mestrado d'andrea, tiaraju 2008 fflch

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TIARAJ PABLO DANDREA

NAS TRAMAS DA SEGREGAO O Real Panorama da Plis

Universidade de So Paulo Programa de Ps-Graduao em Sociologia So Paulo 2008

II

TIARAJ PABLO DANDREA

NAS TRAMAS DA SEGREGAO O Real Panorama da PlisDissertao apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de So Paulo, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Sociologia, sob orientao da Professora Doutora Vera da Silva Telles.

Universidade de So Paulo Programa de Ps-Graduao em Sociologia So Paulo 2008

III

FOLHA DE APROVAO

Tiaraj Pablo DAndrea Nas Tramas da Segregao O Real Panorama da Plis

Dissertao apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de So Paulo, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Sociologia.

Aprovado em:

Banca ExaminadoraProf. Dr._______________________________________________________ Instituio:______________________Assinatura:______________________

Prof. Dr._______________________________________________________ Instituio:______________________Assinatura:______________________

Prof. Dr._______________________________________________________ Instituio:______________________Assinatura:______________________

IV

A meu av Jos Casemiro, Eletricista e A meu av Jos DAndrea, Ferrovirio Pelos trilhos e pelas luzes

V

El hombre se hiz siempre del todo material de villas seoriales o barrio marginal Silvio Rodriguez

Periferias, vielas, cortios... voc deve estar pensando o que voc tem a ver com isso? Racionais MCs

A medida da inteligncia e da verdade no homem a ao. (...) Por isso, o conhecimento uma questo antes prtica que terica Florestan Fernandes

VI

AgradecimentosEste trabalho no s meu. de muitas pessoas, muitos lugares e muitos trajetos.

A todos que me acompanharam nesta jornada de pesquisa e de vida quero dizer que retrato nas pginas que seguem o que vi, senti, pensei e li. Da melhor forma possvel, tentei traduzir minha maneira a sociedade que perpassa cada um de ns. Obrigado a todas e todos pelas imensas contribuies e pelo sonho compartilhado.

Agradeo minha orientadora Vera da Silva Telles, pelo apoio, pacincia e por me provar a diferena entre dizer e mostrar. Ronaldo Almeida, pela favela. Mariana Fix, pela inspirao. Agradeo a Fapesp pela bolsa concedida e que me proporcionou a realizao deste trabalho.

A Pierre Bourdieu e Florestan Fernandes. Pelo exemplo de dignidade intelectual.

Aos compas da Usina, pelo apoio intelectual e afetivo. Pelas utopias. Helosa Rezende, amiga de jornadas hericas e atitudes de grandeza. Isadora Guerreiro, pelas idias e pelo apoio de sempre; Luciana Ceron, por abrir caminhos; Beatriz Tone - defensora da alegria pelo trabalho compartilhado; Pedro Arantes, pelas sugestes; Jade Percassi, pelas tradues e pelo social; Jos Baravelli, pelas correes; Paula Constante, pelos Capacetes Coloridos; Fernando Minto e Leslie Loreto.

Aos coletivos de ontem, de hoje e de sempre: Caifazes, Realidade, BrasCuba, Consulta, Nepis, Fora Ativa, Dolores, Gavies.

Ainda bem que existem os que no tem nada a perder.

Agradeo melodicamente a Silvio Rodriguez, Daniel Viglietti, Jorge Drexler, Pablo Milans, Mercedes Sosa, Len Gieco, Alfredo Zitarrosa, Jaime Roos, Racionais MCs, Zeca Pagodinho, Joo Nogueira, Paulinho da Viola, Chico Buarque e Gilberto Gil pela presena assdua e comovente em todas as horas. Cada um a seu modo. Por ellos canto.

VII

Aos amigos que chegam sem dizer porque, como deve ser.

Sandro Barbosa, ontolgico e irrepetvel. Pelo que me ensina; Danilo Chammas, poeta Virglio em nossas selvas pelo mundo; Fernando, Dudu e Fbio Serra, futebol e samba. Marco, pela fogueira. Carlos Alexandre, pela sensibilidade. Marcos Garbini, pela poesia. Lina, da FAU, do novo mundo; Fabiana Valdoski, pelo apoio e pelo carter; Ftima, quem me olhou por trs do ombro.

Agradeo especialmente a Paula Takada, quem : .

A Karina Santos, favelada, negra, mulher, jovem; a quem disseram que no era nada, e que na luta fez o tudo.

Dona Lourdes, pela generosidade; ao seu Emlio, pelo Corinthians. minha famlia, sempre presente e paciente em minhas ausncias. Por tudo o que me deram: Dalvinha, Daniel, Margarida, Lucas, Valdir e Aline. Ao meu pai Daniel DAndrea de Turdera. Pela capacidade de renascer.

minha me Dalva da Silva, Pelo impulso vital. Eu sei quem trama, e quem est comigo.

VIII

ResumoEsta dissertao trata dos conflitos entre distintos agentes sociais pelo espao urbano na metrpole paulistana. Para tanto, descreve e analisa dois eventos ocorridos na regio sudoeste: a compra de setenta barracos por parte de uma construtora na favela Jardim Panorama e uma reintegrao de posse na favela Real Parque. Depreendem-se da descrio e da anlise de ambos os eventos basicamente trs fenmenos: o aprofundamento do processo de privatizao da gesto urbana j observado em outros estudos, sobretudo na regio sudoeste da metrpole; a reconfigurao do campo de conflito expresso na relativa diminuio da presena dos movimentos sociais urbanos e do poder pblico como agente mediador dos eventos em questo, que foram protagonizados por empresas, ONGs, advogados e movimento hip-hop; por fim, apresentam-se mecanismos de deslegitimao da populao pobre como interlocutora. Para esta dissertao, esses conflitos constituem processos de segregao scioespacial.

Palavras-chaves: segregao scioespacial; favela; conflitos na produo do espao; poltica urbana; capital imobilirio.

IX

AbstractThis dissertation deals with the conflicts between distinct social agents for the urban space in the So Paulo metropolis. In such a way it describes and analyzes two events occurred in the southwestern region: the purchase of seventy barracos (precarious dwelling) by a constructor in the slum quarter Jardim Panorama and a reintegration of ownership in the Real Parque slum quarter. From the description and the analysis of both events, we basically infer three phenomena: the deepening of the process of privatization of the observed urban management, already observed in other studies, specially in the southwestern region of the metropolis; the reconfiguration of the field of express conflict in the relative reduction of the presence of the urban social movements and the public power as mediating agent of the events in question, that had been carried out by private companies, NGOs, lawyers and hip-hop movement; and finally, mechanisms of disqualification of the poor population as interlocutor are presented. For this dissertation, these conflicts constitute processes of social-spatial segregation.

Keywords: social-spatial segregation; slum quarter; conflicts in the production of the space; urban politics; real estate capital.

X

ResumenEsta investigacin aborda los conflictos entre distintos grupos sociales por el espacio urbano en la ciudad de Sao Paulo. Para ello, describe y analisa dos hechos ocurridos en la regin sudoeste: la compra de setenta viviendas por una empresa de construccin en la favela Jardim Panorama y una reintegracin de propriedad en la favela Real Parque. Se concluye de la descripcin y del anlisis de los dos hechos fundamentalmente trs fenmenos: la profundizacin del proceso de privatizacin de la gestin urbana observada en otras investigaciones; la reconfiguracin del campo de conflicto expresada en la relativa disminucin de la presencia de los moviminetos sociales urbanos y del gobierno como institucin mediadora de estos hechos, que fueron protagonizados por empresas, ONGs, abogados y movimiento hip-hop. Al fin se presentan mecanismos de deslegitimacin de la poblacin pobre como interlocutora. Para esta investigacin, estos conflictos constituyen procesos de segregacin scioespacial.

Palabras-clave: segregacin scioespacial; favela; conflictos en la produccin del espacio; poltica urbana; capital imobilirio.

XI

SUMRIO Nas Tramas da Segregao: O Real Panorama da Plis Apresentao...........................................................................................................................................1 Introduo...............................................................................................................................................8 Os vetores de expanso...........................................................................................................................10 O vetor sudoeste.........................................................................................................................12 As favelas da regio sudoeste.......................................................................................14 Captulo I - Nas Tramas do Jardim Panorama.................................................................................18 A favela Jardim Panorama......................................................................................................................19 O Empreendimento Parque Cidade Jardim.............................................................................................24 Os rumores de remoo: agentes em ensaio...........................................................................................32 A Unio de Moradores da favela Jardim Panorama..................................................................33 O Projeto Casulo........................................................................................................................35 A assessoria tcnica Usina.........................................................................................................42 As ZEIS e as Operaes Urbanas.................................................................................46 As ZEIS............................................................................................................47 As Operaes Urbanas Consorciadas...............................................................48 O movimento hip-hop: uma alternativa contra-hegemnica.....................................................50 O protesto: o pice..................................................................................................................................52 Ascenso e queda da organizao popular................................................................................56 Os Advogados.........................................................................................................................................61 A indenizao de 40 mil reais.................................................................................................................64 Captulo II Nas Tramas do Real Parque.........................................................................................71 A favela Real Parque..............................................................................................................................72 Os antecedentes da reintegrao de posse: do ensaio ao espetculo......................................................78 Vaquinha para vizinhos..........................................................................................................80 A Ponte Estaiada: o concreto e o smbolo.................................................................................81 A Vila Nova...............................................................................................................................85 Novas formas de velhos arranjos: a histria do terreno da Vila Nova..........................87 A EMAE: guas passadas..........................................................................................................92 A imprensa: o invisvel..............................................................................................................94 A reintegrao de posse: um espetculo exemplar.................................................................................96 Por dentro da favela...................................................................................................................99 O perodo aps a reintegrao de posse: interesses expostos...............................................................102 O poder pblico: o indizvel....................................................................................................103 De volta a EMAE: guas turvas..............................................................................................107 A SARP: terceiras intenes...................................................................................................114 O Projeto Casulo: lagarta ou borboleta?.................................................................................117 Consideraes Finais..........................................................................................................................131 Um Espao e um Tempo......................................................................................................................131 O Estado e a privatizao da gesto urbana.........................................................................................137 Os agentes e a reconfigurao do campo de conflito...........................................................................145 A invisibilidade da pobreza..................................................................................................................150 Bibliografia..........................................................................................................................................152

Apresentaoas perguntas nos ajudam a caminhar Lema de tribos indgenas do sul do Mxico

