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REHRevista Eletrônica Estudos Hegelianos

(Revista Semestral da Sociedade Hegel Brasileira - SHB)

Ano 5nº 9 , Dezembro - 2008

ISSN 1980-8372

REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 9, DEZ -2008

ExpedienteRevista Eletrônica Estudos Hegelianos - ISSN 1980-8372

Sociedade Hegel Brasileira - SHB

Sede: Av. Acad. Hélio Ramos, s/n - 15º andar - Cidade UniversitáriaCEP 50740-530 RECIFE - PE (Depto. Filosofia-UFPE)

Redação: Rua Salvatore Renna - Padre Salvador, 875 - Santa Cruz(antiga Rua Presidente Zacarias de Góes)CEP 85015-430 - GUARAPUAVA/PR - Brasil (Depto. Filosofia-UNICENTRO)

Editor: Manuel Moreira da Silva (UNICENTRO-PR)

Conselho editorial

Alfredo de Oliveira Moraes (UFPE), Agemir Bavaresco (PUCRS), Denis Lerrer Rosenfield (UFRGS), Draiton Gonzaga de Souza (PUCRS), Marcos Lutz Müller (UNICAMP), Manuel Moreira da Silva (UNICENTRO-PR), Marly Carvalho Soares (UECE), Paulo Gaspar Meneses (UNICAP), Konrad Christoph Utz (UFC)

Conselho científico

Diogo Falcão Ferrer (Universidade de Coimbra), Edmundo Balsemão Pires (Universidade de Coimbra), Jean-Claude Bourdin (Université de Poitiers), Jean-Louis Vieillard-Baron (Université de Poitiers), José Pinheiro Pertille (UFRGS), Hans-Christian Klotz (UFG), Leonardo Alves Vieira (UFMG), Manfredo Araújo de Oliveira (UFC), Marco Aurélio Werle (USP), Silvio Rosa (UNIFESP), Miguel Giusti (PUC-Peru), Marcelo Fernandes de Aquino (UNISINOS), Jean-François Kervégan (Université Patheon-Sorbonne - Paris I)

Secretário de edição/Diagramação: Matheus Barreto Pazos de Oliveira (RDT)

Editor de web: Danilo Vaz Curado (Grupo Hegel/Neal-PE)

Revisão: André Luís Tavares (RDT); Márcia Isse; Jeferson da Costa Valadares; Clemilson Pereira Teodoro.

Revisão geral: Manuel Moreira da Silva (UNICENTRO-PR)

Indexação: QUALIS, Capes, Brasil; LATINDEX, México; SUMÁRIOS, Funpec-RP, Brasil;DIALNET, Espanha.

Materiais assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, assim como as idéias e conceitos expressos nos mesmos ou as figuras e imagens aí utilizadas.

SUMÁRIO

Editorial

Da atualidade da Filosofia da Natureza de HegelManuel Moreira da Silva ................................................................................5

REH. Nota sobre o número 9Manuel Moreira da Silva ...............................................................................17

Artigos

Circolo e spirale. Il cuneo del contingente della filosofia sistematicaRossella Bonito Oliva ...................................................................................19

Entendimento e força: Sobre um aspecto fundamental da filosofiada natureza na Fenomenologia do Espírito de HegelWolfgang Neuser ............................................................................................37

Força e Entendimento: Um argumento contra o fisicismoKonrad Utz .........................................................................................................49

O movimento dialético: a dor e o sofrimento na Fenomenologia do EspíritoSônia Maria Schio ..........................................................................................59

A liberdade absoluta entre a crítica à representação e o terrorMarcos Lutz Müller ....................................................................................75

A crítica de Hegel ao conceito de lei em KantPedro Aparecido Novelli ..........................................................................101

Normas de submissão (Versão resumida)..........................................117

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Da atualidade da Filosofia da Natureza de Hegel

Manuel Moreira da SilvaDEFIL – UNICENTRO/PR

Embora controversa sob diversos pontos de vista, inclusive no âm-bito de posições internas ao hegelianismo, a Filosofia da Natureza de Hegel tem se mostrado tão ou mais atual que outras ciências do chamado sistema hegeliano. Apesar dessa atualidade não se apresentar como algo eviden-te, não podendo pois constituir-se enquanto objeto de uma demonstração exaustiva, ela pode ser constatada, por exemplo, nas antecipações de Hegel no que respeita a importantes teses que só muito recentemente se impõem como dignas de consideração por parte dos físicos e cosmólogos hodiernos; situação já observada por R. G. Collingwood, ainda em 1933, em um con-junto de artigos que mais tarde, postumamente, em 1945, seria coligido em sua famosa The Idea of Nature1. O que, em maior ou menor medida, a despeito de objeções quanto à consistência empírico-formal do legado filosófico-natural de Hegel, tem sido desde então como que sempre mais e mais posto em evidência.

Não obstante as muitas objeções dirigidas à elaboração hegeliana da Filosofia da Natureza, é justamente em função das controvérsias as quais essa elaboração suscitara que a mesma fora conquistando pouco a pouco um lugar na História da Filosofia da Natureza em geral e na história das interpretações do chamado Sistema de Hegel em particular. Apesar disso, o que também permite justificar em boa medida certas objeções e contro-vérsias, não se pode esquecer que a Filosofia da Natureza de Hegel é ainda hoje, por diversos motivos, mas sobretudo pela ignorância quanto ao seu lugar e função no Sistema, a ciência quase nunca levada a sério e que, por isso, não desperta a atenção dos estudiosos, tornando-se a menos estudada e a mais incompreendida de tal Sistema. Elemento essencial dessa incom-preensão mostra-se imediatamente já na indisponibilidade, na insuficiência ou na incapacidade do pensamento científico dos últimos séculos em as-sumir ou preencher os requisitos exigidos para a sua elevação aos pontos de vista mediante os quais Hegel apresenta certos temas e problemas relativos às ciências naturais de seu tempo e à Filosofia especulativa da Natureza enquanto tal. Estado de coisas que, ao permanecer o mesmo desde a época de Hegel, não contribuíra senão para o recrudescimento daquelas objeções e controvérsias.

1. Ver, R. G. COLLINGWOOD, The Idea of Nature. Oxford: Clarendon Press, 1945, p. 121-132, passim. Edição eletrônica disponível em: <http://www.questia.com/PM.qst?a=o&d=3833339>. Versão portuguesa: A Idéia da Natureza. Trad. Frederico Montenegro. Lisboa: Presença, s/d, p. 176-192, passim.

Editorial Revista Eletrônica Estudos HegelianosAno 5, nº9, Dezembro-2008: 5-16

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Tais pontos de vista se justificam em razão de cumprirem funções distintas e precisamente determinadas no concerto da concepção hegeliana da Natureza e, de modo mais específico, da Filosofia da Natureza como sua apresentação sistemática. Exemplo disso mostra-se no fato mesmo de, desde os primeiros escritos filosófico-naturais de Hegel até a concepção madura de sua Filosofia da Natureza, esta se apresentar como uma forma de mediação entre: (1) a concepção teleológica da Natureza (sobretudo a dos antigos, como Platão e Aristóteles) e a mecanicista (característica da ciência moderna); (2) a concepção filosófico-especulativa da Natureza e a resultante das ciências naturais (empíricas ou formais); enfim, (3) a concep-ção filosófico-natural de Schelling e a científico-natural de Goethe. Os dois primeiros momentos parecem estar em jogo já a partir de 1801, quando da publicação da Dissertatio Philosophica de Orbitis Planetarum�, nesta obra, contudo, o que se apresenta de imediato à consideração é justamente o im-passe entre as teses antigas e as modernas, assim como as físico-empíricas e as físico-especulativas; o que não impede certa mediação das mesmas, precisamente quando da tentativa hegeliana de uma determinação das ór-bitas dos planetas de um ponto de vista nem meramente a priori, nem sim-plesmente a posteriori, mas em grande medida já especulativo. Tal é o que se depreende da estrutura tripartite da obra, sendo a primeira parte uma crítica filosófica da mecânica newtoniana, vale dizer, de seus fundamentos matemático-formais3,a segunda a tentativa de uma construção filosófica (de tipo schellinguiano) do sistema solar� e a terceira a tentativa de uma demon-stração matemático-ideal, ou pitagórica, dos intervalos entre os planetas5. Por sua vez, embora já como que se apresente na Fenomenologia do Espírito de 1807, o terceiro momento só se mostrará de modo mais ou menos consis-tente nos adendos orais de Hegel, colhidos pelos seus discípulos e acrescidos à Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio de 1830, conformando assim a segunda parte dessa obra, então dedicada à Filosofia da Natureza, nos quadros da primeira edição da Vollständige Ausgabe (1832-1845), em seu volume VII, primeira seção, publicada em 1842, agora no volume IX da Theorie Werkausgabe�. Assim, esse terceiro momento somente poderá 2. Veja-se, G. W. F. HEGEL, Dissertatio Philosophica de Orbitis Planetarum = Philosophische Erörterung über die Planetenbahnen. Übersetzt, eingeleitet und kommentiert von Wolfgang Neuser. Weinheim: Acta humaniora, 1986. Nas citações a seguir, usar-se-á a paginação do original em latim.3. Veja-se, G. W. F. HEGEL, De Orbitis Planetarum, op. cit., p. �-22.4. Veja-se, G. W. F. HEGEL, De Orbitis Planetarum, op. cit., p. 22-31.5. Veja-se, G. W. F. HEGEL, De Orbitis Planetarum, op. cit., p. 31-32.6. G. W. F. HEGEL, Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse. Zweiter Teil. Die Naturphilosophie. Mit den mündlichen Zusätzen. Auf der Grundlage der Werke von 1832-1845 neu edierte Ausgabe. Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970 [TWA 9]. Versão brasileira: Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830). II. A Filosofia da Natureza. Trad. Paulo Meneses e Pe. José Machado, São Paulo: Loyola, 1995. Texto citado, de ora avante e sempre que possível, pela inicial ‘E’, seguida de ‘1830’, para o ano de sua publicação, ‘II’ para a indicação do presente volume, ‘§’ para os parágrafos correspondentes e, quando for o caso, de ‘A.’, para as Anotações de Hegel, e de ‘Ad.’, para os Adendos orais recolhidos por seus discípulos; quando necessário, indicar-se-á a pagina-ção das edições acima referidas, na ordem aqui apresentadas. Este procedimento também será seguido para as duas outras partes da Enciclopédia (I. A Ciência da Lógica, III. A Filosofia do Espírito). No que tange às passagens citadas, seguiremos nossa própria tradução – isso com a devida marcação [Trad. mmdsilva], em nota, sempre que este for o caso.

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impor-se quando, em função do estabelecimento do conceito da Filosofia da Natureza ou do desdobramento de suas determinações, Hegel tiver de con-statar as insuficiências ou mesmo refutar a concepção schellinguiana desta ciência7, mas defendendo ou buscando desenvolver, em oposição à concep-ção de Newton, a Ciência da Natureza de Goethe8.

Ainda que a concepção hegeliana do Sistema da Ciência em geral e do Sistema da Filosofia da Natureza em particular tenha passado por modi-ficações profundas entre 1801 e 1830, não se pode negar que o caráter especulativo da forma de mediação acima indicada não só tenha se aprofun-dado, mas também assumido e mantido, bem como desenvolvido, certos el-ementos que se apresentam primeiramente em 1801. Tal é o caso da crítica filosófica aí em ação, a qual, segundo a formulação apresentada em 1802, justamente no artigo sobre a essência da crítica filosófica�, não se volta pois para nenhum fenômeno singular nem para a particularidade do sujeito, mas tão somente para a Coisa mesma em sua “forma originária” (Urbild); o que já é o caso em 1801, permanecendo pois em sua intrinsecidade, como que se confundindo com o desenvolvimento da Coisa mesma próprio do El-emento especulativo. Embora equivocada no tangente ao conteúdo empírico ou material, razão pela qual Hegel termine por se distanciar de sua Disser-tatio e do formalismo da construção filosófica que a informa, bem como por aproximar-se mais e mais da chamada Física empírica, chegando mesmo a tomá-la como pressuposto de sua Filosofia da Natureza, o conteúdo ideal da Dissertatio não só se mostrara verdadeiro e consistente, mas também a cada vez mais e mais efetivo. Esse o resultado positivo das influências de Platão, Kepler e Schelling, mas também, e acima de tudo, das de Goethe e Franz Baader10, dos quais Hegel irá reter em especial as noções goethianas da polaridade, da gradação e da metamorfose, perfeitamente identificáveis em sua Filosofia da Natureza, bem como as teses baaderianas da explicação das coisas pelo homem e não do homem pelas coisas e da correspondência entre o sistema da Natureza e o sistema do Espírito.

Infelizmente, a forma de mediação acima aludida, bem como seus momentos constituintes, parece não ter sido ainda investigada de maneira satisfatória, não se apresentando pois como algo constitutivo da economia da Filosofia da Natureza de Hegel e, assim, deixando na obscuridade os avanços decisivos desta ciência no tocante aos problemas então postos à Filosofia da Natureza cientificamente considerada; o que, não obstante a grande variedade dos estudos em torno da elaboração hegeliana da Filoso-

7. Veja-se, especialmente, E., 1830, II, Einleitung, Ad., p. 9-10 (ed. bras., Introdução, p. 11-12).8. E., 1830, II, § 246, Ad., p. 21ss (ed. bras., p. 23ss); § 249, p. 31-34 (ed. bras., p. 33-36); §§ 319-320, p. 239-269 (ed. bras., p., 251-281); § 345, p. 380-394 (ed. bras., p. 398-411).9. G. W. F. HEGEL, Über das Wesen der philosophischen Kritik überhaupt und ihr Verhältniss zum gegenwärtigen Zustand der Philosophie insbesondere. In: G. W. F. HEGEL, Jenaer Schriften (1801-1807). Auf der Grundlage der Werke von 1832-1845 neu edierte Ausgabe. Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970 [TWA 2], p. 171.10. Sobre estes “precursores desconhecidos”, veja-se, F. de GANDT, Introduction [a Les orbites des Planètes]. In: G. W. F. HEGEL, Les orbites des Planètes. Traduction, introduction et notes de F. De Gandt, avec préface de D. Dubarle. Paris: Vrin, 1979, p. 32-38.

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fia da Natureza, em especial a partir dos anos de 1970, ainda permanece uma tarefa a ser realizada. Os dois lugares-chave em que a referida forma de mediação se desenvolve são a Fenomenologia do Espírito de 180711 e a Filosofia da Natureza da Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, de modo mais preciso, as preleções de Hegel em torno da ciência aí tem-atizada, cujos apontamentos, então anotados pelos seus ouvintes, foram incluídos nas edições póstumas da Enciclopédia de 1830. No que tange aos procedimentos em jogo nestes lugares, a primeira obra desenvolve-se nos quadros de um projeto de sistema delineado nos limites de uma concep-ção fenomenológica, na qual as determinações fundamentais, por definição, ainda se circunscrevem ao ponto de vista da consciência como tal; a se-gunda obra, ao contrário, se desdobra no âmbito de uma concepção que se quer puramente especulativa. Em ambos os casos, porém, como Hegel não chegara à completude de seu projeto original, suas teses concernentes à Natureza em geral e à Filosofia da Natureza em particular resultaram seria-mente prejudicadas.

No primeiro caso isso ocorre em função de o lugar próprio das deter-minações referentes à Natureza e à Filosofia da Natureza não ser propria-mente a Fenomenologia do Espírito, fato reconhecido explicitamente pelo próprio Hegel. Isso, em 1830, na Anotação ao § 25 da Enciclopédia, quando afirma que, naquela obra, devido ao fato de o desenvolvimento do conteúdo perfeito (Gehalt) dever avançar por detrás da consciência e na medida em que o conteúdo imperfeito (Inhalt) se relaciona à consciência como o Em-si, a apresentação torna-se mais complicada e o que pertence às partes concre-tas já recai parcialmente nessa introdução que é a Fenomenologia1�. Embora nesta Anotação Hegel não se refira de modo explícito aos temas próprios da Filosofia da Natureza que então comparecem nos quadros da Fenomenolo-gia do Espírito de 1807, e ainda que, na elaboração fenomenológica, esses temas pertençam às figuras formais ou abstratas da consciência, a observa-ção em tela vale igualmente para eles, tal como para os que respeitam às figuras concretas da consciência. Isso porque tanto os problemas relativos às determinações-de-pensamento como Força, Fenômeno, Atração, Efetivi-dade exterior, Orgânico, Inorgânico, etc., quanto os que tangem à Moral, à Ética, à Arte e à Religião, pertenceriam às partes propriamente ditas da Ciência filosófica, de modo respectivo, à Filosofia da Natureza e à Filosofia do Espírito, e não à sua Introdução. Não obstante, as considerações hege-lianas acerca dos conceitos filosófico-naturais na Fenomenologia do Espírito, apesar de valerem para eles o mesmo diagnóstico geral que supostamente

11. G. W. F. HEGEL, Phänomenologie des Geistes (1807), neu hrsg. von Hans-Friedrich Wessels u. Heirinch Clairmont. Hamburg: Meiner, 1988 [edição brasileira: Fenomenologia do Espírito, trad. Paulo Meneses, – 2. Ed. –, São Paulo: Loyola, 2003]. Texto citado de ora avante pelas iniciais ‘PhG’, seguidas de ‘§’ e do número dos respectivos parágrafos (na versão Meneses), e (entre parêntesis) do número da página correspondente na edição original utilizada.12. Ver, G. W. F. HEGEL, Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse. Er-ster Teil. Die Wissenschaft der Logik. Mit den mündlichen Zusätzen. Auf der Grundlage der Werke von 1832-1845 neu edierte Ausgabe. Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Mi-chel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970 [TWA 8], p. 92; versão brasileira: Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830). I. A Ciência da Lógica. Trad. Paulo Meneses e Pe. José Machado, São Paulo: Loyola, 1995, p. 88 (= E., 1830, I, § 25).

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valeria para os conceitos da Filosofia da Natureza da Enciclopédia, por se referirem à experiência da consciência e se dirigirem mais a certas inter-pretações de contemporâneos de Hegel que aos contornos fundamentais próprios das ciências naturais e à elaboração propriamente conceitual dos resultados destas, a apresentação fenomenológica goza de certo privilégio e certa condescendência que jamais fora o caso no que respeita à concepção enciclopédica. No que concerne a esta, os juízos em torno do legado hege-liano via de regra raramente foram favoráveis.

Com efeito, enquanto na Fenomenologia do Espírito considera-se a Natureza de um ponto de vista meramente externo, i.é, não a Natureza em sua estrutura propriamente conceitual mas os modos igualmente exter-nos de sua observação, na Filosofia da Natureza está em jogo o elemento intrínseco das determinações filosófico-naturais, vale dizer, seu caráter de determinações-de-conceito. Tal caráter implica em que, ao contrário das determinações da Fenomenologia, que apreendem a Natureza tão só nos limites de uma efetividade exterior, fenomênica, observável, circunscrita ao seu aparecer à consciência que a observa de fora, as determinações que se apresentam na Filosofia da Natureza não só tem que apreender a Natureza em seu conceito próprio ou em si, mas também em sua realidade, segundo o movimento dialético de tal conceito, por conseguinte, enquanto posta; o que significa, ao fim e ao cabo, que a Natureza mesma também tenha que, neste movimento, retornar dentro-de-si. Isso, contudo, de modo que, em tal retorno, ela se apresente não mais apenas em-si ou posta mas absolu-tamente dentro-de-si; caso em que, à diferença do dentro-de-si puramente lógico (que, enquanto o Conceito em seu começo absoluto, se determina como o imediato indeterminado ou o sem-qualidade e que portanto não é já aí, nem em-si)13, este dentro-de-si agora em jogo na Filosofia da Na-tureza se constitui como o resultando final ou último de todo o movimento do Conceito, em cujo retorno dentro-de-si este mesmo Conceito também se faz, por seu turno, absolutamente para si ou, de modo mais preciso, em si e para si14, perfazendo pois, em seu círculo, o movimento que não é senão seu próprio automovimento. Essas determinações, no entanto, ao não se mostrarem evidentes a um olhar mais afeito aos progressos quanti-tativos de uma consideração meramente fenomênica ou fenomenológica da Natureza, aí apreendida tão só enquanto posta, não poderão de modo algum serem compatíveis com os desenvolvimentos históricos das ciências naturais usuais; acrescente-se a isso o fato de Hegel não desenvolver o primeiro e o terceiro momentos acima indicados e nem mesmo o segundo de forma plena e acabada. Esta situação, no entanto, se justifica em função de que, embora sua concepção do Sistema da Ciência apresentar-se sob a forma de uma

13. E., 1830, I, §§ 86-90. Ver também, G. W. F. HEGEL, Wissenschaft der Logik. Erster Teil: Die objektive Logik. Erster Band: Die Lehre vom Sein (1832), herausgegeben von Friedrich Hoge-mann und Walter Jaeschke. Hamburg: Felix Meiner, 1985 [GW 21], p. 68ss; p. 97ss.14. Ver, G. W. F. HEGEL, Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse. Drit-ter Teil. Die Philosophie des Geistes. Mit den mündlichen Zusätzen. Auf der Grundlage der Wer-ke von 1832-1845 neu edierte Ausgabe. Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970 [TWA 10]; versão brasileira: Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830). III. A Filosofia do Espírito. Trad. Paulo Meneses e Pe. José Machado, São Paulo: Loyola, 1995 (= E., 1830, III, § 574, § 577).

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Enciclopédia, nesta, conforme Hegel mesmo o reconhece, “a ciência não é apresentada no desenvolvimento pormenorizado de sua particularização, mas antes é limitada aos elementos iniciais e aos conceitos fundamentais das ciências particulares”15.

Mas isso, a rigor, do ponto de vista da Filosofia da Natureza de Hegel, não se apresenta como um óbice à compatibilidade desta e das ciências empíricas da Natureza entre si. Não obstante, a esfera na qual uma e outras podem efetuar um verdadeiro diálogo é bastante exígua; essa a esfera em que a Natureza apresenta-se como posta e, mais precisamente, na medida em que é apreendida segundo a forma ou a marcha da evolução1� – conceito que, embora se mostrasse ainda um tanto quanto indeterminado na época de Hegel, já fora determinado por este segundo a estrutura e o alcance que o mesmo só adquiriria muito posteriormente. Enfim, é sobretudo em função de tal esfera que ganha sentido a exigência de acordo com a qual, nas pa-lavras de Hegel, “não apenas tem a Filosofia de estar em concordância com a experiência da natureza, como também o surgir e a formação da Ciência filosófica tem a Física empírica como pressuposto e condição”17 – significan-do isso, da mesma forma, ainda nos quadros de tal exigência, que a Física empírica tenha que se abrir a uma colaboração efetiva com a Filosofia da Natureza:

A Filosofia da Natureza acolhe o material que a Física lhe preparou, a partir da experiência, no ponto até onde a Física o trouxe e o remodela nova-mente sem por no fundamento a experiência como a prova última; a Física tem assim de trabalhar de mãos dadas com a Filosofia, de modo que esta traduza para o conceito o universal de entendimento a ela transmitido; nisto ela mostra de que modo este [universal] brota do conceito como um todo dentro de si mesmo necessário.18

Disso se depreende que a tarefa da Filosofia da Natureza, tal como Hegel a compreende, não é necessariamente algo como certo estabeleci-mento a priori das chamadas condições de possibilidade da experiência ou do conhecimento efetivo da natureza sensível, ou ainda de uma fundamen-tação transcendental ou reflexiva das ciências naturais em geral (tal como se apresentam nos dias de hoje) e, conforme o exemplo de Hegel, da Física em especial. Ao contrário, a Filosofia da Natureza pressupõe o trabalho anterior, fundado na experiência e levado a cabo pela Física e outras ciências empí-ricas ou, mais precisamente, experimentais, como preparatório ao seu pró-prio trabalho; estas, portanto, ao acederem ao “universal de entendimento”, à representação inteligível dos fenômenos ou às leis que os regem, dão por encerrada a sua tarefa de uma apresentação da ordem lógica do mundo, isso, pelo menos na medida em que as mesmas concebem a este apenas como o mundo dos fenômenos ou o mundo empírico como tal. O que, a rigor, nos quadros de uma distinção entre por exemplo o sensível e o inteligível

15. E, 1830, I, § 16. [Trad., mmdsilva].16. E., 1830, II, § 249, Ad., p. 32-33 (ed. bras., p. 35).17. E., 1830, II, § 246, A., p. 15 (ed. bras, p. 17). [Trad., mmdsilva].18. E., 1830, II, § 246, Ad., p. 20 (ed. bras., p. 22). [Trad., mmdsilva].

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ou entre o fenômeno e a essência, ou ainda entre o empírico e o transcen-dental, tem contribuído para que se afirme a tese de uma filosofia da natu-reza como ciência puramente transcendental, que teria por função específica tão só a fundamentação daquelas ciências e mesmo a justificação de uma esfera dos fenômenos em oposição a uma esfera da consciência e a uma esfera propriamente ideal ou absoluta. Ora, essa não parece uma tarefa da Filosofia da Natureza tal como concebida por Hegel, em sentido rigoroso, em sua concepção sistemático-especulativa e, por isso, nos quadros do Idealis-mo absoluto ou, o que é o mesmo, segundo o ponto de vista do Conceito; razão pela qual a tarefa própria daquela ciência não ser senão traduzir para o conceito o “universal de entendimento” produzido e a ela transmitido pela ciência empírica, além de mostrar como este universal “brota do conceito como um todo dentro de si mesmo necessário”19. Desse modo, ao invés de uma relação de subordinação, justamente por operarem em esferas distin-tas, Física e Filosofia da Natureza devem manter uma relação de colabora-ção; na qual está em jogo não meramente uma determinação epistemológica ou transcendental de uma pela outra e sim o devir da Coisa mesma que, na esfera da Natureza posta, de sua posição segundo a “marcha da evolução”, se exterioriza como Natureza e nesta retorna dentro de si como Espírito20.

Essa colaboração, não obstante, apresenta-se prejudicada pelos limi-tes metodológicos que a própria ciência empírica impõe a si mesma. De um lado, enquanto se limita à forma ou à marcha da evolução, ela começa do imperfeito ou do sem-forma e, por meio de explicações e tentativas de de-terminação fundamentalmente quantitativas ou empírico-formais, tem por meta atingir a forma ou a lei universal-formal abstrata (posta a título de hipótese a ser confirmada empiricamente) mediante a qual os fenômenos das mais diversas ordens podem ser apreendidos, classificados e então hie-rarquizados; mas isso tão somente nos quadros de uma fixação de tal forma ou lei segundo a representação que da mesma é possível ao sujeito cognos-cente formar21. De outro lado, a referida colaboração vê-se prejudicada pelo fato de a maneira mediante a qual a ciência empírica procede não satisfazer o Conceito, limitando-se pois, como já referido acima, a uma pura e sim-ples quantificação dos fenômenos e à forma exterior unicamente pela qual os resultados desta quantificação se apresentam ao sujeito cognoscente; a saber, em última instância, a forma da atribuição de predicados ou proprie-dades a um substrato determinado como tal própria da representação, esta que se limita à determinidade isolada e que subsiste de modo indiferente e exterior, deixando de lado pois o Conceito mesmo como algo interior, não se atendo enfim ao “laço espiritual” (segundo Goethe, citado por Hegel) ou ao “íntimo do interior” que seria, tanto para um como para outro, a unidade do universal e do particular, do interior e do exterior, etc22. Assim, mesmo que o procedimento metodológico e a “marcha da evolução” mediante os quais a ciência empírica determina seu universal tenham se tornado na época ho-dierna a forma de racionalidade quase homogênea, extrapolando portanto

19. E., 1830, II,§ 246, Ad., p. 20 (ed bras., p. 22).20. E., 1830, II, § 247 Ad.21. E., 1830, II, § 249, Ad., p. 33 (ed. bras., p. 35).22. E., 1830, II, § 246, Ad., p. 21ss (ed. bras., p. 23ss); § 248.

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inclusive seus limites epistêmicos23, isto não significa que esta seja efetiva-mente necessária e suficiente ou, do ponto de vista propriamente filosófico, a mais adequada e, por conseguinte, a forma de racionalidade preferível em relação às demais, a começar pelo próprio tratamento da Natureza.

Neste sentido, outra forma de apreensão da Natureza que então se apresenta à consideração é justamente a “forma da emanação”, a qual, a cada dia, sobretudo em função dos limites, dos impasses e dos desacertos da “forma da evolução”, tem se mostrado como alternativa não só possível mas também plenamente realizável. Assim, tão plausível como a “forma da evolução” – esta na qual a ciência empírica baseia seus procedimentos metodológicos e sua concepção da Natureza enquanto posta –, mas tam-bém tão insuficiente e mesmo unilateral quanto ela, a “forma da emanação” apresenta-se preferível à mesma precisamente porque, de acordo com He-gel, nela “se tem diante de si então o tipo do organismo consumado; e é esta imagem que tem de ser-aí diante da representação para se entenderem as organizações rudimentares”2�. Ao invés da representação ou do universal abstrato que nela e por ela tem lugar nos quadros da “forma da evolução”, na “forma da emanação” está em jogo o próprio ser-aí das determinações-de-conceito, que então se apresentam como os diversos degraus em cuja marcha a emanação ou a tipificação do organismo consumado se configura; o que permite uma compreensão mais adequada do imperfeito e do sem-forma, sobretudo em função de seu lugar nos quadros de tal configuração limitar-se à esfera das organizações rudimentares; isso porque, segundo Hegel, no que tange a estas, “o que nelas aparece como subalterno, por exemplo órgãos sem nenhuma função, só se torna então claro por meio das organizações superiores, nas quais se reconhece que lugar isso ocupa”25. Ora, mesmo que própria do Oriente ou ainda originária de concepções re-ligiosas e filosóficas em grande medida tributárias de concepções propria-mente orientais, incluindo-se o modelo da Physis grega, a “forma da ema-nação” apresenta-se com tanto rigor quanto ou mais rigor que a “forma da evolução”, como por exemplo no caso, aproximado, da Teoria da Autopoiésis e da Teoria da Deriva desenvolvidas por Humberto Maturana e Francisco Va-rela26. O que, não obstante, talvez justamente por esse rigor, faz com que a “forma da emanação” e a “forma da evolução” sejam confundidas, apresen-tando-se pois numa forma sincrética ou híbrida, como ocorre, por exemplo, na chamada Teoria de Sistemas, mais precisamente, na Teoria sistêmica da Auto-organização27.

23. Sobre este ponto, veja-se, V. HÖSLE, Sobre a impossibilidade de uma fundamentação natu-ralista da ética. In: STEIN, E.; DE BONI L. A. (Org.). Dialética e Liberdade. Petrópolis: Vozes; Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1993, p. 588-609, passim.24. E., 1830, II, § 249, Ad., p. 33 (ed. bras., p. 35). [Trad., mmdsilva].25. E., 1830, II, § 249, Ad., p. 33 (ed. bras., p. 35). [Trad., mmdsilva].26. Ver, H. MATURANA, A Ontologia da realidade. Organização de Cristina Magro, Miriam Gra-ciano e Nelson Vaz. Belo Horizonte: UFMG, 1997, passim, sobretudo, p. 31ss., p. 133ss. E ainda: H. MATURANA, F. VARELA, A árvore do conhecimento, trad. Jonas Pereira dos Santos. Campinas: Psy, 1995, passim.27. Veja-se, a respeito, C. CIRNE-LIMA; L. ROHDEN (Org.), Dialética e auto-organização. São Leopoldo: UNISINOS, 2003, passim.

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No primeiro caso, ainda que os autores referidos aí não tenham ou não pareçam ter lido expressamente Hegel ou a tradição na qual a “forma da emanação” se encerra, pode-se dizer que neles a “forma da evolução” foi reduzida à ou abarcada pela “forma da emanação”, concebida como deriva natural; e isso no sentido preciso em que o filósofo de Berlim considera tal emanação, vale dizer, como resultando na “abstenção de toda forma” ou, o que é o mesmo, segundo Maturana e Varela, como prescindindo de “direcio-nalidade externa” ou desígnio28. No segundo caso, ao contrário, a “forma da emanação” se apresenta subordinada à “forma da evolução”, algo recorrente na história das ciências modernas, sobretudo nos quadros da Teoria da Evo-lução (temporal) pós-darwiniana em geral; desse modo, embora os sistemas auto-organizados concebidos mediante a Teoria de Sistemas apresentem os mesmos elementos essenciais que as teorias fundadas mais estritamente na “forma da emanação”, sua subordinação à “forma da evolução” implica em que, em três desses elementos essenciais, prevaleçam as características desta última. Esses elementos são, na verdade, justamente aqueles em que, de certo modo, tal subordinação termina por anular a emanação ou a deriva, a saber: (1) a seletividade, que implica em formatividade e direcionalidade; (2) a replicação e a reprodução, cuja função é a capacidade do indivíduo fazer cópias de si mesmo, em vista da manutenção da espécie, em face da seleção natural, essa que, como tal, aqui direciona o processo; (3) o en-gendramento de novas formas de organização, especialmente em “sistemas dinâmicos dissipativos fora de seu ponto de equilíbrio”, os quais então po-deriam se dissipar e desaparecer ou “como que ‘escolher’ e engendrar uma nova forma de auto-organização”29. Enfim, enquanto no primeiro caso, tal como em Aristóteles, Goethe e Hegel, a Matemática cede lugar à Biologia, no segundo é esta que termina por sucumbir àquela.

Assim, embora questionável pelas concepções que se fundam es-tritamente na “forma da evolução” (moderna ou contemporânea), a “for-ma da emanação” mantém-se não só em sua atualidade mas também em sua efetividade; o mesmo ocorrendo com a Filosofia da Natureza de Hegel, seja estando na origem das teorias que de algum modo retomam a “forma da emanação”, embora em alguns casos subordinada à “forma da evolu-ção”, seja se conformando como um elo dos desenvolvimentos que resultam nessa retomada. Como já referido no início deste trabalho, o primeiro a reconhecer isso, ainda que em outro registro, foi justamente o historiador R. G. Collingwood, em cuja Idéia da Natureza mostrara em que medida a concepção hegeliana se constitui como a transição ou o ponto de passa-gem da concepção moderna – meramente mecanicista – à contemporânea, fundamentalmente orgânica, da Natureza30. Vale dizer, de uma concepção fundada basicamente na Física empírica moderna, que então já se apresen-tava um tanto quanto degenerada nos fins do século XVIII e nos inícios do

28. Confronte-se E., 1830, II, § 249 Ad., p. 33 (ed. bras., p. 35); H. MATURANA, F. VARELA, A árvore do conhecimento, op. cit., p. 1�8-1�9.29. Veja-se, a respeito, C. CIRNE-LIMA, Causalidade e auto-organização. In: C. CIRNE-LIMA; L. ROHDEN (Org.), Dialética e auto-organização., op. cit., p. 31-35.30. Ver, R. G. COLLINGWOOD, The Idea of Nature , op. cit., p. 121-132ss (ed. port., p. 176-192ss).

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século XIX, a uma concepção fundada inicialmente na Biologia (como uma espécie de retomada empírica e temporalmente determinada do conceito grego de Physis) e, posteriormente, de modo mais preciso, na Cosmologia – tal como esta se dá a conhecer nos dias de hoje, em especial no que tange ao caráter próprio de uma ciência empírica do Universo físico ou do Cosmos enquanto tal. Isso também, ao fim e ao cabo, por mais improvável que possa parecer à primeira vista, como que pode ser considerado a partir dos quadros da crítica hegeliana às unilateralidades e insuficiências das formas da emanação e da evolução (sobretudo em razão de ambas põem tão só um fim indeterminado) nos limites da Natureza posta, em que pese o caráter superior da primeira sobre a segunda no que tange ao aspecto qualitativo e o desta sobre aquela no concernente ao aspecto quantitativo, e a tentativa de uma mediação especulativa das mesmas segundo o desenvolvimento das determinações-de-conceito próprias da Filosofia especulativa da Natureza. O que, não obstante, implica numa distinção radical entre o intento hegeliano – que tem por objetivo a recondução da Natureza dentro de si, primeiramen-te como Vida ou Vivente e enfim como Espírito ou como a verdadeira efeti-vidade da Idéia – e o intento das outras formas de pensamento, científicas e filosóficas ou não, que, sobretudo nos dias atuais, se limita a considerar a Natureza tão só enquanto posta ou no máximo como em si.

Isto significa que as determinações fundamentais da Natureza, por conseguinte, a serem desenvolvidas pela Filosofia especulativa da Natureza, são as do ser-posto (Gesetztsein), do ser-em-si (Ansichsein) e do ser-den-tro-de-si (Insichsein). Contudo, na forma presente da Filosofia da Natureza de Hegel, a qual, na economia do Sistema da Ciência, se põe como o se-gundo momento do primeiro silogismo da Filosofia (que tem a forma L-N-E)31, apenas a primeira determinação é considerada de modo explícito; por conseguinte, mostrando-se “como a Idéia na forma do ser-outro”, no caso, a Idéia “como o negativo dela mesma ou exterior a si”32. De acordo com Hegel, nesse primeiro silogismo, a Natureza não é exterior apenas relati-vamente ante a Idéia e ante a existência subjetiva da mesma, o Espírito, mas a exterioridade constitui a determinação na qual ela está posta como Natureza ou, mais propriamente, como Natureza posta; com isso, a Natu-reza não se apresenta primeiramente senão como um resultado, vale dizer, o primeiro resultado do “pôr fora de si” pela Idéia desta outra coisa que, no interior da primeira, dela mesma e nela mesma se diferencia, mas que, da mesma forma, agora se apresentando como termo-médio, tem de ser por ela mesma reassumida dentro de si para que tal Idéia seja então subjetivi-dade e Espírito33. Neste sentido, partindo desse primeiro resultado que é a Natureza posta, assim como procedendo a este caminho de retorno da Idéia a si mesma, suprassumindo pois a separação entre Natureza e Espírito ca-racterística do primeiro silogismo da Filosofia, mas permanecendo aqui na esfera da Filosofia da Natureza, pode-se então aceder ao que Hegel designa a Natureza em si, essa que se constitui propriamente como Vida e Vivente,

31. E., 1830, III, § 575. 32. E., 1830, II, § 247, Caput, p. 24 (ed. bras., p. 26).33. E., 1830, II, § 247, Ad, p. 24 (ed. bras., p. 26).

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conformando-se portanto, agora ao nível do segundo silogismo da Filosofia (que tem a forma N-E-L), como o segundo resultado do “pôr fora de si” da Idéia que, aqui, não é senão o Conceito exposto (der ausgelegte Begriff)3�. Essa a razão pela qual, na perspectiva hegeliana e na medida em que “o conceito quer romper a casca da exterioridade e devir para si”35, o grau da Natureza em si ser propriamente o primeiro momento do ir para dentro de si da Natureza:

A Natureza é em si um todo vivo; o movimento pela marcha dos seus de-graus é precisamente isto: que a Idéia se ponha como aquilo que ela em si é, ou, o que é o mesmo, que, de sua imediatez e exterioridade, que é a morte, ela vá dentro de si, para primeiro ser como Vivente; mas, além disso, suprassuma também esta determinidade na qual ela é somente Vida e se desenvolva à existência do Espírito, que é a verdade, a finalidade da Natureza e a verdadeira efetividade da Idéia.36

Embora esta passagem possa ser interpretada nos limites estritos do primeiro silogismo da Filosofia (em cuja forma, L-N-E, a Natureza se apre-senta como o segundo momento), o que de fato tem sido a regra desde as primeiras redações da Filosofia da Natureza37, há que se dizer que essa in-terpretação, mesmo correta nos limites a que se propõe, não alcança o que está em jogo na determinação da Natureza em si, sendo essa pois a causa das mais diversas confusões e injustiças às quais a Filosofia da Natureza de Hegel permanece exposta até aos dias de hoje. Para além de sua interpre-tação meramente linear, na qual, a rigor, a Vida apareceria apenas como o terceiro momento da Natureza posta, ou como esta em geral enquanto o segundo momento do Sistema da Ciência em seu ser-aí, a passagem aci-ma citada exige ser compreendida na totalidade de suas significações, nos quadros da qual a Natureza em si tem de ser determinada como um todo vivo; portanto, não apenas como o momento da vida ou como um todo vivo in abstracto, mas como a atividade mesma do próprio Conceito em seu de-vir para si, vale dizer, em sua exposição concreta não mais nos limites do fenômeno e da experiência meramente sensível próprios à Natureza posta, mas no âmbito de seu desenvolvimento efetivo, para dentro de si, de seu caráter em si, o que só pode ser o caso nos quadros do segundo silogismo da Filosofia, o silogismo da Reflexão, em cuja forma, N-E-L, a Natureza se apresenta como o primeiro momento38. O que implica no fato da determina-ção da Natureza como dentro de si também não poder limitar-se ao existir da Natureza como o que subjaz no interior da existência do Espírito em geral ou na existência do Espírito como Natureza ou, ainda, como segunda Natureza em particular, pelo menos do modo como, por exemplo, as últi-mas se apresentam na Eticidade, respectiva e expressamente, no § 513 da Filosofia do Espírito da Enciclopédia de 183039 e nos §§ 4 e 151 da Filosofia

34. E., 1830, II, § 251, Ad, p. 37 (ed. bras., p. 39).35. E., 1830, II, § 251, Ad, p. 37 (ed. bras., p. 39). [Trad., mmdsilva].36. E., 1830, II, § 251, Caput, p. 36 (ed. bras., p. 38). [Trad., mmdsilva].37. No caso, a de 1808 (e anos seguintes), contida na Enciclopédia da Propedêutica filosófica, e a 1817, contida na primeira edição da Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio.38. E., 1830, III, § 576.39. E., 1830, III, § 513.

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do Direito�0. Aqui, considerando a forma presente do Sistema da Ciência segundo suas realizações literárias mais conformes ao intento de Hegel, tal como este Sistema se apresenta portanto nas versões enciclopédicas de 1817 e 1830, por conseguinte reduzido à forma linear do primeiro silogismo da Filosofia, a determinação da Natureza dentro de si só pode se mostrar subordinada; quando, ao contrário, o que está em jogo para ela é sobretudo sua liberação absoluta, algo possível e efetivamente realizável tão somente nos quadros do terceiro silogismo da Filosofia, o silogismo da Necessidade, em cuja forma, E-L-N, a Natureza se apresenta como o terceiro momento�1. Isto significa, por fim, que o programa hegeliano de uma Filosofia especula-tiva da Natureza não se reduz à exposição meramente formal da Natureza como exterioridade ou enquanto posta, nem muito menos na tentativa de uma mediação dessa exposição com o ponto de vista da Física empírica de sua época, mas no conjunto mesmo de suas determinações.

Assim, ao fim e ao cabo, a Filosofia da Natureza de Hegel, na me-dida em que considera a Natureza enquanto posta, pretende sim fazer a mediação e ir além das ciências empíricas de seu tempo, mas deixando a estas o seu lugar próprio no concerto das ciências da Natureza; o que não significa um envelhecimento da Filosofia hegeliana da Natureza e sim em seu amadurecimento, pois implica numa abertura crescente da mesma para com os progressos das ciências empíricas e, de modo evidente, em seu des-prendimento em relação ao caráter contingente destas. Do mesmo modo, a determinação da Natureza em si, de certo modo já antecipada na chamada “forma da emanação” exige o reconhecimento e a retomada não só de uma concepção orgânica da Natureza, ou da Natureza como capaz de auto-orga-nização, no que tange à determinação empírica dos organismos nela presen-tes, mas sobretudo de sua totalidade mesma como Vivente; o que, a rigor, pelo menos no concernente às suas linhas gerais, consiste fundamentalmen-te na retomada e no desenvolvimento da concepção platônica do Kósmos e da concepção aristotélica da Physis – isso, não apenas a título de diálogo e de mediação com a concepção moderna, mas em função da consecução de um programa rigorosamente especulativo ou segundo o ponto de vista do Conceito. Do que resulta, por conseguinte, a determinação da Natureza dentro de si, que então deveria se mostrar como o resultado último da Fi-losofia da Natureza nos quadros de uma tríplice determinação da Natureza enquanto momento essencial do devir para si do Conceito.

