reflexÕes 15 21 de junho de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1347953820_fim-de... · muito...

8
REFLEXÕES 15 Domingo 21 de Junho de 2020 Em Janeiro deste ano, decorreram as minhas primeiras conversas com os estudantes do Curso de Agregação Pedagógica e Aperfeiçoamento Docente do IMETRO entre os quais reconheci uma senhora sexagenária, amiga de duas colegas minhas dos tempos do liceu, em Benguela Luís Kandjimbo Lendo a lista dos formandos, verifiquei que ela era mé- dica. Já não a via, há cerca de quarenta anos. Mas ela fazia ideia do formador que tinha diante de si, porque o via de vez em quando nos noticiários da televisão. A primeira aula foi intro- dutória, dedicada às razões que justificam o estudo da argumentação em Angola. Defini a argumentação como actividade linguística, social e racional desenvolvida por uma pessoa que, no contexto da diferença simétrica de opiniões, procura convencer um crítico ou oponente, a respeito da aceitabilidade do seu ponto de vista. Para tal aquele que quer conven- cer o outro elabora um con- junto de frases, justifica ou refuta as frases declarativas formuladas pelo oponente, de modo a garantir-se a paz na relação entre as duas pes- soas e na comunidade em que vivem. O objectivo do estudo da argumentação consiste em avaliar o de- sempenho dos que têm opi- niões diferentes e recorrem ao discurso argumentativo para sanar tal diferença. Por isso, dedica-se uma atenção especial às tácticas e mano- bras usadas no diálogo ar- gumentativo, também chamada discussão crítica. Este é um tipo de discussão que pode comportar quatro fases, regendo-se sempre por princípios e regras, dizia eu. As regras podem ser ex- pressas ou tácitas. Na fase de argumentação, destaca- se o princípio que exige re- levância e não permite o abandono do tópico em de- bate, visto que nela se refuta e justifica as opiniões. Ora, a médica, cujo no- me eu ainda confundia com o de uma das minhas co- legas do liceu, não faltou a nenhuma das sessões do módulo de Retórica e Ar- gumentação. O seu rosto expressava a felicidade de quem chega às fronteiras da verdade, quando ouvia referências sobre as origens africanas da retórica que remontavam ao Egipto An- tigo. São demonstração ple- na disso os Ensinamentos de Ptah-Hotep e Kagemi, textos escritos cerca de três mil anos antes de Platão e Aristóteles, na Grécia, e Quintiliano, em Roma. Nos Ensinamentos de Ptah- Hotep, lê-se o seguinte: “Se encontrares um oponente agressivo, seu igual, aquele que é de sua própria posição social, faça prova de que és mais correcto do que ele, per- manecendo em silêncio, en- quanto ele fala com rancor e vingativamente. A deliberação dos juízes será sombria, mas o teu nome jamais será cons- purcado na decisão dos ma- gistrados”. Continua, mais adiante: “Se encontrares um oponente agressivo, um ho- mem de baixa condição social, aquele que não é igual a ti, não o assalte por força da sua humilde propriedade. Deixe- o em paz e ele sentir-se-á perturbado. Não lhe responda para desabafar a tua frustração. Não alivie a tua raiva à custa do teu oponente”. Ela confessou, logo no fim da primeira aula, a sua pro- funda satisfação por ter to- mado conhecimento das tra- dições argumentativas afri- canas. Sobre esta matéria tinha lido livros que situam o período inicial da história da retórica na Grécia, a partir do século IV antes de Cristo. Compreendeu então que a Retórica não foi “inventada” nem “descoberta” em Sira- cusa ou Atenas. Nos dias que se seguiram, a médica que frequentava o curso porque pretendia de- dicar-se à docência, obteve referências bibliográficas de primeira ordem sobre a ne- cessidade de revisão da nar- rativa tradicional sobre a “invenção da retórica”. Nas sessões de avaliação final, ela foi chamada a fazer a apresentação da síntese do trabalho de grupo. A partir dos exemplos extraídos do nosso quotidiano, trouxe a debate um caso típico de refutação sofística. Disse- lhe que essa expressão era muito rebuscada para al- guns dos nossos concida- dãos. Seria melhor falar de falácias porque hoje é mais comum, quando se trata de abordar a problemática do diálogo argumentativo ou discussão crítica. A médica mostrou que dominava a matéria e ani- mava a turma. Ela aquecia o debate com as suas refle- xões sobre uma das falácias informais que constitui vio- lação da regra segundo a qual o ataque do ponto de vista contrário deve