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Reflexões sobre a corporalidade e apropriação da escola na educação indígena: um
estudo antropológico da domesticação da escola pelos Kiriri1
Taíse de Jesus Chates (PPGA – UFBA / Bahia)
Resumo:
Os debates em torno da educação escolar indígena tem se ampliado cada vez mais a
partir de abordagens distintas. Este artigo discute a relação entre a educação indígena e
a educação escolar indígena, com foco na apropriação da escola pelo povo Kiriri, numa
abordagem antropológica. Historicamente, a relação entre a escola e os povos indígenas
teve um caráter colonizatório e bastante integracionista. Entretanto, uma das questões
pontuadas com a luta dos povos indígenas é a constituição de uma escola indígena
intercultural, diferenciada e bilíngüe, que seja gerida e determinada pelos interesses de
cada povo. Assim, ao investigar as diversas concepções pedagógicas relacionadas à esta
apropriação, a questão da corporalidade entre os processos de aprendizagem se coloca
como um ponto fundamental, pois, a literatura etnológica tem mostrado que os
processos de aprendizagem entre os povos indígenas têm a corporalidade como um
elemento muito forte. Aqui, as noções de “domesticação” e de “corpo”, aplicadas às
etnografias de povos indígenas, são discutidas à luz da análise de processos educativos.
Desse modo, este trabalho dialoga diretamente tanto com a literatura antropológica
sobre educação indígena quanto com outras áreas do conhecimento que se propõem a
problematizar o tema.
Palavras-chave: educação indígena; educação escolar indígena;
Introdução
Este texto tem como objetivo fazer uma breve discussão sobre a apropriação da
escola no contexto indígena. Para tanto, exponho o motivo pelo qual uso o conceito de
“domesticação” e a relação entre corpo e aprendizado fortemente levantada na literatura
etnológica. Depois, faço uma brevíssima discussão entre as idéias de educação
intercultural, bilíngüe e diferenciada, pois creio que, ao discutirmos a apropriação de
uma escola que deve ser garantida pelo estado, faz-se necessário a problematização
destes três conceitos, que estão presentes, ao menos em tese, na base da legislação que
1 Trabalho apresentado na 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e
04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil.
1
rege a educação escolar indígena no Brasil. Como meus anseios aqui são de caráter
antropológico, as discussões pontuadas acima deverão se relacionar com o contexto da
educação e educação escolar indígena Kiriri, objeto de estudo do projeto de mestrado
desenvolvido hoje por mim no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal da Bahia, intitulado “A domesticação da escola na perspectiva
Kiriri: corporalizando aprendizados?”.
A domesticação da escola
A imagem de que os povos indígenas que mantinham relações mais intensas com
a sociedade nacional seriam “índios domesticados, civilizados, foi propagada durante
muito tempo, de certa maneira, ainda é. Busco, neste estudo a observação do processo
de domesticação de elementos não-indígenas por povos indígenas, ou seja, a ação de
tornar algo “externo” comum às demandas internas de um povo, neste caso, a
domesticação da escola pelo povo Kiriri. Tento, com isto, adotar uma postura teórico-
metodológica na qual o indígena, longe de ser visto como um “selvagem” a ser
domesticado, é entendido como um sujeito que se apropria de elementos não-indígenas,
como exemplo a escola, e os domestica.
Utilizo aqui como base para discussão a noção de domesticação colocada por
Catherine Howard, na qual defende que os Waiwai domesticam os elementos não-
indígenas ao utilizá-los a seu favor (Howard, 2000) 2. Assim, o indígena não é mais
tratado como o “selvagem”, bem como elementos não-indígenas são tidos como
domesticados por indígenas. Tal recorte é proposto dentro do bojo das discussões
elencadas por Alcida Ramos e Bruce Albert, nas quais a postura antropológica perante o
“objeto”, busca a “reversão do discurso indigenista” a partir do desafio de
desconstrução contínua da idéia de centralidade etnocêntrica que carrega diversos
elementos “ocidentalizados” (Albert e Ramos, 2002, pp. 14).
Para tratar devidamente a domesticação da escola em contexto indígena, ou seja,
da relação entre educação indígena e educação escolar indígena, faz-se necessário
destacar qual a concepção de educação aqui defendida. Sobre a educação em diversos
contextos, não somente se referindo aos povos indígenas, Carlos Rodrigues Brandão,
defende que esta acontece em locais variados e com modelos variados, ou seja, a escola
não é o único local no qual a educação ocorre, nem o professor é, o único profissional
2 Howard não define o conceito de domesticação precisamente, entretanto, a leitura do seu
artigo leva a esta interpretação.
