada um dos membros da coletividade e dosaltos custos de sua provisão.

A segunda e mais importante contribuição de Olson para oentendimento da ação coletiva em grupos grandes envolve a capacidadedesses grupos – daqueles que são incumbidos de organizar as atividadesem nome de sua direção – para aplicar incentivos seletivos para distorceros custos e os benefícios da cooperação que incidem sobre cadaindivíduo. Esses incentivos podem ser negativos ou positivos,respectivamente, quando implicarem custos ou benefícios adicionaisàqueles presentes na ação coletiva voluntária. É principalmente pormeio da dosagem de incentivos como esses que grandes coletividadescompostas por indivíduos maximizadores conseguem agir em prol dosinteresses compartilhados por seus membros. Mas o que são essesincentivos e como eles operam?

3 No interior deste subgrupo a força de constrangimentos sociais, como os discutidos notexto, tende a ser grande, pois os seus membros são facilmente identificáveis (e, por isso,fortemente cobrados) tanto pelos demais membros do subgrupo como pelos de fora. Não éà toa que parte da dinâmica desses subgrupos consiste em cada membro assumir ocompromisso de “mobilizar” os demais membros do grupo para a ação coletiva.

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Incentivos positivos são vantagens concretas (e não apenassubjetivas) adicionais à provisão do bem público. Ao contrário destes,beneficiam apenas os membros do grupo que cooperarem para aconsecução da ação coletiva e são usados para estimular cada um apagar os custos necessários à provisão do bem público. Os incentivosnão são bens públicos porque violam o critério da não-exclusão. Porexemplo, os sindicatos de trabalhadores freqüentemente oferecemserviços exclusivos aos seus associados – aos que estão em dia com ascontribuições mensais necessárias para “fazer a máquina funcionar” –para estimular a associação e o compartilhamento dos custos necessáriosà provisão dos bens públicos para os quais foram criados: barganhassalariais, luta por melhores condições de trabalho, reivindicações peloaumento da segurança no trabalho, provisão de fundos para aorganização, etc. São considerados incentivos positivos todos os serviçosprestados pelas organizações coletivas que extrapolem o merodesempenho das funções para as quais tal organização foi criada. Assim,muitos sindicatos oferecem a seus associados serviços como:atendimento médico; planos de aposentadoria e de saúde; clubeesportivo; atividades recreativas; de treinamento e de capacitação; entreoutras. Um outro exemplo do uso de incentivos positivos é o queocorre no Brasil, onde o governo federal promete fazer as devoluçõesdo imposto de renda com maior agilidade para os contribuintes queentregarem suas declarações de renda por meio eletrônico (disquete ouinternet).

Os incentivos negativos são desvantagens impostas apenas aosmembros de um grupo que não cooperam para a provisão do bempúblico (caronas). Servem para desestimular estratégias não-cooperativasdo tipo: não contribuir para o sindicato, furar greve, desrespeitar asleis, sonegar impostos, etc. Por meio delas, a direção de um grupogrande de indivíduos pode inibir tais comportamentos maximizadores,os quais ficam mais custosos para o indivíduo que os empreende.

A existência de incentivos seletivos pressupõe a organização dogrupo, portanto, serão administrados apenas pelos grupos que tiveremresolvido o problema essencial da organização.

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Para Olson, a dinâmica de entrada e saída de indivíduos, queafeta o tamanho dos grupos, se explica pela natureza do objetivo quecada grupo persegue. Há, para ele, uma grande diferença entre os gruposde mercado (market groups), que buscam objetivos exclusivos e os grupospolíticos (non-market groups),4 que perseguem objetivos inclusivos.O que determina a natureza exclusiva ou inclusiva de um grupo é otipo de interação por meio da qual ele é obtido: se o bem público éobtido em interações de mercado, o grupo será exclusivo – isto é, secaracterizará por uma resistência de cada membro do grupo à entradade novos membros; se não for obtido em interações de mercado, ogrupo será inclusivo – ou seja, a cada membro do grupo interessa queoutros se tornem membros.

A exclusividade dos grupos de mercado se estabelece por meiode uma lógica de criar barreiras à entrada (entry barriers) de novosindivíduos na coletividade, já que o ingresso de um novo membrotornaria mais difícil a provisão do bem público. Ademais, mesmo noscasos em que não impedisse a provisão do bem público, a adesão deum novo membro inevitavelmente provocaria a diminuição da parcelado benefício a que cada membro faria jus. Pensemos no caso de umacoletividade composta por todas as firmas produtoras de aço de umdeterminado país. Em termos estritamente econômicos, interessa acada membro desse grupo que o preço do aço suba, via redução daprodução (que é o que cada um pode controlar), para que seus lucrosaumentem. O interesse econômico compartilhado por todos – o bempúblico – seria, assim, a elevação do preço do aço. Entretanto, a cadaum deles interessa também vender mais aço do que no presente, o quetambém aumentaria seus lucros. Isso coloca cada indivíduo diante daescolha entre cooperar para a ação coletiva – estabelecendo um preço

4 Na verdade Olson fala em market groups e non-market groups e não em grupos políticos(Olson, 1965, p. 43). Optamos aqui pela segunda expressão, não apenas pela dificuldade detraduzir a expressão original (grupos não-mercantis, ou grupos não-mercado), masespecialmente pela natureza (política) do objetivo coletivo que eles perseguem. Essa naturezapolítica é que determina a lógica inclusiva dos grupos que visam prover bens via interaçõesnão-econômicas – “quanto mais pessoas quiserem fazer parte do grupo, maior o potencialde sucesso da ação coletiva” – como veremos logo a seguir.

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mais alto para o aço, seguindo entendimento com as demais siderúrgicas– ou violar a ação coletiva e ser o único a manter preços mais baixospara conquistar os clientes de todos os que participarem da ação coletiva– isto é, elevem seus preços. A lógica desses grupos é exclusiva porquea entrada de mais um membro para o grupo (em nosso exemplo, cadanova firma de siderurgia aberta no país) dificultaria ainda mais apossibilidade de sucesso da ação coletiva (é mais difícil coordenar aação de cinco do que de quatro pessoas).5

Assim, é próprio do comportamento dos agentes econômicosno mercado o avanço de estratégias para: (I) criar barreiras à entrada denovos concorrentes (fornecedores do mesmo produto); e, (II) eliminaros concorrentes existentes, para tornar mais fácil atingir a maximizaçãoda renda. No limite, o interesse de cada agente econômico é seestabelecer como monopolista, qualquer que seja o seu setor deatividade. Isso se obtém por meio da especialização (uma firma queoferece um produto singular ou um indivíduo que tem qualificaçõesinigualáveis) ou da construção de instituições. No primeiro caso, oindivíduo ou a firma investe parte de seus ativos (tempo, dinheiro,inteligência, etc.) para desenvolver sua capacidade de inovação a fim de

5 É fundamental perceber que os trabalhadores também podem ser considerados um grupode mercado – cujo bem público deve ser obtido via interações de mercado. Os interesses decada trabalhador de uma firma dividem-se entre aqueles que são compartilhados – porexemplo, desejo por salários mais altos e por melhores condições de trabalho – e aqueles quesão particulares de cada um – como a permanência no emprego num momento de recessãoou a ascensão profissional. Esses interesses são muitas vezes difíceis de conciliar: o indivíduoque pretende continuar no emprego precisa pensar duas vezes antes de reivindicar maioressalários, por exemplo. A fim de avançar seus interesses egoístas, cada membro do grupoprecisa se diferenciar dos demais por meio de estratégias como especialização técnica (queé sinônimo de maior produtividade e eficiência), manifestação de lealdade em relação aossuperiores e afirmação de compromissos em relação à firma e ao trabalho, as quais seassemelham à construção de barreiras à entrada (entry barriers) de novos concorrentes pelasfirmas no mercado. Esses interesses particulares tornam cada trabalhador um rival de seuscompanheiros de trabalho (como as firmas de um mesmo setor). Os trabalhadores de umamesma firma ou setor serão capazes de agir coletivamente em prol de seus interesses comogrupo à medida que conseguirem restringir os comportamentos maximizadores da maiorparte dos indivíduos que o compõem, levando-os à greve, ao piquete ou a quaisquer outrasformas de ação consideradas eficazes para avançar os interesses da coletividade como umgrupo econômico.

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se estabelecer como o único ou o melhor produtor de um bem ouserviço qualquer. Descobrir métodos e técnicas mais eficientes paraproduzir um bem conhecido, para abrir novos mercados de consumoe para inventar novos produtos a fim de atender às demandas dasociedade são estratégias inovadoras legítimas capazes de diminuir,quando não eliminar, temporariamente, a concorrência (Schumpeter,1943). No segundo caso, o investimento é feito para criar e manterinstituições (reservas de mercado; tarifas de proteção; garantiasgovernamentais para monopólios públicos ou privados; etc.) capazesde, artificialmente, reduzir a oferta e/ou aumentar a demanda pelobem ou serviço produzido pela firma ou pelo indivíduo. É justamentepor compreenderem que o sucesso dessa lógica exclusiva traz problemaspara o restante da sociedade que os autores liberais defendem a atuaçãodo Estado para garantir a existência de concorrência econômica, vistacomo única forma de garantir que o sistema de mercado beneficie ocidadão comum, o qual é sempre um consumidor.

Já os grupos políticos, aqueles que perseguem um bem públicoque não é obtido em interações de mercado, são caracterizados pelalógica inversa: quanto mais indivíduos fizerem parte do grupo, eparticiparem da ação coletiva, maior a probabilidade de provisão dobem público. Imaginemos o mesmo grupo de siderúrgicas, agoraconsiderando seus interesses que dependem de decisões governamentais:redução de tributos incidentes sobre a compra de insumos, máquinase sobre a contratação de trabalhadores; estabelecimento de políticas detreinamento e capacitação de trabalhadores; redução de alíquotasincidentes sobre a importação de máquinas e de matéria-prima;estímulos à exportação, para citar apenas alguns. Nesse contexto, ogrupo assumirá uma lógica inclusiva com vistas a buscar adesões para aação coletiva – quanto mais firmas de siderurgia existirem, maior opoder de pressão do grupo e maiores as chances de sucesso da açãocoletiva.

Tendo em vista os exemplos citados, é possível compreender aafirmação de Olson segundo a qual um mesmo grupo pode ser demercado, numa situação, e político, noutra, dependendo da naturezado bem público desejado (1965, p. 39).

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Douglas North, outro estudioso da ação coletiva de grandesgrupos, complementa a visão olsoniana ao propor que as ideologias –definidas por ele como esforços intelectuais para racionalizar os padrõesde comportamento dos indivíduos e grupos – provêm os indivíduoscom elementos cognitivos que funcionam como parâmetros ideais paraque cada um avalie o mundo objetivo à sua volta e escolha estratégiaspara realizar suas preferências. Toda ideologia está intrinsecamenteassociada a juízos éticos e morais e, desse modo, fornece aos indivíduosdefinições acerca do que é bom e do que é ruim na sociedade: formasde comportamento individual e coletivo, instituições e resultados dainteração social. Nesse sentido, as ideologias representam sistemas decrenças que organizam os processos de coleta e análise de informaçõese tomada de decisões pelos indivíduos. No entanto,

não se pode provar que as teorias são ‘verdadeiras’; elas apenaspodem ser refutadas pelas evidências. Mas teorias são empregadaspara explicar uma grande parte do mundo a nossa volta e nãoexistem testes definitivos que possam eliminar todas asexplicações menos uma (North, 1982, p. 48-9).

Uma ideologia pode operar como motor para a ação coletiva,seja ela orientada para conservar ou reformar o que existe (o que cadaum deve fazer em determinada situação tendo em vista um ideal desociedade). Isso explicaria, segundo North, o comportamento de massasde indivíduos movidos, por exemplo, por um sentimento de justiça e/ou de revolta com um determinado estado de coisas, que geralmentemarca os movimentos revolucionários, assim como o sentimento delegitimidade do status quo – das instituições vigentes – que caracterizaos períodos de maior estabilidade política.

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Toda e qualquer instituição é um bem público visto que satisfazos critérios da não-exclusão e da não-rivalidade. Uma determinada

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estrutura de direitos de propriedade ou o conjunto de regras eleitoraisde um país atingem todos os membros de uma mesma sociedade.Ademais, seu “consumo” por um indivíduo não restringe o direito dequalquer outro de se beneficiar dela. Assim, os processos de construçãoe reforma institucional são marcados pelos dilemas da ação coletivadiscutidos nas duas seções anteriores.

Cada uma das diferentes instituições que formam o quadroinstitucional de um país cria ganhadores e perdedores entre os membrosda sociedade. De modo geral, é possível argumentar que o bem-estarrelativo de um indivíduo depende do preço relativo dos ativos que elepossui. O preço relativo de um ativo qualquer depende dos seus níveisde oferta e de demanda na sociedade, em comparação com os níveis deoferta e de demanda dos outros ativos. Tendo em vista que umadeterminada instituição (a estrutura tarifária, uma proibição paraproduzir ou comercializar um determinado bem, a estrutura desubsídios, a política educacional, para citar apenas algumas), altera onível de oferta ou de demanda por um determinado ativo, ela estaráafetando diretamente o seu preço relativo e, por conseguinte, a rendade seu proprietário em relação a dos outros membros da sociedade.

Como observamos, não é difícil aceitar dois postulados sobreo comportamento dos indivíduos em relação às instituições. O primeirodiz que os indivíduos constantemente avaliam as instituições existentesem relação aos efeitos que têm sobre o seu nível de bem-estar.O segundo diz que, com base nessas avaliações, os indivíduos decidementre agir de acordo com o que estabelecem as instituições existentes,defendendo-as diante de iniciativas reformistas ou agir paracomplementar, reformar ou substituir essas instituições por outras queaumentem o preço relativo de seus ativos. Tais postulados nos levam aum terceiro: os indivíduos cujo bem-estar depende de ativos cujos preçosrelativos são fortemente afetados pelas instituições do país terão maiorestímulo para agir coletivamente quer para conservar quer para reformartais instituições do que os indivíduos cujo bem-estar depende de ativoscujos preços relativos são pouco ou nada afetados pelas instituições.

No entanto, o processo político em torno das iniciativas dereforma institucional é caracterizado por um dilema de ação coletiva

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muito particular e que tem a ver com os diferentes graus de incertezaentre os que se beneficiam com o status quo e os que defendem areforma das instituições. É razoável supor que os beneficiários do statusquo sabem que as instituições vigentes os beneficiam relativamente.Também parece correto esperar que eles reajam com força e rapidezcontra qualquer proposta de reforma institucional que coloque emrisco sua posição privilegiada. O estímulo para a ação coletiva dos quese beneficiam das instituições vigentes, portanto, tende a ser intenso eautomático. Já os eventuais beneficiários de uma reforma institucionalsão prejudicados pelas duas incertezas típicas do paradoxo da açãocoletiva: será que terei mais benefícios com a reforma do queatualmente? Será que minha cooperação é decisiva para o sucesso dareforma? Essa avaliação individual quanto aos custos e benefícios daação coletiva, como vimos, requer dos reformistas capacidade deorganização e de mobilização de incentivos positivos e negativos paraque a iniciativa de reforma tenha êxito.

Há, contudo, alguma variável estrutural que explique por quealguns grupos são mais propensos do que outros a influenciar osprocessos de construção e reforma institucional?

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Para Jeffry Frieden, cientista político da Universidade deHarvard, a resposta a esta pergunta é positiva (Frieden, 1991). Eleconsidera que o grau de especificidade dos ativos (asset specificity) de umindivíduo ou grupo determina sua propensão a pressionar o governopara que crie instituições – ou adote políticas públicas – que aumentemseu preço relativo.

A especificidade de um ativo representa o grau em que o retornoque dele se obtém depende de seu uso numa circunstância particular(Frieden, 1991, p. 20). Um ativo pode ser classificado de acordo comum contínuo que vai de “totalmente específico” a “totalmente líquido”.Um ativo totalmente específico gera retorno apenas se for aplicado deum único modo. Se for empregado de qualquer outra forma, o retornopara seu proprietário será zero, ou seja, ele não tem valor de uso ou de

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troca e seu proprietário não obtém qualquer rendimento por possuí-lo. Um ativo totalmente líquido é aquele que pode ser empregado emdiferentes atividades, sem que se verifique diferença entre elas no graude retorno que proporcionará a seu proprietário. Papel-moeda, depósitosem conta corrente e ativos financeiros (ações, títulos, quotas) são asformas mais líquidas de ativo, posto que podem ser empregadas emmúltiplas atividades.

Segundo o argumento de Frieden, o grau de especificidade deum ativo determina o nível de quase-renda por ele envolvido. A quase-renda é a diferença entre o retorno proporcionado pelo emprego doativo em circunstâncias ideais e o retorno que se obtém utilizando-oda segunda melhor forma possível. Quanto maior a especificidade deum ativo maior a quase-renda, ou seja, maior diferença entre aremuneração que seu proprietário obtém com o seu uso apropriado eo seu melhor uso alternativo. O exemplo dado por Frieden pararepresentar um ativo altamente específico é o de uma máquina queserve apenas para produzir uma placa com a marca “Escort”, para ocarro da Ford. A máquina proporcionará o seu maior retorno enquantoa Ford fabricar esse modelo de automóvel e virará sucata (porque nãoserve para mais nada) assim que tal produção for descontinuada.

De acordo com Frieden, quanto mais específico um ativo,maior será a vulnerabilidade do seu proprietário em relação àsinstituições do país e, por conseguinte, maior deverá ser a sua disposiçãopara influenciar o processo de reforma institucional. Nesse processo, oproprietário de um ativo muito específico pressionará o governo (pormeio de lobby) a adotar políticas que aumentem a demanda por e/oudiminuam a oferta de seu ativo no mercado, a fim de que ele disponhade condições para usá-lo da maneira que oferece o maior retorno. Faráisso, mesmo que a instituição que lhe beneficie prejudique o conjuntoda sociedade. Já os proprietários de ativos líquidos têm pouco interesseem pressionar o governo para criar instituições que lhe beneficiem umavez que podem obter retornos equivalentes em diferentes atividades.Como salienta Frieden, “é evidente que os detentores de ativosfinanceiros têm forte incentivo para se opor a políticas que reduzem oretorno aos investimentos financeiros – como o estabelecimento de

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um teto para as taxas de juros, por exemplo – mas, à parte isso, sãoindiferentes à estrutura de preços relativos” (Frieden, 1991, p. 21).

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Concluímos o capítulo anterior afirmando que o desenvolvimentoeconômico depende do aperfeiçoamento das instituições e da renovaçãoda cultura de um povo com vistas a estimular tanto o uso eficiente dosrecursos escassos de cada indivíduo e, por conseguinte, da sociedadequanto o trabalho criativo e inovador, voltado para o aumento daprodutividade.

O desenvolvimento econômico é tido aqui como um processoque beneficia todos os membros de uma sociedade. No entanto, épreciso ver com clareza que todo indivíduo possui interesses particulares(egoístas), muitos dos quais poderiam ser avançados com maioreficiência e eficácia caso ele resistisse, desrespeitasse ou destruísse asregras e os costumes tidos como os mais adequados ao desenvolvimentoeconômico. Da mesma forma, em muitas coletividades, indivíduos e/ou grupos percebem algumas das demandas de seus concidadãos pormudanças institucionais e culturais como ameaças às suas posições naestrutura social, política ou econômica e a elas se contrapõem. Issoocorre mesmo quando essas demandas são vistas como promotorasdo desenvolvimento. Por tudo isso, concordamos com autores comoNorth, quando afirmam que:

As instituições não são necessárias nem usualmente criadaspara serem socialmente eficientes; ao contrário, elas (ou ao menosas regras formais) são criadas para servir os interesses daquelescom poder de barganha para criar novas regras. ...

Se as economias realizam os ganhos de comércio (gainsfrom trade) por meio da criação de instituições relativamenteeficientes é porque, sob certas circunstâncias, os objetivos privadosdaqueles que têm força de barganha para alterar as instituiçõesproduzem soluções institucionais que vêm a ser ou se transformamem socialmente eficientes (North, 1990, p. 16).

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Assim, é possível dizer que, independentemente do país ou da cultura,há sempre forças políticas que são (ou seriam) beneficiadas porinstituições que favorecem o desenvolvimento econômico e outras quesão (ou seriam) prejudicadas por elas. O desenvolvimento é determinado,portanto, pela forma como se equaciona esse embate político.

Tratamos, neste capítulo, dos principais condicionantes àatuação dos grupos econômicos e políticos para melhor entender comose dá a transformação dos interesses compartilhados em ação coletiva.Chegamos à conclusão de que os grupos mais capazes de agir em proldos interesses compartilhados por seus membros são os grupos pequenose os grupos cuja direção é capaz de lançar mão de incentivos seletivospara estimular cada indivíduo a cooperar, pagando parte dos custos daação coletiva. Em complementação ao que vimos no capítulo anterior,salientamos que as ideologias podem funcionar como motores da açãohumana e, por conseguinte, da ação de grupos.

Toda sociedade é um grupo grande. Sempre que um grupopequeno é dotado de grande poder de barganha – isto é, capacidade deinfluenciar as decisões públicas e o processo de construção institucional– defender instituições que prejudiquem o interesse da maioria é possívelque este último apresente maior capacidade de ação coletiva e que asociedade tenha sua perspectiva de desenvolvimento retardada.

Nossa conclusão, em sintonia com o argumento de North, éque o desenvolvimento econômico depende da prevalência políticados grupos que se beneficiariam ou que acreditam que se beneficiariamcom o estabelecimento de determinadas instituições e valores sociaisque, como um subproduto, favorecem o desenvolvimento econômico.Mas quais são as instituições políticas e econômicas e os valores sociaisque provêm as condições mais adequadas ao desenvolvimento?

Essa pergunta foi respondida recentemente pelo economistaDavid Landes, da Universidade de Harvard. De acordo com ele,merecem destaque as regras que:

• asseguram um amplo leque de liberdades individuais,especialmente direitos de propriedade, para que osindivíduos sejam estimulados a usar eficientemente seus

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ativos (materiais e imateriais) a fim de realizar suaspreferências, assumindo plenamente os riscos desse empregomas dispondo de garantias de apropriação da maior partedos benefícios gerados pelo uso que fizer desses ativos;

• protejam os indivíduos e suas propriedades contra a tiraniae a desordem (crime e corrupção);

• imponham a obediência aos direitos de contrato (explícitose implícitos);

• provejam a ‘instalação de um governo estável, nãonecessariamente democrático, mas ele próprio dirigido porregras de conhecimento público (um governo mais de leisdo que de homens)’. Isso significa dizer que qualquer revisãoinstitucional deve obedecer aos procedimentos estabelecidose será restringido pelas garantias individuais e coletivas;

• garantam aos indivíduos e aos grupos o direito de expressarsuas insatisfações em relação ao quadro institucional e/ouem relação à forma como este é administrado;

• forcem os governantes a serem honestos e imparciais, ‘demodo que os agentes econômicos não sejam estimulados aobter vantagens e privilégios dentro ou fora do mercado’.Isso requer a constante prestação de contas à sociedade;

• propiciem ‘um governo moderado, eficiente e nãoganancioso. O efeito seria manter impostos baixos, reduzira pretensão do governo sobre o excedente social e evitar oprivilégio’ (Landes, 1998, p. 242-3).

Como vimos no capítulo 1, as normas sociais e a culturatambém afetam o desempenho econômico dos países, de modo que éimportante que, em seu conjunto, elas reforcem as instituições citadase estimulem: a honestidade; o respeito à lei; o trabalho bem feito; acriatividade; a inovação; o risco calculado; a mobilidade geográfica esocial; a igualdade entre pessoas de sexo, raça, religião, cultura e naçõesdiferentes; e uma preferência pela racionalidade científica sobre a magiae a superstição (Landes, 1998, p. 242-3).

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A expectativa é que, se essas instituições e normas sociais foremgarantidas, as condições ideais para o desenvolvimento econômicoestarão asseguradas. Entre essas condições, Landes enfatiza:

• “(saber) operar, administrar e construir os instrumentos deprodução, e como criar, adaptar e dominar novas técnicasna fronteira tecnológica;

• “(ser) capaz de transmitir esses conhecimentos e know-howaos jovens, seja por educação formal, seja por treinamentoe aprendizado;

• “(ser capaz de escolher) as pessoas para preencher funçõespor competência e mérito relativo; promovesse e rebaixassecom base no mérito;

• “(proporcionar) oportunidades para empreendimentospessoais ou coletivos; encorajasse a iniciativa, a competiçãoe a emulação;

• “(permitir) às pessoas desfrutar dos resultados de seutrabalho e iniciativa” (Landes, 1998, p. 241-2).

Em suma, as condições ideais ao desenvolvimento são aquelasque estimulam cada indivíduo a produzir mais riqueza com umaquantidade menor ou equivalente de recursos escassos. Para tanto, cadaindivíduo precisa ser estimulado a inventar e a inovar, o que requer doambiente social, político e econômico amplas garantias de liberdadeindividual e total submissão do potencial de satisfação e bem-estar decada um às suas habilidades para alterar produtivamente a natureza àsua volta.