O trajeto Era uma vez na metrpole... esta com certeza uma boa frase de apresentao do percurso da presente pesquisa. Embora o ponto final desta seja a problematizao de eventos ocorridos em duas favelas localizadas na regio sudoeste da metrpole, seu caminho esteve permeado de outras localidades que, mesmo no fazendo parte deste resultado, certamente ajudaram a constru-lo. De fato, este trabalho de muitos lugares, muitas pessoas e muitos trajetos. Esta pesquisa comea em tempos anteriores ao labor intelectual stricto sensu. De certo, o crescimento na periferia da metrpole construiu as indagaes pessoais que se transformariam em temas de pesquisas posteriores. Em busca do conhecimento do funcionamento da metrpole, buscava respostas para as perguntas derivadas de minha localizao geogrfica e posio social. Inicialmente, o objetivo desta pesquisa era o de realizar um estudo sobre as distintas dimenses da segregao scioespacial em duas localidades da metrpole: o distrito de Cidade Tiradentes e a favela de Paraispolis. Este objetivo de pesquisa derivava do trabalho realizado no CEM (Centro de Estudos da Metrpole), onde aprofundei o estudo de ambas localidades por meio da realizao de quatro iniciaes cientificas. J com a pesquisa de mestrado em andamento, fui convidado para colaborar como educador na assessoria tcnica Usina. O conhecimento acumulado sobre a favela de Paraispolis, e por conseqncia, sobre a lgica urbana da regio sudoeste foi o preditor para o convite por parte da instituio. O trabalho a que fui convidado consistia na realizao de um curso de educao popular para jovens da favela Jardim Panorama, ameaada de remoo. Era o ano de 2006. Novos rumos, outras intervenes, grandes descobertas. Os trs meses programados para o referido trabalho em forma de interveno pontual se transformaram em oito longos meses de presena na favela, constituindo relaes e percebendo as relaes constitudas. Um ano depois, enquanto dava seqncia ao tema inicial da pesquisa, fui convidado para participar da Comisso de Habitao dos Moradores da favela Real Parque. O conhecimento acumulado sobre a dinmica social das favelas de Paraispolis e Jardim Panorama foi desta vez a causa do referido convite. Passei ento a acompanhar as reunies da ainda incipiente comisso.

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O tempo passava. Cada vez conhecia mais e analisava o vivido. Tudo era acmulo. Pessoas, lugares, trajetos, instituies...Na delicada trama das disputas pelo espao na regio, minha posio era a de observador e interventor. Qui referncia. Fim de 2007. A pesquisa de mestrado encaminhava-se para sua reta final. Faltava colocar no papel o teorizado das dimenses da segregao em Paraispolis e Cidade Tiradentes. Tudo muito claro. Fim de 2007. Um evento inesperado seria o ponto de inflexo da trajetria acadmica. Uma inesperada reintegrao de posse ocorreria na favela Real Parque. Do susto indignao, o evento ativou a sensibilidade humana. Ativou tambm o conhecimento acumulado at ali sobre a questo urbana e as dimenses polticas e econmicas produtoras da segregao scioespacial. Pelo acaso e pela escolha, o fato que me vi enredado num turbilho de acontecimentos. O papel de referncia e conselheiro desempenhado at aquele momento me colocou na inescapvel posio de linha de frente das negociaes com todos os envolvidos na reintegrao de posse. O vivido foi intenso. As descobertas foram muitas. A posio cognitiva era nica. Diante da surpresa colocada pelo mundo, o labor acadmico no poderia ficar impune. Em janeiro de 2008, a cinco meses da entrega desta dissertao, mudei o tema. Comeava naquele momento uma verdadeira corrida contra o tempo para terminar a pesquisa, transformando todo o vivido, espcie de trabalho de campo no planejado, em questes sociolgicas. Assim sendo, o objetivo desta pesquisa apresentar as tramas que produziram socialmente dois fatos: a compra setenta barracos na favela Jardim Panorama e a reintegrao de posse na favela Real Parque. At um certo momento, j aps a referida mudana de tema, a favela de Paraispolis ainda fazia parte desta pesquisa. Pretendia estudar a construo social da urbanizao de Paraispolis e os interesses em jogo. Contudo, tive que abandonar o intuito por falta de tempo. Ainda que tenha realizado trabalhos de campo durante muito tempo nessa favela, no conseguiria aprofundar-me teoricamente sobre a urbanizao. Com a previso de que faltaria esse tempo, exclui a favela de Paraispolis como foco central da pesquisa. Contudo, dado o seu tamanho e sua importncia na regio, Paraispolis aparecer de forma recorrente nesta pesquisa, como necessrio contraponto. Certamente, todas as pesquisas por mim realizadas nessa favela contriburam de forma decisiva para o entendimento da dinmica das vizinhas favelas Jardim Panorama e Real Parque. Esta contribuio percorrer todo o texto em forma de citaes em relao ao que ocorre na favela de Paraispolis. 2

O mtodo Para a reconstruo analtica dos dois fatos vividos presencialmente, a pesquisa utiliza como recurso terico metodolgico o que Vera Telles denominou cenas descritivas. A passagem abaixo explicita essa forma de reconstruo e anlise dos fatos:

No se trata de partir de objetos ou entidades sociais, tal como se convencionou definir de acordo com os protocolos cientficos das cincias sociais (a violncia ou o crime organizado, ou ento o trabalho ou a moradia), mas sim de situaes e configuraes sociais a serem tomadas como cenas descritivas, que permitam seguir o traado dessa constelao de processos e prticas, suas mediaes e conexes (Telles, 2007: 208)

A partir dessa senda, analisar os eventos pesquisados enquanto cenas descritivas mobilizar os agenciamentos e as conexes dos fatos ocorridos aos macro-processos, recuperando e colocando em evidncia as distintas dimenses que perpassam e do forma a esses eventos. Assim sendo, analisar a compra de barracos na favela Jardim Panorama e a reintegrao de posse na favela Real Parque por meio do recurso das cenas descritivas tentar sintetizar as mltiplas determinaes que produziram socialmente esses mesmos fatos. Procurou-se ento colocar em relevo a dinmica social que os produziu, e tambm os desdobramentos desses dois fatos no que tange s personagens protagonistas: os agentes. Cabe ressaltar que o fio condutor desta pesquisa ser a relao entre os agentes e o posicionamento destes em relao a cada um dos eventos. A palavra trama utilizada nesta pesquisa pretende dar conta de uma srie de alianas, jogos de interesses, conflitos e conexes entre esses agentes. A produo social dos fatos trabalhados na pesquisa foi vista como um verdadeiro tecido que vai sendo costurado pela interveno desses agentes sociais. Dessa forma, partiu-se do emprico, abstraiu-se com o intuito de se analisar a descrio do emprico para ento chegar ao concreto pensado. Pretende-se ento entender o emprico ao coloc-lo em relevo para posteriormente pensar sobre ele, mas a partir dele mesmo. Sobre o caminho a ser percorrido por esta pesquisa, vale novamente citar Vera Telles, que prope: um trabalho descritivo que escapa seja da abstrao desencarnada dos nmeros e indicadores, seja da referncia exclusiva (e problemtica) ao local, espaos ou microespaos das comunidades (Telles, 2006: 72). Baseando-se na assertiva acima colocada, para a pesquisa, partir do emprico no significa recriar o localismo, como se as questes levantadas nas duas favelas estudadas pudessem ser 3

resolvidas no aprofundamento do trabalho de campo nos prprios lugares. Para a pesquisa, o trabalho de campo no local indispensvel, de forma que a riqueza ofertada pelo trabalho emprico deve ser levada s ltimas conseqncias, justamente devido ao fato de que essa riqueza de evidncias se conecta por meio de mediaes, conexes e trilhas a dinmicas ocorridas no exterior dos locais, contribuindo para conformar a realidade observada no trabalho emprico do qual se parte. Para a reconstruo social de dois fatos ocorridos nas favelas Jardim Panorama e Real Parque, esta pesquisa utilizou-se de uma srie de instrumentos metodolgicos. Assim como os fatos so multiplamente determinados, a reconstruo descritiva e analtica desses mesmos fatos foi realizada com o aporte de inmeros instrumentos, de forma que cada um deles iluminou de maneira original os fatos, os fios e conexes dos fatos aos agentes e por fim aos condicionantes sociais do interesse e das aes desses agentes. Dessa forma, para a realizao desta pesquisa foram utilizados os seguintes recursos metodolgicos:

a) Observao participante: A participao ativa em diversas situaes devido posio do pesquisador no campo foi um frtil manancial de informaes. Dessa forma, reunies, aulas, manifestaes, dentre outras formas de dilogo com os agentes envolvidos transformaram-se em momentos de intenso acmulo de informaes sobre os fatos vivenciados e recriados analiticamente pela pesquisa. Algumas falas descritas nesta pesquisa so advindas destes momentos de participao nas mais diversas ocasies e situaes. b) Etnografia: A descrio etnogrfica de agentes sociais foi utilizada em larga escala nesta pesquisa, sobretudo nos momentos que exigiam menor interveno por parte do pesquisador. A descrio dos cenrios, das posturas e das posies dos agentes em distintas situaes foi indispensvel para a anlise das posies ocupadas e dos interesses defendidos por cada um desses agentes. c) Entrevistas: Foram realizadas entrevistas com pessoas que do ponto de vista da pesquisa eram importantes para o entendimento das situaes descritas e analisadas. Dessa forma, lideranas, funcionrios de entidades, moradores, dentre outros, foram entrevistados pela pesquisa. Estas 4

entrevistas foram gravadas, mas a identidade dos entrevistados foi ocultada quando necessrio ou quando o entrevistado assim o quis. Este fato no uma perda para a pesquisa, pois o que importa de fato a posio ocupada pelo agente e o interesse motivador das aes. Cabe ressaltar tambm que algumas pessoas se negaram a dar entrevistas. d) Anlise de documentos: Foram analisados documentos histricos; decises judiciais; arquivos da imprensa escrita e falada; stios na internet; materiais de propaganda, dentre outros.