2
praticante da educação (Brandão, 2007, pp. 09). Ao discutir as características da
educação indígena e da educação escolar indígena, Gersen Baniwa defende que: a educação indígena refere-se aos processos próprios de transmissão e produção do
conhecimento dos povos indígenas, enquanto a educação escolar indígena diz
respeito aos processos de transmissão e produção dos conhecimentos não-indígenas
e indígenas por meio da escola, que é uma instituição própria dos povos
colonizadores (Luciano, 2006).
Ao longo do processo de colonização brasileira, os povos indígenas foram
tratados como se tivessem que ser “domesticados”, ou seja, como se tivessem que ter
uma dita civilidade, baseada em valores eurocêntricos (Silva e Ferreira, 2001). Estes
sofreram tanto com a violência física quanto com a violência simbólica (Silva, 2001),
foram dizimados e submetidos a processos sociais totalmente extrínsecos à dinâmica
social adotada por cada povo (Dantas, Sampaio e Carvalho, 2001), tais como a
catequização e a relação com a escola. Esta violência se constituiu tanto de concepções
e práticas assimilacionistas quanto integracionistas.
A escola pode ser vista como uma ferramenta institucional para a assimilação.
Mesmo entre os teóricos que buscam se contrapor a processos opressores em relação
aos povos indígenas, é possível encontrar tanto posturas que defendam enfaticamente a
integração dos povos indígenas à sociedade nacional quanto as que consideram esta
integração um processo violento e opressor. Hernandéz, ao estudar o processo de
escolarização bilíngüe, baseado no método Paulo Freire3, com o povo Mapuche no
Chile, defende a necessidade da participação dos mesmos na sociedade nacional chilena
como forma de enriquecimento da cultura nacional em contraposição à conjuntura
colonizadora (Hernandéz, 1981: 36). Cláudio Félix defende que a integração de povos
indígenas a uma educação que tenha elementos tecnicistas é uma forma de opressão
(Félix, 2007: 30). Tanto Hernandéz quanto Félix expõem uma preocupação com o
fortalecimento da autonomia indígena. Porém, ao determinarem, de algum modo, como
deveria ou não se dar essa integração na sociedade nacional, acabam caindo na defesa
de respostas prontas, desconsiderando a especificidade e diversidade de estratégias
políticas próprias entre os diversos povos indígenas, pois, na prática, ao se recorrer a
soluções prontas, acaba-se descartando a ênfase na decisão dos povos indígenas sobre
3 O Método Paulo Freire é internacionalmente conhecido, principalmente, pela preocupação
em aliar as concepções e práticas pedagógicas do Método à realidade na qual este está
sendo aplicado. No caso citado, com o povo Mapuche, a experiência pioneira contou com a
alfabetização tanto em castelhano quanto em mapuche.
3
suas realidades. Dominique Gallois, ao narrar sua experiência antropológica junto aos
Waiãpi (Gallois, 2001: 39), defende a importância de que os povos indígenas tenham
acesso ao conhecimento especializado sobre das atividades produtivas não-indígenas,
bem como de instrumentos de mediação na sociedade nacional, a exemplo da
alfabetização e de informações sobre os trâmites jurídicos, pois, ao se apoderar de tais
instrumentos, uma maior autonomia em relação aos mesmos passa a ser possível.
Assim, Gallois ressalta que este acesso deve estar ligado às decisões do próprio povo.
A economia, a educação, a escola, a religião, bem como outros elementos,
podem ser observados à luz da noção de domesticação. No que tange ao que foi tratado
sobre a apropriação de elementos originariamente católicos pelos Kiriri por Bandeira
em sua etnografia (Bandeira, 1972), as seguintes questões podem ser levantadas: seria
possível relacionar o uso dos santos católicos dentro da religiosidade Kiriri com os usos
da escolarização pelos mesmos? Teriam os Kiriri “domesticado” a religião católica a
partir dos seus interesses? A autora defende que, mesmo incorporando Jesus Cristo e os
santos católicos em seu universo religioso, os Kiriri o fizeram a partir de uma dinâmica
própria (BANDEIRA, 1972). Desse modo, pode-se fazer uma associação entre a
domesticação de práticas religiosas originariamente não indígenas e a possível
domesticação da escola.
