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REFLEXÕES SOBRE ARTE E TÉCNICA 1 José Nedel 2 Resumo. O preente texto, não exaustivo, versa acerca de questões introdutórias sobre a dimensão do fazer humano, nas vertentes da arte e da técnica. Sua destinação originária era servir de subsídio didático em questões de filosofia prática. Assim encarado, não frustrará expectativas, quiçá mais mais ambiciosas ou especializadas. 1 – Fazer e agir. As dimensões práticas do ser humano são o fazer ( poieín) e o agir (prássein). Entre ambas há uma série de distinções, como as que seguem: A – O fazer tende à perfeição de uma obra exterior; o agir, à perfeição interior do agente. B – No fazer predomina a obra feita; no agir, a intenção do agente. A obra criada é capaz de separar-se do autor e suas intenções, sendo a vontade secundária. É notório que boa desculpa não vale bom resultado. A obra realizada produz seus efeitos, de acordo com o valor que leva em si, independente da vontade de seu autor. Nesse sentido, ganha nova dimensão a palavra de Pilatos, no Evangelho: “O que escrevi escrevi” (Jo 19, 22). A propósito, ver o texto “Sarney e Pilatos” (Nedel, 1990, p. 125-128). C – O fazer visa à eficiência; o agir, à autenticidade. D – No fazer, o homem é engrenagem; no agir, é pessoa. E – O fazer está imerso no agir; este é como o fio do rosário em que o fazer prega as contas (Lima, 1956). Sempre agimos, se bem que nem sempre fazemos. O agir é contínuo, aberto, porque o homem nunca descansa do homem, enquanto sujeito às condições da vida presente. A arte e a técnica pertencem à ordem do fazer, em oposição à ordem do agir moral. 2 – Conceituação de arte. Arte tem dois sentidos fundamentais: o objetivo, que pode ser lato com o estrito, e o subjetivo. 2.1 – Sentido objetivo. Em sentido objetivo lato, arte, por oposição à natureza, significa qualquer obra executada pela mão do homem; em sentido estrito, é “a expressão reflexa da beleza em forma sensível” (C. Lahr), ou a criação ou produção reflexiva do belo” (M. y Pelayo). Realizam este sentido de arte as belas-artes, cuja razão de ser é sua expressividade estética, distintas das artes mecânicas, industriais, decorativas, inspiradas na utilidade. 2.2 – Sentido subjetivo. Em sentido subjetivo, arte é a recta ratio factibilium – reta noção das coisas a fazer, segundo a clássica definição de T. de Aquino (S. th., I-II, 57, 5, 1), hábito adquirido a conferir o poder de operar bem. Reside não na essência do homem, mas na faculdade intelectual, que se vê enriquecida com a facilidade, rapidez e o prazer da ação, no campo da criação do belo e do expressivo. Nessa acepção, arte é habilidade. O verdadeiro artista possui espontaneidade criadora e uma espécie de infalibilidade na sua arte. A atividade artística como que lhe manifesta uma segunda natureza. A arte, como hábito operativo, é um bom hábito, ou uma virtude, pois confere o poder de operar bem. E virtude é qualidade permanente ou disposição estável para bem realizar atos específicos. Não se trata, contudo, de virtude moral, que leva a bem agir, mas de virtude intelectual, de vez que tem a inteligência como sede. Confere ao agente o poder de fazer bem. Torna bom o homem enquanto artista, não ipso facto enquanto homem, por isso é virtude 1 Publicado originalmente em Cultura e fé, abril – junho – 2007. 2 Prof. Do Curso de Filosofia e do PPG Filosofia da Unisinos. 1

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REFLEXÕES SOBRE ARTE E TÉCNICA1

José Nedel2

Resumo. O preente texto, não exaustivo, versa acerca de questões introdutórias sobre a dimensão do fazer humano, nas vertentes da arte e da técnica. Sua destinação originária era servir de subsídio didático em questões de filosofia prática. Assim encarado, não frustrará expectativas, quiçá mais mais ambiciosas ou especializadas.

1 – Fazer e agir. As dimensões práticas do ser humano são o fazer (poieín) e o agir (prássein). Entre ambas há uma série de distinções, como as que seguem: A – O fazer tende à perfeição de uma obra exterior; o agir, à perfeição interior do agente. B – No fazer predomina a obra feita; no agir, a intenção do agente. A obra criada é capaz de separar-se do autor e suas intenções, sendo a vontade secundária. É notório que boa desculpa não vale bom resultado. A obra realizada produz seus efeitos, de acordo com o valor que leva em si, independente da vontade de seu autor. Nesse sentido, ganha nova dimensão a palavra de Pilatos, no Evangelho: “O que escrevi escrevi” (Jo 19, 22). A propósito, ver o texto “Sarney e Pilatos” (Nedel, 1990, p. 125-128). C – O fazer visa à eficiência; o agir, à autenticidade. D – No fazer, o homem é engrenagem; no agir, é pessoa. E – O fazer está imerso no agir; este é como o fio do rosário em que o fazer prega as contas (Lima, 1956). Sempre agimos, se bem que nem sempre fazemos. O agir é contínuo, aberto, porque o homem nunca descansa do homem, enquanto sujeito às condições da vida presente. A arte e a técnica pertencem à ordem do fazer, em oposição à ordem do agir moral.

2 – Conceituação de arte. Arte tem dois sentidos fundamentais: o objetivo, que pode ser lato com o estrito, e o subjetivo. 2.1 – Sentido objetivo. Em sentido objetivo lato, arte, por oposição à natureza, significa qualquer obra executada pela mão do homem; em sentido estrito, é “a expressão reflexa da beleza em forma sensível” (C. Lahr), ou a criação ou produção reflexiva do belo” (M. y Pelayo). Realizam este sentido de arte as belas-artes, cuja razão de ser é sua expressividade estética, distintas das artes mecânicas, industriais, decorativas, inspiradas na utilidade. 2.2 – Sentido subjetivo. Em sentido subjetivo, arte é a recta ratio factibilium – reta noção das coisas a fazer, segundo a clássica definição de T. de Aquino (S. th., I-II, 57, 5, 1), hábito adquirido a conferir o poder de operar bem. Reside não na essência do homem, mas na faculdade intelectual, que se vê enriquecida com a facilidade, rapidez e o prazer da ação, no campo da criação do belo e do expressivo. Nessa acepção, arte é habilidade. O verdadeiro artista possui espontaneidade criadora e uma espécie de infalibilidade na sua arte. A atividade artística como que lhe manifesta uma segunda natureza. A arte, como hábito operativo, é um bom hábito, ou uma virtude, pois confere o poder de operar bem. E virtude é qualidade permanente ou disposição estável para bem realizar atos específicos. Não se trata, contudo, de virtude moral, que leva a bem agir, mas de virtude intelectual, de vez que tem a inteligência como sede. Confere ao agente o poder de fazer bem. Torna bom o homem enquanto artista, não ipso facto enquanto homem, por isso é virtude

1 Publicado originalmente em Cultura e fé, abril – junho – 2007.2 Prof. Do Curso de Filosofia e do PPG Filosofia da Unisinos.

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imperfeita. Orienta o artista para um fim próximo particular, o bem da obra, e não para o seu fim último, como a virtude moral. Esta, além de levar à prática de atos bons, torna bom o próprio agente. No mais, a arte não é virtude do intelecto teórico, que tende ao conhecimento da verdade enquanto tal, mas do intelecto prático, pois o artista conhece em ordem ao fazer. Em síntese, a arte consiste em fazer passar uma idéia à matéria. Nesse sentido amplo, aplica-se tanto às artes úteis, que visam a um fim útil, sendo nelas a beleza simples acréscimo, quanto às belas-artes, que são desinteressadas. Em ambos os casos, a arte a pode definir-se como virtude do intelecto prático destinada ao fazer.

3 – Meios ou elementos da arte. É indiscutível a sabedoria que impregna os ditos populares. Diz um desses brocardos: amor pares invenit aut facit – o amor encontra os iguais ou os faz. O que se afirma nesse provérbio densamente significativo do amor, vale também da beleza, pois seu primeiro efeito é o impulso para reproduzi-la em nós, ou para imitá-la. A admiração que o belo produz fecunda a inspiração e leva a imitar. “Admirar é imitar”, dizia Plotino. A imitação, de inicio, é espontânea; depois, reflexa.

3.1 – Imitação. A imitação é um dos meios de que lança mão o artista. Por ela capta-se o belo da natureza. "Aceitação do real, diz E. Mounier, é a primeira tentativa de toda a vida criadora. Aquele que a recusa delira, e a sua ação perde-se" (1960, p. 48). A imitação não é fim em si, nem muitas vezes sequer condição da arte: esta pode até extinguir-se, com a ilusão da realidade. É o caso das bonecas de fios de cabelo e olhos de vidro, incomparáveis a uma estátua de mármore. O que elas têm é demais para ser arte – e para ser natureza é de menos.

A arte não é só imitação, do contrário não passaria de fotografia. Aliás, a imitação exata e total nunca é possível. Ninguém vê, de modo exaustivo, a realidade como ela é objetivamente, mas cada qual a enxerga em sua perspectiva. Pelas razões aduzidas, é falha a concepção da arte realista e naturalista, obra de pura imitação, carente de todo ideal. O fim da arte, nessa óptica, é a imitação, porque só o real seria belo. No mais, a imitação deve ser seletiva, isso é, visar só aos traços principais e significativos da realidade, e interpretativa, ou seja, o belo da natureza deve ser visto através da óptica pessoal do artista; a obra de arte deve revelar seu cunho próprio.

3.2 – Criação. 3.2.1 – Homem acrescido à natureza. Outro meio da arte é a criação, pela qual o artista supre o belo que não encontra na natureza. A realidade não contém toda a beleza de que o ser é suscetível. Por isso, entende Aristóteles que a poesia é mais verdadeira que a historia; a primeira é linguagem do ideal; a segunda, narração de fatos. Se bastasse a realidade, a arte se limitaria a dar ilusões; a máquina fotográfica ou o espelho a substituiriam. O gênio não passaria de uma “longa paciência” (Buffon). Mas não é assim. Enquanto a ciência abstrai a significação do mundo, a arte comunica sentido mais elevado às coisas; o sábio lê, toma; o artista escreve, dá e transforma. Nessa perspectiva é válido o homo additus naturae com que Bacon definiu a arte. O poder criador na arte é a capacidade de condensar a experiência esparsa múltipla e variada numa unidade resplandecente, o que requer intervenção de todas as atividades do homem, em unidade harmoniosa: a imaginação, o instinto, a emoção, a reflexão. Na arte, revela-se o homem todo.