40. G. W. F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrechts und Staatswis-senschaft im Grundrisse, mit Hegels eigenhändigen Notizen und den mündlichen Zusätzen. Auf der Grundlage der Werke von 1832-1845 neu edierte Ausgabe. Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970 [TWA 7], p. 46, p. 301.41. E., 1830, III, § 577.

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REH, NOTA SOBRE O NÚMERO 9

Manuel Moreira da SilvaEditor REH

Neste número 9 da Revista Eletrônica Estudos Hegelianos – REH – publicam-se seis artigos de estudiosos nacionais e estrangeiros em torno de aspectos centrais do pensamento de Hegel, especialmente da Filosofia do Direito e da Fenomenologia do Espírito. O primeiro artigo, de Rossella Bonito Oliva (Università degli Studi di Napoli “L’Orientale” – Itália), discute o problema da vontade na Filosofia do Direito; já os dois seguintes, um de Wolfgang Neuser (Universität Kaiserslautern) e outro de Konrad Utz (UFC), discutem aspectos fundamentais da Filosofia da Natureza na Fenomenologia do Espírito. O quarto e o quinto artigos, respectivamente de Sônia Maria Schio (UCS) e de Marcos Lutz Müller (UNICAMP), discutem por seu turno dois temas essenciais da Fenomenologia do Espírito, a saber: a dor e o so-frimento e a liberdade absoluta entre a crítica à representação e o terror. O último artigo, de Pedro Novelli (UNESP/Botucatu), retornando à Filosofia do Direito, discute a crítica de Hegel ao conceito de lei em Kant. Enfim, na abertura, discute-se a atualidade da Filosofia da Natureza de Hegel.

Em seu artigo, tomando como chave de leitura o § 7 da Filosofia do Direito, Rossella Bonito explicita os principais aspectos da vontade, então apresentada como o conceito central na efetivação do mundo do espírito como o mundo da liberdade realizada. No que tange a essa efetivação, a autora busca determinar justamente o contingente e o finito como o espaço no qual a consciência se move na relação ao âmbito objetivo do Direito, i.é, como o espaço a partir do qual, em meio à contingência, a comunidade ética se efetiva na forma do Estado. Neste mesmo sentido, mas em outro regis-tro, no artigo que fecha esse número da REH, Pedro Novelli tenta mostrar a centralidade da figura do sujeito enquanto aquilo que reúne Kant e Hegel no que diz respeito à determinação da realidade, precisando no entanto o ponto em que estes se separam, vale dizer: “na medida em que o sujeito kantiano reconhece o objeto e, diferentemente de Hegel, não se reconhece aí”. O que, para o autor, não se aplica apenas à questão da liberdade, mas também se estende à lei; caso em que, mais do que uma referência formal, a lei se apresenta enquanto determinação histórica e, assim, permite que a liberdade atinja o status necessário de realidade entre os homens.

Considerando o aspecto fenomenológico da autoconsciência, nos quadros de uma sociedade que valoriza o prazer, o conforto, a diversão, Sônia Maria Schio enfatiza o estranhamento da afirmação de que há uma concepção na qual o espírito precisa realizar um esforço doloroso para su-perar a negatividade que o envolve. A autora investiga o processo dialético da dor e do desejo no âmbito da superação das contradições com as quais a consciência se depara em seu périplo ao Saber absoluto, i.é, no âmbito da experiência de um empenho “sofrido” ou “desejante” que, não obstante, lhe

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permite prosseguir rumo ao Espírito Absoluto. Ainda considerando o aspecto fenomenológico da autoconsciência, mas agora precisamente nos limites da figura do espírito intitulada “A Liberdade Absoluta e o Terror”, Marcos Lutz Müller discute a determinação fenomenológica da liberdade absoluta, tal como exposta no capítulo que leva esse título na Fenomenologia do Espírito de Hegel. O autor apresenta a origem filosófica da Revolução Francesa no pensamento da Aufklärung e as condições de emergência da liberdade abso-luta, tematizando ainda o “mal-entendido” jacobino da “volonté générale” e a autoconsciência da liberdade absoluta como crítica a toda representação po-lítica, bem como a resolução hegeliana da contradição da liberdade absoluta e o duplo registro da sua suspensão. Vale dizer: o registro fenomenológico da superação do processo revolucionário numa reorganização institucional e política do mundo pós-revolucionário no quadro do Estado constitucional e o registro da gênese lógico-fenomenológica de um novo patamar do espírito, “o espírito certo de si mesmo”.

Nos textos relativos à Filosofia da Natureza, Wolfgang Neuser e Kon-rad Utz discutem o terceiro capítulo da Fenomenologia do Espírito, intitulado “Força e Entendimento”: o primeiro, a concepção de matéria aí em jogo; o segundo, o argumento hegeliano contra o fisicismo. Em seu artigo, Neuser descreve as linhas gerais da concepção kantiana e da concepção schellin-guiana da matéria enquanto pressupostos da concepção hegeliana, quando então desenvolve algumas observações sobre a estrutura do capítulo acima citado; por seu turno, Konrad Utz tenciona identificar um argumento contra a pretensão segundo a qual tudo que existe ou acontece pode ser completa-mente descrito pelo vocabulário da física. O autor propõe-se mostrar que o vocabulário da física não é internamente explicável, que ele não se constitui de termos basais e de combinações desses, mas contém termos não-basais, que não podem ser, neste vocabulário, reduzidos a termos basais; o que significa, ao fim e ao cabo, que o vocabulário da física é explanatoriamente insuficiente, não-autônomo. Em outro registro, enfim, já na abertura deste número 9, mostra-se que, embora controversa sob diversos pontos de vista, a Filosofia da Natureza de Hegel apresenta-se não apenas atual, mas tam-bém compatível com as ciências naturais.

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Circolo e spirale. Il cuneo del contingente della filosofia sistematica

Rossella Bonito Oliva1

RESUMO: O artigo discute o problema da vontade na Filosofia do Direito de Hegel. Tomando como chave de leitura justamente o § 7 das Grundlinien der Philosophie des Rechts, a autora explicita os principais aspectos da vontade, que então se apresenta como o conceito central na efetivação do mundo do espírito ou novo mundo como o mundo da liberdade realizada. Trata-se mais especificamente de uma determinação do contingente e do finito como o espaço no qual a consciência – e sobretudo a consciência moral – se move na relação ao âmbito objetivo do Direito; em outros termos, como o espaço a partir do qual, em meio ao arbítrio, à acidentali-dade e ao erro, a comunidade ética se efetiva na forma do Estado. Daí as metáforas do círculo e da espiral enquanto formas de expressão mais adequada da articulação entre as esferas do humano e do divino aí em jogo.

Palavras-chave: Hegel, Vontade, Liberdade, Razão, Direito, Estado

ABSTRACT: The article discusses the problem of will in the Philosophy of Law of Hegel. Taking as key to reading just the § 7 of Grundlinien der Philosophie des Rechts, the author explains the main aspects of will, then presents itself as the central concept in effectuation of the world of spirit or new world as the world of freedom held. It provides a more specifically of a determi-nation of the contingent and the finite as space in which the consciousness – and especially the conscience – moves in the relationship to objective framework of the law, in other terms, such as space from which, in the midst of free will, accidentality and the error, the community policy is effective as of the state. Thence the metaphors outside of the circle and spiral as forms of expression the most proper to articulation between the human and the divine at stake.

Keywords: Hegel, Will, Freedom, Reason, Law, State

I. Gravità e libertà. Un problema di transiti

Nel paragrafo 7 dei Lineamenti di filosofia del diritto Hegel afferma che “la libertà (...) costituisce la gravità della volontà, come la gravità cos-tituisce la sostanzialità del corpo”. In questa affermazione è racchiusa la consapevolezza hegeliana dell’eccedenza dell’uomo rispetto ad ogni altro vivente, teso tra due forze, l’una corporea, l’altra ideale che lo lasciano per così dire continuamente sbilanciato fin quando non si dischiude quel non-più-naturale che fa del corpo umano il medio dell’oggettivazione della libertà come forza gravitazionale della volontà. Due gravità nel passaggio del punto di applicazione del vettore della forza che attira e determina il movimento di due totalità non coincidenti, in cui la gravità come sostanzialità del corpo nella determinazione della volontà viene investito dall’elemento costituti-vo della libertà. L’itinerario dell’identificazione dell’umano è dunque giocato nella complessità di questo movimento, che non è una purificazione o una sublimazione, ma nel suo dipanarsi manifesta la complessità e la dinamicità della realtà spirituale: totalità di momenti diversamente dislocati e altrimen-

1. Professora/pesquisadora vinculada a Università degli Studi di Napoli “L’Orientale” – Itália, membro da Hegels-Vereinigung desde 1999. Texto submetido em outubro de 2008 e aprovado para publicação em janeiro de 2009.

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ti funzionanti in configurazioni diversificate. E’ evidente che la gravità della volontà è volontà di gravità, di peso specifico come consistenza e materia di una libertà che nel suo formalismo lascerebbe la complessità interiore nella sua opacità e l’apertura della relazione priva di orizzonte.

E’ questo l’inveramento dell’umano nello spirito soggettivo, in cui la negazione agisce dall’interno come liberazione dalla gravità della corporeità e di tutto quanto resiste al pieno dispiegamento della potenza dello spirito dall’anima, alla coscienza, alla realtà spirituale. Se le figure sono destinate a trapassare l’una nell’altra e i momenti a combinarsi diversamente nelle prospettive diversificate dei procedimenti scientifici, i modi della conoscenza modulano forme di determinazione in cui il soggettivo si fa realtà effettu-ale. Quanto compare, perciò, articolato nell’antropologia, fenomenologia e psicologia è l’unitaria realtà spirituale considerata nella sua processualità, a partire dalla considerazione dell’uomo nella sua costituzione psicofisica, nel suo aprirsi al mondo come coscienza fino al suo darsi realtà come spirito pensante e volente. L’inconscio non si traduce del tutto nella coscienza e la coscienza non si risolve senza residui nell’Io che è Noi della realtà spiri-tuale. L’anima è già realtà spirituale, lo spirito conserva zone d’inconscio, in una circolarità in cui la ripetizione è sempre un differenziarsi dei momenti nell’unico movimento della manifestazione e della autoconoscenza della re-altà spirituale. Da questo punto di vista la filosofia dello spirito soggettivo disegna una storia dell’autocoscienza pensata nel suo movimento di inve-ramento immanente alla oggettivazione dello spirito, una storia di eventi interpretata da prospettive diverse, ma sempre carica di tutti i momenti: né una successione, né tanto meno un’idealizzazione.

In definitiva se la filosofia riconfigura i propri contenuti ripensando le formulazioni delle scienze considerate nella loro complementarietà e genesi, ne valuta anche la capacità di determinazione, il potere che quel sapere ha sul determinarsi del poter essere tutto del mondo spirituale. La filosofia è la verità come “vita che non passa”, principio di stabilizzazione dell’infinita ricchezza e tensione dello spirituale, che nella sua vitalità immediata, come ogni vivente, cerca la stasi e la quiete, ma è permeato da pulsioni prive di uno specifico oggetto di investimento. La filosofia allora inverte il telos della vita, ma lo assume in una strategia che sposta continuamente il confine tra interno e esterno fino a giungere alla verità come sapere delle oggettivazio-ni, ad un mondo come mondo dello spirito pensato concettualmente. Questo movimento si produce solo nel pieno dispiegamento e nella dialettica ricon-figurazione dell’intero nell’immanente gioco dialettico tra i momenti: sog-gettivazione, in cui il dato è fatto proprio, il particolare riconciliato nella sua universalità, l’ideale concretizzato nella sua manifestazione. L’oggettivazione del soggettivo, il rovesciarsi di ogni determinazione prodotta dalla rifles-sione - dalla scienza ancora imbrigliata nella opposizione di soggettivo e oggettivo - nella determinazione riflettente come momento destinato a tra-passare nel concetto attraverso il movimento compiuto della negazione, in cui il nuovo equilibrio si è prodotto nel bilanciamento delle determinazio-ni che dà luogo a nuove realtà. In questa processualità la soggettivazione

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è l’autodeterminazione della soggettività, in un movimento di liberazione dalla fissità di ogni relazione, in cui il soggettivo introduce continuamente l’intervallo e lo scarto anche lì dove appare la consonanza tra Io e noi, tra l’opera di tutti e di ciascuno. La soggettivazione è, dunque, un movimento circolare, in cui libertà soggettiva e libertà oggettiva si riversano e procedo-no l’una nell’altra, senza per questo sovrapporsi l’una all’altra.

Soggettivo e oggettivo, interno ed esterno allora non sono dati, ma risultato dell’esperienza, in cui a giocare è l’articolarsi della relazione piut-tosto che la posizione reciproca dei momenti. Ogni soggettivazione è anche assoggettamneto ad un comune interiorizzato, in cui il corpo si fa strumen-to dell’anima all’interno di un universo simbolico - seconda natura – per cui l’espressione compiuta del corpo umano è insieme esteriorizzazione di un’interiorizzazione. Il determinarsi a realtà effettiva dell’anima sul doppio registro della memoria inconscia e della ricettività acquista la sua propria determinazione e manifestazione soltanto a partire dalla relazione che la coscienza istituisce con la sua interiorità, illuminando e facendosi centro di questa opaca e pulsante ricchezza interiore. D’altra parte il Bewust-sein è intrinsecamente carico di questa interiorità che giunge ad espressione nell’esperienza della realtà esterna, lì dove si costituisce come relazione ne-gativa individuandosi attraverso i contenuti della propria determinazione.

La realizzazione della potenza più alta dello spirito, perciò, non azzera la natura, in quanto essenziale allo spirito, né arresta il movimento del nega-tivo come radice della sua emancipazione dall’esteriore ordine del naturale. Nel reiterarsi della relazione si alimenta il divenire, la sua intima storicità che ha nella coscienza individuale, all’interno delle potenze di un mondo, il punto tragicamente ineludibile. Che questa sia solo l’apparenza in cui si dispiega l’essenza più propria dello spirituale non toglie che la plasticità e l’elasticità dello spirito lascino aperto un intervallo, decisivo per il movimento della so-ggettivazione che si costituisce nella relazione. E’ il luogo della resistenza e dell’oscurità in cui agiscono ad un tempo l’intrinseco dinamismo e la trama transindividuale per cui ogni esistenza si individua attraverso l’esperienza della frattura di ogni continuità lineare.

Permane nel sistema hegeliano una spina kantiana, che Hegel ri-conosce in quanto Kant si è spinto a concepire “lo spirito come coscienza, fino alla fenomenologia, non intuendone il necessario sbocco nella filosofia dello spirito”2. Perciò il momento fenomenologico, il manifestarsi dello spirito nella scissione e nella relazione delle figure di coscienza e autocoscienza, permane anche nel sistema enciclopedico, là dove Hegel insiste sulla sog-gettivazione a partire dall’articolazione idea-natura-spirito, in cui il momento dell’apparenza o dell’apparire in altro non è solo passaggio ininfluente. Il momento successivo, la psicologia ha a proprio contenuto quanto la scienza dell’esperienza della coscienza, il sapere di sé, ha prodotto in termini di co-

2. G. W. F. HEGEL, Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften, in Werke 20 voll. A cura di E. Moldenhauer e K. M. Michel, Surkamp Frankfurt a.M. 1971, Bd.IX- X, § 415 (D’ora in avanti cit. con Enc. seguito dal numero del paragrafo).

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noscenza, da cui scaturisce la peculiare oggettivazione della realtà plurale e dinamica dello spirito vivente.

Prima come Bewust-sein e poi come Gewissen, la coscienza però mantiene una posizione strategica nell’articolazione di soggettivo e ogget-tivo, scaturigine della ragione autoconsapevole e oggettivata nelle figure di un mondo. Snodo della manifestazione in cui si dischiude l’”essenza dello spirito” in quanto libertà: la potenza del negativo è poter astrarre da ogni cosa, sopportare il “dolore infinito” mantenendosi “affermativo in questa ne-gatività”3.

Il soggettivo stesso è il terreno più proprio, il venire alla presenza dello spirito, a partire dalla scissione che istituisce la modalità specifica della relazione nello spirito: non solo negativo della natura - non-più-naturale - ma in primo luogo messa a distanza del portato dell’esperienza, ostina-to ripiegarsi su di sé, reiterata affermazione del Sé come centro, lì dove in senso proprio è superata ogni immediatezza soggettiva (la datità psico-fisica) e oggettiva (i contenuti dell’esperienza). La scissione si risolve nel lavoro e nel riconoscimento reciproco, in cui emerge la stabile autoreferen-zialità dell’autocoscienza, un Io che è Noi, non più ostinatamente esclusivo ed escludente, ma concretamente universale nell’articolazione di un mon-do spirituale come terreno dialettico di identità e differenza. Quest’operare sull’immediatezza dal lato soggettivo e dal lato oggettivo, infatti, produce il passaggio dall’identità astratta al concreto, in quanto l’astratto è il non an-cora riconosciuto e compiuto dal movimento della coscienza nell’esperienza. Si tratta dei passaggi in cui all’ostinata riproposizione del Sé si oppone il movimento della vita come desiderio di appagamento che riporta alla luce non più la molteplicità esterna, quanto la plurivocità interna. E’ lo stesso movimento della riflessione che disvela un’interiorità complessa e fluida. Nel riemergere della natura vivente come natura propria la mediazione non risulterà da una rimozione, ma da un riposizionamento delle parti o meglio dall’individuazione di un dispositivo che scioglie nella relazione l’opposizione reciproca tra Sé e Io, tra Io e mondo, aprendo un nuovo fronte nel movi-mento dell’esperienza. L’immediato darsi di un soggettivo in relazione a un oggettivo ha il suo terreno e la sua condizione di possibilità nell’unità del Selbst, gestito e sostenuto da un Sein determinatosi nella trama continua di questa ricchezza. La ragione è “l’autocoscienza, ossia la certezza che le sue determinazioni sono tanto oggettive - determinazioni dell’essenza delle cose - quanto suoi propri pensieri”, ossia la verità come sapere. In tale contesto la ragione è la verità del contrasto - la trama sotterranea - che può venire alla luce attraverso il cammino della coscienza verso il sapere. E’ lì che la ragione conquista il suo elemento, il nous “questo elemento privo di contrasto”, là dove “il pensiero è quest’uno e medesimo centro, nel quale, come nella loro verità, tornano i contrasti”�.

La prima configurazione fenomenologica della ragione definisce,

3. Enc. § 382.�. Ibidem, § 467.

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nella loro distinzione, totalità che in maniera ancora astratta anticipano quanto alla fine trova il centro da cui partono e tornano le opposizioni, da cui prende corpo quell’uno e medesimo centro, che non rimane punto indiffe-rente e statico, in quanto risultato di successivi spostamenti e riconversioni della relazione dell’Io al mondo interno ed esterno. Se però l’apparire stesso implica il porsi della scissione e la sua risoluzione nel sapere apparente della coscienza, questo momento è necessario perchè il centro sia attivo come soggetto di questo movimento di negazione, il cui esito è da un lato la sog-gettivazione e dall’altro il mondo della libertà realizzata, la seconda natura come mondo spirituale5. All’inizio dello spirito soggettivo si dà l’astratto poter essere tutto dello spirito - l’anima - come prefigurazione della scena in cui la coscienza si muoverà, in primo luogo nel senso dell’ostinatezza reiterata nel suo riferimento a un oggettivo, poi nella relazione attraverso la quale quella originaria sfera indeterminata, perchè ancora inarticolata, si riempie e si manifesta nelle sue espressioni. Per approdare infine nel rassicurante e familiare profilo della totalità, della coerenza della sfera dello spirituale, ter-reno ad un tempo dell’esperienza e della legittimazione della soggettività. In questo nodo emerge concretamente lo spirito soggettivo teoretico e pratico, in cui “la volontà è un modo particolare di esser del pensiero: il pensiero in quanto si traduce in esistenza, in quanto impulso a darsi esistenza”6. In tal senso teoretico e pratico si saldano nella volontà che è l’impulso del pen-siero a darsi esistenza, non una quieta oggettivazione, nella misura in cui l’impulso riceve soddisfazione e appagamento - la concreta esistenza dello spirito - attraverso un medio plastico e elastico, ma carico della complessità dialettica della soggettivazione.

II. Le ragioni della volontà

Il mondo spirituale come nuovo mondo è l’oggetto della filosofia del diritto hegeliana, trattazione scientifica - il mondo della libertà realizzata - oltre una considerazione storica delle oggettivazioni dello spirito, ma anche al di qua dell’articolazione logica, di cui contenuto è la struttura, il profilo, l’ombra più che la realtà nel suo snodarsi storico. Questo processo di deter-minazione sarà necessariamente dialettico, là dove la speculazione coglie nella realtà concreta il movimento in cui dall’essenza si dischiude il concetto dello spirito, in cui centrale è la volontà come impulso a darsi esistenza in quanto scaturigine della realtà spirituale.

Se, dice Hegel, il processo dialettico nell’essere è “passare in altro”, nella sfera dell’essenza esso è “l’apparire in altro”, mentre il movimento del concetto è “sviluppo”7. Tra l’apparire in altro e il movimento dello sviluppo si dà l’inverarsi della libertà nella necessità e della necessità nella libertà, nella misura in cui l’altro del passare e dell’apparire è risolto nell’unitario movimento dello sviluppo: momento, in cui la volontà esperisce lo scarto tra

5. Cfr. R. BONITO OLIVA, La “seconda natura” in Hegel in Diritto naturale e filosofi classica te-desca, a cura di L Fonnesu e B. Henry, Pacini Editore 2000, p. 135-154.6. G. W. F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, in Werke., cit. Bd. VII, § 4 Z (d’ora in avanti cit. con G. Ph. R., seguito dal numero del paragrafo)7. Enc. § 161 Z

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l’impulso e la sua soddisfazione, tra il soggettivo e l’esperienza dell’oggettivo. La prima esperienza dell’essere “soggetti alla necessità” si presenta come cosa dura e triste, fin quando la libertà rimane un anelito interiore che spe-rimenta la resistenza della necessità come esteriore. Diventano momenti di un unico tutto nella relazione, nel togliersi della necessità nella libertà là dove l’uomo sia giunto alla piena conoscenza del tutto, della connessione nella quale ogni esistenza si dà. Questo il risultato di ciò che Hegel chiama “un giuoco del concetto” in cui l’altro che viene “posto mediante questo movimento in effetti non è un altro”8, in senso assoluto, piuttosto il medio in cui l’essere l’uno l’altro esteriore si determina come sviluppo. Tuttavia il trapasso conserva un “aspetto duro”, resistente. Il riunificarsi di questo movimento complesso nello sviluppo non si risolve nella nullificazione del trapasso e dell’altro resistente, piuttosto nella relazione, in cui l’opposizione - non i singoli momenti - si toglie nel superamento della scissione in cui ricade sempre il finito, quando rimanga nel suo ostinato isolamento, fermo all’universo della rappresentazione.

In questo orizzonte l’eticità è l’inveramento del punto di vista morale, a sua volta determinazione della sfera astratta del diritto. Se il diritto astrat-to passa in altro, nella moralità, la moralità si invera smascherando il non essere altro di quell’altro in cui appare. Nella complementarietà tra punto di vista morale e mondo etico si delineano due movimenti in cui il profilo della totalità è una volta costruito sull’articolazione soggettiva del punto di vista morale, un’altra sulla preponderanza oggettiva del mondo etico. Il mondo etico perciò si origina nel determinarsi del soggetto a partire da una rottura, dalla scissione prodotta nel giudizio morale che rompe l’astrazione del diritto e si invera nell’etico superando l’astrazione della legge giuridi-ca nell’esigenza soggettiva del volere: più che bisogno, più che domanda, Forderung, pretesa. In questo termine vi è tutta l’ambiguità della forza e dell’esigenza: il non poterne fare a meno come testimonianza di un Io che accampa diritti.

Si tratta del processo dialettico introdotto nel mondo dello spirito dalla libertà soggettiva, in quanto carattere universale dell’uomo. Da questo punto di vista l’universo etico procede e risolve l’opposizione nella comunità regolata di individui plurali, senza per questo poter cristallizzare lo sviluppo di cui è risultato. Esso rimane sottoposto a due tribunali, quello della libertà soggettiva e quello della necessità oggettiva, il tribunale della coscienza e il tribunale del mondo, motori della dialettica del reale effettivo, non giudici formali e assoluti, ma interpreti dell’esistente ineludibilmente segnato dalla trasformazione. Se il tribunale della coscienza è condizione di possibilità della tensione al dover essere che scioglie la statica configurazione di un mondo retto da una legge posta, ma non condivisa, in cui si gioca la pienezza della totalità etica, il tribunale del mondo rimette in gioco il diritto del contingente su tutto quanto è prodotto del movimento dello spirito.

In questo senso il rinvio allo spirito soggettivo, ovvero alla soggetti-

8. ivi, § 161 Z

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vazione nella libertà soggettiva delinea la sfera del mondo etico come scena di soggetti liberi, mentalmente educati e non semplicemente subordinati all’universalità del pensiero9, portatori di esigenze e di diritti. L’emergere del Bewust-sein è il punto di svolta in cui la vita prende forma umana nella dia-lettica tra desiderio, coscienza e ragione, in cui il punto di vista della mora-lità fa da cerniera e ponte di passaggio tra il diritto astratto e il mondo etico. Questa la prospettiva della coscienza tesa tra la possibilità astratta della vita spirituale e la sua attualità come logos, focus di una realtà articolata che si determina nell’esperienza concreta.

Tra il il Sè e l’Io che è Noi linguistico-culturale, come già la coscienza tra il non-più-naturale e il non-ancora-spirituale, tra la vita come appetito e la coscienza desiderante, la coscienza morale introduce e rende possibile il passaggio tra persona e cittadino, tra il positivo delle forme giuridiche e il determinarsi di un mondo della libertà realizzata. Se l’individuo rimane il punto di vista invalicabile della comunità moderna, solo la coscienza morale dis-potivizza l’esteriorità della legge giuridica nell’interiorizzazione del no-mos come proprio, regola dell’esigenza morale: non limitazione, ma condi-zione di possibilità di una comunità singolare e plurale insieme. Non si tratta di una sottrazione al vincolo della legge, piuttosto di un’interiorizzazione che toglie alla legge la sua esteriorità formale.

La sfera giuridica nella sanzione della legge perciò circoscrive nel di-vieto il poter essere tutto della natura umana - né animale, né divina - ma ciò che essa può fare non rimane confinato all’ambito giuridico, giacché la forza della legge produce solo un’esteriore limitazione della forza espansi-va della vita e non toglie il valore e la contingenza della libertà soggettiva. In altri termini la legge non fissa la vita, né tanto meno può imbrigliare la libertà soggettiva: senza vita non si dà libertà e senza libertà non si dà vita, lo spazio politico è caratterizzato da questa complessità che non può essere azzerata in nessuna forma di astrazione.

Alla compattezza del mondo del diritto astratto positivo, perciò, la coscienza morale contrappone un movimento di negazione, un giudizio: in essa agisce “la soggettività della libertà”, che si dà nell’antitesi immediata tra volontà individuale e volontà universale. La frattura, perciò, si riapre nella misura in cui soltanto la relazione istituita tra la volontà e l’ordine del mondo comune consente l’oggettivazione di una realtà spirituale, che non comporta adeguamento o coincidenza dell’una nell’altra.

Il punto di vista morale è il punto di vista dell’esistenza, che nell’esercizio del diritto della persona capace di determinarsi non solo nella subordinazio-ne alla legge, ma a partire dalla consapevolezza dei limiti posti nel diritto, procede all’autodeterminazione come articolazione (Ur-teilung) di quanto si dà semplicemente: il mondo oggettivo del diritto è messo alla prova nella capacità di sopportare le ragioni del soggetto nel suo risolversi all’azione, da cui procede il bene come il male nei tempi e negli spazi della coscienza,

9. Ibidem, § 20

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secondo il “punto di vista della differenza, finità e fenomenicità del dovere”10. E’ questo il punto di svolta in cui il soggetto fa esperienza di un poter essere altrimenti che non si risolve nella formale obbedienza all’ordine giuridico as-tratto, in cui pure si dà una legislazione non-più-naturale, ma si pone come autonomia. Il punto di vista morale, perciò, non mette in questione il diritto astratto nei suoi contenuti, porta allo scoperto piuttosto l’esperienza della divaricazione tra legge e determinazione della volontà. Nel superamento di questa divaricazione si gioca l’autonomia della volontà che non è eccedenza, ma interiorizzazione e riconoscimento della legge come propria. Tra il valore dell’individuo e il bene, il superamento della polarizzazione e della distanza tra esistenza e dover essere consente l’autodeterminazione della soggetti-vità, in quanto intrinseca tensione al bene, sia pure nella contingenza “in quanto riflessa in sé e identica a sé , (che) è l’infinta contingenza che è in sé della volontà: la sua soggettività”11.

III. Le ragioni del limite e la potenza della volontà

Contingente e finito è lo spazio in cui la coscienza si muove nella rela-zione all’ambito oggettivo del diritto, per cui anche là dove si adegua alla le-gge riconoscendola solo come una limitazione esteriore, accede al “poter es-sere altrimenti”12. La volontà, invece, nella sua manifestazione pretende un valore assoluto, cosicché la relazione all’altro non è determinata dal divieto giuridico13, là dove il compimento del fine esige la consonanza della volontà propria e di altri, secondo una relazione positiva1�. La realizzazione del fine nell’azione mantiene ad un tempo il valore di essere un che di particolare - il proprio - che in sé ha però l’oggettività del concetto, di essere cioè determi-nazione della volontà e non più dell’arbitrio, sia pure in maniera formale: la spinta all’azione si muove sulla base della consapevolezza dell’appartenenza a un mondo comune in una forma ancora non del tutto articolata.

La volontà nella sua autodeterminazione non astrae dalla sfera del soggettivo, includendo in sé come totalità l’intero psichico, in cui passioni, desideri, intenzioni, ragione e arbitrio ricevono la loro ragione e il loro equili-brio. La profondità e la notte del pozzo in cui ha mosso i suoi primi passi ten-tennanti l’individualità non è più l’inquietante e sfuggente datità interiore, ma riserva capace di assumere quell’infinita ricchezza, pur nella complessità di parti non del tutto elaborate, producendo nuova energia creativa. Se è vero che la coscienza morale può ricadere sempre nell’astrazione, di queste estreme astrazioni “nessuna sta ferma, ma si perde nell’altra e la produ-ce. E’ lo scambio della coscienza infelice con sé, scambio che tuttavia per essa stessa procede dal di dentro di sé, e che è consapevole di essere quel concetto della ragione che la coscienza infelice è solo in sé”15. La coscienza morale è l’aprirsi stesso dello scambio che non perde la traccia del Sé, è il

10. ivi § 108 Z.11. ivi § 104.12. ARISTOTELE, Etica Nicomachea VI Z 1 1139a.13. G. Ph. R. , § 38.1�. Ibidem, § 112.15. G. W. F. HEGEL, Phänomenologie des Geistes, in Werke., cit. Bd. VIII p. �83.

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dischiudersi del concetto della ragione, come unità che “mette in rapporto gli estremi” e si sa in quanto tale.

L’autodeterminazione del soggettivo e la determinazione della volon-tà universale nella relazione posta dalla coscienza morale però riaprono la contraddizione nel mondo oggettivo. Nella relazione posta in realtà il punto di vista morale reintroduce la scissione, riaprendo la trascendenza al dover essere, relativizzando contraddizioni e risoluzioni. In tal modo l’ineludibile contingenza della prospettiva conserva l’impulso come esigenza, orientan-do continuamente la soddisfazione dell’impulso sul dover essere. La risolu-zione di questo sbilanciamento non è data nella messa tra parentesi della singolarità psicofisica, né tanto meno dall’astrazione dal mondo, piuttosto nell’oggettivarsi della volontà consapevole di sé e del mondo, in cui le deter-minazioni personali e i confini del mondo sono tolti nella loro esteriorità e as-sunti come orizzonte di ogni oggettivazione. In questo senso l’assunzione del fine presuppone la piena adesione del soggetto al valore della propria azio-ne, anche se la sua realizzazione e i suoi risultati riproducono lo scarto del soggettivo: l’interesse del soggetto in quanto tensione all’appagamento di quell’esigenza del punto di vista morale che dà ragione della spinta dell’uomo ad agire. La volontà formale d’altra parte nella sua esigenza di assolutezza lascia da parte ogni contenuto determinato dal suo essere “esistenza sog-gettiva” che segna l’assoluta precarietà di ogni realizzazione del fine desti-nato a degradare a mezzo. Per il riprodursi del negativo del volere in ogni contenuto determinato della volontà, segnato dal soggettivo, fin dentro la volontà immediata tesa alla felicità e al benessere, ogni fine determinato non risolve l’esigenza come pretesa: tensione all’ ulteriorità del dover es-sere. La riflessione opera perennemente uno spostamento “sul contenuto” della volontà anche quando lo scopo sia realizzato.

In questo orizzonte la relazione posta dalla volontà è originariamen-te e interiormente sbilanciata. Da un lato il determinarsi della soggettività nell’assunzione di un fine comporta la messa tra parentesi del mondo og-gettivo e la riduzione dell’altro in quanto universale volontà. Dall’altro la volontà ritraduce nella tensione del Sollen l’articolato universo soggettivo. Una sorta di rarefazione in cui si oppongono “due mondi, l’uno un regno della soggettività nei puri spazi del pensiero trasparente, l’altro un regno dell’oggettività nell’elemento di una realtà esteriormente molteplice, che è un regno delle tenebre non ancora dischiuso”16. Ciò non toglie né la resis-tenza dell’oggettività alla potenza dell’autodeterminazione, né tanto meno la relatività della volontà universale come opera di tutti e di ciascuno, in quanto positivo che tende ad assolutizzarsi.

Nella fenomenologia della coscienza morale coesistono i due poli del fine e del movente che distinguono l’azione dal fatto, il decidersi è l’oggettivazione di quella frattura segnata già dal giudizio morale. Da questa complessità scaturisce la fatica della decisione dell’individuo moderno, che in essa si risolve e si mette in gioco, scoprendosi a sé e esponendosi ad un

16. G. W. F. HEGEL, Wissenschaft der Logik, in Werke, cit., Bd. V-VI, II 5��, tr. it. p. 3��.

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tempo agli altri. L’innocenza dell’eroe antico consentiva la narrazione dei fatti fuori scena, solo in quanto il fatto racchiudeva in sé in un unicum vicen-da e destino. Nell’assunzione e nell’esercizio della responsabilità nel mondo moderno, invece, la realizzazione del fine conserva la traccia del soggettivo che ha da testimoniarsi pur nella consapevolezza dell’ineludibile intreccio tra ogni intenzione e la serie di elementi contingenti, che rimane imponderabile nella prospettiva individuale. Agire in fondo è “darsi in preda” al rovesciarsi di “necessità in accidentalità e viceversa”17, ma è diritto della volontà im-putare a sé solo le conseguenze che risiedono nel suo proponimento, in tal modo il proponimento mette in gioco l’intenzione in cui ne va della volontà di un essere pensante in grado di compiere un’astrazione (Absicht contiene eti-mologicamente Abstraction18). Qui il soggetto attua una doppia astrazione, nel rapporto con la realtà esteriore assunta come mezzo nella realizzazione dei fini in cui ne va dell’interesse degli uomini per ciò “che è loro, per quello per cui vogliono essere attivi” e in vista dell’appagamento del soggetto nel benessere e nella felicità. In altri termini nella misura in cui la volontà apre al dover essere, all’ulteriorità, muove comunque dall’impulso del pensiero a darsi esistenza, nel quale è in gioco l’intero dell’uomo: il poter essere tutto fin dalle intime fibre della sua costituzione psicofisica che tende alla sua attualizzazione. Da questo punto di vista azione non coincide con colpa, né responsabilità con imputabilità, in nome dello spessore e del diritto del sog-gettivo.

Soltanto la riflessione astratta assume il punto di vista dell’astrazione come punto di vista assoluto, ma l’appagamento soggettivo esige il com-pimento dei propri fini considerati dal punto di vista sostanziale. Proprio in questo snodo il soggetto avverte l’opacità dietro la trasparenza e l’improprio nel proprio. La spinta alla risoluzione dei particolari bisogni, impulsi e pas-sioni nella compiutezza del benessere e della felicità rimarrebbe inappaga-ta, là dove vi fosse un’oscillazione frammentaria e discontinua tra un im-pulso e l’altro, senza la consapevolezza della fluidità e della plurisonanza dell’interiorità. Allo stesso modo la radicalizzazione dell’unilaterale soggetti-vismo della volontà renderebbe impraticabile ogni decisione nella sospensio-ne del rapporto con la realtà effettiva come mondo di tutti e di ciascuno.

Nello spirito soggettivo, là dove si parla della prassi propriamente spirituale, il soggetto prende forma a partire dalla funzione equilibrante, perciò negativa in quanto Aufheben, della volontà rispetto alle spinte delle passioni e dei bisogni in vista della libertà soggettiva. Si può comprendere allora la centralità del momento del deliberarsi del volere nella volontà a partire dalla sua radice contingente, dal momento dell’esistenza. Decidersi è l’oggettivazione dell’Ur-teilen, non un movimento irriflesso, né un calco-lo d’opportunità, ma risultato di un sapiente equilibrio di passioni, bisogni, istinti, desideri, che nella loro immediatezza rimarrebbero il senza forma e misura19. Forma e misura nella volontà intelligente scaturiscono non dalla

17. G. Ph. R. § 118 Z.18. Ivi, §119, Z.19. ARISTOTELE, Politica II B.

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comunità in senso generico, né dalla legge posta, piuttosto dall’autodeterminazione. Se il proponimento è il momento in cui la volontà si determina a partire da scopi, la responsabilità abbraccia la ricaduta oggettiva del perseguimento di scopi, nel punto in cui la soggettività sperimenta il suo limite, la legge dell’accidentale che trascende il proponimento. L’intenzione toglie questo limite, nella misura in cui la capacità di astrarre induce quella messa a distanza in cui l’esteriorità si costituisce a mezzo e l’interiorità entra nella determinazione dello scopo come inter-esse. Paradossalmente proprio questa capacità di astrazione come messa a distanza consente al soggetto di superare il limite soggettivo del proponimento e il carico immobilizzan-te della responsabilità. L’esteriorità perde la sua compattezza, l’interiorità perde la sua puntualità, lasciando emergere l’intenzione più originaria al benessere come eudaimaonia, diritto all’appagamento non di questo o quel bisogno, ma dell’uomo nella sua interezza. Quanto non può darsi né isolando l’intenzione nella sua purezza, né assolutizzando il benessere come scopo. La capacità astraente dell’intenzione allerta l’attenzione a quelle condizioni di stabilità e di non conflittualità che solo lasciano aperte possibilità di be-nessere per tutti e per ciascuno, prima assicurate dal divieto giuridico, ora assunte in proprio nella consapevolezza morale. Non si tratta soltanto di un processo di educazione, piuttosto della scaturigine soggettiva della univer-sale natura razionale nella coscienza morale. In questo senso sempre sul margine tra una tensione interna e un fine trascendente, inoggettivabile in una particolare intenzione o in un determinato scopo.

Questa interiorità è un sacrario che nessuno può violare, il cuneo da cui scaturisce la condizione della sfera etica: totalità in cui le parti si deter-minano e si muovono organicamente nella misura in cui sono legittimate e attivate da quanto conserva e nasconde quel sacrario. In definitiva il germe nascosto anche della seconda natura, della natura etica dell’uomo in cui il poter essere, non delimitato estrinsecamente né dall’abitudine ripetitiva, né tanto meno dal diritto formale, è assunto interiormente dal soggetto nella consapevolezza della propria libertà come valore universale. Quel sacrario intangibile rimane nella penombra impenetrabile testimonianza del diritto all’appagamento, radicato nella possibilità di essere altrimenti e nell’inter-esse dell’uomo. Da questa condizione di solitudine resistente ad ogni forma di comunità può costituirsi il senso soggettivo e oggettivo del vivere comu-ne, capace di accogliere e sopportare per la natura elastica e plastica dello spirito, la prova della scissione e la resistenza della differenza, perchè solo nella “mobilità e rapidità” del rappresentare e del passare da una rappre-sentazione all’altra è la potenza dello spirito sulla fluidità della vita. Ogni fissazione e cristallizzazione così come ogni invasione di quel sacrario de-potenziano la forza e disattivano la vitalità della realtà spirituale, altra dalla ripetizione della natura, facendo precipitare l’uomo nella condizione di bestia o catturandolo in un’artificiosa dimensione del divino.

Riconoscere la funzione del sacrario della coscienza morale è a livello più alto lo stesso riconoscimento dell’inviolabilità della vita contro ogni vio-lazione, un bene più grande e universale della vita umana, dal momento che

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non solo assicura il materiale della legislazione, ma testimonia anche del più-che-vita dell’umano, in cui si cela il pericolo, ma anche la possibilità del rinnovamento come dimensione dello spirituale.

IV. Dal doppio circolo alla spirale

Se si prova ad immaginare visivamente l’articolazione delle due sfe-re, l’una va in direzione di una progressiva apertura verso l’esterno, là dove si spinge la volontà consapevole, regolata e raccolta nella coscienza morale (Gewissen), alle soglie della sfera etica, nella consapevolezza di quanto è dato perseguire in termini di soddisfacimento nella sfera etica. L’altra, il mondo etico nella sua compiutezza, ha a suo presupposto il sacrario inviola-bile - la coscienza morale - a sua destinazione invece l’accidentalità, la storia universale come giudizio universale: il giudizio della coscienza morale ne è condizione e il tribunale del mondo ne è conclusione, conservando due mo-menti di resistente apertura. La totalità etica perciò è esposta al suo sgreto-lamento in quanto la volontà soggettiva e la contingenza storica la destinano continuamente alla precarietà e al trapasso.

In altri termini nell’articolazione tra morale e etico il punto di vista morale si mantiene come riserva di senso e di energia, alle spalle dell’etico, non più nella forma bella degli antichi, retta dalla stabilità e dall’inviolabilità della natura, piuttosto nella ricchezza e dinamicità del moderno, mostran-dosi e alimentandosi nei punti di crisi, all’interno dei quali, ripristinandosi la scissione e la sua esperienza, soltanto la coscienza morale come lente continua di sorveglianza e di controllo, mettendo a distanza il presente nel giudizio, rompe la superficiale fusione comunitaria tra gli individui. Hegel usa le figure di Socrate e Cristo per esemplificare la forza dirompente e eversiva della coscienza morale, in quelle figure il dissenso si mantiene in qualche modo al margine della sfera politica, scardinando valori consolidati, non si positivizza in una dottrina, non entra in contrasto aperto con la propria co-munità. Socrate e Cristo rimangono dunque figure di passaggio e di rottura destinate a perire, non per la loro innocenza come gli eroi antichi, quanto per la mancata risoluzione alla rottura con il mondo consolidato: un essere senza luogo e inattuali testimoniato da un discorso indiretto, teso alla persuasione. Socrate e Cristo portano allo scoperto fino in fondo la fragilità di ogni costru-zione umana, lasciando sullo sfondo l’esigenza altrettanto umana alla con-servazione e alla stabilizzazione. Ironia e parabole lavorano nel senso della generazione in proprio del percorso di soggettivazione, mantengono aperto il rapporto alla verità, ma non offrono verità a portata di mano. La morte è la vera e autentica forma di oggettivazione. Socrate e Cristo, perciò, valgono più da morti che da vivi, nella morte e nel sacrificio cui entrambi vanno in-contro, pur potendo fuggire, accedono all’universo simbolico comune in cui prende figura un nuovo mondo. L’oggettivazione estrema della morte innes-ca un processo di riconoscimento di un disagio comune.