A exposio A exposio do tema em questo na pesquisa, - as articulaes e os interesses que construram socialmente dois fatos: a compra de barracos na favela Jardim Panorama e a reintegrao de posse na favela Real Parque obedecer prpria ordem dos acontecimentos, dado que, como uma linha de continuidade, um resultou no outro. Dessa forma, a apresentao das tramas do Jardim Panorama no captulo anterior s tramas do Real Parque se deve justamente porque h um necessrio desdobramento entre um e outro, como se ver. A opo de dividir os captulos por favelas, e no por temas transversais, alm de seguir a linha de continuidade j comentada, oferece coeso abordagem e anlise dos temas. Esta aposta metodolgica , para a pesquisa, a mais apropriada para a explanao com coerncia e clareza a temtica em questo. Na introduo da presente dissertao ser abordado o contexto das remoes de favelas na regio sudoeste de So Paulo, guisa de entendimento dos temas tratados. Cabe ressaltar que no se trata de um captulo terico introdutrio, mas sim de uma aproximao ao tema. O Captulo I, Nas Tramas do Jardim Panorama, retratar a construo social de um fato: a compra de setenta barracos da favela por parte de uma construtora. O fio condutor da construo do episdio ser a atuao de algumas entidades aqui denominadas como agentes sociais. O captulo inicia-se a partir de um levantamento sobre a origem da favela Jardim Panorama e seu crescimento posterior tributrio ao crescimento do mercado imobilirio ao seu redor. A partir da abordagem da articulao laboral entre a favela e o entorno rico, ser analisado como o avano das elites na metrpole por sobre o vetor de expanso sudoeste modifica os espaos gerando novas relaes sociais, e modificando as j existentes. A partir da produo social do espao com a chegada do Empreendimento Parque Cidade Jardim, uma srie de novos arranjos passou a ocorrer entre os agentes na favela. Estes arranjos foram sempre condicionados 5

pela posio de cada um dos agentes e por seus interesses, condicionados por sua vez por processos sociais mais amplos. Cabe destacar que neste captulo a cena descritiva em questo ser analisada ao final do mesmo. Logo, sero feitos apontamentos do que poder suceder a favela nos prximos anos de acordo com os arranjos consolidados no presente. Diferentemente, no Captulo II, Nas Tramas do Real Parque, a cena descritiva, ser retratada na metade do captulo. Dessa forma, analisa-se a construo social da reintegrao de posse, mas tambm os desdobramentos posteriores ao fato. O intuito do captulo demonstrar a atuao de algumas instituies antes, durante e depois da referida reintegrao de posse, e de como este evento est articulado ao avano das elites pelo vetor sudoeste. Contudo, ser nas Consideraes Finais onde ser articulada a produo social do espao na regio sudoeste, que redunda em segregao scioespacial, s novas configuraes da sociedade brasileira derivadas de mudanas estruturais ocorridas na economia mundial nas ltimas dcadas. Ao final, o que se pretende demonstrar com esta pesquisa so as conexes existentes entre fatos ocorridos em duas favelas e os macro-processos que permeiam a sociedade como um todo.

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IMAGEM 1 Foto area de parte da regio sudoeste de So Paulo com indicao de locais citados no texto

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IntroduoEsta dissertao trata de dois eventos ocorridos em favelas localizadas na regio sudoeste da metrpole paulistana: a compra de setenta barracos na favela Jardim Panorama efetuada por uma construtora e uma reintegrao de posse ocorrida na favela Real Parque. Partindo desses dois eventos, o objetivo do trabalho descrever e analisar a produo social do espao urbano tomando como elemento principal dessa produo a disputa entre distintos agentes. Para tanto, a descrio e a anlise dessa produo se realizaro evidenciando-se as articulaes e as conexes entre esses agentes, bem como o posicionamento de cada um deles nos eventos ora apresentados. Ou seja, pretende-se por meio da descrio e da anlise das relaes sociais existentes entre esses agentes evidenciar os interesses que permeiam as disputas pelo espao nessa regio. Nos dois casos estudados, os agentes envolvidos e a forma como foram montadas as articulaes entre eles derivam da proximidade entre bairros ricos e favelas, caracterstica peculiar dessa regio. Essa proximidade uma dentre vrias especificidades da regio sudoeste, como a concentrao das moradias da populao de alta renda, que ao longo do trabalho denomina-se elite, e a produo social desse espao na metrpole, sobretudo derivada da ao do capital imobilirio. A principal caracterstica dessa produo a valorizao da regio decorrente de grandes somas de investimentos pblicos e privados. Logo, essa valorizao desdobra-se na atuao poltica e econmica de agentes, sobretudo ligados ao setor imobilirio, cujos interesses so extrair ganhos oriundos dessa valorizao, da qual so tambm produtores. Faz-se necessrio ressaltar que, ainda que a iniciativa privada, sobretudo enquanto capital imobilirio, atue em todas as regies da metrpole com o intuito de produzir o espao de acordo com seus interesses, na regio sudoeste onde age com maior fora poltica e econmica, dado o potencial de valorizao dessa regio. Partindo do objetivo principal, ou seja, descrever e analisar a produo social do espao urbano por meio da disputa entre distintos agentes em dois eventos especficos procura-se desenvolver trs discusses ao longo da dissertao. A principal delas refere-se aos mecanismos e s mediaes pelos quais vem se processando a privatizao do espao e da gesto urbana. Essa privatizao do espao e da gesto urbana efetuada pela ao de empresas, sobretudo ligadas ao setor imobilirio, e das elites moradoras da regio. de se notar como o papel desempenhado pelo Estado nos eventos relatados o de executar decises formuladas pelas elites moradoras da regio e por

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essas empresas. Cabe lembrar que o Estado efetua essas decises polticas por meio de sua ao ou de sua omisso, como se ver no decorrer do texto. O caso da favela Jardim Panorama , nesse sentido, particularmente importante por indicar, a rigor, uma gesto privada do espao urbano. De fato, como se mostrar na seqncia desta dissertao, a remoo de parte da favela deu-se sem a participao do Estado, que se isentou de uma negociao permitindo que agentes privados com fora desigual resolvessem uma questo ligada apropriao e ao uso de um determinado terreno. No caso da favela Real Parque, demonstrar-se- como o Estado foi instrumentalizado para agir de acordo com interesses privados, subordinando-se politicamente a uma lgica econmica e oriunda de outras esferas. Cabe destacar ainda que essa operacionalizao efetuada pelo Estado foi permeada por uma srie de irregularidades. A segunda questo que se pretende discutir diz respeito a reconfigurao do campo de conflito pela presena de novos agentes na disputa pela produo e apropriao do espao. Diferente da lgica dos movimentos sociais que marcou o cenrio urbano em dcadas passadas com enfrentamentos polticos nos quais o Estado era o epicentro de reivindicaes por direitos sociais, v-se agora um campo poltico que se define pela presena atuante de outra gama de agentes cujas aes baseiam-se em um leque mais complexo de matrizes. Dessa forma, a reconstruo e a anlise desses dois eventos mostra uma disputa e uma produo do espao urbano, tendo como protagonistas construtoras, advogados, lideranas comunitrias, movimento hip-hop, assessorias tcnicas, ONGs, empresas privadas, associaes de moradores da elite, dentre outros. Uma terceira questo a ser discutida relaciona-se dificuldade de organizao poltica da populao pobre para se contrapor aos interesses da iniciativa privada e da elite moradora do entorno. Essa dificuldade relaciona-se tambm constante operao de inviabilizar a construo de fruns pblicos de discusso, de forma que esses agentes tm dificuldade de expressar suas demandas publicamente. Para a reconstruo desses dois eventos, toma-se como pressuposto sociolgico a exigncia de sua contextualizao no espao e no tempo. De fato, somente um espao e um tempo especficos foram capazes de produzir e condicionar agentes que por sua vez produziram os eventos aqui relatados de uma determinada maneira. O espao em questo a regio sudoeste da metrpole paulistana. O tempo, o incio do sculo XXI, permeado de mudanas ocorridas em nvel mundial, e que se desdobram na organizao de nossa sociedade. Essas mudanas originam-se, sobretudo, na mudana do papel do Estado em nvel mundial e na reorganizao do mundo do trabalho. Observando as 9

mudanas ocorridas, mas direcionando sua questo para a produo do espao, recorre-se a uma pergunta do urbanista Flvio Villaa:Por quais mediaes passam as transformaes socioeconmicas nacionais ou planetrias at se manifestarem em transformaes na estrutura intraurbana de nossas cidades? Para ns, passam pelas suas estratificaes sociais; pelo desnvel de poder econmico e poltico entre as classes em nossas metrpoles; passam pela dominao que se d por meio do espao urbano (Villaa, 1998: 33).

Portanto, importa reter o fato de que os agentes em disputa nos eventos relatados so frutos das mudanas ocorridas em nvel mundial. Sero abordados esses agentes e as especificidades desse tempo histrico na seqncia desta dissertao. A ttulo de introduo ao que ser detalhado nos dois captulos seguintes, importa contextualizar a produo social do espao na regio sudoeste de So Paulo. Para tanto recorrer histria desse espao, de modo que, a partir deste ponto, ser abordada a produo de localizaes na metrpole, relacionando-a produo e distribuio da riqueza e da pobreza na sociedade. A partir disso se discutir o surgimento e a existncia das favelas da regio sudoeste.

Os vetores de expansoA produo e a distribuio desigual da riqueza no sistema capitalista tm como uma de suas expresses a diviso da sociedade em classes sociais. Diviso que se verifica na forma diferenciada de acesso produo e apropriao dos recursos materiais e culturais produzidos em toda sociedade, por parte dos indivduos que a compem. Inserida numa lgica capitalista de produo e apropriao da riqueza, a produo social do espao tambm acontece expressando uma marcada desigualdade entre os recursos oferecidos pelos diferentes espaos produzidos. Dessa forma, condio sine qua non desse modo de produo econmico a separao espacial entre as classes sociais, separao que tambm expresso da possibilidade de apropriao desses espaos. separao espacial pode-se denominar segregao espacial. A produo do espao, porm, vincula-se produo e distribuio social da riqueza. Portanto, neste trabalho denomina-se segregao scioespacial separao entre as classes sociais no espao urbano socialmente produzido. A segregao scioespacial, como processo social e histrico, adquire formas distintas dependendo da poca histrica e da sociedade onde ela ocorre. Em seu livro Espao Intra-Urbano no Brasil, o urbanista Flvio Villaa aponta que a separao entre as classes 10

sociais no espao define-se pela localizao das elites e pelos recursos de infra-estrutura, de acessibilidade e pela organizao da circulao urbana produzidos de forma a favorecem fundamentalmente a essa classe social. As elites, ento, por meio de mecanismos polticos, econmicos e ideolgicos, produziriam as centralidades das metrpoles prximas aos locais onde residem (Villaa, 1998: 335). Segundo a explicao do autor, a segregao scioespacial seria principalmente um fenmeno que ocorre pela ao dessa classe. Analisando o processo histrico de conformao das metrpoles brasileiras1, o autor aponta uma regularidade: em todas as metrpoles as elites deslocaram-se pelo espao urbano, ocupando reas distintas com o passar do tempo2. Ressalta o autor, contudo, que este deslocamento ocorreu sempre na mesma direo. A esta direo do deslocamento das elites Flvio Villaa conceituou como vetor de expanso. Cabe ressaltar que as classes populares tambm vetores de expanso. Por serem demograficamente mais representativas, contudo, as classes populares tendem a uma maior espraiao no espao urbano3. No que diz respeito metrpole paulistana, Villaa aponta que a definio sobre quais regies abrigariam as elites e as classes populares no espao urbano aconteceu no final do sculo XIX. Essa definio foi decorrente do primeiro surto de industrializao. Naquele momento, operrios fixaram suas moradias prximas s indstrias dos bairros do Brs e da Moca, ao lado do eixo ferrovirio da Estrada de Ferro Santos-Jundia. A partir dessa definio inicial de onde se localizariam as moradias populares, as elites buscaram as regies mais altas e mais aprazveis, no que hoje so os arredores da Praa da S, para depois cruzarem o Rio Anhangaba e fixarem-se ao redor da Praa da Repblica. Dada essa definio dos locais de fixao das moradias, definiram-se os vetores de expanso das classes na cidade de So Paulo: as classes baixas para alm do Rio Tamanduatei e da linha do trem, ou seja, para as zonas norte, sudeste e leste, e as classes altas para o vetor ConsolaoHigienpolis (ou seja, a proto zona sudoeste) e o vetor da avenida So Joo. (Villaa, 1998: 195). Longe de indicar uma dicotomia entre os vetores de expanso leste e sudoeste da metrpole, a distribuio inicial das classes sociais no espao urbano o indcio do que1