3.2.2 – Ponto de partida. A arte, como Anteu, filho da Terra, que, arrancado do seio da mãe, era impotente para a luta, não pode esquecer a natureza, que lhe fornece os materiais e as formas sensíveis. Nela deve necessariamente inspirar-se. O ponto de partida é a realidade; nela, entretanto, não pode estacionar, mas tem de ultrapassá-la, a1iando o real ao ideal, porque a realidade não satisfaz a razão estética. “O homem é feito para conhecer a natureza,

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refletindo-a em suas operações científicas ou fi1osóficas e enriquecendo-a em suas atividades artísticas” (Lima, 1956, p. 70). C. Drummond de Andrade acrescenta que é preciso "reinventar o mundo,/ tornando-o mais profundo,/ mais claro e vaporoso" (1955, p. 75). Por sua vez, Machado de Assis fala em "romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas" (1953, p. 111).

3.2.3 – Eliminação, adição e transcendência A criação, que consiste na produção de tipos que excedem, de modo original, o belo da natureza, opera-se por via de eliminação, adição e transcendência. A eliminação é a supressão dos pormenores insignificantes e inúteis. A natureza luxuriante tem de ser simplificada. Já o fotógrafo seleciona os aspectos que deseja retratar, eliminando os outros. A adição é o acréscimo de perfeições ao objeto belo purificado pelo processo da eliminação. A transcendência representa a elevação das qualidades a sua mais alta potência, aumentando, assim, a beleza das coisas.

3.3 – Expressão. Ambos os processos, o da imitação e o da criação, carecem de expressão. E os três completam-se mutuamente. Só a expressão de um objeto não lhe muda intrinsecamente a natureza, não o torna belo se na realidade não o foi. Se bem que a primeira concepção seja intuitiva, a realização da obra de arte é longa e cansativa. É disso que se queixam muitas vezes os artistas, como Alberto de Oliveira, ao falar da "estrênua lida, / de encontro às duras formas incompletas" (1926, p. 40). É porque "o trabalho de composição é o mais enfadonho e o mais ingrato de todos" (Bernanos, 1947, p. 244). Neste sentido vai, também, o testemunho de Olavo Bilac: "E horas sem conto passo, mudo, / o olhar atento, / a trabalhar, longe de tudo, / o pensamento" (Profissão de Fé).

4 – O belo – conceituação. 4.1 – Noção complexa. A beleza em si é um conteúdo inteligível, misto de unidade, bondade e verdade de um objeto, manifestado através de sua proporção (harmonia ou consonância), integridade (perfeição) e esplendor (claridade). Trata-se de uma qualidade da obra de arte ou da natureza que, por sua adaptação às faculdades perceptivas do sujeito, como a vista, o ouvido, a inteligência, é capaz de nele excitar um sentimento de admiração. Depreende-se, assim, que a beleza é noção complexa, resultante da cooperação entre sujeito e objeto. Não pertence apenas ao objeto, como entendem os ultra-objetivistas, nem apenas ao sujeito, como julgam os ultra-subjetivistas. Constitui-se formalmente na correspondência entre o sujeito que a aprecia e o objeto dotado de propriedades capazes de provocar no sujeito uma emoção estética.

4.2 – Ultra-objetivistas. Os ultra-objetivistas, como R. Price, seguindo Platão e Plotino, para quem o caráter ontológico da beleza consiste na ordem e nos elementos constitutivos da ordem do ser, afirmam que a beleza é meramente objetiva, extramental, não cabendo à mente qualquer tarefa essencial na formação da impressão estética. E mais: que as condições objetivas produzem inevitavelmete o sentimento da beleza, que a mente revela mas não altera. A beleza existe nos objetos, seja percebida ou não. Nada lhe acrescenta o elemento psicológico.

4.3 – Ultra-subjetivistas. Os ultra-subjetivistas, por sua vez, sustentam que a beleza é fato puramente subjetivo, ainda que ensejado por fenômenos objetivos. Assim, para Hume, beleza e deformidade pertencem de todo à ordem do sentimento, embora haja nos objetos qualidades objetivas apropriadas para as produzir. A coisa-em-si, segundo Hartmann, não é bela, enquanto não relacionada à mente. A beleza seria mero sentimento.

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4.4 – Meio-termo. Contra uma e outra posição exagerada, sustenta T. de Aquino que a beleza, para constituir-se formalmente, supõe, além da ordem real objetiva, a percepção e a conseqüente emoção. A realidade objetiva da beleza necessita, sempre, da subjetividade, ou seja, da atividade psíquica, para ser experimentada. "Belo é aquilo que visto agrada".

5 – Condições objetivas da beleza. 5.1 – Elementos gerais e particulares. Platão tem como condições objetivas da beleza a medida e a proporção; Aristóteles, a ordem unida à magnitude; Cícero e Agostinho, a suavidade das cores. Todos, em última análise, concordam em que o elemento principal da beleza é a ordem. Quais seriam, porém, as qualidades que manifestam a ordem? Além dos elementos gerais dos objetos belos: a unidade, a verdade e a bondade, que, compenetrados, revelam plenamente o esplendor do ser, requerem-se elementos particulares, ou seja, a integridade, a proporção e a claridade, para que se constitua o belo estético.

5.2 – Integridade ou perfeição. O objeto belo deve ter todas as partes, funções ou elementos essenciais. A integridade do objeto significa plenitude e riqueza de perfeição tal que chame a atenção das faculdades cognoscitivas. Além das partes essenciais, deve o objeto belo possuir certa plenitude de dinamismo. Um terreno pantanoso, v. g., pode não excitar o senso da beleza, contrariamente a um campo coberto de louros trigais. A integridade ou perfeição pode realizar-se de múltiplas formas. A falta de um braço numa mulher é digna de atenção, e só ligeiramente notável na Vênus de Milo. Se um pintor futurista quiser retratar apenas a quarta parte de um olho, essa parte poderá ser todo o olho necessário na tela. Vê-se que a exigência de integridade na obra de arte é relativa: depende de seu objeto e finalidade. Na arquitetura há exemplos de belos campanários, torres, janelas, em meio a construções grotescas; suas feições completas em si bastam para sua beleza, com abstração das outras qualidades do todo.

5.3 – Proporção ou harmonia. Esta qualidade supõe a correta disposição das partes ou ações entre si e em relação ao conjunto. A proporção é o elemento principal para a constituição da ordem, entendida como unidade na variedade, onde a variedade de elementos representa a causa material da ordem; a unidade, a causa formal; e a proporção, a causa eficiente.

5.4 – Claridade ou esplendor. Os antigos entendiam que a cor era essencial às coisas belas; os neoplatônicos, que luz e beleza eram conversíveis. De efeito, se "belo é o que visto agrada" (T. de Aquino), ou o "esplendor da forma" (Alberto Magno), do âmago ontológico do ser, de suas propriedades transcendentais, requer-se efetivamente luz e brilho para impressionar as faculdades cognoscitivas. A claridade ou o esplendor, porém, não é propriedade apenas da matéria, como jogo de raios luminosos, mas representa também o brilho da forma, a inteligibilidade do objeto estético. O esplendor do belo é o brilho da forma, a manifestação do tipo ideal ou do caráter dominante do objeto. Através dessa qualidade opera-se a correspondência ou adaptação do objeto belo às faculdades cognoscitivas. A beleza de uma obra de arte deve ser julgada de acordo com a elevação de seu ideal e a correspondência da obra com esse ideal.

5.5 – Ordem não estética. Se bem que a be1eza seja constituída pela ordem e seus elementos, deve-se dizer, contudo, que nem toda ordem é estética. Uma ordem ou regularidade fria, desvitalizada, nada tem a haver com o belo, pois “toda beleza deve assemelhar-se à vida”

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(Aristóteles, Poética). Só é estética a ordem que manifesta à inteligência a perfeição de seu objeto, que é expressiva, que sugere idéias e sentimentos, que traduz a vida da alma. Isso posto, o belo vem a ser a “expressão sensível de uma vida rica, livre, harmônica e triunfante que, sendo conhecida, estimula agradavelmente as faculdades representativas e emotivas" (C. Lahr).

6 – O belo e o bom. - A linha de demarcação entre o belo e o bom é sutil, para não dizer enganosa, motivo por que os gregos expressavam ambas as coisas por meio de uma só palavra: Kalok’agatía. Na ordem objetiva não diferem, já que se baseiam no mesmo fundamento: a realidade das coisas. Ensina Caetano, comentador de T. de Aquino, que “o belo é uma espécie do bom” (In I-II, 27, 1). Todavia, idênticos na ordem objetiva, diferem formal, mental ou logicamente, segundo a relação que mantên à mente. Belo é o bom que, em virtude do briIho de sua forma, ou por sua relação às faculdades cognoscitivas, desperta a contemplação ou o gozo estético, desinteressado, sem desejo de apropriação – agrada simplesmente por ser contemplado. O bom, ao contrário, destina-se a satisfazer uma inclinação, um apetite, por isso agrada ao ser possuído. É claro, o artista pode ter seus interesses, o que não tira, porém, que a obra bela em si seja completamente gratuita, só visando ao prazer estético. As coisas belas são objeto de amor puro e desinteressado, nascido da só contemplação, sem influxo de motivos utilitários e hedonistas. Assim que o desejo se insinua, rompe-se o equilíbrio estético, pois “o belo é o desejável quando deixa de ser desejado para ser contemplado a certa distância" (Baudouin, Psicanálise del arte, p. 284).

7 – O belo e o feio. 7.1 – Belo ontológico. Sob o ponto de vista de seu tipo específico ou de sua natureza abstrata, é belo tudo, especialmente o espírito, que realiza a máxima perfeição no ser. Trata-se do belo ontológico, absoluto ou transcendental. Quem penetrasse o valor expressivo das formas e dos movimentos, veria beleza em todas as coisas. Para Deus, que tudo vê de modo inteligível, nada é feio. Para nós, ao contrário, nem todo ente em estado de singularidade é belo, por falta de propriedades objetivas da beleza. Em outras palavras, tudo é belo ontologicamente; nem tudo, porém, o é esteticamente.

7.2 – Belo estético. O belo estético, natural e artificial ou artístico, conforme esteja concretizado na própria natureza ou nas obras de arte, só existe para o homem, porque apenas ele tem sentido inteligenciado, ou seja, inteligência unida aos sentidos. Nesse entendimento, Antônio Tobias, explicitando a fórmula de T. de Aquino, escreve: "Belo estético é aquilo que, conhecido pelo sentido inteligenciado, agrada-lhe. (...) A beleza estética é a beleza transcendental como fazendo face ao sentido inteligenciado" (1964, p. 257).