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Nos dois capítulos anteriores, chamamos a atenção para o papeldo indivíduo na conformação do ambiente econômico, social e políticoem que vive. O indivíduo cria instituições e normas sociais, as quaismoldam seu próprio comportamento e determinam o resultado dainteração social. O desenvolvimento econômico, como vimos, é umacontingência desse processo de estruturação do mundo que emborarealizado pelo homem, não é por ele inteiramente planejado. Vimosque as instituições e normas sociais são o resultado da ação do homem,mas não do desígnio humano: elas se desenvolvem valendo-se dainteração de indivíduos com diferentes vontades, interesses e percepçõese nunca das vontades, interesses e percepções de uma só pessoa.

Neste capítulo, manteremos nossa ênfase no papel do indivíduocomo agente e discutiremos alguns conceitos básicos que explicam ofuncionamento do sistema de mercado, ou da economia capitalista.Estaremos aqui preocupados em explicar como as escolhas dos agentes(indivíduos/consumidores, empresas e governo) são condicionadas porinstituições que garantem a efetividade dos direitos de propriedade,do sistema de preços, da concorrência econômica, com base emconceitos como: custo de oportunidade, divisão social do trabalho,custo marginal, concorrência perfeita e imperfeita e falha de mercado.

Mas não nos limitaremos a expor como operam tais mecanismos,também discutiremos a questão institucional e a importância daestabilidade das regras do jogo. Nesse sentido, a discussão sobre o papeldo Estado é essencial.

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Mercado é um conjunto de relações voluntárias e mutuamentebenéficas envolvendo compra e venda de direitos de propriedade entreagentes econômicos. De modo simplificado, podemos definir“mercado” como um lugar público no qual as pessoas realizam trocas– compra e venda de bens e serviços – sob uma condição de concorrência.

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Além de um conjunto de trocas econômicas, o (sistema de) mercadopode também ser entendido como o conjunto de regras, ou instituições,que regulam essas transações. As chamadas regras de mercado sãojustamente as garantias individuais que asseguram a cada um apropriedade sobre seus ativos e a liberdade para utilizá-los em prol deseus interesses, resguardadas as mesmas liberdades para todos os demais.Essas garantias individuais funcionam como anteparos para protegê-los dos demais indivíduos, dos grupos sociais, e mesmo do próprioEstado. Elas se justificam ontologicamente: cada indivíduo deve serreconhecido como proprietário de todas as suas capacidades físicas ementais e de tudo o que puder com elas realizar. Uma segunda, masnão menos importante, característica das instituições próprias de umaeconomia de mercado é que elas visam também garantir a existência ea manutenção das condições concorrenciais da economia, evitando,especialmente, a formação de cartéis e de monopólios.

Direitos de propriedade. Para que possam realizar trocaspercebidas como mutuamente benéficas os indivíduos dependem, antesde tudo, que seus ativos (materiais ou não) sejam reconhecidos comosuas propriedades. O vendedor precisa garantir ao comprador que é oúnico proprietário dos ativos cuja compra negocia. Por outro lado, ocomprador precisa garantir ao vendedor que são seus os ativos (bensou dinheiro) que usará para realizar a transação. Sendo assim, pararealizar transações econômicas que satisfaçam seus interesses, todo equalquer indivíduo necessita de garantias de propriedade sobre os ativosque possui.

As garantias de propriedade precisam necessariamente envolveras capacidades de trabalho e de raciocínio de uma pessoa. Essascapacidades diferenciam os indivíduos, afetando diretamente suacriatividade e sua produtividade. Sem tais garantias um indivíduo nãoterá estímulos para ser mais produtivo (por meio do uso mais intensoe criativo de seus recursos escassos), pois não terá a certeza de poder sebeneficiar do maior esforço e/ou criatividade dispensados ao trabalho.Da mesma forma, se não houver garantia efetiva de propriedade sobreum determinado ativo seu preço de mercado se desvalorizará porque oindivíduo que o possui de fato não terá como assegurar aos potenciais

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compradores que a transação será concluída sem ameaças de contestaçãopor terceiros.

Trocas voluntárias. Uma outra dimensão envolvida na definiçãode mercado aqui apresentada diz respeito ao caráter voluntário dastransações realizadas pelos agentes econômicos. Cada indivíduo levaao mercado os ativos que possui, mas nada nem ninguém pode garantirque ele receberá em troca o valor que se imagina merecedor. Isso porqueo preço de mercado de um bem ou serviço é determinado não pelovendedor, mas pela razão entre a oferta e a demanda social do ativo emquestão numa determinada época (ano, mês, dia, hora) e local (país,estado, região, cidade, bairro) – a chamada “lei da oferta e da demanda”.

Do que acabamos de abordar é possível derivar um dos maisimportantes postulados a respeito do funcionamento de uma economiade mercado. De acordo com ele podemos afirmar que, tendo em vistaseu caráter voluntário, as transações econômicas realizadas entre osindivíduos representam, sempre, as alternativas percebidas por elescomo as mais vantajosas para realizar seus interesses particulares, casocontrário não as aceitariam.

Com isso não pretendemos dizer que todas as partes envolvidasobtêm o mesmo grau de satisfação em uma transação, nem que todasdispõem da mesma capacidade para negociar em nome de seusinteresses. Apenas salientamos que, tendo em vista sua liberdade paraaceitar, negociar ou rejeitar uma determinada oferta, o indivíduo só aaceitará se acreditar ser esta a melhor alternativa de emprego de seusativos escassos.

O preço relativo de um ativo depende do valor a ele atribuídopela sociedade e estará sempre sujeito a variações, conforme as mudançasnos seus níveis de oferta e de demanda. Cada indivíduo possui e levaao mercado determinados ativos, os quais têm preços relativosespecíficos e muito diferentes entre si. Por conta disso, o conjunto detransações de mercado tende a promover uma distribuição desigual dariqueza entre os indivíduos que vivem numa mesma sociedade. Comoa desigualdade resultante das interações de mercado resulta das diferençasno valor de mercado dos ativos possuídos por cada indivíduo, é possíveldizer que serão mais capazes de satisfazer suas preferências aqueles

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indivíduos que possuem ativos altamente valorizados e pouco ofertadosnuma dada época e lugar.

Dois aspectos dessa desigualdade merecem ser comentados.Primeiro, as instituições que compõem uma ordem de mercado nãoimpõem desigualdades cumulativas, isto é, não impedem a ascensãoeconômica e/ou social de qualquer cidadão, nem mesmo daqueles quese encontram nos estratos mais baixos das pirâmides econômica, sociale política. Especialmente quando associadas à democracia,1 as leis demercado estabelecem as mesmas garantias legais a indivíduos diferentes,e constituem uma fonte potencial de pressão a favor da eliminação detodos os obstáculos sociais e políticos à prosperidade individual, comopreconceitos e discriminações baseados em atributos de raça, cor, etnia,origem social ou geográfica, entre outros. Por outro lado, admite-seque um dos papéis mais importantes que precisam ser desempenhadospelo Estado é justamente estabelecer condições de igualdade deoportunidade por meio do acesso de todos os membros da sociedade àeducação. Esta é vista como instrumento fundamental de progressoindividual à medida que promove o aumento das capacidades criativae inovadora das pessoas. O acesso de todos à educação pública é tambémessencial para reduzir as desigualdades na propriedade de ativos(materiais e imateriais) passados de pai para filho e que, de outro modo,inviabilizariam o princípio da igualdade de oportunidades.

Segundo, apesar de promover a desigualdade na distribuiçãoda riqueza, as regras de mercado estimulam igualmente todos osindivíduos a utilizarem seus ativos de maneira mais eficiente e criativa,de modo que, no longo prazo, a riqueza da sociedade tenderá a crescermais sob uma ordem de mercado do que sob qualquer outra. Assim,em seu conjunto a sociedade tenderá a ficar cada vez mais rica.

Avaliações diferentes quanto à utilidade dos ativos. Outro pontofundamental do sistema de mercado é que, para que as trocas sejamrealizadas, comprador e vendedor precisam avaliar diferentemente autilidade do que estão transacionando. Essa diferença se verifica porque

1 A discussão sobre as regras democráticas e seu efeito sobre a não-cumulatividade dasdesigualdades será feita no capítulo seguinte.

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as trocas ocorrem entre indivíduos com preferências, ativos, crençase/ou restrições diferentes num contexto marcado por informaçãoimperfeita. Como o valor que cada um atribui a um certo bem ouserviço disponível no mercado depende de seu conjunto de preferências,ativos, crenças e restrições, surgem, naturalmente, diferenças deavaliação que viabilizam a realização de transações depois de estabelecidoum preço que satisfaça tanto ao vendedor quanto ao comprador. Noteque quando o proprietário de um ativo qualquer o avalia tanto quantoou mais do que um potencial comprador, a transação não se realiza. Épreciso que o potencial comprador valorize mais o ativo que o vendedor,para que se disponha a oferecer em troca um outro ativo (umadeterminada quantia, por exemplo) que seja aceito pelo proprietário.

Pensemos no caso de dois indivíduos, um produtor de maçãse outro trabalhador, que trazem ao mercado maçãs e força de trabalho.Em decorrência das condições de oferta e demanda de trabalho naeconomia, uma hora de trabalho deste trabalhador vale R$ 5,00 aolongo de todo o ano. Tendo em vista as variações na oferta e na demandaverificadas ao longo do ano, 1kg de maçã vale R$ 2,5 nos meses dasafra, e R$ 5,00 nos da entressafra. Por conta dessa variação, o valor deuma hora de trabalho medido em quilogramas de maçã varia, ao longodo ano, entre 1 kg e ½ kg. Assumindo que a satisfação de cada indivíduoderiva direta e proporcionalmente de sua capacidade de consumo, etendo em conta que tal capacidade varia em sintonia com o preçorelativo do ativo que ele leva ao mercado para ser vendido, podemosdizer que o grau de satisfação dos dois indivíduos vai variar ao longodo ano. Durante os meses de colheita, em que a oferta crescesubstancialmente, o produtor de maçãs percebe que o preço pago nomercado por um quilograma da fruta cai até o equivalente a meia horade trabalho (R$ 2,5).2 Inversamente, o trabalhador vê sua capacidadede consumo de maçãs cair sensivelmente nos meses de entressafra,quando chega a lhe custar o equivalente a uma hora de trabalho. Apesardas variações de preço relativo ao longo do ano, tanto o produtor de

2 Veremos, mais adiante, que esse produtor continuará produzindo uma unidade adicionalde maçã até o ponto em que o preço obtido por esta unidade adicional seja igual ao custoincorrido para produzi-la.

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maçãs quanto o trabalhador são estimulados a investir mais esforço ecriatividade para produzir mais unidades do produto com a mesmaquantidade de recursos escassos, para aumentarem sua renda. Quantomais maçãs forem produzidas, maior a renda obtida pelo produtor.Quanto mais unidades de um produto qualquer for capaz de produzirem uma hora de trabalho, maior tenderá a ser a renda do trabalhador.O importante a perceber é que eles precisam dispor de garantias depropriedade sobre seus ativos (terra, macieiras, capital, do lado doprodutor; força de trabalho e criatividade, do lado do trabalhador) eliberdade para empregá-los da forma que acharem mais adequada erentável.

Concorrência. A condição de concorrência é essencial paracaracterizar uma economia de mercado. A concorrência é indispensávelà economia de mercado justamente porque é ela que garante que cadaindivíduo ofertará a maior quantidade de produtos pelo preço maisbaixo, não por benevolência – como bem nos lembra Adam Smith –mas para satisfazer seu próprio interesse. Na prática, o regime deconcorrência resulta da garantia institucional de liberdade a todos osindivíduos para ofertar à sociedade, via mercado, qualquer mercadoriaque sejam capazes de produzir ou adquirir com seus ativos. Comotodos são igualmente livres para ofertar os produtos demandados pelasociedade é de se esperar que muitos indivíduos se tornem produtorese comerciantes de uma mesma mercadoria.

A competição entre produtores de um mesmo produto fazcom que cada um seja levado a reduzir seu preço de venda a fim degarantir sua sobrevivência e se livrar de seus estoques. Os comerciantestêm acesso aos produtos por um preço mais baixo do que o que seriapraticado no caso de haver apenas um produtor. Mas a concorrênciaentre os comerciantes faz com que também eles sejam levados a reduzirao máximo seus preços, com vistas a conquistar mais fregueses. Nofinal, os consumidores – que formam a totalidade da sociedade, já quetodos os produtores e comerciantes são também consumidores – sãoos mais beneficiados pelo sistema concorrencial.

Quanto menor a concorrência num determinado setor, maioresas chances de que o produtor será capaz de estabelecer um preço superior

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ao que cobraria na presença de competidores. Isso porque a concorrênciaé o que leva os produtores a produzirem uma quantidade de produtoscompatível com o nível de sua demanda pela sociedade. Na ausênciade concorrência o produtor poderia trabalhar menos e fixar um preçopara sua mercadoria que fosse suficiente para dar continuidade à suaprodução e satisfazer suas necessidades e vontades. Como, em funçãoda existência de concorrentes, não podem estabelecer livremente o preçofinal de seus produtos, os vendedores (produtores e comerciantes) sevêem diante da necessidade de elevar ao máximo seu potencial de lucropor meio da venda (e, portanto, da fabricação) do maior númeropossível de unidades da mercadoria. Por conta disso, ele tenderá aaumentar a produção até o ponto em que o custo de produzir umaunidade a mais do produto for igual ao seu preço de venda.3

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O sistema de mercado está baseado no mérito individual e norisco. A ênfase no mérito é decorrente do fato de que cada um retiradas interações uma recompensa proporcional ao valor socialmenteatribuído a seus ativos e à eficiência com que os utiliza. Ademais, nosistema de mercado cada um dependerá apenas de suas própriashabilidades para satisfazer suas necessidades e vontades, não cabendoao Estado qualquer função distributiva. O risco deriva do contexto deincerteza que caracteriza as decisões de poupar, investir ou consumirque são constantemente tomadas pelos indivíduos.

É justamente do agregado das decisões individuais relativas apoupar e a investir que dependerá o padrão de crescimento edesenvolvimento econômico do país. O comportamento de um agenteeconômico qualquer – seja ele um operário, um comerciante ou umindustrial – é condicionado pelas instituições que regulam a vida social,especialmente pelas regras econômicas e políticas, mas também é afetadopelo comportamento dos demais agentes econômicos, isto é, por suas

3 Essa idéia será retomada mais à frente, quando discutirmos a teoria marginalista do custode produção.

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decisões de poupar, investir e consumir. Como salientado no iníciodeste capítulo, a história – o desenvolvimento econômico, a prosperidade– é o resultado da ação humana, mas não do desígnio humano.

Os principais fatores geradores de incerteza no sistemaeconômico são os ciclos econômicos, a inflação, as inovaçõestecnológicas e as políticas governamentais. Vejamos cada um deles.

Ciclos econômicos. Toda economia de mercado se caracteriza pelasucessão de períodos de crescimento econômico e de recessão. Oseconomistas ainda desconhecem as razões que explicam a ocorrênciados chamados ciclos econômicos, apesar de terem surgido muitosmodelos para explicá-los.4 De todo modo, como os principais agenteseconômicos são os indivíduos, as empresas e o governo, para entenderos ciclos econômicos é preciso perceber que eles têm origem nocomportamento agregado desses agentes.

São as decisões privadas relativas à poupança, ao consumo e aoinvestimento que, no agregado, determinam se, quanto e até quandouma economia deve crescer. E essas decisões são tomadas com base napercepção dos agentes econômicos a respeito das perspectivas de retornode cada uma das alternativas existentes para aplicação de seus ativos, deacordo com certas condições do presente, ou seja, as decisões sãobaseadas em análises subjetivas da realidade, que consideram, porexemplo: o nível futuro da demanda agregada para o bem ou serviço aser produzido e sua compatibilidade com o potencial de crescimentoda produção; o nível futuro das taxas de juros; o nível futuro dospreços dos insumos necessários à oferta do bem ou serviço. As decisõesdos governos e das empresas são muito mais relevantes para secompreender a ocorrência e a duração dos ciclos que as decisões dosconsumidores tendo em vista seus impactos muito mais acentuadossobre a disposição e mesmo a capacidade de consumo de grandescontingentes de pessoas.

Os ciclos econômicos apresentam quatro fases distintas:depressão (depression), recuperação (recovery), alta (boom) e recessão

4 Kondratief, Keynes e Schumpeter foram alguns dos principais teóricos que buscaramexplicar a ocorrência dos ciclos econômicos.

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(recession). A depressão é uma condição da economia marcada por umaqueda acentuada da demanda agregada, acompanhada por níveis muitobaixos de produção e por forte desemprego, que conduzem a economiaaté seu ponto mais baixo. A recuperação representa uma elevação dademanda agregada que se faz acompanhar por crescimento da produçãoe do emprego. A fase de alta é marcada pelo crescimento da demandaagregada até o ponto em que ultrapassa o nível sustentável de produçãoe leva a economia até seu pico. Por fim, a recessão representa o términoda fase de alta, quando a demanda agregada pára de crescer e começa adeclinar, trazendo consigo quedas inicialmente moderadas do produtoe do emprego, depois acentuadas quando tem início a depressão (CollinsDictionary of Economics, 1993, p. 53). A duração e o grau dessasfases depende diretamente do conteúdo das políticas econômicas e dasdecisões dos empresários, as quais dependem, por sua vez, da percepçãodos indivíduos que ocupam os principais postos em suas respectivasestruturas de comando.

Inflação. A inflação é outro fator de instabilidade presente emqualquer economia. Significa, de maneira simples, o aumentogeneralizado dos preços sustentado por um certo período de tempo.Como a inflação reduz o poder de compra da moeda (precisamos decada vez mais unidades da moeda para comprar um mesmo produto),impõe efeitos distributivos diferenciados entre as partes de um contrato,ou seja, distorce os resultados estipulados pelos contratantes,beneficiando uns e prejudicando outros. De modo geral, a inflaçãoafeta a distribuição de renda (prejudica indivíduos com renda fixa), osprocessos de concessão e de tomada de empréstimos (os credoresperdem e os devedores ganham), a especulação (estimula a transferênciade poupanças antes investidas na produção para a especulação em ativosmais líquidos) e o comércio internacional (as exportações se tornamrelativamente mais caras e as importações mais baratas) (CollinsDictionary of Economics, 1993, p. 256-7). Justamente por conta deseu impacto distorcivo sobre os contratos privados é que a inflaçãotorna mais complexa e arriscada a atividade de planejamento empresarial,fundamental ao desenvolvimento. Com a inflação, o investimentoprodutivo, com prazo de maturação necessariamente longo, perde seu

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atrativo em relação aos investimentos mais líquidos e de prazo maiscurto, como as aplicações financeiras e as transações em bolsa. Se, comofoi citado, é justamente da propensão das empresas privadas a investirconstantemente os seus lucros que depende o crescimento econômicode qualquer país capitalista, a inflação pode ser vista como um obstáculoao crescimento econômico.

Inovações tecnológicas. As invenções e inovações tecnológicas sãofundamentais para o desenvolvimento econômico, se considerarmosseu impacto direto sobre a produtividade da economia. A criação denovas técnicas e processos de produção assim como de novos produtos(invenção) e seu aperfeiçoamento e desenvolvimento prático (inovação)são instrumentos fundamentais para que uma firma melhore suavantagem competitiva em relação às concorrentes. Invenção e inovaçãotornam possível a uma firma oferecer um produto melhor por umpreço mais baixo, viabilizando, assim, a posição da empresa no mercado.

A despeito desse impacto positivo, as invenções e inovaçõessão uma fonte de incerteza do sistema econômico, quando promovemaquilo que o economista austríaco Joseph Schumpeter chamou de“destruição criativa”. De acordo com ele, os processos de invenção einovação seriam responsáveis pelos ciclos econômicos visto que, apóso desenvolvimento de uma invenção, a economia seria assolada poruma forte onda recessiva causada pela falência das firmas prejudicadaspelo aumento da eficiência da firma inovadora.

Independentemente da comprovação desta tese – que semostrou problemática quando testada empiricamente – o fato é queas invenções e inovações têm forte impacto sobre a estrutura do sistemaeconômico e representam fonte significativa de incerteza e risco paraos agentes econômicos. Os trabalhadores precisam estar atentos às novastécnicas e ser capazes de operar máquinas e equipamentos cada vezmais sofisticados. Os empresários precisam investir parte de seu lucroem atividades de pesquisa e desenvolvimento, a fim de garantir e/ouexpandir sua posição no mercado.

Políticas governamentais. A ação do Estado é essencial para osurgimento e o desenvolvimento de uma economia de mercado. AoEstado cabem algumas funções econômicas essenciais, entre as quais,

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destacamos: garantir os direitos de propriedade, dirimir conflitos entreos agentes econômicos e zelar pelo poder de compra da moeda. Noentanto, são raros os casos em que o Estado, mais especificamente osgovernos, não procuram realizar objetivos substantivos – comoamenizar ou reverter períodos recessivos, distribuir renda, incentivar amodernização tecnológica, combater a inflação, para citar apenas alguns– por meio da administração de programas de ação (ou políticas).

As políticas governamentais são uma fonte de incerteza para atomada de decisão dos agentes econômicos (empresários, trabalhadores,chefes de família, consumidores, etc.) porque afetam o funcionamentoda economia, ou seja, a taxa de retorno esperada pelos agentes quandorealizam uma transação. Os agentes econômicos não têm como saberao certo o conteúdo de todas as políticas que serão lançadas pelo governonem como elas afetarão os contratos que estão dispostos a realizar.Assim, antes de tomar decisões que afetam a liquidez de seus ativoseles procuram antecipar o conteúdo da política econômica, paraminimizar os “riscos políticos” que elas embutem.

Considerando a enorme incerteza que caracteriza o meioambiente econômico em qualquer economia de mercado, como explicaro êxito inigualável obtido pelas economias de mercado em relação atodos os modelos alternativos que existiram até hoje? A resposta a essaquestão deve necessariamente levar em conta a importância de algunsmecanismos econômicos que são próprios das economias de mercadoe que as tornam mais propensas a promover o crescimento da renda edo bem-estar. Entre eles, destacam-se a liberdade de comércio, quepromove a especialização, e o sistema de preços.

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Em todo lugar, os membros de uma coletividade, seja elasimples ou complexa, repartem entre si as tarefas que precisam serrealizadas para prover os bens e os serviços necessários ao bem-estar dogrupo no curto, no médio e no longo prazo. Independentemente de setratar de uma família, uma tribo, um clã, uma associação de interesse,um partido político, um município, um estado, uma província, ou

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um país, o certo é que em qualquer coletividade algum critério é sempreutilizado para fazer essa repartição de tarefas entre os membros dogrupo. A ela dá-se o nome de divisão social do trabalho.

Por exemplo, nas tribos indígenas a divisão social do trabalhoobedece a princípios de gênero e idade, diretamente associados à noçãode vigor físico. Nessas sociedades, os papéis que cada pessoa desempenhasão justificados pela aptidão, vista como um atributo de sua idade e deseu sexo. Por isso, geralmente cabem aos homens adultos as tarefas decaçar, pescar e fazer a guerra, enquanto as mulheres cuidam dos filhos,do preparo da comida e da confecção dos utensílios domésticos.É também por conta desse critério que apenas os homens mais velhospodem se ocupar das funções de chefe político e pajé.

Nas sociedades complexas, que constituem o foco de nossaspreocupações, o desempenho de papéis sociais que afetam ofuncionamento da economia e/ou o bem-estar da sociedade são cadavez menos conferidos às pessoas em razão da posse de atributos “naturais”como idade, gênero, etnia, raça, religião, etc. Esses atributos tendem aser substituídos pelo mérito individual como critério essencial deestruturação da divisão social do trabalho. Assim, mulheres e homens,jovens e adultos são vistos indistintamente como indivíduos particulares,únicos responsáveis por seus atos e pela provisão de seu sustento.5 Elespodem assumir qualquer papel social, político ou econômico e serãojulgados por seu desempenho.

Onde o mercado se desenvolve mais intensamente é fácilobservar uma forte tendência ao predomínio dos indivíduos maisprodutivos sobre os menos eficientes no desempenho das atividades

5 Nessas sociedades, existem apenas limites mínimos para proteger as crianças, os velhos e osadultos mental ou fisicamente incapacitados para o trabalho, tendo em vista suas precáriascondições para fazê-lo. Entre o indivíduo e a ordem econômica existem grupos que servempara proteger e avançar os interesses compartilhados por seus membros, como a família, aempresa, as cooperativas, e uma multiplicidade de grupos não-econômicos que provêm ouajudam os indivíduos a proverem as condições mínimas para seu sustento – orfanatos, asilos,igrejas, organizações comunitárias, entidades beneficentes, etc. Os grupos de interesseformam uma outra categoria à medida que sua ação se faz basicamente por meio da políticae está endereçada ao Estado e não ao mercado. Por conta disso, deixaremos para avaliar seupapel no próximo capítulo, cujo foco será o Estado e a política.