La coscienza morale mantiene aperti, perciò, i margini del rinnovarsi delle possibilità dell’essere altrimenti, del divenire della realtà spirituale, là

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dove la comunità non è più in grado di tenere in vita il dialogo tra il diritto dell’individualità e i diritti politici. Soltanto il Gewissen permette di superare il conflitto e i limiti della società civile là dove questa non riesca a includere e a proteggere chi è relegato a ruolo di comparsa, escluso da questo spazio: un che di inoggettivato. Al di sotto dell’organismo ben funzionante della so-cietà civile, rimangono spazi in cui “la moralità trova da fare abbastanza”20, giacché l’emarginazione di una grande massa rende insufficiente ogni dis-posizione generale, relegando in una condizione di solitudine e impotenza chi rimane fuori dai “vantaggi spirituali della società civile”, ai margini della comunità politica21. In tal senso lo spazio e la scena politica delineano i con-fini di un’azione che attinge il suo valore vitalizzante al di qua dell’aperto, nel Gewissen, barriera protettiva delle ragioni che creano il vincolo della co-munità in un universale inoggettivabile. La funzionalità e la tutela di questo confine trasforma questo spazio pubblico in uno spazio condiviso.

In questo senso non sarebbe ipotizzabile per Hegel un ritorno all’animalità una volta che l’uomo abbia raggiunto l’appagamento di ogni bisogno e la riduzione di ogni disparità e ingiustizia sociale nell’univoco mo-vimento della storia. Se solo si pensa alla circolarità del processo dal terreno dell’umano all’aurora della coscienza - l’emergere della realtà spirituale - nella filosofia dello spirito soggettivo hegeliana si individuano continuamente momenti in cui la formazione si disloca sul piano performativo dell’imitazione e sul piano culturale dell’identificazione. L’emergere della coscienza chiama in causa ancor prima della relazione con il mondo, la relazione con il proprio interno, lì dove opacamente si agitano tracce dell’umano transindividuale. In fin dei conti esterno e interno si contaminano continuamente a designare il fatto che il terreno, la casa dello spirito è elemento magmatico definito e aperto insieme; al collasso allorché non tocca più il cuore degli uomini oltre che la ragione. Sono i momenti di trasformazione o di rottura a por-tare allo scoperto la “contraddizione sempre crescente”, disorientando gli individui e restringendo lo spazio per un passo ulteriore. Pur nell’ignoranza e nell’isolamento l’esperienza comune del disagio e il territorio più che indi-viduale in cui cresce l’esigenza della coscienza morale creano le condizioni in cui il vecchio mondo, come un involucro che non tiene più, lascia il posto a qualcosa di nuovo che si prepara sotterraneamente. Nella dimensione della moderna libertà soggettiva non è ipotizzabile per Hegel nè una linearità im-manente al processo storico, se non assumendo il naufragio a cui sempre è esposto lo storico pensante dinanzi alle sanguinarie e crudeli pagine della storia reale degli uomini, né tanto meno l’assunzione di una condizione di emergenza continua a cui solo la decisione pone rimedio inaugurando pro-priamente il politico.

20. G. Ph. R. § 242.21. Ibidem, §§ 243-244.

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V. Capacità e possibilità

Lo spirito allora si nutre nella sua vitalità di tutte le capacità come terreno a sua volta aperto dell’umano formarsi, pronto a registrare capo-volgimenti di fronte e di status tra padrone e schiavo, contadini e borghesi nella cornice della nazione. L’equilibrio tra diritti e doveri rafforza le capaci-tà del cittadino di inoltrarsi nel poter essere altrimenti senza infrangere la cornice comunitaria nella quale si rafforza l’autonomia e la libertà positiva di ciascuno. Hegel è però ben consapevole del passaggio conflittuale che disegna lo spazio della sovranità e dell’esercizio dell’obbedienza che rende ogni individuo cittadino. Non a caso l’obbedienza apre alla libertà soggettiva, sostituendo e dislocando il conflitto nell’atto di sottomissione. Poter essere altrimenti richiede ad un tempo il riconoscimento della dipendenza dall’altro e la capacità di superare un impotente amore di sé. Se il conflitto smaschera il gioco dell’imitazione, l’obbedienza risolve il conflitto nella rappresentazione del vincolo della reciproca dipendenza. Hegel non a caso pone la distinzione tra società civile - lì dove soltanto si parla di uomini, il luogo degli interessi e del loro conflitto/compensazione - e comunità etica in cui si gioca il vincolo, incompatibile con l’azzeramento delle differenze di uomini senza particolari-tà, in grado di riscaldare il cuore degli individui e di rinsaldare il comune al di là del conflitto. In molti passaggi, però, non sfugge a Hegel la complessità, o meglio la precarietà di questo rinvio sia sul terreno della società civile, che in quello della comunità etica. Rimane aperta la questione della relazione tra diritti dell’uomo e diritti del cittadino, là dove i primi garantiscono la vita e il rispetto delle capacità di ognuno e i secondi lo spazio consentito dell’agire in cui quella vita e quelle capacità accedono al poter essere altrimenti. In questo punto si gioca il passaggio da individuo a cittadino dal punto di vista dei diritti e quindi della libertà come poter essere altrimenti - libertà insie-me positiva e negativa – all’interno principio di uguaglianza in relazione alle possibilità e capacità nelle condizioni concrete di esistenza e di espressione dell’uomo.

Hegel riflettendo sulla società civile trova il precipitato concreto tra diritto come seconda natura e natura come bisogno di sicurezza economica. Al paragrafo 200 dei Lineamenti Hegel afferma. “La possibilità della parteci-pazione al patrimonio generale, il patrimonio particolare, è però condiziona-ta, in parte da una propria base immediata (capitale), in parte dall’attitudine, la quale dal suo lato è di nuovo essa stessa condizionata da quello, ma poi dalle circostanze accidentali”, nella loro molteplicità esse producono una di-versità che fa la sua comparsa in tutti i gradi e le direzioni e ha per conse-guenza “la disuguaglianza del patrimonio e delle attitudini degli individui”. In questo punto si mette in luce un doppio dislivello: quello naturale a cui si aggiunge quello prodotto dalle circostanze, in definitiva dalle risultanti dell’organizzazione sociale all’interno degli interessi dei soggetti concreti. Se secondo Hegel il fondamento del diritto nel mondo moderno sono le parti-colarità soggettive, la loro libertà come poter essere, nelle dinamiche reali della società civile, in dipendenza dalla condizione o dallo stato, attitudini e

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capacità possono essere ridotte o esaltate22: il fondo comune che sorregge e rafforza le capacità individuali non si traduce nell’effettiva uguaglianza.

Sin dagli anni giovanili Hegel è consapevole dell’instabilità introdotta nel sociale dal dinamismo dell’economia industriale e dall’astrazione della libertà. Di fatto un processo di progressiva astrazione, che ha nell’industria e nel commercio il suo punto più alto, distingue masse, più che individui. All’astrazione della libertà viene meno il terreno proprio di un suo esercizio, nella mancata distinzione delle prestazioni e nella divisione del lavoro, che porta con sé il progressivo ridursi del valore dell’individuo e della sua ope-ra, sostituibili e resi superflui dallo sviluppo della ricchezza e dalla divisione del lavoro. Il movimento accentratore del capitale può determinare strati di povertà - dice Hegel a Jena - e la progressiva crescita della plebe. La plebe sfugge al vincolo sia pure strumentale della società civile; venendo meno mezzi di sussistenza e ragioni per il sentimento di appartenenza, così il vincolo statale si riduce alla forza della legge. La plebe vive al confine, tra l’interno e l’esterno della comunità, costituendo il pericolo che richiede l’uso equilibrato, ma continuo, della polizia e della magistratura. Il rischio si addensa là dove nella plebe, nelle figure prive di riconoscimento, prevale la sottomissione sulla reciprocità, inducendo al delinquere. Hegel in fin dei conti è consapevole della scarsa pregnanza della cultura dell’universalismo e dell’eguaglianza astratta, là dove venga trascurata l’effettiva circolarità tra questi due momenti - la stabilità e la sicurezza del comune come terreno della soggettivazione che parte dal basso e si distribuisce orizzontalmen-te - quando la comunità è incapace di sostenere la pluralità e la diversità di condizione. Il vincolo della dipendenza può interrompere la reciprocità, là dove nella perdita dello spazio del riconoscimento viene meno il senso dell’obbedienza e si produce la perdita del sentimento del diritto. Uomini e non cittadini interrompono la corrente continua della fiducia su cui si regge una legge che non può che essere storica, raccogliendo e interpretando quel comune inespresso che scorre nelle vene di chi partecipa attivamente del mondo simbolico, fondamento e presupposto della società civile. In questo cuneo l’impossibilità dell’imitazione toglie i presupposti stessi del proces-so di identificazione; ancor prima della esclusione, emerge il sentimento di tradimento della fiducia. Il desiderio di riconoscimento non è stato solo inappagato, ma ignorato, negato, generando comportamenti distonici e re-azioni amorfe. Ciò che è venuto meno è la dipendenza più originaria di ogni relazione vissuta, il senso del comune che rende tollerabile e giustificabile la forza da cui si originano gli stati. Hegel afferma che il diritto, ancor prima della legge, è qualcosa di sacro da cui promana l’autorità della legge. Non è un caso che l’esempio del legame familiare e della fiducia funga da vincolo anche nella corporazione, definita solo una famiglia più grande. D’altro canto la contraddizione della crescita della plebe non può che produrre la neces-saria espansione degli Stati, che non sfugge in tal modo alla contraddizione dell’ingiustizia interna: ogni espansione crea solo consumatori, non indivi-dui, né cittadini.

22. Ibidem, §236.

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Qui Hegel tocca un punto nodale cogliendo la contraddizione sempre crescente nella comunità moderna tra l’antico attaccamento alla terra dello stato dei contadini e la tendenza all’ubiquità astratta del capitale, capace di una forza magnetica di attrazione in cui vengono risucchiate le differenze individuali e azzerato lo spazio del riconoscimento, lì dove soltanto la vita si traduce in Bewusst-sein, esssere propriamente umano. Nella progressiva astrazione e accelerazione delle relazioni la legge può ripristinare un univer-sale che produce assoggettamento, fin quando essa interviene in vista della subordinazione all’universale, più che in vista del riconoscimento.

Possibilità e capacità, perciò, non viaggiano parallelamente là dove la scansione venga prodotta da ingranaggi che distribuiscono o raddoppiano l’originaria condizione naturale. La cultura anzi rafforza l’opera della natura, nel momento in cui nel naturale è compresa anche la proprietà. Evidente-mente la cultura non compensa in senso definitivo, non altera la disugua-glianza se non nel senso della astratta potenzialità, i diritti dell’uomo non garantiscono il passaggio alla cittadinanza. D’altra parte il capitale tende all’autoriproduzione nell’indifferenza neutrale verso ogni complessità. La mancanza del passaggio, però, non lascia inalterato l’uomo, gli chiude sol-tanto ogni accesso al comune, così la plebe diventa una massa inquietante che, spinta fuori dal nomos, potrebbe scuotere le basi stesse del diritto.

Per quanto la filosofia può essere la chiave di lettura e la terapia della contraddizione sempre crescente, Hegel individua un punto di radicale rot-tura dell’universalismo dei diritti moderni, portando allo scoperto il virus che si annida all’interno di un processo che rovescia le coordinate del politico nel gioco tra libertà soggettiva e libertà oggettiva. Se tribunali e polizia sono i guardiani di un ordine continuamente messo in pericolo dal conflitto degli in-teressi e dal frantumarsi corporativo della fiducia, condizione precomunitaria del vincolo tra gli uomini, Hegel focalizza l’attenzione, pur riproponendo so-luzioni identitarie e logocentriche, sulla difficoltà stessa dei diritti dell’uomo fuori dall’orizzonte della cittadinanza. Il movimento dell’astrazione produce uno svuotamento della fiducia, riduce lo spessore della partecipazione, ri-porta sulla scena e nel cuore degli individui un senso di insicurezza che di-lata le ragioni del controllo e del giudizio e restringe gli spazi del politico. In definitiva ciò che può dileguare là dove venga meno “lo spirito del popolo, il divino, la pietà che solo ripristinano al di là degli interessi particolari le ra-gioni di una comunità etica oltre la società civile”23 ( §§ 257/258).

Questo fondo oscuro, questo spirito degli inferi è la condizione se non di pensabilità, di tollerabilità di un comune in cui si liberano energie non schiacciate sulla paura e sulla mera vita. Lì dove crescendo il pericolo non cresce la salvezza, ma il senso di insicurezza che libera energie e un amorfo che produce moltitudini migranti, da cui può germogliare la trasfor-mazione; in questo disorientamento potrebbe attecchire la superstizione e l’assoggettamento, perdendosi il senso di una comunità umana complessa, ma non impossibile.

23. Ibidem §§ 257-258.

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La comunità etica nella forma dello Stato non è perciò “un’opera d’arte; esso sta nel mondo e, quindi, nella cerchia dell’arbitrio dell’accidentalità e dell’errore”2�, che richiede un fare ininterrotto. Se lo Stato raccoglie in totali-tà la tensione al bene come impulso più potente dello spirito vivente, è la re-alizzazione dell’idea del bene che è sempre da venire, giacché “l’universalità del fine non può progredire senza il sapere e il volere della particolarità che deve serbare il suo diritto”. Perciò “l’universale deve essere dimostrato col fatto; ma la soggettività, dall’altro lato, deve essere sviluppata totalmente e vivamente”25. In questo senso la circolarità assume per così dire la figu-ra di una spirale, nella misura in cui la dimostrazione come legittimazione dell’universale è resa possibile dal compiuto sviluppo della soggettività, in cui il conoscere apre all’azione e l’azione rinvia al conoscere. Soltanto il sapere filosofico detiene la verità “come vita che non passa”, alla dimensio-ne del finito appartiene l’esperienza della scissione e dell’instabilità. L’ethos come “cerchia di interiorità e di esteriorità” è la sua dimensione universale posta di fatto, ma mai chiusa sin quando interiorità e esteriorità mantengo-no una relazione sempre aperta. In definitiva il ridursi di margini di stabilità degli Stati e il venir meno del sentimento del divino, sembrano mettere a rischio il tentativo hegeliano di piegare i vettori in una circolarità che non è ripetizione dell’identico, ma assicurazione di una trama continua, sia pure non manifesta, del divenire spirituale.

2�. Ibidem, § 258 Z.25. Ibidem § 260 Z.

Grupo de Investigación sobre el Idealismo AlemánDepartamento de Filosofía (Universidad de Málaga):

El Congreso sobre la antropología filosófica de Hegel

El idealismo alemán es uno de los momentos estelares de la filosofía universal, y en particular, la filosofía de Hegel uno de sus frutos más madu-ros, y ello porque Hegel pensó muchas de las cuestiones más relevantes de la antropología filosófica, que siguen tomándose en consideración hoy en día. Por ejemplo: (i) la exigencia de un sistema institucional que garantice la libertad (las manifestaciones del espíritu en la política y la historia); (ii) la distancia entre el yo y sus representaciones (Fenomenología del espíritu); (iii) los problemas relacionados con la identidad de un yo fracturado en múltiples —e incluso opuestas— adhesiones y lealtades (la vida ética); (iv) la naturaleza de la subjetividad (la filosofía del espíritu subjetivo); (v) las dificultades de la construcción social e histórica de una totalidad sistemática que garantice el reconocimiento y el respeto de lo humano en cuanto tal (filosofía del espíritu objetivo); (vi) el enfrentamiento con el nihilismo que distancia la subjetividad de una vida considerada irreal y alienada (el papel del arte, la religión y la sabiduría en la vida humana); (vii) la posibilidad o imposibilidad de una terapia de la subjetividad moderna que siente las oposi-ciones como irresolubles (la reconciliación); (viii) la distancia —negatividad y alejamiento de la reflexión— respecto de la vida (reflexión extrínseca o intrínseca, pensamiento débil o fuerte); (ix) la unidad e integración de las culturas (filosofía de la historia); (x) la posibilidad y especificidad de las ciencias del espíritu (la historia del espíritu).Este congreso pretende estudiar estas y otras cuestiones relacionadas con la antropología filosófica de Hegel.

- Plazo para el envío de resúmenes y títulos de comunicaciones: hasta el 20 de Julio de 2009.

- Una vez comunicada la aceptación, se enviarán las comunicaciones defini-tivas antes del 8 de septiembre de 2009.

Mais informações em: http://www.uma.es/congreso_hegel/

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za na Fenomenologia do Espírito de Hegel

Wolfgang Neuser1

RESUMO: Trata-se de uma consideração em torno do capítulo “Força e Entendimento”, da Fe-nomenologia do Espírito de Hegel; mais especificamente, da concepção de matéria aí em jogo. Para isso, o autor descreve as linhas gerais da concepção kantiana e da concepção schellinguia-na da matéria, apresentando-as como pressupostos da concepção hegeliana da estrutura da matéria. Assim, o texto se inicia com (1) algumas notas sobre o conceito de entendimento e (2) sobre o conceito de força em geral na Crítica da Razão Pura de Kant; seguem-se (3) algumas notas sobre a constituição da matéria nos Primeiros Princípios metafísicos da Ciência da nature-za de Kant e (4) as tentativas de Schelling – não posteriores a 1803 – de descrever o início de uma filosofia da natureza, tendo em vista a construção do conceito de matéria. Finalmente, o autor desenvolve (5) algumas observações sobre a estrutura do capítulo ”Força e Entendimen-to” da Fenomenologia do Espírito de Hegel.

Palavras-chave: Kant, Schelling, Hegel, Entendimento, Força, Matéria

ABSTRACT: This is an account on the chapter “Force and Understanding” in the Phenomenology of the Spirit of Hegel, more specifically, the conception of matter at stake here. For this, the author describes the lines of Kantian and Schellinguian conception of matter, showing them as assumptions of Hegelian conception of the structure of matter. Thus, the text begins with (1) some notes on the concept of understanding and (2) the concept of force in general in the Cri-tique of Pure Reason in Kant, is followed by (3) some notes on the formation of matter in First Metaphysical Principles of Science of the nature of Kant and (4) attempts to Schelling - not later than 1803 - to describe the beginning of a philosophy of nature in order to build the concept of matter. Finally, the author develops (5) some observations on the structure of the chapter “Force and Understanding” of the Phenomenology of the Spirit of Hegel.

Keywords: Kant, Schelling, Hegel, Understanding, Force, Matter

I. Apresentação

No racionalismo francês e no empirismo inglês dos séculos XVII e XVIII, os pensadores apresentaram diferentes modelos sobre a concepção do entendimento. Galileu, Descartes, Espinosa, Leibniz, por exemplo, recu-sam os modelos escolásticos segundo os quais a concepção de mundo é uma questão de lógica: a correção do entendimento evadida pelas teorias. Os fatos empíricos são integrados no pensamento da casuística como uma sub-ordinação à lógica ou à teoria lógica. Os pensadores racionalistas formulam a teoria do entendimento, segundo a qual em primeiro lugar as estruturas teoréticas decidem sobre a correção do entendimento, mas estas teorias

1. Professor da Universität Kaiserslautern. Agradeço a Luiz Carlos Bombassaro pelo aper-feiçoamento estilístico da versão preliminar deste texto. Texto submetido em dezembro de 2008 e aprovado para publicação em janeiro de 2009.

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diferem das teorias escolásticas se consideramos o papel da lógica2. No sé-culo XVII, na Inglaterra, pensadores empiristas, como Hobbes, Hume, Locke e outros, acentuaram em primeiro lugar o papel da percepção ou experiên-cia para o entendimento. Segundo estes pensadores a matéria, a natureza ou o mundo tem prioridade sobre as estruturas teoréticas. O entendimento só é uma estrutura deduzida ou uma forma de percepção do mundo.

Estas posições dos pensadores racionalistas e dos pensadores em-piristas marcam a situação metodológica das ciências naturais no final do século XVIII, quando Kant tratou de resolver a oposição entre ambas. Para ser breve, segundo a teoria de Kant, existe um pressuposto lógico para o entendimento das estruturas empíricas do mundo, i.e., a razão. Schelling e Hegel tomam isto como ponto de partida para desenvolver seus pensam-entos. Eles perguntam como é possível compreender que o entendimento e a matéria são idênticos. Hegel discute este problema na Fenomenologia do Espírito.

Nesta investigação eu pretendo descrever um aspecto central da Fenomenologia do Espírito de Hegel, o qual se encontra no capítulo intitu-lado ”força e entendimento”. Neste capítulo, Hegel descreve como se forma o entendimento e como o entendimento constitui os primeiros conceitos fun-damentais de uma teoria filosófica da matéria. O primeiro aspecto desta re-flexão é a seguinte pergunta: Qual é o sentido do conceito de entendimento? Para que possamos entender bem esse importante capítulo da Fenomeno-logia hegeliana3, penso que deveríamos saber antes alguns fatos, daquilo que poderia ser considerado o segundo plano da filosofia da natureza na Alemanha no início do século 19. Neste sentido, eu gostaria de dividir os as-suntos desta investigação em cinco partes:

1. Algumas notas sobre o conceito entendimento na Crítica da Razão Pura de Kant;

2. Algumas notas sobre o conceito força em geral na Crítica da Razão Pura de Kant;

3. Algumas notas sobre a constituição da matéria nos Primeiros Princípios metafísicos da Ciência da natureza de Kant;

4. As tentativas de Schelling – não posteriores a 1803 – de descrever o início da uma filosofia da natureza, tendo em vista a construção do conceito de matéria;

5. Finalmente, quero fazer algumas observações sobre a estrutura do capí-tulo ”força e entendimento” da Fenomenologia do Espírito de Hegel.

2. W. NEUSER, O silogismo e a Matemática na ciência natural durante o Renascimento, in: L. C. BOMBASSARO, J. PAVIANI. Filosofia, Lógica e Existência. EDUCS, Caxias do Sul, 1997.3. Ver também, H.G. GADAMER, Die verkehrte Welt, in: H.F. FULDA, D. HENRICH. Materialien zu Hegels Phänomenologie des Geistes, Frankfurt a.M. 1973, p. 106-130.

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No meu modo de entender, nesse capítulo Hegel trata criticamente de dois assuntos da filosofia na Alemanha do seu tempo:

1. Como pode se dar a constituição da matéria na fundação última dos con-ceitos;

2. e como se dá a constituição do entendimento.

A tese de Hegel é a de que o modo pelo qual se constitui o entendi-mento também é o modo pelo qual tem início o funcionamento dos conceitos fundamentais da matéria. Além disso, esse mesmo processo mostra como a constituição da matéria é uma coisa para a nossa consciência.

II. O conceito de entendimento em Kant

Em Kant existem três faculdades do conhecimento que agem entre si de modo a permitir que o mundo possa ser conhecido. Essas três faculdades são: a intuição, o entendimento e a razão. Para Kant, o conhecimento do mundo é uma capacidade humana. Temos estruturas lógicas que fazem com que possamos conhecer o mundo. Por isso, o entendimento é importante para nós. O entendimento consiste na capacidade que temos de analisar e de construir conceitos.

O entendimento constrói relações entre as diferentes determinações dos objetos. Estas relações não se encontram nos objetos, mas são iner-entes à capacidade do entendimento. O entendimento produz relações que são reunidas num conceito. Este conceito é uma projeção da sensibilidade como objetos externos. As relações não são produzidas pela percepção; elas são antes uma atividade do entendimento. O entendimento somente tem a capacidade de produzir uma síntese a priori.

Enquanto dada a priori a unidade sintética do múltiplo das intuições é portanto o fundamento da identidade da própria apercepção, que precede a priori todo o meu pensamento determinado. A ligação não se encon-tra, porém, nos objetos e não pode ser quiçá tirada dos mesmos pela percepção e deste modo primeiramente acolhida no entendimento, mas é unicamente uma operação do entendimento, que nada mais é senão a faculdade de ligar a priori e de submeter o múltiplo das representações dadas à unidade da apercepção. Este é o princípio supremo de todo co-nhecimento humano.�

O entendimento liga a multiplicidade da imaginação no conceito. O objeto é a coisa, que reúne a multiplicidade em um conceito. Só essa re-união consciente da multiplicidade forma as estruturas lógicas do objeto. Assim, a unidade analítica da apercepção é conseqüência da identidade da consciência. Como afirma Kant:

Com referência ao entendimento, o princípio supremo do mesmo é: todo o múltiplo da intuição está submetido às condições da unidade sintética

4. I. KANT, Critica da Razão Pura. Tradução de Valério Rohden, São Paulo: Abril cultural, 1974, B 135f.

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originária da apercepção. Na medida em que nos são dadas, todas as múl-tiplas representações da intuição estão submetidas ao primeiro princípio; na medida em que têm que poder ser ligadas numa consciência, todas essas mesmas representações estão submetidas ao segundo princípio. Com efeito, sem isso nada pode ser pensado ou conhecido, pois as repre-sentações dadas não teriam em comum o ato da apercepção eu penso, e desse modo não seriam reunidas numa autoconsciência. Falando de modo geral, entendimento é a faculdade de conhecimentos. Estes consistem na referência determinada de representações dadas a um objeto. Objeto, po-rém, é aquilo em cujo conceito é reunido o múltiplo de uma intuição dada. Ora, toda reunião das representações requer a unidade da consciência na síntese delas. Conseqüentemente, a unidade da consciência é aquilo que unicamente perfaz a referência das representações a um objeto, por con-seguinte a sua validade objetiva e portanto que se tornem conhecimentos, e sobre o que enfim repousa a própria possibilidade do entendimento.5

Deste modo, podemos dizer que para Kant o entendimento é a uni-dade da capacidade do pensamento que forma a unidade da experiência. O pensamento é a soma dos conceitos do entendimento. Este unidade é transcendental e, por isso mesmo, ela não é subjetiva mas sim objetiva e necessária para a experiência. A unidade dos conceitos e dos juízos resulta das categorias. A unidade dos conceitos e dos juízos é produzida pelas cat-egorias. Mas, nas categorias existe uma outra unidade: a unidade das idé-ias, que vincula os juízos às categorias. A soma das idéias é a unidade da razão6.

Com essa breve descrição, que é somente uma recapitulação da Crí-tica da Razão Pura de Kant, está apresentado o programa kantiano para explicar a idéia da natureza, a cosmologia. Na concepção kantiana da cos-mologia existe uma unidade formal, que é a soma das atividades do enten-dimento, a força em geral. A força em geral é uma abstração da lei geral que é abstraída pelo entendimento. Esta concepção de Kant será o programa que Hegel desenvolverá no seu capítulo sobre ”força e entendimento” na Feno-menologia do Espírito. Mas, antes de tratar especificamente disto, gostaria de descrever como Kant formula o seu procedimento para explicar a força em geral.

III. O conceito de força em geral em Kant

Para Kant, o conceito de força em geral é uma generalização do con-ceito de lei da natureza e também do conceito de entendimento. Na última parte desta minha investigação, tentarei fazer uma reconstrução do conceito de entendimento como força em geral. Agora quero mostrar como o conceito de força pode ser generalizado. O entendimento opera como se a idéia de natureza fosse um objeto. O conteúdo que é pensado na idéia é a lei. Por causa disso, é que o entendimento compreende somente aqueles objetos que podem ser pensados como a unidade de suas relações causais. O enten-dimento é idêntico à idéia da natureza de ser causal. Para o entendimento, a pretensão de uma unidade é necessária e objetiva. Por causa desta função 5. I. KANT, Critica da Razão Pura, op. cit., B 137.6. W. NEUSER, Natur und Begriff, Stuttgart/Weimar 1995, p. 115 s.

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do entendimento, a razão aspira unificar a multiplicidade das diferentes for-ças, como a força da gravitação, a força da eletrodinâmica, etc., bem como as diferentes forças de diferentes corpos7. Ela vai mostrar a identidade ou aquilo que é comum na multiplicidade das diferentes forças. A conseqüência disso é a hipótese da uma força em geral. A força em geral é uma unidade hipotética da razão, que deveria ser considerada como causa para a cons-trução de algumas regras e princípios para a experiência. Neste sentido, o entendimento é, portanto, a capacidade de produzir uma unidade da per-cepção num objeto.

Todavia, se se presta atenção ao uso transcendental do entendimento, mostra-se que essa idéia de uma força fundamental em geral está destinada ao uso hipotético não meramente como problema, mas pretende ter uma realidade objetiva pela qual é postulada a unidade sistemática das diversas forças de uma substancia e é estabelecido um princípio apodíctico da razão. Com efeito, sem que tenhamos uma só vez tentado encontrar a unidade das várias forças e descobrir até quando, após todas as tentativas, falhamos em descobri-la, pres-supomos, não obstante, que deve ser possível encontrar uma tal unidade; isso dá-se não unicamente em virtude da unidade da substancia tal como no caso indicado, mas mesmo onde são encontrados vários casos embora em certo grau congêneres, tal como na matéria em geral a razão pressupõe uma unidade sis-temática de forças diversas, uma vez que leis particulares da natureza estão sob leis mais gerais e que a economia de princípios torna-se simplesmente não um princípio econômico da razão, mas lei interna da natureza.8

Nesta passagem da Crítica da Razão Pura, a intenção de Kant foi a de mostrar que existe um princípio transcendental da razão, segundo o qual a natureza dos objetos e da razão tende sistematicamente para uma mesma unidade, uma unidade objetiva e necessária. A força é a causa da substância e a multiplicidade é a soma numérica de cada uma das forças que foram re-duzidas comparativamente a uma força em geral. A força em geral é, assim, uma conseqüência da reunião das diferentes forças.

A idéia de uma força fundamental, cuja existência a Lógica de modo algum pode descobrir, é pelo menos o problema de uma representação sistemáti-ca da multiplicidade das forças. O princípio lógico da razão requer reali-zar tanto quanto possível esta unidade; e quanto mais os fenômenos de uma ou outra força forem encontrados como idênticos entre si, tanto mais provavelmente nada mais constituirão que expressões diversas de uma e mesma força, que (comparativamente) pode denominar-se sua força fun-damental. Do mesmo modo proceder-se à com as forças restantes9.

Esta unidade não é uma lei especial da natureza, mas sim sua lei intrínseca. É uma identidade objetiva da natureza e a natureza mesma é a essência do entendimento. Ou seja, ela é uma identidade sistemática.

As forças fundamentais comparativas, por sua vez, têm que ser confronta-das entre si para, mediante o descobrimento da sua unidade, aproximá-las de uma única força fundamental radical, isto é, absoluta. Está unidade

7. W. NEUSER, Natur und Begriff, op. cit., , p. 120 ss.8. I. KANT, Critica da Razão Pura, op. cit., B 677ff, p.121..9. I. KANT, Critica da Razão Pura, op. cit., B 677, p.121.

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da razão é, todavia, simplesmente hipotética. Não se afirma que uma tal unidade tem que ser encontrada de fato, mas que se tem que a procurar em benefício da razão, ou seja, para erigir certos princípios para as diver-sas regras que a experiência nos fornece, e onde factível introduzir deste modo uma unidade sistemática no conhecimento10.

Neste sentido, o conceito de força que emerge destas reflexões é uma conseqüência de uma série de abstrações de uma força em geral e ideal. Esta força representa a unidade da natureza enquanto unidade do en-tendimento. E, ao mesmo tempo, também descreve a lei do entendimento como um campo do efeito causal na natureza. Este programa de Kant é um programa da filosofia e da física newtoniana apresentado, por exemplo, na formulação de D´Alembert.

O programa de Hegel no capítulo ”Força e Entendimento” está ori-entado por essas reflexões de Kant. Por isso, ele pode ficar mais claro e ser melhor entendido se tivermos presente as conseqüências que o próprio Kant tirou disso na construção da sua concepção de matéria na obra Primeiros Princípios metafísicos da ciência da natureza. Essas reflexões, juntamente com as idéias de Schelling sobre o conceito de matéria, irão servir de funda-mento para as análises que serão apresentadas por Hegel.

IV. O conceito de matéria nos Primeiros Princípios metafísicos da ciência da natureza de Kant

Segundo Kant, o princípio de tudo o que é objeto dos sentidos é o movimento. Só o movimento pode ser percebido ou perturbar os sentidos. O entendimento reduz todas as determinações da matéria existentes na natureza ao movimento. Assim, a ciência da natureza, seja ela pura ou aplicada, trata do movimento. Os princípios e a construção dos conceitos da natureza são partes da doutrina metafísica do movimento. O esquema, de acordo com o qual o sistema metafísico é completo, encontra-se na tábua das categorias apresentada por Kant. Desta tábua de categorias fazem parte a qualidade, a quantidade, a relação e a modalidade.

Tais categorias determinam tudo aquilo que se pode pensar da ma-téria, tudo aquilo que se pode chegar a saber, tudo aquilo que pode ser construído na matemática. Consideradas essas categorias, existem quatro modos de fazer uma descrição da natureza: pela disciplina da quantidade, que é a Foronomia; pela disciplina da qualidade, que é a Dinâmica; pela dis-ciplina da relação, que é a Mecânica e pela disciplina da modalidade, que é a Fenomenologia11.

Destas reflexões segue-se que a matéria é dotada de uma estrutura 10. I. KANT, Critica da Razão Pura, op. cit., B 679, p.121.11. Ver: W. NEUSER, Die Methoden der Naturwissenschaften im Spiegel der frühen Naturphilos-ophie Schellings, em: W. Ch. ZIMMERLI, K. STEIN, M. GERTEN. “Fessellos durch die Systeme“. Frühromantisches Naturdenken im Umfeld von Arnim, Ritter und Schelling, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1997, 2. Minha argumentação obedece: I. KANT, Primeiros Princípios metafísicos da ciência da natureza. Tradução de Artur Morão, Rio de Janeiro, Edições 70, 1990, Prefácio, p. 13-22.

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especial, constituída por duas forças: a atrativa e a expansiva. Se não ex-istisse a força atrativa mas somente a força expansiva, a matéria desmo-ronaria. Por isso, ambas as forças precisam estar em perfeito e constante equilíbrio. De acordo com Kant, este é o primeiro movimento da matéria, o movimento que faz com que a matéria exista12.

Também Schelling apresentou, antes de 1798, uma concepção dos princípios da natureza que se tornaria muito relevante para as reflexões de Hegel. Para Schelling, a constituição da natureza se dá de acordo com a auto-reflexão do espírito. Antes de 1803, Schelling já havia apresentado três concepções diferentes, que eu quero aqui descrever rapidamente.

Embora Hegel não tenha recebido fundamentalmente as duas últi-mas concepções, ele recebeu um ensaio de Schelling intitulado Allgemeine Deduktion (Dedução Geral), escrito durante a fase da filosofia da identidade de 1801, no qual Schelling descreve a constituição da matéria.

V. A concepção de matéria em Schelling

Em Kant existe uma razão capaz de fundar a unidade do conheci-mento, bem como a unidade da natureza: a unidade do ”Eu”, cuja estrutura é garantida somente pela sua espontaneidade em criar conceitos.

Esta unidade é uma imagem do espelho da unidade da natureza e do mundo. O ”Eu” é a estrutura geral que caracteriza o sujeito em geral. Schelling argumenta, com Fichte, que deste modo pode-se deduzir os fenô-menos especiais da natureza diretamente da unidade do ”Eu”. A natureza é simplesmente uma reflexão direta do espírito sobre suas próprias carac-terísticas, i.e., sobre si mesmo. Assim, a Selbstanschauung ou a auto-intu-ição ou a intuição da mente mesma é considerada uma possibilidade para a obtenção das quatro subdivisões da física, que Kant havia descrito na obra Primeiros Princípios metafísicos da ciência da natureza.

Cabe aqui salientar dois pontos: Em primeiro lugar, a reflexão do espírito sobre si mesmo traz à tona o conceito do objeto do conhecimento. Schelling afirma que esta reflexão leva em conta a natureza morta ou in-animada ou seja, a física e a dinâmica. Posteriormente, o espírito toma a si mesmo como objeto de reflexão. O espírito produz assim uma auto-reflexão. Este tipo de reflexão é característico dos seres animados.

Independente de podermos afirmar se a dedução de Schelling está bem construída, está claro que ele pretende com isso explicar a unidade do espírito, mesmo se ele não pode demonstrar a unidade da natureza. Schelling tratou especificamente desse assunto até 1798 em seus escritos Ideen zu einer Philosophie der Natur (Idéias para uma Filosofia da Natureza) e Weltseele (A alma do mundo). Entre 1798 e 1800, Schelling tentou mais 12. Para mais detalhes sobre o conceito, ver I. KANT, Primeiros Princípios metafísicos da ciên-cia da natureza, op. cit., p. 25-27.

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vez formular uma explicação para a unidade da natureza13. Ele argumen-tou que a natureza é uma auto-produção homogênea e que ninguém pode, antecipadamente, frear sua produção. Mesmo quando se quer frear sua produção, a produção de fenômenos ocorre. Ao defender esta concepção, Schelling apresenta duas idéias fundamentais:

1. A natureza pode ser vista como uma organização que se (re)produz con-tínua e indefinidamente. Ou seja, a produção da natureza pode ser pensada, mas é impossível descobrir as estruturas dessa produção. Mesmo quando se quer frear a ação da natureza, assim mesmo ocorre a auto-reprodução.

2. Este é o modelo apresentado na eletrodinâmica de Euler. Segundo Euler, um éter homogêneo pode produzir fenômenos se ele for perturbado por um pedaço de ferro, por exemplo.

Como o próprio Schelling afirma, de acordo com essa concepção pode-se explicar a unidade da natureza, mas não a unidade do espírito. Por isso, depois de 1800, Schelling formula uma nova concepção na qual rela-ciona ambos os modelos apresentados anteriormente. Então, terá início uma nova etapa na filosofia de Schelling, a Identitätsphilosophie (Filosofia da identidade)1�. De acordo com essa nova concepção, natureza é a tentativa de reproduzir os fenômenos da natureza, como ela de fato é, construindo a natureza como uma organização que se reproduz a si mesma.

Na Allgemeine Deduktion (Dedução Geral) de Schelling, o modelo conceitual da natureza como uma determinação indeterminadada, o absolu-to, é constituído por dois princípios. A matéria, e conseqüentemente também a natureza, deveria ser então concebida como um movimento de duas forças contrárias, que constituem o conceito, o absoluto e conseqüentemente a matéria. O fenômeno ou a aparição dos objetos na mente é o resultado de uma interação entre uma força positiva e uma força negativa. A força nega-tiva é a força que torna possível a existência do mundo. Ou seja, a força negativa é constitutiva para a formulação de uma teoria sobre o mundo. Diferentes forças negativas formam os vários graus das coisas existentes no mundo. A força negativa não pode ser deduzida empiricamente. Só a força positiva é dedutível empiricamente.15

A concepção de natureza de Hegel já foi descrita antecipadamente na obra Ideen zu einer Philosophie der Natur (Idéias para uma Filosofia da

13. W. NEUSER, Naturwissen. Überlegungen zum Einfluß der Naturwissenschaften auf Schellings frühe Naturphilosophie, von 1797 bis 1799. Inédita.14. Ver: W. NEUSER, Theoretischer Hintergrund für die Rezeption der Kabbala in der Roman-tik: Am Beispiel von Novalis: Die Lehrlinge zu Sais. in: Ch. SCHULTE; E. GOODMAN-THAU, Kabbala in der Romantischen Literatur, Tübingen 1998.15. F. W. J. SCHELLING, Ideen, 1797, XXXV. F. W. J. SCHELLING, Weltseele, 1798, 26. Ver W. NEUSER, Die Methoden der Naturwissenschaften im Spiegel der frühen Naturphilosophie Schellings, in: W. CH. ZIMMERLI, K. STEIN, M. GERTEN: “Fessellos durch die Systeme“. Frühro-mantisches Naturdenken im Umfeld von Arnim, Ritter und Schelling, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1997, p. 1�.

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Natureza) publicada por Schelling em 179716. Schelling escreveu, que é ne-cessário investigar o princípio dos conceitos. Para ele, a origem dos concei-tos está nos sentidos. Nossa imaginação das coisas é que tem materialidade, que é a interação das forças. Ela é a imaginação do objeto e isto é uma ex-plicação do entendimento17. Deste modo, força é uma expressão do conceito no entendimento. Na Fenomenologia do Espírito de Hegel isto aparecerá como uma citação da obra Ideen (Idéias para uma Filosofia da Natureza) de Schelling.

VI. A estrutura do capítulo ”força e entendimento” da Fenomenologia do Espírito de Hegel

Considerada em primeiro plano, a Fenomenologia do Espírito de Hegel está dividida em três partes. Na primeira parte Hegel trata da sensibilidade; na segunda, do entendimento; e, na terceira, da razão. O capítulo “força e entendimento” é o segundo da terceira parte. À primeira vista, esta subdi-visão se parece com a divisão da faculdade do conhecimento apresentada na por Kant na Crítica da Razão Pura.

Mas em Hegel, mais que em Kant, podemos encontrar o desejo de descrever a capacidade de conhecer simultaneamente a formação ou a gênese do mundo. Esta é a diferença entre o idealismo subjetivo de Kant e o idealismo absoluto de Hegel. Deste modo, no texto de Hegel, existem dois níveis de descrição: um trata da gênese do entendimento; o outro trata da gênese do objeto. Ambos os níveis são somente faces diferentes da mesma moeda.

O texto de Hegel tem duas partes, nas quais ele descreve dois aspec-tos diferentes do desenvolvimento do conceito de ”matéria” e do conceito de entendimento também. Em cada uma destas partes, encontramos várias explicações para o movimento que constitui o conceito. Ou seja: a argumen-tação de Hegel está muito próxima da argumentação de Kant e Schelling. Hegel argumenta de maneira tal que a ”matéria” constituirá uma parte da consciência como uma estrutura do entendimento.

Para Hegel, matéria é somente um conceito. ”Um dos momentos aparece pois como essência posta de lado, como meio universal ou como o subsistir das ‘matérias’ independentes. Mas a independência dessas ma-térias não é outra coisa que esse meio”18. A matéria é a multiplicidade segundo o modo da reflexão do entendimento. A conseqüência disso é a porosidade pura da matéria. Também o movimento entre universalidade e multiplicidade é uma força, a força de exteriorização da unidade na mul-tiplicidade. Este é um conceito de força que já existe em Leibniz e muitos 16. F. W. J. SCHELLING, Ideen, 1797, p. 181 ss. W. NEUSER, Natur und Begriff, Stuttgart/Weimar 1995, p. 167.17. F. W. J. SCHELLING, Ideen, 1797, 181-184. W. NEUSER, Natur und Begriff, Stuttgart/Wei-mar 1995, p. 167s.18. G.W.F. HEGEL, Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses com a colaboração de Karl-Heinz Efken, Petrópolis, Vozes, 1992, p. 97.

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autores do Renascimento. Mas a exteriorização solicita uma outra força, porque por primeiro a universalidade volta-se para fora; portanto uma força e as coisas multiplicadas têm interações, que são um tipo de força física, que se chamam as forças solicitadas. Esta exteriorização e as interações dentro deste contexto constituem a lei primeira, que descreve basicamente a con-stituição do mundo.

Resulta daí que o conceito de força se torna efetivo através da duplicação em duas forças e [o modo] como se torna tal. Ambas essas forças existem como essências para si essentes; mas sua existência é um movimento tal, de uma em relação à outra, que seu ser é antes um puro ser-oposto mediante um outro; isto é: seu ser tem, antes, a pura significação do desvanecer19.

Esta constituição da matéria não tem realidade, no sentido de que exista como um objeto independente da consciência. Esta ”matéria” é o conceito da matéria. E nós deveríamos demonstrar como se dá o desenvolvi-mento do entendimento. A lei primeira situa-se no nível do entendimento. O fenômeno ou, em alemão, Erscheinung, a aparência, é a exteriorização da estrutura do entendimento. Ainda que esta seja uma estrutura do enten-dimento, a consciência considera esta estrutura como objetiva, isto é, um ”puro Além”20. Ela é vazia, porque o ”puro Além” não tem realidade. Para o entendimento, este jogo de forças (da primeira lei) é a lei da existência da matéria.