Corpo e escola
Na literatura etnológica, diversas autoras defendem que a linguagem corporal e a
experiência são centrais no que diz respeito aos processos de aprendizagem indígena
(McCallum, 1998; Silva, 2001). Silva ressalta que “Marcel Mauss (1973) anunciava a
corporalidade como processo de construção e linguagem expressiva da pessoa humana”
(Silva, 2001: 39).
Aracy Lopes da Silva mostra uma enorme desconexão entre a “escola” e as
práticas ritualísticas indígenas, colocando a corporalidade enquanto linguagem de
extrema importância (Silva, 2001). A autora aponta uma desconexão entre o “estar na
escola” e o “aprender com o corpo” para as crianças, através das observações de seu
trabalho com os Xerente e com os Xavante. A autora descreve várias situações nas quais
essa desconexão pode ser apontada. Pontua a afirmação do banho de rio no recreio
escolar, os ritos de iniciação, a relação com os antepassados através dos sonhos ou
4
processos de aprendizado extra-escolares, que mediam tanto habilidades tipicamente
indígenas, como o preparo de certos alimentos, quanto a fabricação de elementos
oriundos do mundo branco, como quando meninos esculpem aviões para brincar na
aldeia enquanto a escola se encontra fechada. Percebe-se então a necessidade de não
negligenciar a observação das relações corporais ao se estudar os processos de
aprendizagem com povos indígenas, seja em aprendizados escolares ou extra-escolares.
A antropóloga expôs a “domesticação corporal” observada, quando as crianças
indígenas atribuíam um valor de independência ao banho no córrego, durante os
recreios escolares. Para Silva, a afirmação deste período em espaço aberto também
significa a afirmação do modo próprio de aprender indígena, da “autonomia corporal
como condição importante para o aprendizado, mesmo que escolar” (Silva, 2001: 42).
Desse modo, a apropriação indígena da instituição escolar não acontece de modo
passivo perante a constante tentativa de “domesticação corporal”, ocorrida
sistematicamente na história do contato indígena com a escola.
A domesticação da escola e as relações com o governo
A questão da domesticação da escola é bastante definida na relação entre os
povos indígenas e o estado, que por lei é responsável pela garantia a efetivação dos
direitos indígenas em relação a uma educação escolar intercultural, diferenciada e
bilíngüe. Silva questiona a compatibilidade efetiva entre educação indígena e
escolarização através da seguinte questão: “será possível à escola o respeito real às
'formas de transmissão do conhecimento' próprias à socialização indígena, tal como
garantido expressamente nas leis?” (Silva, 2001: 59). Ou seja, é indispensável a
avaliação destes conceitos, tidos como basilares tanto pelas leis de educação escolar
indígena, quanto pelos profissionais que trabalham com educação escolar indígena e
pelos indígenas.
Ao se falar de relação intercultural, faz-se necessário expor a partir de qual
concepção de cultura se fala. Durante bastante tempo, a cultura foi considerada
hegemonicamente como um todo homogêneo, desconsiderando assim uma série de
especificidades bem mais complexas. Carlos Rodrigues Brandão, ao fazer uma releitura
em torno das relações entre a cultura e a educação popular, critica as categorizações
culturais em pares de opostos, tais como “erudito x popular”, “dominante x dominado”,
5
“urbano x rural”, bem como a imposição de uma “opacidade teórica e empírica” que
desconsidera o surgimento de diferentes modelos de cultura, que se comunicam,
interinfluenciam-se e se transformam (Brandão, 2006). Para Brandão (2006), “o
resultado mais visível disto era uma redução motivada da complexidade das culturas, da
diversidade das culturas e amplos domínios onde ela própria era obrigada a dissolver-
se”.
No que diz respeito à relação intercultural entre os povos indígenas e os povos
de origem não-indígena, são colocadas por Cláudio Félix, ao se referenciar em
Antonella Tassinari, três diferentes posturas político-metodológicas no que diz respeito
à Educação Escolar Indígena: a) a primeira concebe-na como espaço ocidental que ameaça a sobrevivência
indígena; b) a segunda a entende como espaço ressignificado de acordo com a
cultura indígena; c) a terceira abordagem compreende a escola indígena como espaço
de contato, onde as diferenças interétnicas emergem e adquirem novos contornos e
onde técnicas e conhecimentos provenientes de diferentes tradições podem ser
trocados e, assim, reinventados (a escola de fronteiras) (Félix, 2007: 46).