As metrpoles estudadas pelo autor so: Rio de Janeiro, So Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife e Porto Alegre (Villaa, 1998). 2 Sobre a regularidade observada na produo de distintos espaos urbanos, escreveu o autor: (...) se todos vm sendo produzidos no mesmo pas, pela mesma formao social, num mesmo momento histrico os ltimos 150 anos -, sob um mesmo modo de produo, atravs das mesmas relaes sociais e sob o mesmo Estado, deve haver muito em comum entre seus espaos (Villaa, 1998:11). 3 Para um melhor entendimento da construo social dos vetores de expanso, ver o Captulo 7, A segregao urbana, e o Captulo 8, Os bairros residenciais das camadas de alta renda, do livro Espao Intra-Urbano no Brasil (1998), de Flvio Villaa.

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seriam futuramente as marcadas desigualdades nas formas de uso e de ocupao dessas distintas regies. Para o entendimento da concentrao da riqueza na regio sudoeste, necessrio apreender como historicamente algumas regies se consolidaram como sendo ocupadas principalmente pelas classes populares. Para esta dissertao, o espao urbano deve ser entendido como uma totalidade. Logo, s existe o desaparecimento de favelas nos bairros de elite se existirem localidades cuja produo social do espao destinou-as populao pobre. Seguindo o mesmo raciocnio, se de fato a zona leste caracterizou-se historicamente como a mais antiga regio onde se assentou a populao operria e, num segundo momento, a migrao nordestina, porque a ocupao dessa regio foi fruto de uma dinmica urbana que se correlaciona com a localizao das elites, da infra-estrutura urbana e dos preos dos terrenos. Dessa forma, e sendo, sobretudo a protagonista de uma espacialidade segregadora na cidade, as elites seguiram o vetor sudoeste para assentar suas residncias. sobre esse vetor que discorreremos a partir de agora.

O vetor sudoesteDesde a fixao de seus casares nos arredores da Praa da Repblica, as classes abastadas seguiram sempre a mesma direo de expanso. Aps essa primeira ocupao, subiram o espigo da Paulista, desceram para a outra face da encosta e atravessaram o Rio Pinheiros. O trajeto percorrido foi: Vila Buarque, Vila Penteado, Higienpolis, Cerqueira Csar, Jardins e Pinheiros. Chegando no limite imposto pelo rio, h uma bifurcao que expressa uma dada especializao pretendida pelas classes altas no que tange ocupao do espao urbano. Para alm do Rio Pinheiros, o residencial Morumbi. Antes do rio, os bairros predominantemente comerciais do Itaim-Bibi e de Pinheiros, e a hoje tambm comercial Vila Olmpia4. No de se estranhar que o vetor das novas centralidades, como apontado por Heitor Frgoli (2006)5, siga o vetor de expanso das camadas mais altas da populao, como analisado por Villaa (1998).

Sobre as mudanas ocorridas no padro de ocupao da Vila Olmpia, antigo bairro residencial e hoje padecendo de um boom imobilirio que muda substancialmente suas feies, ver o captulo 3, Alianas estratgicas na produo do espao urbano do livro So Paulo Cidade Global (2007), de Mariana Fix. 5 Em seu livro Centralidade em So Paulo (2006), Heitor Frgoli analisa os conflitos e as negociaes entre diversos agentes sociais nas disputas internas a cada centralidade e tambm provocando disputas entre estas. Seguindo uma ordem histrica, o autor define e estuda trs centralidades na metrpole paulistana, a saber: o Centro, a avenida Paulista e a avenida Luis Carlos Berrini.

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Ao redor do vetor sudoeste formou-se a regio da cidade de So Paulo com os melhores ndices socioeconmicos e os melhores indicadores de desenvolvimento humano. Os indicadores de homicdios so baixssimos, equiparando-se aos ndices de cidades europias. nela que se localizam a avenida Paulista e a avenida Lus Carlos Berrini, onde se encontram as sedes e os escritrios das maiores empresas e bancos nacionais e transnacionais. Nessa regio tambm onde relativamente existe o maior nmero de postos de trabalho se observado o contingente populacional morador da regio e em comparao com outras regies da metrpole. (Gomes & Amitrano, 2005). Dessa forma, existe todo um aparato de infra-estrutura urbana de transporte destinado a atender essa regio. Enfim, esta regio, tambm denominada quadrante sudoeste, caracteriza-se por dispor de um elevado padro em diversos indicadores, e contrasta de forma patente com a pobreza das outras regies da cidade. (Marques & Torres, 2005; CEM, 2004a; CEM, 2004b). Nos ltimos vinte anos, o capital imobilirio provocou uma reordenao no espao urbano da metrpole paulistana. Um dos principais indicadores dessas modificaes foram os investimentos pblicos e privados em algumas reas da regio sudoeste. Grande parte desses investimentos foi decorrncia das Operaes Urbanas Faria Lima e gua Espraiada, que ocorreram por meio de articulaes entre o poder pblico e a iniciativa privada. O montante de investimentos utilizados nessas Operaes permitiu a construo de infra-estrutura urbana e a remoo das favelas existentes. Esses investimentos de recursos pblicos e privados tiveram como desdobramento posterior a substancial valorizao da regio (Fix, 2001; Fix, 2007). A partir da modificao de suas feies, a regio ao redor da avenida Lus Carlos Berrini passou a ser celebrada como o lugar da conexo entre So Paulo e o que se diz existir de mais moderno em termos de tecnologia, consumo e estilo de vida no mundo todo, sendo o smbolo urbano maior da abertura da economia brasileira e da mundializao do capital. O trabalho se debruar sobre essas Operaes Urbanas nos Captulos I e II, guisa de mostrar seu funcionamento e os reais interesses que subjazem essas intervenes. Pode-se afirmar, no entanto, que as intervenes exemplificadas por essas Operaes expressam uma modificao do papel do Estado no que diz respeito poltica urbana. Segundo o gegrafo David Harvey (2005), nas ltimas dcadas do sculo XX uma nova forma de interveno urbana passou a operar em vrias metrpoles mundiais, coadunando-se com as mudanas ocorridas na economia mundial e no papel do Estado. Essa nova forma de interveno urbana o autor conceituou como empreendedorismo urbano, e se baseia no aumento da importncia de agentes privados que buscariam intervir em determinados locais financiando e ditando a poltica urbana desses locais. Dessa forma, diminuiria a ao do Estado na planificao do 13

espao urbano, uma vez que o alcance dessa planificao seria limitada pelos locais geridos pela iniciativa privada. No coincidncia que a regio da metrpole paulistana onde esse empreendedorismo foi implementado de forma mais evidente tenha sido aquela onde se busca construir uma nova centralidade, justamente por onde avana o vetor de expanso das elites. desse padro de gesto urbana que derivam os acontecimentos aqui analisados, os quais, ainda que no faam parte do que est formulado nas Operaes Urbanas, so expresses de um tipo de gesto onde o Estado instrumentalizado para intervir em favor do capital imobilirio6.No o caso aqui de aprofundar o jogo de causalidades histricas e sociais inscritas nos vetores de expanso da cidade, em sua relao com os seus processos de urbanizao (Villaa, 1998). Importa apenas enfatizar que os vetores de expanso se consolidaram historicamente. Para certas regies, os vetores de expanso das classes populares, com um maior grau de espraiamento no territrio. Para uma regio especfica, o vetor de expanso das elites. No epicentro desse vetor de expanso, h evidencias de uma nova forma de gesto urbana cujo cerne a privatizao das decises e parcialmente dos investimentos e cujo intuito fundamentalmente a sua valorizao. Essa nova forma, conceituada por Harvey (2005) como empreendedorismo urbano, teve como principal expresso na metrpole paulistana as Operaes Urbanas Faria Lima e gua Espraiada. Entender a ocorrncia desses fenmenos, ou seja, a localizao das elites e uma nova forma de gesto do espao urbano, contribui de forma determinante para a anlise dos eventos ocorridos nas duas favelas da regio sudoeste estudadas por esta dissertao. A partir dessa contextualizao prvia sero discutidas as favelas da regio sudoeste.

As favelas da regio sudoesteSegundo Nabil Bonduki (1998), a primeira favela de So Paulo foi a Vrzea do Penteado surgida em 1942, nas proximidades da avenida do Estado. Num primeiro momento, as favelas de So Paulo surgiram no centro do municpio, seguindo uma tendncia de se instalarem prximas aos postos de emprego. Dcadas depois, entre 1970 e 1980, a populao das favelas no municpio aumentou consideravelmente. Para se ter uma idia desse crescimento, vale apontar que em 1973 a populao residente em favelas na cidade de So Paulo representava 1,3% do total da6

A especificidade do caso brasileiro no que se refere gesto privada de determinados espaos urbanos justamente a necessidade do Estado para implementao e operacionalizao dessa gesto. Ou seja, a formulao da poltica urbana desses locais privada, mas a gesto e muitas vezes os recursos so pblicos.