Assim, nessa mudança absoluta, não há nem força, nem solicitar ou ser-solicitado, nem a determinidade do meio subsistente e a unidade em si refletida, nem algo singular para si, nem diversas oposições. Pois o que aí unicamente existe é a diferença como universal, ou como uma diferença tal que as múltiplas oposições ficaram a ela reduzidas.

Esta diferença como universal é, portanto, o simples no jogo da força mesma, e o verdadeiro desse jogo. A diferença é a lei da força.21

De acordo com esta lei, existem principalmente fenômenos como a gravitação, a eletricidade, etc. Como leis principais elas são identificadas com o “puro Além”, que é dado como realidade. O “puro Além” é um tipo de concepção de uma estrutura da matéria que sua fonte na matéria e si-multaneamente no entendimento. Dentro da multiplicidade existem forças especiais, onde se situa a segunda lei. Esta lei é diferente da primeira lei. A segunda lei assinala a contraposição das forças principais dentro da multi-plicidade. A segunda lei trata das estruturas da matéria como uma segunda abstração. Ela não trata da existência pura das forças, mas dos tipos de reação das forças.

A segunda lei, sem dúvida, é também uma lei, ou um ser interior igual-a-si-mesmo; mas é antes uma igualdade-consigo-mesma da desigualdade – uma constância da inconstância22

19. G.W.F. HEGEL, Fenomenologia, p. 101.20. G.W.F. HEGEL, Fenomenologia, p. 103.21. G.W.F. HEGEL, Fenomenologia, p. 105..22. G.W.F. HEGEL, Fenomenologia, p. 111.

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Esta lei, por um lado, descreve fenômenos também descritos na obra Ideen de Schelling, como a complementaridade de (entre) oxigênio e hi-drogênio23, fenômenos da polaridade ou polarização. Por outro lado, esta se-gunda lei representa o nível mais abstrato do entendimento. A duplicidade do mundo é um mundo transsensual (que está para além do sensível) e o apa-recido é o interior do entendimento. Este âmbito da lei segunda é o âmbito da necessidade, da contraposição da interioridade e da exterioridade. Neste âmbito existe uma infinidade de determinações da multiplicidade das coisas. Assim a infinitude, que é o tema central do início das reflexões de Hegel, reflete a infinitude no interior da multiplicidade das coisas do mundo.

Neste capítulo da Fenomenologia, Hegel descreve a constituição fun-damental do entendimento e sua reflexão na constituição da matéria. Com isso, eu espero ter tornado claros alguns aspectos centrais deste importante capítulo da Fenomenologia, embora eu não tenha feito uma descrição da história do conceito de força. Hegel escreveu:

Nós vemos que no interior do fenômeno o entendimento na verdade não experimenta outra coisa que o fenômeno mesmo. Não o fenômeno do modo como é jogo de força, mas sim, o jogo de forças em seus momentos absolutamente universais, e no movimento deles: de fato o entendimento só faz experiência de si mesmo. A consciência, elevada sobre a percepção apresenta-se concluída junto com o supra-sensível através do meio-termo do fenômeno, mediante o qual divisa esse fundo [das coisas]2�.

No final do capítulo, Hegel é levado a tratar do conceito de razão para refletir a consciência-de-si-mesmo. Pelo fato de que o entendimento só pode refletir sua interioridade, isto é, o ”puro Além” como um exterior e como um interior, o entendimento não pode descrever a estrutura-de-si-mesmo. Esta será a tarefa da razão, o tema do capítulo seguinte da Fenomenologia do Espírito.

23. G.W.F. HEGEL, Fenomenologia, p. 112.24. G.W.F. HEGEL, Fenomenologia, p. 117.

THE HEGEL SOCIETY OF AMERICA

CALL FOR PAPERS

“Hegel, Religion and Politics”

The 21st Biennial Meeting of the Hegel Society of America

St. Norbert College - De Pere, Wisconsin

Friday, October 8 - Sunday, October 10, 2010

Deadline for submission of papers: January 31, 2010

The conference topic covers all aspects of the theme Hegel, Religion, and Politics, broadly understood. We invite papers that investigate or prob-lematize in new ways and in new connections the intersection of religion and politics in Hegel’s philosophy. Papers that tackle the issue historically, systematically, or in connection to contemporary questions are welcome.

Submitted papers are limited to 6,000 words, formatted for blind re-view, and should be accompanied by an abstract (300 words.) Papers must be submitted at this length and later adjustments must remain within this limit. All papers should be in English. Although papers presented at meet-ings of the Hegel Society of America are usually published as a collection of essays, publication cannot be guaranteed. By submitting a paper, however, the author agrees to reserve publication for the HSA proceedings if the paper is accepted for the program, and if the program is accepted for publication.

Please send papers (electronic submissions only) to Prof. Angelica Nuzzo (Program Chair) at [email protected].

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Força e Entendimento: Um argumento contra o fisicismo

Konrad Utz1

RESUMO: O artigo tenciona identificar, no final do capítulo “Força e Entendimento”, da Feno-menologia do Espírito de Hegel, um argumento contra a pretensão do fisicismo segundo a qual tudo que existe ou acontece pode ser completamente descrito pelo vocabulário da física. Como o próprio Hegel explicita este argumento num contexto imanente da obra, sem referência explí-cita ao fisicismo, o autor propõe-se disseca-lo e isolá-lo do resto da exposição hegeliana, para mostrar a seguir que, de acordo com o argumento hegeliano, o vocabulário da física não é in-ternamente explicável, que ele não se constitui de termos basais e de combinações desses, mas contém termos não-basais, que não podem ser, neste vocabulário, reduzidos a termos basais. O que significa, ao fim e ao cabo, que o vocabulário da física é explanatoriamente insuficiente, não-autônomo.

Palavras-chave: Hegel, Força, Entendimento, Fisicismo, Autoconsciência

ABSTRACT: This article aims to identify an Hegelian argument, hidden at the end of the chapter “Force and Understanding” of the Phenomenology of Spirit, which defeats the physicalistic claim that every entity and every event can be completely described by the vocabulary of physics. Since Hegel’s own explanation isn’t explicitly directed against physicism, but is embedded in a phenomenological context, the author first proposes to dissect this argument and isolate it from the rest of the Hegel’s explanations. Then it is shown that, by virtue of the He-gelian ar-gument, the vocabulary of physics cannot be explicated internally. And since this vocabulary, obvi-ously, is not constituted of basic terms together with combinations of these, the terms of this vocabulary thus cannot be reduced within the vocabulary to basic terms. This means that the vocabulary of physics is explanatorily incomplete and thus non-autonomous.

Keywords: Hegel, Force, Understanding, Physicalism, Self-consciousness

Durante toda sua vida Hegel lutou por um entendimento adequado das ciências naturais e de seus resultados atuais e esforçou-se para integrá-los ao seu sistema. Segundo o juizo dos cientistas naturais, ele fracassou. Isso vale, especificamente, para a exposição do conceito da força nos vá-rios textos hegelianos. Hegel, por um lado, corretamente identificou a força como novo fundamento categórico da física newtoniana. Por outro lado ele aparentemente não se deu conta da diferença simples e fundamental entre força e quantidade de movimento, o que torna suas explicações confusas e inaceitáveis para todo físico contemporâneo2.

Não tenho a competência para contestar este julgamento. Pelo pou-co que entendo da física moderna, eu concordo que temos que descartar a filosofia natural de Hegel enquanto sistema global. Mas isso não impede que, em várias partes dela, encontrem-se evidências, argumentos e ques-

1. Professor da UFC. Texto submetido em dezembro de 2008 e aprovado para publicação em janeiro de 2009.2. P.ex. Enc. § 261, nota [cf., p.ex., G.W.F. HEGEL, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome (trad. Artur Morão), Lisboa s.a.]; cf. p.ex. RENATE WAHSNER, art. „Kraft“, in: PAUL COBBEN et alii, org., Hegel-Lexikon, Darmstadt: WBG 2006, p. 287-289.

Revista Eletrônica Estudos HegelianosAno 5, nº9, Dezembro-2008: �9-58

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tionamentos frutíferos e valiosos, até para o diálogo atual da filosofia com as ciências naturais3. Um exemplo de tais contribuições interessantes de Hegel me parece encontrar-se no capítulo “Força e Entendimento, Manifes-tação e Mundo Suprasensível”. Este capítulo é o último da primeira parte da Fenomenologia do Espírito (FdE)4, intitulada “Consciência” e faz a ponte para a próxima parte, dedicada à “Autoconsciência”. Isso quer dizer que aquela consciência que concebe seu objeto fundamentalmente como força, e o próprio estar-consciente como entendimento, é a forma de consciência mais alta dentre aquelas que ainda não integram a consciência da própria consciência na forma de consciência, i.e., que ainda estão cegas quanto ao Eu. Hegel identifica essa forma de consciência com a visão naturalista ou fisicista e evidencia a falta da autoreferência explícita da consciência como deficiência fundamental desta forma de consciência. No capítulo “Força e Entendimento”, portanto, Hegel tenciona, por primeiro, deduzir o conceito fenomenológico da força, depois desdobrar seus vários sentidos e níveis de compreensão, junto com os conceitos da matéria e do entendimento, para, por último, evidenciar a insuficiência inerente a estas concepções (da força) e a necessidade imanente de passar destas estruturas à estrutura da Auto-consciência.

Neste contexto, então, Hegel desenvolve um argumento crítico di-recionado ao fisicismo ou pelo menos a certa forma deste. Tal argumento parece-me válido, mesmo que seja necessário, para dissecá-lo, isolá-lo do resto da exposição, o que me proponho fazer aqui. Antes de começar é importante esclarecer que este argumento não se direciona contra a física

3. Cf. a ampla discussão da Filosofia da Natureza de Hegel nos últimos anos, p.ex. M. BOR-MANN, Der Begriff der Natur. Eine Untersuchung zu Hegels Naturbegriff und dessen Rezeption, Herbolzheim 2000; W. BONSIEPEN, Die Begründung einer Naturphilosophie bei Kant, Schelling, Fries und Hegel. Mathematische versus spekulative Naturphilosophie (Philosoophische Abhan-dlungen 70), Frankfurt a.M. 1997; J.W. BURBIDGE, Real Process. How Logic and Chemistry Combine in Hegel’s Philosophy of Nature, Toronto 1996; N. FÉVRIER, La mécanique hégélienne. Commentaire des paragraphes 245 à 271 de l’Encyclopédie de Hegel, Löwen/Paris 2000; ST. HOUGATE (org.), Hegel and the Philosophy of Nature, New York 1998; A. LACROIX, Hegel. La philosophie de la nature, Paris 1997; G. MARMASSE, TH. POSCH (org.), Die Natur in den Begriff übersetzen. Zu Hegels Kritik des naturwissenschaftlichen Allgemeinen, Frankfurt a.M. 2005; W. NEUSER, Natur und Begriff. Zur Theorienkonstitution und Begrffsgeschichte von Newton bis Hegel, Stuttgart, Weimar 1995; W. NEUSER, V. HÖSLE (org.), Logik, Mathematik und Naturphi-losophie im objektiven Idealismus, Würzburg 2004; M.J. PETRY (org.), Hegel and Newtonian-ism, Dordrecht, London, Boston 1993; Idem (org.), Hegel und die Naturwissenschaften, Stutt-gart-Bad Cannstatt 1987; TH. POSCH, R. WAHSNER (org.), Die Natur muß bewiesen werden. Zu Grundfragen der Hegelschen Naturphilosophie, Frankfurt a.M. 2002; E. RENAULT, Philoso-phie chimique. Hegel et la science dynamiste de son temps, Bordeaux 2002; H. SCHNEIDER (org.), Sich in Freiheit entlassen. Natur und Idee bei Hegel, Frankfurt a.M. 2004; A STONE, Petrified Intelligence: Nature in Hegel’s Philosoph (SUNY Series in Hegelian Studies), Albany (N.Y.) 2005; R. WAHSNER, Hegel und das mechanistische Weltbild. Vom Wissenschaftsprinzip Mechanismus zum Organismus als Vernunftbegriff (Hegeliana: Studien und Quellen zu Hegel und Hegelianismus 19), Frankfurt a.M. 2005; Idem, Zur Kritik der Hegelschen Naturphiloso-phie. Über ihren Sinn im Lichte der heutigen Naturerkenntnis, Frankfurt a.M. 1996; D. WAND-SCHNEIDER, Raum, Zeit, Relativität. Grundbestimmungender Physik in der Perspektive der Hegelschen Naturphilosophie, Frankfurt a.M. 1982.4. Cito, neste artigo, da tradução portuguesa: G.W.F. HEGEL, Fenomenologia do Espírito (trad. de Paulo Meneses, com a colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado, SJ), Petrópolis: Editora Vozes, �2007, indicando primeiro o parágrafo do texto original (como in-dicado na tradução), depois a página da tradução.

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como tal. Ele critica uma certa visão do mundo que toma as ciências natu-rais como base e declara que a realidade não é outra coisa que aquilo que essas ciências estão em vias de apurar, i.e., que tudo que existe ou acontece pode ser completamente descrito pelo vocabulário da física. Este fisicismo5, evidentemente, não pode ser confundido com a própria física, mesmo que muitos físicos pareçam ser fisicistas também. Portanto, os pensamentos he-gelianos que pretendo apresentar aqui não têm, diretamente, a ver com a física e, consequentemente, não correm tanto risco de mal interpretá-la.

Os objetos da física moderna são matérias e forças – ou, como se diz hoje em dia: matéria e energia. Como Einstein mostrou, estes dois são equivalentes, mas isso não tem importância para o argumento. O único campo para elas existirem e se mostrarem é o espaço-tempo. Outra vez, a interdependência de espaço e tempo que Einstein revelou não importa para o argumento. A Física, então, explica a relação entre dados espaço-tempo-rais pela relação entre materia e forças (ou pela relação entre energias). A linguagem dessa explicação é a matemática, i.e., as relações são rela-ções numéricas, expressas por funções matemáticas. Funções matemáti-cas transformam números em números. Elas nunca fazem outra coisa além disso. Portanto, funções matemáticas, enquanto tais, nunca fornecem algo além de determinações quantitativas, nunca fornecem algo qualitativo. Mas se é assim, funções matemáticas, por si só nunca explicam o mundo, nem o mundo físico. Isso é equivalente a dizer que a matemática não é física, o que é banal.

Disso segue que as funções matemáticas pelas quais a física expli-ca as relações entre matéria e energia apenas explicam o lado quantitati-vo dessas relações. Eles não explicam o lado qualitativo dos relacionados. Este lado qualitativo também é representado no vocabulário da física, pelos símbolos das grandezas físicas e pelas unidades de mensura. O problema é que este aspecto qualitativo não é explicável neste vocabulário, porque este vocabulário, através das fórmulas formadas com ele, apenas consegue des-crever o comportamento espaço-temporal das coisas, mas nunca consegue formular o que são tais coisas. Portanto, elas não podem dizer-nos como identificar essas coisas – e o mero comportamento não basta para identificá-los, pois sempre precisamos ter identificado um objeto como tal para poder identificar o comportamento dele6. Na terminologia hegeliana poderiamos dizer, a física não conse-gue explicar os conceitos das forças e da matéria. Com Quine, poderíamos dizer que ela não consegue fornecer as condições da identidade delas.

De modo mais formal poderíamos dizer: a semântica da física não é

5. Segundo a definição dada, trata-se, mais especificamente, do fisicísmo epistêmico ou ex-planatório. Acho que os argumentos de Hegel valem também contra o fisicismo ontológico que diz que tudo que existe ou acontece é constituido por entidades físicas, mas não vou discutir essa questão neste artigo.6. Também podemos dizer: nunca podemos identificar um objeto ou um evento real apenas por sua quantidade. Sempre precisamos de algo quantitativo pelo qual o objeto, o evento ou o comportamento em questão pode ser distinguido do resto da realidade.

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redutível à sintaxe da matemática. Essa sintaxe apenas transforma valores quantitativos em valores quantitativos. Portanto nunca consegue explicitar ou definir algo além do quantitativo. Mas a semântica da física não é apenas quantitativa, mesmo que o número de termos qualitativos básicos que ela exige possa ser bem baixo.

Mas, desta forma, a física não pode, no seu vocabulário, explicar o que seja isso a que suas fórmulas se aplicam. Como ela apenas consegue descrever comportamentos espaço-temporais, ela pode apenas identificar um determinado comportamento de uma entidade rela-tivo a uma outra entidade. Ela poderia dizer, p.ex., se algo se comporta da maneira: e = ½ gt2, i.e., se ele mostra uma certa aceleração relativa à terra, ele é um corpo pesado. Isso quer dizer, a física pode identificar um corpo pesado por seu comportamento espaço-temporal em relação à terra. Mas essa identificação sempre depende de algo já identificado, neste caso a terra. Portanto, a fí-sica não é autônoma em estabelecer as condições da identidade das suas entidades. Repito: isso não cria problema nenhum para a própria física. Isso se torna problemático apenas quando o vocabulário da física deve servir, exclusivamente, para explicar a realidade. Porque isso se mostra impossível. O vocabulário da física não consegue formular as condições suficientes da referência de seus termos. De uma maneira ou de outra nós já precisamos saber o que é matéria, o que é movimento, o que é um corpo, antes de en-trar na física, para saber de que ela fala. Evidentemente, a física vai escla-recer e precisar nossas noções intuitivas do físico. Mas o discurso da física sempre permanecerá dependente dessas noções para manter o contato com a realidade. Sem essas noções, que não são explicáveis no vocabulário da física exata, este discurso torna-se vazio, insignificante. Isso quer dizer que, de certa forma, a física, em suas fórmulas exatas, por si só não diz nada, porque sobre nada ela diz algo.

É justamente isso que, na minha interpretação, Hegel pretende mos-trar no parágrafo sobre o “explicar” (FdE, §154, p. 123s)7. Este talvez seja um dos parágrafos mais obscuros da FdE. Ele provocou as interpretações mais divergentes, sem que se tenha estabelecido algum consenso básico nos debates sobre ele. Primeiro, me parece evidente que este parágrafo não fale mais da relação entre mundo sensível e mundo supra-sensível. A dife-rença entre o explicante e o explicado não é mais “nenhuma diferença na Coisa mesma” (ibid.), e o Entendimento que faz a explicação sabe disso8.

Mais tarde, no mesmo parágrafo, Hegel usa o exemplo do raio e da lei da electricidade. Isso, a primeira vista, parece indicar que Hegel ainda se refira à relação entre objeto sensível e lei universal. Mas Hegel deixa claro que aqui ele não fala mais daquela consciência que se atrela ao objeto

7. Eu não usei este termo em minha própria exposição do “argumento contra o fisicismo”, pois ele pode ser mal entendido: no sentido de uma teoria explanatória, que busca razões. Sabe-se que as ciências naturais não pretendem ser explanatória, mas apenas descritivas. Porém, o § 154 não fala do processo de buscar e dar razões. O “explicar” do qual Hegel fala aqui apenas explicita caraterísticas, i.e., ele é descritivo, ele explica o que é ou como é a força e a lei.8. Cf. LEONARDO ALVES VIEIRA, A desdita do discurso, São Paulo: Loyola, 2008, p. 112.

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sensível como imediatamente dado: “o evento singular do raio é apreendido como universal” (FdE, §154, p. 123s); isso é, o entendimento, no processo da experiência, ja efetuou a abstração e, agora, compreende seu objeto ver-dadeiro como o universal da aparência, não como o singular da percepção. No processo da explicação, “esse universal”, i.e., o universal atrás do evento singular, é “enunciado como a lei da eletricidade” (FdE, §154, p. 124). São, portanto, dois universais, dois objetos suprassensíveis que o Entendimento relaciona um ao outro no processo da explicação9.

Estes dois universais, na terminologia de Hegel, são a lei e a força. Essa força, porém, não é mais aquela do ínício de nosso capítulo, ela não é mais a força concreta em relação a matérias, na diferenciação em força ma-nifesta e força recalcada e no jogo das forças. A força, agora, é compreen-dida pelo Entendimento como “força geral ou conceito da força: uma abstra-ção” (FdE, §152, p. 121). Ela é apenas uma maneira da lei estar presente (cf. ibid.): “na forma do simples Ser-retornado-a-si-mesmo” – diferente da forma explicitada da lei, “em que as diferenças são expressas como momen-tos independentes”. Essa força, então, é meramente a realidade simples que corresponde à explicitação discursiva da lei10. Explicamos: O conceito da lei ao qual o Entendimento chegou ao desenvolvimento gradativo de sua cons-ciência é, por assim dizer, um conceito não-saturado. Leis não são realidades por si mesmas, elas sempre são leis de algo (ou, na prática humana, para alguém, mas isso não interessa aqui). Disso, o Entendimento tem consciên-cia. Inicialmente, ele concebia a lei como lei do mundo sensível. Mas, como acabamos de mostrar, o sensível já foi desmascarado como o inessencial. Não é ele a realidade verdadeira das leis. Portanto, o Entendimento precisa de um novo algo do qual a lei seja lei. Este algo só pode ser uma realida-de do mundo suprassensível, pois o mundo sensível já foi ontologicamente apagado enquanto mera manifestação ou até ilustração do supra-sensível. Desta forma, o Entendimento chega à consciência de um novo objeto, à consciência de uma nova realidade verdadeira da qual a lei é lei. Esta re-alidade é a “força geral ou conceito da força” (FdE, §152, p. 121)11. Ela é,

9. Contra Pedro Geraldo Aparecido Novelli, p.ex., que defende que a lei, em Hegel, sempre deve ser compreendida essencialmente, em sua relação ao mundo sensível, cf. IDEM, O espírito do fenômeno: Da aparência da lei a lei da aparência, em: E.F. CHAGAS, K. UTZ, J.W.J. DE OLIVEI-RA (orgs.), Comemoração aos 200 anos da “Fenomenologia do Espírito” de Hegel, p. 203-217, p. 216. A interpretação de Andreas Schmidt que enquanto tal, é muito instigante e inteligente, também sofre do mau-entendimento que a relação do explicar seja aquela entre fenômenos sensíveis e leis (ou lei) supra-sensível, cf. IDEM, Differences that are None Hegel’s Theory of Force in the Phenomenology of Spirit, manuscrito a ser publicado, p. 9-11.10. PAULO MENESES (Para ler a Fenomenologia do Espírito, São Paulo: Loyola, 1985, 49) diz que a ‘força’ enquanto conceito complementar da lei seja a necessidade da lei. Embora essa interpretação leve ao mesmo resultado, ela não me parece ser bem adequada. Hegel explica que lei e força se relacionam como conceito e ser (FE, § 152, p. 122). A força, então é o “em si sendo” (FE, § 154, p. 123), a lei o “conceito” (ibid.) do mesmo. A necessidade da qual Hegel fala em FE, 152 e a qual, por suas formulações, Meneses se refere (cf. loc.cit. p. 50) não é o sinônimo da força, mas é a necessidade, pela qual a força precisa manifestar-se na forma de sua lei. Essa necessidade é uma “palavra vazia” (FE, § 152, p. 122), pois a força “enquanto força simples é indiferente em relação a sua lei” (ibid.).11. Destarte, não concordo com JOSEPH C. FLAY que mantém que “o processo de explicar (Erklären), [está] duplicando o mundo da aparência” (IDEM, Hegel’s “Inverted World”, in: D. KÖHLER, O. PÖGGELER (org.), G.W.F. HEGEL, Phänomenologie des Geistes (série Klassiker Aus-

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p.ex., a força gravitacional como tal, não mais a força gravitacional da terra em relação a esta maçã ou esta gota de água ou a força gravitacional do sol em relação à terra ou a força gravitacional deste átomo em relação a seu vizinho. Portanto, trata-se de um conceito de força no qual a referência ao particular empírico está apagada. Ou, para voltar à terminologia anterior-mente usada, essa força pertence ao lado da linguagem da física. A relação ao sensível, i.e., a referência extra-linguística deste “conceito da força” (FdE, §152, p. 121) não faz mais parte deste conceito, ela não é mais constitutiva para sua semântica.

Mas com isso nós chegamos justamente àquela situação que, an-tes, identificamos como o problema do fisicismo: a uma linguagem que fala apenas sobre si mesma12. Se alguém pergunta ao fisicista: “O que é a força gravitacional?”, ele só pode responder: “e = ½ gt2”. E quando perguntamos a ele: “O que é que ‘e = ½ gt2’ explica, qual é seu explicando (explanans)”, ele só pode responder “a força gravitacional em geral”. Isso, evidentemente, é um “movimento tautológico” (FdE, §155, p.124) como Hegel reclama13. Para evitar esse tautologismo, o fisicista, talvez, pode renunciar a falar de obje-tos. Mas, como apontamos, é difícil falar em lei sem falar em algo do qual ela seja lei. Se, contudo, o fisicista quiser oferecer tal “algo”, tal objeto da lei, tudo o que ele pode oferecer é uma “força abstrata”, um mero “conceito da força”, que não é outra “coisa” (cf. FdE, §154, p.123) que a lei, i.e., cuja diferença à lei é apenas “uma diferença de conceito” (ibid.), uma diferença meramente intralinguística. Pois o fisicista certamente não pode oferecer uma realidade empírica, extralinguística como objeto de suas leis, já que sua linguagem é incapaz de explicitar qualquer referência a algo fora dela.

De modo mais formal podemos explicar:que o que a física formula em sua linguagem exata são modelos matemáticos da realidade. Estes mo-delos ganham seu significado “físico”, “real”, pela relação que têm com aqui-lo que chamamos realidade. Agora, essa realidade não fala “matematiquês”,

legen, vol. 16), Berlim: Akademie Verlag, 2006, p. 91-208, p. 97; trad. minha, K.U.). A “força geral” no mundo supra-sensível não é meramente uma duplicação da força no mundo sensível, mas uma nova relidade constituida a partir do conceito da lei.12. L.A. VIEIRA, op. cit. p. 11�, fala da “ação de encerrar-se ou fechar-se em uma espécie de bolha lingüística”.13. Esclarecemos, para evitar mal-entendimentos: Quando pergunto ao físico: “Porque é que essa maçã cai para a terra”, a resposta: “Porque massas se atraem mutualmente” certamente é uma explicação interessante, não-tautológica. Porém, essa explicação, como apresentada, é incompleta. Ela só faz sentido quando a completamos por uma segunda premissa: “Essa maçã é um objeto que tem massa”. Essa premissa, porém, não pode ser formu-lada na linguagem matemática da física, pois essa não tem como fazer referência a “essa maçã”. Portanto, aquele explicar que permanece completamente imanente à linguagem exata da física é tautológico, mas não as explica-ções físicas que transcendem essa linguagem para referir-se ao mundo sensível. Disso segue, que a crítica de Hegel refere-se apenas a um modo bem específico de ex-plicar. Este até é um modo bem raro, pois a grande mai-oria de nossas explicações (no sentido que a palavra “explicação” tem na linguagem comum) não são explica-ções de tipo que Hegel critica. Podemos críticar Hegel por falar, em todo o parágrafo 15� da FdE, assim como ele se referisse ao explicar em geral, i.e., a todo tipo de explicar. Isso, certamente, confundiu muitos intérpretes e tornou a exposição de Hegel não apenas incompreensível mas também inacei-tável, princípalmente aos cientistas naturais. Pois, deste modo, era fácil para eles responderem: “Não é isso que nós fazemos, essa crítica não faz sentido.”

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ela não se apresenta de forma matemática. Para estabelecer um modelo matemático dessa realidade e para aplicar este modelo a ela precisa-se, por-tanto, de uma tradução das manifestações do real à linguagem da matemá-tica. Essa tradução chama-se quanti-ficação e é efeituada pelo processo de medida. Por essa tradução ganhamos dados que pode-mos entrar no modelo matemático da realidade. O modelo processa estes dados, ele transfor-ma estes dados em novos dados, i.e., ele nos fornece resultados que também têm forma quan-titativa, os quais nós podemos, em seguida, re-traduzir e comparar com os processos reais. Se a tradução confere, o modelo é bem sucedido1�.

Disso fica evidente que o significado “real” do modelo é constituido pelos processos de tradução e re-tradução. Sem essa referência, o modelo é um entre milhares de outros modelos possíveis, coerentes, que podemos construir na linguagem da matemática. O ponto não é apenas que a “ver-dade” ou o “sucesso” do modelo depende da tradução e da re-tradução. O próprio significado do modelo depende da possibilidade da tradução e da re-tradução. Sem essa possiblidade, todos os termos não matemáticos do modelo carecem de sentido. O problema é que o modelo não pode dizer nada sobre os processos da tradução e da re-tradução. Estes processos também são processos de transformação de dados15. Mas não de dados quantitativos em quantitativos. São transformações de algo qualitativo em algo quantitativo. Este tipo de transformação a linguagem da matemática não consegue modelar, porque é limitada ao quantitativo, como já repetimos tantas vezes. Para abusar de um termo kantiano, os processos da tradução e da re-tradução são os transcendentais da semântica não-matemática dos modelos físicos da relidade. É a condição da possibilidade de seu significado, e justamente por isso, os modelos são incapazes de expressá-los.

Aqui não se trata apenas do problema geral que termos não po-dem ser explicados infinitamente ou completamente. Como conceitos são explicados por conceitos, precisa-se de alguns conceitos básicos, não ex-plicáveis, a partir dos quais os outros sejam explicados. Pelo menos na prá-tica linguística isso não cria um problema, porque nós entendemos estes termos. Certamente, os termos fundamentais de nossa percepção são tais

14. Cf. p.ex., JOHN CASTI, ANDERS KARLQVIST, Introduction, in: IDEM (org.), Newton to Aris-totle: Toward a Theory of Models for Living Systems, Boston, Mass.: Birkhäuser, 1989, p. 3-10. Cf. também, no mesmo volume: ROBERT ROSEN, The Roles of Necessity in Biology, 15-37; e, IDEM, Life itself: A comprehensive Inquiry Into the Nature, Origin and Fabrication of Life, New York, Oxford: Columbia University Press, 1991, p. 57-64.15. Robert Rosen aponta um outro problema dessa transformação ou tradução de dados (The Church-Pythagoras Theses, in: IDEM, Essays on Life Itself, New York: Columbia University Press, 1999, p. 63-81). Nem todas as quantidades podem ser medidas, pois os números reais abarcam numeros com lugares infinitos, com ou a raíz de 2. Para medir a extensão de , p.ex., precisariamos de uma régua com infinitas subdivisões. Tal régua, eviden-temente, é um absurdo. Portanto, já por razões meramente matemáticas, a realidade não é completamente tradu-zível nos modelos matemáticos da física. Este é o problema da incomensurabilidade. Ele é bem distinto do pro-blema exposto aqui. O problema da incomensurabilidade diz respeito à aplicabilidade dos modelos matemáticos da física. O nosso problema diz respeito a uma defi-ciência imanente da linguagem na qual os modelos da física são formulados. Porém, ambos os problemas evidenciam a inviabilidade do fisicísmo (pelo menos da forma tratada aqui).

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expressões básicas. Não conseguimos explicar conceitualmente o que seja a percepção de vermelho16. E não há nenhum problema com isso, pois para qualquer um que não seja cego nós podemos apontar um objeto e dizer: “a cor disso aí é vermelho”. Segundo Kant e muitos outros filósofos, existem, além das expressões de nossa percepção, conceitos puros básicos que são simplesmente dados e não explicáveis por outros conceitos. Estes conceitos, necessariamente, são aprióricos. Eu, pessoalmente, não concordo que haja conceitos “simplesmente dados”, nem empíricos nem aprióricos. Mas não quero discutir essa questão aqui. O argumento contra o fisicísmo que estou apresentando aqui vale mesmo se assumirmos a existência de tais “concei-tos primitivos” que poderiam resolver o problema da formação de conceitos em geral.

Pois o problema é que os termos não-matemáticos da física não têm o caráter de conceitos primitivos. Por um lado, eles não são termos apri-óricos, mas descrevem realidades empíricas. Por outro lado, eles não são expressões da percepção. Nossa percepção imediata não nos fala de massas e forças, ela nos fala de cores, formas, sons, pressões, temperaturas etc. Os termos empíricos do vocabulário da física evidentemente apresentam abstrações de nossas experiências imediatas e, portanto, não podem ser termos basais. Mais precisamente, são termos formados pelo processo da tradução quantificadora que os físicos efetuam em seus experimentos atra-vés de seus aparelhos de mensura. Mas qualquer termo não-basal necessita da explicação por termos basais. Essa explicação dos termos empíricos da física, o vocabulário da física não pode fornecer; pois este vocabulário con-tém, além dos termos empíricos não-basais, apenas termos matemáticos. Portanto podemos, sim, no vocabulário da física, explicar, através das fór-mulas matemáticas, um termo empírico a partir do outro. Podemos explicar, p.ex., que a energia do movimento de um corpo é o produto de sua massa e sua velocidade. Mas sempre precisamos, para isso, pressupor um termo empírico já dado – no exemplo: a massa e a velocidade. Destarte, o voca-bulário da física não é internamente explicável, i.e., ele não se constitui de termos basais e de combinações dessas, mas contém termos não-basais, que não podem ser, neste vocabulário, reduzidos a termos basais. Mas isso significa que o vocabulário da física é explanatoriamente insuficiente, não-autônomo.

A razão disso é a caraterística do procedimento da física moderna. Ela parte de observações concretas, i.e., do sensivel. Dessas experiências, ele extrai, através da universalização e da abstração, leis gerais da natureza. Estes são categorialmente diferentes de objetos empíricos. Nenhuma expe-riência, enquanto tal, evidencia universalidade e necessidade, como bem ar-gumentou Hume. Este salto da indução a um sistema aximomático-deduti-vo, como se sabe, é epistemologicamente problemático, mas não é isso que interessa a Hegel aqui. Ele aponta ao fato que, no processo da formação dos conhecimentos da física, a experiência concreta é apagada. No resulta

16. Isso não quer dizer, necessariamente, que termos empíricos carecem totalmente de conteú-dos não-empíricos, como argumentou Kant, p.ex.

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do da investigação, i.e., nas fórmulas da física, ela não aparece mais. Desta forma, as leis naturais encontram-se num outro patamar, num outro âmbito que o sensivel. Eles constituem uma realidade além do sensível, um “mundo supra-sensível”.

Hegel usa a analogia do silogismo para explicar este procedimento. Como num silogismo, o processo investigativo da física tem três componen-tes. Neste caso, estes são o entendimento do pesquisador, o mundo sensivel e o mundo imóvel das leis naturais. Primeiramente, o entendimento está em contato com o mundo sensivel – ao qual ele tem acesso direto. Este mundo sensível, por sua vez, depende do mundo supra-sensível das leis naturais. Através de sua experiência do mundo sensivel, que, por sua vez, está ligado ao mundo das leis, o entendimento entra em contato com este último, como num silogismo o primeiro termo é ligado ao último por meio do termo-médio. Se Sócrates é um homem e todos os homens são mortais, os termos “Sócrates” e “mortal” podem ser ligados diretamente. Assim forma-se a conclusão: “Sócrates é mortal”. Nesta conclusão, então, o termo-médio está apagado. Quem segura apenas o resultado do silogismo, não sabe mais dizer se Sócrates é mortal porque ele é um ho-mem e todos os homens são mortais, ou porque ele é um mamífero ou um grego ou um filósofo, que também são todos mortais. O mesmo acontece na física: a linguagem dos resultados da física não fala mais das impressões sensitivas. O problema é que os termos dessa linguagem permanecem semanticamente dependentes do mundo sensitivo que foi apagado.

Hegel acha que o problema possa ser resolvido por uma autodetermi-nação dos conceitos do mundo supra-sensível das leis naturais. Para isso ele introduz um “segundo mundo supra-sensível”, um “mundo inverso” (FdE, § 157, p. 125s) do primeiro. Com isso, o âmbito do supra-sensível contém, nele mesmo, aquele diferença fundamental que anteriormente era fornecido pela diferença entre mundo sensível e mundo supra-sensível e que é necessária para a explicação dos termos não-matemáticos da física. Estes dois mundos supra-sensíveis, finalmente, formam uma união que é “infinitude simples ou o conceito absoluto ... a essência simples da vida, a alma do mundo, a sangue geral” (FdE, § 162, p. 129). Nessa união, a força se auto-determina num auto-movimento puro e se torna, com isso, conceito auto-determinante e, finalmente, autoconsciência. Este tipo de especulação, evidentemente, é inaceitável para todo físico contemporâneo e eu pessoalmente concordo com eles que, neste ponto, não seja possível resgatar a teoria hegeliana que, em outros pontos, eu admiro muito. A meu ver, existe uma estratégia mais promissora para passar do naturalismo à autoconsciência: O mundo supra-sensível das leis, por causa de sua insuficiência semântica, precisa de uma mediação com o mundo sensível. Na tríade de entendimento, mundo sensível e mundo supra-sensível, é apenas o entendimento que pode efe-tuar essa mediação, i.e., que pode ser o “termo-médio” para fundamentar a relação entre os outros dois. Para isso, porém, o entendimento precisa auto-explanar-se, senão o silogismo de mundo sensível, entendimento e mundo supra-sensível recai naquele círculo vicioso de explicação no qual

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um é explicado por um outro e este por mais um outro e este pelo primeiro. A autoconsciência seria o ponto fixo e mediador na relação entre o mundo sensível e mundo apriórico. Isso, porém, talvez fosse kantiano demais para que Hegel pudesse aceitá-lo.

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O movimento dialético: a dor e o sofrimento na Fenomenologia do Espírito

Sônia Maria Schio1

Resumo: Em uma sociedade que valoriza o prazer, o conforto, a diversão, afirmar que há uma concepção na qual o espírito precisa realizar um esforço, e o faz dolorosamente, para superar a negatividade que o envolve é, no mínimo, estranha. O processo dialético, segundo Jean Wahl (Le malheur de la conscience dans la Philosophie de Hegel), comporta essas características. A outra possibilidade hermenêutica, referente à dialética, apregoa que o movimento ocorre pelo “desejo”. Nesse sentido, é interessante investigar se a consciência prescinde, na superação das contradições com as quais se depara, da experiência de um empenho “sofrido” ou “desejante”, permitindo-lhe prosseguir rumo ao Espírito Absoluto. Nessa perspectiva, três são os momentos capitais: o da ilusão da consciência; o da consciência infeliz; e o da “entrada” no mundo da cultura.

Palavras-chave: Consciência, Dor, Sofrimento, Desejo, Movimento dialético.

Abstract: In a society that values the pleasure, the comfort, the amusement, to affirm that the-re is a conception for overcome the negative in which the spirit needs to accomplish an effort that is made painfully is, in the minimum, surprised. According to Jean Wahl, one interpretation sustain that the dialectic process holds the mentioned painfully characteristic. Another possible interpretation, according to him, sustain that the engine of the dialectic movement be the desi-re. According to the last perspective, it is interesting to investigate both, under the speculative point of view, but also with relationship to its philosophical and social present time importance, if the conscience overcomes the negative toward the absolute spirit without the contradictions, being that either the desire or the sufferance. Aiming to address this issue, three are the capital moments that must be presented: first the one of the illusion of the conscience and the obtai-ning of the sensitive certainty; second the dialect of the servant and master and the research of the unhappy conscience; third the one in which the self-awareness penetrates in the world of culture.

Key-words: Conscience, Pain, Suffering, Desire, Dialectic movement.

A dialética do “esforço doloroso” e a do “desejo” encontram-se dis-seminadas na literatura da área. Rapidamente pode-se ilustrar a questão: Denis Rosenfield (2002, p. 46), afirma que “no início do percurso, a subs-tância aparece sob as formas mais simples da consciência imediata e, graças a um árduo e penoso trabalho – o das figuras, o do esforço da civilização -, se alça progressivamente à sua concepção de si”. Outro exemplo pode ser encontrado no exposto por Goddard (1998, p. 64): “Hegel define a potên-cia do espírito como o poder de suportar a dor da separação, não enquanto imposta do exterior, mas como uma dor oriunda da contradição interna do espírito, auto-imposta e suprimível apenas por ele mesmo”2. Algo próximo já fora exposto por D´Hondt (1999, p. 42): “A dialética torna-se método.

1. Mestre e doutora em Filosofia Moral e Política pela UFRGS, trabalhando com os temas refer-entes à ética, política e estética, em especial no pensamento de Hannah Arendt. Professora na UCS – Universidade de Caxias do Sul – RS. Texto submetido em janeiro de 2008 e aprovado para publicação em janeiro de 2009.2. Tradução livre. No original: Hegel définit la puissance de l’esprit comme la puissance de sup-porter la douleur de la séparation, non pas comme une douleur imposée de l´extérieur, mais comme une douleur engendrée par la contradiction interne de l´esprit, posée par lui et sup-pressible par lui.

Revista Eletrônica Estudos HegelianosAno 5, nº9, Dezembro-2008: 59-7�

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O movimento dialético: a dor e o sofrimento...

Este método implica, antes de mais, um tormento do espírito”. Na mesma obra (p. 49), ele expõe um argumento que parece contrapor-se ao anterior: “um ardor humanista aquece, na Phénoménologie, cada processo criador da consciência: ela ganha uma maior certeza de que nada lhe pode resistir, de que nada lhe será impenetrável, de que conseguirá apropriar-se daquilo que agora se apresenta como estranho”.

Essa segunda linha de interpretação aparece em Meneses (2003, p. 8): “a dialética é o supremo esforço da razão, porém é o único método capaz de obter a compreensão do todo”. E ele complementa (p. 16): “o sujeito é dotado desse poder mágico de tirar a vida da morte, o positivo do negativo”, sendo “o negativo (...) na verdade a alma e o motor de todo o processo”. É interessante ressaltar que o negativo, no movimento dialético (sem aden-trar no aspecto lógico ou teológico, retendo-se no fenomenológico), motiva a consciência, e o faz gerando “inquietude” que, em alguns momentos, se torna “insatisfação”, em outros, “sofrimento”. Na Fenomenologia do Espírito, podem ser apontados três momentos que são de especial importância:

Primeiro momento: a auto-ilusão e a ilusão da consciência

A consciência procura negar que haja algo diferente dela mesma, algum objeto interior ou exterior. Nessa negação ocorre a “auto-ilusão” da consci-ência, pois nela a diversidade é negada, porque diferente dela mesma. Há, entretanto, para a consciência, a exigência de unidade, que deve ser obtida pela reflexão. Na busca da união ocorre o embate entre o “eu subjetivo” e o mundo, entre a consciência individual e o mundo externo enquanto objeto3. Porém, esse processo acontece internamente, ou seja, na própria consciên-cia, lugar onde ele deve ser suprassumido e resolvido: o ser-Outro precisa, dialeticamente, ser superado�. A auto-ilusão deve ceder lugar ao saber, pois o sujeito está no “aqui e no agora do mundo exterior”5, e precisa conhecer e reconhecer esse mundo, a chamada “certeza sensível”. Na auto-ilusão a consciência é ingênua e, segundo Lima Vaz (2002, p. 17-18), “quase ani-mal, que pensa possuir a verdade do objeto na certeza de indicá-lo na sua aparição (...) no mundo”. Por isso ela acredita que não haja algo diferente a investigar, negando a necessidade de outro saber ou certeza além daquele que ela possui. Essa é a primeira e, portanto, a mais simples forma de co-nhecimento: o saber é simples, popular, ou também pode ser denominado de senso comum.