7.3 – O feio. O feio é a falta do belo estético. Não chega a ser privação, como o mal, uma vez que o belo estético não é devido. Porém, como o mal, é um ente de razão, que não existe formalmente; só ocorre em sentido material, isto é, apoiado num ente objetivo, desprovido de qualidades que despertem o gozo estético. O esteticamente feio é beleza ontológica limitada. Objeto a que falte, em grau notável, algum elemento objetivo da be1eza, é feio, como o que manifesta vida pobre, incompleta, desproporcionada, ou sentimentos de alma vil e desregrada. O feio não é propriedade transcendental ou absoluta. A transcendentalidade do belo exclui a do feio, noção relativa que é dependente do gosto artístico. Pode ocorrer inclusive a existência de um feio irreal. Este reside com exclusividade na inteligência do apreciador, sem qualquer

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fundamento na realidade, contrariamente ao feio real, que existe na mente formalmente e na rea1idade materialmente.

7.4 – O feio na arte. A arte clássica, essencialmente estética, não dava lugar ao feio. Após as preocupações românticas do trágico-burlesco, sobretudo depois de Dostoievski e da moderna arte plástica, a tese de que o feio em si não pode ser objeto da arte vem sendo contestada. Evidentemente, ele pode entrar na obra de arte, tendo em vista a harmonia do conjunto e o confronto com o belo. "Se a arte é uma expressão da vida, diz G. F. Kneller, deve ocupar-se de toda ela – o feio, o belo, o grotesco, o excelso" (1966, p. 30). É óbvio, não deve ser apresentado como belo, nem ratione sui, ou seja, em razão de si próprio. O feio pelo feio não se justifica. 8 – Outros conceitos. 8.1 – O belo, o agradável, o útil. O belo desperta prazer, mas nem tudo que desperta prazer é belo, porquanto há o prazer que não é estético. O belo e o agradável não só não andam par a par, como até podem neutralizar-se. O agradável é subjetivo, varia com as disposições do sujeito, excita o apetite e provoca saciedade. O belo, por sua vez, tem caráter absoluto e desinteressado, Fonte de satisfação sempre renovada, não enfastia. A saciedade que possa exsurgir, explica-se pelas condições subjetivas da percepção. Tampouco o belo coincide com o útil. Há coisas úteis não belas, e belas não úteis. O belo é amado por si mesmo, por isso é de valor absoluto. O útil se descobre pela reflexão e muitas vezes só após a experiência.

8.2 – O bonito, o gracioso, o sublime. O bonito é forma inferior de beleza, diferindo gradualmente do belo. O gracioso exprime o belo em movimento. Graça é a expressão da facilidade física e moral no movimento. O sublime é o belo em seu grau mais elevado, talvez dele se distinga até essencialmente. É a "expressão sensível do infinito" (Kant). Seu caráter próprio é a intensidade e a ilimitação.

8.3 – O ridículo e o trágico. O ridículo, contrariamente ao feio, que excita aversão e desgosto, provoca mistura de surpresa e alegria ou hilaridade, que se traduz fisiologicamente pelo riso. Em si consiste no contraste, na falta de proporções e deformidade que, por outro lado, nada tem de funesto. "O contraste é o pai do riso", diziam os antigos. O que desperta altas e fortes emoções, de piedade ou terror, chama-se trágico.

9 – Prazer estético. 9.1 – Fato cognitivo e emocional. A experiência estética não é ato meramente cognitivo, mas também emocional, e o próprio gosto estético tem nela papel importante. A percepção e o gozo da beleza, ainda que indissociáveis, são perfeitamente distintos. A percepção é o fator primário, o prazer ou a emoção estética é consecutivo à percepção.

9.2 – Prazer estético e prazer sensível. O prazer estético não coincide com o prazer sensível. Este pode existir sem aquele. Régis Jolivet prefere, até, o termo “satisfação”, para designar a experiência estética, porquanto prazer detém muita carga sensível, ao passo que satisfação é mais espiritual, não excluindo a parte sensível da emoção estética (1970, p. 340). O prazer sensível (visual: suavidade de cor e luz; auditivo: belos sons) é transformado em prazer estético pela inteligência, que sempre intervém, porque a percepção da beleza supõe juízo implícito. Se a beleza sensível é acessível aos sentidos da vista e do ouvido, é porque estes sentidos são penetrados de razão. O prazer estético manifesta-se, assim, como modalidade de apetite intelectivo. É um deleite desinteressado que resulta da pura

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contemplação do belo, que é "uma finalidade sem fim" (Kant, apud Hermann, 2005, p. 36). É o repouso extasiado na perfeição realizada, um sentimento agradável constituído de simpatia, prazer e surpresa, o que numa palavra se pode designar por admiração.

9.3 – Efeitos do sentimento estético. A beleza subjuga, por isso Ruskin chega a falar em "religião da arte" ou “religião da beleza” (apud Jolivet, 1970, p. 341). Por outro lado, o sentimento estético é social: comunica-se, faz vibrar as almas em uníssono, cria unidade espiritual. Assim, o culto do belo é uma forma de educação para o altruísmo. Conta-se que experiências feitas na Índia e no Canadá teriam provado que mesmo plantas, como arroz, trigo, feijão e batata seriam sensíveis à música. Uma "chuva" de música seria fertilizante. Sob o efeito da música, ainda, vacas dariam mais leite, peixes se alegrariam... Isso pode não ser precisamente assim, mas é certo que pessoas convalescem mais depressa sob o influxo de belas musicas. De outra parte, a emoção estética possui também um lado triste. As coisas belas sensíveis, em virtude de sua precariedade e fragilidade, têm uma doçura pungente. A beleza, em si, tem exigência de eternidade.

10 – Gosto artístico, talento e gênio. 10.1 – Gosto artístico. A tese de que o gosto não se discute, vale no âmbito da sensibilidade, não no das artes, onde há belezas objetivamente fundadas, independentes de quem as julga. O gosto artístico é suscetível de formação, e é importante que seja bem formado, porque "ter um gosto médio é pior que não ter gosto nenhum" (Pasternak, 1959, p. 499). O gosto artístico é um hábito, ou uma virtude, não moral mas intelectual, porque torna bom o homem na ordem da compreensão e julgamento das obras belas. Deriva do instinto estético, comum a todos os homens, do qual representa o desabrochar natural, e da educação. Supõe razão ilustrada, potente imaginação, sensibilidade delicada, ideal alevantado. O gosto inato facilmente pode ser falseado, se não for desenvolvido pelo estudo da crítica e de bons modelos.

10.2 – Talento. O talento é o conjunto de capacidades e virtuosidades que tornam o homem apto a produzir obras de arte. Requer imaginação, sensibilidade e inteligência, para conceber; habilidade técnica, longa prática, estudo de modelos, para executar. Diferente de Prometeu, onipotente em conceber, mas incapaz de produzir, o artista talentoso deve ser capaz, não só de conceber uma obra, mas também de a executar.

10.3 – Gênio. Gênio é o talento elevado ao grau máximo de potência, capaz de produzir obras-primas. É certo que o gênio resulta mais da diligência e do labor contínuo do que de puro dom da natureza. Este deve existir, mas só não basta. Supõe educação, disciplina, trato diurno e noturno com a matéria que é objeto de elaboração. Isso é válido, também, para os grandes gênios da humanidade. Não vai em outro sentido o que se diz de Platão: que ele teria consumido mais óleo na lanterna do que vinho no copo.

11 – Conceituação da técnica. 11.1 – Aproximações. Originariamente, técnica significava arte, procedimento, método, maneira de fazer uma coisa. Nesse sentido, pode-se falar, não só em técnica de produção de bens econômicos, mas também em técnica da arte, do verso (poética), do saber, do pensamento (lógica) e até em técnica de salvação. Técnica assim concebida vem a ser método de aperfeiçoamento de uma arte ou ciência, ou de si próprio. O termo grego téchne originou-se do sânscrito tvaksh, que significa fazer, aparelhar. Para os helenos, significava toda atividade forjadora, manipulação e produção de objetos materiais,

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implicando antes capacidade específica de execução do que verdadeira atividade criadora. É um sentido amplo, abrangendo não apenas conhecimento aplicado, conhecimento enquanto serve de base à ação prática (uma espécie de praxiologia), mas também a própria atividade prática, forjadora, enquanto aplicação de um conhecimento. O fazer técnico, baseado num autêntico saber, opõe-se ao fazer vulgar de êxito incerto.

11.2 – Sentido fundamental (subjetivo). As ciências dividem-se, quanto ao fim, em especulativas e práticas. As primeiras visam a conhecer para conhecer; as segundas, para agir ou fazer. No seio das ciências práticas surge uma subdivisão, segundo o modo de encarar o objeto que versam. Umas o encaram especulativamente, isso é, procuram deduzir os princípios gerais e remotos da operação – são as ciências especulativamente práticas, como a medicina, a filosofia moral ou ética (no âmbito do agir) e a filosofia da arte (no âmbito do fazer). Outras encaram seu objeto praticamente, ou seja, versam os princípios próximos da operação – são as ciências praticamente ou duplamente práticas, no fim e no modo de encarar seu objeto, como a medicina prática e a casuística (no campo do agir), a técnica e as artes particulares (no campo do fazer). A técnica, no sentido mencionado, é o saber ou a ciência praticamente prática do fazer, que visa à produção do útil. Em outros termos, é a ciência que dirige imediatamente a execução de coisas úteis. Superior à experiência e inferior ao raciocínio, segundo Aristóteles, está posicionada entre o conhecer e o operar. Representa o aspecto aplicado da atividade especulativa, podendo definir-se como a sistematização racional das regras em busca de certos fins práticos, ou o conjunto de leis eminentemente práticas induzidas da experiência e ordenadas à prática. É de notar que Aristóteles, na maioria das vezes em que trata da divisão das ciências, propõe outro esquema: sua divisão em ciência teórica ou especulativa, ciência prática, que cuida do agir, e ciência produtiva, cujo objeto é o fazer, campo específico da arte e da técnica (Ética a Nicômacos, I, 1).

11.3 – Sentido objetivo. Em sentido objetivo, a técnica é o instrumental com que o homem completa sua capacidade de dominar a natureza física, prolongando a mão pela ferramenta e a maquina. Trata-se dos objetos, ou produtos da atividade humana, em que se materializa a ciência praticamente prática do fazer, a fim de possibilitar ao homem "o exercício do domínio sobre as coisas" (Corção, 1952, p. 285).

11.4 – Várias fórmulas. Para Leonel Franca a técnica é a "aplicação das descobertas científicas à organização material da sociedade" (1942, p. 28); e para L. W. Vita é "o conjunto das habilidades cujo auxílio permite aos homens o aproveitamento da natureza para fins humanos" (In: Ortega y Gasset, 1963, introdução). É sugestiva e de cunho literário a definição de José Ortega y Gasset, que vê na técnica a "reforma que o homem impõe à natureza em vista da satisfação de suas necessidades", que vem a ser um "esforço para poupar esforço" (1963, p. 14 e 31). E. Mounier entende que a técnica põe um "sistema de regulação entre o desejo e sua satisfação" (1959, p. 96). E. Le Roy define a técnica como "diálogo entre as mãos e o cérebro" (apud Franca, 1942, p. 28).