estar relacio- nado com o ponto de vista previamente formulado pelo oponente. Com essa falácia, acrescentava ela, atribui-se um ponto de vista falso ao oponente e as suas palavras são postas fora do contexto. Ela dizia que a sua reflexão permitiu chegar a algumas conclusões. Considerou que, de um modo geral, há muitos exemplos desse tipo de ar- gumentos inválidos, invo- cados por diferentes “opinion makers” angolanos nos de- bates locais. Com os referidos argumentos desvirtua-se o ponto de vista do interlocutor como se de outra pessoa se tratasse. Cria-se um espan- talho, um homem de palha. As suas proposições são dis- torcidas intencionalmente. Chega-se ao cúmulo da di- famação. Inventa-se um ou- tro tópico de conversa. É uma táctica dos que não têm ima- ginação argumentativa. Na verdade, trata-se de uma manobra perniciosa para os ambientes em que se faz a apologia da demo- cracia porque aponta para a valorização da violência. A harmonia da argumentação é substituída pela truculência do comportamento verbal. É uma manobra argumen- tativa que não é benigna. A elegância expositiva da médica ocorreu a partir do momento em que ilustrou o seu pensamento com re- curso ao “Grande Livro de Provérbios Angolanos”. Um volume enciclopédico de provérbios em várias línguas nacionais, editado pela União dos Escritores Angolanos. E explicou por que razão con- siderava oportuno o recurso a esse património literário pouco valorizado. Não lhe tinha escapado a referência que nas primeiras aulas eu tinha feito à lógica argumen- tativa da tradição oral ango- lana e à argumentação tribunícia do princípio do século XX cuja expressão máxima é o livro “Voz de Angola Clamando no De- serto”. O propósito dela era des- crever as manobras subja- centes a dois tipos de falácias, a falácia da diversão e a fa- lácia “ad hominem”, com as quais se desvia ou dispersa a atenção do auditório, ata- cando-se a pessoa dos opo- nentes, mas não as suas ideias. Foi enunciando os provérbios no original com a respectiva tradução e in- terpretação em português. Estava em causa apenas a desconstrução de dois sub- tipos daquelas falácias, a falácia do espantalho ou homem de palha e a falácia da pista falsa. Tinha em suas mãos um trabalho dig- no de ser lido. Quer a falácia do espan- talho quer a falácia da pista falsa merecem ser estudadas no contexto angolano. Vou partilhar com o leitor apenas três provérbios que, além da sua eficácia contradiscursiva, oferecem recortes estéticos e filosóficos interessantes. Contradiscurso para a fa- lácia da pista falsa: “Okwãi ocileñgi, kayevite ondaka” (Quem segue apenas a me- lodia, não presta a atenção devida à frase que sustenta a opinião). Interpretação: Aquele que na discussão ar- gumentativa concentra a atenção nos aspectos para- linguísticos em detrimento da dimensão semântico- pragmática, correrá o risco de violar a regra da rele- vância e do ponto de vista, podendo ser enganado por uma pista falsa. A harmonia da argumentação e a táctica do espantalho DR Contradiscurso para a fa- lácia do homem de palha: “Ciyakwata ngandu, kulun- dila mwele tapu” (O crocodilo é o predador, não se atribui a culpa ao proprietário do cais fluvial). Interpretação: Todo aquele que participa numa discussão argumen- tativa deve estar comprome- tido com o tema principal, afastando-se do que é aces- sório. É ilegítimo atacar ideias que não sejam sustentadas por provas internas fornecidas pelo discurso do oponente. Contradiscurso para a fa- lácia “ad hominem”: “Osikila uwu ocila, opopela uwu oye- va” (Toca-se um instrumento musical para quem dança e fala-se para quem ouve bem o que os outros dizem). In- terpretação: A actividade ar- gumentativa de quem fala deve ser sempre endereçada a um oponente de quem se espera um esforço sensorial equivalente. Do mesmo mo- do, o desempenho do músico exige um esforço acinésico de quem dança. Efectivamente, pode di- zer-se que, integrado no con- junto de falácias de diversão, a falácia do espantalho é uma manobra perigosa. Suporta uma argumentação fraca e inválida em virtude de estar ao serviço de fins perversos, recorrendo aos seguintes meios: distorção e uso do conteúdo distorcido; ataques difamatórios à pessoa do oponente para o desacre- ditar; minagem dos argu- mentos do oponente por testemunho de factos dis- torcidos e irrelevantes; vi- timização do proponente; deslocação do foco para um diálogo fictício.