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que geram os impactos econômicos mais visíveis para uma coletividadequalquer (por exemplo, empresas, Estado, associações comunitárias).Esses indivíduos são avaliados por sua performance e independentementede seus atributos naturais. Isso porque, nas economias de mercado, asatisfação das necessidades e das vontades individuais e coletivas dependeessencialmente da atuação econômica de cada um. Como o grau deretorno de qualquer indivíduo (ou coletividade) depende do valorsocialmente atribuído aos ativos que ele (ela) leva ao mercado, é lógicosupor que predominam na interação social aqueles indivíduos que sãoos mais eficientes na provisão dos bens e serviços socialmente maisvalorizados. Por outro lado, esta submissão da satisfação à performancefaz com que todos os cidadãos (mesmo os que possuem os ativosmenos valorizados) sejam igualmente estimulados a alocar de maneiraeficiente os recursos escassos de que dispõem com vistas a ofertar osbens e serviços mais demandados pela sociedade. Este é um forteincentivo ao aumento constante da produtividade e, por conseguinte,da riqueza individual e coletiva.

Desse modo é possível compreender que a divisão social dotrabalho nas economias de mercado, baseada no mérito individual,funciona como um poderoso mecanismo social para o aumento dariqueza da coletividade porque estimula cada indivíduo e cadacoletividade a usar seus ativos para realizar apenas as tarefas para asquais obtêm o maior retorno. As regras mais elementares de umaeconomia de mercado asseguram a cada indivíduo a propriedade sobreum conjunto de ativos e a liberdade para escolher como melhor utilizá-los com vistas a realizar suas preferências individuais e/ou coletivas. Aúnica limitação é que suas escolhas não podem restringir as liberdadesdos demais para fazer o mesmo. O conjunto de ativos de um indivíduoqualquer inclui suas propriedades materiais, seu vigor físico, suainteligência, suas habilidades manuais, o tempo que tem disponível etudo o mais que ele possua e que possa usar para satisfazer suaspreferências.6

6 De acordo com a definição dos economistas, um ativo é qualquer coisa que tenha valormonetário.

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Diante da necessidade de decidir como fará para satisfazer suaspreferências, todo indivíduo é levado a se perguntar como podemaximizar sua utilidade (obter o maior retorno possível) combinandoos ativos que possui.7 Um indivíduo fará uso eficiente de seu conjuntode ativos se utilizá-los nas atividades que geram o maior retorno. Todoindivíduo é capaz de usar seus ativos para desempenhar diversasatividades, em troca de renda. No entanto, indivíduos diferentesapresentam níveis distintos de produtividade no desempenho dasmesmas atividades, de modo que o valor dos bens e serviços (da riqueza)que são capazes de produzir com seus respectivos conjuntos de ativosvaria substancialmente. Essa variação se deve às diferenças nos ativosde cada indivíduo – às habilidades e propriedades específicas queempregam na produção – e sua ocorrência explica a existência dedesigualdade de renda entre os indivíduos.

Exatamente porque os indivíduos têm níveis de produtividadediferentes, que geram níveis desiguais de retorno, é que se torna naturalque eles se especializem (empreguem seus ativos) naquelas atividadesnas quais os retornos são mais elevados. Fazendo isso, obterão a melhor

7 É fundamental perceber que essa escolha é sempre feita sob condição de incerteza por umasérie de razões. Primeiro, a maior parte dos indivíduos (e mesmo dos países) não tem comosaber com precisão todas as alternativas possíveis de uso para os ativos que possuem.Segundo, há situações em que, apesar de ter consciência de que possui um ativo que podeser usado para satisfazer algumas de suas necessidades e vontades, um indivíduo pode seconsiderar incapacitado para utilizá-los da forma mais eficiente por razões de fundo religioso,ético, moral, entre outras. É o caso dos hindus que, mesmo passando fome, não comem suasvacas por considerá-las sagradas. Sendo ainda mais radical, é o caso dos pobres que mesmodiante de restrições muito graves a seu bem-estar, optam pela prostituição como fonte derenda. Por fim, podemos pensar que muitos indivíduos fazem uso “subótimo” de seu conjuntode ativos, porque desconhecem seu potencial. Algumas vezes esse potencial pode dependerdas instituições que regulam o funcionamento do mercado – por exemplo, a precariedadedos títulos de propriedade dos terrenos ocupados por favelas restringe a capacidade de seusproprietários (os favelados) para obter empréstimos bancários por meio da hipoteca de suascasas, instrumento muito utilizado pelos pequenos empresários em países avançados [cf. deSoto, 2000]. Outras vezes, a descoberta do potencial econômico de um ativo depende doprogresso da ciência, como foi o caso da descoberta de que o petróleo era uma fonte deenergia e, por conseguinte, de riqueza. De todo modo, essas dificuldades não eliminam ofato de que os indivíduos procurarão maximizar sua utilidade.

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remuneração possível, chegando o mais próximo que podem dasatisfação de suas preferências. Isso é o mesmo que dizer que ele devese especializar nas atividades em que dispõe de vantagem comparativa.Mas o que vem a ser vantagem comparativa e como distinguir entreas atividades em que dispomos e não dispomos de vantagenscomparativas?

Os indivíduos e as coletividades (por exemplo, empresas epaíses) submetidos a uma ordem de mercado são levados a compararos custos e os benefícios decorrentes da especialização de seus ativosem diferentes atividades, buscando encontrar aquela(s) que apresenta(m)a(s) maior(es) taxa(s) de retorno (vantagem comparativa). Ao contráriodo que muitos pensam, na hora de determinar o que deve produzir, oindivíduo e as coletividades não devem comparar suas performancescom as de outros indivíduos ou coletividades numa mesma atividade(vantagem absoluta). Assim, numa economia de mercado, cadaindivíduo, empresa ou país se especializará na produção de (istoé, utilizará seus ativos para produzir) bens e serviços que lheproporcionem o maior retorno, com vistas a satisfazer plenamentesuas preferências.8

A especialização é o princípio econômico e social maisimportante para a realização dos benefícios individuais e coletivos davida em sociedade. A especialização de cada indivíduo na consecuçãode algumas poucas atividades reduz os desperdícios de tempo, de energiae de todos os demais recursos escassos aplicados à produção. É verdadeiraa afirmação de que a especialização leva ao aumento da produtividade– portanto, à redução de desperdícios – e, por conseguinte, à elevaçãodo bem-estar coletivo. Ao se especializar, o indivíduo (e o país, comoveremos mais adiante) se torna mais eficiente na produção dos bens ou

8 Para simplificar, podemos assumir, como geralmente fazem os economistas, que todoindivíduo se comporta na economia para aumentar sua renda. Se o fizermos, chegaremos àconclusão de que cada um se especializará na produção de bens e/ou serviços que lheproporcionem a maior renda, o que dependerá dos ativos (propriedades materiais, habilidadese capacidades) que possuir, de suas crenças a respeito de como o mundo funciona e dasinstituições que regulam a vida social, econômica e política do país em que ele mora.

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serviços em que obtém o maior retorno, sejam eles sapatos, softwaresou conserto de relógios. Esse aumento de eficiência ou produtividadesignifica que o indivíduo produz mais unidades dos bens e serviços emque se especializa do que seria capaz se tivesse que produzir tudo o queprecisa e deseja consumir. A especialização promove a maximização desua renda, tornando-o capaz de consumir uma maior quantidade detudo o que tem necessidade ou interesse – alimentos, vestuário, arrumaçãoda casa, educação para seus filhos, automóveis, computadores, etc.

A especialização é a estratégia mais vantajosa tanto para osindivíduos e as coletividades que possuem os ativos mais valorizadosno mercado quanto para os que possuem os ativos mais comuns epouco valorizados. A lógica é essencialmente a mesma: a renda quepode resultar do uso dos ativos será tanto maior quanto maior aproporção desses ativos empregada (especializada) nas atividades quegeram o maior grau de retorno. Mas o que pode fazer para aumentar asua renda um indivíduo, uma empresa ou um país que possui os ativosmais comuns e menos valorizados? Primeiro, especializar-se nasatividades que geram o maior retorno presente. Segundo, investir umaparte dos rendimentos que lhe são assegurados pela especialização deforma a valorizar seus ativos no médio e no longo prazos. Isso só podeser feito por meio da aquisição de novos ativos: educação, treinamentoe capacitação, bens materiais, etc.9

9 Pensemos no caso de uma pessoa muito pobre e sem qualificação alguma. O que ela possuié essencialmente a sua capacidade de trabalho e de aprendizado. Quando se compara aqualquer outra pessoa, ela chega à conclusão que não há nenhuma atividade em que sedestaca. Pelo menos uma pessoa é melhor do que ela em todas as atividades que podedesempenhar. O que deve fazer, matar-se por que não conseguirá sobreviver? Lógico quenão! Ela procurará um emprego que não exija qualificação e será remunerada abaixo detodas as outras pessoas que desempenham a mesma função e são mais produtivas que ela.Mas isso é melhor do que morrer de fome. Enquanto trabalha, deve investir parte de seutempo e de seus rendimentos (se for capaz de poupar alguma coisa) para adquirir novosativos – deve procurar adquirir conhecimento sobre como desempenhar melhor as funçõespara as quais foi contratada, participar de cursos e treinamentos que estejam a seu alcancepara aprender novos ofícios, poupar dinheiro para adquirir bens materiais que possam serusados no futuro para melhorar sua renda. Em suma, deve se especializar e usar sua rendapara melhorar sua capacidade de oferta de bens e serviços mais valorizados pela sociedade.

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Mas a especialização só se viabilizará onde houver um sistemade trocas minimamente desenvolvido, isto é, um mercado. A especiali-zação promove o surgimento de um regime de interdependênciaeconômica pelo qual cada indivíduo (coletividade ou país) dependerádos demais para adquirir os bens e serviços que deixou de produzir emvirtude da concentração de seus ativos nas atividades que lhe traziam omaior retorno. Por conta disso os economistas são unânimes emreconhecer que as limitações ao comércio geram ineficiências alocativas(desperdícios) muito graves inclusive para os países que dispõem deoferta abundante de recursos materiais, como os Estados Unidos, oCanadá, a Argentina, a Rússia e o Brasil, para citar apenas alguns.O comércio viabiliza a interdependência econômica baseada naespecialização e na busca incessante por aumento de produtividadesendo, por isso, um mecanismo fundamental para o desenvolvimentoeconômico.

Os ganhos de produtividade decorrentes da especializaçãoviabilizam o aumento da produção (do total de bens e serviços queum indivíduo ou uma coletividade dispõe para consumir), isto é, ageração de excedentes de alguns bens e serviços, que serão usados paracomprar direta ou indiretamente tudo o que um indivíduo ou umacoletividade precisam. Assim, a produção de excedentes torna possível,necessário e eficiente o estabelecimento de um sistema de trocas que,em si, é benéfico a todos os que dele desejem fazer parte. A seguir,apresentaremos as idéias aqui desenvolvidas na forma de um exemplonumérico, para torná-la mais convincente.

Vantagem absoluta e vantagem comparativa.10 Imaginemos doisindivíduos, João e Pedro. Digamos que eles consomem unicamentealimentos e tecidos e que se empregassem todos os seus ativos naprodução de tecidos e alimentos eles apresentariam os índices deprodutividade dispostos na tabela 1.

10 Elaborado tendo por base o verbete “Gains from trade” do Collins Dictionary of Economics,p. 218-220 e o capítulo 3 de Mankiw, 1999.

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Tabela 3.1. Produção física de tecidos e alimentos por dois indivíduos,usando todos os seus ativos ou fatores de produção, com e semespecialização.

Na inexistência de comércio eles terão que produzir tudo oque desejam consumir. Mas isso não os impede de fazer cálculos. Elespodem facilmente calcular sua produtividade a fim de avaliar se teriammais a ganhar se especializando na produção de uma das mercadorias ecomprando a outra de um produtor mais eficiente. O cálculo érazoavelmente simples. Tendo por base a produtividade que obtém naprodução de cada uma das mercadorias João e Pedro sabem que usandotodos os seus ativos na produção de tecidos obteriam o equivalente a200m cada um. A produtividade é a mesma para os dois. No entanto,e por alguma razão que não nos interessa discutir, se optassem pelaespecialização na produção de alimentos, João produziria 200kgenquanto Pedro produziria 600kg. Portanto, Pedro seria três vezes maiseficiente (ou produtivo) que João na produção de alimentos.

Na ausência de comércio, o custo de oportunidade de ummetro de tecido será igual a um quilo de alimentos, para João, e seráigual a três quilos de alimentos para Pedro. Isso significa que Pedroprecisa deixar de produzir três quilos de alimentos para produzir ummetro de tecido, enquanto João deve desistir de produzir apenas umquilo de alimentos para cada metro de tecidos. É evidente que Pedro émais eficiente que João na produção de alimentos (vantagem absoluta)e que há uma equivalência entre ambos em relação à produção detecidos. Na falta de comércio, ambos terão que produzir tecidos ealimentos, na proporção em que desejam consumir. Assim, comodemonstrado na tabela 1, João produzirá 100m de tecido e 100kg dealimentos com seu total de ativos enquanto Pedro produzirá 400kg de

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alimentos e 66,6m de tecidos. Se, como em nosso exemplo, um dosindivíduos (Pedro) é mais eficiente na produção de alimentos em relaçãoao outro (João) e ambos são igualmente eficientes na produção detecidos, é possível esperar vantagens do comércio?

O pensamento econômico mostra que é a existência devantagens comparativas que importa para a permanência de vantagensmútuas com o comércio, e não a vantagem absoluta. E é justamentepor conta da diferença de eficiência (produtividade) entre João e Pedrona produção de alimentos que ambos podem tirar vantagens daespecialização e do comércio. Senão, vejamos:

Pedro tem uma clara vantagem comparativa na produção dealimentos, já que ele é três vezes mais eficiente que João. Nós tambémpodemos dizer que Pedro é relativamente mais eficiente na produçãode alimentos porque enquanto para ele o custo de oportunidade deproduzir um quilo a mais de alimentos é equivalente a 0,33m de tecido,para João esse custo é de 1m de tecido. Essa diferença de produtividadetorna mais vantajoso para João se especializar na produção de tecidos(sua vantagem comparativa), pois pode produzir essa mercadoria commenor ineficiência relativa. Em outras palavras, para João o custo deoportunidade de produzir o equivalente a 1m adicional de tecido éigual a apenas 1kg de alimentos, ao passo que para Pedro é de 3kg.Assim, em termos dos custos reais dos fatores de produção, Joãopode produzir 1m de tecido por um custo mais baixo que Pedroenquanto Pedro pode produzir 1kg de alimentos por um custo maisbaixo que João.

Na prática, temos que João é capaz de produzir 1m de tecidopor um custo igual ao de 1kg de alimentos e Pedro estaria disposto apagar-lhe mais do que isso já que precisa deixar de produzir três quilosde alimentos para produzir 1m de tecido. Por outro lado, Pedroconsegue produzir 1kg de alimentos por um custo que equivale ao de0,33m de tecido e João estaria disposto a pagar-lhe mais do que isso jáque para ele 1kg de alimentos não sai por menos de 1m de tecido.Haverá ganhos com a especialização e com o comércio entre João ePedro porque (I) João lucrará vendendo a Pedro 1m de tecido por umpreço inferior ao preço de 3kg de alimentos, e (II) Pedro lucrará ao

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vender a João 1kg de alimentos por um preço inferior ao de 1m detecido.

Tabela 3.2. Ganhos de comércio: possibilidades de produção e consumocom e sem comércio

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Como exposto nas tabelas 1 e 2, após o estabelecimento docomércio a especialização fará com que João produza 200m de tecidoe Pedro 600kg de alimentos. Se considerarmos, para efeito dedemonstração, que o preço de 1m de tecido equivaleria ao deaproximadamente 2kg de alimentos (preço vantajoso para ambos),teremos que João poderá trocar metade de sua produção de tecido(100m) por 200kg de alimentos, obtendo assim duas vezes maisalimentos do que teria disponível sem comércio. Do mesmo modo,Pedro teria capacidade de consumir aproximadamente 34m de tecidoa mais se se especializasse na produção de alimentos quando comparadocom o que teria disponível sem o comércio. Sem comércio, João teriaque transformar os 100m de tecido que produziu a mais em razão daespecialização em 100kg de alimentos, enquanto Pedro teria que usarseu excedente de 200kg de alimentos gerados pela especialização paraproduzir 66,6m de tecidos que ele precisa para sobreviver. Nos doiscasos, a especialização e o comércio são muito vantajosos pois permitemaos dois indivíduos consumir mais despendendo a mesma quantidadede recursos/ativos.

O que foi abordado até aqui sobre divisão social do trabalho,especialização e ganhos de comércio tem como pressuposto que ospreços relativos dos produtos são determinados no mercado, ou seja,

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unicamente em razão do seu grau de oferta e demanda em relação aosdos demais produtos. A seguir, discutiremos a importância do sistemade preços para o funcionamento de uma economia de mercado.

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Uma economia de mercado é baseada no livre funcionamentodo sistema de preços, o que significa que as decisões sobre o quêproduzir, como produzir, quanto produzir e como distribuir a produção(e, por conseguinte, a renda) são determinadas pela interação entrecompradores e vendedores nos mercados de produtos e nos mercadosde fatores de produção (Collins Dictionary of Economics, 1993,p. 423).

No mercado de produtos, o preço relativo de uma mercadoriaqualquer resultará dos seus níveis de oferta e de demanda em relaçãoaos dos demais bens transacionados e funcionará como um indicador,em tempo real, do equilíbrio entre as quantidades demandadas pelasociedade e ofertadas pelas firmas e/ou pelos indivíduos. Por contadisso, o preço relativo de um ativo é o parâmetro fundamental para atomada de decisões privadas a respeito de como cada um deve alocarseus recursos escassos, com vistas a obter o melhor retorno para satisfazersuas necessidades e vontades (preferências).

Imaginemos uma situação em que, por uma razão qualquerque não nos interessa discutir, a demanda por um produto qualquer,digamos, arroz, aumente substancial e repentinamente numdeterminado país. Como os produtores de arroz não tinham comoprever o súbito aumento da procura, produziram e trouxeram aomercado uma quantidade do produto inferior àquela que a sociedadeagora se dispõe a consumir. Por conta desse desequilibro entre oferta edemanda, o preço do arroz se eleva para racionar a compra de arrozescasso entre os consumidores. O aumento do preço relativo do arrozestimula os produtores a elevar a produção – adquirindo mais máquinase equipamento, aumentando a área plantada e contratando maistrabalhadores. Dependendo da situação, pode mesmo incentivarprodutores de outros setores a produzir arroz. O aumento da oferta de

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arroz, na próxima safra tenderá a ser maior do que na safra atual,promovendo o equilíbrio entre demanda e oferta num nível de preçosinferior. O oposto ocorrerá com um outro produto, digamos, café,cujo nível de demanda caia muito abaixo do nível de oferta: seu preçorelativo tenderá a cair até o ponto em que toda a produção puder servendida. A queda de preço do café tirará do mercado os produtoresmenos eficientes e desestimulará sua oferta pelos mais eficientes, osquais buscarão alternativas mais compensadoras para o investimentode seus recursos escassos. O nível de oferta de café tenderá a ser ajustadoao da demanda, levando, ao longo do tempo, a um retorno dos preçosrelativos para um nível próximo do anteriormente verificado.

Mudanças nos mercados de produto terão efeitos no mercadode fatores de produção. Para aumentar a produção de arroz, os produtoresdemandarão no mercado de fatores mais terra, trabalho e capital. Essatransferência de fatores de produção só se obterá se os produtoresestiverem dispostos a pagar aos proprietários dos fatores mais do queeles receberiam em suas aplicações alternativas. O crescimento dademanda por arroz resultará no aumento da demanda por fatores deprodução aplicados à produção de arroz e esse excesso de demanda porfatores necessários à produção de arroz resultará em maior retorno paraos fatores empregados dessa forma. O oposto ocorrerá no mercado defatores de produção de bens cuja demanda seja declinante. Retomandoo exemplo usado, a saída das firmas menos eficientes da produção decafé, provocada pelas quedas da demanda e do preço relativo desteproduto, promove o desemprego de uma parte dos fatoresanteriormente aplicados à sua produção e também a diminuição dataxa de retorno dos fatores que se mantiverem a ela aplicados. Essasforças servem para moldar a distribuição de renda entre aqueles quetrabalham na produção de arroz e café (Collins Dictionary ofEconomics, 1993, p. 424).

Mudanças autônomas ocorridas no mercado de fatores tambémpodem afetar, via sistema de preços, o mercado de produtos, tanto emtermos dos preços dos bens quanto do nível de demanda.

A determinação do valor e do preço das mercadorias. Acompreensão dos economistas sobre o funcionamento do mercado

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evoluiu muito desde o surgimento do trabalho de Adam Smith,A Riqueza das Nações, que marca o surgimento da Economia moderna,na segunda metade do século XVIII. Um dos campos em que é maisflagrante essa evolução é justamente aquele que se preocupa em entenderos fatores que determinam tanto o valor de um bem (até que ponto ovalor é determinado intrinsecamente ou externamente) quanto a decisãodo produtor a respeito da quantidade que estará disposto a ofertá-lo.

Adam Smith e David Ricardo, os principais economistas daescola liberal clássica, propuseram uma teoria de valor que ficouconhecida como teoria do valor trabalho. De acordo com ela, o valorde um bem seria determinado pela quantidade de trabalho necessáriapara produzi-lo. Evidentemente, eles percebiam que o custo do trabalhovariava de acordo com a qualificação do trabalhador – uma hora detrabalho que pode ser desempenhado por um trabalhador com baixaqualificação custa menos do que uma hora de trabalho que exige maiorqualificação técnica do trabalhador. Da mesma forma, eles notavamque a quantidade de trabalho necessária para produzir um mesmoproduto variava de acordo com a produtividade do trabalhador, sendoos mais hábeis capazes de realizar a tarefa em menos tempo. Para eles,no entanto, o custo do trabalho seria incorporado levando em contaessas especificidades.

Smith e Ricardo também admitiam que outros custos, comoo aluguel e o lucro do empresário, precisariam ser levados em conta.Entretanto, consideravam que o valor relativo dos bens seriadeterminado pelo custo do trabalho necessário à sua produção. A teoriado valor trabalho estabelecia que os preços relativos dos diversosprodutos e serviços ofertados no mercado se equilibrariam valendo-sedo custo do trabalho envolvido em sua produção. Se para produziruma cadeira seria necessário usar cinco horas de trabalho ao custo unitáriode $ 10.00 e para produzir uma saca de trigo seria necessário investirdez horas de trabalho ao custo unitário de $ 5.00, o preço de umacadeira equivaleria ao de uma saca de trigo, isto é, $ 50.00.

Em razão de dificuldades analíticas, a teoria do valor trabalhofoi substituída pela teoria do preço de produção, a qual “vincula o preçodos produtos à especificidade técnica de sua estrutura de produção”

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(Caporaso & Levine, 1991, p. 47). Assim, de acordo com essa teoria,o preço de cada produto seria determinado pelo número (e pelo custo)dos fatores de produção usados como insumos em sua produção eprecisaria ser compatível com os preços de todas as outras mercadoriaspara cuja produção servir como insumo:

A estrutura de produção relaciona, quantitativamente, osinsumos (inputs) ao produto (output). As mercadorias aparecemcomo produtos de seus próprios processos de produção e comoinsumos no processo produtivo de outras mercadorias. Para queo sistema se reproduza (isto é, para que ele seja viável economi-camente), o conjunto de produtos deve ter forma apropriada emagnitude suficiente para prover os insumos necessários à suaprópria produção.

Quando um produtor individual se especializa naprodução de um único componente do produto social, o valorde mercado de seu produto (output) determinará a sua habilidadeou inabilidade para adquirir os insumos necessários, tendo emvista seus preços de mercado. Se o produto que ele produz servede insumo à produção de outros bens, o sistema de interdepen-dência na produção precisará estabelecer limites aos preçosrelativos. Cada preço deve ser consistente em relação a duascondições: (I) precisa ser adequado para cobrir os custos deprodução; e (II) precisa ser consistente com os preços dos bensque o empregam como um insumo. ... (O ‘preço de produção’ éaquele que) permite à mercadoria funcionar tanto como insumoquanto como produto (output) (Caporaso & Levine, 1991, p. 48).

Levando-se em conta que nenhum produtor se disporia acontinuar produzindo uma mercadoria cujo preço de venda fosseinferior ao custo de produção, é possível sustentar que o ponto maisimportante dessa teoria foi perceber que o preço de qualquer bem éinfluenciado pela interdependência do sistema produtivo, ou seja, pelofato de que uma mercadoria é tanto um insumo quanto um produto.