A “verdade subjetiva” do senso comum pode parecer suficiente para um indivíduo que, quando solicitado, utiliza clichês, frases-feitas, em seu vivenciar cotidiano. As novidades, nesse sentido, não são bem-vindas, pois 3. Ver J. HYPPOLITE, Genèse et structure de la Phénoménologie de l’esprit de Hegel, vol 1, Trad. e coment. J-F. Kervégan, Paris: PUF/Quadrige, 2003, p. 71.�. Ver a Fenomenologia do Espírito (Trad. Paulo Meneses), Petrópolis: Vozes/USF, 2002, § 19, p. 35.5. H. C. de LIMA VAZ, Apresentação – A significação da Fenomenologia do Espírito, In: Fenom-enologia do Espírito (Trad. Paulo Meneses), Petrópolis: Vozes/USF, 2002, p. 17.

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levam a um confronto com o diferente e estranho, o que a consciência ingê-nua evita. Assim, como ela esquiva-se do novo, ela também não o engendra, pois teme a novidade e torna, por isso, a própria ação automática, mecânica e previsível: elimina-se, assim, qualquer espaço para a ocorrência do inédi-to. As coisas conhecidas, porque familiares, não são (bem) conhecidas, ou reconhecidas. Para Hegel, essa “auto-ilusão” é a mais simples, mas pode tornar-se também ilusão para os outros: segundo ele, “o bem-conhecido em geral, justamente por ser bem-conhecido, não é reconhecido; é o modo mais habitual de enganar-se e de enganar os outros: pressupor no conhe-cimento algo como já conhecido e deixá-lo tal como está” (FE, § 31, p. 43; XXXVII, no original). Em outros termos, a consciência permanece apenas com seu próprio conteúdo como satisfatório, e o difunde como se fosse uma asserção apodítica, seja ele relacionado a si mesmo, seja ao mundo externo ou aos outros seres.

Esse “parece” conhecer ocorre pela proximidade entre o sujeito e o objeto, mas que é um relacionar algo apenas consigo mesmo (a consciência), mesmo que ela esteja ainda vazia. Os conteúdos que a consciência elabora são tidos como conhecimentos válidos. Se não ocorrer a etapa seguinte, o retorno para si mesma com a verdade do objeto, a consciência terá o que “ela acha” como certo, isto é, permanecerá na ignorância. Como a consciên-cia é simples, ela pode “se perder” no vazio de si mesma. Pelo movimento da dialética, a própria existência precisa ficar conhecida. Porém, o pretenso saber da consciência pode voltar-se contra essa perspectiva, ou seja, a de reconhecer que haja algo outro, externo à consciência, que precisa ser co-nhecido e reconhecido como outro, como objeto, mesmo que apenas para o conhecimento. Nesse sentido, a existência (do objeto, mesmo que esse seja a própria consciência) confronta a consciência, e por isso ela a nega, pois há apenas a familiaridade consigo mesma (em nome de “si mesmo” universal; do interesse do pensar), o que lhe permite evitar o diferente, assim como o próprio movimento.

A oposição entre o sujeito e o objeto é necessária para que a cons-ciência adentre em um novo conhecimento. Segundo Hyppolite (1967, p. 141), “o sujeito finito não é limitado como pode sê-lo um objeto – um ob-jeto não conhece a si mesmo, o próprio limite é-lhe exterior – ele [sujeito] busca incessantemente ultrapassar o seu limite. Ele tende ao infinito, ao incondicionado (...) esse infinito não é um objeto, ele é uma tarefa em que a completude está sempre a atingir”6. Esse antagonismo é necessário ao mo-vimento, e por meio dele a consciência vai encontrar a si mesma7. A tendên-cia ao infinito, que a consciência porta, leva-a à superação da auto-ilusão: a consciência de si pensante “na medida em que ela é capaz de tornar-se objeto para si mesma, sem, por isso, perder-se ela mesma, e desaparecer”8,

6. Le sujet fini n’est pas limité comme peut l’être un objet – un objet ne connaît pas pas lui-même, sa limite qui lui est extérieure – il cherche sans cesser à transgresser sa limite. Il tend vers l’infini, l’inconditionné. (…) cet infini n’est pas objet, il est une tâche dont l’accomplissement est toujours reculé.7. Cfe. J. HYPPOLITE, op. cit., p. 71-72.8. J. HYPPOLITE, op. cit., p. 173. Dans la mesure où elle est capable de se devenir objet à soi

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supera a consciência ingênua: o “Eu”, a consciência, precisa fornecer a si mesma uma substância (tornar-se objeto para si própria), percebendo que o ser da vida é ela mesma e não mais se representar, nem imaginar, mas se conceber. Isto é, não haverá mais a dicotomia sujeito-objeto, mas um con-ceito, que não é nem “eu”, nem “objeto”.

A ignorância não pode permanecer, pois ela é negativa, mesmo na vida cotidiana. Para Hegel (FE, § 48, p. 54), na consciência, a pseudoverda-de ocorre porque “em geral, por seu conteúdo, conhecimentos, experiências, sensações de coisas concretas, e também pensamentos, princípios – o que vale para ela como um dado ou então como ser ou essência [são considera-dos] fixos e estáveis”, mesmo que não o sejam. Isso porque o “o representa-do se torna propriedade da pura consciência-de-si” (FE, § 33, p. 44)9. Assim, a consciência (o ser-aí) atingiu a “imediatez não conceitual, ou a indiferença imóvel” (FE, § 30, p. 43), e essa representação é incompleta, é superficial. A indiferença faz com que a consciência se detenha no pseudoconhecido, resistindo àquilo que contraria seu pretenso saber. Ela passa a mover-se em um “círculo que se fecha” (FE, § 32, p. 44), mantendo os momentos como substanciais. Porém, o conteúdo é acidental, descontextualizado, gerando o negativo por meio da tendência ao pensar. Como a consciência possui os dois momentos (o saber e a objetividade), ela vivencia essa experiência.

Segundo Hegel (FE, § 36, p. 46), a consciência cotidiana “é justa-mente o nome desse movimento em que o imediato, o não-experimentado, ou seja, o abstrato – quer do ser sensível, quer do Simples apenas pen-sado – se aliena e depois retorna a si dessa alienação; e por isso, - como é também propriedade da consciência – somente então é exposto em sua efetividade e verdade”. Pela dialética, a etapa seguinte é positiva: ela leva a um momento de autoconhecimento, ou de reconhecimento da consciência. Se isso não ocorrer, os conteúdos da consciência podem ser considerados “verdades feitas”, pois quem os possui não percebe a necessidade de retor-nar sobre eles, pois os coloca no fundamento, e acredita que mesmo não podendo exprimi-los, é possível julgar e reprovar por meio deles (Cfe. FE, § 67, p. 66).

A solução para isso está no “trabalho do conceito” (FE, § 70, p. 69): “para se ter qualquer ciência, arte, habilidade, ofício, prevalece a convicção da necessidade de um esforço complexo de aprender e de exercitar-se” (FE, § 67, p. 67). E o processo não finda até que o “rigor do conceito tiver pene-trado na profundeza da Coisa” (FE, Pref., 4, p. 27). Mas isso não ocorre pelo simples uso da filosofia, da “razão natural”, ou do exercício do senso comum, pois isso cabe à “filosofia autêntica – esse longo caminho da cultura” (idem). O filosofar, por meio do “analisar”, verificará se a validade do conhecido (fa-miliar) é suficiente, verdadeiro e confirmado. Apesar disso, e ainda segundo

même, sans pour cela se perdre elle-même et disparaître.9. Nesse contexto, percebe-se a busca de Hegel por superar a Teoria do conhecimento de Kant, baseada na “representação” do objeto no sujeito cognoscente, assim como do formalismo. Outro exemplo encontra-se na FE, § 16, p. 33-34, quando afirma que o formalismo é monótono e utiliza uma universalidade abstrata como se fosse o absoluto, sendo apenas “inefetividade”.

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ele, é cômodo abandonar-se ao “bom senso”10.

Para a consciência pode aparentar um aspecto mais tranqüilo perma-necer com suas verdades, pois o caminho para o saber real é negativo: “a realização do conceito vale para ela [a consciência] antes como perda de si mesma, já que nesse caminho [ela] perde sua verdade” (FE, § 78, p. 74). Ela “só alcança sua verdade na medida em que encontra a si no dilacera-mento absoluto” (FE, § 32, p. 44, com grifo nosso). Segundo Wahl (1951, p. 8)11, “o começo da filosofia, como o da religião, é menos o espanto-ad-mirativo que a não-satisfação e a consciência cindida”, pois o ser humano é dotado de razão e de sentimentos, e “será preciso transmutar a infelicidade em uma felicidade maior que todas as felicidades”, continua ele (p. 13)12. A maneira de obter esse bem-estar será por meio do esforço da consciência em superar as contradições que ela vai encontrando em seu percurso rumo ao Absoluto, à felicidade completa.

A consciência, ao deparar-se com a incerteza, com o estranho, o dife-rente, enfim, com o outro, fica angustiada. Segundo Hegel (FE, § 80, p. 76), “a angústia ante a verdade pode recuar e tentar salvar o que está ameaçada de perder”, mas não há descanso, pois a inércia a desassossega. A consci-ência pode cair em um “sentimentalismo”, isto é, em um achar “bom a seu modo” (FE, § 80, p. 77), porém, ela porta o seu contrário, isto é, a tendência de ir além do limitado que ela se auto-impõe, pois “o espírito nunca está em repouso, mas sempre tomado por um movimento para a frente” (FE, § 11, p. 31), para a busca do incondicionado, do verdadeiro, contido no objeto. O saber, então, tem um intento: “a meta está ali onde o saber não necessita ir além de si mesmo, onde a si mesmo encontra, onde o conceito corresponde ao objeto, e o objeto ao conceito, (...) [e] assim, o processo em direção a essa meta não pode ser detido, e não se satisfaz com nenhuma estação pre-cedente”, entende Hegel (FE, § 80, p. 76)13.

Rente à auto-ilusão da consciência há a possibilidade de ocorrência da “ilusão da consciência”. Essa é a tentativa de negar a necessidade de

10. Nesse ponto, Hegel teceu uma forte crítica ao exposto por Kant na Crítica do Juízo, §§ 39 e 40, nos quais Kant reconhece o valor do “bom senso” humano enquanto básico e imprescindível à vida humana, mas que, segundo Kant, deve ser aperfeiçoado pelas “máximas do entendimen-to humano saudável”. Segundo Hegel, “caso se indague por uma ‘via régia’ para a ciência, não seria possível indicar nenhuma mais cômoda que a de abandonar-se ao bom senso [gesunden Menschenverstand, no original, p. 48]” (FE, § 70, p. 68). A crítica ao senso comum continua, mesmo que a auto-ilusão seja superada: por exemplo, na p. 106, § 131: “Tais abstrações vazias (...) são potências cujo jogo é o entendimento humano percebente, chamado com freqüência ‘sadio senso comum’”, e continua (FE, § 131, p. 107) afirmando que o bom senso torna-se uma “presa” para as abstrações tidas como verdadeiras, afastando o que as contraria, ficando ele próprio na “inverdade”. 11. Le commencement de la philosophie comme de la religión, c’est moins l’étonnement que la non-satisfation et la conscience déchirée.12. Il faudra transmuter le malheur en un bonheur plus grand que tous les bonheurs. Essa “transmutação” ocorre por meio de cada novo processo dialético.13. É nesse sentido que Hegel compara o nascimento de uma criança, o momento qualitativo e o quantitativo, com o da consciência, no qual o momento de tranquilidade indica o surgimento de algo novo (Cfe. FE, § 11, p. 31), sem apontar, com isso, para qualquer categorização ou valoração da natalidade.

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movimentos dialéticos, de enfrentamento. Ela ocorre quando algo na cons-ciência, ou na percepção, tenta tomar o que se tem como verdade, pois “a certeza não se apossa do verdadeiro” (FE, § 111, p. 95), apesar de objetivar fazê-lo. A percepção afirma, para si mesma, que o universal é o “sendo”, ou seja, é o que ela capta. O objeto contém a essência, e o perceber humano, como é movimento, é o inessencial. O objeto contém a “coisidade”1�, e na (e para a) percepção ele parece completo. Nesse sentido, o sujeito ainda não possui a verdade do objeto, e por isso, “o medo da verdade poderá ocultar-se de si e dos outros por trás da aparência de que é um zelo ardente pela verdade” (FE, § 80, p. 77), em forma de uma ilusória busca dela, mas que, nessa ficção de procurá-la, oculta sua falta, assim como a recusa em obtê-la.

Para fugir do “perigo” de defrontar-se com a verdade, com aquilo que contraria suas crenças, há o apelo à “sofistaria”, no qual a consciência afirma que ela mesma é a verdade. Ou nos termos de Hegel (FE, § 130, p. 105-106, com grifos do autor):

A sofistaria da percepção procura salvar de sua contradição esses momen-tos e mantê-los por meio da diferenciação dos pontos de vista, por meio do também e do enquanto, assim como procura finalmente apreender o verdadeiro mediante a distinção entre o inessencial e uma essência que lhe é oposta. Só que tais expedientes, em vez de afastar a ilusão no [ato de] apreender, antes se revelam como nulos15.

Dessa forma, ocorre a contraposição e a busca constante de supera-ção dos pensamentos inessenciais ligados à universalidade, à singularidade e ao Uno, sem conseguir conciliá-los. Como o entendimento não consegue superá-los, mais uma vez, “recorre à sofistaria, agora afirmando como o verdadeiro o que antes afirmava como não-verdadeiro” (FE, § 131, p. 107). Ou seja, ela utiliza recursos, como por exemplo: “sob certo aspecto”, “nesse ponto de vista”, visando a manter separadas as divergências, sustentado os argumentos estáveis, e afirmando a verdade deles, mas permanecendo na inverdade.

Hegel (FE, § 130, p. 105-106), porém, prefere entender esses mo-mentos pela via positiva:

a consciência percebente é cônscia da possibilidade da ilusão, pois na uni-versalidade, que é [seu] princípio, o ser-Outro é para ela, imediatamente: mas enquanto nulo, [como] suprassumido. Portanto, seu critério de verda-de é a igualdade-consigo-mesmo, e seu procedimento é apreender o que é igual a si mesmo

14. Ver FE, § 114, p. 97. No § 115, p. 98, resumidamente, a “coisa” é caracterizada por: 1) possuir muitas propriedades; 2) como sendo passiva e indiferente; 3) parecendo ser una, pois exclui as propriedades opostas; 4) unindo as duas anteriores e se expandindo como sendo uma multidão de diferenças; 5) ser singular. Além disso, “a Coisa mesma não se esgota em seu fim, mas em sua atualização” (FE, § 3, p. 26).15. “Diese Momente sucht die Sophisterey des Wahrnehmens von ihrem Widerspruche zu retten, und duch die Unterscheidung der Rücksichten, durch das Auch und Insofern festzuhalten, so wie endlich durch die Unterscheidung des unwesentlichen, und eines ihm entgegengesetzten Wesens, das Wahre zu ergreiffen” (no original, p. 79, com grifos do autor).

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e por isso não apreende a essência objetiva (Ver FE, § 117, p. 99), mas a busca, pois a consciência é inquieta.

No processo no qual a consciência passa a saber como se constitui o próprio perceber, e refletindo, ela consegue manter o que o objeto tem de seu, a verdade dele (ver FE, § 118, p. 100), pois o entendimento permite que o verdadeiro da consciência e do objeto se movam. Isto é, a consciência reconhece aquilo que pertence a ela, pois ela “é cônscia de sua reflexão-sobre-si” (idem), e o que pertence ao objeto, ultrapassando a dicotomia (a cisão e a alienação), e voltando a ser una, não mais concebendo o objeto como estranho. A consciência passa a possuir a verdade do objeto, uma certeza no “sendo” que ainda não é suficiente, pois o conceito e a consciên-cia precisam se tornar “um”, no qual ela resulta refletida e reconhece-se no objeto (Ver §§ 132-133, p. 108-109).

Segundo momento: a “consciência infeliz”

Na Dialética do senhor e do escravo há um momento importante no “caminho” da consciência rumo ao Absoluto: ela precisa enfrentar o outro em um combate que deve findar no reconhecimento que é um auto-reco-nhecimento. Para ser livre, a consciência precisa desse processo, no qual ela pode tornar-se momentaneamente “senhor” ou “escravo”, ficar ociosa ou trabalhar, pois precisa aprender e superar o “medo da morte”16. Aquele que recua no embate torna-se submisso àquele que não sucumbe ao temor da aniquilação. Entretanto, o escravo, que inicialmente receou a morte, por meio do trabalho, afasta-se do animal, pois age, e “a ação transforma o mundo hostil, através do projeto humano, em um espaço humanizado. Em contrapartida, a ação também humaniza quem realiza o trabalho, ou seja, o escravo”17. O agir faz a consciência retornar sobre si mesma a partir da pura objetividade, suprassumindo esse momento e elevando-se ao universal, que é sua verdade. O escravo apropria-se do mundo externo ao sair de si, alie-nar-se e perder o medo. Sem o medo da morte, ele pode realizar um novo momento de reconhecimento com o senhor.

O senhor, que inicialmente superou o medo de morrer, ficou na ina-tividade e acabou dependente do resultado do trabalho escravo, tornando-se inessencial. O senhor, nesse contexto, não é livre, pois ele se perde em seu vazio interior, no consumir e na inação: ele “vive na civilização, mas satisfaz-se como animal, sem ter produzido o que consome, tornando-se dependente do escravo, da consciência que é concebida como coisa, como não-autônoma”18. O escravo, em contrapartida, é “livre”, pois passou a viver uma liberdade interna e também externa, mas que é ainda insuficiente, pois

16. A morte não é uma alienação, mas “um esvaziamento ou devastação operada sobre o su-jeito por uma potência mortífera, que lhe arranca a essência – que é a liberdade” (P. MENESES, op. cit., p. 55). Hegel trata dessa questão em FE, § 32, p. 44.17. S. M. SCHIO. Hegel e Arendt: possíveis aproximações a partir da questão da alteridade (Ensaio), Conjectura, p. �5.18. S. M. SCHIO, op. cit., p. �6.

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exige o reconhecimento19. A capacidade de atingir o reconhecimento, no outro, significa obter, por meio de um esforço, a liberdade.

Após a superação do medo da morte, a consciência vivencia um novo desenvolvimento: a busca da autoconsciência com certeza objetiva, isto é, da exterioridade e da interioridade por meio de uma liberação através de uma articulação real20. Para possuir certeza de si, a consciência vai para fora de si, dirige-se ao mundo externo. As novas figuras, nesse momento são: a) a estóica, que é universal, privilegiando a universalidade abstrata do próprio ser; b) a cética21, que é singular, percebendo a abstração, mas ainda não se identificando com o ser; c) a consciência infeliz, que não experiência a unidade. Essa última é a descoberta da própria insuficiência, pois a certeza é subjetiva, isto é, a subjetividade é considerada como certeza, mas isso não leva à unidade, por isso há “dor”, devido ao sentimento de desigualdade consigo; pela não coincidência na reflexão. Por não vencer essa contradição, a consciência fica infeliz22. Ela, quando indivisa, duplicada, intui uma consci-ência-de-si em outra que é ela mesma. A consciência, por ser uma unidade imediata (ver FE, § 208, p. 159), em que se opõem duas essências, não é para si uma essência una, e se sente “miserável”23.

A consciência infeliz, então, está duplicada, indivisa porque “cindida dentro de si” (FE, § 207, p. 159): a consciência ainda não é um espírito vivo e dentro da existência2�. Nela há a oposição entre duas consciências, e que são ela mesma. A oposição ocorre entre a essência e a inessência. A primeira é simples e imutável; a outra, mutável, e elas são opostas uma a outra. A consciência precisa libertar-se do inesssencial, tendo em vista que o movimento é contraditório, e não a deixa repousar e ter paz. Neste sentido, explica Meneses (2006, p. 53) que “há uma alternância entre as duas cons-ciências em que ela se cinde: uma é sempre a outra, consciência ao mesmo tempo duplicada e indivisa”. Esse estado causa dor e sofrimento à consci-

19. Ver G. JARCZYK; P.-J. LABARRIÈRE, Hegel: le malheur de la conscience ou l’acess à la rai-son, Paris: Aubier-Montaigne, 1989, p. 73-7�.20. Ver J. HYPPOLITE, op. cit., p. 176. Após a dialética do senhor-escravo-trabalho, o impor-tante é “l’egalité avec le soi de la pensée”. Mas já há a liberdade da consciência, a qual é ab-strata em pensamento, mas ela ainda não viva e efetiva.21. Ver J. HYPPOLITE, op. cit., p. 181. Isso porque a consciência cética é a própria experiência dialética (antes disso, a dialética acontecia sem a consciência, porém, nesse momento, a di-alética é obra da consciência). A consciência faz o outro desaparecer. Ela procura a certeza da própria liberdade. Só resta a certeza absoluta de si própria, porque ela negou todas as formas de ser. A consciência cética é negativa, destrói tudo, e também a si própria, tornando-se dual. O termo “dual” significa que ela está acima das vicissitudes do ser-aí, isto é, as diferenças não são essenciais.22. Ver G. JARCZYK; P-J. LABARRIÈRE, op. cit., p. 153. O sentimento de nulidade é um “fazer nada”, é a infelicidade, pois a atividade e o gozo perderam o significado universal, ou seja, a consciência só se conhece como animal, e isso se torna a principal preocupação, por isso ela se sente miserável.23. Segundo J. HYPPOLITE (op. cit., p. 184), o problema do mestre e do escravo é interior-izado.24. Ver HYPPOLITE, op. cit., p. 189. Ainda na mesma página, afirma ele: “Par là la conscience de soi surmontera sa subjectivité, consentira à l’aliéner et à la poser comme être, mais alors l’être même sera devenu la conscience de soi, et la conscience de soi sera être”. Para tal, há um caminho dialético a ser percorrido.

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ência porque ela é a “consciência da própria nulidade” (FE, § 209, p. 160). Ela é uma consciência infeliz porque expressa a subjetividade, o “por si” em oposição ao “em si”, isto é, o singular em face ao universal, conseguindo apenas atingir uma verdade “de si”, não geral. Quando ocorrer a reconcilia-ção (a unidade) surgirá algo que a ultrapassa: ela se tornará um ser vivo cônscio da própria existência. Esse movimento, então, é positivo: após, no retorno, haverá harmonia na unidade do “ser”, o que ocorrerá pelo pensar, segundo Hyppolite25.

Na busca de harmonia, “a consciência experimenta justamente o sur-gir da singularidade no Imutável e do Imutável na singularidade. Para ela, a singularidade em geral vem-a-ser na essência imutável, e ao mesmo tempo sua própria singularidade nela. Porque a verdade desse movimento é pre-cisamente o ser-uno dessa consciência duplicada” (FE, § 210, p. 160). Ou seja, o movimento que segue o sentimento de nulidade leva à singularidade, e a verdade torna-se o ser uno da consciência duplicada. A primeira unidade ainda ocorre na diversidade, no Imutável, de forma tríplice: i) a consciência opõe-se à essência imutável, reiniciando o combate, pois este (primeiro) imutável é-lhe alheio; ii) a essência é estranha e singular, permanecendo na singularidade, pois ela é, enquanto essência oposta, aquela que a con-dena à singularidade; em seguida, o singular é um modo de imutável, pois o imutável tem o singular nele, do ponto de vista da consciência. Ele pos-sui a existência, enquanto figura da singularidade, tornando-se o segundo Imutável; iii) por fim, a consciência se percebe a si nesse imutável, isto é, a consciência-de-si viva se encontra a si mesma e se entende como singular no Imutável26. Ela vem a ser espírito, reconciliando a própria singularidade com o universal por meio da experiência (ver FE, § 210-211, p. 161). O que ocorre é que o imutável só existe na consciência, mas ele não é real, verda-deiro (ver FE, § 211, p. 161). A consciência imutável também está cindida, sendo um “ser-para-si” frente à consciência singular. Apesar disso, a cons-ciência tem a “esperança”27 de atingir a unidade com o imutável (ver FE, § 212, p. 162).

A necessidade de busca da unidade, de “ser-um”, leva a consciência inessencial a novos processos, pois a consciência se opõe à essência imu-tável, e ela se rejeita, inicialmente, tornando a relação um combate que as leva para novos estágios de desenvolvimento. Ou seja, a consciência busca

25. “Penser c’est realiser l’unité de l’être-en-soi et de l’être-pour-soi, de l’être et de la con-science” (HYPPOLITE, op. cit., p. 174). E ainda: “La conscience, au fil de l’experience à venir, aura réelement découvert les procédures qui lui permettront d’articuler logiquement l’extériorité singulière du monde a l’intériorité universelle de la pensée” (p. 75).26. Como a consciência é também imutável e singular, ocorre um movimento recíproco entre elas (da consciência imutável e da consciência singular), subdivido em três momentos: 1) o imutável se opõe à singularidade em geral; 2) esse imutável é um singular e se opõe a outro singular; 3) ele, o imutável, se torna uno, se funde, com o singular. Entretanto, essa imuta-bilidade da consciência ainda possui uma oposição, ela continua dividida: há momentos em que o imutável parece produzido por ela mesma, e outros em que ele aparece como unidade originada do imutável.27. A esperança origina-se da própria natureza da consciência, que mantém relação consigo mesma, acabando por encontrar algo dela mesma, que é produzido por ela mesma, e que lhe confere expectativa de alcançar o desejado.

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suprassumir o imutável não-figurado e depois o imutável figurado, pois é preciso evitar que o absoluto seja cindido no conceito. Ela, enquanto consci-ência inessencial busca a unidade a partir de três momentos ou níveis: I) o da pura consciência; II) da essência singular, em que ela se relaciona em se afrontando, como desejo e trabalho à realidade, e III) enquanto consciência de seu “ser-por-si”.

A pura consciência é imperfeita e com oposição, apesar de, nesse momento já ter superado o puro pensar estóico (que abstrai a singularidade geral, não a valorizando), assim como o “inquieto” ceticismo (que concebe uma única singularidade, levando a uma contradição sem consciência, e a um movimento da contradição). Ela é o momento em que o pensamento abstrato toca a singularidade da consciência enquanto única, pois “a consci-ência infeliz ultrapassa esses momentos: ela reúne e mantém unidos o puro pensar e a singularidade” (FE, § 216, p. 163). O mundo lhe aparece como inimigo, pois a consciência não se relaciona com seu objeto de maneira pensante: ela ainda não se reconciliou, e ela continua uma consciência sin-gular que não é pensante, é fervor, e ainda não chegou ao conceito28, ou, o conceito ainda não é efetivo (ver FE, § 223, p. 168). Apesar disso, ela sente a si mesma, enquanto que o conceitual é o outro. Assim, a “dor” continua: a essência é a alma pura, e ao mesmo tempo essa essência é o inatingível que foge: o objeto é puro pensar (fervor) e não é concebido, mas estranho. A consciência conseguiu atingir a si mesma, mas o fez enquanto oposta ao imutável, e, por isso ela sente a si mesma, mas seu sentir significa que ela apenas captou a “inessencialidade”, o que lhe é doloroso. Como ela atingiu apenas a própria efetividade separada (e não ainda o outro como singular e efetivo), ela “sofre”, pois somente atingiu o objeto. Quando ela conseguir re-nunciar à singularidade imutável, ela chegará à singularidade como verdade ou como universal (ver FE, § 217, p. 164-165).

Quando a consciência pura se contrapõe à consciência efetiva, o mun-do se torna efetivo, mas duplo, pois o mundo espiritual é sua presença. O “presente” é uma efetividade “puramente objetiva” (FE, § 486, p. 337) e sua consciência está além, pois ela é consciência de si efetiva, como também seu objeto, em forma de pura consciência. A consciência, nessa circunstân-cia, é Fé (Glauben), mas poderá também ser seu oposto, a Ilustração, uma expansão da pura intelecção.

28. Conceito é “le procès intelligible selon lequel l’ob-jet, dans sa différence même, est immédi-atement rapporté à la conscience comme non-différent d’elle”. (G. JARCZYK, P.-J. LABARRIÈRE, op. cit., p. 76) O movimento ocorre nela, na essência, e também nas coisas, e graças ao qual a coisa não é somente representada, mas também conceitualmente compreendida. Nesse sen-tido, existe uma diferença entre a representação e o conceito. Apesar disso, ambos têm relação à ob-jetividade do sendo (étant). O que os diferencia é a alteridade representativa de um e a alteridade conceitual do outro. Em outros termos, essa é a primeira dimensão objetiva, com um conteúdo determinado. O movimento do conceito é imediato e altamente mediado: há uni-dade imediata como sendo determinada em sua própria diferença. Ou seja, o conceito contém na unidade (conceitual) o objeto (como “meu”, isto é, idêntico a “mim”). Na representação, a ligação é diferente: a consciência tem primeiro que lembrar-se de que a representação é dela mesma, é sua (idem, p. 77). Quando há o conceito há a “presença”.

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Neste ponto, a certeza da consciência sobre a realidade é imediata, ela é uma compreensão conceitual que gera certezas imediatas, sendo essas contrapostas a outras certezas imediatas. Para a consciência infeliz, o ser em si está além dela própria. O movimento, porém, a fez aceitar a singula-ridade (o extremo “objetal”). Tirando de si mesma o seu ser por si, ela se torna unidade com o universal, chegando a um “termo médio”. A consciência de si é a “razão”. Nesse momento, ela só se preocupa com a própria autono-mia e liberdade para se salvar, em detrimento do mundo, pois esse parece negar a essência da consciência, e por isso causa um tipo de alienação. Essa etapa é capital para a consciência, mas ela deve ser transitória, pois nela a consciência precisa começar a adquirir a noção de inserção na comunidade humana, assim como do valor do mundo externo, e com isso, da responsabi-lidade ética e política. Nesse processo, entretanto, o além lhe escapa, o que exige um novo movimento.

Em um segundo momento, ocorre, na consciência, o sentimento de si, algo para-si-sendo pelo desejo e pelo trabalho, no qual a consciência ob-terá certeza de si mesma. Ou seja, o desejo e o trabalho lhe conferem certe-za interior de si mesma, pois, pela relação com a efetividade, ela sofre uma transformação prática: ocorre a atividade. Assim, a consciência se relaciona com os extremos, e esse é um passo adiante na Dialética do senhor e do escravo. Porém, esta certeza é ainda dividida, e ela só consegue confirmar essa cisão: por um lado ela é nula, por outro, um mundo consagrado, uma figura do imutável. Em outros termos, este que se lhe opõe é um singular que é também universal e imutável: é um singular efetivo (ver FE, § 219, p. 165).

Dessa forma, a consciência se torna efetiva e dividida, um “ser-em-si” (com faculdade e força, um dom) e um “ser-para-si” (um agir - Ver FE, § 220, p. 166). No movimento contrapõem-se o aquém ativo e a efetividade passiva. O ativo é potência que se confronta com o “em-si”, ou essência, sendo o além para a consciência, ou seja, a mudança (FE, § 221, p. 166). Ainda nesse estágio, a consciência, enquanto atividade, trabalho e desejo, ela quis e fez, aproveitou e sentiu-se engrandecida, pois se tornou “sabe-dora do próprio em si”, pois refletiu: pela reflexão, a consciência se tornou consciência por si própria, pois interiorizou e pensou o seu “em si”. Por meio do agir e do gozar exterior, a consciência se torna “em-si” e “para-si” (Ver FE, §§ 222-223, p. 167-168).

O terceiro momento da consciência infeliz é o da alienação (Entäus-serung) da própria vontade particular, do próprio “ser-por-si”, tornando-se coisa, e assim ganhando mais em verdade. Para tanto, a consciência se prostra, retorna a si mesma, tornando-se efetividade verdadeira (ver FE, § 223, p. 168) por se contrapor a verdadeira efetividade, isto é, à essência universal a realidade e nulidade (ver FE, § 224, p. 168). Assim, ela é um agir no nada, no gozo, que a torna infeliz, pois esse agir e esse gozo não possuem conteúdo e sentido universal: eles dirigem-se ao singular. O sen-timento do nulo, de nada fazer, resulta em um sentimento de infelicidade,

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pois a atividade e o gozo perdem o sentido. Ela se torna uma consciência meramente com função animal (thierische Function). Se a consciência se fi-xar, e não se liberar, ela se torna “uma personalidade só restringida a si mes-ma e a seu agir mesquinho, recurvada sobre si, tão infeliz quanto miserável” (FE, § 225, p. 169). Nesse sentido, Hegel afirma que a “função animal” deve ser resolvida “descontraidamente, como algo que é nulo em si e para si” (idem), não devendo, para o espírito, “alcançar nenhuma importância nem essencialidade” (ibidem), pois é como um “inimigo” que afronta, que deve ser suplantado e ultrapassado. Em outros termos, a vida biológica deve ser tratada com normalidade, sem atenção demasiada, pois é básica, e como tal deve ser vivida e após, a consciência precisa continuar o seu percurso dialético.

Quando a consciência obtém a unidade com o imutável, por meio de um movimento negativo, que a dirigiu contra sua singularidade, o resultado é positivo, é o uno (ver FE, § 226, p. 169), obtido por meio do surgimento do terceiro termo, que é um “meio-termo” que representa os extremos, pois é uma essência consciente, um agir que mediatiza a consciência, configuran-do-se como um aniquilamento que a consciência faz com sua singularidade (ver FE, § 227, p. 169). Esse “mediador” faz a consciência se livrar do agir e do gozo, repelindo a essência do querer. A vontade, nesse contexto, é o outro, e o abandono dela é negativo para a consciência, mas é possível en-quanto conhecimento de que a vontade é o outro29.

Entretanto, resta ainda o lado objetivo da ação, seus resultados, mas a consciência repele isto também, ou seja, a afetividade: primeiro, pela ciência que ela tem da própria independência; segundo, porque ela dispen-sa a propriedade; e terceiro, por tornar o gozo proibido (ver FE, § 228, p. 169-170). Assim, ela se priva do saber e da liberdade tanto interior quanto exterior, por meio de um “sacrifício”30 que desfaz a falsa concepção de que o 29. A vontade, como outro, é singular que porta o universal, um “conselho” (pelo justo) que também medeia as suas relações. Essa vontade possível se torna negativa quando quer o outro extremo (que é “outro”). Ela, para a consciência, torna-se vontade universal (“em si”), mas o conceito não se reconhece, e abandona o singular (o positivo da vontade universal). O aban-dono da posse e do gozo não é negativo, e o universal que surge não é seu agir próprio, ou seja, não é uma unidade do objetal e do ser-por-si, que é no conceito de fazer, sendo, para a consciência, essência e objeto. Porém, ela não percebe que isso não é consciência, é um objeto, e o sente como mediador, como sendo a certeza rompida pela infelicidade. Mesmo que ela seja o inverso, um saber, e, portanto, uma atividade satisfatória em sua própria atividade, o oposto ocorre: ela torna-se uma atividade absoluta, e pelo conceito, uma atividade singular. Para a consciência, isso é uma atividade miserável, o gozo é dor; e a abolição disso (positivamente) é um além. No objeto, a atividade e o ser da consciência singular são “em si”, chegando-lhe como representação da razão, da certeza que a consciência tem da própria singularidade (“em si”) ou de toda a realidade. Em síntese, o mediador, que se aproxima do imutável, aconselha o que é justo, e a ação para. A ação só continua em seu lado objetal, isto é, como trabalho e gozo. A consciência renuncia à autonomia, à efetividade externa, e se auto-abandona. O posi-tivo, que surge desse processo, é a consciência que se torna “ser por si”, certeza do próprio “eu”. Em outros termos, a consciência imediata é coisa para a própria consciência, levando a um reconhecimento interno.30. Por meio do sacrifício há a abolição da atividade e da infelicidade, assim como do extremo inessencial. A partir dele ocorre o abandono da vontade com sentido positivo e negativo, sub-stituindo a representação pelo conceito. No sacrifício, então, o erro desaparece, pois a decisão é tomada pela própria consciência, o que significa que não é, e não há um conteúdo estranho.

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dom vem de fora dela mesma (ver FE, § 229, p. 170). Por intermédio desse processo, ela superou (suprassumiu) o agir como seu que continha o outro. O “ser-por-si” do “em-si” será o Espírito, mas não por ela mesma, porque a consciência está alienada, ou seja, os outros sabem, não ela: a vontade singular, ligada à universal que surge, será a unidade da consciência (o “em si”) e a consciência de si (o “por-si”), isto é, a razão. A vontade torna-se uni-versal. Em outros termos: por intermédio do mediador, a vontade se torna universal “em-si sendo”.

Entretanto, esse agir efetivo é miserável, o gozo é ainda dor, e o su-prassumido da dor é o além, é a representação da razão, um conceito singu-lar, um “em si” (Ver FE, § 230, p. 171). A realidade continua abstrata e geral. Hegel denomina de razão a unidade da consciência e da consciência de si. De certa forma, a consciência fez de si (seu “eu”) da consciência imediata de si, uma coisa, um ser objetal. Será preciso um sacrifício efetivo, pois somen-te assim ela poderá superar o engano que ocorre no reconhecimento interior (e isso é mais do que ilusão da consciência). Há, ainda, a necessidade de a consciência realizar a unidade com o imutável, formando uma unidade, o que ocorre através do “sacrifício”.

No pensamento, momento em que a consciência singular é uma es-sência absoluta, a consciência retorna a si, pois no pensar há liberdade31. “Para a consciência infeliz o ser-para-si é o além dela mesma” (FE, § 231, p. 172): a consciência torna-se unidade com o universal. O singular supras-sumido é o universal, sendo a verdade o meio-termo. A consciência-de-si, agora razão, não é mais negativa, pois ela encontrou a “paz” e passou a entender o mundo, livrando-se da verdade (subjetiva), e tornando o mundo efetivo: “a consciência tem a certeza de que só a si experimenta no mundo” (FE, § 232, p. 173), pois o “eu” passa a ser objeto para si mesmo.

Terceiro momento: a cultura

A consciência que estava em unidade imediata com sua essência, com seus costumes, tornou imprescindível uma alienação (Entfremdung) de si. Ao mesmo tempo, entretanto, ela precisa produzir a substância. Isso ocorre porque o mundo externo é o negativo da consciência-de-si. Ele é a essência espiritual e a interseção do ser e da individualidade. O ser-aí do mundo é obra da consciência-de-si, mas é também uma efetividade ime-diata e presente, assim como estranha (Fremd), que não o reconhece. Para participar do mundo humano, em conjunto com os outros, a consciência o realiza por meio da observância e da obediência aos regramentos legais.

A consciência se desfaz de sua personalidade e se aliena para cons-tituir “um outro mundo”, e conquistá-lo. Sem a alienação da personalidade, o Si não terá substância, ele será “joguete daqueles elementos tumultuo-31. A liberdade no pensamento é a ausência de alienação com relação à “ob-jetividade”, com duas coisas a afastar: a primeira é o “ob-jeto” enquanto essência (o que tem valor); o segundo, o movimento da reflexão entre o ser em si (eu) e o ser por si (objeto); e isto, o imediato, con-forme afirmam G. JARCZYK e J-P LABARRIÈRE (op. cit, p. 77.).

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sos”32 (FE, § 484, p. 336). Os termos joguete e brinquedo (Spiel) parecem apropriados para certas situações vividas no mundo externo, como aquelas vivenciadas em uma sociedade de massa, em que a mídia manipula os gos-tos, o modo de agir e as necessidades de consumo, em especial. Em Hegel, esse processo pertence ao momento em que a consciência precisa ampliar sua racionalidade: ela precisa trazer, de certa forma, o mundo externo para dentro de si, para que ele não lhe seja estranho.

Na cultura ocorre a geração de dois mundos. O primeiro é o da efe-tividade, no qual o espírito constrói um espaço da pura consciência, subdi-vidindo-se em político, por meio do Estado, e econômico, o lugar da riqueza que confere honras a quem a possui, com a consequente queda, perma-nência, e portando, perda no vazio. O segundo é o da distinção entre o bem e o mal, podendo ser baseando na razão (Iluminismo) ou na fé (religião). Nesse sentido, Meneses (2006, p. 67) afirma que “a concepção de ‘cultura’ (Bildung), como produzida por uma alienação do espírito, é de uma origi-nalidade surpreendente”, pois engloba temas como Estado (monárquico) e a riqueza por meio da alienação da personalidade, mas nele a consciência não se reconhece, pois o mundo é algo estranho. Nele pode ocorrer a “fuga para o elemento do ‘puro pensar’ que, por sua vez, se cinde em Fé e Pura Intelecção” (idem, com grifos do autor), como em um momento anterior. Ela passa, assim, pela consciência nobre e pela consciência vil; pelos pensa-mentos de bem e de mal, sendo uma consciência simples, ou ingênua, que nada questiona da realidade; ou uma consciência crítica, que “no seu ‘dis-curso dilacerado’, tudo critica com radicalidade e ressentimento” (op. cit., p. 68)33; um discurso “espirituoso”, que é uma perspectiva individual; ou ainda em um discurso enciclopédico.

Na cultura, como ainda ocorrem divergências, o conceito de si do espírito se opõe ao Espírito Efetivo. O resultado será o saber absoluto, por meio de uma filosofia com história dentro da História, pois é filosofia de tem-pos novos. Enquanto o espírito não for verdadeiro, substantivo e objetivo, sendo ainda uma visão moral de mundo, ele precisará superar esse momen-to por meio da dialética, atingindo a eticidade.

Finalizando, mas não concluindo, poder-se-ia afirmar que o pensa-mento hegeliano permite ser lido e entendido sob diversos vieses, sem que isso se configure como um desvio da questão, ou um subterfúgio. Para Jean Wahl, a dialética é uma experiência, e não apenas um método (1951, p. V),

32. Os “elementos tumultuosos” são aqueles oriundos da violência do Direito, que desessen-cializam a consciência de si.33. Essas consciências também podem ser chamadas de “consciência honesta” e “consciência rasgada”. No segundo caso, a linguagem é espiritual, ela engana a si e aos outros, pois é im-prudente e faz um discurso extravagante. O saber absoluto, por seu turno, “é uma sabedoria, na qual a Fé e a Razão se reconciliam ‘no elemento da razão’” (P. MENESES, op. cit., p. 85, com grifo do autor), quando a consciência, que está entre o saber e a ignorância, retorna ao Si de uma alienação, passando a possuir o Si universal. Ela será a consciência que captou o conceito, sendo uma pura inteligência. Nesse sentido, o Si apreendeu o si mesmo, a cultura, e passa a conceituar tudo, suprimindo a objetividade e transformando o “em-si” em “para-si”, um abstrato exposto em forma de fé, ao que o Iluminismo se opõe (cfe. FE, § 486).

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na qual a oposição causa insatisfação, e a separação, dor (p. VI). A nega-tividade leva ao aprofundamento da dialética, e essa a uma fase em que a consciência se aproxima mais do Espírito Absoluto. É necessário salientar que esse autor enfatiza os momentos do Estoicismo, do Ceticismo e da cons-ciência infeliz. A superação deles permite que a consciência atinja a razão. Nesse sentido, ele analisa a dialética mantendo-a próxima da visão teológica de Hegel, com base no Judaísmo, no Cristianismo Medieval e no Protestan-tismo. E essa é uma dentre as possíveis opções hermenêuticas presentes no pensamento hegeliano. Se a ênfase recair sobre a consciência adentrando na certeza sensível, a dinâmica apresenta uma conformação que pode ser tematizada sob outra matriz teórica, a de um impulso originário que não engloba a noção de um sacrifício intenso e doloroso.

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A liberdade absoluta entre a crítica à representação e o terror

Marcos Lutz Müller1

RESUMO: O artigo discute a determinação fenomenológica da liberdade absoluta, tal como exposta no capítulo “A Liberdade Absoluta e o Terror” da Fenomenologia do Espírito de Hegel. Inicialmente, o autor apresenta a origem filosófica da Revolução Francesa no pensamento abs-trato da Aufklärung (1) e as condições de emergência da liberdade absoluta a partir da utilidade universal (2). Depois disso, tematiza o “mal-entendido” jacobino da “volonté générale” como identidade imediata da “vontade realmente universal” com a “vontade de todos os singulares enquanto tais” (3) e a autoconsciência da liberdade absoluta como crítica a toda representação política (4). Enfim, apresenta a resolução hegeliana da contradição da liberdade absoluta e o duplo registro da sua suspensão (5).