A partir disto, a educação ocupa um espaço privilegiado entre os “elementos de
fronteira”, ou seja, entre a cosmologia indígena e a doutrina “ocidental”, visto que tanto
pode se configurar enquanto tática de dominação, quanto instrumento de afirmação, ou
até mesmo as duas coisas ao mesmo tempo.
Segundo John Monteiro, a conversão das lideranças indígenas, a doutrinação dos
jovens e a eliminação dos pajés se colocavam como as três principais características da
educação jesuítica. A utilização das línguas indígenas para tentar realizar a dominação
dos indígenas foi bastante recorrente, tendo como instrumento a escola jesuítica (Félix,
2007: 29).
Se contrapor à idéia de que um povo indígena que não tenha mais uma relação
ampla com sua língua “original” teria o reconhecimento de sua identidade étnica
comprometida não pode significar a negação dos direitos lingüísticos de cada povo. Ao
se referir à discussão de questões identitárias relativas aos povos indígenas no nordeste
brasileiro, recorrentemente se fala de termos como “identidade residual”, “aculturação”,
etc. Quando esta perspectiva de observação e análise é posta no campo lingüístico, é de
costume que nos deparemos com um conceito de língua clássico que, enfoca as ditas
perdas lingüísticas e chega a colocar esta perda como algo irreversível, ao invés de
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abordar mais fortemente os processos de reconstituição lingüística que muitos povos no
Nordeste vêm realizando. Um exemplo de reconstituição lingüística acontece em torno
do Patxohã, realizado pelo povo Pataxó, no sul da Bahia. Sobre a relação entre a escola
Pataxó e o trabalho realizado em torno do Patxohã, alunos, alunas, professores e
professoras de Coroa Vermelha defendem a seguinte posição: O mais gratificante é que temos tido ainda a grata cobrança de pessoas de outras
aldeias Pataxó pedindo para orientá-los a introduzir as atividades com a língua
indígena na comunidade. O que muito nos anima, pois sabemos que não basta só
trabalhar a língua na escola. É preciso que ela seja usada e valorizada no dia-a-dia da
comunidade. E para que a língua PATXOHÃ ganhe vida e significado novamente
em nossa sociedade, é preciso que todas as aldeias Pataxó participem e colaborem
neste processo. (Alunos, alunas, professores e professoras Pataxó, documento
manifesto sobre o Patxohã)
O documento citado acima defende ainda que o interesse dos Pataxó na
revitalização do Patxohã não se relaciona com uma vontade de comparação com outras
etnias.
Creio que tal afirmação também segue na direção de uma escola que, tanto seja
diferenciada, em prol dos interesses do povo Pataxó, quanto solidariamente à luta pela
afirmação lingüística e por uma educação escolar indígena adequada aos interesses de
cada povo. Isto significa que, além de se aliar com os modos próprios de aprendizagem,
é necessário que a escola busque se aproximar ao máximo da concepção de língua de
cada povo para que possa ser, de fato, diferenciada.
Gramsci (Nosella, 2004) já apontava a necessidade de se educar a partir da
realidade viva, tendo um ambiente educativo que incitasse a análise profunda da
realidade em seus diversos contextos, e não apenas uma absorção de valores a serem
reproduzidos sem a mínima reflexão. A idéia gramsciana defende então que, para
associar a escola ao trabalho, por exemplo, não seria suficiente apenas implantar uma
horta nos fundos da escola, mas que seria necessária toda uma reconstrução dos valores
hegemônicos escolares na direção da associação entre o trabalho material e o
intelectual. A educação deve se conectar verdadeiramente com a realidade viva e não
com doutrinas frias e enciclopédicas. Para se conectar à realidade do educando, Paulo
Freire defende que a educação bancária, na qual “em lugar de comunicar-se, o educador
faz 'comunicados' e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem
pacientemente, memorizam e repetem [...], a única margem de ação que se oferece aos
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educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los” (Freire, 2005: 66),
deve ser combatida. Gramsci e Freire fazem crítica ao formato da escola dita ocidental.