Para a teoria do valor trabalho e do preço de produção os preçosrelativos seriam determinados pela oferta. No final do século XIX, umgrupo de economistas liberais liderados por Alfred Marshall, professorda Universidade de Cambridge, Inglaterra revolucionou o pensamento

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econômico ao introduzir a idéia de que o comportamento racional doindivíduo se caracteriza pelo cálculo marginal, isto é, as escolhas dosagentes econômicos são mais eficientes quando realizadas por meio deuma perspectiva incremental. Isso quer dizer que todo agente econômicoavalia as alternativas à sua disposição desprezando o passado e olhandoapenas para a frente, procurando comparar os custos e os benefícios deproduzir ou consumir uma unidade adicional da mercadoria emquestão. Na hora de decidir quantas unidades de uma mercadoriaqualquer (maçãs, automóveis, sacos de farinha, cremes de limpeza)deve produzir (consumir), o número de unidades já produzidas(consumidas) não é importante para o produtor (consumidor). Oimportante para sua decisão de produzir (consumir) é saber se osbenefícios gerados pela produção (consumo) de uma unidade adicionaldo bem superam os custos de produzir (consumir) essa unidadeadicional.

Segundo o pensamento neoclássico, um indivíduo racionalcontinuará produzindo (consumindo) uma mercadoria até o pontoem que os benefícios marginais sejam iguais aos custos marginais. Umoutro ponto importante desse raciocínio envolve o que os neoclássicoschamaram de princípio da utilidade marginal decrescente (diminishingmarginal utility). De acordo com este princípio, quanto maior aquantidade de um produto consumida por um indivíduo, menor seráa satisfação (utilidade) extra que ele retirará do consumo de uma unidadeadicional, até o ponto em que seu desejo será saciado. Na prática, todosnós sabemos o que isso significa. Imagine-se com um desejo muitointenso para comer chocolate. O prazer, a satisfação ou a utilidaderesultante do consumo da primeira barra de chocolate é muito maiordo que o obtido ao consumir a segunda barra, e o prazer que se obtémao consumir a segunda é maior do que o obtido após o consumo daterceira e assim por diante, até o ponto em que não podemos maisnem olhar para chocolate por um bom tempo. Nós pararemos deconsumir no momento em que uma mordida a mais não nos traráqualquer satisfação.

Quando foi aplicado ao estudo da formação dos preçosrelativos no mercado, o raciocínio marginalista promoveu a superação

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da teoria de valor e preços baseada apenas na oferta (valor do trabalhoe preço de produção) por outra que combina os impactos da oferta eda demanda. Do lado da demanda, Marshall e os neoclássicoschamaram atenção para o fato de que a quantidade demandada de umproduto tende a aumentar quando seu preço diminui e a diminuirquando seu preço aumenta. Isso a despeito de reconhecerem que não éapenas o preço que determina a demanda. Para eles, na hora de gastarseu dinheiro o consumidor compara o benefício marginal que lhe seráproporcionado pelos diferentes produtos disponíveis no mercado eescolhe aquele que apresenta o melhor benefício marginal. Do lado daoferta, a teoria neoclássica afirma que os custos de produção tendem aaumentar com o aumento da produção. Assim, o produtor racionalcondicionará o aumento da oferta ao aumento do benefício marginal,ou seja, do preço. Ele compara o custo marginal de produzir umaunidade adicional do bem com o benefício marginal e aumenta aprodução até o ponto em que o benefício marginal (aquilo que eleganha ao produzir uma unidade a mais do produto) for igual ao customarginal (o custo de produzir essa unidade adicional) (Buchholz, 2000,p. 192-3). Em outras palavras, ele não aumentará a produção se esseaumento não lhe render um maior lucro.

Assim, de acordo com a chamada teoria da produtividademarginal o preço relativo de cada produto será determinado pela variaçãoda oferta e da demanda, tendo em vista as escolhas feitas porconsumidores e produtores. Esta é a posição praticamente consensualentre os economistas da atualidade a respeito do funcionamento dosistema de preços.

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principal alternativa ao mercado continua sendo o planejamentohumano, realizado e implementado pelo Estado, o qual também éfalho, como veremos mais adiante neste livro. Exploraremos nesta seçãoas quatro falhas de mercado mais importantes: a garantia dos direitosde propriedade, a garantia de igualdades de oportunidade para todos, aexistência de externalidades e a garantia da concorrência.

Os mercados falham quando não logram promover a alocaçãoeficiente dos recursos (Mankiw, 1999, p. 10). Não há dúvida de que amaior dessas falhas é justamente a incapacidade do mercado para garantiros direitos de propriedade de cada indivíduo sobre seus ativos. Comose trata de um mecanismo descentralizado e invisível, cuja operaçãoresulta de decisões fragmentadas tomadas pelos agentes econômicos,os quais se limitam apenas a escolher o que fazer com seus respectivosativos diante dos sinais colhidos por meio do sistema de preços, omercado não determina sequer os termos em que se estabelecerão osdireitos de propriedade.

Tais direitos encontram-se inseridos em valores e instituiçõessociais e políticas que variam no tempo e no espaço. A noção depropriedade – o que pode ser apropriado e por quem – deriva dascrenças, das normas sociais e das ideologias que prevalecem num dadopaís, as quais se materializam em suas instituições políticas. São asinstituições políticas que regulam o funcionamento da economia,estabelecendo os direitos de cada indivíduo e como devem sersolucionados os conflitos econômicos – que, não raro, envolvemdefinições a respeito de quem é o proprietário de um determinadoativo – que eventualmente surjam entre eles.

Na história é possível encontrar sociedades cujas instituiçõespolíticas garantiam a determinados cidadãos o direito de se apropriaremde todos os ativos, incluindo a vida de outros indivíduos, por definição,iguais a si mesmos. São exemplos os regimes escravocratas que existiramnos Estados Unidos e no Brasil entre os séculos XVII e XIX. Noutrassociedades, os direitos de propriedade reconhecidos pelas instituiçõespolíticas eram extremamente limitados, como foi o caso da Chinacomunista de Mão-Tsé-Tung, por exemplo, ou da União Soviética de1917 até o final dos anos 80. Há ainda sociedades que têm uma longa

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tradição de universalização das garantias de direito de propriedade, comoé o caso da Inglaterra.

Sendo o mercado um mecanismo social espontâneo – isto é,que não é criado por meio de planos ou regulações, mas simplesmentederiva da propensão humana à troca – ele aparece, mesmo que de formaprecária, em qualquer sociedade. Seu funcionamento efetivo, noentanto, dependerá da forma como as interações econômicas foremreguladas pelas instituições políticas e afetadas pelas normas sociais.Em outras palavras, transações econômicas voluntárias sempre existirão,independentemente do que rezam as instituições políticas e sociais.No entanto, os objetos dessas transações, as mercadorias efetivamentetrocadas, irão variar de acordo com o que pregam as instituições efetivas.

Assim, cabe à sociedade – por meio do Estado – definir o quepode ser apropriado e por quem, assim como garantir a efetividadedesses direitos – uma vez mais por meio do Estado (legislação, polícia,justiça, sistema educacional, etc.). Como não se trata de uma organizaçãocom propósitos definidos nem estrutura burocrática, o mercado nãodispõe dos meios necessários (nem da legitimidade) para definir e garantiros direitos de propriedade.

Um segundo tipo de falha de mercado é a incapacidade de omercado promover a igualdade de oportunidades entre todos oscidadãos, ou seja, assegurar que todos terão as mesmas chances decrescimento pessoal e econômico. Diga-se, de início, que ninguémmais imagina ser possível ou desejável atingir a perfeição neste quesito,tendo em vista a percepção de que a plena e eficaz realização da igualdadede oportunidades dependeria da eliminação, pelo Estado, de toda equalquer influência da família, da religião e de elementos do quepoderíamos chamar de uma subcultura (padrões de comportamentodefinidos nos planos regional, étnico, racial, entre outros) sobre odesenvolvimento dos indivíduos. Além de ser uma tarefa hercúlea,sufocaria os princípios que fazem da ordem de mercado algo tãofundamental ao desenvolvimento econômico: a diferença entre osindivíduos.

Assim, o princípio da igualdade de oportunidades deve ser vistomuito mais como um atenuante para as diferenças entre os indivíduos

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que limitem suas capacidades para tirar proveito do ambiente econômicodo que como um ideal de homogeneização social. Em termos gerais,pode-se assumir que o conjunto de ativos que um indivíduo possuisão fortemente influenciados pelos ambientes familiar, geográfico ecultural em que ele nasce e se desenvolve como indivíduo. Por contadisso, os elementos fundamentais dos ativos que definirão asoportunidades que serão ou não abertas a um indivíduo ao longo desua vida são “herdados”: propriedades materiais, constituição física,instrução, relações pessoais, valores, crenças a respeito do mundo, paracitar apenas as mais importantes.

E é justamente para minimizar (mas não eliminar, afinal, meufilho é meu investimento!) a importância dessas variáveis que surge,entre os próprios economistas liberais clássicos, a noção de que asociedade – quer por meio do Estado, quer por meio de instituiçõesde assistência como as paróquias, as ligas femininas, as fundações deamparo – deve agir para proporcionar melhores oportunidades aosindivíduos que nascem e crescem em ambientes econômicos, sociais eculturais menos favorecidos. Apesar de não dispor de instrumentospara lidar com essa questão, o mercado depende de seu efetivoequacionamento para ser reconhecido como mecanismo legítimo paradeterminar a alocação de recursos escassos numa sociedade complexa.

A terceira falha de mercado resulta daquilo que os economistaschamam de “externalidades”. As externalidades são os efeitos de umatransação sobre terceiros, os quais podem ser tanto negativos quantopositivos. Externalidades negativas são os impactos que pioram asituação de alguém que não participou como vendedor ou compradorde uma transação econômica específica. A poluição é o melhor exemplode uma externalidade negativa. A poluição afeta indivíduos que nãosão produtores, vendedores ou compradores da mercadoria cujaprodução gera a poluição, independentemente de afetar ou não osprodutores e os compradores da mercadoria. Pensemos numa fábricade detergentes que polui um rio com os detritos industriais. A poluiçãodo rio promoverá uma gradativa redução das capacidades dospescadores, por exemplo, que dependem da pesca para sobreviverusando os ativos que dispõem – barcos, redes, força física,

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conhecimentos e destreza. A única solução para esse problema é aeliminação do efeito negativo da produção de detergentes sobre ospescadores, o que depende da disposição da empresa para arcar com oscustos necessários à eliminação das externalidades negativas que gera.Como obrigar as empresas nessa mesma situação a “internalizar” taiscustos – isto é, a incluí-los como custos de produção, que obviamentecompromete sua capacidade de ofertar o bem ao preço com poluição?

A solução definitiva de problemas dessa natureza não tem comoser provida pelo mercado que, como visto, não dispõe dos instrumentosde fiscalização, controle e punição necessários para impedir a ocorrênciade externalidades negativas. A sociedade, uma vez mais, é quedeterminará se e como tais efeitos serão coibidos. Pode fazer isso pormeio do Estado (legislação, criação de agências efetivas para fiscalizaçãoe controle, justiça e polícia) ou lançando mão de iniciativas próprias,como a concessão de “certificados” que distinguem as empresas quegeram externalidades negativas das que não o fazem, tornando viável ocompartilhamento dos custos com os consumidores por meio dacobrança de um preço mais alto por seus produtos.

Já as externalidades positivas representam um problemadistinto. Quando a realização de uma determinada transação econômicagera efeitos positivos para terceiros, os agentes que arcam com seuscustos tendem a evitá-la. Quando não for possível ou rentável evitá-la,sua tendência será prover “subotimamente” os efeitos positivos.Pensemos, por exemplo, nos investimentos em treinamento de pessoalnecessários à produção de bens e serviços sofisticados. O bom sensodiz que quanto melhor o trabalhador, mais eficiente a produção e maiselevada a qualidade da mercadoria. O empresário terá vantagensevidentes se se dispuser a gastar parte de seus recursos para capacitar otrabalhador para desempenhar melhor seu trabalho. No entanto, comoa capacitação é incorporada aos ativos do trabalhador há sempre o riscode que, concluído o treinamento, ele opte por negociar um contratomais vantajoso com uma empresa concorrente, que investe menos emtreinamento e, por conta disso, tem mais capacidade de pagar melhoressalários para trabalhadores treinados. Diante desse risco o empresáriovê-se tentado a não ofertar treinamento ou a fazê-lo aquém do que

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seria desejável para a sociedade. A questão, aqui, é como criar incentivosà oferta social de externalidades positivas na quantidade necessária paraelevar ao máximo o potencial da sociedade.

A solução para esse problema requer intervenção externa aomercado pela mesma razão que explica a impossibilidade de as forçasde mercado corrigirem o problema: faltam organização, estrutura einstrumentos de ação ao mercado. A sociedade é que deve proverestímulos à produção de externalidades positivas. O governo está numaposição especialmente privilegiada para reduzir (via subsíduos) oueliminar (via oferta direta) os custos de provisão dessas atividades pelosagentes econômicos, mas organizações não-governamentais tambémpodem ser formadas para viabilizar a oferta.

Por fim, a quarta falha de mercado que consideramosimportante discutir é a que garante a própria condição de concorrência.Como vimos, neste capítulo, a concorrência é o mecanismo social quetorna o comportamento maximizador de utilidade compatível com ointeresse público. Noutras palavras, a concorrência é essencial para quecada indivíduo ofereça à sociedade as mercadorias necessárias e desejadaspelo preço mais baixo possível. Sem ela, o princípio da maximizaçãose transforma em poder de mercado, ou seja, em capacidade para cobrardo consumidor mais do que este teria que pagar caso houvesseconcorrentes disputando o mercado.

Apesar de ser parte central da definição de uma economia demercado, a concorrência não é criada ou assegurada pelas próprias forçasde mercado. Na verdade, as forças de mercado operam de tal modosobre os agentes econômicos, que cada um deles sabe que teria muitoa ganhar, especialmente no curto prazo, se fosse o único produtor deuma mercadoria altamente demandada pela sociedade. Tomando-sepor base a percepção de que a concorrência é contrária a seus interessesde curto prazo, ele age com o propósito de eliminá-la, quer investindopara promover inovações tecnológicas que lhe permitam dominarcompetitivamente o mercado, quer por meio de comportamentopredatório como o dumping, quer ainda por meio da pressão sobre ogoverno a fim de que este crie barreiras à entrada de novos produtoresno mercado.

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Uma vez mais, a sociedade é que precisa se organizar paradefender a concorrência. Neste caso, é essencialmente sobre o Estado(legislação, órgãos de fiscalização e de defesa da concorrência, justiça)que recai a tarefa de promover a concorrência, impedir a formação decartéis e regular os monopólios naturais para que seja realizado ointeresse público.

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Neste capítulo, partimos da definição de mercado como umconjunto de relações voluntárias e mutuamente benéficas envolvendocompra e venda de direitos de propriedade entre agentes econômicos eapresentamos os principais elementos que fazem do mercado umpoderoso mecanismo social capaz de promover uma alocaçãorazoavelmente eficiente dos recursos escassos da sociedade. Por fim,chamamos a atenção para as situações em que o mercado falha,requerendo ação direta da sociedade com vistas a manter emfuncionamento o sistema de trocas.

Desse modo a primeira conclusão que pode ser tirada destecapítulo é que não existe mercado sem Estado. O Estado é essencialpara que sejam garantidos os direitos de propriedade, internalizadosaos custos e às receitas das empresas os impactos positivos e negativossobre terceiros, criada e mantida a concorrência e, finalmente, para quesejam criadas formas de reduzir as desigualdades na posse dos ativosque inviabilizem ou tornem difícil a qualquer indivíduo explorar seupotencial de satisfação.

A segunda conclusão é que o mercado é um mecanismoessencialmente instável. O comportamento dos agentes econômicos éguiado por expectativas a respeito de um futuro incerto, num ambientemarcado pelo risco.

No entanto, e esta é a terceira conclusão, por ser um mecanismoque ninguém controla, é o modo mais flexível de organizar as interaçõeseconômicas que se processam na sociedade. Cada indivíduo,obedecendo regras conhecidas, pode usar todos os seus ativos para elevarao máximo sua utilidade, da forma que escolher, desde que assim

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procedendo não reduza as liberdades dos demais para fazerem o mesmo.Tal flexibilidade o torna adequado para “estruturar” as relaçõeseconômicas em sociedades em constante processo de transformação,ao mesmo tempo em que serve de estímulo às ações que promovem aalocação eficiente dos ativos de cada indivíduo e da coletividade.

No próximo capítulo, extrapolaremos a análise feita aqui paraincorporar a dimensão internacional do mercado.

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No capítulo precedente discutimos os aspectos mais importantesdo sistema de mercado: direitos de propriedade, caráter voluntário dastrocas, concorrência, incertezas, risco, divisão social do trabalho,especialização, ganhos de comércio, sistema de preços e falhas demercado. Propositadamente, deixamos de enfatizar a dimensãointernacional que permeia cada uma dessas questões, como se veráadiante.

O objetivo deste capítulo é, portanto, apresentar algumas dasprincipais questões da economia política internacional: a teoria decomércio internacional e os processos de abertura econômica, oequilíbrio do Balanço de Pagamentos, os regimes e as políticas cambiais,o risco cambial, o papel da economia internacional nas políticas dedesenvolvimento econômico.

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Por que os países transacionam entre si? Porque podemaumentar sua capacidade de consumo e bem-estar ao se especializaremna produção de mercadorias nos setores em que dispõem de vantagenscomparativas. Essa resposta nos leva a fazer pelo menos mais trêsperguntas, as quais procuraremos responder ao longo desta seção: oque ocorre se um país não dispuser de vantagens comparativas? Comodeterminar quais são os setores em que um país tem vantagenscomparativas? O que acontece se um país dispuser de vantagenscomparativas apenas na produção de mercadorias que têm baixos preçosno mercado internacional?

Os países transacionam pelas mesmas razões que levam osindivíduos a se especializarem em algumas atividades – aquelas em queimaginam obter a maior remuneração possível – e a comprar tudo queprecisam dos outros indivíduos. Quando se especializam, os indivíduos

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e os países procuram alocar seus recursos escassos de modo eficientecom vistas a aumentar o seu padrão de consumo e bem-estar. No planointernacional, a interdependência promove a eficiência alocativa,sinônimo de produtividade, por duas vias: concorrência e economiasde escala. A esse processo de especialização da produção de mercadoriasdá-se o nome de divisão internacional do trabalho.

A liberalização comercial – isto é, a redução dos obstáculosartificiais que inibem importações (tarifas e barreiras não-tarifárias) –tende a ampliar o número de produtores de um mesmo produto e aprovocar o aumento da concorrência em praticamente todos os setoreseconômicos. A concorrência, por sua vez, eleva os riscos da atividadeeconômica e, por conta disso, estimula cada indivíduo e cada empresaa buscar o modo mais eficiente de alocar seus recursos escassos. Assim,a concorrência internacional é um estímulo natural à concentração dosfatores de produção – em outras palavras, dos indivíduos, das empresase de seus ativos materiais e imateriais – nos setores em que o paísdispõe de vantagens comparativas. Isso porque a relação de qualidade epreço dos bens produzidos no país (que determina se a oferta é ou nãoeficiente) tenderá a ser competitivo em relação ao dos concorrentesestrangeiros nos setores em que o país dispõe de vantagens comparativase não-competitivo nos setores em que o país não dispõe de vantagenscomparativas. Por isso, se obrigados a concorrer com os estrangeiros,os fatores de produção – terra, trabalho, capital, criatividade, energia,etc. – tenderão a se concentrar nos setores mais competitivos da economia.

A ampliação do comércio também funciona como estímulonatural ao aumento das exportações. Assumindo que a ampliação docomércio também propicia aos outros países a especialização nos setoresem que são mais eficientes e que as dotações de fatores de produção (oconjunto de ativos ou fatores de produção disponíveis) são diferentesem cada país, o que os leva a se especializarem em setores diferentes, écorreto supor que cada país encontrará um conjunto de mercadoriasem que é capaz de se especializar e, com isso, exportar para o mercadointernacional. (Isso não quer absolutamente dizer que ele não encontraráconcorrentes.)

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O segundo impacto potencial da ampliação do comércio sobrea eficiência da economia (que também estimula exportações) se dá pormeio da oportunidade que se abre às empresas do país de tiraremproveito de economias de escala proporcionadas pela ampliação domercado consumidor. Economias de escala são reduções de longo prazonos custos (médios ou por unidade) que ocorrem quando aumenta aescala de produção de uma firma.1 Se antes da abertura ao comércio omercado consumidor potencial era o mercado doméstico, após aabertura, e a especialização que dela decorre, as empresas visam omercado mundial. O crescimento do mercado consumidor potencialabre a oportunidade de que as empresas do país explorem economiasde escala, tornando-se mais eficientes.

Mas o que ocorre se um país não dispuser de vantagenscomparativas? Discutimos uma questão semelhante quandoapresentamos, no capítulo 3, o conceito de vantagem comparativa noplano de cada indivíduo. Mas, tendo em conta a dificuldade que oconceito apresenta na discussão da economia internacional, importa-nos reforçar sua compreensão. Uma vez mais utilizaremos um exemplopara ilustrar o fato de que todo país, assim como todo indivíduo,dispõe de vantagens comparativas mesmo quando apresentadesvantagens absolutas – ou seja, que mesmo se for menos eficiente eprodutivo que todos os demais ainda assim fará sentido para eleespecializar-se na produção de determinadas mercadorias e adquirir viacomércio todas as demais.2

Imaginemos dois países, “A” e “B”. Digamos que elesconsomem unicamente alimentos e tecidos e que se empregam todosos seus ativos na produção de tecidos e alimentos eles apresentariam osíndices de produtividade dispostos na tabela 4.1.

1 Por conseguinte, quanto mais unidades do produto uma firma produz, menor o customédio de produção ou do custo de cada unidade produzida. Isso ocorre porque grandeparte dos custos de produção são fixos – máquinas, equipamentos, aluguel, salário – e nãose alteram substancialmente com o aumento gradativo da escala de produção.2 Elaborado tendo por base o verbete “Gains from trade” do Collins Dictionary of Economics,p. 218-220.

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Tabela 4.1. Produção física de tecidos e alimentos por dois países, usandotodos os seus ativos ou fatores de produção, com e sem especialização.

Na ausência de comércio eles terão que produzir tudo o quedesejam consumir. Mas isso não os impede de fazer cálculos. Eles podemfacilmente calcular sua produtividade a fim de avaliar se teriam mais aganhar se especializando na produção de uma das mercadorias ecomprando a outra de um produtor mais eficiente. O cálculo érazoavelmente simples. Tendo por base a produtividade que obtém naprodução de cada uma das mercadorias, o país “A” sabe que usandotodos os seus ativos na produção de tecidos seria capaz de produzir a200m e o país “B” sabe que se fizer o mesmo produzirá 300m. Noentanto, e por alguma razão que não nos interessa discutir, se optassempela especialização na produção de alimentos, o país “A” produziria200kg enquanto o país “B” produziria 600kg. Portanto, o país “B”seria três vezes mais eficiente (ou produtivo) que o país “A” na produçãode alimentos e uma vez e meia mais produtivo que “A” na produçãode tecidos. Isso configura uma vantagem absoluta para o país “B” euma desvantagem absoluta para o país “A”.

Na ausência de comércio, o custo de oportunidade de 1m detecido será igual a 1kg de alimentos, para o país “A”, e será igual a 2kgde alimentos para o país “B”. Isso significa que o país “B” precisa deixarde produzir 2kg de alimentos para produzir 1m de tecido, enquanto opaís “A” deve desistir de produzir apenas 1kg de alimentos para cadametro de tecidos. Na ausência de comércio, ambos terão que produzirtecidos e alimentos, na proporção em que desejam consumir. Assim,como demonstrado na Tabela 4.1, o país “A” produzirá 100m de tecidoe 100kg de alimentos com seu total de ativos enquanto o país “B”produzirá 300kg de alimentos e 150m de tecidos. Se, como em nossoexemplo, um dos países (B) é mais eficiente na produção de alimentos

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e de tecidos em relação ao outro (A), configurando uma vantagemabsoluta, é possível esperar que ambos se beneficiem do comércio?

O pensamento econômico mostra que é a existência devantagens comparativas que importa para a existência de vantagensmútuas com o comércio, e não a vantagem absoluta. E é justamentepor conta da diferença de eficiência (produtividade) entre os dois paísesque ambos podem tirar vantagens da especialização e do comércio.Senão, vejamos:

O país “B” tem uma clara vantagem comparativa na produçãode alimentos, já que ele é duas vezes mais eficiente que o país “A” naprodução desta mercadoria (sendo “apenas” 1,5 vezes mais eficiente doque “A” na produção de tecidos). Nós também podemos dizer que opaís “B” é relativamente mais eficiente na produção de alimentos postoque para ele o custo de oportunidade de produzir um quilo a mais dealimentos é equivalente a 0,5m de tecido, para o país “A” esse custo éde 1m de tecido. Essa diferença de produtividade torna mais vantajosopara o país “A” se especializar na produção de tecidos (sua vantagemcomparativa), pois pode produzir essa mercadoria com menorineficiência relativa. Em outras palavras, para o país “A” o custo deoportunidade de produzir o equivalente a 1m adicional de tecido éigual a apenas 1kg de alimentos, enquanto para o país “B” é de 2kg.Assim, em termos dos custos reais dos fatores de produção, o país “A”pode produzir 1m de tecido por um custo mais baixo que o país “B”enquanto este pode produzir 1kg de alimentos por um custo maisbaixo que o país “A”.