12 – Técnica e ciência. O fazer técnico nutre-se do saber especulativo. Ambas, ciência e técnica, situam-se no domínio do que é. Porém, o contato que a técnica mantém com a realidade é não apenas descritivo, como o da ciência, mas ainda modificativo. Para a transformação da natureza, a técnica estabelece regras que são apenas condicionalmente imperativas, isto é, impõem maneira de operar, mas só em função de um fim ou objetivo. Para

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a obtenção dele, a técnica indica as normas a adotar. O próprio fim ou objetivo, todavia, nem a técnica, nem a ciência o podem prescrever ou impor. A descoberta ou a eleição do fim é tarefa de outro saber, distinto do saber técnico e mais elevado do que ele. Em outras palavras, a técnica não prescreve fins, porém, meios; não impõe deveres, mas procederes. Ambas, a ciência tanto quanto a técnica, transformam em profundidade os hábitos e as instituições da sociedade; conjugadas, levam ao crescimento da produtividade e propiciam aumento de atividade livre, ou lazer. A recreação que se instala no momento do lazer, segue os caminhos da arte, não da ciência. "A tecnologia conduzirá a humanidade para vazios imensos na programação de tempo vital, e exclusivamente pelas artes se dará sentido a essa expectativa de recuperação pelo homem da disponibilidade de maiores parcelas de seu tempo – livre e utilizável a seu prazer e gosto" (Celso Kelly, Indicação 4/69 do Conselho Federal de Educação. Documenta, n. 100, p. 185). Os tecnicamente extraordinários meios de comunicação de massa julgam-se vocacionados para preencher o tempo livre das pessoas, e o fazem com programação variada ao longo de 24 horas diárias. O produto que oferecem, todavia, vem misturado, muitas vezes, com futilidades, baixarias importadas ou made in Brazil, atentados à moral e bons costumes, de sorte que, em vez de servir ao bem comum, lhe presta grave desserviço.

13 – Técnica e arte. A técnica é intermediária entre a ciência especulativa (virtude do intelecto especulativo) e a arte (virtude do intelecto prático da ordem do fazer). Entre técnica e arte há semelhanças e diferenças.

13.1 – Semelhanças. As principais semelhanças entre arte e técnica são: A – Ambas pertencem à ordem do fazer, que é luta com a matéria no sentido de a dominar e organizar, uma espécie de luta de Jacó às avessas. B – O ato técnico e o ato artístico são internamente autônomos, regendo-se por normas próprias. Durante o processo de criação, o que faz vive uma atmosfera amoral, ou moralmente neutra. Em si os atos do artista e do técnico, quando influem no homem, melhoram-no técnica e artisticamente, não ipso facto moralmente ou tout court. C – As obras da arte e da técnica são fins próximos, por isso propiciam repouso ao espírito. Por si só, todavia, não são capazes de justificar a existência humana, por não serem fins últimos. A absolutização dos valores da técnica (tecnocracia) e da arte (esteticismo) não passa de pura idolatria.

13.2 – Diferenças. As principais diferenças entre técnica e arte são: A – A arte visa ao deleitoso, ao gratuito; a técnica, ao útil. B – A arte é pessoal: a obra artística sempre vem com o nome de seu autor; a técnica é impessoal: o autor geralmente não aparece. [MacIntyre assinala também a impessoalidade da ciência em confronto com a pessoalidade da obra de arte (1992)]. C – O produto da arte é coisa, como realidade física, e sinal, enquanto significa outra realidade, a qual substitui. A obra de arte, além da sua forma natural, é portadora de uma forma intencional, o que não acontece com o produto da técnica, mera coisa que nada representa. Além da forma própria fisicamente constituída não é portadora de qualquer forma intencional ou representativa. D – A arte respeita a natureza; a técnica a domina. Esse domínio, porém, não é uma violência pura contra a natureza, porque inclui submissão a suas leis. Para dominar, a técnica primeiro se conforma com a natureza, isto é, obedece-lhe. E – A arte situa-se no domínio da intuição e da afetividade; a técnica, no da racionalidade, da fórmula, do jogo das idéias claras e distintas. Por essa razão, o produto da técnica é menos afetivo e humano do que o da arte; útil, insere-se facilmente no meio social, levando a esquecer comodamente outros problemas, tais como os de ordem moral e religiosa. F – O artista não tem critério fácil para saber se observou as regras e realizou seu objetivo; o técnico,

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ao contrário, sempre conta com indicações precisas, para esse fim. G – O domínio da arte é o singular, o contingente, a graça, a maravilha, por isso restaura o homem e impede sua desumanização; o da técnica é o necessário, o inevitável, por isso monotoniza, cansa e envelhece. A indústria pode embrutecer o homem à medida que não se importa com a beleza. H – O artista aproxima-se da criança que brinca; o técnico, do adulto que joga. Obviamente, a arte e a técnica opõem-se apenas em estado puro. No mais não são inconciliáveis. Pelo contrário, o ideal é que a técnica valorize os seus produtos precisamente através da arte, lançando mão de soluções plásticas, que falem à sensibilidade do consumidor, caso em que se configura o conceito de arte industrial. Só pela arte é que a técnica se personaliza.

14 – Origem (metafísica) da técnica. 14.1 – Condição do bruto. O bruto – animal irracional – é um ser que coincide perfeitamente com o perfil de suas necessidades orgânicas. Sente fome, alimenta-se, dorme e não tem outra coisa a fazer. Em sua atecnia contenta-se com o objetivamente necessário: quer viver – e só. Não podendo exercer atividade de seu repertório natural para satisfazer uma necessidade, deixa-se morrer. Não encontrando fogo para se aquecer, nem caverna onde se abrigue, acaba morrendo de frio. Não sonha com qualquer coisa semelhante a uma vida não-biológica.

14.2 – Condição do ser humano. O homem é diferente. Tendo resolvido que há de viver, tem necessidade (subjetiva, condicional) de comer e abrigar-se, mas não sente isso como sua verdadeira vida, porque não coincide com a natureza ou a circunstância em que está imerso. Nessa condição, é capaz de desprender-se transitoriamente das necessidades ou urgências vitais, para se ocupar do que não visa à sua satisfação direta. Volta para dentro de si e inventa meios para tornar mais fácil, regular e segura a satisfação das necessidades vitais, de modo a poder entregar-se a outras tarefas, objetivamente supérfluas, em que vislumbre a verdadeira vida humana. Em outras palavras, o homem é técnico, porque de seu empenho por estar no mundo é inseparável o de estar bem no mundo; porque só lhe é verdadeiramente necessário o objetivamente supérfluo. Assim, aos “eternos navegadores” (aeináutai) milésios, a que pertencia Tales, era mais necessário navegar do que viver. Em suma, o homem é técnico, porque é um “animal racional” (Aristóteles), um “centauro ontológico” (José Ortega y Gasset), de que uma parte está submersa na natureza e a outra a transcende; porque tão necessário quanto viver lhe é realizar a parte extranatural ou ultrabiológica da vida, correspondente à espiritualidade de sua natureza.

14.3 – Dimensões biológica e ultrabiológica. Segundo José Ortega y Gasset, a técnica, “criação especificamente humana” (1961, p. 59), “reforma que o homem impõe à natureza em vista da satisfação de suas necessidades” (1963, p. 14), “reação enérgica contra a natureza ou circunstância que leva a criar entre esta e o homem uma nova natureza posta sobre aquela, uma sobrenatureza” (1963, p. 14), decorre da forçosidade original que tem o homem de construir, com o material da natureza, sua pretensão ultrabiológica em que, aliás, consiste sua felicidade. Dessa maneira, a vida humana é um problema quase de engenheiro, empenhado em unificar dois entes heterogêneos (o homem e o mundo), de modo que um deles (o homem) logre inserir no outro (o mundo) sua parte extranatural; e isso é possível apenas através da técnica, que se ordena ao cumprimento do programa extranatural do homem, ou à produção do supérfluo, vale dizer, de meios destinados a satisfazer as necessidades objetivamente supérfluas, que são necessidades apenas para quem precisa estar bem no mundo.

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15 – Momentos do ato técnico. 15.1 – Invenção e execução. O ato técnico comporta dois momentos: o da invenção e o da execução. Inicialmente unidos e praticados pela mesma pessoa, os dois momentos separaram-se na técnica moderna, como funções específicas do técnico e do operário, respectivamente.

15.2 – Invenção pré-técnica. O manancial técnico é, em si, praticamente ilimitado. Ser técnico, somente técnico, é poder ser quase tudo, e não ser nada em determinado. A técnica, plenitude de possibilidades, é mera forma vazia, incapaz de determinar o conteúdo da vida. Isto é sério e atordoante. Achando em princípio poder realizar tudo o que imagina, o técnico deve saber o que efetivamente pretende. Por isso, antes da invenção técnica, impõe-se a invenção pré-técnica, isto é, a invenção do próprio desejo original do que o homem pretende ser. Entende José Ortega y Gasset que estamos em crise de desejos: falta ao homem atual imaginação para inventar o argumento de sua vida. Essa observação de Ortega y Gasset talvez deva ser relativizada. O mal parece hoje o contrário, ou seja, excesso de imaginação, imaginação louca... Conquista espacial, viagens interplanetárias, decifração dos segredos da vida, produção artificial do ser humano por clonagem, etc. O que falta inventar, ou melhor, redescobrir, é o verdadeiro sentido da vida humana, em prol da qual deve ser orientada toda cultura, inclusive a técnica.

16 – Estádios da técnica. 16.1 – Técnica aistórica e histórica. A técnica dos animais construtores é a-histórica, fixa, sem progresso. Não assim a técnica do homem, que é histórica. No decurso dos tempos perderam-se e tiveram de ser redescobertas técnicas magníficas, tais como as que estão na origem da pólvora e da imprensa, existentes na China antes mesmo que existisse na Europa, sem contudo terem servido para algo de apreciável. No tempo de Platão, a técnica dos chineses era superior à dos gregos em muitos pontos. O Lago Méris, de que fala Heródoto, armazenava 3.430.000 metros cúbicos de água. Graças a essa obra hidráulica, o delta do Nilo, hoje deserto, era uma região fertilíssima. Na linha de desenvolvimento da técnica, podemos distinguir fases, ou estádios, como os referidos a seguir.