Quando tratamos de educação escolar indígena, é preciso que se leve em conta as
posturas reflexivas acerca da educação não-indígena, para que o que processo de
mediação de construção deste espaço educativo interétnico – a escola, transponha
meramente os valores hegemônicos sobre estruturas educacionais.
Para que a educação bancária ou a enciclopédica, às quais Paulo Freire e
Gramsci se contrapuseram respectivamente, sejam superadas, é necessário que a escola
indígena ou não-indígena, sejam concebidas de maneira diferenciada, partindo da
realidade do educando e não de idéias impostas. Entretanto, para associar essa discussão
à realidade dos povos indígenas, é necessário que se tenha como fundamento a auto-
gestão dos povos indígenas do processo educativo escolhido por eles, a partir das
decisões de cada povo, mesmo que se decida pela recusa do modelo escolar ocidental.
Isso significaria a impossibilidade de se falar em uma educação escolar indígena
genérica, pois, do mesmo jeito que cada povo tem especificidades étnicas e modos
próprios de educar, cada povo constrói um contexto de interesses diretamente
relacionados ao objetivos e às expectativas em torno da educação escolar indígena. No
caso do povo Kiriri, a escolha tem sido de utilização da escola institucionalizada com a
perspectiva de torná-la diferenciada e adequada aos objetivos do povo Kiriri.
O povo Kiriri, sua educação e sua escola
Segundo a história contada pelos indígenas mais velhos, o nome Kiriri está
ligado a uma árvore chamada Kiri4. Já Brasileiro, coloca que o termo Kiriri é um termo
guarani que significa povo “calado”, “taciturno” e que essa denominação teria sido
atribuída pelos Tupi da costa ao “povo do sertão”5.
O povo Kiriri é composto por cerca de 2000 pessoas que vivem na Terra
Indígena Kiriri, com cerca de 12.300 hectares, no município de Banzaê, ao lado da
cidade de Ribeira do Pombal, na Bahia. Tal território se divide nos seguintes núcleos:
Baixa da Cangalha, Baixa do Juá, Araçá, Canta Galo, Lagoa Grande, Cajazeira,
Segredo, Pau Ferro, Marcação, Baixa Nova, Mirandela e Gado Velhaco (Macêdo,
4 Tal explicação é encontrada no livro “Educação diferenciada na visão do povo Kiriri” (Livro
do Aluno) e no site da Rede Índios Online.5 Explicação encontrada no site do ISA – Instituto Socioambiental.
8
2009).
A foto abaixo foi tirada em campo e é de uma criança Kiriri, estava pregada num
mural na parede da escola Índio Feliz, que fica no núcleo de Cajazeira. Ela dá uma
dimensão da disposição dos núcleos na Terra Indígena e do seu tamanho. Como é
visível, o formato da Terra Indígena é octogonal. Os Kiriri tem uma forte memória sobre
os processos relacionados à Terra Kiriri e se referem ao seu formato como “chapéu de
sol”, tendo uma série de marcos naturais para a marcação (Macêdo, 2009: 35).
Foto 1 – Núcleo Cajazeira, abril de 2010
O contato entre os Kiriri e brancos aconteceu, no mínimo, desde o século XVII,
junto com a colonização e os trabalhos catequéticos, que se iniciaram com a fundação
da aldeia de Saco dos Morcegos, posteriormente chamada de Mirandela, local onde hoje
está situado o núcleo central da Terra Indígena Kiriri e no qual se concentraram os
conflitos com os não-índios no período de retomada da Terra Kiriri.
A educação escolar foi utilizada pelos jesuítas como instrumento de difusão da
língua portuguesa, indispensável, na concepção jesuítica, para a conversão dos índios à
civilização cristã, durando, entre os Kiriri, pouco mais de um século, até o afastamento
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dos jesuítas dos sertões brasileiros (Côrtes, 1996: 79). A primeira escola na aldeia Kiriri
foi construída junto com o primeiro posto indígena do Serviço de Proteção ao Índio –
SPI, em 1949. A escola foi intitulada “Escola Pe. Renato Galvão”, o nome é do padre
que ficou conhecido pelo seu trabalho junto aos Kiriri, e o Posto intitulado “Posto
Indígena de Tratamento Governador Góes Calmon”.
As lutas pela terra e pela escola são de extrema importância para o povo Kiriri.