Na prática, temos que o país “A” é capaz de produzir 1m detecido por um custo igual ao de 1kg de alimentos e o país “B” estariadisposto a pagar-lhe mais do que isso já que precisa deixar de produzir2kg de alimentos para produzir 1m de tecido. Por outro lado, o país“B” consegue produzir 1kg de alimentos por um custo que equivaleao de 0,5m de tecido e o país “A” estaria disposto a pagar-lhe mais doque isso já que para ele 1kg de alimentos não sai por menos de 1m detecido. Haverá ganhos com a especialização e com o comércio entre ospaíses “A” e “B” porque; (I) o país “A” lucrará vendendo ao país “B”1m de tecido por um preço inferior ao preço de 2kg de alimentos, e

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(II) o país “B” lucrará ao vender ao país “A” 1kg de alimentos por umpreço inferior ao de 1m de tecido.

Tabela 4.2. Ganhos de comércio: possibilidades de produção e consumocom e sem comércio

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Se todo país dispõe de vantagens comparativas, como determinarquais são os setores em que ele é mais produtivo/eficiente? De acordocom dois economistas suecos, Hekscher e Ohlin, um país disporá devantagem comparativa nos setores que utilizarem mais intensamenteos fatores de produção presentes no país em maior abundância. Seuargumento é que a oferta abundante de um fator (terra, trabalho oucapital) barateia seu preço relativo, tornando mais eficientes/competitivosos setores econômicos que o utilizam mais intensivamente.

Assim, países com abundância de terra em relação a trabalho ecapital terão vantagem comparativa nos setores que usam intensivamentea terra, como a agricultura, pois a terra tenderá a ser mais barata do quena maioria dos outros países, reduzindo o custo e aumentando aeficiência/competitividade internacional dos produtos agrícolas. Já ospaíses caracterizados por uma abundância de trabalho em relação aterra e capital terão vantagem comparativa nos setores trabalhointensivos, como calçados ou têxtil. O custo reduzido da mão-de-obra aumenta a competitividade de todas as mercadorias para cujaprodução o salário representar um custo proporcionalmente alto.O mesmo ocorre nos países em que o capital é o fator abundante.Neles, todos os setores capital intensivos – bancos, softwares, indústrias– serão os mais eficiente/competitivos internacionalmente visto que sebeneficiarão do custo relativo mais baixo do capital.

O que acontece se um país dispuser de vantagens comparativasapenas na produção de mercadorias que têm baixos preços e/ou comtendência de queda no mercado internacional? Todo país, por maisineficiente que seja na utilização dos fatores de produção de que dispõe,é mais produtivo ou menos ineficiente na produção de certasmercadorias, quando comparado a todas as demais em que poderiaempregar seus ativos. O mesmo ocorre com os indivíduos altamenteimprodutivos.

Pensemos no exemplo de uma pessoa com poucos ativos devalor, que é menos eficiente do que as demais em todas as atividadesque é capaz de desempenhar. O que ela deve fazer, sentar-se e esperar amorte? Não! Ela deve averiguar quanto poderia receber em troca doemprego de seus ativos – sua capacidade de trabalho, por exemplo –

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em diferentes atividades, a fim de escolher aquela que lhe oferecerá amaior remuneração. Veja que por conta de sua ineficiência absolutaessa pessoa provavelmente receberá uma remuneração inferior emrelação às outras pessoas que realizam a mesma atividade. Entretanto,faz sentido para ela se especializar na produção das mercadorias em queé menos ineficiente pois, de outra forma, seu padrão de bem-estartenderia a ser ainda mais baixo.

O mesmo raciocínio vale para os países. Um país absolutamenteineficiente na produção de qualquer produto – o que na prática significadizer que produz mercadorias com relação qualidade/preço não-competitiva internacionalmente – obterá por tais produtos umaremuneração muito baixa, inferior que a de seus concorrentes diretos.Como sua capacidade de importar bens e serviços para consumodependerá diretamente de sua capacidade para exportar – pois exportaré a única maneira sustentável de obter as divisas necessárias para pagarpelos bens importados –, este país será levado a oferecer os seus bens,que são aqueles produzidos pelos setores em que ele é menos ineficiente,por um preço muito mais barato do que os seus concorrentes diretos.Como fará isso? Remunerando os fatores de produção – terra, trabalhoe capital – num nível inferior aos dos seus concorrentes. Isso éexatamente o que acontece em países pobres e em desenvolvimento:os bens primários, manufaturados e semimanufaturados são produzidoscom menor eficiência do que nos países industrializados e são vendidosa preços menores tendo em vista a baixa remuneração dos seustrabalhadores, por exemplo.3

Isso significa que esse país estará condenado à pobreza? Nãonecessariamente. A teoria de comércio é apenas uma das partes quecompõem o processo de desenvolvimento econômico. É a parte queensina aos países e aos indivíduos como fazerem uso mais eficiente deseus ativos, como acumular mais riqueza. O desenvolvimento

3 Krugman (1997b) discute essa mesma questão de um ponto de vista dos paísesindustrializados e argumenta que é vantajoso para estes países comprarem produtosmanufaturados e semimanufaturados provenientes dos países em desenvolvimento e pobres,mesmo que isso signifique maior pressão concorrencial sobre os setores econômicos menoscompetitivos dos países ricos.

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econômico é um processo de longo prazo que requer o investimentodos recursos escassos da sociedade de uma forma tal a elevar aprodutividade geral da economia, ou seja, dependendo da forma comoempregar esses recursos acumulados pelo uso intensivo do comércio,um país pode desenvolver ativos social e economicamente maisvalorizados e que lhe garantam remunerações mais elevadas. Este mesmoraciocínio deve ser empregado para analisar as perspectivas econômicasdos países ricos, dado que a manutenção da riqueza, assim como a dapobreza, depende da forma como são gastos os recursos escassos dasociedade.

Se todos os países tendem a se beneficiar da intensificação docomércio, como explicar as resistências à liberalização – ou quem ganha equem perde com a liberalização do comércio internacional? A intensificaçãodo comércio tende a gerar dois tipos de efeitos distributivos diferentes.De um lado, é possível distinguir entre os países que ganham e os queperdem (no curto prazo) com a liberalização do comércio. De outro,pode-se notar que, dentro de cada país, há setores beneficiados e setoresprejudicados pela maior facilidade de transacionar com o exterior.Apenas levando em conta esses efeitos distributivos é possível entenderas resistências de alguns países assim com a oposição de determinadosgrupos político-econômicos dentro deles à redução das barreiras aocomércio.

Entre os países, tendem a ser beneficiados por uma reduçãogeneralizada de barreiras ao comércio aqueles nos quais a maior partedos fatores de produção estão aplicados nos setores em que o paísdispõe de vantagens comparativas, ou seja, nos setores em que o país émais produtivo/competitivo. Os prejudicados são aqueles países nosquais a maior parte dos fatores de produção estão vinculados aos setoresnos quais o país não dispõe de vantagens comparativas, isto é, nosquais o país é ineficiente, pouco competitivo internacionalmente. Esteprejuízo tende a ser apenas momentâneo, uma vez que o país comoum todo ganhará, no longo prazo, com o aumento da eficiência daeconomia – assim, o produto tenderá a crescer mais no longo prazo seo comércio for liberalizado. No entanto, as perdas imediatas queresultam da abertura estarão concentradas nos setores que mais se

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beneficiam com o protecionismo, o que representa uma restriçãopolítica forte para dar início à abertura. Isso nos leva ao problemaposto pelo segundo efeito distributivo.

Dentro dos países, são beneficiários da liberalização todos osproprietários dos fatores de produção aplicados aos setores em que opaís tem vantagem comparativa. Os prejudicados são os proprietáriosdos fatores investidos nos setores em que o país não tem vantagemcomparativa.

Do ponto de vista da análise de economia política, as questõescentrais são: quais são os grupos potencialmente prejudicados ebeneficiados pelo processo de liberalização comercial? O que farão noâmbito da economia e da política para avançar seus interesses? Quaisdeles dispõem de maiores estímulos para se mobilizar em prol de seusinteresses de curto e de longo prazo? Quais deles dispõem de maiorcapacidade de influência e de pressão política? Que outros fatores podeminfluenciar o processo de decisão política relativo à liberalizaçãocomercial?

Quais são os grupos potencialmente prejudicados e beneficiadospela liberalização comercial? Há três modelos gerais, ou teorias, docomércio internacional.4 Todos partem da noção de que os recursosnecessários à produção de qualquer bem ou serviço são escassos.A alocação de recursos escassos para produzir um produto qualquerimplica, por conseguinte, deixar de produzir outros produtos de quese necessita (custo de oportunidade). As teorias do comércio internacionaloferecem explicações para as diferenças de produtividade entre os países.Essas diferenças tornariam vantajosa a especialização de cada país nossetores em que dispusesse de vantagem comparativa. De acordo comesses modelos, as diferenças de produtividade entre os países seriamtransferidas para os preços dos produtos: se o país “X” é maiscompetitivo do que o país “Y” na produção de um produto qualquer,o preço desse produto tenderá a ser menor no primeiro. Com isso, osestímulos ao comércio surgiriam naturalmente das diferenças deprodutividade.

4 A descrição dos modelos de comércio internacional que se seguirá é um resumo doscapítulos 2 a 4 de Krugman & Obstfeld, 1997.

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De acordo com a mais antiga dessas teorias – o modeloricardiano (David Ricardo, 1772-1823) – as diferenças entre aprodutividade do trabalhador nos diversos países é o que explica adiferença nos custos de produção de um mesmo produto. Esse é omodelo mais simples porque assume a existência de um único fator deprodução – o trabalho. Para Ricardo, na ausência de comérciointernacional, os preços relativos das mercadorias tenderiam a ser iguaisao montante de trabalho necessário à sua produção. Por conta disso,seria natural esperar que o comércio internacional levasse os países a seespecializarem nos setores em que seus trabalhadores fossem maisprodutivos. Isso é o mesmo que dizer que os países se especializariamnos setores em que os trabalhadores são mais bem remunerados,justamente porque, sendo o trabalho um fator móvel de produção(facilmente deslocável entre os diferentes setores), os trabalhadoresprocurariam se empregar na produção dos bens em que o país é maisprodutivo (maior salário). Por conta disso, (apenas) no modeloricardiano, uma maior abertura do comércio internacional nãopromoveria efeitos distributivos entre os grupos do país.

O segundo modelo explicativo para as diferenças deprodutividade entre os países e, conseqüentemente, para a existênciade vantagem no comércio internacional, é chamado “modelo daespecificidade dos fatores” (factor-specificity). Esse é um modelo maiscomplexo do que o ricardiano por pelo menos duas razões. Primeiro,ele considera a existência de mais dois fatores de produção além dotrabalho – terra e capital. Segundo, esses dois novos fatores sãoespecíficos, ou seja, podem ser usados na produção de alguns produtos,mas não de todos. Têm, em essência, baixa mobilidade: capital éaplicado à indústria; terra, à agricultura. A tendência à especializaçãocom resultado do comércio internacional também se verifica nessemodelo, mas é explicada de forma diferente em relação ao anterior: opaís será mais produtivo nos setores em que dispuser de mais recursosespecíficos (capital ou terra). Assim, um país que disponha de umarazão capital/terra muito elevada será mais produtivo na produção demanufaturas do que na produção de commodities agrícolas, e vice-versa.No entanto, por conta da especificidade desses fatores de produção, a

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especialização da economia do país nos setores mais produtivosrepresentará perdas para os proprietários dos fatores de produçãoespecíficos aos setores em que o país não dispõe de vantagemcomparativa. Desse modo os ganhos do comércio, que permanecemexistindo, apresentam efeitos distributivos entre os diferentes segmentosda economia, especialmente entre os produtores de bens paraexportação (beneficiados pelo comércio) e aqueles que produzem bensque competem com importações (prejudicados).

O terceiro modelo de explicação do comércio internacional éconhecido como “teoria da proporção dos fatores” (factor-proportions)e foi desenvolvido por dois economistas suecos, Eli Heckscher e BertilOhlin. De acordo com esse modelo, as vantagens comparativas de umdado país são determinadas pela relação entre a proporção que osdiferentes fatores de produção estão disponíveis nos diferentes países eà proporção que eles são usados para produzir um determinado produto.Ao contrário do modelo da especificidade dos fatores, Heckscher-Ohlinnão consideravam que terra e capital fossem fatores específicos a umdeterminado setor – agricultura e indústria, respectivamente. Para eles,os dois fatores seriam utilizados em todos os setores, em uma dimensãoparticular. O custo de produção de um produto seria, assim, dependentedo preço do fator que ele usa mais intensivamente. E o preço do fatorderivaria à medida que ele está disponível no país – ou seja, se temoferta abundante ou escassa. Assim, um país tenderá a se especializarna produção de bens que usem mais intensivamente os fatores deprodução abundantes. Os proprietários dos fatores abundantes seriam,assim, os beneficiários da abertura comercial, em contraste com osproprietários dos recursos escassos, que seriam prejudicados.

Os dois últimos modelos apresentados chamaram a atençãopara os impactos diferenciados da liberalização do comércio sobre osgrupos econômicos domésticos. De maneira geral, os economistastenderam a interpretar o processo de formulação da política comercial(policy) dos países com base nesses efeitos distributivos, assumindoque os grupos prejudicados teriam incentivos suficientes para tentarvetar a adoção de uma política mais liberal (Krugman & Obstefeld,

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1997). Assim, ao considerarem que o comércio internacional éessencialmente benéfico para os países, os economistas comumenteatribuem à política (politics) a responsabilidade pela adoção de políticascomerciais erradas, isto é, protecionistas. Análises empreendidas porcientistas políticos quase sempre adotaram essa mesma linha deexplicação, baseada na “economia política” da liberalização (Rogowski,1989, Frieden, 1991). Nos dois tipos de análise, a expectativa subjacenteé de que os produtores de bens exportáveis sejam favoráveis ao comérciomais livre, enquanto os produtores de produtos que concorrem comimportações sejam protecionistas.

O que os grupos beneficiados e prejudicados pela abertura daeconomia farão no âmbito da economia e da política para avançar seusinteresses? Quais deles dispõem de maiores estímulos para se mobilizarem prol de seus interesses de curto e de longo prazo? Quais deles dispõemde maior capacidade de influência e de pressão política? O principalefeito político das propostas de reforma estrutural, como a liberalizaçãodo comércio, é que provocam a resistência dos atores privilegiadospelo status quo. Pelo fato de estes grupos serem beneficiados pelaestrutura econômica fechada, a ameaça de sua situação de “ganhadores”estimula a formação de coalizões de resistência às mudanças mesmoque a reforma seja potencialmente benéfica para a maioria da populaçãodo país. Como os grupos sociais e econômicos privilegiados pelo statusquo tendem a dispor dos principais recursos de poder da sociedade,têm forte capacidade de resistência. Em suma, as propostas de reformaestrutural apresentam custos concentrados justamente sobre os atoresque dispõem dos maiores recursos políticos para resistir às mudanças.

Por outro lado, no momento em que as reformas são propostasos benefícios resultantes são, na maior parte das vezes, apenas expectativasque podem ou não se realizar no futuro. Ademais, as mudanças tendema produzir benefícios dispersos entre indivíduos e grupos sociais poisvisam aumentar a satisfação geral da sociedade tomando-se por base areestruturação do ordenamento econômico. Essas duas característicastendem a promover baixo potencial de apoio e mobilização social,dificultando a tarefa governamental, posto que sequer proporcionam

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ao governo uma alternativa de coalizão social capaz de se contrapor,efetivamente, às resistências dos grupos poderosos afetados. Como benspúblicos, as reformas estruturais trazem a seus empreendedoresproblemas clássicos de ação coletiva, cuja solução cabe essencialmenteao governo, por meio da definição de estratégias políticas.

Que outros fatores podem influenciar o processo de decisão políticarelativo à liberalização comercial? Como explicar que os governosformulem e implementem reformas estruturais que se caracterizempor custos concentrados em atores com elevado potencial de resistênciapolítica e benefícios dispersos para o conjunto da sociedade? Umaresposta satisfatória a esta questão não pode deixar de considerar quepropostas deste tipo requerem, por parte do governo, uma alta dosede autonomia para formular a política econômica, caso contrário –isto é, caso as decisões representassem plenamente os interesses dosgrupos políticos mais poderosos – não seria plausível imaginar que osgrupos privilegiados permitissem as mudanças.

Além de autonomia, os formuladores da política econômicaprecisam conhecer os impactos esperados da liberalização econômica esentir-se estimulados a persegui-los por alguma razão – política,ideológica ou de outra natureza.

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O Balanço de Pagamentos (BdP) representa, por meio de umaidentidade, as transações comerciais e financeiras de um país com oresto do mundo num período particular de tempo. O BdP é divididoem duas grandes áreas, sendo uma relativa a fluxos comerciais (chamadade transações correntes) e outra relativa a fluxos de capital (chamada deconta de capital). A balança de transações correntes é constituída pelabalança comercial, pela balança de serviços e pelas transferênciasunilaterais. Já a conta de capital registra os investimentos diretos, osempréstimos e financiamentos, as amortizações e os capitais de curtoprazo (vide quadro 4.1).

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Quadro 4.1. Estrutura do balanço de pagamentos

Todas as transações que compõem o BdP se fazem por meiodo mercado de compra e venda de moedas estrangeiras, o qual é reguladopelo banco central. A tabela 4.3, indica as razões que explicam a demandae a oferta de moeda estrangeira no Banco Central do Brasil. Na colunada esquerda, temos as operações que representam demanda por moedaestrangeira proveniente de agentes econômicos estabelecidos no país:importação de bens e serviços, aquisição de bens e serviços no exterior(inclusive turismo), remessa de lucro por empresas estrangeiras,pagamento de juros devidos em país estrangeiro e fuga de capital(finalização de investimentos no país). Na coluna da direita estãolistadas as operações que representam oferta de moeda estrangeira porresidentes em país estrangeiro: compra de bens e serviços no Brasil(nossas exportações), realização de investimento no país (aquisição deempresas, terra ou ações), remessa de lucro de empresas brasileiras comatuação no exterior e concessão de empréstimos a empresas brasileirasou ao governo.

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Tabela 4.3. Razões para a oferta e a demanda de moeda estrangeira

O quadro 4.1 ilustra a estrutura do Balanço de Pagamento dospaíses. É importante notar que mesmo que o Resultado Líquido indiquea existência de déficit ou superávit, o resultado final do BdP será sempreigual a zero. No caso de déficit do BdP o governo terá que usar partedas reservas internacionais do país para honrar seus compromissosexternos e, no caso de superávits, as reservas serão aumentadas.

Há uma identidade básica no BdP entre as transações correntese a conta de capitais, sendo uma a imagem invertida da outra. Como abalança de transações correntes reflete o saldo entre as importações e asexportações de bens e serviços, a conta de capital funciona como acontrapartida financeira, visto que registra as entradas e saídas de divisasestrangeiras. Um déficit líquido do BdP significa, portanto, que osbrasileiros (na verdade, os residentes no Brasil) estão adquirindo maisbens no exterior do que os estrangeiros aqui. Um superávit do BdPindica o oposto: que os estrangeiros (residentes em países estrangeiros)estão adquirindo mais ativos no Brasil do que os brasileiros no exterior.

Sempre que a conta de capital for superavitária, o país disporáde maior quantidade de moeda estrangeira para consumir bens noexterior, o que é positivo à proporção que este consumo amplia o

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padrão, o bem-estar e, especialmente, a produtividade da população.Em contraste, uma conta de capital deficitária significará que o paísterá que exportar mais do que importa, o que na prática significa quesua capacidade para satisfazer as necessidades de consumo da populaçãoestá reduzida. Essa questão é particularmente importante para o avançodos países pobres e para os países em desenvolvimento, os quaisdispõem de baixa taxa de poupança e, por conseguinte, investimento.A pergunta que esses países precisam se fazer constantemente é o que épreciso para manter uma conta de capital superavitária?

Como foi abordado anteriormente a conta de capital representao saldo da entrada e da saída de capitais via investimentos diretos,investimentos financeiros e empréstimos. Destes, os InvestimentosExternos Diretos (IED) são os mais benéficos a qualquer país, emespecial os países pobres e em desenvolvimento, porque representam adisposição de estrangeiros para transferir parte de seus ativos a fim dese estabelecerem no país para produzir riquezas, empregando pessoas edesenvolvendo setores da economia em que o país apresenta vantagenscomparativas. Os ativos transferidos (poupança externa, expertise,contatos internacionais, marcas, entre outros) se somam aos ativosdisponíveis no país e promovem o aumento do estoque de capital queserá utilizado produtivamente. A pergunta essencial é portanto, comoatrair esse capital produtivo e de longo prazo?

É fundamental ter claro que a principal razão para empresasestrangeiras transferirem seus ativos para o país é a busca de lucro emnível superior ao que seria possível obter em seu país de origem. Assim,o que as firmas demandam são condições econômicas capazes de tornarrentáveis seus investimentos. Garantia de validade de contratos e dedireitos de propriedade aos estrangeiros, estabilidade política etransparência e sustentabilidade da política econômica são os principaisrequisitos para o estabelecimento e a manutenção de fluxos elevadosde IED. Os investidores não demandam que o sistema político sejademocrático ou autoritário, mas sim que as regras que estruturam oprocesso de decisão política, assim como as que regem o funcionamentoda Justiça, sejam conhecidas, eficazes e estáveis. Do contrário, ainsegurança gerada pela possibilidade de reversão de direitos de

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propriedade e de quebra de contratos inibirá, quando não impossibilitar,a disposição de um estrangeiro para transferir seu dinheiro e demaisativos para um país pobre ou em desenvolvimento.

A sustentabilidade da política econômica é fundamental tendoem vista o impacto de tais políticas sobre o nível de retorno e para acapacidade de planejamento das firmas. Uma política econômica ésustentável se ela mantém o país numa trajetória de equilíbrio de curto,médio e longo prazo, ou seja, se cria os estímulos corretos aos agenteseconômicos internos e externos para investir e gerar riqueza em grau etiming compatíveis (isto é, iguais ou mais vantajosos em relação) aoque é necessário para honrar todos os compromissos do país com oexterior. Os economistas utilizam o conceito de restrições orçamentáriasintertemporais (intertemporal budget constraints) para designar estatrajetória de equilíbrio ao longo do tempo (Burda & Wyplosz, 1997).

O conjunto de instrumentos fiscais, monetários e cambiaisque compõem a política econômica precisa estar estruturado em tornode uma mesma estratégia de equilíbrio intertemporal para que todas asobrigações financeiras com o exterior sejam honradas nos seus devidosprazos. Para o investidor estrangeiro, a estratégia de equilíbriointertemporal é importante para sinalizar que o país não terá dificuldadespara assegurar seu direito de repatriar parcial ou integralmente osmontantes investidos, no momento em que julgar mais conveniente.Essas dificuldades poderiam resultar da ocorrência de desequilíbriosconjunturais ou, mais grave, estruturais no BdP. Por isso, a desconfiançana sustentabilidade da política econômica é suficiente para adiar ouinibir investimentos (não apenas de estrangeiros) assim como paraestimular fuga de capital já investido, por meio da troca de ativosdenominados na moeda nacional por ativos mais líquidos,denominados em moeda estrangeira. A sustentabilidade da políticaeconômica depende, assim, da compatibilidade entre compromissosinternacionais de compra, venda e endividamento assumidos pelo país.

O mecanismo de ajuste automático do balanço de pagamentos.Ainda no século XVIII, David Hume, um filósofo político e econômicoescocês, desvendou o funcionamento de um mecanismo de ajusteautomático das contas externas dos países o qual serve ainda hoje como

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ferramenta de análise do BdP.5 Hume argumentava, contrariamenteao pensamento dominante de extração mercantilista, que era infundadoo medo de que todo o ouro e toda a prata do país (as reservasinternacionais da época) deixassem o país em razão do liberalismocomercial. Desde que o país preservasse seu povo e sua indústria, nãohaveria razão para temer a perda do dinheiro.6 Isso porque, para ele,assim como para Adam Smith e os liberais de maneira geral, a riquezae o bem-estar do povo de um país são proporcionais à sua capacidadede trabalho e não à quantidade de ouro ou prata nele disponível.

