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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom. 1 Regiane Augusto de Mattos (FFLCH/USP – pós-graduanda Comerciantes brasileiros de escravos e a resistência à dominação portuguesa em Angoche (Moçambique) no século XIX. ) Esta comunicação é parte integrante da pesquisa de doutorado em História Social, desenvolvida na Universidade de São Paulo, sobre o sultanato de Angoche e a resistência à dominação portuguesa no norte de Moçambique, entre 1842 e 1910, e pretende refletir acerca da participação de estrangeiros, sobretudo provenientes do Brasil, e comerciantes de escravos no âmbito da resistência a atuação de Portugal na África. Acredita-se que a resistência organizada pelo sultanato de Angoche tinha como objetivo fundamental assegurar a liberdade e o poder político do sultanato diante da ofensiva e da dominação portuguesa. A interferência política de Portugal ocorreu em diferentes âmbitos, na proibição ao tráfico de escravos, na imposição religiosa e na cobrança de impostos. Dessa maneira, um dos principais objetivos dessa pesquisa é saber quais foram os principais fatores desencadeadores dessa resistência. Os movimentos ocorridos na região norte de Moçambique, ainda hoje, são pouco estudados. Dessa maneira, essa pesquisa tem por objetivo salientar a importância da resistência no norte de Moçambique. Como já apontou o antropólogo Antonio Rita- Ferreira, a resistência na região do sultanato de Angoche foi uma das mais longas na história da dominação portuguesa na África. Além da duração da resistência no norte de Moçambique, ressaltam-se as suas especificidades, sobretudo quanto à articulação da resistência num contexto geográfico marcado pela heterogeneidade étnica (suahilis, macuas, ajaus e macondes) e pela presença de agentes externos, como indianos, franceses, árabes e brasileiros. Vale lembrar que ao norte do rio Zambeze existiam vários grupos étnicos, entre eles os macuas, considerados um dos mais numerosos e subdivididos de Moçambique. Eram basicamente agricultores, embora algumas linhagens do litoral, sobretudo dos macuas islamizados, participassem do comércio de escravos. Já os macondes, também agricultores, ocupavam o planalto ao sul do rio Rovuma. Por sua vez, os ajauas ficavam

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

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Regiane Augusto de Mattos (FFLCH/USP – pós-graduanda Comerciantes

brasileiros de escravos e a resistência à dominação portuguesa em Angoche

(Moçambique) no século XIX.

)

Esta comunicação é parte integrante da pesquisa de doutorado em História

Social, desenvolvida na Universidade de São Paulo, sobre o sultanato de Angoche e a

resistência à dominação portuguesa no norte de Moçambique, entre 1842 e 1910, e

pretende refletir acerca da participação de estrangeiros, sobretudo provenientes do

Brasil, e comerciantes de escravos no âmbito da resistência a atuação de Portugal na

África.

Acredita-se que a resistência organizada pelo sultanato de Angoche tinha como

objetivo fundamental assegurar a liberdade e o poder político do sultanato diante da

ofensiva e da dominação portuguesa. A interferência política de Portugal ocorreu em

diferentes âmbitos, na proibição ao tráfico de escravos, na imposição religiosa e na

cobrança de impostos. Dessa maneira, um dos principais objetivos dessa pesquisa é

saber quais foram os principais fatores desencadeadores dessa resistência.

Os movimentos ocorridos na região norte de Moçambique, ainda hoje, são pouco

estudados. Dessa maneira, essa pesquisa tem por objetivo salientar a importância da

resistência no norte de Moçambique. Como já apontou o antropólogo Antonio Rita-

Ferreira, a resistência na região do sultanato de Angoche foi uma das mais longas na

história da dominação portuguesa na África. Além da duração da resistência no norte de

Moçambique, ressaltam-se as suas especificidades, sobretudo quanto à articulação da

resistência num contexto geográfico marcado pela heterogeneidade étnica (suahilis,

macuas, ajaus e macondes) e pela presença de agentes externos, como indianos,

franceses, árabes e brasileiros.

Vale lembrar que ao norte do rio Zambeze existiam vários grupos étnicos, entre

eles os macuas, considerados um dos mais numerosos e subdivididos de Moçambique.