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populao (Bonduki, 264: 1998), e grande parte dessas favelas localizava-se no centro do municpio ou em seus arredores. Hoje, a populao paulistana residente em favelas est estimada em 11,1% (CEM, 2005:146) e a maioria desses assentamentos localiza-se em bairros distantes do centro e na divisa com municpios vizinhos. Desses dados pode-se depreender dois fenmenos quase que simultneos: por um lado, o aumento das favelas e da populao favelada no municpio; de outro, o desaparecimento das favelas da regio central e arredores. Dois importantes fatores para o crescimento da populao favelada nos ltimos trinta anos foram o empobrecimento da populao, com rebaixamento dos salrios, e a dificuldade de acesso aos meios formais de propriedade da terra, fundamentalmente pela elevao no preo dos terrenos. As favelas estudadas nesta dissertao so apenas algumas de uma grande quantidade desse tipo de assentamento existente na regio sudoeste de So Paulo. Dois fatores que incidiram decisivamente na edificao das favelas na regio foram a oferta de empregos na regio e a grande quantidade de terrenos ociosos, no utilizados devido especulao fundiria ou mesmo pela m qualidade destes. Consta nos registros da Sehab (Secretaria de Habitao de So Paulo) que Paraispolis foi fundada em 1937. Todavia, ainda que as caractersticas do assentamento original fossem precrias, no o eram a ponto de ser classificado como favela. A favela Real Parque foi fundada em 1956. A favela Jardim Panorama, um ano depois, em 1957. O surgimento dessas duas favelas aconteceu previamente expanso das construes do entorno, mas ambas cresceram e se adensaram a partir da oferta de emprego existente, sobretudo na construo civil7. Diferentemente, a favela de Paraispolis teve seu surgimento imediatamente ligado presena de empregos no entorno e necessidade de moradia da mo-de-obra trabalhadora na regio. Observando a mesma fonte de dados da Secretaria de Habitao de So Paulo8, foi possvel verificar como muitas favelas foram edificadas entre 1960 e 1970 em um eixo que une a Marginal Pinheiros ao bairro do Jabaquara. A explicao para a edificao desse cinturo de favelas naquele perodo histrico deveria ser estudado com mais preciso, ainda que sejam apresentadas algumas pistas neste texto. Cabe ressaltar, no entanto, que a exploso demogrfica da populao moradora em favelas em todo municpio de So Paulo, inclusive das favelas aqui estudadas, foi na passagem das dcadas de 1970 a 1980.A questo do crescimento das favelas Jardim Panorama e Real Parque derivada da demanda de trabalhadores residenciais na regio ser problematizada no incio dos Captulos I e II, Nas Tramas do Jardim Panorama e Nas Tramas do Real Parque, respectivamente. 8 www.habisp.inf.br7

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Apontando esse notvel crescimento da populao favelada na regio sudoeste a partir da dcada de 1970, Flvio Villaa discorreu sobre o fato afirmando que o assentamento dessa populao se deveu proximidade com os bairros de classe mdia e alta e pelas possibilidades empregatcias da regio. Afirma o autor: o preo do terreno e da casa no pesa mais na escolha da localizao como pesava antes; por isso, esses miserveis preferem ocupar terras na zona Sul, prximo ao quadrante sudoeste, do que na cada vez mais longnqua zona Leste (Villaa, 1998: 140). As favelas Jardim Panorama, Real Parque e Paraispolis cresceram moldadas pela necessidade, no entorno, de trabalhadores da construo civil e de manuteno predial, como tambm de servios domsticos. Pode-se, grosso modo, caracterizar essas favelas como uma continuao dos canteiros de obras da regio, ou seja, como um abrigo precrio de trabalhadores precarizados. Faz-se importante caracterizar a histria social dessas favelas, na medida em que houve tambm na periferia da zona sul de So Paulo um crescimento de assentamentos das classes populares, derivado da proximidade com o cinturo industrial de Santo Amaro e do entorno. Desse modo, favelas da regio tambm surgiram devido s possibilidades empregatcias oferecidas por indstrias, como o caso da favela Monte Azul (Ribeiro, 2007), e da favela Maracan (Telles, 2006), ambas localizadas no subdistrito do Jardim So Luiz e prximas ao referido cinturo. Essa dinmica de periferizao prxima daquela ocorrida no crescimento da zona leste. importante notar que a presena de favelas em regies nobres da metrpole no contradiz a tese de que a segregao scioespacial expressa-se na localizao das classes sociais em diferentes regies da metrpole. Sobre o assunto, informa Villaa:Tal como aqui entendida, a segregao um processo segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes regies gerais ou conjuntos de bairros da metrpole. Referindo-se concentrao de uma classe no espao urbano, a segregao no impede a presena nem o crescimento de outras classes no mesmo espao (Villaa, 1998: 142).

Foi possvel verificar, at agora, como as elites paulistanas consolidaram o vetor sudoeste para a localizao de suas residncias na metrpole, e de como essa regio consolidou-se no espao urbano como a mais valorizada. Problematizou-se tambm o crescimento das favelas nessa regio, dadas as possibilidades empregatcias existentes. No entanto, se num dado momento histrico a demanda por trabalhadores fez surgir e crescer a populao moradora em favelas na regio, nos ltimos anos esta padece de uma 16

dinmica social de expulso e remoo das favelas existentes. A partir de 1995, muitas favelas foram removidas no eixo da avenida gua Espraiada. Por sua vez, a favela do Jardim Edite foi diminuda at restarem apenas duzentos e cinqenta barracos. Essas remoes esto diretamente ligadas s intervenes pblico-privadas ocorridas por meio das Operaes Urbanas Faria Lima e gua Espraiada. (Fix, 2001; Fix, 2007). de se notar a existncia de um processo social que redunda em uma nova configurao espacial na regio sudoeste da metrpole paulistana, da qual uma das expresses mais evidentes o desaparecimento das favelas e o conseqente reassentamento dessa populao pobre em outras regies da metrpole, desdobrando-se em segregao scioespacial. De fato, esse processo de desaparecimento das favelas ocorre em toda regio sudoeste da metrpole, mas utiliza-se de um mecanismo distinto no caso de cada uma dessas favelas. Os principais deles so as remoes e as urbanizaes, que por sua vez acontecem por articulaes e tramas especficas dos locais onde ocorrem. A partir do Captulo I, ser problematizada a relao de duas favelas da regio, Jardim Panorama e Real Parque, com seu entorno, e justamente em um contexto de avano do capital imobilirio e de privatizao da gesto urbana, fundamentalmente nessa regio. Para tanto, discorrer-se- sobre os conflitos existentes entre diversos agentes presentes em cada uma delas. Ao final, pretende-se demonstrar como em cada uma das favelas estudadas houve um arranjo distinto, uma gama prpria de articulaes, uma peculiaridade nas tramas tecidas em cada um dos fatos reconstrudos e analisados. Contudo, por trs de cada uma das especificidades, h o denominador comum dos interesses de classe dos agentes do capital imobilirio. A problematizao desses mecanismos observados na reconstruo e na anlise dos dois eventos, e de como eles redundam em segregao scioespacial, o objetivo deste trabalho.

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CAPTULO I - NAS TRAMAS DO JARDIM PANORAMA

CAPTULO I NAS TRAMAS DO JARDIM PANORAMAShopping d R$ 40 mil para morador de favela se mudarTerreno ser incorporado rea verde de um condomnio de R$ 1,5 bilho Custo da desocupao da favela Jardim Panorama de R$ 2,8 milhes; morador s recebe cheque quando casa comea a ser demolida Muro divide novo empreendimento bilionrio de casas pobres vizinhas; Prefeitura foi Justia para reaver terrenoDANIEL BERGAMASCO DA REPORTAGEM LOCAL

A construtora JHSF est distribuindo cheques de R$ 40 mil para retirar cada uma das 70 famlias invasoras de um terreno que ser parte do projeto de um shoppingcondomnio orado em R$ 1,5 bilho, que ter apartamentos de at R$ 18 milhes. As casas formam parte da favela Jardim Panorama, na zona sul de So Paulo. O custo total da desocupao, cujo acordo foi assinado aps reunies das partes para que a ao de despejo no seja levada adiante, de R$ 2,8 milhes -a construtora no confirma valores, mas a Folha teve acesso a comprovantes de depsito. No terreno, a construtora estender a rea verde do condomnio, que ser cercada por um muro. Do lado de l, a favela continua, em rea da Prefeitura, que tenta judicialmente o despejo dos barracos. Na ltima quarta-feira, uma fila de caminhes de mudana aportou na favela. Era preciso que a casa comeasse a ser demolida para o morador receber o cheque -a maioria acertou pagar o valor da compra da moradia nova no dia da mudana. Com os R$ 40 mil, possvel comprar, por exemplo, uma casa de um quarto na Pedreira (divisa com Diadema, a cerca de 15 km da favela). O empreendimento, batizado de Empreendimento Parque Cidade Jardim, ter shopping, spa e 13 torres, entre residenciais e comerciais. O morador poder trabalhar, comprar e ir ao mdico sem ultrapassar os muros do local. Folha de S. Paulo 17/06/2007

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CAPTULO I - NAS TRAMAS DO JARDIM PANORAMA

A favela Jardim PanoramaA compreenso das tramas que se tecem no cotidiano pode revelar um mundo desconhecido Dirce Koga

IMAGEM 2

Favela Jardim Panorama com a diviso interna de seus ncleos

A favela Jardim Panorama ocupa um terreno ngreme na margem oeste do rio Pinheiros, ao lado da avenida Naes Unidas, conhecida como Marginal Pinheiros. No sentido Jaguar-Santo Amaro, a favela localiza-se quinhentos metros aps a Usina de Traio e a Ponte Engenheiro Ari Torres, que liga a Marginal Pinheiros avenida dos Bandeirantes. A favela est limitada a oeste por terrenos vazios e manses do bairro do Morumbi. Ao sul, termina em um campo de futebol e em um condomnio fechado. A leste faz fronteira com a pista local da Marginal Pinheiros e ao norte com os muros do Empreendimento Parque Cidade Jardim, da Construtora e Incorporadora JHSF.

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CAPTULO I - NAS TRAMAS DO JARDIM PANORAMA

A populao de aproximadamente 1.600 habitantes da favela Jardim Panorama se divide em quatro ncleos principais (Usina, 2006). O primeiro deles seria o chamado Morro, ao norte da favela, composto por uma srie de casas de alvenaria e de madeira sobre a rua Armando Petrella. Esse ncleo tem a peculiaridade de estar afastado de todos os outros trs ncleos principais, ligando-se com esses apenas por meio da rua acima referida. Ao lado da rua, um matagal por sobre um terreno inclinado separa o Morro dos outros trs ncleos. A paisagem nesse ncleo, com casas cercadas de matos e rvores surpreende pelo bucolismo. difcil imaginar que ao lado de uma das principais artrias virias da cidade possa existir um ambiente semi-rural, como o ncleo Morro da favela Jardim Panorama. Os outros trs ncleos se distribuem ao sul, ao lado do campo de futebol da Sulamrica, como conhecido pelos moradores. Esse campo de futebol uma das principais entradas da favela e localiza-se em frente a um edifcio da empresa de mesmo nome. A partir do campo comea o ncleo da Rua de Baixo, que, como os outros dois ncleos vizinhos, o da Rua do Meio e o da Rua de Cima, possui casas de alvenaria justapostas a barracos de madeira e muitas vielas em seu interior. Esses trs ncleos possuem uma densa ocupao do solo. Contudo, o ambiente na favela normalmente tranqilo, e nos remete a um surpreendente aspecto interiorano no seio da metrpole. Segundo dados da SEHAB (Secretaria Municipal de Habitao), o primeiro registro de assentamento da favela Jardim Panorama ocorreu no ano de 1957. Muito provavelmente, esse primeiro registro se refere a uma rea localizada a oeste da atual favela, em uma ocupao em cima de um barranco. Nesse local, atual rua Roberto Chapi, existe hoje um conjunto de manses que foram construdas aps a remoo do primeiro ncleo da favela, tambm conhecido como Antiga Favela. A remoo dos moradores desse ncleo adensou os ncleos das partes mais baixas da favela, prximas Marginal Pinheiros. Os primeiros registros sobre a favela apontam que ela foi habitada por migrantes mineiros de uma mesma famlia. Os casebres encontravam-se separados uns dos outros por matagais e algumas reas de roados. Segundo um relatrio da COHAB (Companhia Metropolitana de Habitao de So Paulo):

As primeiras famlias ocuparam grandes faixas de terras e se estabeleceram na rea enquanto agricultores domsticos, com o cultivo de milho, arroz, feijo, abbora, couve, chuchu, mandioca e batata. Servindo, tambm de pastagem para criao de vacas, cavalos e porcos (COHAB, 2004: 9).