Palavras-chave: Hegel, Auflkärung, Jacobinismo, Liberdade absoluta, Representação política, Terror. ABSTRACT: This paper discusses the phenomenological determination of absolute freedom, as outlined in the chapter “Absolute Freedom and Terror” of the Phenomenology of the Spirit of Hegel. Initially, the author presents the philosophical origin of the French Revolution in the abstract thought of Aufklärung (1) and the emergency conditions of absolute freedom from the universal utility (2). Then, the author analyzes the “misunderstanding” of the Jacobin “Volonte générale” as the immediate identity “will truly universal” with the “will of all individuals as such” (3) and absolute freedom of self as criticism of all political representation (4). Finally, the au-thor presents the resolution of the Hegelian absolute contradiction of freedom and the double registration of their suspension (5).

Keywords: Hegel, Auflkärung, Jacobinism, Absolute Freedom, Political representation, Terror.

1. A origem filosófica da Revolução Francesa no pensamento abstrato da Aufklärung

A crítica de Hegel ao terror revolucionário, associado ao jacobinismo durante a Revolução Francesa é abordada, na Fenomenologia do Espírito, na figura do espírito denominada “A Liberdade Absoluta e o Terror” (VI, B, III). Esta configura a última e a mais alta determinação do espírito estranhado de si, que antecede imediatamente o refluxo e o retorno completo da efetivida-de mundana na interioridade da consciência moral. Hegel empreende aí uma reconstrução especulativa do mundo e do processo da Revolução Francesa, especialmente dos impasses políticos do terror revolucionário, associado ao jacobinismo, bem como da sua superação na figura do “Espírito Certo de Si Mesmo” (VI, C). Este processo revolucionário é concebido como a efetiva-ção política da consciência que o espírito adquire da sua liberdade absoluta, através da experiência que ela aí faz da negatividade radical do espírito. Mais precisamente, na experiência da liberdade absoluta, o espírito adquire consciência de que a “substância torna-se para o Si do espírito, primeiro, a vontade universal”2, de que o mundo em que o espírito se exteriorizou não é

1. Professor da UNICAMP. Texto submetido em dezembro de 2008 e aprovado para publicação em janeiro de 2009.2. G.W.F. HEGEL, Phänomenologie des Geistes, in: Gesammelte Werke (GW), v. 9, Felix Meiner,

Revista Eletrônica Estudos HegelianosAno 5, nº9, Dezembro-2008: 75-99

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senão a expressão dessa vontade universal: “O mundo é para ela [a consci-ência de si] pura e simplesmente a sua vontade, e essa é vontade universal” (317, § 584) Na Revolução Francesa o espírito acede, assim, pela primeira vez, à liberdade como o seu “princípio fundamental”3, e alcança, assim, o saber de que sua relação essencialmente negativa a si torna-se a “essência de toda a efetividade”, “puro conceito” (317; § 583).

No horizonte da reconstrução filosófica da história mundial, a Revo-lução Francesa é interpretada como provindo (ausgegangen) da Aufklärung4 e da “revolução interna” (316, § 582) do mundo da cultura promovida pe-los seus princípios filosóficos. Estes vão se tornar politicamente efetivos na Revolução Francesa. O princípio fundamental da Aufklärung forma-se no desdobramento da descoberta protestante e cartesiana, cada uma à sua maneira, da interioridade infinita da autoconsciência, cujo “ápice extremo” é o pensamento enquanto “pura atividade”5. Essa pura atividade do pensa-mento Hegel a concebe como constituindo a universalidade intrínseca da razão e o princípio da sua autonomia moderna. Ela é tanto o critério que define o que é bom e justo, quanto a instância que pode fazer vacilar e dis-sipar todos os conteúdos particulares do mundo real e ideal. Nesta perspec-tiva histórico-universal do surgimento da interioridade e da razão modernas, essa atividade pura do pensamento em sua universalidade é o que atua e se impõe nesta forma específica da vontade livre, que em todos os seus conte-údos só quer a própria realização da liberdade6, e que assim, constitui a raiz da autonomia moderna e da liberdade absoluta7.

Mas para o Iluminismo e a Revolução Francesa esta auto-reflexivi-dade prática da vontade que se quer a si mesma enquanto universalmente livre é inicialmente “ainda formal”; ela é só certeza, pois “repousa sobre o princípio de contradição e de identidade”8. “Com este princípio formal abso-luto”, diz Hegel, “chegamos ao nosso mundo, aos nossos dias”, e assim, aoHamburg, 1980, p. 324; Fenomenologia do Espírito, trad. de Paulo Meneses com a colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado SJ, Vozes, Petrópolis, 2002, Edição revista, § 596. Como a paginação da primeira e da segunda edição brasileiras é diferente, indica-se somente a numeração por parágrafos, tomada da tradução inglesa de A. V. Miller, Hegel’s Phenomenol-ogy of Spirit, Oxford U.P., 1977. Daqui em diante, as citações sem qualquer especificação remetem à Fenomenologia do Espírito, o primeiro número no parêntese indicando a página da mencionada edição alemã, e o segundo remetendo ao parágrafo da edição brasileira. Para não sobrecarregar o texto, as alterações da tradução brasileira, que nos pareceram necessárias ou convenientes, não serão indicadas ou discutidas.3. G.W.F. HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, in: Werke, Suhrkamp, Frank-furt, 1970, v. 12, p. 52�-525. Será citada de ora em diante pela abreviação V.Phil.Gesch.4. G.W.F. HEGEL, V.Phil.Gesch., in: Werke, v. 12, p. 527.5. G.W.F. HEGEL, V.Phil.Gesch., in: Werke, v. 12, p. 521.6. G.W.F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Staatswissen-schaft im Grundrisse, In: Werke, Suhrkamp, Frankfurt, 1970, v. 7, § 21 A. Doravante citada pela abreviação Grl., seguida da indicação do parágrafo, e, eventualmente da letra ‘A’, quando se tratar da ‘Anotação’ (‘Anmerkung’).7. No contexto da sua avaliação crítica de Kant, Hegel lhe atribui o mérito principal de ter tor-nado “o princípio da independência da razão, da sua absoluta autonomia dentro de si, [...] de agora, em diante o princípio universal da filosofia, bem como um dos conceitos-guias (Vorur-teile) do nosso tempo.” G.W.F. HEGEL, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, § 60 A, in: Werke, Suhrkamp, Frankfurt, 1970, v. 8, p. 1�6.8. G.W.F. HEGEL, V.Phil.Gesch., Werke, v. 12, p. 523-52�.

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presente histórico da Revolução Francesa. Por isso, nas Lições sobre a Fi-losofia da História, prudentemente, quase que num circunlóquio negativo, Hegel diz que “não é possível declarar-se contra” a tese de que “a Revolução recebeu da filosofia o seu estímulo inicial”, mas ele acrescenta em seguida, “esta filosofia era, porém, primeiro, somente pensamento abstrato, e não [o] conceber concreto da verdade absoluta”9.

Junto com essa ressalva crítica à filosofia da Aufklärung Hegel intro-duz o viés específico da sua abordagem da Revolução Francesa no quadro da história mundial pela pergunta: por que essa universalidade da vontade racional, constituída pela atividade do puro pensar, – e que, por ser formal-mente infinita, exige a sua efetivação, – permanece e se efetiva, na Ale-manha, só no registro da teoria e da interioridade moral, ao passo que, na França ela se torna princípio prático, transbordando em realização política?10 Refazendo, agora, esta pergunta em relação à seqüência das configurações fenomenológicas do espírito na FE, cabe perguntar por que a liberdade ab-soluta se efetiva, primeiro, como processo político-institucional, na forma da destruição radical das instituições sociais e políticas do Ancien Régime, e ao termo dos impasses dessa efetivação revolucionária, como destruição de si mesma, e só depois na forma da consciência moral? Por que a oposição extrema entre a vontade universal e a vontade singular a que conduz a efeti-vação política da liberdade absoluta, e que define especulativamente a crise revolucionária como o ápice e o acabamento do processo de formação e de estranhamento do espírito a si mesmo, precede, na ordenação lógico-feno-menológica das figuras do espírito, a figura da interioridade moral do espírito certo de si mesmo? A resposta histórico-filosófica é que só nesta “outra(o) terra/país” (Land) (323, § 595) da interioridade moral – dupla referência ao registro filosófico (a consciência moral) e histórico-geográfico (a Alemanha) do termo Land – é que pode intervir uma verdadeira conciliação e suspensão da oposição extrema entre a universalidade e a singularidade da vontade, pois no registro político essa oposição levou à auto-destruição da liberdade absoluta na “nova figura do espírito moral”, em cujo saber e querer refluiu toda objetividade mundana e na qual essa oposição é agora suspensa (323, § 595). Ou, na formulação que reconstitui a compreensão fichtiana da au-tonomia moral, na consciência moral que se sabe absolutamente livre “esse saber da sua liberdade é sua substância e fim e conteúdo único” (324; § 598).

Afinal, a moral kantiana e fichtiana da autonomia e a Revolução Fran-cesa são coetâneas ao mesmo presente histórico. Mas tudo se passa como se a experiência da efetivação política da liberdade absoluta e a sua auto-destruição no experimento jacobino de promover, a partir da igualdade polí-tica e através da virtude republicana, imposta despoticamente, a igualdade social, fosse, na progressão fenomenológica das figuras, a condição indis-pensável do pleno acesso do espírito à consciência da liberdade como sen- do o seu princípio fundamental e a sua destinação última. Tudo se passa,

9. G.W.F. HEGEL, V.Phil.Gesch., in: Werke, v. 12, p. 528.10. G.W.F. HEGEL, V.Phil.Gesch., in: Werke, v. 12, p. 526.

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portanto, na ordem de apresentação (Darstellung), como se, antes que a liberdade possa se desdobrar na interioridade moral, nessa “inefetividade” que assume então “o valor do verdadeiro” (323, § 595), fosse preciso que ela passasse pela tentativa da sua realização política e pela experiência do seu impasse e da sua autodestruição no Terror.

É conhecida a resposta controversa que dá Hegel, nas Lições sobre a Filosofia da História, à pergunta anteriormente formulada: por que, na Ale-manha, a liberdade absoluta se efetiva, precisamente, nessa “inefetividade” da consciência moral, estilizada criticamente nos termos da filosofia de Kant e Fichte, e, em contrapartida, na França, ela se torna princípio político, que aniquila toda efetividade e toda ordem institucional existente, terminando por desembocar na sua autodestruição no terreno político: Hegel dispensa os alemães da necessidade de fazer a revolução, porque, graças à Reforma Protestante, “o princípio do pensamento” já avançara mais na sua reconci-liação com a realidade efetiva, tendo a razão e o direito, por conseguinte, já penetrado mais profundamente nela11. Daí ele depreende, que “na Alemanha o mundo concreto e a realidade efetiva se defrontam com o princípio formal da filosofia como com uma carência do espírito já interiormente apaziguada e com uma consciência tranqüila.”12

Inteiramente diferente a situação francesa, que era, então, “um agregado tumultuoso de privilégios contra todo pensamento e toda razão em geral”, cujo quadro geral, é pintado com traços fortes, que lembram as descrições do panfleto revolucionário do abade Sieyès, Qu’est-ce que le Tiers État, do qual Hegel possuía um exemplar em sua biblioteca. “Todo o sistema do Estado”, arremata Hegel, “aparecia como uma injustiça. A mu-dança tinha que ser necessariamente violenta, porque a transformação não podia mais ser empreendida pelo governo,”13 diríamos, por via constitucio-

11. “[...] o protestantismo tem a tranqüilidade sobre a realidade efetiva jurídica e ética na disposição de ânimo (Gesinnung), a qual sendo ela mesma uma só coisa com a religião, é a fonte de todo o conteúdo jurídico no direito privado e na constituição do Estado (V.Phil.Gesch., in: Werke v. 12, p. 526) Dessa diferente reconciliação da razão com a realidade efetiva na Ale-manha e na França, resulta, também o confronto entre o princípio da interioridade protestante, que põe na Alemanha a Aufklärung do lado da Teologia, graças à recepção de Espinosa como fonte da crítica à religião positiva em busca da fundamentação de uma religião racional, e a religião católica, que, ao estabelecer uma oposição entre o sagrado e a consciência religiosa, de um lado, e o pensamento abstrato do entendimento, a intelecção esclarecida (Einsicht), de outro, põe, na França, as Luzes contra a religião, a igreja e a fé, interpretada como superstição. (G.W.F. HEGEL, V.Phil.Gesch., in: Werke, v. 12, p. 526-527)12. G.W.F. HEGEL, V.Phil.Gesch., in: Werke, v. 12, p. 526.13. G.W.F. HEGEL, V.Phil.Gesch., in: Werke, v. 12, p. 528. Após mencionar várias razões es-pecíficas, Hegel indica a razão principal pela qual o governo francês não podia mais tomar em mãos uma transformação ou reforma a partir do alto. Ela retoma, a contrario sensu, a tese da especificidade alemã, oriunda das prerrogativas históricas da Reforma: “porque o governo era católico, o conceito da liberdade, a razão das leis, não podia valer como a obrigatoriedade última absoluta, visto que o sagrado e a consciência religiosa estavam separados dele” (Id., p. 529) Mais adiante conclui taxativamente Hegel, que “com a religião católica não é possível uma constituição racional, pois o governo e o povo têm de ter reciprocamente essa garantia da disposição de ânimo, e só podem tê-la numa religião que não é oposta à constituição racional do Estado.” (Id., p. 531) Aqui ainda repercutem ecos da busca juvenil de uma religião cívica na forma da tese madura de que Estado e religião partilham um conteúdo racional comum, e que apesar da forma de existência particular que a racionalidade intrínseca a cada um assume e da

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nal. Essa conclusão decorre da tese de que a Revolução “partiu” da filosofia, mas de uma filosofia que permaneceu filosofia abstrata, do entendimento, que toma por base da ação política a universalidade abstrata da vontade formal. Ora, como essa vontade só pode ter a sua efetivação imediata na vontade livre enquanto singular, nos “átomos de vontade”, segue-se que uma tal efetivação da universalidade abstrata da vontade, sem qualquer mediação particular, terá de ocorrer violentamente, e de um só golpe: “O pensamento, o conceito do direito fez-se valer de uma só vez, e, contra ele, o velho arcabouço do in-justo (Unrechts) não podia oferecer resistência.”1�

2. Condições de emergência da liberdade absoluta a par-tir da utilidade universal

A reconstituição na FE das raízes intelectuais que a Revolução Fran-cesa lança na Aufklärung tem por condição e origem próxima a redução da “essência”, da substância objetiva do mundo da cultura à pura objetividade funcional das relações de utilidade. Esta redução da efetividade mundana à utilidade universal representa o ponto de chegada e de resolução da luta entre as duas formas opostas do Iluminismo, entre a fé e a “intelecção” (Ein-sicht).

Esta oposição, que polariza o “Iluminismo satisfeito” (310; § 573) e “vencedor” (312; § 575), em contraposição à fé, entendida como “Iluminis-mo insatisfeito”, desemboca e se resolve num conflito interno do Iluminismo consigo mesmo. Ele se divide, assim, em “dois partidos” (312, § 575), o do idealismo e o do materialismo, na figura que eles assumem, respec-tivamente, no deísmo e o no sensualismo das Luzes francesas do século XVIII15. Esses dois Iluminismos são diferentes, porque partem de objetos só inicialmente diferentes, – o “puro pensar”16 enquanto um “além negati-vo” e o “puro ser”, compreendido como um puro positivo, sem predicados, que assume a forma da “matéria absoluta” (313, § 578). Ambos exprimem porém, no fundo, o mesmo “absoluto sem-predicados” (312, § 578) a que

sua necessária separação institucional, eles não podem estar em oposição última quanto àquele conteúdo. (Ver Grl., § 270 A)14. G.W.F. HEGEL, VPhGesch., in: Werke, v. 12, p. 529.15. Jean HYPPOLITE, Genèse et Structure de la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel, Aubier, Paris, 1946, v. II, pp. 431-436. G.W.F. HEGEL, La Phénoménologie de l’Esprit, traduction de Jean Hyppolite, Aubier, Paris, 1947, v. II, p. 123, nota 168.16. A identidade do puro pensar com o puro ser, enquanto “conceito da metafísica cartesiana” (313, § 578), que os dois Iluminismos esqueceram, só vai ser alcançada na experiência da liberdade absoluta, quando o mundo se torna para o espírito a expressão da vontade universal. Esta identidade é aqui analisada por Hegel num duplo aspecto: 1) o puro pensar na sua igual-dade a si é idêntico com o puro ser enquanto este é o negativo, o outro da autoconsciência, o puro positivo como “matéria absoluta”; 2) mas ele é também idêntico com o puro ser enquanto esse puro pensar é considerado na sua simplicidade imediata como negação auto-referencial, como pura negatividade. Inversamente, o puro ser sem predicados, a pura matéria enquanto “coisidade”, abstraída de todas as suas qualidades, é a “pura abstração” igual à “simplicidade imediata” do puro pensar (313, § 578 fim). Hegel arremata a dialética do Iluminismo que não reconhece a identidade dos opostos formulando o seu ponto de chegada: “o pensar é coisidade, ou coisidade é pensar.” (ibid.)

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a intelecção já tinha reduzido e esvaziado a essência absoluta da fé. Eles encarnam, na sua oposição, os dois lados da identidade cartesiana entre ser e pensar, que o Iluminismo mantém separados, porque ambos os Ilu-minismos, o deísta e o materialista, não se deram ainda conta de que seus respectivos objetos já estão unificados na negatividade do puro movimento da intelecção esclarecida17, concebido especulativamente como um diferen-ciar de diferentes, que não mais são, todavia, diferentes. Esse diferenciar de termos no fundo imediatamente idênticos entre si Hegel chama de “conceito absoluto” (311, § 574)18.

Mas este puro movimento da intelecção, que é comum aos dois Ilu-minismos e à própria oposição entre o “puro pensar a si mesmo” da inte-lecção e à fé, esvaziada do seu conteúdo, é descrito por Hegel como um “movimento simples de rotação” (313, § 579). Ele só existe e tem conteúdo, distinto da simples identidade vazia entre o ser e o pensar, na medida em que ele se diferencia e se “desdobra nos seus três momentos” lógicos: o em-si, o ser-para-outro e o para-si. É graças a eles que esse movimento vazio se articula e adquire conteúdo, e, assim, torna-se, objeto para essa “pura intelecção”. Este objeto, no qual “a pura intelecção completa a sua realiza-ção” é a utilidade: a utilidade, – diz enfaticamente Hegel, – “é a efetividade tal como esta é objeto para a consciência efetiva da pura intelecção” (314, § 580). A utilidade surge, assim, pela diferenciação do movimento simples da intelecção em seus “momentos puros”, graças à qual esta última “é objeto para si mesma” (ibid.): o objeto útil, na sua estrutura lógica, é um em-si que não permanece e não se sustenta em sua diferença, que se torna, portanto, “essencialmente um ser para um outro”, “apenas puro momento”; este, por sua vez, nessa sua diferença em relação ao em si, nessa pura alteridade funcional, desaparece, também, imediatamente, como o em si, de sorte que nesse desaparecer imediato do ser para um outro o ser-para-si é a unidade dos dois primeiros enquanto “o ser-retornado-a-si-mesmo” (314, § 580)19. Mas este para-si singular, i.é, o consumidor para o qual o objeto útil essen-cialmente é, por ser ele ainda um momento abstrato diferente dos outros, revela-se, na sua igualdade vazia consigo, também, um ser-para-outro, que se insere novamente como um elo nesta cadeia indefinida do valor útil, que constitui o mundo da utilidade como um em si esvaziado de toda substan-cialidade, e, por isso, não é capaz de abarcar e unificar os outros momentos

17. Embora a tradução de Aufklärung por ‘Iluminismo’ me pareça em princípio mais exata e fiel, principalmente em se tratando da Aufklärung alemã, mantive a opção do tradutor brasileiro pelo termo ‘Iluminismo’, mais próximo das Lumières francesas, às quais Hegel neste contexto se refere antes de tudo. Todavia, na tradução do adjetivo aufgeklärt, quando referido a Einsicht (‘intelecção’), adequa-se melhor ao espírito da língua e ao substantivo por ele qualificado a sua tradução por ‘esclarecida’.18. “Esse diferenciar do não-diferente consiste precisamente em que o conceito absoluto faz de si mesmo seu objeto, e se contrapõe como essência àquele movimento [da consciência de si que separa os diferentes]. Por isso lhe falta o lado em que as abstrações ou diferenças se mantêm-separadas-umas-das-outras e assim se torna o puro pensar como pura coisa.” (311, § 574).19. “O útil é apenas a alternância daqueles momentos, um dos quais, na verdade, é o próprio ser-retornado-a-si-mesmo, mas só como ser-para-si, i. é, como um momento abstrato, que aparece de um lado em contraste com os outros momentos”. (314; § 580)

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em si mesmo20.

A utilidade só adquire, assim, conteúdo e objetividade pela “alter-nância incessante” (314, § 580) desses três momentos lógicos, nos quais aquele movimento simples de rotação se decompõe. Como esse movimento rotativo “não retorna a si”, e o para-si ao qual remetem as relações de utili-dade permanece inicialmente uma autoconsciência singular, que não “abar-ca” (übergreift) em si os outros momentos, esse movimento aparece para a intelecção ainda como uma cadeia objetiva e recorrente de relações de uti-lidade21. Nesse sentido, embora a intelecção pura tenha consciência de que o mundo da utilidade não é mais um mundo sendo em si e para si, como o mundo da fé, mas um mundo reduzido à objetividade de relações puramen-te funcionais, ela o diferencia todavia de si, pois é nele que ela encontra a satisfação da sua consciência efetiva. (315, § 581).

O mundo da utilidade como objeto da pura intelecção resulta, assim, da convergência e da reunião do mundo da cultura em sua expansão e diver-sificação, que tem a sua efetividade na certeza da autoconsciência singular, e do mundo em si da fé, o reino da verdade oposta à negatividade da certeza de si, enquanto esta é o princípio da efetividade, que precisamente falta ao mundo da fé (ibid.). Na perspectiva dessa reunião da verdade do mundo ideal e da certeza do mundo efetivo o útil aparece como um objeto inteira-mente perpassado pelo olhar da autoconsciência singular: nele esta obtém a plena fruição da sua certeza de si, pois é precisamente esse ser inteiramente penetrado pela intelecção que o torna inteiramente um ser para um outro e constitui “a verdadeira essência” do objeto útil (ibid.). Por isso, a utilidade é o último resquício da substancialidade objetiva, o véu da “aparência vazia de objetividade” (316, § 583) que ainda separa o espírito da intuição que ele, graças à experiência da efetivação da liberdade absoluta, vai alcançar de si mesmo e da sua negatividade no seu objeto. No mundo da utilidade “ambos os mundos [o mundo da cultura e o mundo da fé] estão reconciliados, e o céu baixou e transplantou-se cá para a terra” (316, § 581).

Mas, se o objeto útil “exprime o conceito da pura intelecção”, trata-se de um conceito que está ainda na determinidade do ser, que é um “conceito sendo” (314, § 580). Por isso, diz Hegel, “ela [a pura intelecção] é a cons-ciência dessa metafísica”, porque ela restabelece, na forma objetiva da uti-lidade universal, a identidade cartesiana; “mas ela não é ainda o conceituar dessa metafísica”, pois “não chegou ainda à unidade do ser e do conceito mesmo” (315, § 580). O utilitarismo universal, resultante da mediação entre a positividade da fé e a negatividade da pura intelecção, no desdobramento da identidade cartesiana entre ser e pensar, é, assim, a forma conclusiva da interpretação esclarecida do mundo, que o reduz a um puro sistema de relações de utilidade universal, que inclui a própria religião, “dentre todas as utilidades, a mais-útil-de-todas, pois é a pura utilidade mesma” (305, §

20. “Embora haja no útil o momento do ser-para-si, não é de modo que se sobreponha aos outros momentos, ao em-si e ao ser-para-outro – e por isso, seja o Si.” (315; § 580)21. “Mas se o útil exprime bem o conceito da pura intelecção, ele não é, contudo, a intelecção como tal, e sim enquanto representação ou enquanto seu objeto.” (314; § 580)

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561).

Mas como a intelecção ainda não apreendeu conceitualmente a sua unidade com o objeto útil, i.é, aquela unidade do ser e do pensar, com a qual inicia a metafísica moderna no cogito cartesiano, ela é só o primeiro surgimento do “conceito puro” para o espírito, no sentido de que o espírito contempla o seu si-mesmo ainda como objeto útil. A intelecção esclarecida é, por isso, o surgimento do puro conceito, mas ainda enquanto fenômeno, porque antes que a autoconsciência do espírito retome e suspenda na figura da liberdade absoluta a “forma da objetividade do útil”, e alcance plenamen-te a posse de si no saber universal do espírito, a utilidade é “ainda predicado do objeto, mas não o próprio sujeito, [ela não é ainda] sua efetividade única e imediata”. (316, § 582)

A liberdade absoluta surge, então, graças à “revogação” (Rücknah-me) dessa “forma da objetividade do útil” (316, § 582), pela negatividade do saber que o espírito adquire de seu si-mesmo (Selbst) universal. Essa negatividade, que já atua na intelecção pura e suspende essa aparente ob-jetividade do útil, que até agora separava a autoconsciência do espírito da plena posse de si, é designada pela palavra alemã para revolução (Umwäl-zung), literalmente, um “reviramento” da realidade efetiva. Assim, a con-clusão dessa análise das raízes filosóficas que a Revolução Francesa lança no Iluminismo é a de que aquela não é senão a efetivação política desta “revolução interna”, já acontecida na intelecção esclarecida, que “intelige” (einsieht) o mundo da utilidade como sendo a reconciliação do mundo ideal e do mundo real (316, § 581).

Quando então a consciência da intelecção pura esclarecida se dá conta de que o ser para si, ao qual o objeto útil na sua pura alteridade funcional re-mete, não é mais só uma autoconsciência singular, contraposta aos outros momentos lógicos do em-si e do para-outro, mas uma autoconsciência uni-versal, que “abarca” (übergreift) (315, § 580) esses momentos dentro de si, ela torna-se, agora, saber do Si universal: através da “aparência vazia de objetividade, a consciência dessa intelecção torna-se “o absoluto ver-se a si mesma duplicada”, “o mirar-se do Si no Si” do espírito (317, § 583). Ela tor-na-se “o conceito puro”, e passa a se compreender também conceitualmente como tal, pois a efetividade do objeto não é senão o próprio conceito; e o conceito sabe que ele é “a essência de toda efetividade”22.

É importante ressaltar que a gênese fenomenológica da liberdade absoluta resulta da efetivação dessa revolução interna da intelecção escla-recida, que sabe que o mundo da utilidade universal não é senão a duplica-ção, no objeto, deste saber que o espírito alcançou de si na pura intelecção.

22. “Mas o ser-para-si ao qual retorna o ser para outro, o Si, não é um Si diverso do eu, um Si próprio daquilo que se chama objeto; pois a consciência enquanto pura intelecção não é um Si singular ao qual o objeto igualmente se contraporia como Si próprio; senão que é o puro conceito,o mirar-se do Si no Si, o absoluto ver-se a si mesmo, o absoluto ver-se a si mesmo duplamente; a certeza de si é o sujeito universal, e seu conceito que-sabe é a essência de toda efetividade.” (317, § 583)

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Nela ele sabe que todas as diferenças e determinações do mundo da fé e do mundo da cultura não têm mais para ele uma efetividade substancial, mas só subsistem e se justificam ainda, perante a intelecção esclarecida, pelas suas relações de utilidade. Esta exaustão da efetividade e da subsistência própria dos “membros da organização do mundo efetivo e do mundo da fé” (316, § 583) no utilitarismo universal da Aufklärung prepara a eliminação de toda ordem e de toda diferenciação intelectual, institucional e política na negatividade do Si universal, cuja experiência resulta da atualização da liberdade absoluta na Revolução Francesa e no Terror. Na consciência que o espírito aí alcança de si, ele sabe que a sua negatividade universal é a “essência de todas as massas espirituais” (317, § 584), isto é, de todas as diferenças e determinações institucionais do mundo objetivo, já reduzidas a relações de utilidade. Por isso ele está cônscio, também, de que o mundo é a pura expressão dessa negatividade universal, e de que toda organização institucional e política do mundo do Ancien Régime retornou àquela negati-vidade como ao seu fundamento, e nela pode se volatilizar.

3. O “mal-entendido” jacobino da “volonté générale” como identidade imediata da “vontade realmente uni-versal” com a “vontade de todos os singulares enquanto tais”

Nessa dissolução de todas as diferenciações do mundo da cultura e da fé, a consciência da liberdade absoluta sabe que “toda realidade é só espiritual” (317, § 584), mais precisamente, que “o mundo é para o espíri-to pura e simplesmente a sua vontade e de que esta é vontade universal” (ibid.). O sentido em que a liberdade absoluta é vontade universal remete ao conceito rousseauniano de “vontade geral”, bastante difundido na retórica política dos diferentes grupos revolucionários, num espectro semântico que, de resto, extrapola largamente as teses de Rousseau e cuja “ambivalência”23 política foi por eles largamente explorado. Hegel elabora, então, a figura fe-nomenológica da liberdade absoluta, a partir do que ele caracteriza como o “mal-entendido a respeito da vontade geral”2�, que se interpreta, aqui, como o mal-entendido jacobino. Com efeito, tanto o “liberalismo”25 pós-revolucio-nário, quanto, paradoxalmente, o experimento jacobino, tirando certamente conclusões opostas desse mal-entendido, compreenderam, cada um à sua maneira, a universalidade da vontade como uma totalidade aditiva (Allheit),

23. “Zweideutigkeit”. Cf. G.W.F. HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, in: Werke, Suhrkamp, Frankfurt, 1970, v. 20, p. 307. Citado de ora em diante como V.Gesch.Phil.2�. Missverständnis, G.W.F. HEGEL, V.Gesch.Phil., in: Werke, v. 20, p. 307.25. No contexto da avaliação do “liberalismo” e da “abstração do Liberalismo”, que toma conta do mundo românico no período pós-revolucionário, depois da queda de Napoleão e durante a Restauração, Hegel diagnostica como sua “unilateralidade principal” a respeito da “vontade subjetiva”, que ele identifica com o liberalismo, a de entender “que a vontade universal deve ser (soll) empiricamente universal, i. é, que os singulares enquanto tais devem governar ou participar do governo”. “(...) o Liberalismo contrapõe a tudo isso [à reorganização pós-revolu-cionária do Estado e dos círculos da vida civil] o princípio dos átomos, das vontades singulares: tudo deve acontecer através do poder expresso e do assentimento expresso dessas vontades”. V.Phil.Gesch., in: Werke, v. 12, p. 53�-535.

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composta pelas vontades singulares. Para dizer nos termos das Lições sobre Filosofia da História, trata-se de uma “vontade universal que deve ser em-piricamente universal”26. São vontades que na sua singularidade particular permanecem absolutas, tanto no ponto de partida da construção contratual, quanto na exigência de legislar ou governar diretamente enquanto singula-res.

Essa exigência acaba resultando na redução da vontade geral à von-tade de todos. A vontade geral é, assim, confundida com a vontade da maio-ria, à qual a minoria estaria, então, sujeita como a um poder externo. Ora, como também para Hegel a vontade só é efetiva enquanto vontade singular e consciente da sua singularidade, a vontade universal da liberdade absoluta torna-se, na perspectiva desse mal-entendido jacobino, “vontade realmente universal, vontade de todos os singulares enquanto tais” (317, § 584). Ela não é efetiva naquela sua racionalidade intrínseca, que perpassa as vonta-des singulares e lhes é imanente como universalidade concreta na forma do Estado racional, teorizado mais tarde, nas Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. Aí, no contexto da sua crítica a Rousseau e aos revolucionários, Hegel denuncia o perigo da redução da vontade intrinsecamente universal à vontade comunitária, na medida em que eles compreendem aquela como provindo essencialmente de atos volitivos conscientes das vontades singula-res contratantes27. Nessa perspectiva contratual a universalidade da liberda-de absoluta pretende ser real na sua universalidade abstrata, precisamente porque ela quer, nessa sua universalidade, ser empiricamente idêntica com a “vontade dos singulares enquanto tais” (ibid.).

O núcleo dessa figura fenomenológica da liberdade absoluta resulta da estilização dos termos do resultado da cláusula principal do Contrato So-cial, – a alienação, por parte de cada associado, de todos os seus direitos a toda a comunidade, – cuja contrapartida é a cláusula de que “cada um de nós recebe conjuntamente cada membro como parte indivisível do todo”28. Segue-se daí que cada vontade singular se identifica imediatamente à von-tade universal “enquanto participante da autoridade soberana”29, de sorte que o indivíduo nesta condição de cidadão supera a limitação da sua tarefa particular na divisão social do trabalho, apara os seus interesses egoístas e passa a agir como parte indivisível do povo soberano. Na reconstrução hegeliana da leitura jacobina de Rousseau, estilizada na figura da liberdade absoluta, a vontade universal se apresenta como a que “deve ser enquanto esta vontade efetiva verdadeira [de cada um], enquanto a essência auto-consciente de toda e cada personalidade, de sorte que cada um sempre e indivisamente faça tudo, e [em contrapartida] o que surge como o agir do todo é o agir imediato e consciente de cada qual” (317, § 584).

26. G.W.F. HEGEL, V.Phil.Gesch., in: Werke, v. 12, p. 53�. Ver nota anterior.27. G.W.F. HEGEL, Grl. § 258 A, : in Werke, v. 7, p. �00.28. “Cada um de nós põe em comum a sua pessoa e toda a sua potência sob a direção suprema da vontade geral e cada um de nós recebe conjuntamente cada membro como parte indivisível do todo.” J.-J. ROUSSEAU, Du Contract Social ou Droit Politique, in: Oeuvres Complètes, Biblio-thèque de la Pléiade, Gallimard, Paris, 1964, v. III, p. 361. Citado de ora em diante como CS.29. CS, I, 6, in: v. III, p. 362.

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A efetivação da liberdade absoluta implica, assim, tanto que a von-tade universal seja imediatamente idêntica com as vontades singulares en-quanto tais, quanto, correlatamente, que o fazer e agir do indivíduo singular seja também imediatamente universal e queira realizar imediatamente o fim universal, consciente de agir como parte indivisível do todo. Por isso, a sua singularidade “só pode efetivar-se num trabalho que é trabalho total”, isto é, para o todo. O enunciado especulativo da situação descrita diz que “o conceito entra na existência de tal modo que cada consciência singular se eleva (erhebt) da esfera à qual estava alocada, não encontra mais nessa massa30 particular a sua essência e a sua obra, mas, ao contrário, apreende o Si [do espírito] como o conceito da vontade, e todas as massas como es-sência dessa vontade”. (317-318; § 585) A conseqüência da efetivação des-sa liberdade, cuja negatividade penetra todos os momentos do todo social, torna-se o “extinguir” (tilgen) da efetividade e da validade (das Gelten) de toda organização estamental e espiritual do Ancien Regime; através dela a consciência singular suprime (aufheben) tanto a sua inserção nas corpora-ções e na hierarquia estamental (nos “membros determinados da organiza-ção do mundo efetivo” (316, § 583), como também toda mediação do agir e fazer pelo conteúdo particular de uma tarefa limitada na vida civil31. A liber-dade absoluta quer, assim, na sua intenção revolucionária, por meio de um agir inteiramente político, para além das tarefas limitadas e das identidades privadas da vida civil-burguesa, promover uma re-apropriação da dimensão integral de um agir que não estivesse mais cindido entre a vida civil e a vida política, entre o público e o privado. Conforme a crença dos revolucionários de agirem como atores de uma república antiga, a liberdade absoluta seria uma tentativa de promover um renascimento da virtude e da liberdade re-publicanas, numa espécie de re-encenação da república antiga.

Esta construção fenomenológica da liberdade absoluta como vontade que na sua universalidade quer ser empiricamente real e imediatamente idêntica com as vontades singulares enquanto tais, é, assim, uma estili-zação da compreensão revolucionária, antes de tudo jacobina, da vontade geral rousseauniana. Uma compreensão que é oriunda desse entendimento equivocado (o mencionado “mal-entendido”) da vontade universal enquanto constituída contratualmente a partir dos átomos das vontades singulares e da sua sobre-determinação pelo seu lugar sistemático, que faz o espírito ter nela o primeiro acesso à consciência da negatividade universal da sua liber-dade.

30. A “massa”, geralmente no plural, as “massas” ou, também, as “massas espirituais” (321, § 593), designam os “estamentos” (Stände) que estruturam a sociedade civil, e num nível mais específico, as corporações e associações cooperativas nas quais, por sua vez, se articulam os diferentes ramos da produção e do comércio compreendidos no estamento intermediário da indústria. Elas são a organização econômico-social e, também, implicitamente política, através da qual a divisão do trabalho, a produção social e a satisfação das carências se organizam em “sistemas particulares entre os quais os indivíduos estão repartidos”, no âmbito do “sistema das carências” da sociedade civil. (G.W.F. HEGEL, Grl. § 201, in: Werke, v. 7, p. 354)31. “Nessa liberdade absoluta são assim eliminados todos os estamentos, que são as potências espirituais em que o todo se articula; a consciência singular que pertencia a um desses órgãos e no seu âmbito queria e consumava [seu agir], suprimiu suas barreiras: seu fim, é o fim uni-versal; sua linguagem, a lei universal; sua obra, a obra universal.” (318, § 585)

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Por isso, malgrado a crítica à origem contratualista e ao caráter “li-beral” dessa “vontade universal que deve ser empiricamente universal”32, e malgrado a crítica especulativa ao formalismo que permeia a efetivação imediata, revolucionária, da sua universalidade abstrata na ação direta das vontades singulares, Hegel pode celebrar o “teor (Gehalt) histórico-mun-dial” e a potência irresistível deste evento que promove a liberdade abso-luta. Assim, a “luta do formalismo” em torno dessa liberdade “tem de ser, com certeza, distinguido do teor histórico-mundial” desse evento33. Graças à consciência que o espírito alcança, na experiência revolucionária, de que a liberdade é o seu princípio e a sua destinação última, e graças à “força in-dômita (unbezwingliche)”3� de efetivação histórica desta autoconsciência da liberdade, Hegel resume, num enunciado enfático, a sua avaliação positiva da Revolução Francesa: “esta substância indivisa da liberdade absoluta se eleva ao trono do mundo, sem que poder algum lhe possa impor resistên-cia.” (317, § 585).

4. A autoconsciência da liberdade absoluta como crítica a toda representação política

A autoconsciência da liberdade absoluta como vontade universal em-piricamente real, por meio da qual o agir individual quer alcançar a sua autonomia pela sua coincidência imediata com aquela vontade e pela sua objetivação total no todo político, demarca-se claramente tanto da autode-terminação formal da vontade kantiana, que Hegel chama de “pensamen-to vazio da vontade”, quanto da vontade comum “representada” de Sieyès (317, § 584). Referindo-se criticamente a Kant, ele diz que a “vontade real-mente universal” não é uma mera “representação” (Vorstellung) do legislar e agir universal, do qual a vontade singular participaria como co-legisladora. A participação na vontade universal como co-legislador não preenche as exi-gências de um agir político integral, que apareça imediatamente como agir do todo, tal como quer a liberdade absoluta. Por isso, a autoconsciência da liberdade absoluta “não se deixa defraudar (betrügen) na [sua] efetividade” singular pela “representação da obediência a leis dadas por ela mesma” (319, § 588). A idéia a priori de um poder legislativo da vontade legisladora universal unificada do povo35, à qual Hegel remete concisamente, não pre-enche as condições da autoconsciência da liberdade absoluta, seja esta con-siderada, positivamente, como um ideal ou desiderato normativo da plena efetivação política da liberdade e da dimensão integral de um agir humano

32. G.W.F. HEGEL, V.Phil.Gesch., in Werke, v. 12, p. 53�.33. G.W.F. HEGEL, V.Phil.Gesch., in Werke, v. 12, p. 535.34. G.W.F. HEGEL, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrissen (1830), § 482 A, in: Werke, v. 10, p. 301. “Enquanto o espírito livre é o espírito efetivo, os mal-enten-didos a seu respeito são de conseqüências práticas tão enormes, que nada há que tenha essa força indômita – uma vez que os indivíduos e os povos captaram em sua representação o con-ceito abstrato da liberdade sendo para si; precisamente por ser a liberdade a essência própria do espírito, é isto enquanto sua efetividade mesma.”35. I. KANT, Metaphysik der Sitten, I. Teil, Metaphysische Anfansgründe der Rechtslehre, § 46, in: I. KANT, Schriften zur Ethik und Religionsphilosophie, W. Weischedel (ed.), WBG, Darmstadt, 1966, v. �, p. �32.

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não cindido, seja, negativamente, como figuração do impasse político da sua efetivação revolucionária, como veremos.

Mas esta “vontade realmente universal” também não pode ser uma vontade “representada” (repräsentiert) no sentido da representação polí-tica moderna, pois é a representação da vontade universal que precisa-mente impede o singular de “dar ele mesmo a lei” (319, § 588). A teoria da representação política confia a formação da vontade geral a um corpo de representantes, que a exerceria por delegação, seja ele constituído por voto majoritário ou ficticiamente, por consentimento implícito unânime num contrato fundador. Por isso, a vontade universal da liberdade absoluta não é o “pensamento vazio da vontade que se põe num assentimento tácito ou [num assentimento] por representação” (repräsentierte Einwilligung) (317, § 584). Aqui Hegel demarca, provavelmente, a liberdade absoluta, de ma-neira ainda mais explicita, da teoria da “vontade comum representativa” de Sieyès36, sem nomeá-lo, como de resto raramente o faz.

Na verdade foi esta, e não a teoria da vontade geral (irrepresentável) de Rousseau, e muito menos o seu “mal-entendido” jacobino, a inspiradora da principal instituição estabelecida pela Revolução Francesa, a Assembléia Nacional37. Esta surge, exatamente, no próprio ato inaugural pelo qual os deputados do Terceiro Estado se declararam representantes de toda a nação, constituindo a Assembléia Nacional como o único lugar de formação da von-tade geral, precisamente representativa, da nação38. Para Sieyès, a realiza-ção da liberdade individual não implica a participação direta dos cidadãos na elaboração da lei ou nas decisões do poder executivo, pois essa participação poria em perigo a liberdade das minorias. Ademais, numa sociedade mar-cada por uma crescente divisão do trabalho, a vontade geral não pode mais ser exercida diretamente pelo povo na forma de uma democracia direta, que Sieyès denomina “democracia bruta”, mas somente por delegação, na forma da representação política. Esta é, por isso, uma decorrência necessária, na ordem política, da divisão social do trabalho. Mas Sieyès conserva, contudo, o núcleo da teoria de Rousseau, de que a comunidade nacional não pode se despojar do seu direito originário de querer, e de que este é “sua proprieda-de inalienável”, pois a vontade comissionada ao corpo de representantes é só “uma porção da grande vontade comum nacional”39. Para Rousseau, toda-

36. EMMANUEL SIEYÈS, Qu’est-ce que le tiers état?, Flammarion, Paris, 1988, p. 125.37. Artigos: Rousseau (Bernard Manin) e Sieyès (Keith Michael Baker), in: FRANÇOIS FURET e MONA OZOUF (org.), Dicionário Crítico da Revolução Francesa, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1989.38. O conceito de uma “vontade geral representativa”, que Sieyès reivindica como formulação original sua, foi explicitamente consagrado pela primeira constituição francesa, ainda de cunho monárquico-liberal, de 1791. O art. 2, do Título III, incorpora o princípio rousseauaniano da origem do poder no povo, mas já na sua reformulação por Sieyès, em termos de vontade nacio-nal: “A nação, de quem emanam todos os poderes, só pode exercê-los por delegação. – A con-stituição francesa é representativa”. (Les constitutions de la France depuis 1789, org. Jacques Godechot, Garnier-Flammarion, Paris, 1979, pp. 38-39, trad. MLM)39. “La communauté ne se dépouille point du droit de vouloir; c’est sa propriété inaliénable; elle ne peut qu’en commettre l’exercice.” “....la volonté commune réelle qui agit, c’est une volonté commune représentative. [...] “Cette volonté n’est pas pleine et illimitée dans le corps des représentaant; ce n’est q’une portion de la grande volonté commune nationale.” Emmanuel

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via, uma “vontade geral representativa” seria uma contradição nos próprios termos.