O equilíbrio do BdP resultaria automaticamente dos efeitosmonetários e cambiais de um superávit ou um déficit nas transaçõescomerciais do país, desde que o governo não se impusesse a tarefa dedeterminar a taxa de câmbio. No primeiro caso, um superávit do BdPteria como conseqüência o aumento das reservas de ouro ou prata (nosdias de hoje, de moedas estrangeiras). O aumento das reservas leva,necessariamente, ao aumento da base monetária – da quantidade dedinheiro disponível na economia para consumo. O aumento dacapacidade de consumo da população tem como conseqüência oaumento dos preços internos (inflação), o qual reduz a competitividadeinternacional dos produtos nacionais vis-à-vis seus concorrentesestrangeiros. Maior inflação doméstica em relação ao resto do mundopromove o que os economistas chamam de apreciação cambial.7 Porisso, o superávit do BdP seria transformado, via sistema de preços e

5 Esse mecanismo foi exposto por Hume em seu ensaio “Of the balance of trade”, publicadoem 1752.6 A palavra indústria é usada aqui no sentido de “capacidade de criar, de produzir com arte,habilidade, sensibilidade; artifício, criatividade, engenho” [Dicionário Houaiss da línguaportuguesa].7 Apreciação cambial é a elevação do valor de uma moeda em relação às demais sob umregime de câmbio flutuante, no qual o governo respeita a cotação entre a moeda local e asmoedas estrangeiras estabelecida no mercado de divisas. O impacto da apreciação é estimularimportações e inibir exportações, provocando uma tendência à redução de superávits doBdP. Em um regime de câmbio fixo ou administrado, no qual o governo atua estabelecendouma determinada cotação (ou paridade) para a moeda estrangeira em termos da moedanacional, este mesmo efeito seria obtido se o governo promovesse uma valorização cambial,isto é, o aumento da cotação da moeda nacional em relação a uma moeda estrangeira. Naprática, seria necessário despender uma menor quantidade de moeda local para compraruma mesma quantidade de moeda estrangeira.

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apreciação do câmbio, em estímulos ao aumento das compras e àdiminuição das vendas externas do país. Em contraste, um déficit doBdP provocaria a perda de reservas internacionais (ou dos estoques deouro e prata), o qual teria impacto direto sobre a quantidade de dinheiroem poder do público. O ajuste das contas externas resultaria da deflação:a queda dos preços domésticos levaria ao aumento da competitividadeinternacional dos bens e serviços ofertados pelo país e, por conseguinte,ao aumento das vendas externas e à redução das compras de produtosestrangeiros. Menor inflação doméstica do que no resto do mundoresulta em depreciação cambial.8

Em ambos os casos, o equilíbrio de longo prazo do BdPresultaria automaticamente do impacto doméstico dos movimentosde bens, serviços e capital entre as fronteiras nacionais, desde que não severificassem intervenções governamentais para corrigir os desequilíbriosde curto prazo e que seja elástica a demanda por importações e porexportações.9

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Apesar da descoberta de Hume, muitos governos não abremmão de utilizar instrumentos de política econômica para realizarobjetivos políticos. Entre estes objetivos, percebem-se muitas tentativas

8 Depreciação cambial é uma queda no valor da moeda nacional em relação a outrasmoedas, sob um regime de câmbio flutuante como o que supunha Hume. O impacto dadepreciação é estimular exportações e inibir importações, promovendo a queda dos déficitsdo BdP. Num regime de câmbio fixo ou administrado este mesmo efeito seria obtido se ogoverno promovesse uma desvalorização cambial, ou seja, uma redução administrada dacotação da moeda local em relação às moedas estrangeiras. Na prática, uma desvalorizaçãotornará necessário gastar uma maior quantidade de moeda local para comprar uma mesmaquantidade de moeda estrangeira.9 Paul Krugman, um dos maiores especialistas em comércio internacional da atualidade,propôs, num de seus livros mais recentes, que: “Os últimos quinze anos têm sido os anosdourados da inovação na economia internacional. Entretanto, tenho de concluir, com certodesgosto, que esse material inovador não é prioridade para os atuais alunos de graduação.Na última década do século XX, o essencial para se ensinar aos estudantes ainda são osinsights de Hume e Ricardo. Ou seja, temos que lhes ensinar que os déficits comerciais seautocorrigem e que os benefícios do comércio não dependem de um país deter uma vantagemabsoluta sobre seus rivais” (Krugman, 1997c, grifo no original).

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de suavizar a tendência de oscilação entre superávit e déficit do BdP –natural em regimes de flutuação cambial. Outro objetivo muito comumé a tentativa de promover superávits nas contas externas com vistas aacelerar o crescimento – a despeito do argumento humeano, quepermanece válido, de que o superávit se transformará em pressãoinflacionária e apreciação cambial, sob câmbio flutuante, ou numatendência à apreciação, num regime de câmbio fixo ou administrado.A realização desses objetivos envolve, quase sempre, a adoção de regimesde câmbio fixo ou administrado. Esses regimes se distinguem do regimede câmbio flutuante porque, ao contrário deste último, neles governose dispõe a intervir no mercado de compra e venda de moeda estrangeira.Tal intervenção se caracteriza pelo estabelecimento (I) de uma paridadepara a troca da moeda local pela estrangeira e (II) de uma política deajuste dessa paridade (via valorização ou desvalorização) tendo em vistaas diferenças que se verificarem na evolução dos preços relativos dealguns produtos no mercado interno vis-à-vis o mercado internacional.

É fundamental notar que, sob um regime de câmbio fixo ouadministrado a inflação doméstica, quer resulte de superávits doBdP ou de fatores estritamente domésticos, não será transmitidaautomaticamente à taxa de câmbio, desvalorizando-a, como descreviaHume. Esta transmissão – fundamental para o retorno ou acontinuidade do equilíbrio do BdP – só ocorrerá se assim desejaremos formuladores da política econômica, responsáveis pela definição daparidade entre a moeda nacional e as moedas estrangeiras. Por contadessa prerrogativa governamental é que, nesses regimes fixos ouadministrados, convém chamar a atenção para a tendência dedescolamento entre a chamada taxa de câmbio nominal (a paridadecontrolada pelos gestores da política econômica) e a taxa de câmbioreal, que sinaliza para a paridade que seria correta para colocar aeconomia numa trajetória de equilíbrio de longo prazo – isto é, a taxaque consideraria as restrições orçamentárias intertemporais do país.

Os déficits e superávits do BdP certamente afetam a taxa decâmbio real, mas sua transmissão para a taxa de câmbio nominal – queé a cotação pela qual os exportadores, importadores e investidoresrealizarão suas transações com o banco central – dependerá de uma

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decisão política. Quanto maior a distorção entre a taxa de câmbionominal e a taxa de câmbio real, mais distante estará o país de suatrajetória de equilíbrio do BdP e, por conta disso, menor a garantia desustentabilidade da política econômica no longo prazo.

Assim, quanto maior a distorção entre as duas taxas provocadapela política econômica, maiores os riscos de que a natureza destapolítica terá que ser alterada no futuro. Esse problema é especialmenteimportante no caso de países com dívidas externas elevadas, os quaisprecisam manter elevados montantes de reservas internacionais paraatrair potenciais investidores. Com relação ao que foi discutido naseção anterior, quanto maior a distorção entre a taxa de câmbio nominale a taxa de câmbio real, menor a propensão ao investimento (estrangeiroou nacional) tendo em vista o aumento da incerteza resultante dapercepção de insustentabilidade da política econômica, quase sempreexpresso no que se chama risco cambial.

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O risco de mudança do regime cambial (isto é, da política dedeterminação da paridade da moeda nacional) ou da paridade entre amoeda nacional e as moedas estrangeiras (num regime de câmbio fixoou administrado) afeta negativamente a propensão dos capitalistasnacionais ou estrangeiros a realizarem investimentos de longo prazo(produtivos) no país.10 O problema é que a desvalorização cambialpromove também a desvalorização de todos os ativos denominadosna moeda do país em relação a seu valor em moeda estrangeira. Paraqualquer investidor, a desvalorização dos ativos significará umempobrecimento real em moeda estrangeira: após a desvalorização elereceberá uma quantidade menor de moeda estrangeira em troca de

10 Quando a percepção de insustentabilidade se transforma numa crença na mudançaiminente do regime, até mesmo os investimentos de curtíssimo prazo são reduzidos, o quereduz drasticamente a capacidade do governo para obter empréstimos e financiamentos doexterior ou rolar sua dívida externa. Quanto mais forte essa percepção, maior o “prêmio derisco” exigido pelos investidores para emprestar dinheiro ao governo.

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seus ativos cotados em moeda local (máquinas, equipamentos,mercadorias, terrenos, ações, títulos públicos, etc.).

Para reduzir o risco cambial, o governo de um país que apresentasérios desequilíbrios em seus BdP precisará manejar outros instrumentosde política econômica que não a taxa de câmbio nominal – especialmentea política monetária (taxa de juros) e a política fiscal (relação entre asreceitas e as despesas do Estado) – para reduzir os preços domésticos e,com isso, promover uma depreciação do câmbio real. A redução dospreços domésticos provocada pela redução da demanda agregada (viauma combinação de juros altos, redução de gastos e aumento deimpostos) terá o mesmo efeito sobre a competitividade da economiaque uma desvalorização cambial, mesmo se for mantida igual paridadeentre a moeda local e as moedas estrangeiras. O objetivo desse ajusteserá aumentar exportações e diminuir importações, para garantir osinvestidores que a paridade estabelecida é sustentável no longo prazo.

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Nos capítulos anteriores, deixamos evidente que o Estado –qualquer Estado – desempenha papel central no processo dedesenvolvimento econômico. O Estado é aqui entendido como umconjunto de indivíduos que ocupam posições políticas hierarquicamenteestruturadas e que se distingue dos demais grupos da sociedade porquemonopoliza o uso legítimo da violência. Em outras palavras, os“decisores” públicos dispõem de um recurso único de poder. É o Estadoquem institui e garante a vigência das instituições econômicas e políticas(das regras do jogo) e, por meio delas, estabelece incentivos positivos enegativos que estimulam determinados padrões de comportamentoindividuais e coletivos. Obviamente, esses padrões de comportamentoserão tão mais recorrentes, quanto mais efetiva a capacidade e adisposição do Estado para punir aqueles que violam as normas.1

À medida que dá sustentação a um conjunto de regraseconômicas, sociais e políticas, o Estado é fundamental para odesenvolvimento econômico (ou a estagnação) do país. Como vimosno capítulo 3, uma ordem de mercado depende da existência do Estadopara impor a todos regras efetivas que garantam as condições mínimasindispensáveis à realização das trocas econômicas – por exemplo, aexistência da propriedade privada e de um sistema judiciário que dirimaas controvérsias contratuais entre os agentes econômicos.

Apesar desta complementaridade entre Estado e economia demercado, e em contraste com ela, é necessário compreender que apolítica é também um mecanismo alternativo ao mercado e que comele disputa a primazia de determinar os valores que orientarão a formapela qual os recursos escassos da sociedade serão alocados. Isso porque

1 De acordo com Huntington, um cientista político da Universidade de Harvard, EstadosUnidos, as diferenças entre os Estados que têm e os que não têm capacidade para impor aordem pública – isto é, regular efetivamente o conflito político doméstico – são maisrelevantes do que as diferenças na forma como os Estados efetivos regulam tais conflitos, porexemplo, democrática ou autoritariamente (cf. Huntington, 1968).

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o processo por meio do qual as regras do jogo (da interação social) sãoestabelecidas é eminentemente político. Assim, enquanto as regras demercado sustentam que o mérito, a criatividade e a sorte devemdeterminar os ganhadores e os perdedores no processo de convivênciasocial, grupos políticos disputarão a preponderância de valoresalternativos, muitos dos quais serão vistos como antieconômicos, emmaior ou menor medida.

Portanto, a política é um mecanismo alternativo ao mercadopara alocação da riqueza, uma vez que por meio dela (e do Estado)podem ser estabelecidos objetivos ou fins não-econômicos para ainteração social. Estes objetivos políticos – o estabelecimento de cotaspara minorias em universidades ou empresas estatais ou a proteçãosocial aos mais pobres, aos mais velhos e aos desempregados, porexemplo – favorecem economicamente determinados indivíduos egrupos por meio de interações não-econômicas. E esta prerrogativainstitucional do Estado atrai para si a atenção e as ações de praticamentetodos os grupos de interesse existentes na sociedade e mesmo fora dela.Uma boa parte dos indivíduos e grupos politicamente mobilizadosem qualquer país espera do Estado muito mais do que simplesmenteorganizar a atividade econômica dentro das fronteiras nacionais.

Em razão do próprio fato de o Estado monopolizar o usolegítimo da força num dado território, as sociedades ocidentais passarama exigir que o exercício do poder político – as ações do Estado – derivassede consultas aos representantes eleitos pela própria população que seráafetada pelas decisões públicas. Dessa maneira, o Estado modernogradualmente perdeu suas raízes absolutistas para se tornar maisrepresentativo da vontade popular. Essa transformação trouxe para os“decisores” públicos a necessidade de considerar, como obrigações,tarefas até então concebidas como eminentemente privadas, como é ocaso da provisão de garantias de bem-estar (welfare) para todos oscidadãos. Essa mudança, e muitas outras, derivaram da naturezacrescentemente representativa do exercício do poder público, que levouo Estado a assumir como suas duas das mais importantes tarefas atéentão estranhas a ele, como a busca do pleno emprego e a promoçãoativa do crescimento econômico no longo prazo.

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Perceber essas transformações na natureza e nas funções a cargodo Estado é fundamental para o analista de economia política. Noentanto, este reconhecimento não deve ofuscar a compreensão deprocessos que subvertem as lógicas da representação e da promoçãoativa do desenvolvimento econômico, ainda tão marcantes em nossotempo. Neste sentido, é fundamental atentar para o fato de que oEstado é constituído por indivíduos, os quais ocupam posições depoder – ou seja, posições que lhes asseguram capacidade para tomar ouinfluenciar decisões públicas, que se diferenciam das decisões privadasporque atingem e submetem compulsoriamente um númeropotencialmente maior de pessoas.

Em tais posições, as ações dos indivíduos são certamentecondicionadas pela vontade popular que são chamados ou não arepresentar, mas também sofrem o impacto tanto de percepções einteresses particulares como das instituições (formais ou não) querestringem sua liberdade de escolha. A vontade popular sobre qualquerassunto, quando existe de maneira clara, é quase sempre mais geral doque as questões cotidianas sobre as quais o “decisor” público precisa seposicionar. Ademais, o fato de ser capaz de afetar uma determinadadecisão pública freqüentemente coloca o agente político diante danecessidade (ou da simples possibilidade) de considerar com mais rigoros efeitos mais prováveis daquilo que defendem seus constituintes.Não raro, os representantes advogam posições ou estratégias distintasdas preferidas pelo eleitorado, mesmo quando se propõem a realizar ointeresse coletivo. Por outro lado, há questões nas quais os interessesdos constituintes e os dos representantes políticos divergem, obrigandoestes últimos a escolherem entre o que beneficia preferindo os cidadãosque representam, e o que eles próprios desejam. Há ainda que seconsiderar que indivíduos e grupos de interesse tentarão pressionardiretamente os “decisores” públicos em prol de seus interesses específicos,o que pode levar o Estado a se afastar da vontade popular. Por fim,para analisar como os “decisores” públicos se comportam e, porconseguinte, o que faz o Estado, é preciso avaliar o peso das instituiçõespolíticas, legais, sociais, religiosas, culturais, ou de qualquer outra espécie,que restringem suas ações.

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Historicamente, o Estado tem servido tanto como arena naqual os conflitos políticos da sociedade se expressam e são equacionados,quanto como um instrumento de poder usado pelos grupos sociais,políticos e econômicos para avançar seus interesses particulares.Exatamente porque a ação do Estado se reveste de um caráter imperativo(viabilizado pelo monopólio do uso legítimo da violência), os gruposda sociedade interessados numa determinada questão política procuraminfluenciar os “decisores” públicos, apresentando-lhes seus argumentose confrontando conceitos contrários. O Estado funciona, assim, comouma arena na qual se fazem representar os vários interessespotencialmente afetados por uma decisão qualquer. Em contrapartida,tentativas de cooptação de “decisores” públicos para que se tornemdefensores de causas particulares ou, em casos mais extremos, deinfluenciar a própria nomeação desses “decisores”, a fim de terem seusinteresses garantidos são estratégias freqüentemente usadas para fazerdo Estado (ou seja, dos indivíduos que ocupam as posições de comandopolítico) um instrumento de poder.

Este tipo de premissa é muito distinto daquilo que pensam oseconomistas e os cientistas políticos mais tradicionais. Para eles, noprocesso de desenvolvimento econômico ou a natureza política doEstado é irrelevante (pois sua ação é tida como residual) ou o Estado évisto como guardião benevolente dos interesses gerais da sociedade.2

Em ambos os casos, esses analistas não conseguem perceber que: (1) oEstado é fundamental para promover o desenvolvimento, mesmo queeste seja primordialmente resultante de um processo privado de geraçãode riqueza; (2) as instituições políticas e as próprias ações do Estadoresultarão de um processo de negociação política (da forma como cadasociedade equaciona o conflito político), no qual se farão representarinteresses particulares de indivíduos e grupos, e não apenas da vontadepopular ou dos desígnios de um planejador esclarecido e onipotente.

Entre os objetivos deste capítulo estão: apresentar os requisitospara a ação eficaz do Estado em prol do desenvolvimento econômico;

2 Ver Krueger (1990) para uma crítica dos argumentos que partem da premissa de que oEstado seria o guardião benevolente dos interesses gerais da sociedade.

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apresentar os três modelos de desenvolvimento econômico maisseguidos por países capitalistas ao longo dos séculos XIX e XX – liberal,industrialização por substituição de importações-ISI e industrializaçãoorientada para exportações export-oriented industrialization (EOI);discutir os requisitos à ação do Estado em cada um desses modelos;analisar as razões que explicam o sucesso do modelo ELG quandocomparado ao modelo ISI, como estratégia de aceleração do desenvol-vimento em países atrasados; por fim, discutir a compatibilidade entrecada um deles e as idéias ao processo de desenvolvimento econômico.

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Como já foi abordado, todo e qualquer grupo sócioeconômicotem interesse em influenciar as decisões públicas. A capacidade de açãoe influência dos grupos foi discutida no capítulo 2, quando salientamosque os grupos mais influentes tendem a ser os menores e mais coesos eos grupos cuja direção é capaz de lançar mão de incentivos seletivospara estimular cada um de seus membros a cooperar para a realizaçãodo interesse compartilhado. Entre os grupos existentes em qualquersociedade complexa, um dos que se encontram em melhores condiçõespara afetar as decisões públicas é constituído pelos próprios “decisores”.Estes, por sua vez, também têm interesses individuais e coletivos, assimcomo idéias a respeito de como a sociedade deve estar organizada.Quando o conjunto dos “decisores” públicos de um país é fortementecoeso e seus interesses e visões de mundo (ideologia) são diferentesdaqueles defendidos pelo conjunto da sociedade pode-se dizer que haverásério risco de que as ações do Estado privilegiem interesses particularesem detrimento do interesse geral.

Um ponto essencial a ser compreendido nesta relação entreEstado e sociedade, entre governantes e governados, diz respeito àexistência ou não de um “interesse geral” claramente identificado –algo que os teóricos políticos modernos chamavam de bem comum ouvontade geral. Tendo em vista o que foi mencionado nos capítulosanteriores sobre as diferenças entre os indivíduos e grupos que compõemuma sociedade complexa, como esperar que haja acordo ou consensoem torno de qualquer aspecto específico da ação do Estado?

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O analista de economia política é obrigado a reconhecer que aidentificação de um bem comum, ou de um interesse geral, é necessaria-mente limitada pela complexidade da vida social contemporânea. Porconta da miríade de interesses e de ideologias existentes no plano real,a compatibilidade entre o que deseja cada indivíduo e cada grupo dasociedade é cada vez mais difícil em termos substantivos. Restam,portanto, duas opções para solucionar a questão: a elaboração de umaagenda substantiva minimalista e de alguns princípios gerais para orientara ação de cada um e do próprio Estado na consecução dessa agenda.

Os estudiosos da Economia e da Ciência Política têm enfatizadotais dificuldades e, baseados nelas, podemos esboçar uma proposta.Com relação a agenda substantiva minimalista, é possível dizer que, nolongo prazo, todos os membros de uma sociedade têm mais a ganhar como crescimento do que com a estagnação econômica. Apesar de muito geral,tal afirmação é tudo o que se pode dizer se pretendemos parar onde háconsenso. Se, por exemplo, quisermos esboçar uma proposta sobrecomo crescer mais, estaremos entrando em seara marcada pelo conflitopolítico e ideológico e não pelo acordo.

Por outro lado, podemos enfatizar dois princípios gerais quedevem orientar a ação de cada indivíduo e do próprio Estado na buscado crescimento de longo prazo: a igualdade e a liberdade. Estas são,basicamente, princípios norteadores das ações individuais e coletivas (enão indicações precisas), contudo se atribuirmos definição substantivapara qualquer um deles o outro tenderá a ser ao menos parcialmenteviolado. Se quisermos realizar a igualdade no plano real, por exemplo,estabelecendo um mesmo nível de remuneração a pessoas quedesempenham tarefas equivalentes, teremos que abrir mão do princípioda liberdade, o qual estabelece que cada um pode negociar remuneraçãocompatível com o seu grau de eficiência (ou produtividade). Assim,para realizar a igualdade substantiva desconsideramos o princípio daliberdade.

Para compatibilizar os dois princípios, precisamos compreendê-los como referências para a construção de regras que estimulemcomportamentos individuais e coletivos capazes de maximizar osrecursos escassos da sociedade. Neste sentido, igualdade e liberdade

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seriam não apenas compatíveis entre si, mas também com o objetivosubstantivo do crescimento econômico, baseado na eficiência econômica.

Eficiência econômica, liberdade e igualdade constituem,portanto, os balizadores da ação do Estado – qualquer Estado – emsua ação em prol do desenvolvimento econômico de longo prazo. Masquais seriam as instituições políticas capazes de promover uma dinâmicade exercício do poder político condizente com esses três elementos?

A resposta a essa pergunta elaborada pela economia políticacontemporânea está baseada no estabelecimento de uma relação sinérgica(cooperativa) entre Estado e sociedade. Do ponto de vista institucional,esta sinergia depende, por um lado, da existência de algum mecanismopara assegurar a representação da vontade popular no processo decisóriopúblico.3 Por outro lado, há também que se fortalecer o corpopermanente de “decisores” públicos, a burocracia, disponibilizando-lhe capacidade gerencial e garantias políticas para evitar ou minimizar aprevalência, no processo decisório, de interesses e visões particularistas,provenientes dos mecanismos de representação, em detrimento dostrês elementos apontados acima. Assim, para fundar uma relaçãosinérgica entre Estado e sociedade em prol do desenvolvimento delongo prazo estruturado sobre a tríade igualdade-liberdade-eficiênciaeconômica, racionalizar o aparato administrativo do Estado é tãoimportante quanto dotá-lo de instrumentos representativos para ouvira sociedade.

3 Convencionamos chamar de democrático um sistema político no qual o processo decisóriopúblico se funda na vontade expressa pela maioria da população por meio de seusrepresentantes políticos eleitos (Dahl, 1970).

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A representatividade do sistema político é importante comouma salvaguarda para a sociedade em relação ao potencial tirânico doEstado – que monopoliza o uso legítimo da violência. Se os cidadãos– que serão obrigados a respeitar as regulações definidas no âmbito dosistema político – são ouvidos ao longo dos processos de formulação,decisão e implementação das ações do Estado, a expectativa é que amaioria seja capaz de impor seus interesses. Mas a representação é ummecanismo para a constituição do governo e do corpo de representantespolíticos (Poder Legislativo) e não um instrumento para a participaçãoativa e quotidiana do cidadão nas decisões públicas – o que seria inviável.Como ressaltou Schumpeter, um economista e cientista políticoaustríaco, radicado nos Estados Unidos, a democracia é um métodopara a eleição e a avaliação periódica dos governantes (Schumpeter,1943) que se baseia na liberdade individual e nos direitos de associaçãoe de contestação pública das ações do governo (Dahl, 1970).

No que diz respeito especificamente ao desenvolvimentoeconômico, a representatividade é um importante elemento institucionalna medida em que faz ver aos “decisores” públicos que o processo decriação de riqueza se dá no âmbito da sociedade e não do Estado. Arepresentação evidencia aos governantes que o desenvolvimento dependesignificativamente da concessão de garantias institucionais à acumulaçãoprivada da riqueza assim como da imposição de limites à liberdade deação dos governantes. A representação força os governantes a prestaremcontas à sociedade e estabelece uma concorrência por melhor servir aosinteresses gerais da sociedade, identificados acima pela tríade liberdade-igualdade-eficiência econômica.

Olson (2000), afirma que nos regimes representativos e/oudemocráticos haveria uma forte tendência ao estabelecimento de umacumplicidade entre o Estado e a sociedade, a qual seria muito favorávelao desenvolvimento econômico. Segundo ele, no longo prazo asdemocracias apresentariam melhor desempenho que as ditaduras devidoà formação de um “interesse abrangente” (encompassing interest) dogovernante em relação à performance econômica do conjunto dosgovernados, dado pelo fato de os governantes serem eleitos pela maioriada população. De acordo com Olson, esta sinergia entre Estado e

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sociedade “forçaria” os governantes a taxarem menos a riqueza gerada eacumulada pelos indivíduos e a lhes oferecer um número maior e maisadequado de bens públicos, a fim de estimular o desempenho deatividades produtivas.