16.2 – Técnica do acaso. A técnica do acaso é a do homem primitivo, que não possui plena consciência de sua capacidade de reformar a natureza. Seu cabedal de atos técnicos é tão escasso que, praticamente, não se distingue do repertório de atos naturais. Assim o primitivo pensa poder tirar o fogo da pedra como pode andar. Ignorando sua capacidade de inventar, não busca soluções, mas estas lhe vêm ao encontro. De fricção casual nasce o fogo, fato que desperta subitamente a visão de nova conexão entre as coisas. As invenções do homem auroral, que não se conhece como homo faber, não passam de fruto do acaso, da lei do trial and error. Os resultados positivos, em seus tentames casuais, não podem ser previstos com segurança, de vez que obedecem ao jogo das probabilidades. Todos os membros da comunidade primitiva realizam os atos técnicos: todos tiram fogo, todos preparam flechas. Isto é possível, porquanto tais atos são escassos e singelos, ainda que envoltos num halo mágico.

16.3 – Técnica do artesão. A técnica do artesão era vigente na velha Grécia, na Roma imperial e na Idade Média. Os atos técnicos haviam aumentado em número e crescido em complexidade, não podendo mais ser exercidos por todos indiscriminadamente. Aos artesãos, preparados em longo aprendizado, coube a tarefa de as desempenhar. Dessa maneira formou-se a consciência de que a técnica é algo à parte dos atos naturais. As técnicas emergiam de longa e insondável tradição a que o artífice devia ligar-se. Voltadas ao passado, não conheciam inovações substanciais, só variação de estilos nas destrezas, que se transmitiam sob a forma de escolas.

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O homem com seus atos naturais executava os atos técnicos. Estes, aliás, eram ainda limitados, não passando de manobra ou manipulação. Por essa razão era possível ao artesão ser indivisamente técnico (inventor) e operário (executor). A técnica ainda não se desprendia daquele que a executava. O homem, animal tools making – animal fazedor de utensílios (Benjamin Franklin, apud Arendt, 1981, p. 157 e 172), criava instrumentos que o auxiliavam, não produzia máquinas que o pudessem substituir. O instrumento suplementa o homem, que ocupa o posto principal, relação inversa da que acontece entre a máquina e o ser humano.

16.4 – Técnica do técnico. Esta é a fase da técnica moderna, que já não é pura manobra, mas fabricação. O instrumento passa ao primeiro plano, na forma de máquina – instrumento que atua ou produz por si o objeto. A primeira máquina foi o tear de Robert, criado em 1825. Nessa fase, o homem suplementa o instrumento, ou a máquina que trabalha por si, tendo sido convenientemente alimentada ou programada. As funções do técnico e do operário separam-se: o primeiro inventa plano de atividades, método, procedimento destinado a satisfazer necessidades com um mínimo de esforço – o que os gregos chamavam de mechané, o que é a técnica propriamente dita; o segundo executa o plano inventado – o que é a fase da operação, do fazer.

16.5 – Técnica moderna. A técnica moderna, da mesma matriz histórica da física, liga-se a Galileu, pai da ciência mecânica, a Descartes e Huygens, criadores da interpretação mecanicista do universo. Em ambas as ordens, na ciência e na técnica, Leonardo da Vinci foi precursor, sendo homem de ciência tanto quanto de oficina (não só de pintura, como também de mecânica). Passou a vida a inventar artifícios. É curioso que a ciência física como que nasceu da técnica: Galileu não se preparou na Universidade, mas nos arsenais de Veneza, entre gruas e cabrestantes. O manancial dos atos técnicos, em princípio é ilimitado. E o homem de hoje a ele está preso inexoravelmente. Insere-se na técnica como o homem primitivo em seu contorno natural. Se a técnica retrocedesse, centenas de milhares de homens simplesmente deixariam de existir. Essa hipótese, porém, é desprezível, porquanto o progresso técnico é cumulativo. Por outro lado, se ela não retroceder em sua fúria exploratória e devastadora da natureza, o apocalipse ecológico estará à vista logo mais, como preconizam muitos pesquisadores, ativistas e filósofos. Não é necessário ser profeta para fazer previsões mais ou menos catastróficas acerca do destino da vida e do planeta, levando em conta os dados científicos disponíveis sobre aquecimento global, buraco da camada de ozônio, esgotamento dos recursos naturais, poluição da terra, da água, da atmosfera, banalização do mal, desrespeito aos direitos humanos fundamentais etc. 16.6 – Períodos mais ou menos propícios. Há períodos mais ou menos propícios ao progresso técnico. Os implementos de pedra, com suas formas quase inalteradas, permaneceram durante mais de três milhões de anos. A técnica é um processo civilizatório. O invento, se prematuro, pode ficar no reino das idéias. No século XVII, Denis Papin descobriu o vapor, que só foi utilizado no século XIX, pelo engenheiro Fulton. Uma descoberta pode ser gratuita ou lúdica; sua aplicação ao domínio da natureza, porém, sempre deve ser ensejada por uma necessidade social. A bomba atômica, por exemplo, nasceu em laboratórios e gabinetes de pesquisas puras, e logo teve triste e catastrófica aplicação, na decisão da segunda Guerra Mundial.

17 – Ambigüidade da técnica. 17.1 – Antitécnica. A luta contra a técnica começou com os socialistas utópicos do século XIX. As máquinas eram vistas como furadoras de greves. Proudhon dizia que prometiam aumento de riqueza e liberdade, e só davam pobreza e

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escravidão. Segundo F. Zweig, o progresso tecnológico não leva necessariamente a melhor distribuição da riqueza, de vez que o progresso social não anda a par com o progresso tecnológico. De acordo com L. Munford (Técnica y tecnología), a vitória do industrialismo é ruptura com o passado, nova barbárie, pois o interesse dos homens passou dos valores da vida aos pecuniários. Nicolai Berdiaef (Der Mensch und die Technik, Lucerna, 1934), pensando em certos exageros do taylorismo nos processos de produção industrial, afirma que a civilização mecanotécnica é fatal à alma, porque o coração não suporta bem o contato gelado com o metal. O mundo se desumaniza, o elemento racional organizado substitui o orgânico irracional, mas engendra, ao mesmo tempo, outro elemento irracional – o desemprego. As marcas da personalidade sucumbem na universal estandardização. "A máquina é anti-humana por sua natureza. A técnica assesta um golpe moral na mundividência humanista e no ideal humanista do homem e da cultura" (apud Hiller, 1973, p. 7). Segundo O. Spengler (O homem e a técnica), a máquina foi, com razão, chamada diabólica, pois destrona Deus, entregando ao homem a sagrada causalidade. O. Veit nela vê a raiz de todos os males. A técnica é uma tragédia: o homem não é livre num mundo governado pela diabólica potência da máquina. Carlyle, Bernanos e Ruskin fazem coro aos que criticam a própria essência da máquina.

17.2 – Máquina – ser e uso. “O antimaquinismo é menos uma doutrina que uma corrente afetiva e passional. ... Nutre-se mais de panfletos que de tratados, mais de emoção que de rigor”. Desde o século XIX, é um verdadeiro “mito sociológico” (Mounier, 1959, p. 56 e 49). Constituiu-se como mito burguês, porquanto o operariado lhe ficou estranho: a máquina sempre foi muito familiar ao operário. Os males que dela emanam não se referem ao seu ser, mas a seu uso. “Não existe pecado original de uma civilização, não há um pecado de maquinismo” (Mounier, 1959, p. 144). Marx diria que o mal não está no meio material de produção, mas no seu modo social de exploração. É erro limitar o destino da técnica a certos aspectos contingentes de seu primeiro desenvolvimento, orientado para a eficiência e o lucro. É claro, há aspectos negativos e positivos a considerar no exame da técnica. A propósito, cabe mencionar:

17.3 – Aspectos negativos. A técnica, instituindo a racionalização, a mecanização do trabalho, a uniformidade (em que o operário se sente “membro vivo de um mecanismo morto” (Marx), levou à substituição da estrutura paternalista, mas humana, da empresa por uma disciplina impessoal e desumana, onde se impunha o regulamento e o contrato de trabalho unilateral, que ao operário só cabia aceitar. Semelhante situação, porém, já pertence mais ao passado do que ao presente. Desde o início, o progresso técnico foi mais rápido nos armamentos de guerra do que em qualquer outro setor. A olaria, a indústria do vime, a agricultura, por exemplo, desde o século XVI, só conheceram progressos embrionários desde o neolítico. Os engenhos de guerra, por sua vez, já haviam passado por aperfeiçoamentos constantes. Adam Smith dá até, como exemplo típico de especialização e concentração, a fabricação de armas. As duas guerras mundiais imprimiram à motorização das estradas, à aviação, às radiocomunicações um progresso vertiginoso. Tudo isso sedimentou-se na memória dos povos. Para desfazer tal lembrança, é preciso que a técnica percorra longa carreira de paz. A máquina e sua cólera (crises, opressão, guerra) são provedoras de insegurança. É de notar que o homem da técnica tem medo: que fazer dos instrumentos que inventou? Leonardo da Vinci recusou-se a publicar os desenhos de submarino que inventara, por achar desleal atacar sem aviso um inimigo que não nos via. A insegurança, bem como o sentimento

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de fatalidade e impotência dela decorrente, repercutem na sensibilidade coletiva, como outrora os caprichos da atmosfera. A máquina é um ser cuja potência ou rendimento é proporcional à força acumulada, à rapidez de execução, à regularidade. Com ela perde-se o costume de admitir que a fraqueza possa ter razão, que a fragilidade, a começar com o ser vivo, seja sinal de alta qualidade. Marx atribuiu os efeitos alienantes da máquina ao capitalismo, o que é engano, de vez que os mesmos fenômenos puderam ser observados em regimes diametralmente opostos. A técnica traz em si uma hybris, ou um poder de transbordamento independente dos regimes que a utilizam. Porém, pelo afastamento do bom uso da técnica, é responsável o ser humano, porquanto tal desvio só pode acontecer sob a sua direção.