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CAPTULO I - NAS TRAMAS DO JARDIM PANORAMA

Nessa poca, no final da dcada de 1950, o Jardim Panorama no passava de uma periferia distante do municpio de So Paulo, localizada aps o rio Pinheiros e pertencente Fazenda do Morumbi, em meio a chcaras e stios. A mudana da forma de insero do espao do Jardim Panorama na produo econmica da metrpole acontece quando, em meados da dcada de 1950, a Imobiliria Morumbi passa a lotear terrenos inserindo a regio na lgica da construo e comercializao de residncias (COHAB, 2004: 9) dada a sua potencialidade de valorizao por estarem localizados na direo de expanso do vetor de ocupao da elite paulistana. Com o incio da urbanizao do bairro do Morumbi, foi necessria uma vasta mo-deobra que trabalhasse na edificao das manses e edifcios do bairro, bem como na implantao de infra-estrutura urbana na regio. Depois foram necessrios trabalhadores que realizassem as funes de manuteno predial e servios domsticos na vizinhana. Segundo Odette Seabra (1987), em trabalho sobre as vrzeas do rio Pinheiros, em meados da dcada de 1960 e diante das presses por desapropriao por parte do poder pblico, a Companhia Light, antiga proprietria dos terrenos, passou a vender rapidamente enormes extenses de terras nas imediaes do rio Pinheiros. Segundo a autora, esse perodo marca a transio de uma lgica de uso e de ocupao desses terrenos fundada nos embates entre a Companhia Light e a antiga populao ribeirinha para uma lgica ditada pelo mercado imobilirio. Escreve Seabra:A investida do poder pblico sobre as propriedades da Light, e a sua resposta quase que automtica de se desfazer das propriedades, ocorreu com uma rapidez assustadora e isso se explicaria, ao que parece, porque nesse perodo foi notria a ascenso econmica e poltica de empresas construtoras as quais impuseram sua lgica ao processo (Seabra, 1987: 253).

De fato, a pesquisa no conseguiu apurar se as terras adquiridas pela Imobiliria Morumbi pertenciam a Light. Existe a possibilidade de a Imobiliria ter negociado terrenos de particulares, ou comprado esses terrenos de distintos donos. Contudo, o fato que interessa a este trabalho a transformao ocorrida na regio, ou seja, a passagem de suporte a uma economia de semi-subsistncia, com produo e comercializao de produtos agrcolas, para uma lgica ditada pelo mercado imobilirio em todas as faces em que essa lgica mercantil opera, seja ela a da necessidade de mo-de-obra, seja ela a da especulao fundiria.

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CAPTULO I - NAS TRAMAS DO JARDIM PANORAMA

J na dcada de 1970 essa passagem estava completa. Em artigo de 19731, Lucio Kowarick aponta que, apesar da existncia de reas de roado na favela, a tnica das atividades profissionais j era imposta pela necessidade da redondeza de trabalhadores da construo civil. Essa afirmao confirmada pela imensa maioria das entrevistas realizadas pelo autor com habitantes da favela, que perambulavam pelas obras do entorno em busca de qualquer tipo de trabalho e vivendo em condies precrias. Segundo Kowarick:

Para os que se aventuraram na cidade grande, a passagem pela construo civil quase uma regra. No h muitas alternativas para o trabalhador sem o mnimo de qualificao. Alm disso, a possibilidade de morar na prpria obra reduz os gastos com a subsistncia pessoal (Kowarick, 1993: 167).

Dessa forma, a favela Jardim Panorama consolidava-se como um dos pontos de entrada e permanncia de migrantes que buscavam emprego no ramo da construo civil. Dado o crescimento do bairro do Morumbi, verificado pela construo de edifcios e manses e por obras de infra-estrutura urbana, a favela constitua-se como localizao privilegiada para tal intento. Um dos depoimentos recolhidos por Kowarick expressivo nesse sentido:

Eles ficavam assim amarrando para no fichar, tal, porque diz que o povo passava pouco tempo, poucos dias e saa, n. Ento no interessava fichar eles. Um outro posto que eu trabalhei, aqui na avenida Morumbi, eles iam fichar, mas eles queriam...(...) Depois que eu sa desse posto eu trabalhei 2 duas semanas numa obra ali, mas no dava tambm (Kowarick, 1993: 177).

Os dois locais citados pelo entrevistado, a avenida Morumbi e numa obra ali, denotam a existncia de possibilidades empregatcias na regio e de como os recm-chegados buscavam por meio dessas vagas inserir-se no mercado de trabalho. Esse caso um exemplo de milhares que poderiam ser citados no s na favela Jardim Panorama, mas em todas as favelas da regio. O que importa reter desses exemplos a necessria imbricao entre a urbanizao do Morumbi e dos bairros ricos do sudoeste do municpio de So Paulo e o nascimento, existncia e permanncia das favelas da regio, j que a existncia de um pressupe o surgimento do outro. De um lado a necessidade de mo-de-obra, do outro, a necessidade de emprego. Assim sendo, pode-se afirmar que as essas favelas nascem como um elemento necessrio das obras na regio.

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O referido artigo denomina-se Os Cidados da Marginal e composto por uma srie de entrevistas com moradores da favela Jardim Panorama, sendo um dos captulos do livro A Espoliao Urbana. 2 Depoimento do morador Otaviano, concedido a Lucio Kowarick.

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CAPTULO I - NAS TRAMAS DO JARDIM PANORAMA

Como na vizinha favela Real Parque, a exploso demogrfica da favela Jardim Panorama ocorreu entre os anos de 1980 e 1985, quando h adensamento da ocupao do espao e sub-diviso dos lotes existentes. Cabe ressaltar que servios pblicos bsicos como abastecimento de gua e eletricidade passam a existir nessa poca. A gua chegou em 1981 e o servio de eletricidade em 1982, dada a presso da demanda j consolidada na favela3. Nascida e crescida sob a regncia das edificaes do entorno, a favela Jardim Panorama passou a ser ameaada de desaparecimento pelo mesmo motivo que a fez nascer: a expanso do mercado imobilirio no bairro do Morumbi. Essa expanso transforma os terrenos existentes em grandes glebas valorizadas, que necessitam ser incorporadas pelo mercado no sentido de realizar os valores existentes no entorno. Desse modo, o processo de expulso da populao de baixa renda viabilizado por uma srie de mecanismos presentes nas disputas entre distintos agentes pela produo do espao. Este captulo pretende analisar justamente esses mecanismos, a partir dos agentes envolvidos nas tramas da favela Jardim Panorama. Como uma estrela, com ciclos definidos de nascimento, crescimento e morte, o ofuscamento da favela Jardim Panorama comeou em meados de 2005, quando ofertas para compra dos terrenos passaram a serem feitas aos seus moradores. Boatos de que a favela seria removida tambm comearam a correr por becos e vielas. No por acaso, ao lado da favela comeava a ser construdo um enorme empreendimento imobilirio, o Empreendimento Parque Cidade Jardim, estrela de primeira grandeza, dado o brilho que emana, mas tambm profundo e denso buraco negro, devido aos processos que oculta e energia social que retm.

Vale lembrar que no comeo dos anos 1980 ocorre um abrupto crescimento da populao favelada em So Paulo. Nessa poca tambm, no bojo das manifestaes protagonizadas pelo movimento sindical e pelos movimentos sociais, sobretudo por demandas urbanas, muitas favelas passam a se organizar. A Unio dos Moradores de Paraispolis, por exemplo, fundada em 1983. Com o fim do perodo militar e uma maior abertura poltica, foi possvel para essas populaes exercerem presso sobre o poder pblico guisa de conseguirem melhorias para suas ocupaes. A resposta do ento incipiente perodo democrtico se deu sob a forma do populismo de direita encarnado pelo malufismo e pelas intervenes sociais do campo liberal, expressas no caso pelo binmio Montoro-Covas. Sobre o assunto, escreve Feltran: o governo municipal de So Paulo, a partir de 1983, (...) passou a considerar os moradores das favelas como merecedores de servios pblicos de gua e luz. J no era possvel ignorar tanta gente, e marcava-se assim uma diferena importante em relao aos governos anteriores, cuja poltica para as favelas estava centrada nas tentativas de remoo (Feltran, 2007: 88). Diferentemente de outras favelas prximas, a favela Jardim Panorama no alcanou um grau qualitativamente significante no que diz respeito organizao poltica de sua populao, no conseguindo ir alm da conquista de infra-estrutura bsica para a favela. Discorre-se de forma aprofundada sobre a questo ao longo da dissertao.

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O Empreendimento Parque Cidade JardimAo que parece, ficamos finalmente modernos e as figuras de nosso atraso foram metamorfoseadas nos smbolos de nosso progresso Vera Telles4

IMAGEM 3 Perspectiva do Empreendimento Parque Cidade Jardim

Vizinho da favela Jardim Panorama, o Empreendimento Parque Cidade Jardim o maior empreendimento imobilirio em construo atualmente em toda Amrica Latina5. Classificado como AAA, ou Triple A, pela concentrao de servios de luxo, o supercomplexo imobilirio foi projetado para uma seleta e exclusiva clientela formada por milionrios dispostos a pagar R$ 1 milho e 800 mil para obter o menor dos apartamentos oferecidos, com 240 metros quadrados. Para aqueles dispostos a ratificarem a estrutura piramidal que conforma a distino dentro da distino (Bourdieu, 2007), existe a cobertura triplex com 2100 metros quadrados, vendida por R$ 16 milhes e 600 mil6. Todos os nmeros da obra so gigantescos, do tamanho das edificaes e dos apartamentos s cifras envolvidas.