Eram basicamente agricultores, embora algumas linhagens do litoral, sobretudo dos

macuas islamizados, participassem do comércio de escravos. Já os macondes, também

agricultores, ocupavam o planalto ao sul do rio Rovuma. Por sua vez, os ajauas ficavam

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a oeste do rio Lugenda e eram predominantemente agricultores, além de terem um

envolvimento com o tráfico de escravos, atacando seus vizinhos do oeste e do sul.1

Por fim, os suahílis estavam localizados, em particular, na costa entre os

territórios de Quionga e Quelimane. Tinham como religião o islamismo e eram grandes

comerciantes, sobretudo de escravos. Os suahilis formaram quatro estruturas políticas

nos moldes muçulmanos: Sancul, Quitangonha, Sangage e Angoche. Os fundadores

dessas estruturas políticas seriam originários de Quíloa. O sultanato de Angoche exercia

influência desde Sangage, ao norte, até a Pebane, ao sul do Ligonha. Também tinha

como “vassalos” alguns “chefados” macuas como Nhahochiua, Marovone e Mulai.2

Diversas razões podem ser atribuídas à eclosão dos movimentos de resistência: a

perda da soberania, as idéias religiosas, os interesses econômicos, a intensificação da

política colonial, que desencadearam a resistência à Portugal, encabeçada pelo sultanato

de Angoche, no norte de Moçambique.

Pretende-se também identificar os fatores que possibilitaram a organização da

resistência com a formação de uma coligação entre diferentes grupos étnicos. Ao longo

do século XIX, notam-se, por parte do sultanato de Angoche, tentativas de alianças

entre os diferentes grupos étnicos presentes na região norte de Moçambique. Não raro,

essas tentativas de coligação eram direcionadas aos grupos naquele momento aliados

aos portugueses. Por exemplo, em meados da década de 1850, o então sultão de

Angoche, Mussa Quanto, havia reorganizado seu exército e tentado submeter os

imbamelas de Morla-Muno, aliados dos portugueses. Entretanto, não conseguindo,

formou uma coligação com os chefes macuas. Somente mais de vinte anos depois, o

sultão Fareley conseguiu organizar uma coligação contra os portugueses composta por

chefes macuas, o pretendente do xeicado de Sangage e os imbamelas, permitindo a

resistência à dominação portuguesa até 1910.

Resta saber o que contribuiu para que o sultão Fareley articulasse a coligação de

grupos tão diferentes e, que em momentos anteriores, estavam em posições políticas

contrárias. Pode-se levantar como hipótese a expansão do islamismo no interior da

região norte de Moçambique como fator de coesão dos grupos. Dessa maneira, com um

contingente maior de grupos islamizados a articulação da resistência tornar-se-ia mais

fácil, tendo em vista a necessidade desses grupos de garantir a não submissão à 1 PÉLISSIER, René. História de Moçambique. Formação e oposição, 1854-1918. Editorial Estampa: Lisboa, 1994, p.37, 38. 2 Idem, Ibidem, p.64. M’BOKOLO, Elikia. A África Negra. História e Civilizações até o século XVIII. Tomo I. Lisboa: Editora Vulgata, 2003.

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dominação política de cristãos. Outra hipótese levantada é a do reconhecimento da

legitimidade de Fareley como soberano entre os diferentes grupos étnicos. A

identificação de um inimigo comum pode ter levado ao reconhecimento de um único

representante no âmbito da resistência.

No que se refere aos fatores desencadeadores dessa resistência, destaca-se a

interferência portuguesa no âmbito da economia, como no caso da proibição do

comércio de escravos. O comércio de escravos tinha um papel importantíssimo e por

isso pode-se considerar como marco inicial da resistência ao domínio português a sua

proibição em 1842. Para tanto é preciso analisar a participação dos diversos agentes

sociais presentes na região do sultanato de Angoche, quais sejam, suahilis, macuas,

brasileiros, franceses, no tráfico de escravos. Faz-se necessário discutir o peso da

proibição do tráfico na articulação da resistência e a atuação de cada um desses agentes

sociais envolvidos no comércio de escravos.