17.4 – Aspectos positivos. Indubitavelmente, a técnica apresenta mais aspectos positivos do que negativos. A natureza se oferece para ser recriada, processo que não é só de humanização, como quer Marx, mas também de divinização. “Um dos nossos papéis é arrastar o mundo material nos sulcos da nossa divinização” (Mounier, 1959, p. 145), o que logramos através da técnica. Certamente, não vale dela esperar o que não pode oferecer: que substitua a virtude. Se a técnica, de um lado, proporciona facilidades até a um imbecil, de outro, suscita a responsabilidade, porquanto jamais a distração, a negligência, a malícia, tiveram tantos meios de prejudicar como agora. Qualquer vacilação pode ser fatal. Vejam-se os efeitos desastrosos que pode causar um black out, ou “apagão”, como o do Rio de Janeiro, em 11 de abril de 2001. A máquina educa para uma espécie de honestidade elementar, de lealdade viril, pois a ela repugna a tapeação. Sem interioridade ou segredos, exprime-se totalmente de uma só vez. Sua lei é a da rapidez: se nada tem a esperar de si, por que faria esperar os outros? – A máquina até é superior ao homem em muitos aspectos. Enquanto este se fadiga, aquela é viva e vigilante; o homem pode ser estúpido e obtuso, a máquina é lúcida e calma; o homem precisa repousar, a máquina não exige descanso: está sempre no seu posto, jamais lhe falta paciência: seu poder é mais forte, às vezes, do que centenas de homens conjugados. – A máquina libertou o homem de parte das atribuições que dele não eram dignas, por apelarem só às forças inferiores, em detrimento das superiores; libertou-o da dor corporal, dos males cotidianos decorrentes do processo da natureza, dos grilhões do tempo e do espaço. Por isso Paul Tillich exalta a técnica e Friedrich Dessauer (Streit um die Technik, Frankfurt, 1958) chega a ver nela uma mensagem divina. É oportuno lembrar que a técnica propiciou, entre outras mil vantagens, eficientes tratamentos de saúde e extensão da longevidade; aumento da produtividade e da produção, por meios como o controle do solo, do clima, a reprodução científica de animais e outros; melhoria da habitação, com seus servomecanismos (eletrodomésticos), sua funcionalidade, sua arquitetura organicista; vasto aproveitamento das riquezas naturais, o que não sacraliza a exploração predatória do meio ambiente; facilidade de comunicações e transportes; difusão da cultura, possibilitando que os menos favorecidos tenham acesso à cultura que outrora era privilégio dos abastados. Para muitos a técnica é condição prévia para o exercício de uma vida plenamente humana.

18 – Perspectivas do futuro. 18.1 – Ameaças. Em futuro imediato, entende Bertrand Russel, a técnica alcançará o terreno da biologia, psicologia e ciências sociais, com o mesmo vigor e poder com que dominou a natureza inanimada. Isso evidentemente representará grande risco para o homem, o risco de ser coisificado, de não só ser tratado como coisa, mas também de ser reproduzido artificialmente, fato que acarretará a despersonalização da procriação humana. O previsto pelo filósofo inglês de fato está se realizando em nossos dias, com a reprodução artificial humana, especialmente pela clonagem que está acontecendo ou em vias

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de acontecer. A possível manipulação do homem, entretanto, não será apenas biológica, senão também social. Através das técnicas de publicidade e propaganda, a opinião pública poderá ser plasmada segundo o arbítrio dos dirigentes. Se tal unificação das consciências não for concebida em termos teilhardianos, a liberdade individual e os valores de personalidade estarão seriamente ameaçados. Se de fato existirem sociedades tão artificiais como as máquinas a vapor, em que tudo estará conscientemente previsto e planificado, como pensa Bertrand Russel, porque o homem da técnica dá mais valor ao artificial do que ao natural, o indivíduo tenderá a tornar-se, cada vez mais, simples meio de utilidade social. A isto conduz a idolatria da técnica, na tecnocracia, como bem o apreendeu Jacques Maritain: “A tecnologia é um bem, como meio de que se serve o espírito humano e para os fins do homem. Mas a tecnocracia, isto é, a tecnologia compreendida e venerada de modo a negar qualquer sabedoria superior e qualquer outra compreensão, que não seja a dos fenômenos ponderáveis, só deixa, na vida humana, a sensação de força ou no máximo de prazer. E termina, necessariamente, numa filosofia imperialista. Uma sociedade tecnocrática é sempre totalitária. Uma sociedade tecnológica pode ser democrática, se tiver uma inspiração supra-tecnológica” (1947, p. 195).

18.2 – Possibilidade de retrocesso. A técnica, como a ciência positiva, é cumulativa. Toda nova descoberta ou invenção acrescenta-se ao que já está constituído como saber certo, sem necessidade de refazer o caminho andado. Não é assim com o progresso moral da sociedade, que não é cumulativo. O progresso técnico e o moral não andam par a par; este não é gerado automaticamente por aquele. Não está excluída, inclusive, a hipótese de algum substancial retrocesso, como insinua José Ortega y Gasset: “O progressismo, ao acreditar que já se havia chegado a um nível histórico em que não cabia substantivo retrocesso, senão que mecanicamente se avançaria até ao infinito, afrouxou as cavilhas da cautela humana e deu lugar a que irrompa de novo a barbárie no mundo” (1963, p. 29). O alerta de Ortega y Gasset soa como profecia, pois, em nossos dias, a barbárie reinstalou-se no mundo, haja vista os atentados no WTC de Nova York, em 11-9-2001; num trem urbano de Madrid, em 11-3-2004; na escola de Beslan, na Rússia, em 3-9-2004; em ônibus no centro de Londres, em 2005, para só mencionar alguns dentre os mais chocantes. É manifesto que no tecnicismo predomina o espírito positivista e pragmatista. Já não se procura conhecer tanto o que as coisas são, quanto aquilo para que servem. Vale dizer que voga a moral da eficiência, conducente, por via natural, à teoria “o fim justifica os meios”, maquiavelismo aberto que subverte toda ordem moral. A isso, porém, a técnica, que tende ao bom uso, não está internamente ordenada. Se ali chega, é por uma perversão do espírito humano.

18.3 – Perspectiva realista. O marxista Ernst Bloch, em seu Princípio esperança, imagina uma situação final da humanidade, liberta das necessidades do trabalho, por ser nisso substituída pela máquina. Em seu sentir, no paraíso terrestre futuro estará superada toda e qualquer injustiça, e as pessoas passarão o tempo com seus hobies, sem outros compromissos. Esse utópico “admirável mundo novo” é incisivamente criticado por Hans Jonas, com fundamento na ambigüidade radical do ser humano, que sempre foi e sempre será no futuro capaz de fazer o bem e o mal, de sorte que resulta definitivamente afastada a possibilidade de um paraíso terrestre (Nedel, 2002, p. 181-189). A Doutrina Social da Igreja, igualmente, apela para o princípio da realidade, segundo o qual o que é possível não é um paraíso terrestre, porém um mundo mais justo e humano (Nedel, 2000, p. 208).

18.4 – Apocalipse ecológico. O Fórum Social Mundial, com suas edições sucessivas, tem

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sustentado que um outro mundo é possível. O que está no horizonte, porém, não é exclusivamente a possibilidade de um mundo melhor, senão também de um terrivelmente pior, sem excluir a possibilidade de um apocalipse ecológico em futuro não muito remoto. A alternativa é um radical revertério no trato do homem com o nosso planeta e seus ecossistemas. São quase diários os alertas de cientistas, agentes sociais e políticos, filósofos, associações, ONGs, e outros, sobre questões graves a serem enfrentadas, como o aquecimento global com suas causas, a destruição da camada de ozônio, a extinção de espécies vivas, o esgotamento dos recursos naturais não-renováveis, a poluição da terra, do ar, da água, e muitas mais. Enquanto a consciência ecológica aumenta no mundo, decisões políticas de reordenamento das atitudes e procedimentos humanos são ainda escassos. Politicamente, talvez se pense que ainda não estamos no fundo do poço. 19 – Arte, técnica e moral. 19.1 – Questão complexa. O prob1ema das re1ações entre arte e mora1 é uma vexata quaestio – questão polêmica. Para uns a arte é independente da moral, seguindo a teoria da “arte pe1a arte”, contida na sentença de Kant: “a arte é finalidade sem fim” (Crítica do juízo, § 59; Hermann, 2005, p. 36 e 65). Esse movimento surgiu na França, no século XIX, liderado por Benjamin Constant e Théophile Gautier, pretendendo a autonomia completa da criação artística, desvinculada de qualquer finalidade distinta dela mesma, pedagógica ou moral (Hermann, 2005, p. 47). O limite dessa posição seria que a arte é contrária à moral. Se isso é válido, "o pecado terá que ser, fatalmente, o elemento do homem de letras" (François Mauriac); e "não há obra de arte em que não entre a colaboração do demônio" (André Gide). Ver essas teses em J. Mendes (1947, p. 272). Para outros, a arte depende da moral, devendo a ela subordinar-se. A função da arte seria moralizar, como as fábulas de Esopo ou de La Fontaine. A posição intermediária aqui defendida é a de que a arte, internamente independente, deve subordinar-se à moral indiretamente, como toda atividade humana consciente e voluntária, o que também vale para a técnica.

19.2 – Independência interna. A arte, como virtude do intelecto prático destinada ao fazer, só opera o bem. Por ser da ordem do intelecto, seu domínio é amoral. Sua independência intrínseca em face da moral deve-se ao fato de possuir objeto próprio: tende à perfeição de um objeto exterior, de acordo com regras específicas. Assim, cada uma das artes particulares está sujeita a regras impositivas para os respectivos aficionados; regras que não passam de delineamento de procederes, que se impõem condicionalmente. Ninguém é obrigado a ser artista; mas se alguém o quiser, terá de obedecer às prescrições pertinentes, que são imperativos hipotéticos. O mesmo vale para a técnica. A ninguém está assinado um dever de ir à Lua, mas se alguém o desejar terá de submeter-se aos procedimentos tecnicamente adequados, sem o que não alcançará seus objetivos. O exercício de uma arte torna o agente bom sob um aspecto particular, da razão prática, ou seja, enquanto artista; não ipso facto como homem, ou pessoa humana. Dessarte, um escritor excelente sob o ponto de vista de sua técnica literária pode, como homem, ser um crápula. Nisso a arte, virtude do intelecto prático da ordem do fazer, difere da virtude moral, que, além de conferir o poder de realizar ações boas, torna bom o próprio agente, como pessoa humana, ou tout court – bom simplesmente, por orientá-lo para o seu fim último. Aristóteles definiu a virtude moral como "hábito que torna bom quem o tem e sua obra" (Ética a Nicômaco, 2, 6); definição retomada por T. de Aquino (Suma teológica, 2-2, 58, 3; De regno, 1, 9, 26). O que vale para a arte propriamente dita, também se aplica à técnica, a outra vertente da práxis humana na ordem dos factíveis. Na produção de seus objetos úteis é internamente autônoma, sujeita a regras próprias. Sob o ponto de vista moral, é neutra ou indiferente.

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Todavia, seu uso determinado pelo arbítrio humano pode ser orientado para o bem ou para o mal. Todavia, sua produção e seu uso, enquanto atos humanos, estão sujeitos à moral.