Assim, a autoconsciência da liberdade absoluta, que sabe que o mun-do é pura e simplesmente a expressão de uma vontade universal imediata-mente idêntica com as vontades singulares, re-atualiza e faz valer, contra Sieyès, a tese rousseauniana do caráter irrepresentável da vontade geral, cujo exercício não pode ser delegado a um corpo de representantes�0. Para a autoconsciência da liberdade absoluta a representação política é um en-godo, uma fraude, que priva a autoconsciência singular da sua efetividade imediatamente universal e do seu agir indivisível enquanto parte do todo. Por isso, visto que todos são singularmente legisladores, a autoconsciência singular não permite que a representação política a engane e a prive do seu agir e legislar que, na sua efetividade singular, se quer imediatamente uni-versal. Ela quer “consumar ela mesma não uma obra singular, mas uma obra universal”�1. Na consciência de consumar uma obra imediatamente universal ela “nada faz de singular, mas somente leis e ações de Estado”, arremata Hegel, com uma ponta de ironia (318, § 587). Daí a conclusão lapidar dessa crítica à representação, contida na lógica da liberdade absoluta: “onde o Si é somente por representação (repräsentiert) ou representado (vorgestellt), ele não é efetivo; onde ele é substituído vicariamente (vertreten), o Si não é” (319, § 588).

Essa dupla crítica à ‘fraude’ (betrügen) da representação política nas formas que ela assume em Kant e Sieyès, implícita na autoconsciência da liberdade absoluta, torna-se, assim um elemento formador da consciência que o espírito adquire da sua liberdade: ela mostra que a experiência pri-meira da sua determinação fundamental e, conseqüentemente, o acesso à universalidade da cidadania política e à igualdade jurídica e política, as-sentadas na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, passa, pelo menos inicialmente, por essa eliminação de toda mediação social e política da particularidade, ainda enraizada na inserção do indivíduo na divisão so-cial do trabalho e na hierarquia estamental da sociedade do Ancien Régime (319, § 588).

Conseqüência, também, dessa supressão de toda ordem real e ide-al, através da qual o espírito adquire consciência de que o mundo é pura e simplesmente a sua vontade universal (317, § 584), é a transformação da oposição fenomenológica entre consciência e objeto numa diferença interna entre consciência e vontade singular e consciência e vontade universal (318, § 586). Essa oposição, no duplo registro epistêmico e volitivo, é concebida,

Sieyès, op.cit. p. 12�-12540. “Je dis donc que la souveraineté n’étant que l’exercice de la volonté générale ne peut jamais s’aliéner, et que le souverain, qui n’est qu’um être collectif, ne peut être représenté que par lui-même; le pouvoir peut bien se transmettre, mais non pas la volonté.” (ROUSSEAU, CS, II, 1, v. III, p. 368)41. “Esta [a autoconsciência universal] não se deixa defraudar na [sua] efetividade [...] por sua representação (Repräsentation) no legislar e agir universal, [também] não, na efetividade que consiste em ela mesma dar a lei e em consumar (vollbringen) ela mesma não uma obra singular, mas [uma obra] universal”. (319, § 588)

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agora, especulativamente como uma “ação-recíproca” (Wechselwirkung) da autoconsciência da liberdade absoluta consigo mesma, isto é, como uma ação-recíproca entre a forma universal e a forma singular dessa autoconsci-ência (318, § 587). Por isso, também, o mundo real e ideal, reduzido a esta ação-recíproca entre os momentos da universalidade e da singularidade da consciência e da vontade, não comporta mais uma articulação real que pu-desse reger a vida dos indivíduos e alocá-los a tarefas particulares. Qualquer diferenciação objetiva e positiva ao nível da linguagem, das instituições, das leis e das ações, equivaleria ao abandono dessa autoconsciência universal da liberdade absoluta (318, § 588).

Essa ação-recíproca da liberdade absoluta consigo exprime a iden-tidade imediata da vontade singular e da vontade universal, e torna-se, assim, um operador de negatividade radical, que, nas condições históricas e sociais da nação francesa, vai desencadear o processo revolucionário, con-cebido pela lógica fenomenológica como “a última e a suprema” figura do processo de formação do espírito e do seu estranhamento de si. Graças à experiência dessa negatividade que dissolve todos os momentos da objeti-vidade, o “conceito puro”, i.é, “o mirar-se do si [do espírito] no si” (317, § 583), torna-se, agora, fenômeno para o espírito, e “o pensamento do direi-to” passa a ser o fundamento sobre o qual todas as constituições “doravante deveriam se basear”�2. Assim, a experiência da dissolução universal de toda organização objetiva do mundo (317-318, § 585) produz aquele espetáculo até então jamais visto, celebrado por Hegel como “uma aurora esplêndida”, que compara a Revolução Francesa com o nous de Anaxágoras, que governa o mundo: “o homem se coloca de ponta cabeça, i.é, sobre o pensamento, e edifica a realidade efetiva segundo o pensamento”�3.

Mas, por outro lado, a atualização dessa liberdade absoluta e da sua negatividade no processo revolucionário vai mostrar não só as aporias dessa reativação de uma cidadania republicana nas condições da modernidade, que se torna politicamente auto-devoradora e destruidora de toda ordem social, como também os impasses de uma realização imediata e empírica da vontade geral pelas vontades singulares, sem a mediação da representação política.

5. O agir puramente negativo da liberdade absoluta como terror e a sua contradição interna Como a liberdade absoluta, enquanto identidade imediata da vonta-

42. G.W.F. HEGEL, V. Phil. Gesch., in: Werke, v. 12, p. 529.43. “Anaxágoras dissera, primeiro, que o nous rege o mundo; mas só agora o homem veio a ter o conhecimento de que o pensamento deve reger a efetividade espiritual. Foi, assim, uma aurora esplêndida. Todos os seres pensantes festejaram conjuntamente esta época. Uma co-moção sublime dominou aquele tempo, um entusiasmo do espírito fez o mundo arrepiar, como se tivesse pela primeira vez chegado à reconciliação efetiva do divino com o mundo” (V. Phil. Gesch., in: Werke, v. 12, p. 529). Na Fenomenologia do Espírito essa reconciliação do mundo da cultura e do mundo da fé já fora em princípio promovida pela pura intelecção esclarecida, pois é graças a ela que “o céu transplantou-se cá para a terra” (316, § 581).

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de universal com as vontades singulares, não é compatível com uma repar-tição das liberdades individuais entre as diferentes esferas de uma organiza-ção social, mediada por uma distribuição de tarefas limitadas e identidades particulares, ela só pode, efetivar-se numa liberdade singular que exclui as outras. Para agir, ela precisa “concentrar-se” (sich zusammennehmen) numa individualidade singular excludente (319, § 589), porque não pode agir enquanto vontade “realmente universal”, isto é, enquanto totalidade aditiva (Allheit). Daí se segue, também, que a liberdade absoluta, devendo efetivar-se enquanto “empiricamente universal”, não se objetiva em nenhu-ma obra positiva e diferenciada, e assim só é efetiva no agir excludente de um indivíduo que pretende realizar imediatamente a universalidade abstrata enquanto tal. Por isso, a vontade singular autoconsciente não se encontra mais a si mesma no que seria a “obra universal da liberdade absoluta en-quanto substância sendo-aí” (319, § 589), pois uma obra objetiva implicaria uma alteridade, que re-introduziria em seguida uma diferenciação social e política (uma divisão de poderes), conflitante com a autoconsciência uni-versal dessa liberdade. Mas a vontade singular tampouco, se encontra nas ações individuais da liberdade absoluta, pois, na medida em que o seu agir é individual, elas são excludentes (318-319; § 588).

E assim como a universalidade da liberdade absoluta só se efetiva numa individualidade excludente, assim também o “único objeto” que ainda subsiste por si em face da liberdade absoluta é a individualidade nua, enquan-to puro saber vazio da sua liberdade singular (319, § 590). Recusando toda diferenciação objetiva com o “fim [de] manter-se na continuidade indivisa” (ibid.) consigo, a oposição fenomenológica da consciência é internalizada e, ao mesmo tempo, suspensa na forma da ação-recíproca da autoconsciência da liberdade absoluta consigo. Esta “divide-se, em virtude de sua própria abstração, em extremos igualmente abstratos: na universalidade simples, fria e inflexível, e na rigidez dura, discreta e na teimosia puntiforme da au-toconsciência efetiva.” (319-320, § 590) Ora, estes “extremos abstratos” da ação-recíproca aparecem na figura de indivíduos reais, que não são senão figurações fenomenológicas dos momentos opostos da ação-recíproca, da universalidade e da singularidade, numa figuração análoga à do senhor e do escravo enquanto momentos internos da autoconsciência. Eles estão entre si numa relação de estranheza e indiferença e, ao mesmo tempo, numa relação de oposição completa entre si. Por serem extremos “indivisamente e absolutamente para si”, eles não comportam qualquer mediação entre si: nenhum deles “pode enviar alguma parte [de si] para o lugar do termo-mé-dio através do qual se enlacem” (320, § 590).

Por isso, a única relação entre eles, – entre a universalidade abstra-ta da liberdade absoluta, efetiva enquanto individualidade excludente, e a consciência vazia da liberdade singular – “é a negação pura totalmente não-mediada” (ibid.), pois uma vez eliminada toda diferenciação e organização real, o único objeto que resta à liberdade universal é a liberdade singular puntiforme. Esta só pode ser apreendida “no seu puro ser-aí abstrato em ge-ral” (320, § 590), na sua existência bruta, e, correlatamente, o único ato da

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liberdade universal, que é o seu agir puramente negativo e destruidor, tem como única obra a morte. Portanto, nessa oposição completa defrontam-se, de um lado, “a fúria da destruição” (319, § 589), “a negação do singular, enquanto ente, no universal”, e de outro, a morte igualmente abstrata e sem significado, “a morte mais fria e mais rasteira” (320, § 590). Assim, é unicamente essa pura negatividade universal e não mediada, agindo como individualidade excludente, que estabelece entre esses extremos abstratos uma relação de oposição contraditória, em que um extremo, o da universa-lidade imediatamente singular, por isso abstrata, acaba se destruindo a si mesma ao aniquilar todos os outros singulares que se lhe defrontam.

A individualidade excludente e que decide, na qual a liberdade abso-luta se efetiva, é a instância do governo: “a individualidade da vontade uni-versal” (320, § 591). O seu poder executivo, que é “um querer e executar” proveniente dessa individualidade excludente, implica e contém nos seus atos “uma determinada ordenação”, um programa de ação, que, se emba-sando numa vontade particular, se opõe à vontade universal e, ao mesmo tempo, exclui os demais indivíduos que não compartilham a sua execução ou não participam dela. Por isso, o governo, na sua efetividade particu-lar e excludente, só pode “se apresentar”, em face da vontade universal, “como uma facção” (ibid.). Mais precisamente, para a vontade universal, para aquele que pretende falar ou agir em seu nome, o governo é somente a facção vitoriosa; ou melhor, a facção que é vitoriosa, por sê-lo, é governo.

Em contrapartida, o simples fato, nestas circunstâncias, de ser go-verno, já o torna uma facção, i.é, uma vontade particular, pois, enquanto tal, enquanto executora de um programa determinado, ela é desconforme à vontade universal, e, assim, “culpada” (schuldig) perante esta, culpada na sua particularidade de não ser adequada à universalidade. Nisso também já está contida, necessariamente, a sua queda, pois, para a vontade universal, o agir efetivo que executa um programa determinado é pura e simplesmente “um crime cometido contra ela” (ibid.). O simples fato de agir como governo, que, por ser governo, é facção, o torna culpado para a vontade universal ou para a outra facção que pretende ser a sua expressão.

Inteiramente diferente é a situação daquela vontade que se opõe ao governo: em face dele, “enquanto vontade universal efetiva”, – mas que é, de fato, apenas particular na sua pretensão de incorporá-la, – a vontade particular opositora “não tem nada de determinado e externo por onde se manifestasse a [sua] culpa” (320, § 590). Quer dizer, “ao governo enquan-to vontade universal efetiva, só se lhe defronta a vontade pura inefetiva, a intenção” (ibid.). Portanto, todo querer e todo agir que se contrapõe ao governo enquanto facção vitoriosa, já é, por si só, um agir suspeito; e como não há determinação externa que possa qualificar esse querer ou agir como culpado, conclui Hegel, “ser suspeito toma o lugar ou tem a significação e o efeito de ser culpado” (ibid.). Opor-se ao governo ou argüir a sua culpa por ser ele desconforme à vontade universal ou somente uma facção, significa e equivale a ser suspeito a seus olhos, a ser “inimigo do povo”, exatamente na

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medida em que o governo pretende ocupar o lugar da vontade universal.

As Lições de Filosofia da História mostram como a suspeição geral se agrava e “adquire um poder violento” pelo fato de que, durante a Con-venção, “os princípios abstratos da liberdade absoluta” passam a exigir de todos a “virtude subjetiva”, erigida por Robespierre a critério supremo do agir político nos processos instaurados pelos Comitês de Salvação Pública e de Segurança Nacional. A virtude passa a governar “contra a multidão” simplesmente a partir da “disposição de ânimo subjetiva” (Gesinnung), que é transformada em único critério de avaliação da fidelidade política: “ela só distingue aqueles que têm a mesma disposição de ânimo daqueles que não a têm”, pois “a disposição de ânimo só pode ser reconhecida e julgada pela disposição de ânimo”. Ela torna-se, assim, “a mais terrível tirania”, que “exerce o seu poder sem formas judiciais”, contra todos que “com seus ve-lhos interesses ou pelos excessos da liberdade ou por paixões são infiéis à virtude”. Tendo erigido, assim, a virtude e o terror em princípio de governo, a punição que a tirania reserva aos que lhe são infiéis e aos governados que não compartilham as ações do governo “é também igualmente simples: a morte”��. Por isso, “a reação externa [do governo] contra essa efetividade que reside no interior simples da intenção, consiste no eliminar sumário (in dem trocknen Vertilgen) desse Si sendo [reduzido a seu ser-aí, à existência nua], do qual nenhuma outra coisa se pode retirar senão apenas o seu pró-prio ser” (320, § 591)�5.

Nessa eliminação sumária de todo opositor e de todo suspeito, cuja morte na guilhotina se reduz à insignificância do “decepar de uma cabeça de couve” (320, § 592), a liberdade absoluta “torna-se [agora] objeto para si” e a sua “autoconsciência abstrata experimenta o que ela é”, a sua negatividade universal (320, § 592). Nessa “sua obra peculiar” (320, § 591) de destrui-ção, torna-se objeto para ela a contradição própria da negatividade absoluta e não mediada, que só se exerce e toma consciência de si na eliminação de uma liberdade singular reduzida à sua existência nua e à pura consciência vazia de si�6. A liberdade absoluta é, assim, uma liberdade intrinsecamente contraditória, porque ela só se efetiva pela negação da liberdade singular, singularidade que, contudo, é também a única forma da sua efetivação. “O terror da morte é a intuição dessa essência negativa da liberdade absoluta.”

44. G.W.F. HEGEL, V.Phil.Gesch., in: Werke, v. 12, pp. 532-533.45. O conceito dessa redução da liberdade singular ao seu “ser-aí abstrato”, à sua existência nua, sem predicados, e à consciência da sua pura singularidade sendo-aí, como a única dimen-são em que ela pode ser apreendida pela negatividade do universal abstrato que se efetiva ime-diatamente enquanto tal, e cuja morte não tem “alcance interno e preenchimento algum” (320, § 590), permite extrapolar este diagnóstico do terror jacobino para além de suas circunstâncias históricas, e aproximar esse conceito da categoria bio-política da “vida nua”, com que se tenta captar, hoje, o cerne das experiências concentracionárias do passado recente e da atualidade.46. (320, § 590). “Somente quando ela destrói algo é que esta vontade negativa tem o sen-timento do seu ser-aí; ela acredita, certamente, que quer um estado de coisas positivo, por exemplo, um estado de igualdade universal ou de vida religiosa universal, mas, de fato, ela não quer a efetividade positiva desse estado, pois esta última traz consigo, em seguida, alguma ordem, uma particularização tanto das instituições quanto dos indivíduos; mas é a partir do aniquilamento da particularização e da determinação objetiva que surge para esta liberdade negativa a sua autoconsciência.” G.W.F. HEGEL, Grl., § 5 A, in: Werke, v. 7, p. 50.

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(321, § 592). Mas essa liberdade, “terrível na sua conseqüência implacável, que em sua concentração entrava em cena tão fanaticamente”, tinha de “so-çobrar”�7 pela força da sua própria contradição�8.

6. A Resolução da contradição da liberdade absoluta e o duplo registro da sua suspensão

A resolução dessa contradição da liberdade absoluta, que enuncia a lógica do naufrágio da tirania revolucionária e da autodestruição do regime do Terror, retoma e condensa nos seus extremos opostos, – a universalidade e a singularidade da “autoconsciência absolutamente livre” (321, § 592), – as duas vertentes que perpassavam toda a dialética anterior do Iluminis-mo e da pura intelecção. Estas duas linhas de força se condensam nas duas formas que o “absoluto sem predicados” assumira, e que a pura intelecção ainda separava: a “essência negativa” da autoconsciência, “enquanto puro pensar”, e a “essência positiva” dessa autoconsciência, “enquanto pura ma-téria”. Elas tornam-se, agora, presentes para a “autoconsciência absoluta-mente livre” na forma da mútua “passagem absoluta” de um oposto ao outro (321, § 592).

Essa retomada dos opostos da dialética da pura intelecção esclareci-da, o puro pensar e a pura matéria, pelos extremos da autoconsciência abso-lutamente livre, é introduzida por uma contraposição entre o conceito inicial da liberdade absoluta e o resultado da experiência que ela entrementes fez de si. No seu conceito inicial, a identidade imediata da vontade realmente universal com os singulares enquanto tais era a “essência positiva” da von-tade livre singular, que, por sua vez, simultaneamente, se sabia conservada positivamente naquela. Mas o resultado da experiência que a consciência da liberdade absoluta fez de si, e que lhe “está presente” (vorhanden) na ex-periência do terror, na qual ela intui a sua essência negativa, é a “passagem absoluta” de sua “essência positiva” à sua “essência negativa”, da identidade positiva imediata entre vontade universal e singular à pura negação desta

47. G.W.F. HEGEL, V.Phil.Gesch., in: Werke, v. 12, p. 533.�8. Heinrichs pretende reconhecer na contradição da liberdade absoluta, interpretada a partir da inversão da sua “essência positiva” na sua “essência negativa” (ver seção 6.), a figura da “contradição posta”, que é a última e conclusiva “determinação da reflexão”, que conduz, na Lógica da Essência, à resolução da contradição no fundamento (Grund). Ele aproxima a metá-fora da morte sem significação na guilhotina da categoria do “zero” (Null), o ponto de nulifica-ção, no qual os momentos da oposição, o “positivo” e o “negativo”, passam e se transpõe um no outro. Essa passagem de um ao outro se resolve na sua unidade que é zero, precisamente pela pretensão de cada um ser subsistente por si (selbständig) pela inclusão total do outro em si, que acaba suprimindo sua subsistência autônoma por auto-exclusão de si. Não me parece que a contradição da liberdade absoluta preencha plenamente as condições da “contradição posta”, pois a eliminação da liberdade singular pela liberdade universal abstrata na ação-recíproca da liberdade absoluta consigo mesma – “a negação do singular enquanto ente no universal” (320, § 590) – não tem, na oposição dos seus “extremos abstratos”, esta estrutura da positivo e do negativo enquanto extremos da contradição, na qual cada um, ao pôr-se como autônomo (selb-ständig) pela inclusão total do outro em si, ao pretender ser o todo da relação sem a relação ao outro, acaba se excluindo de si e se resolvendo no fundamento. (JOHANNES HEINRICHS, Die Logik der ‘Phänomenologie des Geistes’, Bouvier, Bonn, 1974, p. 354-355; v. G.W.F. HEGEL, Wissenschaft der Logik, in: GW, v. 11, p. 280-283)

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naquela. Esta é a nova figura da ‘conciliação’ (ausgleichen) dos opostos (323, § 595), que, anteriormente, a intelecção pura ainda separava enquan-to puro pensar e pura matéria. De um lado, a negatividade do puro pensar torna-se o “absoluto sem predicados” (321, § 592) da vontade universal abstrata, cujo além é o “Être Suprême vazio” da religião civil republicana, que a mordacidade de Hegel compara à “exalação de um gás insípido” (318, § 586); de outro, a “pura matéria”, “a matéria abstrata” do materialismo francês (312-313; § 578), – que antes, na figura da luta da intelecção contra a superstição, tinha a valência da positividade da fé (315, § 581), – torna-se o “absoluto sem-predicados” da existência nua da liberdade singular, este “ponto não-preenchido do Si absolutamente livre” (320, § 590), cuja elimi-nação sumária é uma morte sem significado.

A eliminação de toda ordem e diferenciação positivas na experiência que a liberdade absoluta, no terror da morte, faz da sua pura negatividade abstrata, e a autodestruição dessa negatividade pela força da sua contradi-ção interna, acarretam, graças ao caráter auto-referencial da negatividade da liberdade absoluta, a sua inversão imediata na “pura igualdade-a-si da vontade universal”: esta pura igualdade a si da negatividade auto-referen-cial torna-se, agora, o “elemento do subsistir”, a nova base substancial, sobre a qual pode formar-se e reconstruir-se uma outra organização social e política. Sua articulação interna resulta da própria negação que atua como fator de diferenciação efetiva e de determinação nesse solo de subsistência oriundo da igualdade a si da negatividade�9. Correlatamente, os indivíduos, agora renovados pelo sentimento do “temor do seu senhor absoluto, a mor-te”, se repartem e se inserem novamente nas “massas espirituais”, i.é, nas esferas dessa diferenciação institucional e política restituída da sociedade civil, aceitando “a negação e as determinações” das tarefas particulares e as de “uma obra dividida e limitada”: “através disso eles retornam à sua efeti-vidade substancial” (ibid.).

Assim, só através da experiência que a autoconsciência, “condensa-da” na sua singularidade puntiforme, faz da negatividade da vontade uni-versal “nessa sua última abstração” (322, § 594) é que ela alcança a sua liberdade plena. Nessa experiência atua uma negação que não lhe é “algo estranho”, mas que vem de dentro50; é uma negação interna que lhe impõe um “sacrifício”, pelo qual ela não pode esperar nenhuma retribuição da von-tade universal, pois é “o puro passar ao nada vazio”, “que nele nada tem de positivo, nada que preenche” (ibid.). Nesse sacrifício sem retribuição, que o temor do senhor absoluto lhe impõe na experiência do terror, a autoconsci-ência singular passa pela sua “suprema e última formação” (ibid.), que a

49. “A liberdade absoluta, enquanto pura igualdade-a-si-mesma, tem, portanto, nela a nega-ção e por isso a diferença em geral; e, por sua vez, a desenvolve novamente como diferença efetiva. Pois a pura negatividade tem na vontade universal igual-a-si-mesma o elemento do subsistir ou a substância onde se realizam seus momentos, ela tem a matéria que ela pode converter em sua determinidade [...]” (321, § 593)50. Essa negação “não é a necessidade universal situada no além, onde o mundo ético soçobra, nem a contingência singular da posse privada ou do capricho do possuidor de que a consciência dilacerada se vê dependente” (322, § 594).

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faz, agora, “convir” (gefallen lassen) (321, § 593), novamente, em sua in-serção numa esfera determinada da organização real, para executar uma tarefa particular.

Em todo o processo de formação do espírito nas diferentes etapas do percurso do mundo da cultura e do mundo ideal da fé há um estranhamento determinado do espírito a si e uma negação ainda preenchida por algum conteúdo positivo (honra, riqueza, linguagem, o céu da fé, a utilidade da intelecção esclarecida), a lhe retribuir o sacrifício desse estranhamento51. Em contrapartida, nessa última etapa de formação do espírito, a experiência que a consciência da liberdade faz da sua essência negativa, conduz a uma inversão completa dessa pura e absoluta negatividade numa nova identi-dade positiva da vontade universal com a autoconsciência singular. Esta identidade positiva é, certamente, diferente daquela identidade imediata da vontade universal com as vontades singulares enquanto tais, que se sentiam positivamente conservadas naquela, e que caracterizava o conceito inicial da liberdade absoluta52. Portanto, assim como nessa inversão a negatividade absoluta da vontade universal, graças à igualdade consigo da sua relação a si, torna-se o “elemento do subsistir” (321; § 593) em que pode formar-se uma nova organização social e política, analogamente, a eliminação sumá-ria da autoconsciência singular, enquanto “ponto desprovido de substância”, inverte-se, agora, no resultado da experiência que a consciência da liberda-de absoluta fez de si, numa identidade positiva da vontade singular com a vontade universal, pois, agora, a autoconsciência singular tem na sua “ime-diatidade suspensa” a consciência de ser “puro saber e querer” (322-323, § 594).

Surge daí uma igualação de outra ordem entre a vontade singular e a vontade universal, que não é mais a de uma identidade imediata e empírica, e que não é, também, a identidade da vontade universal substancial e da vontade particular subjetiva numa nova eticidade, mas uma identidade que na sua positividade plena é totalmente mediada pela negatividade absoluta, e que definirá a figura da certeza moral do espírito. A vontade universal que a autoconsciência singular se sabe positivamente ser numa identidade com aquela, não o é mais numa identidade imediata, como no conceito abstrato da liberdade absoluta (“não como a essência sendo imediatamente”), tam-bém não é a vontade “como governo revolucionário”, nem “a anarquia que se esforça por estabelecer a anarquia”, nem a vontade “como centro desta facção ou da facção oposta”, mas ela é, na sua singularidade, a vontade uni-versal enquanto “puro saber e querer” (323, § 594).

51. “No próprio mundo da cultura, a consciência-de-si não chega a intuir sua negação ou alien-ação nessa forma da pura abstração”. (§ 322, § 594).52. “Mas ao mesmo tempo essa negação na sua efetividade não é algo estranho; [...] ela é a vontade universal, que nessa sua última abstração nada tem de positivo, e, que por isso, nada pode retribuir pelo sacrifício. Mas por isso mesmo, a vontade universal é imediatamente uma só coisa com a autoconsciência, ou seja, ela é o puramente positivo porque é o puramente negativo; e a morte sem sentido, a negatividade do Si não-preenchida, inverte-se, no conceito interno, na positividade absoluta.” (322, § 594).

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Aqui se anuncia o duplo registro da superação do terror e da suspen-são da experiência histórica da liberdade absoluta numa nova conciliação entre vontade universal e vontade singular53:

1. O registro fenomenológico da superação do processo revolucioná-rio numa reorganização institucional e política do mundo pós-revolucionário no quadro do Estado constitucional; 2. O registro da gênese lógico-fenome-nológica de um novo patamar do espírito, “o espírito certo de si mesmo”, cuja figuração é a consciência moral e a sua visão moral do mundo.

1. Articulando, grosso modo, o processo da Revolução Francesa em três períodos, correspondentes aos três marcos da história constitucional da Revolução, que são as constituições de 1791, 1793 e 1795, a recons-tituição fenomenológica da dialética da liberdade absoluta aborda princi-palmente a experiência jacobina, abordando a sua superação em rápidas pinceladas, nas três últimas alíneas do capítulo (321-323; §§ 593-595). À primeira constituição monárquico-liberal, que prevê uma dupla representa-ção da nação francesa pela Assembléia Nacional e pelo rei, correspondente ao período da hegemonia girondina, segue-se a segunda, que se consolida na constituição radical-democrática do período jacobino, e que concentra todo o poder na Assembléia Nacional, o qual, porém, é de fato exercido pela ditadura dos dois comitês, o da Segurança Nacional e o da Salvação Pública. Em reação ao terror jacobino surge a constituição do Diretório, reacionária no sentido etimológico do termo, que concentra a competência executiva nos cinco membros do Diretório, designados pelo Conselho dos Anciãos: esta constituição, segundo o diagnóstico de Hegel, estabelece uma divisão da soberania em dois poderes separados e conflitantes, o poder legislativo e o executivo, cujo confronto insuperável acaba por desembocar no golpe de Estado de 18 do Brumário de Napoleão Bonaparte (09.11.1799)5�.

O período circunscrito pela primeira constituição, que resulta da auto-instituição do terceiro estado em Assembléia Nacional representante do “po-der constituinte” de toda a nação, no horizonte do conceito de “vontade comum representativa” de Sieyès, não integra a análise, pois é inteiramente incompatível com a construção dialético-especulativa da liberdade absoluta. Esta construção, como foi visto, na medida em que ela se pauta pelo concei-to rousseauniano de uma vontade geral segundo o seu mau-entendimento jacobino, é incompatível com a representação política. A centralização do poder nos Comitês de Segurança Nacional e de Salvação Pública subverte o espaço para a constituição de uma vontade geral representativa e para uma efetiva participação da vontade singular enquanto co-legisladora da vontade universal do povo.

53. “A liberdade absoluta conciliou assim a oposição entre a vontade universal e a vontade singular consigo mesma.” (323, § 595).54. JACQUES GODECHOT (org.) , Les constitutions de la France depuis 1789, Garnier-Flam-marion, Paris, 1979. – G.W.F. HEGEL, Vorlesungen über Naturrecht und Staatswissenschaft, Heidelberg, 1817/18, Nachgeschrieben von P. Wannenmann, in: G.W.F. HEGEL, Vorlesungen, v. I, Meiner, Hamburg, 1983, § 133, p. 187-188.

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Assim, é a reconstrução das condições histórico-filosóficas do surgi-mento da liberdade absoluta e dos impasses da sua efetivação revolucioná-ria no terror jacobino, entendido sarcasticamente como a suprema e última figura do processo de formação do espírito, o estrato semântico principal e o cerne do capítulo “A liberdade absoluta e o terror” (FE, VI, B, III). Nele brilha a perspicácia do diagnóstico histórico e político de Hegel, o discernimento realista da dimensão histórico-universal da Revolução Francesa através da crítica acerba aos seus excessos e aos impasses da supressão da repre-sentação pela luta de facções, e o virtuosismo da reconstrução dialética do processo, que torna o entrelaçamento entre a lógica fenomenológica e a interpretação histórica tão surpreendente e instigante.

Mas, subterraneamente e a contracorrente, Hegel estiliza o mal-en-tendido jacobino do conceito rousseauniano de vontade geral, não certa-mente como um contra-modelo à representação política do constituciona-lismo liberal francês de Sieyès e Benjamin Constant, pois Hegel é também um teórico da representação e leitor de Sieyès. Essa estilização é, antes, um contraponto histórico para a sua crítica ao atomismo subjacente à represen-tação liberal, na qual a sociedade civil só age politicamente “enquanto ato-misticamente dissolvida nos singulares e enquanto se reunindo somente por um instante sem sustentação ulterior para um ato isolado e temporário”55, numa representação que, concentrada no representante autorizado, reitera retroativamente e reforça o isolamento dos representados na sua vida priva-da, e que os destitui, assim, do seu agir diretamente político. É uma crítica negativa que Hegel estende, também, às formas puramente utilitárias de organização social e política (321, § 593)56.

Mas na medida em que o caráter abstrato da vontade geral jacobina remete ao mesmo atomismo subjacente à representação liberal, exigindo que “todos singularmente devam tomar parte na deliberação e na decisão sobre os assuntos universais de Estado”57, conforme o mencionado mal-en-tendido, Hegel vai buscar, precisamente na experiência que a autoconsciên-cia da liberdade faz, no “terror da morte” (321; § 592), da sua negatividade radical, uma nova base substancial para a reorganização social e política do mundo pós-revolucionário, na qual essa autoconsciência possa reconciliar-se com a sua particularidade. Este mundo terá, então, no conceito abrangente de Estado racional, desenvolvido por Hegel mais tarde, o quadro institucio-nal em que o agir humano poderá desenvolver o seu potencial pleno, numa esfera que pretende suspender e, ao mesmo tempo, preservar a diferença entre o homem e o cidadão, entre a vida social e vida política, entre o pú-blico e o privado, graças, precisamente, à mediação da vontade singular e da vontade universal pelo “desenvolvimento autônomo da particularidade”58 devidamente “erguida à universalidade do Estado”59.

55. G.W.F. HEGEL, Grl., § 308 , in; Werke, v. 7., p. �76.56. G.W.F.HEGEL, Grl., § 187, in: Werke, v. 7, p. 3��.57. G.W.F. HEGEL, Grl., § 308 A, in: Werke, v. 7, p. �77.58. G.W.F. HEGEL Grl., § 185 A, in: Werke, v. 7, p. 3�1.59. G.W.F. HEGEL, Grl., § 258, in: Werke, v. 7, p. 399.

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A liberdade absoluta entre a crítica à representação e o terror

A descrição da reorganização institucional e política que ocorre, após a queda dos jacobinos, no Diretório e sob a égide de Napoleão, tal como é formulada inicialmente, poderia sugerir a hipótese de um retorno cíclico do espírito a figurações anteriores da eticidade antiga ou do mundo da cultu-ra: “Desse tumulto o espírito seria arremessado de volta ao seu ponto de partida, ao mundo ético e ao mundo real da cultura, que se teria apenas refrescado e rejuvenescido pelo temor do senhor, que penetrou de novo nas almas.” (321, § 594). O próprio Hegel aventa a hipótese de que o espírito percorreria de novo esse “ciclo da necessidade” cada vez que, ao termo de um processo de formação, se alcançasse uma “perfeita interpenetração da autoconsciência e da substância”, ou, como no caso específico da liberdade absoluta, uma interpenetração entre a autoconsciência singular e a “força negativa de sua essência universal” (ibid.).

No entanto, a enunciação conseqüente do texto na forma do condi-cional mostra que se trata de uma hipótese descartada; além disso, Hegel recusa essa necessidade cíclica a partir do caráter historicamente único e teoricamente específico da experiência que a liberdade absoluta faz da sua “essência negativa” (321; § 592). Primeiro, porque é precisamente a igual-dade a si dessa negatividade auto-referencial que restabelece o “elemento da subsistência” (321, § 593) que serve de base para uma nova diferencia-ção institucional e política do mundo, no caso, do mundo pós-revolucionário construído sobre a universalização dos direitos de liberdade. Esse mundo, que tem por base a experiência da negatividade auto-referencial da liberda-de, não pode ser o mundo ético antigo, anterior ao processo da formação do espírito. Segundo, porque é a sua experiência do temor do senhor absoluto que torna aceitável para a autoconsciência singular a sua inserção numa esfera determinada da vida social e política rearticulada, bem como a media-ção do seu agir político por uma tarefa particular, a partir de uma cidadania fundada nos direitos de liberdade e igualdade políticos que a Revolução con-quistou.

2. O segundo registro da superação da experiência revolucionária e da suspensão da liberdade absoluta é o da gênese lógico-fenomenológica da “nova figura do espírito moral” (323, § 595), que é apresentada a partir de uma reconstrução crítica da filosofia moral de Kant e Fichte. Ela equivale, na progressão fenomenológica, à autoconsciência que o espírito agora alcan-çou, de que a substância não é mais somente a vontade universal, tal como era para a autoconsciência da liberdade absoluta, mas o puro saber e querer universais enquanto idênticos com a autoconsciência singular: “a vontade universal é o seu [da consciência] puro saber e querer, e a consciência é a vontade universal, como este saber e querer” (322-323; § 594). A substân-cia torna-se, assim, “propriedade” do espírito (323, § 596) no sentido de que a autoconsciência é o puro saber e querer da essência, enquanto esta é a vontade universal cônscia de si como puro saber60.

60. “Ela [a consciência] é a ação-recíproca do puro saber consigo mesmo; o puro saber como essência é a vontade universal, mas esta essência é, simplesmente, tão só o puro saber. Assim, a autoconsciência é o puro saber da essência como do puro saber.” (323; § 594).

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No conceito inicial da liberdade absoluta o mundo era para a consci-ência que ela tinha de si pura e simplesmente a vontade realmente univer-sal. Agora, tendo atravessado a experiência da sua negatividade absoluta no terror da morte, a autoconsciência singular torna-se intrinsecamente univer-sal na sua singularidade puntiforme. Esta é, “enquanto ponto atômico”, puro saber e querer universal, de sorte que todo conteúdo do mundo da cultura reflui nesse puro saber e querer, agora idênticos com a autoconsciência sin-gular, de sorte que estes, agora, são para ela a substância. (323-324, §§ 594, 597) Uma substância que é, “igualmente, numa unidade inseparada, tanto imediata quanto absolutamente mediada” (324, § 597), imediata por-que a pura certeza de si da consciência moral é “sua efetividade e toda a efetividade”, e absolutamente mediada, porque o ser-aí imediato da singu-laridade, a “pura imediatidade” da sua existência nua, foi suspensa e “puri-ficada pela negatividade absoluta” (ibid.).

A ação-recíproca entre os extremos abstratos e não mediados da autoconsciência da liberdade absoluta, que representavam o “ápice da opo-sição” entre vontade universal e vontade singular, converte-se, agora, numa ação-recíproca da autoconsciência singular entre a sua singularidade sus-pensa e o seu puro saber e querer universal, que é toda a efetividade. O “espírito certo de si mesmo” suspende o seu estranhamento nesta “outra terra” ou neste “outro país” da interioridade moral para a/o qual a liberda-de absoluta imigrou, recolhendo adentro de sua certeza toda a riqueza do processo de sua formação e dos conteúdos que o “sacrifício” dos seus estra-nhamentos lhe impuseram. Mas na medida em que a riqueza de toda essa efetividade está “encerrada” (eingeschlossen) nesse puro saber e querer da consciência moral, ela é, ainda, uma “inefetividade” (323, § 595). Mesmo que essa “inefetividade tenha para ela “o valor de verdadeiro”, a inverdade dessa nova terra ou novo país “do espírito autoconsciente” se imporá a ele, à medida que tomar consciência de que ele aí “se reconforta no pensamento desse verdadeiro enquanto ele é pensamento, e pensamento permanece” (ibid.).

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A crítica de Hegel ao conceito de lei em Kant

Pedro Aparecido Novelli1

RESUMO: Hegel foi um leitor atento da filosofia kantiana, em particular, pela sua pertinência histórica e densidade conceitual. A centralidade da figura do sujeito reúne Kant e Hegel no que diz respeito à determinação da realidade, mas eles se separam na medida em que o sujeito kantiano reconhece o objeto e, diferentemente de Hegel, não se reconhece aí. Tal separação é explorada por Hegel, em sua análise do conceito de liberdade em Kant. Para Hegel, a liber-dade em Kant não vai além de uma abstração, enquanto não se deixa determinar. O mesmo raciocínio se estende à lei, pois Hegel entende que Kant opera uma distinção entre a forma e o conteúdo da lei, que não são entendidos como complementares. Em Hegel, a lei é mais do que uma referência formal. Sem a lei, enquanto determinação histórica, a liberdade permanece uma intenção sem jamais atingir o status necessário de realidade entre os homens.

Palavras-chave: Legalidade, Efetividade, Comprometimento

ABSTRACT: Hegel builds up his philosophical system through an accurate reading of the his-tory of philosophy. In this way it can be said that Hegel was a special Kant’s reader. Kant struck Hegel because of his historical importance and his conceptual depth. Kant and Hegel are brought together insofar they consider the subject and his centrality in relation to the posing of reality. However they also get apart here from one another for in Kant the subject reckons the object but it does not reckon itself in the object like in Hegel. Such a separation is explored by Hegel in his analyses of Kant’s concept of freedom. According to Hegel freedom in Kant remains an abstraction while no determination is achieved. The same thinking is applied to the consid-eration of law. There is in Kant, so Hegel understands a distinction between the form and the content of law. Form and content are not treated in Kant as complementary. For Hegel law is not only a formal reference but also a necessary determination. Without the law freedom does not go beyond the level of an intention. Freedom is only real in the relationships that men establish among themselves.

Keywords: Legality, Effectiveness, Commitment

Introdução

Hegel sempre incentivou seus alunos a lerem Kant, pois Hegel consid-erava a filosofia kantiana como aquela que havia estabelecido as referências para a adequada e possível compreensão da realidade. A tão mencionada revolução copernicana operada por Kant significa um marco determinante para a ciência e a história. O mérito kantiano, segundo Hegel, é o de estabel-ecer a centralidade do sujeito no processo de conhecimento e de tratamento do real. O idealismo de caráter absoluto começa a ganhar consistência, e seus postulados apresentam desafios perturbadores e de complicada re-jeição, se esta for ensejada. De fato, aponta Hegel, o sujeito é o ponto de partida e também o ponto de chegada. Toda e qualquer investigação tem início no sujeito, pois é ele que se indaga sobre o objeto; é ele que põe as questões, já que é ele que considera o objeto. Na ausência do sujeito, o que permanece não pode ser determinado, posto que não há quem o faça. Além disso, a conclusão pertence ao sujeito. As respostas são as respostas do sujeito. O sujeito é a voz do objeto, sua expressão e, poder-se-ia até dizer, sua existência. No entanto, o sujeito não se restringe em ser o começo e o

1. Professor Assistente Doutor do Departamento de Educação do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Botucatu - SP. Texto submetido em no-vembro de 2008 e aprovado para publicação em janeiro de 2009.

Revista Eletrônica Estudos HegelianosAno 5, nº9, Dezembro-2008: 101-116

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A crítica de Hegel ao conceito de lei em Kant

fim. Ele é, necessariamente, o meio entre o começo e o fim. É pelo sujeito e pelo seu proceder que o objeto é conhecido, é atingido. O objeto não avança mais do que seu aparecer ou sua manifestação. Mesmo assim, o aparecer do objeto é um aparecer para o sujeito. Se o objeto aparece para si mesmo, tal aspecto não pode ser comprovado pelo sujeito de forma absoluta. O objeto é sempre o que está fora ou que permanece além do sujeito. Daí, o aparecer do objeto é um aparecer para, um mostrar-se a, que no caso, como um imperativo, sempre é um mostrar-se para o sujeito, pois outra possibilidade não há. Então, o sujeito jamais chega ao objeto ou jamais sabe absoluta-mente sobre o objeto?

Para Kant a resposta é obrigatoriamente negativa. Essa constatação torna-se o motor da ciência, que se esforçará o tempo todo para capturar a totalidade do objeto de forma absoluta. Contudo, a busca da ciência não será cega e desenfreada, pois Kant deixa uma lição importante: o objeto permanece sempre distinto do sujeito. Sempre inacessível, sempre fugidio. A captura do objeto não precisa tornar-se uma obsessão, se se entender que o conhecimento que se pode ter do objeto será sempre e forçosamente o maior possível. Tal conhecimento é também conhecimento, e é o que o sujeito pode obter. O esforço de redução do objeto ao sujeito permite que o conhecimento do objeto seja tanto quanto o sujeito conseguir aproximar-se do objeto. A dicotomia sujeito-objeto fica assim cimentada. Não há rec-onciliação viável entre sujeito e objeto. No máximo pode-se pretender um convívio pacificado e convencionado. É precisamente aqui que Hegel se opõe a Kant. Para Hegel, o sujeito não pode ser delimitado pelo objeto, por ser ele quem efetiva o objeto. Hegel não nega a exterioridade do objeto nem as suas especificidades, mas não aceita que o sujeito não possa ter em si o objeto. Nesse sentido, Hegel indica que o sujeito não se põe por si só, mas através da relação com o seu outro, isto é, o objeto. Dessa forma, não so-mente o sujeito atribui ser ao objeto. Se, de fato, é a relação que funda su-jeito e objeto, então um sem o outro não pode se sustentar. Por conseguinte, sujeito e objeto podem se reconhecer um no outro.