O tráfico de escravos era um dos mais lucrativos negócios nos portos de

Moçambique. No século XVII, algumas localidades da região Centro-Ocidental africana

foram ocupadas pelos holandeses. De modo que os comerciantes portugueses e

brasileiros passaram a investir no tráfico de escravos com a costa oriental. Na segunda

metade deste século, os portugueses expandiram seus domínios para os territórios acima

do rio Zambeze, englobando os reinos maraves do Undi, Calonga e Lundu. Contudo, a

exportação de escravos desta região para a América apenas cresceu no final do século

XVIII. Até esse momento, os franceses dominaram a cena do tráfico de escravos, pois já

havia muito tempo tinham estabelecido o controle desse comércio entre Moçambique e

as ilhas no Índico.

Antes disso, a maior parte dos escravos dessa região era transportada em direção

ao Mar Vermelho e ao Saara. Entre 1786 e 1794, Moçambique embarcou para as

Américas cerca de 5.400 escravos por ano. No século XIX, essa área aumentou suas

exportações, atingindo já na primeira década 10 mil escravos, na década seguinte 60 mil

e na terceira e quarta décadas 100 mil cada.3

Quelimane destacou-se como um dos maiores pontos de exportação de escravos

da África Oriental para as Américas, transportando só para o Brasil, em 1806, 1.080

3 LOVEJOY, Paul, LOVEJOY, Paul. A escravidão na África. Uma história de suas transformações. RJ: Civilização Brasileira, 2002, p.109, 234.

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escravos. Entre 1820 e 1832, a rota Quelimane - Rio de Janeiro atingiu

aproximadamente quatro mil africanos por ano.4

A mudança no tráfico de escravos não se restringiu ao número de exportações,

mas afetou também a participação de outros agentes no tráfico. Foram envolvidos os

grupos niamuézis, do interior da Tanzânia, e os iaôs, fixados entre a costa oriental

africana e o lago Malauí, que passaram a comercializar escravos e marfim. Quíloa era

outro importante ponto exportador de escravos, oferecendo cativos do seu interior e

recebendo as caravanas do lago Malauí e de outros portos mais ao sul. Alguns destes

escravos eram encaminhados para Zanzibar e Pemba.

Ao sul de Moçambique, o comércio de escravos não chegou a alcançar os

números de exportação da região norte (vale do Zambeze). Contudo, portugueses e

brasileiros marcaram sua presença, embarcando nos portos de Lourenço Marques e

Inhambane cativos de guerras, em particular, as que originaram o reino Nguni, a partir

da década de 1820.

A intensificação do tráfico da costa oriental de África para o Brasil aconteceu em

finais do século XVIII, apesar de existirem brasileiros estabelecidos em território de

Moçambique antes dessa época, mas que preferiam realizar o comércio com as colônias

francesas do Índico, pois era mais seguro e lucrativo. Foi com a política colonial de

incentivos ao tráfico de escravos de Marquês de Pombal que a região oriental africana

tornou-se grande fornecedora de mão-de-obra escrava para o Brasil.

Na ilha de Moçambique existia, em finais do século XVIII, a chamada Casa do

Rio de Janeiro, estabelecida por Antônio Lopes da Costa, onde se comercializavam

várias mercadorias produzidas no Brasil, como açúcar, aguardente, mandioca, milho,

feijão, abóbora, batata-doce, papaia, goiaba, tabaco, armas, pólvora, madeiras para a

construção de navios, o cordame para embarcações. Em troca, de Moçambique para o

Brasil, eram levados escravos, ébano (pau-preto) e tecidos da Índia. Em 1768, foram

exportados para o Brasil tecidos de Bengala, comercializados diretamente pela Casa do

Rio de Janeiro.5

Já em 1826, o negociante de escravos do Rio de Janeiro Zeferino José Pinto de

Magalhães, reclamando dos “estorvos” que estavam sendo causados em Quelimane ao

4 ROCHA, Aurélio, Contribuição para o estudo das relações entre Moçambique e o Brasil no século XIX (Tráfico de escravos e relações políticas e culturais). In: Estudos Afro-Asiáticos, n.21, dezembro de 1991, p.201-204-206. 5 Idem, ibidem, p.203.