Telles (2001: 141). O Shopping Cidade Jardim foi inaugurado no dia 30/05/2008. A inaugurao das torres de escritrios e residenciais est prevista para o fim do ano de 2008. 6 A disparidade social na frieza dos nmeros: 2100 metros quadrados o tamanho aproximado de toda a favela Jardim Panorama. Com a venda de somente esse apartamento pelo preo estipulado de R$ 16 milhes e5

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A rea do Empreendimento de 80 mil metros quadrados, entre a Marginal Pinheiros e o residencial bairro do Morumbi. No total, 14 torres: nove para usos residenciais, quatro para usos comerciais e uma torre para uso misto. A altura das mesmas, construdas sobre um morro, faz com que at os apartamentos mais baixos tenham viso panormica. Quando inauguradas, as coberturas sero alguns dos pontos mais altos de toda So Paulo. O valor total da obra: R$ 1,5 bilhes7. Alm de dispor de residncias e escritrios, o Empreendimento Parque Cidade Jardim tambm planejou em seu urbanismo intramuros a presena de consumo e lazer, garantidos pela presena de um spa e de lojas de luxo como Daslu, Academia Rebook, Emprio Fasano, Cinemark e Casa do Saber. Entre as grifes estrangeiras, estariam confirmadas Armani, Louis Vuitton, Ermenegildo Zegna, Montblanc, La Perla e Longchamp8. Gigantesco pelas cifras e seleto pela sua clientela, a concepo do Empreendimento expressa a viso de mundo da elite paulistana e o mundo por ela pretendido. A partir de agora se pretende discorrer sobre essa concepo, que mescla distino, exclusividade, individualidade e isolamento, dentre outras caractersticas. Num primeiro plano, o Empreendimento concentra uma srie de elementos que expressam particularidades hierarquicamente superiores aos concorrentes. A soma desses elementos exclusivos e concentrados potencializa a experincia Empreendimento Parque Cidade Jardim, transformando-a em uma experincia de exclusividade.

seiscentos mil, seria possvel indenizar todas as quatrocentas e vinte famlias da favela com os mesmos R$ 40 mil pagos s setenta famlias j removidas. 7 Informao retirada do sitio www.reporterbrasil.com.br. Parte desses recursos, ou R$ 74,3 milhes, foram repassados empresa Shopping Cidade Jardim S. A., pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social) (www.bndes.gov.br). A justificativa foi a de que o Shopping geraria trs mil empregos diretos e indiretos. Cabe ressaltar que o investimento em shoppings voltou a ser realizado pelo referido banco somente quando Carlos Lessa deixou o posto de presidente da instituio, dado que preferia incentivar o comrcio de rua. O financiamento pblico de uma obra com essas caractersticas um indcio das foras polticas e dos interesses que regem tambm o Governo Federal. 8 Revista Veja So Paulo. Edio 2023. 29/08/2007.

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IMAGEM 4 Simulao de vista a partir do Empreendimento Parque Cidade Jardim. Morar na Cidade Jardim ter uma vida tranqila em equilbrio com todas as facilidades de uma grande metrpole. O bairro rene a sua volta as melhores escolas, hospitais, o Jockey Club, e fica prximo das principais avenidas da cidade, como a Nova Faria Lima, a Cidade Jardim, etc. Um lugar nobre em So Paulo porque, alm da concentrao de reas verdes, tambm tem a maior renda per capita do Brasil. O padro de vida semelhante aos mais altos do mundo. A Cidade Jardim realmente muito especial, um lugar bonito, charmoso, com tudo de bom que a cidade oferece.9

Em princpio, um dos elementos de superioridade presentes a prpria localizao, exclusiva para poucos. Situado no bairro do Morumbi, mas em frente avenida Lus Carlos Berrini, o Empreendimento Parque Cidade Jardim se integra na verdejante e escondida elegncia do residencial bairro do Morumbi ao mesmo tempo em que usufrui e compe a paisagem espelhada e ultramoderna da Marginal Pinheiros e dos edifcios da Berrini. No epicentro do avano das elites pelo vetor sudoeste e j com as caractersticas que o sculo XXI para alm do rio Pinheiros apresenta a esse vetor. Verdadeira condensao de elementos, o Empreendimento oferece trabalho para quem quer trabalho, seja intramuros, seja na Marginal Pinheiros e adjacncias, alm de oferecer tambm residncia para quem quer residncia, ainda que esta esteja tambm intramuros10.

Imagem e texto extrados do material publicitrio do Empreendimento Parque Cidade Jardim (JHSF, 2006). Para Flavio Villaa, a exclusividade de cada terreno da metrpole uma construo social, expressando a posse dessa exclusividade em forma de terreno um monoplio. O argumento do autor ilustra perfeitamente a exclusividade da localizao do Empreendimento, como se pode observar: Todo proprietrio de uma terralocalizao proprietrio de um bem nico, irreproduzvel. Nem todos os proprietrios, entretanto, detm uma posio monopolista, pois nem toda as terras-localizaes so avidamente disputadas. Os proprietrios de lotes10

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As caractersticas do Empreendimento so indissociveis de sua localizao. Somente essa regio da metrpole possui as condies para a realizao dessa mercadoria, onde uma abundante infra-estrutura viria para veculos particulares interliga-se a uma gama de servios voltados para as elites. Essa regio tambm o ponto nevrlgico da valorizao do mercado imobilirio. E por fim, e talvez seja esse o elemento determinante da implantao do Empreendimento, cabe destacar que a produo social do espao na metrpole paulistana produziu poucas localizaes capazes de suportar11 um empreendimento como esse. Essa produo social envolve infra-estrutura urbana, mas tambm uma srie de gestes pblicas e privadas criadas para a conteno dos impactos sociais que um empreendimento como esse causa. Essa gesto envolve fundamentalmente a segurana necessria para o controle das populaes. Sem dvida, o quadrante sudoeste a regio mais bem preparada da metrpole, qui do pas, para a defesa do patrimnio e para o controle dos movimentos de pessoas12. Para alm da rea economicamente valorizada, portanto simbolicamente valorizada, o Empreendimento Parque Cidade Jardim torna-se exclusivo tambm pelo comrcio de luxo que oferece. De um lado, apresenta-se como novidade no mercado imobilirio devido concentrao desse tipo de comrcio em um s local. Por outro, mostra-se exclusivo pelo potencial consumidor de quem a essas lojas tem acesso, quando ultrapassadas as clivagens das barreiras econmicas. Para esse consumidor, a quantia gasta apenas um fator de uma srie de relevantes experincias exclusivas, como podem ser o usufruto de determinadas marcas e o convvio com um grupo seleto. Outra experincia de exclusividade proposta por esse empreendimento o fato de as lojas de luxo estarem dentro dos muros dessa cidade em simulacro. Simbolicamente, o luxo e a ostentao esto no quintal de casa, quase como uma propriedade privada, ao acesso das mos nas horas de descanso. Para o Empreendimento Parque Cidade Jardim, j no mais existe o passeio por vitrines na rua. No mais a visita a lojas de luxo. Agora, o luxo veio visitar.

perifricos no so monopolistas, mas os proprietrios de lotes no Morro da Viva (vista frontal sobre o Po de Acar) ou na Av. Vieira Souto (Praia de Ipanema) detm uma situao de monoplio. No foi o trabalho humano que produziu o Po de Acar nem a Praia de Ipanema, mas foi o trabalho humano que transformou-os em localizao desfrutveis, inserindo-os na cidade. As cataratas do Iguau podem ser maravilhosas, mas no posso v-las de minha janela, da mesma maneira que em 1850 no se podia ver Ipanema de nenhuma janela carioca. Portanto, embora toda localizao seja nica, h entre elas vrios graus de monoplio (Villaa, 1985: 13). 11 A verbo suportar aqui propositalmente utilizado em dois sentidos: suportar no que tange a suporte, ou a possibilidade de garantir a infra-estrutura fsica necessria para o funcionamento do empreendimento. E suportar no sentido de resistir de forma eficaz aos conflitos que esse tipo de empreendimento produz. 12 Em O Espao Intra-Urbano no Brasil, Flavio Villaa argumenta que so as elites que escolhem e produzem a valorizao das regies da metrpole por elas escolhidas. O mercado imobilirio pode at produzir e valorizar regies, mas depende da aceitao das elites para referendar as mesmas como regies valorizadas. (Villaa, 1998). No entanto, o mercado imobilirio pode antecipar as regies a serem valorizadas pela elite.

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Uma terceira experincia de exclusividade o modus operandi de sua concepo que aglutina uma srie de elementos considerados virtuosos pela sua clientela. Um deles o tamanho da empreitada, que denota coragem e empreendedorismo por parte de quem assume o risco. Jargo tpico da classe empresarial, expressa como poucos o sentimento da maioria dos que iro habitar o local, tambm empresrios. Reforando os elementos simblicos envolvidos no modus operandi da empreitada, o principal posto da Construtora JHSF ocupado por um jovem de 31 anos, expresso maior do empresrio bem sucedido. Jovem, ousado, realizador... Rico. Em sua edio de nmero 2023, de agosto de 2007, a revista Veja So Paulo teve como matria de capa esse empresrio, a quem a revista denominou como o novo reizinho do luxo. Na mesma edio, aponta-se como a construo do empreendimento aconteceu por uma espcie de viso do empreendedor, que acreditou em um negcio que ningum acreditava. Outra edio da revista, a de nmero 2039, de dezembro de 2007, d o ttulo de Paulistano do Ano ao jovem empreendedor e o parabeniza pelas relaes que estabeleceu entre iniciativa privada e poder pblico nessa regio da metrpole. Segundo a revista: Ele no v obstculos. Pagou 50 milhes de reais de pedgio por construir acima do limite permitido para a regio, dinheiro utilizado pela prefeitura na construo da ponte Estaiada sobre o rio Pinheiros. A obra, que virou um novo carto-postal da cidade, tambm de seu interesse, por facilitar o acesso ao empreendimento13. Sem dvida, os elementos presentes na concepo da obra, mas que no so a obra em si, so sedutores, posto apresentam-se como um plus a ser contabilizado pela clientela. Enfim, todo grande monumento necessita um realizador, quase um heri. E tambm uma boa narrativa que justifique sua existncia. No entanto, como explica Pierre Bourdieu (2007), a ostentao deve ser naturalizada. E tanto mais eficaz ser a superioridade quanto mais inconsciente ela for demonstrada ou por outrem percebida. H que se transformar a diferenciao em normalidade. No caso do Empreendimento Parque Cidade Jardim, esse necessrio trabalho de naturalizao do excesso chega aos limites do paradoxo. Expresso mxima da concentrao de renda e da desigualdade social, o Empreendimento necessita se suavizar. Dizer-se outro do que realmente . Assim, o que promete um deslocamento de tudo que realmente apresenta. Vide suas propagandas, que oferecem ao cliente um estilo de vida moda antiga, com tranqilidade, relaes de vizinhana, contato com a natureza e a possibilidade de desfrutar da cidade como antigamente, usufruindo de liberdade. Ou seja, o Empreendimento oferece para

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Revista Veja So Paulo. Edio 2039. p. 70. 19/12/2007.