Esse reconhecimento de si no outro é o que caracteriza a definição do em si no outro de si. A interioridade não se perde na exterioridade sem que possa aí também se encontrar. Esse aspecto está na raiz da crítica hege-liana ao conceito de lei em Kant. Para Kant, segundo Hegel, a lei, mesmo enquanto expressão da racionalidade, não pode ser tomada para além de sua forma como defesa da liberdade. O conteúdo da lei é acidental e con-tingente, mas seu caráter de legalidade, sua formalidade, possui o alcance da universalidade. O presente texto busca considerar qual a crítica de Hegel à concepção kantiana de lei, revelando também a compreensão hegeliana. Para tanto, será oportuno apresentar o conceito de liberdade em Hegel, pois, como Kant, a liberdade é a sustentação e possibilidade da lei. Contudo, a diferença entre ambos, com respeito à efetivação da liberdade, tem impli-cações significativas para a conceituação da lei. Kant é aqui apresentado a partir da perspectiva hegeliana, o que indica também a apresentação da leitura que o professor de Jena fez do professor de Könnigsberg. De certa forma, está em jogo nesse texto a compreensão de Hegel em relação a Kant

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e não Kant, propriamente dito.

A crítica hegeliana ao dualismo sujeito-objeto

A distinção entre os conceitos de lei em Hegel e em Kant tem suas raízes nos textos de juventude de Hegel. Nesses textos, Hegel já se manifes-ta contrariamente sobre a separação entre sujeito e objeto, Deus e homem, etc. Como exemplo, pode-se citar o texto hegeliano “O espírito do cristian-ismo”, no qual a superação do distanciamento entre homem e Deus deveria ser compreendida como historicamente realizada. A afirmação central do cristianismo é a de que Deus tornou-se homem e, este, por sua vez, tornou-se Deus. Desse modo, a maneira como o homem vê Deus é a mesma com a qual Deus vê o homem. No texto da maturidade, Hegel confirma suas idéias da juventude.

O olho com o qual Deus me vê, é o olho com o qual eu o vejo, meu olho e o olho dele é um. Pela justiça eu tendo para Deus e ele para mim. Se Deus não fosse eu não seria e, se eu não fosse Deus não seria2

Hegel entende que a aproximação entre o homem e Deus significa que o homem se reconhece em Deus, ou seja, a realidade do divino não é tomada como estranha ou desconhecida pelo homem. Pelo contrário, este se reconhece numa outra realidade que, assim, é posta dentro do domínio de sua atividade.

O dualismo Deus-homem é superado pelo monismo deus humaniza-do ou homem divinizado. O acesso a Deus em Kant, no que diz respeito à demonstração e comprovação da existência, não se enquadra pelo campo da razão na experiência, mas sim pela fé. Deus não se encaixa nas exigências que possibilitam o conhecimento e, portanto, não pode ser objeto de consi-deração bem sucedida da razão.

Certamente poderia ser dito que Kant se esforçou para provar que a razão trabalha em vão tanto em numa direção (a empírica) como em outra (a transcendental), e que ela inutilmente abre as suas asas para mediante a simples força da especulação ultrapassar o mundo dos sentidos3.

Para Kant Deus não pode, por um lado, ser encontrado na experiência; ele não pode ser encontrado nem na experiência exterior, como Lalande descobriu quando varreu todos os céus e não encontrou Deus algum, nem pode ele ser encontrado na experiência interior; embora não haja dúvida de que os místicos e entusiastas possam experimentar muitas coisas em si mesmos, e dentre elas Deus, isto é, infinito. Por outro lado Kant argu-menta para provar a existência de Deus, que é para ele uma hipótese necessária para a explicação das coisas, um postulado da razão prática�.

2. G.W.F. HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Religion. Red. Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, p. 209.3. I. KANT, Crítica da razão pura. Trad. De Valério Rohden e Udo Baldur Mossburger. São Paulo: Nova Cultural, 1987-88, p. 1�-17.4. G.W.F. HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie. Red. Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996, p. 330.

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A crítica de Hegel ao conceito de lei em Kant

Em seus Escritos de Berna, Hegel indica que Kant está mais preocu-pado com uma religião marcada pela doutrina5. Para Hegel, o estímulo que o homem necessita para acreditar deve encontrar respaldo no calor do que é vivido. O que é feito, praticado, é o que mais impressiona e atrai. Não é à toa que sua “Vida de Jesus” caracteriza-se pela atenção aos feitos de Jesus. É aí que a doutrina aparece ou ainda melhor, é aí que a doutrina é reconhecida. Doutrina e vida mantém suas especificidades e, ao mesmo tempo, confir-mam-se uma na outra.

O desconforto hegeliano diante do dualismo kantiano estende-se à relação sujeito-objeto que Kant também entende pela separação. Para Kant, conforme Hegel, o sujeito reconhece o objeto, mas não se reconhece no ob-jeto, pois este é exterior ao sujeito, que somente pode alcançá-lo enquanto aparência Teoricamente a filosofia kantiana é o iluminismo ou Aufklärung reduzido ao método; afirma que nada verdadeiro pode ser conhecido, mas somente o fenômeno; conduz o conhecimento para consciência e autocons-ciência, mas desse ponto de vista mantém o conhecimento como subjetivo e finito6.

O que aparece não é o objeto em si, mas sempre o que ele é para o sujeito. A aparência não tem status de essência e, por conseguinte, não pode ser tomada como o próprio objeto. Segundo Hegel, o máximo que o sujeito pode pretender em relação ao objeto nesse contexto, é o domínio sobre suas próprias concepções. O objeto permanece como um constante desconhecido para o sujeito. No entanto, Hegel aponta o mérito de Kant sobre a relação sujeito-objeto, segundo o qual é sempre o sujeito que põe a realidade e dá sustento a ela. De fato, enfatiza Hegel que não poderia ser diferente disso, posto que sem o reconhecimento operado pelo sujeito, o objeto não se efetiva. Por outro lado, como poderia o objeto obter tamanha consistência que lhe permitisse não ser totalmente apreendido pelo sujeito? Poderia algo escapar à determinação do sujeito? A aparência não é também senão uma afirmação feita pelo sujeito. Se a aparência é o máximo que o su-jeito pode saber do objeto, então é necessário assumir que se trata de uma afirmação do sujeito para com o objeto. Além disso, o que aparece também é, pois a aparência é e o objeto está no que aparece. “O aparecer é a deter-minação por meio da qual a essência não é ser, mas essência e o aparecer evolvido é o fenômeno. A essência não está, pois, por detrás ou para além do fenômeno, mas justamente porque a essência é o que existe, a existência é fenômeno”7.

5. “Encontramos em tantos homens, que a idéia da moralidade se desenvolve a partir de seus corações e daí, como que num espelho contemplando a própria beleza e dela maravilhados e, cuja alma estava repleta de encantamento pela virtude e pela dimensão moral, como Spinoza, Shaftesbury, Rousseau, Kant, e quanto mais elevado o encantamento pela moral e pela moral da doutrina cristã, tanto mais heterogêneo e mais descartável.” G.W.F. HEGEL, Fragmente über Volksreligion und Christentum. In: Frühen Schriften. Red. Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999, p. 7�.6. G.W.F. HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie. Red. Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996, p. 333.7. G.W.F. HEGEL, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome. Trad. De Artur Morão. Lis-boa: Edições 70, 1988, § 131.

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Para Kant, a verdade não deve ser procurada fora, mas para Hegel a verdade não se restringe à experiência interior do sujeito, que não se define enquanto tal, se não se reconhecer no objeto. Ainda mais, o sujeito precisa reconhecer-se no objeto para que seja tudo em tudo. A totalidade para He-gel não é a totalidade isenta de contradições, mas que precisamente pelas contradições, atinge a identidade. Se se pode assim dizer, a identidade é contraditória em Hegel. Não sem propósito, afirma Hegel, na “Fenomenolo-gia do Espírito” que “O verdadeiro é o todo”8.

No parágrafo 26 dos “Princípios da Filosofia do Direito”, Hegel trata da adequada compreensão da relação entre sujeito e objeto. Segundo Hegel, normalmente colocam-se essas instâncias numa relação de distanciamento. Isso é um equívoco, segundo Hegel, pois se trata de aspectos concretos e não da abstração. O sujeito tem por função entender e reunir, fazendo com que assim todo e qualquer dualismo seja superado. “(...) subjetividade, en-quanto oposta à objetividade, é limitação, ora, por esta oposição, a vontade, em vez de permanecer em si mesma, vê-se comprometida no objeto e a sua limitação consiste também em não ser subjetiva, etc.”9 Tal empreitada não tem fim, pois a realidade existe sob a égide do devir. O devir da realidade é igualmente o devir do sujeito que também se encontra determinado pela alteridade. Por isso, o objeto não pode ser desconsiderado, já que por ele o sujeito é definido. Não se trata de uma consideração aleatória do sujeito sobre o objeto, mas do reconhecimento que o sujeito tem de si num outro de si mesmo que é o objeto. Através desse procedimento, o sujeito reúne o que poderia estar disperso. “O externo é, pois, em primeiro lugar, o mesmo conteúdo que o interno. O que é interno existe também externamente, e de modo inverso; o fenômeno não mostra nada que não esteja na essência, e na essência nada existe que não seja manifestado”10. Talvez se possa dizer aqui que esse seria o princípio universal, segundo Hegel, que Kant deveria ter buscado.

O conceito de liberdade em Kant e Hegel

A universalização, enquanto processo que contempla as particula-ridades, reunindo-as e não as suprimindo, é o mesmo processo que Hegel identifica no desenvolvimento do conceito de liberdade na história. O concei-to é cada uma das formas historicamente efetivadas através da organização e distribuição da vida.

O conceito é o que é livre, é o poder substancial que é para si, e é totalida-de, porque cada um dos momentos é o todo e é posto com ele como uni-dade inseparável; (...). O processo do conceito já não é o passar para ou o aparecer no outro, mas o envolver, pois o diferente põe-se de imediato

8. G.W.F. HEGEL, Fenomenologia do Espírito. Trad. de Paulo Meneses e Karl-Heinz Efken. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 31.9. G.W.F. HEGEL, Princípios da Filosofia do Direito. Trad. de Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 2000, § 26.10. G.W.F. HEGEL, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome. Trad. de Artur Morão. Lis-boa: Edições 70, 1988, § 135.

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A crítica de Hegel ao conceito de lei em Kant

ao mesmo tempo como idêntico entre si e com o todo, e a determinidade é posta como um livre ser do conceito total11

Nas “Lições sobre a Filosofia da História Universal”, Hegel descreve as diferentes compreensões de liberdade no conjunto das fases da história uni-versal. No Oriente antigo, somente “um” é considerado livre. Com os gregos, a liberdade passa ao domínio dos cidadãos. Os romanos ampliaram o alcance da liberdade para todos os que pertenciam ao império, mas é unicamente pelo cristianismo que a liberdade começa a ser considerada atributo de todo e qualquer homem, indiscriminadamente12. A insistência nessa perspectiva desdobrou-se no estabelecimento de novas relações entre os homens. No entanto, com essa visão se punha uma missão não pouco difícil. Como não basta afirmar a liberdade para todos os homens, pois se pode cair numa abstração, faz-se necessário determinar como a liberdade pode, de fato, efetivar-se. Para tanto, é necessário discernir e determinar como a liber-dade deve ser exercida. Nesse ponto, as divergências entre Kant e Hegel se acirram. Segundo Kant, a liberdade não é um direito, mas a condição para todo direito e, esforçar-se por preservar a liberdade implica em viabilizar os direitos mesmos. A defesa da liberdade somente chega a bom termo se é feita desinteressadamente o que significa que se deve insistir mais na forma e não no conteúdo. A forma ou o princípio deve ser preservado a todo custo, independentemente das circunstâncias e dos condicionamentos. Com isso, a razão, pela observância do princípio, seria a única instância confiável, posto que isenta de interferências particularizadas.

Ora, Hegel questiona Kant precisamente nesse ponto, pois não basta preservar ou seguir um princípio se não se sabe como proceder. O mundo, segundo o princípio, não existe. O que é real é o mundo que se tem e que propõe as direções possíveis através da eticidade já estabelecida. Enquanto Kant deseja construir uma ética, Hegel indica que esta já está em andamen-to ou estabelecida. Se para Kant a liberdade é um fato da razão que permite a vontade agir livremente, para Hegel a liberdade é a razão de fato, isto é, um pôr-se da vontade que se sabe e se quer livre. Se a determinação da vontade da liberdade, segundo Kant, a condiciona, Hegel insiste que sem a

11. G.W.F. HEGEL, op. cit., § 160-161.12. “(...) a história universal é a exposição do espírito, de como o espírito trabalha para chegar a saber o que é em si. Os orientais não sabem que o espírito, ou o homem como tal, é livre em si. E como não o sabem, não o são. Somente sabem que há um que é livre. Porém precisa-mente por isso, essa liberdade é somente capricho, barbárie, e abrigo da paixão, ou também doçura e mansidão, como acidente casual ou capricho da natureza. Este um é, por tanto, um déspota, não um homem livre, um humano. A consciência da liberdade somente surgiu entre os gregos; e por isso os gregos eram livres. Como os gregos também os romanos sabiam que alguns eram livres, mas não o homem como tal. Platão e Aristóteles não souberam isso. Por isso, não somente os gregos tiveram escravos, mas também vincularam sua liberdade e sua vida à escravidão e, sua liberdade foi, em parte, um produto unicamente acidental, imperfeito, efêmero e limitado às custas de uma dura servidão do humano. Somente as nações germâni-cas chegaram, no cristianismo, à consciência de que o homem é livre como homem, de que a liberdade do espírito constitui sua natureza mais própria.” G.W.F. HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte. Red. Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main: Suhkamp, 1970, p. 32. (Tradução do autor).

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determinação, a liberdade permanece na abstração e pode tornar-se joguete do livre arbítrio. Não se entenda aqui que Kant seja favorável a todo pro-cedimento, pois ele não o é. O que Kant rejeita é a determinação histórica e localizada da liberdade. Como princípio, a liberdade é ponto de partida e não de adequação. É justamente por isso que, para Kant, a legitimação da lei vem de sua forma que é um a priori. A liberdade somente pode ser de-limitada como medida para sua própria preservação. Caso contrário, por que alguém colocaria obstáculos ao seu agir? Para Kant não é a lei sustentada por qualquer conteúdo empírico, que sempre pode ser acidental. De fato, são as circunstâncias que fazem a diferença. Para Kant, segundo Hegel, o único conteúdo aceitável para a lei é a própria razão desvencilhada de todo e qualquer condicionamento. Hegel, por sua vez, situa a liberdade nos parâ-metros da razão, o que significa dizer que a liberdade somente se torna real a partir do seu reconhecimento.

A definição kantiana geralmente admitida ( Kant, Doutrina do Direito) em que o elemento essencial é a 1limitação da minha liberdade ( ou do meu livre-arbítrio) para que ela possa estar de acordo com o livre-arbítrio de cada um segundo uma lei geral’, apenas constitui uma determinação nega-tiva ( a de limitação). Por outro lado, o positivo que há nela, a lei da razão universal ou como tal considerada, o acordo da vontade particular de cada um com a de cada outro, leva à bem conhecida identidade formal e ao princípio da contradição. A citada definição contém a idéia muito divulgada desde Rousseau de que a base primitiva e substancial deve estar não na vontade como existente e racional em si e para si, não no espírito como espírito verdadeiro,ms na vontade do indivíduo no livre-arbítrio que lhe é próprio. Uma vez aceito tal princípio, o racional só pode aparecer para essa liberdade como uma limitação, não. Portanto,como razão imanente mas como um universal exterior, formal. Não precisa o pensamento filosófico recorrer a qualquer consideração especulativa para repelir este ponto de vista desde que ele produziu, nas cabeças e na realidade, acontecimentos cujo horror só tem igual na vulgaridade dos pensamentos que os cau-saram13

Para Hegel, a consciência livre é a que se reconhece em outra con-sciência. Não somente a consciência é autoconsciência, como também é consciência de outras consciências pelas quais ela se torna autoconsciência. Mais do que reconhecer o outro, trata-se de se reconhecer nesse outro, ou seja, ter o próprio eu num outro eu, que, se inicialmente, aparece como algo totalmente estranho, finalmente se revelará como o próprio eu. Se o eu é a razão pela qual a realidade se constitui, de igual modo a razão é o eu posto no centro do real. A razão é confrontada pela sua possibilidade efetiva na história que, por sua vez, parece se formar independentemente daquela. A oposição é resolvida por Hegel, na insistência da razão da história e na história da razão. A razão não se nega na história nem a história é preterida pela razão.

Assim, a liberdade é relação necessária entre o mundo interior e o mundo exterior, ou entre os diversos e inúmeros ‘eus’. Trata-se de uma

13. G.W.F. HEGEL, Princípios da Filosofia do Direito. Trad. de Orlando Vitorino. São Paulo: Mar-tins Fontes, 2000, § 29.

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relação querida, desejada pelos sujeitos, pois estes se reconhecem na rela-ção, uns nos outros, e tal reconhecimento se confirma na afirmação dos sujeitos enquanto tais, uns pelos outros. O reconhecimento de si no outro é já a superação da separação entre o interior e o exterior. Essa é a postura hegeliana, mas não a kantiana, pois em Hegel o conceito se reconhece na realidade exterior apesar de sua alienação, e em Kant o conceito reconhece a realidade exterior justamente para se precaver e evitar, aí, sua perda. O conceito em Kant permanece em si, o que equivale a dizer que o pensar é idêntico ao pensar. O pensar não se reconhece em seu contrário, isto é, no ser. Por isso, Kant não tem sucesso em alcançar a totalidade, já que o pensar retorna a si pela assunção do seu contrário como aparência e, a aparência é tida não como realidade.

A filosofia (...) não considera a determinação inessencial, mas a determi-nação enquanto essencial. Seu elemento e seu conteúdo não é o abstrato e o inefetivo, mas sim o efetivo, que se põe a si mesmo e é em si vivente: o ser-aí em seu conceito. É o processo que produz e percorre os seus momentos; e o movimento total constitui o positivo e sua verdade. Movi-mento esse que também encerra em si o negativo, que mereceria o nome de falso se fosse possível tratar o falso, como algo de que se tivesse de abstrair. Ao contrário, o que deve ser tratado como essencial é o próprio evanescente; não deve ser tomado na determinação de algo rígido, cor-tado do verdadeiro, deixado fora dele não se sabe onde; nem tampouco o verdadeiro como um positivo morto jazendo do outro lado1�.

Aqui se desenvolve o perigo da arbitrariedade no entender de Hegel, pois o não reconhecimento do agir na realidade restringe a liberdade à for-malidade. O desinteresse pelo conteúdo que contempla um princípio enclau-sura este na interioridade de si. Segundo Hegel, não é aí que os homens habitam, pois a interioridade somente pode ser realizada em sua manifesta-ção, isto é, na exterioridade. Essa não pode ser a perspectiva kantiana para quem as categorias, pelas quais a realidade é entendida, não se encon-tram em contradição umas com as outras. Já, para Hegel, as categorias se constituem, necessariamente, por estarem relacionadas umas às outras pela contradição o que permite afirmar que uma categoria funda a seguinte que, por sua vez, confirma a precedente nela mesma e numa terceira. Isso caracteriza a compreensão hegeliana de que a realidade sustenta-se sobre seu constante vir-a-ser. Por conseguinte, a liberdade não pode permanecer encastelada na formalidade, sob o preço de não se efetivar, posto que os homens são movidos por interesses e pelo envolvimento com o que fazem. É precisamente esse aspecto que não interessa Kant, muito embora ele não o desconheça. No prefácio da “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, ele afirma sua intenção e perspectiva.

A presente Fundamentação nada mais é, porém, do que a busca e fixa-ção do princípio supremo da moralidade, o que constitui só por si no seu propósito uma tarefa completa e bem distinta de qualquer outra investi-gação moral15.

14. G.W.F. HEGEL, Fenomenologia do Espírito. Trad. de Paulo Meneses e Karl-Heinz Efken. Petrópolis: Vozes, 1992, p. �6.15. I. KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1986, BA XIV.

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A “Fundamentação” fixa o princípio da moralidade que será demon-strado possível na “Crítica da Razão Prática”. Atos e conseqüências do princípio moral não são levados em consideração por Kant, pois qualquer ligação com uma manifestação empírica poderia desembocar no relativismo do princípio que se pretende universal. A variedade de conteúdos deve ser posta e orientada por um critério. A razão deve se constituir no critério da vontade que deve querer não segundo determinações empíricas. O conteúdo e motor da vontade deve ser a razão. Não se podem fazer “representações do agradável, ou do desagradável, enquanto matéria da faculdade de dese-jar, que é sempre uma condição empírica dos princípios; deve poder deter-minar a vontade pela simples forma da regra prática”16.

Hegel reconhece que a proposta kantiana se dirige ao mundo sen-sível, mas critica o fato de que Kant não retira a sustentação do empírico e sim do racional. Basta ao princípio o caráter formal para a sua realização e sua formalidade está na universalidade que somente é atingida se não houver condicionamento. Kant não discute se o mundo seria melhor se as pessoas observassem o princípio racional nem se o mundo seria pior. O que ele testifica é que o que é universalizável é melhor do que o que é particu-larizado17.

Kant afirma, na “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, que seu empenho não é outro que não seja a formalização do que já sabe o vulgo na sua prática cotidiana. “(...) percorrer o caminho analiticamente do con-hecimento vulgar para a determinação do princípio supremo desse conhe-cimento”18. O que o indivíduo atualiza no seu dia-a-dia já está pressuposto na razão. Portanto, não se trata de algo posto pelo indivíduo ou que ele o construa, mas que tão somente já lhe é uma predisposição. Mas, isso seria insuficiente se não houvesse a justificação de sua validade. É precisamente isso que Kant entende haver realizado na “Crítica da Razão Pura”.

Mas que a razão pura, sem mistura de qualquer princípio empírico de de-terminação, seja, também prática por si mesma apenas, eis o que era pre-ciso poder demonstrar-se, a partir do uso prático mais comum da razão, ao confirmar-se que o princípio prático supremo é um princípio que toda a razão humana natural reconhece como inteiramente a priori, indepen-dentemente de todos os dados sensíveis, e como lei suprema de sua von-tade19.

Para Hegel, a ausência da determinação de um conteúdo pode justi-ficar um ato ilícito ou práticas desabonáveis. A liberdade, para Hegel, deve ser confirmada e garantida através do que é feito. Em suas “Lições sobre a Filosofia da História Universal”, Hegel adverte que o universal, ao se con-

16. I. KANT, Kritik der praktischen Vernunft. Herausg. Von W. Weischedel. Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1977, A�5, p. 132.17. “Tenho em minhas mãos um depósito cujo proprietário morreu e não há nenhum docu-mento que se refira ao depósito.” (I. KANT, Kritik der praktischen Vernunft. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Herausg. von Wilhelm Weischedel. Frankfurt am Main: Suhkamp, 1977, A 49)18.I. KANT,.op. cit., BA 16.19. I. KANT, op. cit., A 163.

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cretizar, se individualiza. O que se concretiza adquire um conteúdo deter-minado expresso na vida de um povo, de uma comunidade. A formalidade do universal não é suficiente para Hegel, pois se restringe à abstração. O que não se determina não se realiza. Com sua Filosofia do Direito, Hegel trata as determinações necessárias para que e pelas quais o universal se realiza. A história da humanidade é a gradativa tomada de consciência de sua liberdade e essa tomada de consciência é necessariamente sua efetiva-ção, por exemplo, institucionalmente. Isso significa que o mundo externo é obrigatoriamente conhecido. Sem que a liberdade se determine, ela não pode se realizar. “Aquele que quer algo grande, disse, Goethe, deve saber limitar-se.”20

Assim, a atenção recai sobre o que se pratica e o que é realizado. O que fazer (Hegel) e como fazer (Kant) passa a merecer maiores cuidados, visto que importa a efetividade do que é formalizado. Quando assim se procede, rompe-se com o isolamento do eu em si mesmo, e se estabelece o empenho para determinar os ditames das relações entre os homens. É porque Kant não age nessa linha que Hegel considera a concepção kantiana de liberdade meramente teórica.

Se considerarmos que o homem tenha uma vontade arbitrária, então ele pode fazer isso ou aquilo. No entanto, se tivermos em mente que o con-teúdo de sua vontade é um em particular, ele é determinado. Então em toda e qualquer situação ele não é mais livre21.

O dever ser, enquanto fato da razão, não permite que a liberdade se ponha pela vontade, mas que se antecipe à vontade. Esta age segundo uma predisposição que lhe é inerente e que ela não contribui para constituir. Se-gundo Hegel, a constituição da liberdade é um empreendimento que é real na medida em que se materializa historicamente. Este foi um dos resultados da revolução francesa que Kant avalia, para Hegel, de forma conservadora pelas distorções provocadas pelo desenrolar da ação revolucionária. Hegel avalia o mesmo fato, diferentemente, indicando muito mais o esforço em-preendido pelo homem para se determinar como livre. A posição hegeliana diante dos acontecimentos gerados pela revolução francesa vai do encan-tamento inicial quando ele ainda era estudante (Stfitler) em Tübingen, ao descontentamento e formulação de reservas já em Jena à reavaliação de suas críticas ainda na mesma Jena por ocasião da redação de sua “Fenom-enologia do Espírito”.Hegel já reconhecia que os sujeitos não podem suplan-tar os desígnios da razão, pois se trata de várias razões em curso que podem ou não coincidir na concretização de um interesse comum.

Para Kant, a sociedade é posta em risco quando não se segue o pré-estabelecido. Hegel, ao contrário, não dá nenhuma sugestão moral, senão procura entender a moral presente na realidade. Moral é o que se tem e não

20. G.W.F. HEGEL, Princípios da Filosofia do Direito. Trad. de Orlando Vitorino. Sao Paulo: Mar-tins Fontes, 2000, § 13 Z.21. G.W.F. HEGEL, op. cit., § 15.

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o que se deveria ter. O mundo kantiano não existe e permanece um dever ser conforme Hegel o entende. “A tarefa da filosofia é conceber o que é, pois o que é, é razão. No que se refere ao indivíduo, cada um é filho de seu tem-po; do mesmo modo a filosofia é seu tempo apreendido pelo pensamento”22. Kant considera, segundo Hegel, homens que, na verdade, não existem23. O dever ser kantiano é uma realização futura da realidade, enquanto em Hegel, a realização que importa é a do presente.

A lei em Kant e em Hegel

A lei encontra, em Kant, denso tratamento na “Crítica da Razão Práti-ca”. Já no primeiro parágrafo, Kant estabelece a distinção entre as dimensões subjetiva e objetiva do regramento. O aspecto subjetivo caracteriza as máxi-mas que são marcadas pelo conteúdo da vontade do sujeito e, o objetivo aponta para a necessidade de acordo entre as vontades subjetivas através da lei prática. Se for assumido como suficiente ou adequado que a razão pura possa tornar-se prática através da determinação da vontade, então há uma lei prática. Caso contrário, permanece-se nos domínios da máxima. No entanto, a determinação da vontade não pode ser conteudista, pois assim a vontade tornar-se-ia vítima da arbitrariedade. A determinação, segundo o conteúdo, remete às circunstâncias do momento que ora apresenta uma dada necessidade ora uma outra. O sujeito se torna aí, na visão kantiana, um joguete do casuísmo. Sua liberdade deixa de ser uma determinação de dentro para fora, passando a ser condicionada pelo que vem de fora. O que está fora do homem não é de seu pleno domínio e não possui mais razão do que o sujeito lhe atribui. Se a razão se deixa guiar pelo que lhe propõe a exterioridade, o que a aguarda é sua degradação. Nessa linha, Kant afirma em sua “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” que

Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria legisla-ção universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca essa lei na natureza de qualquer dos seus objetos, o resultado é então sempre heteronomia. Não é a vontade que então se dá a lei a si mesma, mas é sim o objeto que dá a lei à vontade pela sua relação com ela2�.

Kant acrescenta na mesma passagem, que a vontade passa a agir moralmente motivada por interesses e não mais pelo dever. É somente no dever que a vontade preserva sua liberdade, pois os resultados de seu es-forço moral não são condicionantes. Ganhando ou perdendo o sujeito em-penha-se no agir moral. O sujeito moral kantiano não é um pragmático, isto é, determinado pelo interesse e nem pelo desenlace de seu agir. O dever ser não se deixa prender por nenhum devir senão pelo que é sua própria 22. G.W.F. HEGEL, op. cit., p. 37.23. “O necessário é viver agora; o futuro não é absoluto e está entregue a contingência. Por isso, a necessidade do presente imediato pode justificar uma ação injusta, pois, com sua omissão, se cometeria, por sua vez, uma injustiça, e na verdade a maior injustiça, a total nega-ção da existência da liberdade.” (G.W.F. HEGEL. Grundlinien der Philosophie des Rechts. Red. Eva Moldenhaue und Karl Markus Michel. Frankurt am Main: Suhrkamp, 2000, §127 Adendos. (Tradução do autor)24. I. KANT, op. cit., BA 89.

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constituição, ou seja, agir motivado pelo dever ser. Não é ‘o que’ merecedor de importância, mas sim o ‘como’. A forma é o determinante independente-mente de seu conteúdo. Daí, poder Kant falar de um imperativo que seja universal, caracterizado pelo dever ser, e não hipotético, regido pelo poder ser.

Para Hegel, forma e conteúdo não se opõem de maneira irrecon-ciliável, pois não se pode falar de forma dissociada de conteúdo e nem de conteúdo sem forma. A forma afirma-se no conteúdo e, ao mesmo tempo, afirma o conteúdo. Por sua vez, o conteúdo afirma-se na forma e igualmente a afirma. Forma e conteúdo não se definem por si mesmos, pois a forma põe o outro que a caracteriza como tal e o conteúdo não se delimita senão como forma.

A forma, antes de tudo, está diante da essência, desse modo é, em geral, relação fundamental, e suas determinações são o fundamento e o fun-dado. (...) O conteúdo tem, em primeiro lugar, uma forma e uma matéria que lhe pertence e lhe são essenciais, o conteúdo é a unidade daquelas25.

A relação de completude entre forma e conteúdo remete à compreen-são de que não basta saber que se deve fazer, mas torna-se necessário sa-ber o que fazer. Não é qualquer fazer que dá conta do fazer moral, pois este não se encontra alheio ao que já é feito. Por isso, a lei não é aleatória e nem casuísta, pois se funda sobre o que já se pratica, isto é, o costume. Este não é posto ao sabor da arbitrariedade, mas somente se constitui e permanece ao sobreviver ao processo histórico que o interpela permanentemente. Sua efetivação é a expressão viva do que as pessoas pensam, desejam e fazem cotidianamente. O que é pensado, desejado, e feito, é tudo o que é querido de modo interessado pelos sujeitos. A escolha confirma a liberdade da von-tade que se move pelo querer e pela possibilidade de determinar o querer.

A liberdade concreta consiste em que a individualidade pessoal e seus interesses particulares também tenham seu total desenvolvimento e o re-conhecimento de seu direito (no sistema da família e da sociedade civil), ao mesmo tempo em que se convertem, por si mesmos, em interesse geral, que reconhecem com seu saber e sua vontade como seu próprio es-pírito substancial e tomam como fim último de sua atividade. Desse modo, o universal não se cumpre, nem tem validade sem o interesse, o saber e o querer particular, nem o indivíduo vive meramente para estes últimos como uma pessoa privada, sem querer ao mesmo tempo o universal e ter uma atividade consciente dessa finalidade26.

A vontade, enquanto localizada e situada num mundo que é e não que deveria ser, é movida por interesse. Ter interesse significa ter prefer-ências, significa tomar partido. Assim, a vontade não somente quer, mas quer algo. A vontade identifica-se com a posse de alguma coisa ou do que a torna efetiva. Ela não quer nem abstrata nem genericamente. A vontade que permanece na universalidade e jamais se particulariza não deixa o campo da abstração. Na medida em que a vontade se determina, ela se realiza e 25. G.W.F. HEGEL, Ciencia de la Logica. Trad. de Augusta e Rodolfo Mondolfo. Solar S.A./Ha-chette S.A.: Buenos Aires, p. �00.26. G.W.F. HEGEL, Princípios da Filosofia do Direito, § 260.

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atualiza a liberdade mesmo que nas formas assumidas ela não seja nem tenha tudo o que quer. O bem, por exemplo, enquanto querer da vontade, é uma construção do interesse que encontrou numa coletividade a identifi-cação e coincidência entre os indivíduos. O interesse não condiciona a lei, mas a garante enquanto ela expressa o que é almejado pelos indivíduos. A lei universaliza um interesse comum ou que já, na prática dos indivíduos, é comumente universal. Sem interesse, sem envolvimento com o que se faz, nada subsiste nem se estabelece. A determinação e especificação do fazer é o que evita a arbitrariedade, pois importa o que fazer já que assim o agir é explicitado. A condução da ação moral através da formalidade, tem como princípio a negação das diferenças entre os indivíduos ou que a diferença não seja mais um aspecto a ser levado em consideração. Hegel insiste que isso não caracteriza o mundo que existe, mas o que deveria existir, sendo que os homens vivem no que existe e é e não no que deveria existir e ser. Aqui, se aplica também o raciocínio hegeliano sobre a intenção que somente pode ser julgada, avaliada e levada em consideração, quando se manifestar numa ação. É a ação retroativamente que permite dimensionar o alcance da intenção, pois somente se efetivando, ela obtém conotação de realidade.

Só quando a vontade moral subjetiva se exterioriza é que há ação. A existência que a vontade adquire no direito formal reside numa coisa ime-diata, é ela mesma imediata e não tem, par si, nenhuma ligação nem com o conceito, que, por ainda não se haver oposto à vontade subjetiva, dela não se distingue, nem com a vontade de outrem; na sua definição funda-mental, a lei jurídica é uma interdição27.

Daí, a lei, que tautologicamente é assumida como universal, dirige-se a homens marcados pela diferença. Desse modo, a lei não age sobre todos igualmente, posto que ela tem significado para os homens onde estes se encontram e como se encontram. Por isso, a lei não é alheia à vida das pessoas, mas insere-se necessariamente no fundamento prático da existên-cia de uma coletividade. A lei é ainda a garantia de uma eticidade já desen-volvida e que não pode depender de iniciativas voluntariosas. Para Hegel, nenhuma sociedade pode subsistir sobre a égide da intenção, pois o que conta é o que é feito, praticado, efetivado. A perspectiva da intenção é a da pretensão de controlar os desdobramentos possíveis do realizado ou mais, segundo Kant, não se deixar determinar pelas conseqüências possíveis. A perspectiva hegeliana é a de atuar sobre o que possa ocorrer, condicionando a intenção ao que e como se deve fazer. Pesa aqui novamente o conteúdo do agir, e não a sua formalidade. Nessa ótica, a organização legislativa de uma sociedade, desempenha um papel fundamental ao trabalhar para que se saiba o que se deve esperar de todos e de cada um. Então, nada melhor para um indivíduo do que se tornar membro de um Estado formado por boas leis. Aí, imperaria a consciência sobre o que fazer na medida em que as leis expressariam adequadamente o que por todos já é defendido.

Aqui, deve-se considerar um aspecto distintivo e importante entre Kant e Hegel. Para Kant, ética e política não são entendidos conjuntamente

27. G.W.F. HEGEL, op. cit., § 113.

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A crítica de Hegel ao conceito de lei em Kant

O político não é suficiente para garantir a substancialidade da ética. Segundo Kant, a observância das leis não resulta obrigatoriamente na contemplação da moral, pois as leis podem ser cumpridas por interesses e motivos que não caracterizem a adesão às mesmas incondicionalmente. As normas jurídicas não são suficientes, segundo Kant, para garantir a realização do que é ex-igido pelo imperativo categórico. As ações podem não ultrapassar o liame da correção na exterioridade. A observância de uma norma jurídica pode ser legal, mas não moral. Para Hegel, por sua vez, deve ser levado em consid-eração o que ele denomina de “espírito de um povo”, que se constitui por toda a história de um povo, suas origens, costumes, hábitos, sua cultura, seu éthos. “(...) segundo a natureza, o homem vê a carne da sua carne na mulher; segundo a eticidade, vê o espírito do seu espírito na essência ética e por meio da mesma.”28

É num povo que a moralidade se realiza, deixando se ser apenas um dever ser ou algo que jamais será alcançado. A moralidade está na vivência segundo os costumes de um povo, ou seja, segundo o que se concretizou e continua se concretizando. Dever ser (sollen) e ser (sein) são reconcili-ados no espírito de um povo. Tal reconciliação se manifesta numa dada re-alidade histórica que vai além dos indivíduos, mas na qual os indivíduos se reconhecem. O mundo daí derivado não é o idealizado, mas o realizado que somente no espírito tem sua plena efetivação, pois se projeta para além dos espaços e tempos particulares e individuais, atingindo a totalidade de um povo, portanto, espiritual. O dever ser brota do espírito de um povo como sua construção, e não como um a priori que se encontra já pressuposto. A anterioridade do dever ser é posta e derivada da história de um povo. Desse modo, se é necessário levar em consideração as tradições e costumes de cada povo, então, como se pode falar em princípios universais? Teriam os princípios uma validade condicionada? Hegel se aproxima de Kant ao aceit-ar a validade de um imperativo categórico, mas levando em consideração as circunstâncias. Este é o caso das exceções que alterariam a aplicação incondicional de um princípio. A exceção seria também necessariamente universalizável nas mesmas circunstâncias. Ética e política em Hegel, não são excludentes como em Kant, mas sim complementares e condição de re-alização uma da outra. A ética não é negada na política e esta não pode se situar além da ética. Hegel tem plena consciência das dificuldades e conflitos que provêm da aproximação entre essas duas esferas, mas seu esforço é o de pensar a vida no que é e não no que deveria ser. Por isso, destaca-se entre Hegel e Kant, a referência para a determinação de qualquer norma de ação ou da compreensão do bem e do mal: para Kant, a orientação vem do imperativo categórico formal e, para Hegel, tudo se determina a partir do “espírito do povo”. O que fazer e como fazer coexistem e convivem.

Conclusão

A relação entre a filosofia kantiana e hegeliana é extremamente

28. G.W.F. HEGEL, System der Sittlichkeit. Herausg. von Horst D. Brand. Felix Meiner Verlag: Hamburg, 2002, S. �7.

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frutífera e não se pode preterir uma em detrimento da outra de forma ab-soluta. A crítica de Hegel a Kant somente é possível na esteira da História, pois Kant lançou todas as condições para que fosse posteriormente criti-cado. O próprio Hegel reconhece que a relação entre as diferentes filosofias somente pode ser de completude. Nenhuma filosofia pode afirmar-se como definitiva, enquanto a história prosseguir. É verdade que Hegel parece ter identificado sua filosofia com a história e seu fim, mas deve-se reconhecer que Hegel não enclausura a história em seu sistema, senão entende ter ex-pressado com seu pensamento seu próprio tempo. Assim, talvez seja mais apropriado falar do fim de uma história a qual foi objeto de análise das con-siderações filosóficas de Hegel.

Nessa linha de raciocínio, pode-se falar da diferença mais marcante entre Kant e Hegel. Enquanto Kant deixa-se impressionar pelos acontec-imentos de seu tempo e estabelecer posturas de reação, Hegel esforça-se por compreender o que ocorre à sua volta. Para Hegel, a filosofia tem como atividade expressar a história no pensamento. Não se trata de dizer para onde se deve ir ou que opção escolher, mas de reconhecer o que se tem feito, o que se faz e o que é indicado com o que será feito. A história da hu-manidade, para Hegel, é a história de seu convencimento sobre a liberdade, através das manifestações concretas nas instituições e organizações sociais. A tarefa de realização da liberdade é atividade de todos os indivíduos que se afirmam na existência em sociedade. Indivíduo e sociedade coexistem em relação de organicidade, isto é, sem que um se sobreponha ou se antecipe ao outro. É na sociedade que o indivíduo se reconhece como tal e, é por esse reconhecimento, que a sociedade se confirma. Reconhecer-se na sociedade não é outra coisa senão o reconhecer-se do indivíduo num outro. Reconhec-er-se no outro é reconhecer-se fora de si e reconhecer-se fora de si é trazer tal reconhecimento para dentro de si ou para sua área de identificação. A distinção permanece, mas não se constitui em limite ou barreira de impedi-mento para uma plena identificação entre os indivíduos. Quando tal nível é alcançado, a relação entre os indivíduos possui características específicas. O que foi conquistado, talvez motivado por anseio, talvez por necessidade, somente se garante se se tornar institucionalizado como expressão do que se quer. A lei aparece aqui como tal expressão que não se basta como expe-diente regulador, mas que precisa mostrar a todos como preservar um valor da organização social.

Como Kant, entende Hegel que a humanidade se realiza na espécie mais do que no indivíduo, porém a ação do indivíduo não pode ficar a en-cargo de seu agir formal, precisamente pela sua vertente coletiva. Ser livre pela lei, em Hegel, não é mais uma limitação, mas a confirmação do conceito de liberdade pela relação com o outro. Ser livre não é fazer o que bem se entende, mas entender o que se faz enquanto isso diz sempre respeito ao outro. Essa postura traduz o fato de que o outro não é mais um estranho, e o que o dualismo interioridade-exterioridade ou eu-tu estabelece, encon-tra-se, historicamente em superação. Com isso, Hegel atinge o que sempre busca com sua compreensão filosófica, ou seja, que a totalidade se torne

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efetiva, posto que somente por ela pode-se obter a realidade do ser. A lei não reduz tudo a si, mas é por tudo reduzida ao que é, isto é, expressão do todo e do empenho histórico na direção da unidade.

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REH: NORMAS DE SUBMISSÃO – Versão resumida

1. A REH publica artigos, traduções, etc., em torno de Hegel e a filosofia especulativa em geral e o Sistema de Hegel e seu desenvolvimento em par-ticular;

2. Exceto resumos, resenhas e notas bibliográficas, todos os materiais sub-metidos ao Conselho Editorial deverão – obrigatoriamente – conter resumo e palavras-chave na língua em que forem escritos e em Inglês ou Alemão (para os textos em línguas de origem latina) ou numa das línguas latinas (para os textos em Inglês ou Alemão);

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(no caso, a segunda edição da versão de Paulo Meneses);

8. No caso de obras como as Linhas fundamentais da Filosofia do Direito (FD) e a Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio de 1830 (E.), sugere-se ainda o uso de ‘A’ para as anotações de Hegel e ‘Ad’ para os aden-dos de seus discípulos;

9. No caso das obras de Hegel (em alemão) ainda não vertidas ao Português (sejam paragrafadas ou não), mesmo quando também se faça uso das ver-sões portuguesas ou em outras línguas, sugere-se a manutenção das iniciais do título no original [por exemplo, ‘WdL’ para a Wissenschaft der Logik], seguidas das páginas da edição (ou das edições) utilizada(s);

10. Citações de obras clássicas sem tradução brasileira ou citadas preferen-cialmente conforme o original ou tradução em língua diversa do português do Brasil, deverão estar de acordo com as convenções internacionais de pra-xe na área [exemplo: ‘PhdE’ para Phénoménologie de l’Esprit) ou indicadas em nota;

11. Citações no corpo do texto deverão ser indicadas apenas com (SOBRE-NOME DO AUTOR, data e página) ou (SIGLA DA OBRA, parágrafo – se para-grafada – e página); qualquer acréscimo deverá ser feito em nota, conforme as respectivas normas.

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