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obrigarem as embarcações a irem a Moçambique pagar os direitos de entrada e saída,

faz um relato a respeito do comércio de escravos nessa região da África Oriental:

“O Brasil em 1800 entrara a especular no resgate de escravos em

Moçambique e fora ele quem ressuscitara o comércio da costa oriental de

África a ponto que os negociantes de Moçambique se animaram a ir

resgatar escravos aos inóspitos sertões de Tete e de Sena. (...) os

especuladores do Brasil não contentes com o aumento que deram ao

comércio de Moçambique animaram-se a descobrir o porto de Quelimane e

com efeito o povoaram por ser menos quatro graus de viagem: por

reputarem melhor suas mercadorias não só em escravos, como em

tartaruga, e marfim e por ser mais cômoda a viagem dos sertões de

Quelimane, Tete e Sena para aquele porto que para Moçambique.”6

Desde o fim do século XVIII, o tráfico de escravos também proporcionou aos

chefes suahilis, do norte de Moçambique, armas e lucros que lhes garantiam manipular

tanto os macuas como os portugueses, acabando por dominar uma rede comercial

importantíssima.

Terence Ranger destaca que “certamente houve, na época da corrida, vários

movimentos de resistência econômica. Mais precisamente, os europeus, rompendo a

velha aliança com os mercadores e intermediários africanos, recorreram à força para

instaurar o monopólio comercial. O resultado foi uma resistência feroz da parte dos

mercadores africanos conduzida pelos (...) chefes swahili, que dominavam o comércio

de escravos no norte de Moçambique (...).” 7

A proibição do tráfico de escravos ocorreu em 1842, como conseqüência da

crescente pressão inglesa. Em 10 de dezembro de 1836, foi promulgado o decreto,

elaborado meses antes pelo ministro da Marinha e Ultramar de Portugal Sá da Bandeira,

proibindo a exportação de escravos em territórios portugueses. Entretanto, esse decreto

não permitia à Inglaterra a fiscalização das embarcações, pois a Marinha de Guerra não

tinha o poder de visita dos navios com bandeira portuguesa. Diante desse fato a

6 AHU, cx.203, apud CAPELA, José. Dicionário de negreiros em Moçambique, 1750-1897. Porto: Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2007, p.142. 7 RANGER, Terencer O. Iniciativas e resistência africanas em face da partilha e da conquista. In: BOAHEN, A. Adu. (coord.) História Geral da África. A África sob dominação colonial, 1880-1935. v. 7, Ática/Unesco, 1985, p.83.

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Inglaterra continuou exercendo pressão sobre Portugal. Em 3 de julho de 1842, o

governo português acabou cedendo, ao assinar um tratado que previa a abolição total do

comércio de escravos, o que permitiu aos ingleses o apresamento de navios portugueses

e o julgamento dos tripulantes envolvidos com o tráfico de escravos.8

À época do tráfico clandestino, houve uma intensificação da captura, sobretudo

na área sob domínio do sultão Mussa Quanto, cujos agentes assaltavam as habitações,

seqüestrando seus moradores, depois levados para Sangage, onde eram embarcadas para

Madagascar. Em 1865, o comandante militar de Angoche relatou ao secretário geral de

Moçambique que “a Ilha de Angoche está cercada, pelo continente, de ladrões,

assassinos e vendilhões da humanidade – ao sul, a gente do régulo Nhamelugo – ao

norte, Mujojo Bino Damune, Athemane Bumo Ambacy e Mussaquanto, com inúmeras

forças, armadas já, quase todas, com espingardas sofrível artilharia de calibre 2 e 3.” 9

Essa região do sultanato de Angoche passou a ser uma das mais freqüentadas por

comerciantes de escravos. O governador-geral de Moçambique já escrevia em portaria

de 1847 que “(...) pela maneira mais escandalosa, o proibido tráfico de escravos,

estabelecendo-se ali seus agentes com feitorias e barracões, e que neste criminoso

comércio tem tido grande e activa arte alguns indivíduos desta cidade e seu termo,

vendendo escravos, e auxiliando clandestinamente por meio de sórdidos interesses

aquele iníquo tráfico (...)”.10

O historiador José Capela afirma que “em Angoche, inaugurava-se um comércio

novo: aí levavam os mouros de Anjoane armas e pólvora compradas aos ingleses e

franceses em troca de escravos e marfim destinados aos mesmos ingleses e franceses.