Bandeira elenca como documentos de atribuição de posse da terra Kiriri: o Alvará Régio
de 23 de novembro de 1700, que abarcava uma légua em quadra, tendo a igreja como
pião, sendo ratificado pela Lei de 04 de junho de 1703, pelo Decreto Lei de número
8.072 de 20 de junho de 1910, além do Art. 186 da Constituição Federal (Bandeira,
1972: 21) de 1891. A desintrusão de não indígenas da Terra Indígena Kiriri somente se
efetivou na última década do século passado, como aborda Brasileiro (1996). Para
Macêdo (2009), a terra se constitui enquanto loci fundamental de diversos processos de
aprendizagem Kiriri.
Macêdo (2009), ressalta que, ao perguntar para os Kiriri sobre qual o maior
aprendizado de sua vida, nenhuma das respostas se relacionava à escola, mesmo quando
era feita a um jovem alfabetizado. Assim, a autora defende que as referências centrais de
aprendizagem Kiriri estão em outros espaços diferentes da escola, ressaltando onde se
ensina a lidar com a terra e a se relacionar com os encantos, defende o Toré enquanto
espaço central na aprendizagem Kiriri. As práticas Kiriri não são diferentes do que é
encontrado em outros povos indígenas no que diz respeito à relação entre religiosidade e
educação indígenas. Tanto o campo xamanístico quanto a escola se configuram
enquanto espaços de liminaridade, o que é ilustrado no trabalho de Silva:A escola, como instituição originária desse “mundo dos brancos”, ocupa então,
simbolicamente, lugar de destaque como meio de obtenção de conhecimentos
“externos” a serem incorporados e socializados internamente. A escola, assim como
o sonho, possibilita uma viagem cujo resultado pode ser a apreensão de itens de um
acervo externo que, seletiva e autonomamente, deve ser objeto de treinamento,
aprendizagem, memorização, apropriação. (Silva, 2001: 46)
Aqui o sonho representa o diálogo com os antepassados, que é mediado pelo
universo religioso e concretizado muitas vezes através dos sonhos. Assim, tanto a
religião quanto a escola se configuram enquanto espaços fronteiriços. No caso dos
Kiriri, podemos dizer que a religião se coloca ainda mais numa fronteira, por conta da
apropriação de elementos religiosos inicialmente não-indígenas.
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Macedo (2009), conta que o Toré é visto pela comunidade Kiriri como um
momento formativo, no qual todos aprendem sobre o complexo religioso, conduta e
medicina tradicional, buscando os conselhos dos mais velhos, pajés, caciques, das
mestras e, especialmente, dos encantos. O Toré é colocado como uma aula. As práticas
xamanísticas Kiriri estão diretamente relacionadas ao seu sistema sócio-cultural e à
relação do povo com o ambiente:Os Kiriri almejam a recuperação das suas matas, que depois da retomada, estão,
gradativamente, se recompondo. A sua relação com os animais e as plantas constitui
uma espécie de plano simbólico elementar para suas práticas xamanísticas, pois a
mata é a morada dos seus encantados, condicionadores e orientadores do seu
cotidiano e de todas as suas práticas sócio-culturais (Macêdo, 2009: 47).
Belaunde (2010), ao levantar as críticas de diversos intelectuais indígenas sobre
o formato de escolarização “ocidental”, expõe que estes defendem que a escolarização
prioriza a leitura e escrita sobre determinados saberes e não a experiência, assim
impossibilitando uma apropriação real. Como exemplo, os intelectuais indígenas citados
pela autora colocam que, enquanto o uso de plantas no processo educativo permite que
se aprenda a usá-las efetivamente, na escola apenas se aprende a escrever sobre as
plantas, impossibilitando um aprendizado efetivo. As questões elencadas por Belaunde
foram apontadas a partir de sua experiência numa oficina com representantes da
Federação Shipibo-Konibo do rio Pisqui. Quando o conceito de “priorização de
desejos” foi apresentado de modo verbal, um dos líderes indígenas tomou a palavra e
exemplificou o conceito através de uma situação real. Desse modo, o uso de plantas no
processo de aprendizado é defendido como alternativa para quebra da contradição
existente no processo de aprendizado que descarta a experiência.