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dentro de seus muros o que a cidade ofereceu h muito tempo atrs. Ento, ao invs do aprisionamento causado pelos muros, o Empreendimento promete liberdade. No lugar do consumismo, o desapego. Ao invs da visibilidade, a tranqilidade. Ao invs da competio, o compartilhar14. A aparente ambigidade entre o que o Empreendimento realmente e o que ele oferece em suas propagandas tambm pode ser entendido como uma tentativa de ganhar um maior leque possvel de clientes, dado que, apresentando dois estilos, impossibilita a negao total de um deles. Cidade Jardim. O bairro mais desejado de So Paulo Com suas ruas arborizadas e exclusivamente residenciais, a Cidade Jardim tem a natureza como um dos seus principais atrativos. Suas rvores, praas e parques so uma importante reserva. O bairro to elegante que at suas ruas tm nomes de flores: Begnias, Magnlias, Limantos, Pessegueiros, entre outras. 15 IMAGEM 5

Um exemplo tpico de tentativa de suavizao da ostentao reside no fato de o empreendimento ter convidado a Livraria da Vila para ser uma de suas lojas. Em uma de suas edies, a revista Veja So Paulo publicou o seguinte texto sobre o assunto:

Haver duas chamadas lojas-ncora. A primeira o Emprio Fasano, espcie de supermercado gastronmico, com um perfil entre o Emprio Santa Maria e a Casa Santa Luzia. Queremos um espao assim desde 1990, mas s agora encontramos o local ideal, diz o restaurateur Rogrio Fasano. Teremos pes, massas, doces e molhos produzidos pela nossa cozinha. A segunda uma filial da Casa do Saber e da Livraria da Vila. Esse toque de Vila Madalena dar um ar cultural e amenizar o luxo ostensivo, acredita Jos Auriemo Neto, presidente da JHSF. A preocupao com o lado, digamos, intelectual reflete-se na programao da rede Cinemark. Das oito salas, uma projetar somente filmes europeus16.14

A promessa de fruio da vida e dos elementos a ela associados, no lugar da competio do trabalho capitalista, um dispositivo que cada vez mais vem sendo utilizado por propagandas dos mais diversos produtos. Uma anlise rpida dos comerciais de televiso da atualidade permite captar palavras que aparecem cada vez mais. So elas: leveza, lentido, amizade, simplicidade, curtir a vida, abrao, ter tempo, perceber as pessoas, etc. Valeria a pena aprofundar uma anlise sobre o que realmente essas propagandas querem dizer no que tange s mudanas econmicas e culturais de nosso tempo. A princpio, vale reter que elas explicitam a busca ou retorno a um estilo de vida derrotado pelo capitalismo da segunda metade do sculo XX, expresso sobretudo por valores como rapidez, competio, lucro, trabalho, modernidade, etc. 15 Imagem e texto extrados do material publicitrio do Empreendimento Parque Cidade Jardim (JHSF, 2006). 16 Revista Veja So Paulo, Edio 1955. 10/05/2006.

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O fundamento da presena da referida livraria seria ento dar um toque Vila Madalena, com tudo o que isso simbolicamente significa. Sobre o assunto, vale novamente remeter-se a Pierre Bourdieu (2007), que em seu livro A Distino, separa gostos culturais e posse de bens materiais em duas fraes de classe: a frao dominante da classe dominante e a frao dominada da classe dominante. A primeira frao seria aquela detentora de bens materiais, mas com menor ndice de posse de bens culturais. Essa frao seria representada, mormente, por comerciantes e empresrios. Para os fins deste trabalho, teria como locus na metrpole o bairro do Morumbi e adjacncias. Por outro lado, a frao dominada da classe dominante seria a elite cultural, mas com menor posse de bens materiais. Essa frao de classe seria composta principalmente por artistas e intelectuais e, para fins deste estudo, poderia ser representado por um estilo de vida la Vila Madalena. A introduo de um elemento tpico da frao dominada da classe dominante uma tentativa de suavizar a ostentao e esboar uma aliana com a frao de classe renegada pelo estilo de vida e pelos preos propostos pelo Empreendimento. No que tange sua dimenso segregadora, certamente o Empreendimento Parque Cidade Jardim um exemplo notvel do que Teresa Caldeira (2000) denominou enclaves fortificados, com seus cinco elementos bsicos: segurana, isolamento, homogeneidade social, equipamentos e servios. Todavia, para este estudo, o padro de enclaves fortificados uma tendncia que, apesar de ser cada vez mais recorrente, no pode ser generalizvel para toda cidade. Contudo, a tese de Teresa Caldeira ajuda a problematizar a temtica da relao riqueza-pobreza em bairros ricos. Aps trabalho de campo em duas favelas, Jardim Panorama e Real Parque, ficou evidente que, para alm de separao, h uma relao de dominao, evitao e necessidade, sobretudo no que se refere s relaes de trabalho, entre as populaes das favelas e do bairro do Morumbi17. A desigualdade no mbito das relaes entre vizinhos to prximos espacialmente e to distantes socialmente ser discutida ao longo desta dissertao. Assim sendo, discorre-se sobre o tema durante todo o texto. Outro autor tambm discutiu a tese dos enclaves fortificados, de Teresa Caldeira. Em uma de suas obras, Eduardo Marques (2005) concorda com Caldeira no que tange 17

Em pesquisa anteriormente realizada na favela de Paraispolis, tampouco foi possvel observar relaes de sociabilidade entre a populao favelada e o entorno rico, como bem frisou Caldeira. Todo tipo de relao era mediada pela atuao do entorno nos trabalhos assistenciais promovidos na favela ou pelas relaes de trabalho onde se reforam as desigualdades oriundas da diferena entre as classes sociais, prximas geograficamente mas distantes socialmente (Almeida & DAndrea, 2004; Almeida & DAndrea, 2005).

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problematizao das conseqncias das formas de distribuio de grupos sociais no espao urbano. Segundo o autor: discutir a forma em si no nos ajuda a entender as conseqncias, a no ser que faamos como Teresa Caldeira (Marques, 2005:37). Em outra passagem, entretanto, o autor distancia-se de uma certa busca de padres gerais presente na obra de Caldeira. Assim escreveu Marques, referindo-se aos enclaves fortificados:

A descrio geral desses espaos coincide com o que Teresa Caldeira denomina terceiro padro de segregao paulistano, embora nossas observaes sugiram que esse elemento represente um detalhe que se superpe vasta extenso territorial do que a autora denominou segundo padro (as periferias segregadas). (...) parece mais profcuo descrever e analisar os detalhes e os padres gerais simultaneamente do que procurar os padres gerais a custo de simplificar a riqueza das evidncias (Marques, 2005: 38).

Por fim, cabe destacar ainda, mesmo que o Empreendimento imponha uma sociabilidade intra-muros e antipblica, para alm dos muros a metrpole segue com suas contradies, seus conflitos e dissensos. Contradies estas da qual o Empreendimento expresso e causa.

IMAGEM 6 Na foto area ao lado v-se em destaque a localizao da favela Jardim Panorama, o Empreendimento Parque Cidade Jardim e o entorno.

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Os rumores de remoo da favela Jardim Panorama: agentes em ensaioO comeo da construo do Empreendimento Parque Cidade Jardim, em maro de 2005, suscitou um desequilbrio nas historicamente tensas relaes existentes na favela Jardim Panorama. A chegada desse novo vizinho gerou novas tenses, posto que criava novas relaes baseadas em uma patente desigualdade entre os agentes. O que se visualizava ao lado da favela era muito mais que uma obra, era um novo arranjo social. Quando do incio da obra, a favela Jardim Panorama passou a ser palco de uma srie de boatos. Com matizes e interpretaes diversas, todos eles confluam para a mesma concluso de que a favela sairia18. Os boatos ganharam fora medida que muitos moradores passaram a relatar que desconhecidos ofereceram dinheiro para comprar seus barracos. Outros afirmavam que pessoas estranhas estariam rondando a favela e havia aqueles que diziam que toda a movimentao se devia chegada do novo vizinho. Naquele momento, ningum afirmava com certeza se era a Construtora JHSF quem fazia as ofertas, que de fato existiram19. Concretamente, a pesquisa de campo indicou que o comeo das relaes entre a JHSF e a favela aconteceu com construo de um muro entre a Marginal Pinheiros e barracos lindeiros pista local. O Empreendimento Parque Cidade Jardim necessitava embelezar seu entorno para agradar aos clientes, e esse foi o primeiro de uma srie de muros que seriam construdos para esconder a favela. A construo do muro foi realizada com uma parceria entre a JHSF e a Prefeitura de So Paulo. Necessitando barrar o aumento da favela para a Marginal, mas sem a possibilidade de remover as pessoas, posto que tal transao envolveria indenizao, a Prefeitura pediu para a JHSF fazer o muro, dado que a empresa podia comprar os barracos. Na poca, uma funcionria da subprefeitura do Butant relatou: E no me importa para onde vo as pessoas, pois no so minha responsabilidade. Elas esto em rea privada e eu no as removi20. interessante notar como a ameaa de remoo um fenmeno concomitante prpria existncia da favela. Em seu artigo de 1973, Lucio Kowarick (1993) aponta como j nessa poca a favela Jardim Panorama estava ameaada de remoo. Ao longo dos anos, com maior ou menor intensidade, essa ameaa sempre pairou sobre os moradores. Todavia, nenhuma delas adquiriu tanta intensidade como a ocorrida com a chegada do Empreendimento Parque Cidade Jardim. 19 Segundo apurou a pesquisa, dezesseis casas tiveram ofertas de compra. 20 A mesma funcionria relataria que a JHSF havia feito propostas de parcerias com a Prefeitura, pedindo para esta fazer a manuteno das reas municipais existentes dentro da favela, assim como afirmou que no havia projeto nenhum da Prefeitura para a favela Jardim Panorama. Segundo a funcionria, a remoo pensada18

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De fato, a construo do muro constrangia a populao e servia para ratificar ainda mais os rumores de remoo. Sabedor do perigo iminente, ainda que no ao certo de onde derivava esse perigo, se dos proprietrios dos terrenos da rea, da JHSF ou da Prefeitura, o fato que o Presidente da Unio dos Moradores da favela Jardim Panorama resolveu agir. Por um lado, aceitou a oferta de dois Advogados para entrar com um pedido de usucapio coletivo. Por outro lado, o Presidente entrou em contato com o Projeto Casulo, ONG localizada na vizinha favela Real Parque. A inteno do Presidente era que o Projeto Casulo ajudasse na permanncia dos moradores da favela Jardim Panorama. O Projeto Casulo, sem maior experincia no assunto, recorreu aos trabalhos da asses