Os escravos eram, predominantemente, senão exclusivamente, macuas. O relator

considerava o tráfico duplamente benéfico: proporcionava dinheiro e alimento aos de

Moçambique que, simultaneamente, se viam livres dos inimigos.”11

Capela aponta como principal fator da continuidade do comércio de escravos a

“ineficácia da soberania portuguesa em Angoche”. Esse fato possibilitou a construção

de feitorias nessa região por comerciantes de diferentes nacionalidades: mujojos,

8 ALEXANDRE, Valentim. Velho Brasil, Novas Áfricas. Portugal e o Império (1808-1975). Porto: Edições Afrontamento, 2000. 9AHM, governo-geral, cx.2, n.56, mç.1, do comandante militar de Angoche para secretário-geral, 28 de janeiro de 1865. Apud CAPELA, José. O escravismo colonial em Moçambique. Porto: Edições Afrontamento, 1993, p.33. 10 AHM, códice 11-85, fls. 9 vs., portaria do governador-geral de 27 de julho de 1847. Apud CAPELA, José. op. cit., 1993, p.28. 11CAPELA, José. Op. cit., 1993, p.85.

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franceses, portugueses (incluindo autoridades de Moçambique) e brasileiros, como

Manoel Maria Mergú. Todos atuavam com a supervisão do sultão de Angoche.

No ano de 1847, Manoel Maria Mergú estava em Angoche para comprar

escravos. Nessa ocasião o comandante das Terras Firmes escreve ao secretário do

governo-geral que Mergú deveria ser preso para que o tráfico de escravos acabasse

definitivamente.12 Afirma também que o sultão de Angoche “que tem muitas ligações

dos mujojos, os mais abastados moradores daquelas ilhas e o aconselharam a admitir o

comércio dos brasileiros para deste modo reduzirem melhor as suas fazendas e são

estes que se correspondem com os habitantes aventureiros desta capital para lhes

fornecerem escravos a maior parte roubados aos habitantes pacíficos, e podem deste

modo reduzirem as fazendas que passam por alto extraviadas aos Direitos”.13

O comerciante brasileiro Manoel Maria Mergú era associado ao comerciante

Manoel Pinto da Fonseca, do Rio de Janeiro, atuante entre 1837 e 1850 como um dos

mais poderosos traficantes de escravos, responsável por várias feitorias na África

ocidental e oriental. Associado ao seu irmão Joaquim Pinto da Fonseca, também grande

negociante do Brasil, Manoel Pinto da Fonseca desenvolvia sua atividade como negreiro

entre Moçambique e Brasil, através do Cabo.14

Em 1842, quando da proibição do tráfico de escravos Manoel Pinto da Fonseca

foi um dos principais articuladores da idéia da utilização da bandeira norte-americana

para fugir à repressão inglesa, junto com Manoel Maria Mergú, um advogado brasileiro

e dois corretores norte-americanos.15

Em Angoche, Pinto da Fonseca era considerado um “homem de chapéu”, pela

sua importância como traficante e por possuir grande quantidade de escravos, além de

uma feitoria em Quelimane. Em meados do século XIX, Portugal, já ambicionando a

conquista do sultanato, promovia ataques a Angoche. Em 1847, de olho no apoio do

sultão aos traficantes, Pinto da Fonseca adquiriu cinco a seis mil espingardas de um

navio norte-americano, mais tarde utilizadas pelo sultão de Angoche contra os

portugueses.16

12 AHM, códice 11-7, p. 6 vs., do comandante das Terras Firmes para secretário do governo-geral, 28 de maio de 1847. Apud CAPELA, José. Op. cit., 1993, p.32. 13AHM, códice 11-7, p.6vs, apud. CAPELA, José. Op. cit., 2007, p.245. 14 ROCHA, Aurélio. Op. cit., 1991, p.219. 15 Idem, ibidem. 16 SUBSERRA, Marquês da Bemposta e. Resumo do Estado actual da Província de Moçambique, dos melhoramentos de que carece, da fertilidade do seu solo, e das riquezas em que abunda. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. 55a. Série, n.7-8, julho-agosto de 1937, p.300. AHU, Moçambique, Pasta 9: Do Almirante d’Acres para o governador Domingos Fortunato do Valle. Cabo da Boa Esperança,