19.3 – Dependência externa ou indireta. Ainda que a arte e a técnica, em seu domínio próprio, sejam autônomas, caem sob o domínio da moral, indiretamente, como atos humanos, produtos do homem que se dirigem a outros homens. Com efeito, toda atividade humana consciente e livre está sujeita às normas da lei moral natural. O artista e o técnico, antes de serem tais, são homens, sujeitos da lei moral. Assim, em seu fazer artístico ou técnico dependem da moral. O criador humano, enquanto produz uma obra, não se despoja de sua humanidade. A qualidade moral do seu fazer, de si neutro sob o ponto de vista moral, captará moralidade da intenção do sujeito, das conseqüências e das demais circunstâncias. A dependência da moral é indireta. Assim, pelas razões aduzidas, dadas as condições do sujeito, do tempo e do meio social em que se insere a obra de arte, subordina-se esta acidentalmente à moral. Não se realiza ela num mundo de espíritos puros, mas de homens fracos, sensíveis às solicitações do mal. O conflito não se instala, a rigor, entre a arte e a moral, mas entre a moral e o artista ou, mutatis mutandis, o técnico. Em suma, depende da moral diretamente, não a arte nem a técnica em si, mas o criador artístico e técnico, e este não enquanto artista ou técnico, mas enquanto homem. Como artista ou técnico, depende diretamente das regras da sua arte ou técnica; como homem que é com anterioridade à sua qualidade de artista ou técnico, depende da moral. Por essa razão, a arte e a técnica dependem da moral, mas tão-só indiretamente, isto é, através do artista e do técnico que, na qualidade de seres humanos, a ela estão subordinados. A arte, como qualquer outra atividade humana, não é fim absoluto em si mesma, porém meio que se ordena aos fins sociais e ao fim último do homem. "A ordem moral objetiva tem a primazia em relação às demais ordens de coisas humanas, inclusive da arte" (Concílio Vaticano II, Inter mirifica, 1963, n. 6). Se assim é, não se justifica o adágio "arte pela arte", atenta apenas à busca da perfeição formal das respectivas obras, sem atenção ao bem moral, sem considerar que sempre se trata de expressão do homem e de sua atitude perante a realidade (mesmo que seja de evasão); e que, por seu caráter social, afeta outras pessoas. O mesmo vale para o adágio “técnica pela técnica”, derivado analogamente do anterior. Acima dos direitos de criação do artista e do técnico pairam, em ordem de precedência, os deveres do homem que eles são com anterioridade e sempre deve sempre subordinar-se à moral. Cabe ao artista e ao técnico, ao criarem, não só adotar as regras de seu fazer concreto, mas também atentar para os princípios e valores morais de toda conduta humana. Note-se, aliás, que ontologicamente os deveres precedem os direitos; embora estes sejam anteriores àqueles socialmente, razão por que temos muito mais direitos do que deveres declarados na legislação. 20 – Relações variáveis entre arte e moral. Pelo visto, a questão das relações entre arte e moral é complexa, uma vez que a moral é categórica, essencialmente invariável, embora variável em questões acidentais (Nedel, 2000, p. 100-103); e a arte é eterna criação humana, mais da ordem do mutável do que do imutável. Por isto, as relações entre ambas são infinitamente variáveis. Cada obra realiza de forma peculiar seu grau de conformidade ou desconformidade com a moral. Em linhas gerais, podemos distinguir três grandes grupos de obras.

20.1 – Conformidade completa. Obras em completa conformidade com a moral estão de acordo com a verdade, o belo e o bem. Como tais são aptas a despertar no leitor ou espectador

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um sentimento de exaltação. Nelas não há nada que choque fundamentalmente, ainda que alguns pormenores possam ser discordantes. Obras com essa qualidade são respeitadas ao longo do tempo e tornam-se clássicas. 20.2 – Conformidade relativa. A imensa maioria das obras de arte estão um furo abaixo das primeiras, enquadrando-se na categoria das que estão em relativa conformidade com a moral. Os artistas permitem-se concessões ao gosto do tempo, a preconceitos ou vícios do coração, em conseqüência do que, ao aprecia-la, se perde o sentimento de exaltação que se teria o direito de esperar de uma obra de arte perfeita.

20.3 – Completo desacordo. As obras que afagam os instintos e sentimentos baixos, ou glorificam as revoltas anárquicas do espírito, são imorais, seu desacordo com a moral é completo. Em vez de exaltação, ou da serena contemplação do belo, despertam sentimento de impotência, decadência e até de ódio.

Neste grupo podem inserir-se as obras ditas amorais, tanto as cínicas, que não distinguem a virtude do vício e só vêem nas paixões humanas forças indistintas da natureza; quanto as clínicas, que apenas registram sem julgar, como as obras realistas e naturalistas, voluntariamente despojadas de toda sensibilidade moral. Dessa categoria de arte pode afirmar-se o que Bossuet dizia da ciência: maudite soit la science que ne se tourne pas à aimer – maldita seja a ciência que não conduz ao amor. 21 – Função social da arte. É intuitivo que a arte, em virtude de sua eminente função social, não deve corromper os bons costumes nem enfraquecer ou aniquilar os ideais positivos dos homens, que são o fundamento da sociedade. Não lhe é lícito afagar os instintos e sentimentos baixos e glorificar as revoltas anárquicas do espírito. A arte não existe para confundir virtude e vício, muito menos para apresentar o vício como virtude, o anormal como normal ou desejável em si. Artista que o faça produz obra moralmente má que, enquanto tal, sequer é obra de arte íntegra, por não decorrer de virtude ou hábito bom, mas de vício ou hábito mau. Com efeito, quem cria obra má, age contra a própria arte (T. de Aquino, Suma teológica, 1-2, 57, 3, 1). Uma obra imoral, a rigor, não pode ser verdadeiramente bela. É que o belo autêntico, que é uma espécie de bem, não pode coexistir com o mal moral. "É impossível que, visando-se à beleza, não se atinja o bem" (Platão). Todavia, existem obras imorais que parecem belas. Com certeza, isso ocorre por causa não só das partículas de moralidade que elas encerram, mas também das partículas de imoralidade que nós trazemos em nossas atitudes transigentes. Pela criação de obras más ou imorais responde o artista que, tendo a arte ou a virtude intelectual, não possui a necessária virtude moral, para lhe aperfeiçoar a vontade. Para ele também ressoam as palavras do profeta: "Ai daqueles que ao mal chamam bem, e ao bem, mal; que mudam as trevas em luz e a luz em trevas; que tornam doce o que é amargo, e amargo o que é doce!" (Is 5, 20).

22 – O mal na arte. O belo autêntico é uma espécie de bem, razão por que não pode coexistir com o mal moral. Este, contudo, faz parte da vida. Por isso, também é lícito inseri-lo em obra de arte, porém sob condições. O mal moral, na qualidade de privação de conveniência à norma da moralidade, em si jamais é belo. Está vinculado a ações cuja descrição ou representação pode prestar-se ao conhecimento mais profundo da condição humana. É capaz de manifestar a magnificência do bem e ressaltar o brilho da verdade. Eventualmente propicia oportunos efeitos dramáticos. É inclusive admissível o triunfo temporário do mal numa obra

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de arte, contanto que, em tempo oportuno, antes de nele estar envolvido o leitor ou o espectador, seja reprovado, repelido e subordinado à vitória do bem, dando-se o mal pelo mal e o bem pelo bem. Jamais deve ser apresentado ratione sui – em razão de si mesmo, como se fosse desejável em si, sem crítica e fora do contexto da realidade. Seria o "mal pelo mal", tese tão ou mais perniciosa do que a da "arte pela arte" e a da “técnica pela técnica”. No mais, o mal não deve ser apresentado a quem, por natural fragilidade ou imaturidade, não lhe é capaz de resistir. Ao artista cabe ter em mente que a arte não se realiza no plácido mundo de espíritos puros, incorruptíveis, mas no de homens sensíveis às solicitações do mal, por via de regra dominados pela virulência das paixões. A razão disso, filósofos políticos e outros pensadores há milênios a tentam explicar, sem terem logrado qualquer resposta de consenso. É que a solução não subjaz à exclusiva disquisição racional. 23 – Ética e estética. A valorização da estética, disciplina que adquiriu status acadêmico autônomo a partir de Alexander Baumgarten, aconteceu a par da crítica desconstrutivista assestada contra a ética tradicional, considerada racionalista, que não contemplaria a dimensão particular, vital, contingente da vida. O tom quiçá mais virulento dessa crítica se encontra em Nietzsche, cujo script é renovado por seus epígonos, como Foucault, Deleuze, Derrida, Vattimo, Rorty, e em certa medida MacIntyre. Também para Adorno, a arte é capaz de crítica da “razão administrada”, de denúncia da lógica dominante da totalidade, de defesa do não-idêntico que é oprimido pela compulsão à identidade exercida pela razão instrumental (Hermann, 2005, p. 31). Note-se que a melhor forma da ética tradicional, como a de inspiração tomista, não merece essa crítica, por não ser exclusivamente universalista, já que acolhe a particularidade em seu arco de proteção. Com efeito, considera as circunstâncias como modificadoras da moralidade dos atos humanos. No mais, concebe as normas morais derivadas por conclusões (dedução) e determinações (indução) a partir dos primeiros princípios do agir, evidentes por si, ou intuídos. De qualquer forma, a estética, que acolhe a pluralidade, a contingência, as variações e diferenças, pode representar um auxílio, ou mesmo corretivo, para as éticas demasiado racionalistas, alheias à contextualização. É a tese bem desenvolvida por Nadja Hermann (2005, passim). Para ela, “o estético. ... atua decisivamente contra os aspectos restritivos da normalização moral...” (2005, p. 16). Associado à “totalidade da vida sensível” (2005, p. 34), é capaz de “ampliar nossa sensibilidade moral” (42, 109), a sensibilidade para as diferenças, com o que propicia “condições para o reconhecimento do outro, evitando os riscos da uniformização diante do universalismo” (2005, p. 106). Enfim, “o momento estético traz a particularidade que fustiga a rigidez da aplicação de princípios, em favor da contextualização das condições contingentes da vida humana” (2005, p. 110).Pelo visto, sua tese contraria a de Baudelaire que, em meados do século XIX, renovava a oposição entre estética e moral e ciência; bem como a de Nietzsche, que pregava a substituição do cientista pelo artista (2005, p. 29).

24 – Estetização da vida. É de notar que existe enorme capacidade de reproduzir as obras de arte do passado. Com essa reprodução, cria-se uma generalização do estético e uma conseqüente estetização da vida. A noção do belo passa por um processo de popularização e adquire mais importância na vida cotidiana. Esta resulta impregnada pela preocupação com o glamour, a satisfação e a aparência pessoal. Com esmero, são embelezados os espaços urbanos: fachadas de prédios, pontos de vendas, praças, avenidas. A capacidade de venda associada ao estético se potencializa, pois o consumidor é sensível à aura estética do produto. O mundo subjetivo, o da auto-realização dos indivíduos, também é dominado pelo fator

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estético. Aliás, o homo aestheticus passou a ser figura de proa na sociedade atual. Foucault chegou a perguntar: “A vida de cada pessoa não poderia se tornar uma obra de arte?” (1984, p. 50; Hermann, 2005, p. 51). A resposta implícita do autor é obviamente afirmativa. E Nietzsche proclamou: “Os juízos estéticos... constituem o fundamento da taboa dos bens” (apud Hermann, 2005, p. 52). É a estetização da própria ética. Em suma, a arte se aproxima da vivência concreta, não existe mais como fenômeno específico, mas se apresenta como fato estético integral. É o que Vattimo chamou de “morte da arte” (Scopinho, 2004, p. 84).