Upload: others

Post on 25-Jun-2020

4 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: REFLEXÕES 15 21 de Junho de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1347953820_fim-de... · muito rebuscada para al-guns dos nossos concida-dãos. Seria melhor falar de falácias porque

REFLEXÕES 15Domingo21 de Junho de 2020

Em Janeiro deste ano, decorreram as minhas primeiras conversas com os estudantes do Curso deAgregação Pedagógica e Aperfeiçoamento Docente do IMETRO entre os quais reconheci uma senhora

sexagenária, amiga de duas colegas minhas dos tempos do liceu, em Benguela

Luís Kandjimbo

Lendo a lista dos formandos,verifiquei que ela era mé-dica. Já não a via, há cercade quarenta anos. Mas elafazia ideia do formador quetinha diante de si, porque ovia de vez em quando nosnoticiários da televisão.

A primeira aula foi intro-dutória, dedicada às razõesque justificam o estudo daargumentação em Angola.Defini a argumentação comoactividade linguística, sociale racional desenvolvida poruma pessoa que, no contextoda diferença simétrica deopiniões, procura convencerum crítico ou oponente, arespeito da aceitabilidadedo seu ponto de vista. Paratal aquele que quer conven-cer o outro elabora um con-junto de frases, justifica ourefuta as frases declarativasformuladas pelo oponente,de modo a garantir-se a pazna relação entre as duas pes-soas e na comunidade emque vivem. O objectivo doestudo da argumentaçãoconsiste em avaliar o de-sempenho dos que têm opi-niões diferentes e recorremao discurso argumentativopara sanar tal diferença. Porisso, dedica-se uma atençãoespecial às tácticas e mano-bras usadas no diálogo ar-gumentat ivo , tambémchamada discussão crítica.Este é um tipo de discussãoque pode comportar quatrofases, regendo-se semprepor princípios e regras, diziaeu. As regras podem ser ex-pressas ou tácitas. Na fasede argumentação, destaca-se o princípio que exige re-

levância e não permite oabandono do tópico em de-bate, visto que nela se refutae justifica as opiniões.

Ora, a médica, cujo no-me eu ainda confundia como de uma das minhas co-legas do liceu, não faltou anenhuma das sessões domódulo de Retórica e Ar-gumentação. O seu rostoexpressava a felicidade dequem chega às fronteirasda verdade, quando ouviareferências sobre as origensafricanas da retórica queremontavam ao Egipto An-tigo. São demonstração ple-na disso os Ensinamentosde Ptah-Hotep e Kagemi,textos escritos cerca de trêsmil anos antes de Platão eAristóteles, na Grécia, eQuintiliano, em Roma.