Racionalizar a estrutura burocrática requer, primeiramente,estabelecer procedimentos “meritocráticos” ara recrutar, selecionar,remunerar, promover e demitir funcionários, assim como para classificare alocar o trabalho entre eles. O mérito e a competência administrativados funcionários serão essenciais para indicar-lhes os próprios limitesde sua atuação assim como da atuação do Estado. Servem, portanto,como contrapeso às pressões particularistas (rent-seeking) provenientesdos grupos sociais, políticos e econômicos, além de consideraçõesegoístas ou auto-interessadas dos próprios “decisores”. Esse contrapesoserá tanto mais efetivo, quanto mais densas forem as redes (networks)de relações informais, baseadas em critérios de competência formal,que vincularem os “decisores” públicos (Sikkink, 1991, Evans, 1995).

Segundo, é essencial que os burocratas sejam constantementetreinados e capacitados para bem exercerem suas funções. Com amodernização das relações sociais e econômicas, os parâmetros para aatuação do Estado tornam-se mais complexos a cada dia, o que exigedos “decisores” públicos permanente atualização intelectual – técnica eprofissional. Terceiro, é importante que existam condições queassegurem a permanência dos altos funcionários na estrutura burocrática,independentemente de eventuais mudanças na orientação política doEstado, determinadas pala alternância do poder entre os partidos e/ougrupos políticos Sikkink, 1991). Esta permanência é essencial para darcontinuidade aos processos de formulação e implementação depolíticas, inclusive no que diz respeito às ideologias que condicionamas decisões públicas.

Além dessas três condições, é importante atentar para aspectosorganizacionais do Estado, como a quantidade de funcionários, onúmero de funções administrativas e o grau de especialização da infra-estrutura institucional (Sikkink, 1991) quando se pretende avaliar apossibilidade de maximização da tríade liberdade-igualdade-eficiênciaeconômica.

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Passaremos, agora, à discussão do papel atribuído ao Estadonos três modelos de desenvolvimento econômico compatíveis com adinâmica do capitalismo.

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O modelo liberal de desenvolvimento econômico envolvemuitos fatores, entre os quais destacam-se a ênfase numa atuação doEstado voltada para garantir a liberdade e a igualdade de oportunidadesa todos os cidadãos, independentemente de fatores específicos comodiferenças de raça, credo, origem social e econômica e nacionalidade.O liberalismo se construiu como uma doutrina em oposição aomercantilismo, uma proposta de organização política e econômica dasrelações Estado-sociedade-mercado que estava assentada na idéia deque o desenvolvimento econômico dependia da acumulação de metaispreciosos pelos países.

Em contraste com o mercantilismo, os liberais afirmavam queo nível de desenvolvimento econômico de um país estaria diretamenterelacionado à capacidade produtiva de sua população. Defendiam,portanto, que o papel primordial do Estado seria promover o aumentoda capacidade dos indivíduos para gerar riqueza, isto é, para produzir eofertar à sociedade (do país ou do exterior) os bens mais demandados.Para viabilizar o aumento desta capacidade de produzir bens altamentedemandados, os autores liberais propunham que o Estado concentrasseseus recursos escassos na oferta de bens e serviços para os quais dispusessede vantagens comparativas em relação à sociedade, ou seja, aqueles queapenas o Estado estaria em condições de ofertar.

De uma maneira geral, este seria o caso da provisão de benspúblicos, tendo em vista a possibilidade real de comportamentooportunista (vide discussão realizada no capítulo 2) por parte doscidadãos e agentes econômicos. Entre todos os bens públicos possíveisde serem ofertados pelo Estado, os liberais enfatizavam a necessidadede privilegiar aqueles que apresentavam externalidades positivas – ouseja, aqueles que, uma vez supridos, aumentassem a capacidade de

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progresso econômico da sociedade em seu conjunto, como educação,segurança, justiça e infra-estrutura física e institucional. A provisão dessesbens públicos seria, assim, compatível com a realização dos ideais deliberdade individual e igualdade de oportunidades.

A limitação da ação governamental a poucas áreas derivava depelo menos dois fatores: primeiro, da percepção liberal de que osrecursos usados pelo Estado eram escassos, à proporção em queresultavam da taxação da riqueza da sociedade; segundo, daquilo quehoje em dia se convencionou chamar de “falhas de Estado”. O risco defalhas de estado significa que as interferências públicas seriam realizadasem condições de incerteza – pois os “decisores” públicos não disporiamde todas as informações necessárias nem dos melhores estímulos parapromover uma ação eficiente – e que, por conta disso, as chances deerro seriam sempre muito elevadas.

Diante de escassez de recursos materiais e dos riscos de falha naação do Estado, nada mais racional do que limitar a intervenção públicaà provisão de bens e serviços que, embora essenciais ao progressoeconômico, apresentassem algum tipo de obstáculo à provisãoespontânea pelos agentes privados.

Não é difícil sustentar que os autores liberais – Adam Smith,David Hume, David Ricardo, entre tantos outros – defendiam osprincípios da liberdade econômica e da igualdade de oportunidadesem todas as esferas da vida econômica. No que concerne às relaçõeseconômicas internacionais, os liberais defenderam os princípios dolaissez faire, laissez passez – (Estado) deixe que se produza e que secomercialize (livremente) – mesmo quando isso representava adestruição de empregos e empresas no próprio país.

Qual é o cerne do argumento liberal em prol do livre comércio eda especialização? Em primeiro lugar, há que se atentar para o fato, jámencionado, de que os liberais tinham claras as noções de escassez e defalhas de Estado. Se todos os ativos são escassos, inclusive o númerode horas de trabalho disponíveis num certo país (por exemplo, ao longode um ano), o caminho para o desenvolvimento passa pelo aumentoda produtividade, ou seja, pelo uso eficiente dos fatores de produçãodisponíveis, com impacto positivo direto sobre os níveis de acumulação

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de capital e de bem-estar. O comércio livre e a especialização seriam,portanto, mecanismos essenciais para forçar cada indivíduo, fosse eletrabalhador ou empresário, a buscar incessantemente a alocação eficientede seus ativos. A possibilidade de ser eliminado do mercado pelaconcorrência – doméstica ou estrangeira – é um estímulo quase perfeitoao trabalho árduo e criativo. Por outro lado, a liberdade de ofertar àsociedade aquilo que se produz e dela comprar o que produzem osdemais indivíduos (a interdependência) torna possível e mesmovantajosa a especialização de cada um no desempenho das tarefas quelhes rendem maior remuneração.4

Para os liberais, o comércio interno e internacional seriambenéficos para todos os indivíduos, empresas e países tendo em vistaque a concorrência forçaria uma tendência de repasse aos preços(diminuindo-os) dos ganhos de produtividade decorrentes da especiali-zação e do aumento da escala de produção (o mercado internacional).Só com o aumento da produtividade e da concorrência seria possívelreduzir os preços, elevar o poder de compra dos salários dostrabalhadores e aumentar os lucros dos empresários, simultaneamente.Portanto, as intervenções do Estado na economia deveriam levar emconta esses benefícios do comércio e, neste particular, promover aredução dos obstáculos às importações e às exportações.

Entretanto, mesmo os liberais viam a necessidade de avaliarcom cuidado as condições em que a liberalização comercial se processariano mundo real. Adam Smith, de maneira pragmática, chamava aatenção para quatro situações em que poderia fazer sentido a qualquerpaís avaliar eventuais vantagens temporárias do protecionismocomercial. Em primeiro lugar, quando a segurança do país estivesseameaçada pela liberalização dos fluxos comerciais seria não apenas lógico,mas desejável, que o Estado impusesse restrições às importações. Masé preciso entender que a definição de segurança com a qual trabalhavaSmith era muito restrita: ele estava pensando em ameaças diretas deinvasão estrangeira, tirando proveito da vulnerabilidade criada pela livre

4 Para uma discussão mais aprofundada do argumento das vantagens comparativas, videcapítulo 4.

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circulação de mercadorias – por exemplo, facilidade de entrada de naviosestrangeiros nos portos do país.

Em segundo lugar, Smith concebia a restrição das liberdadesde importação como instrumento temporário de barganha a fim deforçar a redução de barreiras impostas por terceiros às exportações dopaís. Ele deixava bem evidente que só faria sentido optar por estaestratégia se houvesse alguma possibilidade concreta de que o outropaís viesse a reduzir suas restrições às mercadorias estrangeiras. Casocontrário, a retaliação traria maior prejuízo ao próprio país, à medidaque os produtos importados ficariam mais caros ou seriam substituídospor similares menos vantajosos. Terceiro, para Smith fazia sentidodiscutir a validade do protecionismo quando fosse o caso de dartratamento aos produtores domésticos equivalente ao concedido aosconcorrentes estrangeiros por seus respectivos governos. Finalmente,para minimizar os custos imediatos da liberalização comercial sobreempresas e trabalhadores, Smith afirmava que a redução de barreiras àsimportações poderia ser feita de maneira gradual (Smith, 1776, livroIV, capítulo 2).

Os argumentos de Smith foram retrabalhados e aprofundadospor Hume e Ricardo. O primeiro chamou a atenção para a tendênciaao equilíbrio do Balanço de Pagamentos. O segundo, para os ganhosadvindos da especialização nos setores em que o país dispõe de vantagenscomparativas – e não vantagens absolutas, como propusera Smith.Observa-se que os liberais confiavam nas vantagens mútuas do comércioessencialmente pelo seu efeito direto sobre os preços das mercadorias:com a especialização e os ganhos em escala, os produtos tenderiam aficar mais baratos, beneficiando os consumidores, domésticos eestrangeiros.

Mas o avanço do pensamento liberal e a experiência de governosliberais trouxeram à baila outros argumentos favoráveis ao livrecomércio. O principal destes novos argumentos é o que enfatiza obenefício potencial a ser gerado pelos fluxos de investimento externodireto (IED), resultantes da liberalização do comércio exterior nos paísesmais pobres. O IED é o capital transferido por uma empresa paraum país estrangeiro no qual deseja produzir um produto ou um

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componente, tendo em vista condições específicas do mercado (porexemplo um mercado potencialmente vantajoso porém muito fechadopara mercadorias estrangeiras) e/ou a oferta de fatores de produção emcondições mais vantajosas do que no seu país de origem (como baixocusto do trabalho ou da terra).5 De acordo com esta proposição,qualquer país, tenha ele uma economia aberta ou fechada, poderá sebeneficiar do IED, no entanto, apenas nas economias abertas às empresasestrangeiras instaladas seriam automaticamente estimuladas a exportarpelo menos parte do que produzissem. Este estímulo natural àexportação seria dado pela combinação da tendência à especializaçãoprodutiva nos setores que apresentam vantagens comparativas comum contexto de acirrada concorrência.

É fundamental compreender que as vantagens comparativascontribuem diretamente para o processo de acumulação de capital,mas não se constituem numa estratégia de desenvolvimento econômicode longo prazo. Este último depende não apenas da acumulação, mastambém da forma como os agentes econômicos empregam o capitalacumulado. Assim, o desenvolvimento econômico depende daaplicação produtiva, eficiente e criativa dos recursos acumulados, a fimde promover inovações tecnológicas que ampliem ainda mais osestímulos e as capacidades dos agentes econômicos para produzir ecomercializar bens e serviços altamente demandados. O dinamismodo processo de desenvolvimento econômico implica, portanto, aconstante alteração das vantagens comparativas do país. Onde a estruturadas vantagens comparativas permanece estável ao longo do tempo, oritmo do desenvolvimento é mais lento, quando não negativo.

5 É importante salientar que os liberais clássicos viviam num mundo marcado por fortesrestrições à mobilidade dos fatores de produção, tanto o trabalho quanto o capital. Paraeles, era impossível imaginar que inovações tecnológicas pudessem criar instrumentos decomunicação capazes de “desmaterializar” o dinheiro a fim de transportá-lo mais fácil,segura e automaticamente entre as fronteiras nacionais. Da mesma maneira, não se poderiaexigir que eles antecipassem todas as dificuldades políticas que haveriam de ser criadas nospaíses ricos para inibir o influxo de pessoas (imigrantes) em busca de melhores oportunidadesde emprego e condições de bem-estar, que foi muito facilitado pelas melhorias tecnológicasque aumentaram o acesso e reduziram os custos dos deslocamentos intercontinentais.

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De acordo com o pensamento liberal o Estado deveria seconcentrar na oferta de bens e serviços que apresentassem externalidadespositivas, como infra-estrutura física e institucional, justiça, segurançae educação. O Estado provê, em primeiro lugar, as “regras do jogo”, ouseja, o conjunto de instituições que estipula recompensas para asdiferentes estratégias de ação dos cidadãos. No que concerne nossapreocupação com a questão do desenvolvimento econômico, os liberaisconsideram importante que essa infra-estrutura institucional seja capazde estimular ações produtivas e cooperativas entre os agentes econômicos– por meio de contratos – assim como, um grau elevado de concorrênciana oferta de bens e serviços. Ao Estado não cabe escolher ou determinarem que setores ou atividades cada indivíduo deve alocar seus ativosescassos – terra, trabalho, capital, tempo, criatividade, etc. Esta é umaatribuição do indivíduo, a qual estará condicionada pelas expectativasde retorno e pelos riscos de perda envolvidos em cada uma das opçõesde investimento. Ao Estado cabe apenas zelar para que os estímulosdados pelas instituições sejam os melhores possíveis. Por isso, uma dastarefas econômicas essenciais do Estado é a manutenção da estabilidadedo poder de compra da moeda nacional – meio de troca, unidade deconta e reserva de valor – referência fundamental para a realização doscontratos econômicos.

Além da base institucional, o Estado liberal precisa prover opaís de uma infra-estrutura física adequada ao desenvolvimento. Umamalha de transportes capaz de facilitar os deslocamentos das pessoas edos produtos; uma estrutura de geração e distribuição capaz de proveruma oferta de energia na quantidade demandada pela sociedade; e redeseficientes de comunicação que permitam a troca de informações e arealização de negócios entre regiões distantes são alguns dos serviços deinfra-estrutura física que precisam ser instalados a fim de promover oaproveitamento econômico eficiente dos recursos escassos do país. Boaparte desta infra-estrutura pode ser operada por empresas privadas, noentanto, a sua instalação requer quase sempre a intervenção

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governamental em razão dos custos e dos riscos iniciais serem muitoelevados e do retorno esperado se dar em prazo muito dilatado.

A justiça e a segurança são dois serviços nos quais o Estadopossui nítida vantagem comparativa. Elas servem, primordialmente,para garantir a vida e as propriedades (materiais e imateriais) dosindivíduos, assim como a integridade nacional, sendo, por conta disso,essenciais para a celebração de contratos. É certo que qualquer agenteeconômico poderia se beneficiar do controle privado tanto da justiçaquanto das forças de segurança (polícia e forças armadas).6 No entanto,caso essas e outras atividades essenciais fossem assumidas pelo setorprivado, mesmo que legalmente, seria provável a contaminação doambiente econômico por uma lógica de ganho que nada tem acontribuir para a produção de riquezas. A alocação de ativos escassos(capital, trabalho, talento, criatividade, tempo) seria então desviadadas atividades produtivas para as não-produtivas e quiçá para asdestrutivas, como a formação de milícias e de grupos paramilitares, e aconstituição de redes vinculando o tráfico de drogas, a corrupção e alavagem de dinheiro, como ocorre atualmente em países como aColômbia, o Paraguai, o Peru, Malawi, o Zimbábue, o Zaire, Angola,Moçambique, a Indonésia, a Rússia, entre outros. Assim, mesmoenvolvendo a possibilidade de falhas, a administração da justiça e dasegurança é uma atribuição típica do Estado, por conta de sua maiorneutralidade.

Por fim, mas não menos importante, seria atribuiçãofundamental de um Estado liberal a melhoria do estoque de capitalhumano da sociedade. O conjunto de conhecimentos que contribuempara o desenvolvimento econômico por meio do aumento daprodutividade e da criação de novos produtos e processos de produçãopode ser aumentado via estímulos à pesquisa e ao ensino. Em muitas

6 Não seria difícil elencar aqui algumas atividades que poderiam ser desempenhadas poressas agências para realizar interesses econômicos particulares, como inibir ou eliminar aconcorrência num dado setor ou ramo de atividade. Não é por outra razão que gruposcriminosos, como a máfia e os chefes do tráfico de drogas, procuram garantias por meio da“compra” de favores junto a setores da polícia e da Justiça em países como a Rússia, a Itália,a Ucrânia e mesmo Brasil.

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partes do mundo, o setor privado pode contribuir e freqüentementecontribui para elevar esse estoque, quer investindo em escolas euniversidades, quer por intermédio dos centros tecnológicos das própriasempresas. No entanto, o setor privado prestará esse serviço emquantidade inferior ao que seria desejável para o conjunto da sociedade,tendo em vista que os que não puderem pagar pelo serviço tenderão aser excluídos. É o que se verifica, por exemplo, no caso da educação: ospobres não têm acesso garantido ao ensino privado nem mesmo quandoeste é oferecido por instituições religiosas. E não poderia ser muitodiferente, posto que a maior parte das instituições privadas de ensino,mesmo aquelas sem fins lucrativos, incorrem em custos para oferecero serviço, tendo que cobrar mensalidades dos beneficiários diretos.7

Para eliminar esse déficit na provisão de ensino e pesquisa, oEstado encontra-se melhor posicionado do que qualquer outro grupoda sociedade, à medida que dispõe de instrumentos para obrigar osmais ricos a pagarem impostos, os quais podem ser usados parainvestimento em melhoria do capital humano. É importante ressaltarque o aumento do estoque de capital humano da sociedade eleva aprodutividade geral da economia – trabalhadores mais capacitadospodem desempenhar com maior agilidade tarefas mais complexas, alémde poderem intervir de forma mais criativa no processo produtivo –, oque beneficia toda a sociedade e não apenas os indivíduos que estudaramem escolas ou universidades públicas. As próprias empresas, geralmenteas maiores pagadoras de impostos, seriam beneficiadas pela ação doEstado visando elevar o nível do capital humano tendo em vista quereceberiam trabalhadores mais produtivos.

É possível observar uma forte complementaridade entre osargumentos liberais favoráveis ao livre comércio e ao investimento

7 O mesmo ciclo perverso se faz notar em relação à pesquisa. Tomemos o exemplo dapesquisa farmacológica. As dotações de recursos humanos e materiais para o desenvolvimentode drogas destinadas a combater doenças típicas de países ricos, como por exemplo asdoenças cardíacas e o mal de Alzheimer, são muito maiores do que as destinadas à pesquisade doenças típicas de países pobres, como a malária. Isso porque as empresas farmacêuticasdefinem suas estratégias de investimento com base nos retornos esperados, que sãodeterminados pelo poder aquisitivo dos consumidores – indivíduos e governos.

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público em capital humano, infra-estrutura, segurança e justiça. Vistosem conjunto, eles tendem a promover um ambiente econômicodinâmico, marcado pela atividade produtiva e inovadora, pelaespecialização e pela estabilidade institucional. Há, ainda, forte afinidadeentre tais argumentos e a necessidade de reforçar os mecanismosrepresentativos e de racionalização burocrática, uma vez que a preservaçãodos limites às intervenções do Estado previstos na doutrina liberaldepende tanto de forte participação política dos indivíduos e grupos –para bloquear tentativas de intervenção estatal motivadas por interessesparticularistas – quanto da prevalência de critérios apolíticos no processodecisório público.

O modelo de Industrialização por Substituição de Importações(ISI)

O modelo de industrialização por substituição de impor-tações (ISI) é uma estratégia de crescimento que visa reduzir asimportações para encorajar a produção de substitutos domésticos.A substituição de importações é perseguida, em particular, porpaíses em desenvolvimento como um meio para promover aindustrialização e conservar as escassas reservas em moedaestrangeira.

Por meio da limitação e da remoção de importaçõesconcorrentes via estabelecimento de cotas, tarifas, etc., o paísvisa estabelecer seus próprios setores industriais que, inicialmente,podem ser expandidos para suprir o mercado doméstico e, numestágio posterior, desenvolver um comércio de exportação (CollinsDictionary of Economics, 1993:240-1, verbete import substitution,tradução do autor).

O modelo de ISI implicava o recurso a políticas nadaortodoxas, como: proteção comercial generalizada (especialmente pormeio de barreiras não-tarifárias, como cotas, licenciamento prévio,requisitos de financiamento, exame de similaridade, etc.); restrições àsexportações (via cobrança de impostos ou proibição administrativa);controles de preços (para servir como instrumento de combate àinflação); subsídios e incentivos fiscais para estimular investimentos

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produtivos específicos; câmbio fixo combinado a mecanismos querestringiam o direito de compra de divisas estrangeiras pelosimportadores potenciais e a uma sistemática de taxas múltiplas de câmbio(que diferenciavam o grau de incentivo concedido a diferentes setores);e a criação ou ampliação de empresas estatais para viabilizar a oferta detodo um sem-número de bens e serviços. Todos esses instrumentosgeravam, na prática, uma distorção entre os preços domésticos e ospreços internacionais, a qual visava estimular a produção e o consumodoméstico das mercadorias até então importadas e, assim, reduzir apressão exercida pelas importações de bens supérfluos sobre as escassasreservas de moedas estrangeiras.

Este modelo foi formulado tomando-se por base críticas feitasà doutrina liberal. O conjunto dessas críticas pode ser facilmentedividido em dois grupos: estruturalistas e marxistas/socialistas. Oscríticos estruturalistas enfatizavam que o comércio internacional estavaestruturado de modo diferente daquele expresso pelos liberais. Autorescomo o alemão Friederich Lizt, o americano Alexander Hamilton e oargentino Raúl Prebisch questionavam o argumento de que aespecialização resultante das vantagens comparativas fosse capaz depromover o aumento dos níveis de bem-estar das massas (os maispobres) e propunham alguma forma de intervenção do Estado parapromover a industrialização, vista como etapa necessária dodesenvolvimento econômico e como essencial para promover amelhoria das condições de bem-estar. Essa corrente estruturalista nãodefendia, contudo, a substituição do capitalismo pelo socialismo ou ocomunismo, como faziam os partidários do segundo grupo de críticosda doutrina liberal.

Não nos ocuparemos, aqui, com as críticas à doutrina liberalelaboradas por autores de orientação marxista/socialista. No entanto,é importante chamar atenção para uma contradição inerente a seusargumentos a qual termina por colocá-los em oposição ao que defendiao próprio Marx. Não deve escapar ao estudioso da economia políticaque Marx defendia a adoção do livre comércio pelos países mais pobrespor acreditar que a liberalização seria o instrumento mais eficaz parapromover a industrialização da periferia do sistema capitalista. Num

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de seus poucos textos sobre uma economia periférica, Marx defendeua adesão da Índia à ordem capitalista internacional e aos princípios dolivre comércio que, segundo ele, acelerariam a luta de classes por meioda intensificação dos processos de acumulação de capital e deindustrialização. Para ele, quanto mais cedo nações como a Índiareduzissem as barreiras que impunham às importações, mais rapidamenteteria início o processo de industrialização, o qual conduziria as classes auma situação de enfrentamento, condizente com uma dinâmicafavorável à superação do modo de produção capitalista.8 Em suma,Marx era defensor do livre comércio especialmente por percebê-lo comoum mecanismo eficaz para a promoção do desenvolvimento capitalistada periferia do sistema. Já os autores marxistas, supostamente seguidoresde Marx, elaboraram críticas à doutrina liberal e à adesão ao livrecomércio dos países menos desenvolvidos por considerarem que issoos manteria em condição de pobreza e subdesenvolvimento. A livrecirculação de mercadorias e capital, argumentavam eles, beneficiariaapenas os capitalistas, dos países centrais e da periferia, cujas empresastinham natureza oligopolística e, portanto, eram capazes de se apropriarinteiramente da riqueza gerada na produção (Spero & Hart, 1997,p. 153).9

8 Quando escreveu Sobre o Imperialismo na Índia, Marx afirmou que o “sistema de vila”,característico do despotismo oriental, vinha sendo dissolvido pela ação das firmas e maquinariasinglesas e pelo impacto do livre comércio e não pela ação dos coletores de impostos e dossoldados britânicos.9 Num texto publicado em 1970, o economista brasileiro Theotônio dos Santos afirmouque “as relações produzidas no mercado (mundial de commodities, capitais e trabalho) sãodesiguais e combinadas, porque o desenvolvimento de algumas partes do sistema ocorre àscustas das demais. As relações comerciais são baseadas no controle monopolístico do mercado,que promove a transferência dos excedentes gerados nos países dependentes para os paísesdominantes; as relações financeiras são, da perspectiva das potências dominantes, baseadasem empréstimos e na exportação de capital, que lhes permite receber juros e lucros;aumentando, assim, seus excedentes domésticos e fortalecendo seu controle sobre aseconomias de outros países. Para os países dependentes, essas relações representam umaexportação dos lucros e juros que levam consigo parte do excedente gerado domesticamentee promove uma perda de controle sobre seus recursos produtivos. (...) O resultado é aimposição de um limite ao desenvolvimento de seus mercados internos e de suas capacidadestécnicas e culturais, assim como à saúde moral e física de seus povos” (Santos, 1991, p. 145,tradução minha).