A discussão realizada por Belaunde me pareceu ainda mais pertinente após uma
experiência em campo. Ao ir com uma senhora Kiriri que mora em Mirandela, e sua
filha, professora indígena, para a roça da família, fui apresentada a uma série de plantas
diferentes na volta. Num certo momento, aproximei uma folha do nariz para sentir o
cheiro e buscar uma ampliação de elementos que me fizessem lembrar depois da planta:
o cheiro. Daí, a professora falou: “você não vai sentir o cheiro assim, é preciso
amassar”. Naquele momento percebi que não adiantava todo o esforço mental para
catalogar de uma só vez aquela imensa quantidade de plantas, somente uma experiência
contínua possibilitariam uma memorização efetiva sobre a identificação e função
daquelas plantas.
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Até agora, a sensação de que a escola e a vida na comunidade não são duas
coisas opostas é muito forte, o que pode ser ilustrado neste trecho da nota de campo:As professoras me mostraram fotos de atividades nas escolas, desenhos dos alunos
(fotografados pelas professoras) e da roça no ano passado, quando plantaram
bastante feijão e girassol e perderam mais da metade por conta das chuvas, além de
fotos de uma apresentação do Toré filmada em Paulo Afonso por Edilene, professora
Kiriri. Percebi que quase todos, senão todos os desenhos, eram de mato, de roça, de
índios com roupas Kiriri, coisas do modo de viver indígena Kiriri. O momento de
interação estava instaurado na sala em torno de fotos de atividades escolares e do
cotidiano, as falas não esboçavam qualquer tom de momentos “melhores” ou
“piores”. Fiquei inquieta com a beleza dos desenhos e com o conteúdo deles, feitos
por meninos e meninas entre 10 e 14 anos, segundo elas. Alguns desenhos tinham
textos, outros não... a maioria não. Tive a impressão de que a vida cotidiana estava
dentro da escola. (Mirandela, 04 de fevereiro de 2010)
Utilizo o trecho acima para, além de indicar a relação íntima entre os
acontecimentos de “dentro” e de “fora” da escola, afirmar a diversidade de linguagens
percebida. Mesmo que eu quisesse detalhar exaustivamente os desenhos que me foram
mostrados, penso que a tentativa seria insuficiente. A imagem abaixo é uma fotografia
de uma pintura de Edivânia Kiriri, professora de artes que pinta inúmeros quadros em
tela, hoje residente em Mirandela. Quero, com esta pintura, dar uma ínfima mostra das
características que vi nos desenhos descritos na nota de campo posta acima.
Foto 2 – pintura Kiriri
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A professora América Kiriri define da seguinte maneira a educação Kiriri: “A
educação é como o vento. Está presente em todos os lugares a cada momento. Quando o
vento passa, rega as sementes e faz com que dê origem a nova planta” (Professores
indígenas, 2005 b: 81), bem como expõe alguns objetivos relacionados à educação
indígena: “Ter um bom relacionamento entre aluno, professor e comunidade. Assegurar
nossa cultura para que ela possa continuar viva e respeitar a cultura de outros povos”
(Professores indígenas, 2005 b: 81).
Segundo os professores indígenas, a luta pela escola do povo Kiriri tem sido
longa e ainda não está resolvida. O atendimento escolar é insuficiente e os responsáveis
legais pela oferta do serviço escolar não estão cumprindo o seu papel. Daí, eles colocam
a necessidade de ampliação das escolas existentes, a construção de novas escolas e
maior distribuição do material didático, defendem também que uma escola diferente
acontece quando os indígenas trabalham para garantir a aprendizagem das crianças do
jeito deles (Professores indígenas, 2005 a: 68).
(In)conclusões
O texto aqui apresentado busca, mais do que qualquer coisa, lançar dúvidas e
problematizações em torno de questões relacionadas à relação entre educação indígena e
educação escolar indígena. Defendo que a escola hoje esteja sendo domesticada pelo
povo Kiriri por acreditar que isto seja tanto uma postura político-metodológica, quanto
por perceber que esta apropriação acontece de fato. Afirmar um processo de
domesticação da escola não significa romantizar possíveis relações de poder e opressão
existentes entre os povos indígenas e o estado, mas sim afirmar o processo histórico de
resistência. Assim, apresentei neste texto as idéias que norteiam a pesquisa em
andamento, que certamente objetiva contribuir bastante para a contínua construção de
uma educação escolar indígena efetivamente adequada aos interesses de cada povo, bem
como para a solidificação dos aprendizados em torno da educação escolar indígena que
possam contribuir para escolas não-indígenas mais coerentes e menos desconectadas
com os contextos nos quais estão inseridas.
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