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Em 1850, Manoel Pinto da Fonseca constava na lista de suspeitos e procurados

pelas autoridades brasileiras por realizar tráfico clandestino de escravos. Realizava o

comércio de escravos principalmente em Quelimane, mas também em Angoche,

Inhambane e Sofala.17 Nessa época, com a proibição definitiva do comércio de escravos

africanos, os irmãos Pinto da Fonseca deixaram o Brasil, pois estavam envolvidos com

esse ilícito comércio e também com o tráfico de moedas.18 O Jornal do Comércio (RJ)

de 17 de fevereiro de 1851 traz a seguinte informação: “O Joaquim Pinto da Fonseca,

que recebeu ordem para sair do Império, e presentemente se acha no Rio Grande, pediu

prorrogação de prazo. Não lhe foi concedido, e tem, portanto, de retirar-se apenas

expirem os 4 meses que lhe foram prescritos.”19

Meses mais tarde, no mesmo jornal foi noticiada a partida de Manoel Pinto da

Fonseca para a Europa. “Os acontecimentos mais notáveis da semana que hoje acaba

não passara de 2- a súbita partida do negociante Manoel Pinto da Fonseca [...]. O

Manoel Pinto tensionava partir para a Europa no paquete inglês Clyde, que esperamos

de Southampton no dia 11 de março; pelo menos inscreveu-se na lista dos novos

passageiros naquele navio. Quando menos o podiam suspeitar os seus conhecidos e

amigos soube-se pelos jornais diários, e por um ou outro bilhete de despedida que na

véspera remeteu a certos amigos mais íntimos com quem se não pôde avistar, que

seguia para o Havre a bordo do paquete francês Ville de Rio, que daqui saiu a 25 do

mês passado. O motivo que dão os mais competentes para aquela inesperada

deliberação é a notícia que se espalhou de ser ele o proprietário da barca Tentativa

que tendo saído de Quelimane carregada de africanos, encalhou na costa de Quissamã,

ao norte de Macaé, onde foi apresada toda a sua carga. Acrescentam, e cuido que com

algum fundamento, que esta barca, tendo largado deste porto para Havana, há coisa de

um ano, e com carregamento de carne seca, fora dali mandada para a Costa sem

ciência do seu dono.”20

O Jornal do Povo, do Porto, de 12 de junho de 1851 traz a notícia da chegada do

cidadão brasileiro Manoel Pinto da Fonseca, “segundo nos informam é um dos homens

mais ricos que ultimamente tem chegado do Brasil; calcula-se a sua fortuna em mais de

três milhões de cruzados, dinheiros português.” Outro jornal português – O Nacional - 11-8-1847, 15-11-1847 e 16-11—1847; idem: Do governador Domingos Fortunato do Valle para o almirante d’Acres, 16-11-1847. Apud, ROCHA, Aurélio. Op. cit., 1991. 17 CAPELA, José. Op. cit., 2007, p.228. 18 ROCHA, Aurélio. Op. cit., 1991, p.219. 19 CAPELA, José. Op. cit., 2007, p.224. 20 Jornal do Comércio (RJ), 2 de março de 1851. Apud CAPELA, José. Op. cit., 2007, p.228.

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de 11 de setembro de 1851, escreveu: “Ouvimos dizer que o senhor Manoel Pinto da

Fonseca, rico brasileiro ultimamente chegado do Rio de Janeiro, pretende obter a

soberana o título de conde, mediante a soma de quarenta contos de réis, aplicados para

estabelecimentos de caridade. Parece que o governo está disposto a conceder-lho

dividindo-se a soma entre os estabelecimentos do Porto e Lisboa.” Manoel Pinto da

Fonseca faleceu em 1855 e seu irmão Joaquim, em 1897.21

Dessa forma, o sultanato de Angoche conseguiu resistir à interferência

portuguesa no controle da economia, no caso da proibição do comércio de escravos, até

finais do século XIX, quando ainda escravos eram embarcados nessa área. Garantir a

autonomia econômica do sultanato, sobretudo no que se refere ao controle do comércio

de escravos, era fundamental para a permanência do poder e da soberania. O tráfico de

escravos, além de proporcionar aos chefes suahilis grandes lucros, proporcionava-lhes

prestígio e poder entre os demais grupos étnicos da região, bem como entre os agentes

estrangeiros - franceses, indianos, brasileiros –, na medida em que dominavam uma rede

comercial importantíssima. Por conta disso, Angoche recebeu, de alguma maneira, a

contribuição desses agentes estrangeiros envolvidos com o tráfico de escravos,

interessados na permanência desse lucrativo comércio, contra à intervenção de Portugal.

21 Idem, ibidem, p.229.