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Os argumentos usados pelos críticos marxistas eram muitosemelhantes aos dos estruturalistas, os quais chamavam atenção para aexistência de “falhas de mercado” (market failures) especialmenteimportantes nos países em desenvolvimento. De acordo com estaperspectiva, os mercados poderiam falhar em três dimensões: sinalização,quando os preços dessem sinais errados por conta de distorções causadaspor monopólios, por exemplo; resposta, nos casos em que o trabalho eos outros fatores de produção respondessem aos sinais de preços demodo inadequado; e mobilidade, quando, apesar de estarem aptos aresponder de maneira apropriada para corrigir sinais de preços, os fatoresde produção fossem imóveis ou incapazes de se mover rapidamente(Arndt, 2000).

Aplicado às relações econômicas internacionais dos países pobrese em desenvolvimento, o argumento das “falhas de mercado” afirmavaque a adesão dos países exportadores de produtos primários(commodities) ao sistema baseado no comércio livre fazia com que elesficassem ainda mais pobres em razão da tendência histórica à deterioraçãodos seus termos de intercâmbio comercial (ou termos de troca) – o queequivale a dizer que o poder de compra das exportações de produtosprimários tendia a cair enquanto o dos produtos manufaturados tendiaa subir. Segundo eles, essa tendência se explicaria em função de doisfatores: a estrutura oligopolística do comércio internacional demanufaturas; e a inelasticidade-renda da demanda por commodities.A natureza oligopolística do mercado de manufaturas resultava, deum lado, do efeito das inovações tecnológicas sobre a estruturaconcorrencial, estabelecendo grande poder de mercado (market power)para as empresas mais dinâmicas; e, de outro lado, do uso intensivo demão-de-obra qualificada e escassa, outorgando forte capacidade debarganha aos trabalhadores. Enquanto o poder de mercado das empresastornava possível a manutenção dos preços em patamares elevadosmesmo quando se verificassem inovações técnicas, tecnológicas e/ougerenciais que barateassem os custos de produção, o poder de barganhados trabalhadores desestimulava ou mesmo impedia fortes reduçõesde preços, mesmo em períodos recessivos por conta da rigidez dossalários. Seria uma típica falha de sinalização. Em contraste, tanto os

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produtores quanto os trabalhadores empregados na produção decommodities se deparavam com uma situação equivalente a de ummercado competitivo, no qual os preços são determinados exogenamentepelos níveis de concorrência e de demanda. A inelasticidade-renda dademanda – isto é, o fato de que os consumidores não aumentariamseu consumo de commodities diante da queda nos preços – representava,neste contexto, um obstáculo praticamente intransponível à elevaçãodos preços das commodities, prejudicando o poder de compra dos paísesque as exportavam. Seria, portanto, uma falha de resposta.

Outro efeito negativo do modelo primário-exportadorenfatizado pelos estruturalistas seria a formação de uma estruturaeconômica dual, na qual subsistiriam, com baixo grau de inter-relação,um setor exportador muito eficiente e um setor de baixa produtividadevoltado à produção para o mercado interno. O comércio internacionalpromoveria apenas os interesses do setor primário exportador, semafetar dinamicamente os setores que produziam para o mercado interno.O problema estaria, portanto, no fato deste dinamismo não sersuficiente para promover a transferência de todos os fatores de produçãopara os setores exportadores, o que configuraria uma falha demobilidade.

Por conta dessas tendências perversas, os estruturalistasenfatizavam a conveniência do Estado intervir na ordem econômicapara corrigir essas falhas por meio da promoção da industrializaçãonos países pobres e em desenvolvimento. O papel do Estado seriaestimular a substituição de importações, ou seja, criar incentivos(artificiais) para a produção de mercadorias anteriormente importadas– ou seja, manufaturas –, prioritariamente para consumo doméstico.Promover a industrialização seria, por assim dizer, um fim último(teleologia) previamente definido para a ação do Estado. Por isso, parece-nos dificilmente conciliável com os princípios da liberdade individual,da igualdade de oportunidades e da democracia representativa, tãoenfatizados pelo liberalismo.

Tendo em vista a evidente prioridade atribuída ao mercadointerno, este modelo foi também chamado de “industrialização paradentro” (hacia adentro), e contrastava com a industrialização orientada

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para importações – IOE (export-oriented industrialization), seguidaespecialmente pelos países do sudeste asiático a partir da década de1960. A intervenção do Estado – pela via da proteção comercial e daalocação de recursos financeiros (subsídios) ao setor industrial – seriaimprescindível para o sucesso da ISI em virtude da baixa produtividadedas indústrias nascentes, quando comparadas às concorrentesinternacionais, há muito estabelecidas. Esta ação seria feita por meioda ação do Estado no planejamento, no financiamento e até diretamentena produção de bens e serviços considerados essenciais.

Uma questão essencial para viabilizar o desempenho destasfunções tinha a ver com a mobilização dos recursos financeirosnecessários. Os países latino-americanos não foram beneficiados pelosfluxos de ajuda dos Estados Unidos nos primeiros anos após o final daSegunda Guerra.10 Por conta disso, o recurso à poupança externa paraacelerar a industrialização foi viabilizado pelos fluxos de IED, ou seja,pelos investimentos de empresas multinacionais. Estas foram fortementeatraídas pelas políticas de ISI, como o fechamento do mercadodoméstico às importações e a concessão de subsídios e incentivos aoinvestimento industrial (Baer & Hargis, 2000). O estabelecimento deempresas industriais estrangeiras nos países que optaram pela estratégiaISI se deu sob o signo da produção para o mercado doméstico e nãopara exportação. Isso estimulava a produção em setores nos quais o

10 Nos anos 60, os fluxos de ajuda para a região foram criados e ampliados em razão damudança de posição do governo dos Estados Unidos e da conclusão do processo dereconstrução da Europa, que absorvera todos os recursos do Banco Internacional deReconstrução e Desenvolvimento (BIRD), o Banco Mundial. Além dos recursos do BIRD,os fluxos de ajuda também foram proporcionados por acordos bilaterais fechados entre ospaíses latino-americanos e o governo dos Estados Unidos, por meio de sua Agência deDesenvolvimento Internacional-USAID e pela criação do Banco Interamericano deDesenvolvimento (BID), constituído majoritariamente por fundos providos pelo governonorte-americano. Esta mudança de atitude do governo norte-americano foi especialmentesentida após a posse do presidente John Kennedy, em 1961, quando foi criada a Aliança parao Progresso. É interessante notar que os empréstimos multilaterais (BIRD e BID), que eramvinculados a objetivos específicos, foram direcionados para investimentos compatíveis como modelo ISI, ou seja, para projetos que beneficiavam prioritariamente o setor industrial –energia, transportes e telecomunicações, os quais eram dominados por empresas estatais(Baer & Hargis, 2000, p. 202).

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país não dispunha de vantagens comparativas, acarretando baixacompetitividade internacional às empresas multinacionais nelesinstaladas. Este fator explica porque essas empresas resistiram àspropostas de mudança do regime comercial, por exemplo, para afrouxaras restrições às importações.

Cabe notar que a criação de incentivos à substituição deimportações destinadas a suprir prioritariamente o mercado interno,realizada ao menos parcialmente com poupança externa, criava umgrave problema à eficiência econômica – o terceiro elemento de nossadefinição de intervenção estatal eficaz. Isso porque o uso de poupançaexterna implicaria o endividamento externo do país, o qual só poderiaser equacionado com a geração de receitas em moeda estrangeira –basicamente via exportações.11 No entanto, o incentivo a ISI significavaque o objetivo principal era produzir internamente produtos industriaisnos setores em que o país não dispusesse de vantagens comparativas –razão pela qual eram anteriormente importados. Daí resultava anecessidade de serem criadas condições artificiais (preços diferentes dospraticados no mercado) para estimular a produção local. Apesar deviabilizar a produção no país, esse artificialismo não impedia que oproduto industrial nacional tivesse baixa competitividade internacional(padrões de preço/qualidade), o que dificultava sua exportação emcondições de mercado – ou seja, sem novas distorções de preços, comosubsídio cambial.

Assim, às ineficiências impostas ao próprio mercado doméstico– no qual a proteção comercial obrigava os consumidores a adquiriremo produto nacional mais caro e de pior qualidade do que os similaresestrangeiros –, seria ainda acrescentada a frágil capacidade de exportaçãodos produtos substitutivos de importações, tão necessária à obtençãode divisas estrangeiras para viabilizar o pagamento dos empréstimoscontraídos pelo governo e pelas indústrias, assim como a remessa decapital ao exterior pelas filiais de multinacionais. Os desequilíbrios do

11 É possível argumentar que a contração de empréstimos em moeda estrangeira tambémconta como receita. No entanto, como o caso em questão é o pagamento de dívidas, acontração de novos empréstimos resulta apenas em rolagem e não numa solução definitivapara o problema.

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setor externo seriam, assim, recorrentes nos países que adotaram talmodelo de desenvolvimento.

A mobilização de poupança doméstica, para complementar apoupança externa, se dava por meio de políticas monetária e fiscalfrouxas, que geravam inflação elevada, estrutura de taxação fortementeregressiva e concentradora de renda. A destinação de valores vultosospara viabilizar os investimentos industriais – públicos e privados –limitava a disponibilidade de recursos para aumentar a produtividadeda agricultura (sua industrialização nas bases do que hoje se chama deagronegócio) e mesmo para garantir os investimentos típicos de Estadocomo segurança, justiça, educação e saúde, os quais eram apontadospelos autores liberais como fundamentais para o funcionamento e odinamismo de uma economia de mercado.

Assim, os países que seguiram o modelo de ISI se caracterizaram:(I) pela existência de um setor industrial complexo, porém poucocompetitivo internacionalmente; (II) pela falta de investimentos naagricultura, que permaneceu com baixos índices de produtividade; (III)pela fragilidade fiscal – despesas maiores que receitas, (ocasionando...);(IV) inflação alta (e...); (V) forte tendência à apreciação cambial;12

(VI) baixa destinação de recursos para a provisão de serviços nos quaiso Estado apresenta evidentes vantagens comparativas (segurança, justiça,educação e saúde); e (VII) baixo investimento em capital humano,tendo em vista a prioridade atribuída pelo Estado ao fortalecimentoda indústria intensiva em capital (Cardoso & Helwege, 1992; Fishlow,1990; Sachs, 2000; Baer & Hargis, 2000; Krueger, 2000).

Além da forte intervenção governamental na economia, aestratégia de ISI também implicava outras prioridades à política externa

12 Em relação à tendência à apreciação cambial, vale notar que ela foi aceita porque:primeiro, não causava um sério aumento das importações, que eram inibidas pelo uso debarreiras administrativas (licenciamento, proibições, restrições ao acesso às reservas cambiais,etc.); segundo, estimulava investimentos substitutivos de importações, visto que tornavamais baratas as importações consideradas essenciais (e.g., máquinas e equipamentos); e,terceiro, era politicamente preferível à desvalorização, que afetaria negativamente os preçosde produtos consumidos pelos setores urbanos, que constituíam a base de sustentaçãopolítica dos governos – civis ou militares, de esquerda ou de direita – durante o período emque vigorou a estratégia de ISI. (Sobre essa equação política, ver Sachs, 2000).

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dos países do Sul. Em primeiro lugar, deveriam ser intensificadas asrelações de comércio e investimento com outros países do hemisférioSul, a fim de promover ganhos de escala para as indústrias nascentes.Seria uma forma de compensar a dimensão quase insignificante dosmercados internos de cada um desses países. Os maiores problemas àefetivação desta estratégia seriam: a frágil disposição de cada país aimportar um produto com baixa competitividade internacional (preço/qualidade), apenas por se tratar de um produto exportado por outropaís em desenvolvimento; a definição de um critério de distribuiçãodos setores econômicos entre os países do Sul.

Segundo, os estruturalistas defendiam o engajamento dos paísesdo Sul em projetos de integração regional. A integração poderia criarum mecanismo político capaz de promover essa divisão regional dotrabalho. Entretanto, nada assegurava que ela fosse mais interessantedo que a participação independente de cada país no sistema de trocasinternacionais. Terceiro, Prebisch e outros estruturalistas defendiam ouso de instrumentos de controle populacional para diminuir a pressãonegativa exercida sobre os salários pelos altos índices de crescimentopopulacional nos países em desenvolvimento. A reforma agrária era oquinto ponto da agenda estruturalista e se justificava pela crença deque a pulverização da propriedade promoveria o aumento daprodutividade no campo, assim como o aumento das rendas dostrabalhadores da agricultura. Esses autores não levavam em conta asdificuldades políticas envolvidas nessa questão, o que na prática levoumuitos sistemas políticos ao colapso institucional na forma de golpesde Estado e revoluções.

Sexto, os estruturalistas admitiam a necessidade de atrairpoupança externa para promover boa parte dessas ações. No entanto,sua preferência inicial era pela obtenção de créditos adquiridos dosgovernos e não pela abertura do mercado ao investimento produtivodas empresas estrangeiras. De acordo com os estruturalistas taisinvestimentos tenderiam a se concentrar nos setores de exportação,reforçando a dualidade da economia enquanto os créditosgovernamentais poderiam ser usados com certa liberdade para fomentarinvestimentos públicos e privados nos setores considerados estratégicos.

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Por fim, é importante ressaltar que os países que adotaram omodelo ISI, quase todos na América Latina, demandavam a reduçãounilateral das barreiras impostas por países ricos à importação decommodities exportadas pelos países do Sul. Este tipo de demanda,raramente atendida, contrasta radicalmente com o princípio dareciprocidade que, a partir do pós-Segunda Guerra, passou a nortear asnegociações comerciais.

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Em primeiro lugar, há que se destacar o planejamento extensivodo processo de desenvolvimento, determinando a intensidade, o ritmoe o escopo dos investimentos públicos e privados. A intervenção doEstado em prol da substituição de importações se faz, por meio dadefinição dos setores “estratégicos” pelos quais os governantes acreditamque deve se iniciar o processo de industrialização. Escolhidos os setoreseconômicos a serem privilegiados com proteção e subsídiogovernamental, iniciam-se contatos diretos entre altos funcionáriospúblicos e representantes do setor privado para a concretização decompromissos de investimento.

Além de planejar o desenvolvimento, cabe ao Estado a ofertade bens e serviços fundamentais. Intermediação financeira e especialmentecrédito barato, infra-estrutura física (energia, transportes, comunicações)e bens cuja produção demandaria investimentos muito superiores àcapacidade e à disposição do setor privado (como ferro, aço e produtosquímicos) que eram essenciais para viabilizar os projetos de desenvol-vimento. Em praticamente todos os países em que o modelo ISI foiimplementado, essas funções produtiva e de intermediação financeiraforam desempenhadas por agências governamentais.

Obviamente, o estabelecimento de uma burocracia capacitadapara planejar a intervenção, negociá-la com o setor privado eimplementá-la é fundamental, senão para o êxito da industrialização –o que depende da cooperação do setor privado – ao menos para evitara captura do Estado por grupos de interesse. Nos países em que àampliação das tarefas do Estado seguiu-se a criação de uma densa rede

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de agências governamentais racionalmente estruturadas e insuladas emrelação às pressões particularistas provenientes do contado direto ouindireto (via partidos políticos) com os grupos de interesse – como emparte ocorreu no Brasil, na Índia e no México – os efeitos potencialmentenegativos do modelo ISI foram minimizados e a industrializaçãoavançou (Sikkink, 1990; Evans, 1995; Fishlow, 1990). Em todos osdemais, entre os quais destaca-se o caso Argentino, os resultadoseconômicos e sociais foram muito negativos.

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Como seu próprio nome indica, o modelo de industrializaçãoorientada por exportações (IOE) se caracteriza pela expansão daeconomia por meio do crescimento das exportações.

O crescimento das exportações injeta renda adicional naeconomia doméstica, e aumenta a demanda total pelas mercadoriasproduzidas domesticamente. Igualmente importante, o aumentodas exportações permite a absorção de um nível mais elevado deimportações, sem criar restrições no Balanço de Pagamentos narealização do crescimento econômico sustentável (Collins Dictionaryof Economics, 1993, p. 187, verbete export-led growth).

Assim como no caso do modelo de ISI e em contraste com omodelo liberal, o modelo IOE se caracteriza pela centralidade do Estadocomo promotor de uma via rápida de desenvolvimento econômicosob o capitalismo.13 A principal diferença em relação ao modelo ISI éo maior grau de equilíbrio das relações econômicas com o resto domundo proporcionado pelo modelo IOE.14 Tendo em vista a maior

13 Os principais exemplos de países que seguiram essa estratégia são Coréia do Sul, Formosa(Taiwan), Hong Kong e Cingapura. No entanto, em razão de sua natureza geopolíticamuito particular – são essencialmente cidades-estado – e de sua trajetória econômica préviaà adoção deste modelo – como entrepostos comerciais e financeiros e não como economiasagrário-exportadoras – deixaremos de considerar os dois últimos e nos concentraremos natrajetória seguida por Coréia e Formosa.14 Ou seja, nos setores que usam intensivamente fatores de produção presentes demaneira abundante no país. No caso dos países do leste da Ásia, a vantagem estaria nossetores intensivos em mão-de-obra barata, com razoável qualificação.

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abertura para o exterior (liberdade de importações), a estratégia IOE secaracterizou pelo estímulo à concentração dos investimentos domésticose estrangeiros nos setores em que o país dispunha de vantagenscomparativas.15 Este fator favoreceu a internacionalização da economianacional, especialmente porque está baseado na participação das empresasdomésticas em redes internacionais de produção e distribuição, comoatestam as experiências dos setores exportadores da Coréia do Sul, deFormosa e de Hong Kong (Haggard & Cheng, 1987, p. 100].

A primeira etapa do modelo IOE é muito semelhante ao iníciodo processo de industrialização por substituição de importações: oEstado cria incentivos para a realização de investimentos industriaiscom o propósito de reduzir a dependência do país em relação a bensmanufaturados estrangeiros. No entanto, desde esta fase inaugural,observa-se uma especialização dos investimentos nos setores em que opaís dispõe de maiores chances de se tornar internacionalmentecompetitivo.

Ao contrário do que ocorreu nos demais países que seguiramo modelo ISI, especialmente os da América Latina (Brasil, Méxicoe Argentina), o IED foi muito reduzido no sudeste asiático.16

15 Por exemplo, 80% do total de IED realizado na Coréia do Sul, no período 1972-76, seconcentrou no setor manufatureiro. Considerando apenas a indústria, 21% do IED foiaplicado no setor têxtil, que representava 40% das exportações; 15% no setor eletroeletrônico,que respondia por 12,3% das exportações; e 10% no setor químico, o qual era responsávelpor 10% das exportações. O caso de Formosa é um pouco diferente, mas guarda muitassemelhanças, já que praticamente 80% do IED estava aplicado no setor industrial entre1976 e 1981. Neste mesmo período, quase 29% do IED estava concentrado no setor “têxtile vestuário”, o qual representava 17% das exportações. As exportações das multinacionaisestrangeiras representavam 30% das exportações de têxteis, 78% das exportações deeletroeletrônicos (setor responsável por 16% do total de exportações), 15% das exportaçõesde calçados (7% das exportações totais), 14% das exportações de máquinas (9% dasexportações totais) e 10% das exportações de papel e celulose (8% das exportações totais).(Os dados sobre a distribuição setorial do IED são relativos ao período 1972-76, na Coréia,e 1976-81, em Formosa; já os dados relativos à participação das exportações das multinacionaisnas exportações do setor se referem ao ano de 1974, Coréia, e 1979, Formosa (Haggard &Cheng, 1987, tabelas 3-6)16 Em Formosa, a ajuda norte-americana foi apenas marginalmente suplementada porinvestimentos externos diretos, provenientes de chineses exilados no exterior, de japonesese de americanos (Haggard & Cheng, 1987, p. 99).

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A reconstrução dessas economias no pós-Segunda Guerra pela estratégiade ISI, que implicou enorme crescimento do nível de importações, foiprincipalmente financiada pela ajuda oficial dos EUA.17 De acordocom Haggard & Cheng, esta fase de ISI permitiu a consolidação defortes posições domésticas por parte de empresas novas e já existentes,livres de competição, de importados e de investimento estrangeiro(Haggard & Cheng, 1987, p. 88).

No entanto, diante de sinais evidentes de que o modelo ISIapresentava problemas estruturais crônicos – com destaque para asaturação do mercado, o aumento da competição, o baixo grau deexportações industriais, o alto nível de dependência de importados eos largos desequilíbrios no Balanço de Pagamentos –, os NICs (newindustrializing countries) do leste asiático desviaram seu modelo decrescimento para favorecer a exportação de manufaturas. Esta mudançade estratégia foi forçada por dois fatores: a necessidade de contrabalançara perda de divisas resultante da quebra dos compromissos de ajuda delongo prazo por parte dos Estados Unidos e a falta de um mercadointerno suficientemente amplo para permitir o aprofundamento daISI.18 A partir do final da década de 1950 e na primeira metade dadécada seguinte, Coréia e Formosa iniciaram reformas econômicasprofundas, com o objetivo de alterar a estrutura de incentivos epromover uma orientação mais voltada para o exterior. As reformas de1958 e 1962, em Formosa, e de 1964-1965, na Coréia, estabeleceramtaxas de câmbio mais realistas, quando a marca da estratégia de ISI era

17 Na Coréia do Sul, a ajuda externa financiou quase 70% do total de importações noperíodo 1953-1962 e representou 80% da formação de capital fixo total; 45% de toda aassistência econômica recebida pela Coréia entre 1946-1976, US$ 5.76 bilhões, foramconcedidas no período de reconstrução pela estratégia de ISI. Algo parecido ocorreu emFormosa. Os gastos militares norte-americanos constituíram outra importante fonte derecursos que proporcionou a esses países a reconstrução com base nas importações (Haggard& Cheng, 1987, p. 87).18 Em circunstâncias muito semelhantes, Brasil e México optaram por aprofundar o modeloISI, recorrendo a uma segunda fase de substituição de importações para fomentar o crescimentoeconômico, via investimentos na produção de bens de capital e intermediários para consumointerno. Haggard & Cheng (1987:90) atribuem essa opção à existência, nestes países, demercados internos mais amplos que os então existentes nos países do leste da Ásia.

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a apreciação, e diminuíram (sem, entretanto, eliminar) muitas barreirasanteriormente impostas às importações (Haggard & Cheng, 1987,p. 90).

Manufaturas leves e intensivas em trabalho passaram a constituiruma das bases do novo modelo exportador. Neste caso, o destaqueficava por conta de firmas nacionais que haviam se desenvolvido durantea etapa de substituição de importações. O setor “têxtil e vestuário” é omelhor exemplo: em 1974, respondia por aproximadamente 40% dasexportações na Coréia do Sul, mas a participação de multinacionaisnas exportações não chegava a 13%; em Formosa, os números eram17% e 30%, respectivamente, para o ano de 1979. Os fluxos de IEDse caracterizaram por uma concentração em setores específicos, comoeletroeletrônicos (montagem), no qual respondiam por 78% dasexportações em Formosa (1979) e 88,6% na Coréia do Sul (1974).

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O papel desempenhado pelo Estado no modelo de IOE foimuito semelhante ao que abordamos anteriormente quando tratamosda estratégia de ISI. O governo era responsável por garantir a ofertadoméstica de bens considerados estratégicos, o que fazia por meio daalteração artificial dos preços relativos de determinadas mercadorias eserviços. A alteração dos preços relativos resultava: da imposição derestrições às importações (tarifas, cotas, etc.), tornando-as mais carasdo que os similares nacionais e, assim, estimulando sua ofertadoméstica; da concessão de estímulos diretos aos produtores privados(subsídios e incentivos tributários), barateando o custo de produção eos riscos do investimento doméstico; e/ou da produção estatal de bense serviços considerados essenciais, usados na fabricação de produtosconsiderados estratégicos. De todo modo, é importante salientar que,nos países que seguiram o modelo IOE, a ação dos governos estimuloupropositalmente a realização de investimentos nos setores capazes dese tornarem internacionalmente competitivos, tendo em vista a clarapreocupação com a geração de divisas em moeda estrangeira paraviabilizar a manutenção de um elevado coeficiente de importações.

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A manutenção de um nível de poupança doméstica compatívelcom o nível de investimento da economia foi outra característica daação do Estado no modelo de IOE. Isso viabilizou a manutenção doequilíbrio fiscal e de um regime competitivo de câmbio que, por suavez, estimulavam o crescimento das exportações.

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CARLOS PIO

Título Relações internacionais: economia política e globalização

Coordenação editorial Ednete Lessa

Capa Izabel Carballo

Revisão de texto Moema Vieira

Editoração eletrônica e projeto gráfico Samuel Tabosa

Formato 160 x 230 mm

Mancha 110 x 210 mm

Tipologia AGaramond (textos) e Gill Sans (títulos, subtítulos)

Papel Cartão supremo 250g/m2, plastificação fosca (capa)

Offset 75g/m2 (miolo)

Número de páginas 164

Tiragem 3.000 exemplares

Impressão e acabamento PAX Gráfica e Editora Ltda.