25 – Lei moral e liberdade. A lei moral impõe a todos os homens deveres absolutos, imperativos categóricos, a limitar-lhes a liberdade moral, ainda que sem prejuízo de amplo espaço para o jogo do livre-arbítrio, ou liberdade psicológica, condição de sua responsabilidade. Dito de maneira bem escolástica, sintética e incisiva, a regra soa assim: lex tollit non tò posse sed tò licere (Cathrein, 1955, p. 154) – a lei não suprime o poder [de querer ou fazer isso ou aquilo], mas o ser lícito. Vale dizer, a lei (moral) tira, não o poder (psicológico) de agir em sentido contrário ao que ela dispõe, mas o direito (poder moral) de o fazer. O livre-arbítrio é dado da natureza; a liberdade moral, outorga (limitada) do legislador (natural e positivo).

26 – Técnica e ateísmo. 26.1 – Fenômeno moderno. O mundo hodierno caracteriza-se pela civilização técnica e o humanismo ateu. O ateísmo, que se torna um fato praticamente universal, é um fenômeno moderno, estranho às antigas civilizações e aos povos que haviam ficado fora do influxo do Ocidente. Qual será a relação entre ambos os fatos? Contrariamente ao pensamento de Marx, segundo o qual a civilização técnica engendra o humanismo ateu, deve-se afirmar que entre os dois fenômenos há verossimilhança, coincidência cronológica, mas não relação de causa e efeito. É verdade, na civilização técnica há o que possa servir de obstáculo à atitude religiosa, não porque nela houvesse uma perversão, mas porque pode ser mal usada e interpretada.

26.2 – Senso do poder e da auto-suficiência. A técnica faz viver o homem num universo que é o de suas próprias mãos: máquinas, instrumentos com que transforma a vida, paisagens humanizadas etc. Num mundo onde a técnica representa a universalização física da presença humana, vive hoje a pessoa cercada de realidades que lhe devolvem em toda parte sua própria imagem, o que explica o sentimento de sua grandeza. O mundo da técnica, que já não é o da natureza em estado primitivo, mas o das forças da natureza elaboradas pelo poder do homem, é como o espelho em que este se contempla a si próprio. Enquanto “os céus narram a glória de Deus” (Sl 18, 2), as máquinas dão testemunho da glória do homem.

26.3 – Poder redentor próprio. A técnica, exercício da vontade do domínio do homem, suscita o senso do poder e da auto-suficiência. O homem primitivo estava esmagado pelas forças cósmicas que foram dominadas progressivamente, colocando-as a seu serviço. A espontaneidade da vida é substituída pela ação uniforme de um mecanismo. A vida e o trabalho se reduzem a uma regularidade que visa a excluir o imprevisto. Dessa feita, o homem de hoje recuperou para si o que se havia dado a Deus. Já não carece de nenhum deus ex machina: ele próprio opera sua salvação. Segundo Nicolai Berdiaef, esse sentimento de onipotência constitui talvez a maior tentação a que o homem é levado pela técnica. Que a técnica assuma um lugar tão proeminente no ideário do materialismo histórico decorre também da ficção de seu poder redentor (ver Hiller, p. 9). Qualquer recurso a uma forma exterior, transcendente, aparece como espécie de preguiça

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intolerável. O homem, possuído de furor técnico, dominado por um delírio mecânico, entende ser não só o construtor do mundo, como também o demiurgo de si próprio, rejeitando qualquer forma de dependência em relação a Deus. Este é o mito no fundo do marxismo que contrasta com a mentalidade anterior, medieval, por exemplo, para a qual tudo parecia dado e nada havia realmente a fazer para mudar as coisas – só carecia o homem mudar-se a si próprio no meio delas.

26.4 – Atitudes opostas à do mundo religioso. A técnica habitua o homem a atitudes muito diferentes daquelas pelas quais se ingressa no mundo religioso. Na civilização tecnocrática importa mais a eficiência do que a verdade, motivo por que as realidades espirituais são denunciadas como falhas, em ordem à transformação da existência humana. A atitude científica associa certeza à experimentação, que não é possível na ordem espiritual, razão por que essa é declarada subjetiva e gratuita. O mundo da ciência é o da perpétua descoberta: uma hipótese é substituída por outra, o que contrasta com a afirmação de uma palavra imutável dita de uma vez por todas e que se afigura contrária à vida do espírito.

26.5 – Limites da técnica. Em contrapartida, a civilização técnica toca certos limites, por seu próprio desenvolvimento. O que escreveu Karl Jaspers continua verdadeiro: “A técnica não cria um mundo perfectível, mas cria no mundo, com cada passo que dá, novas dificuldades e com elas novos problemas. Não só cria uma dor crescente por sua imperfeição, mas também há de permanecer imperfeita ou esboroar-se” (1933, p. 67). E Thomas Merton diz com propriedade: "Encontramo-nos vivendo numa sociedade de homens que descobriram a sua insignificância onde menos o esperavam – no meio do poder e das realizações tecnológicas” (1960, p. 17). A técnica encerra o homem no homem e este sente asfixiar-se. Dilata indefinidamente a prisão em que está confinado. Prolonga as coisas ilimitadamente, sem permitir passar a outra ordem. É verdade, diminui o peso da existência, mas nunca libertará o homem da miséria do mal moral e da morte. Por mais que esta seja retardada, a existência humana permanece mortal e corruptível. Em suma, a técnica é incapaz de resolver o problema do homem. A visão exclusivamente técnica do mundo priva-o de toda dimensão moral e religiosa. O homem, porém, não é só vontade de domínio das coisas. Sua grandeza se mostra também na atitude da adoração, tão necessária quanto o trabalho, a economia, a especulação, o lazer e outras atividades humanas. Os mosteiros contemplativos são tão imprescindíveis quanto as fábricas do mundo de hoje.

26.6 – Nova perspectiva religiosa. A técnica purifica a própria religião, despojando o religioso e o sobrenatural do pseudo-religioso e falso sobrenatural. A ignorância das leis da natureza levou o homem a práticas supostamente religiosas, raiando pela superstição e a idolatria. A demitização do mundo, ou sua dessacralização no bom sentido, não só não impede a autêntica religiosidade do homem contemporâneo, como ainda é sua condição. Em suma, o mundo técnico pode ser reenquadrado numa nova perspectiva religiosa, dinâmica e aberta. A ciência oferece imagens privilegiadas de um mundo dilatado quase até o infinito, através das quais se abre nova imagem de Deus. A antiga simbologia deverá dar lugar a uma nova, a fim de que a mensagem permanente da religião logre exprimir-se de modo adequado à exploração do universo pelo homem. O mérito da tentativa de Teilhard de Chardin está precisamente em redescobrir a religião, brotando do seio do mundo científico e técnico. Pela física poderá o homem contemporâneo ir à metafísica, segundo a velha fórmula de Aristóteles. A religião estará renascendo, como dimensão da existência, do fundo das atividades humanas, do pensamento científico e da criação técnica, à medida que neles aparece

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a necessidade de transcendência.

26.7 – A técnica não causa o ateísmo. Em síntese, a técnica não produz o ateísmo. Se este se instala, é por deficiência moral do homem. A técnica exalta o esforço humano; a glória do homem, entretanto, é também a de Deus de quem é criatura. Não é sábio temer que o homem cresça demais. Quanto maior for sua grandeza, tanto maior também será a glória externa de Deus. O engrandecimento de Deus não só não requer, como exclui o rebaixamento do homem. A técnica, exaltando a grandeza do homem, também canta a glória de Deus.

26.8 – Retorno do religioso. O que se tem observado é um vigoroso retorno do fator religioso, a partir das últimas décadas do século XX. Observa Sávio Carlos Dasan Scopinho: “Tanto na literatura científica como filosófica é possível falar de um retorno da dimensão religiosa na sociedade atual. Esse retorno não é explicável apenas através de critérios racionais. Quando se utilizam os instrumentos da razão e da técnica, para esclarecer o fenômeno religioso, apresenta-se uma compreensão limitada e superficial da questão. Pode-se sustentar o retorno do sagrado na cultura e na mentalidade contemporânea devido ao descrédito da razão diante dos problemas cada vez maiores da sociedade mundial” (2004, p. 88). 27 – Conclusão. A arte e a técnica integram a dimensão prática do fazer, que se exterioriza em objetos belos e expressivos, de um lado, e úteis, de outro, para as mais diferentes finalidades do ser humano. A educação para a arte tem sido uma das dimensões fundamentais da pedagogia, desde os clássicos como Platão, Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero, Rousseau, Montessori etc. É que a experiência estética é indispensável para a harmonia da personalidade não só psicológica mas também moral. De outro lado, a formação técnica, promovida e inculcada pelos sistemas educacionais na modernidade, principalmente com vistas ao exercício profissional, também representa uma dimensão fundamental da cultura de hoje. O extraordinário desenvolvimento da ciência e da técnica, ao longo dos séculos XIX e XX, modificaram radicalmente a face do mundo e os estilos de vida humanos, de sorte que as mais variadas tecnologias se integraram em nossos hábitos de forma definitiva e aparentemente irreversível. Sua perda representaria incapacidade de subsistência para grande parte da humanidade. O paradoxo, porém, está nisto: o que veio para beneficiar o ser humano, por excesso de exploração dos recursos naturais e seu uso inadequado, na busca de proveitos imediatos, transmutou-se em grave risco para a própria sobrevivência futura da humanidade. Tem-se proclamado que as conseqüências do aquecimento global do planeta, por exemplo, são muito mais catastróficas do que as ameaças do terrorismo internacional; e que, se nada se fizer nos próximos dez anos para reverter o processo de emissão de poluentes causadores do efeito estufa, depois será tarde, pois estamos no limite do irreversível. Esta é a tarefa ingente da humanidade: domesticar o exercício da razão instrumental, como já preconizava o Clube de Roma, na década de 1970, depois Hans Jonas, Michel Serres, Karl-Otto Apel, Jürgen Habermas e outros tantos, mantendo-a nas linhas de uma economia de sustentabilidade dos recursos naturais e das condições de vida no planeta. É uma tarefa solidária em que todos podemos aportar a nossa parcela de colaboração, em nosso próprio benefício e no das gerações futuras.

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