Nos Ensinamentos de Ptah-Hotep, lê-se o seguinte: “Seencontrares um oponenteagressivo, seu igual, aqueleque é de sua própria posiçãosocial, faça prova de que ésmais correcto do que ele, per-manecendo em silêncio, en-quanto ele fala com rancor evingativamente. A deliberaçãodos juízes será sombria, maso teu nome jamais será cons-purcado na decisão dos ma-gistrados”. Continua, maisadiante: “Se encontrares umoponente agressivo, um ho-mem de baixa condição social,aquele que não é igual a ti,não o assalte por força da suahumilde propriedade. Deixe-o em paz e ele sentir-se-áperturbado. Não lhe respondapara desabafar a tua frustração.Não alivie a tua raiva à custado teu oponente”.

Ela confessou, logo no fimda primeira aula, a sua pro-funda satisfação por ter to-

mado conhecimento das tra-dições argumentativas afri-canas. Sobre esta matériatinha lido livros que situamo período inicial da históriada retórica na Grécia, a partirdo século IV antes de Cristo.Compreendeu então que aRetórica não foi “inventada”nem “descoberta” em Sira-cusa ou Atenas.

Nos dias que se seguiram,a médica que frequentava ocurso porque pretendia de-dicar-se à docência, obtevereferências bibliográficas deprimeira ordem sobre a ne-cessidade de revisão da nar-rativa tradicional sobre a“invenção da retórica”.

Nas sessões de avaliaçãofinal, ela foi chamada a fazera apresentação da síntese dotrabalho de grupo. A partirdos exemplos extraídos donosso quotidiano, trouxe adebate um caso típico derefutação sofística. Disse-lhe que essa expressão eramuito rebuscada para al-guns dos nossos concida-dãos. Seria melhor falar defalácias porque hoje é maiscomum, quando se trata deabordar a problemática dodiálogo argumentativo oudiscussão crítica.

A médica mostrou quedominava a matéria e ani-mava a turma. Ela aqueciao debate com as suas refle-xões sobre uma das faláciasinformais que constitui vio-lação da regra segundo a qualo ataque do ponto de vistacontrário deve estar relacio-nado com o ponto de vistapreviamente formulado pelooponente. Com essa falácia,acrescentava ela, atribui-seum ponto de vista falso aooponente e as suas palavras

são postas fora do contexto.Ela dizia que a sua reflexão

permitiu chegar a algumasconclusões. Considerou que,de um modo geral, há muitosexemplos desse tipo de ar-gumentos inválidos, invo-cados por diferentes “opinionmakers” angolanos nos de-bates locais. Com os referidosargumentos desvirtua-se oponto de vista do interlocutorcomo se de outra pessoa setratasse. Cria-se um espan-talho, um homem de palha.As suas proposições são dis-torcidas intencionalmente.Chega-se ao cúmulo da di-famação. Inventa-se um ou-tro tópico de conversa. É umatáctica dos que não têm ima-ginação argumentativa.

Na verdade, trata-se deuma manobra perniciosapara os ambientes em quese faz a apologia da demo-cracia porque aponta para avalorização da violência. Aharmonia da argumentaçãoé substituída pela truculênciado comportamento verbal.É uma manobra argumen-tativa que não é benigna.

A elegância expositiva damédica ocorreu a partir domomento em que ilustrouo seu pensamento com re-curso ao “Grande Livro deProvérbios Angolanos”. Umvolume enciclopédico deprovérbios em várias línguasnacionais, editado pela Uniãodos Escritores Angolanos. Eexplicou por que razão con-siderava oportuno o recursoa esse património literáriopouco valorizado. Não lhetinha escapado a referênciaque nas primeiras aulas eutinha feito à lógica argumen-tativa da tradição oral ango-lana e à argumenta ção

tribunícia do princípio doséculo XX cuja expressãomáxima é o livro “Voz deAngola Clamando no De-serto”.

O propósito dela era des-crever as manobras subja-centes a dois tipos de falácias,a falácia da diversão e a fa-lácia “ad hominem”, comas quais se desvia ou dispersaa atenção do auditório, ata-cando-se a pessoa dos opo-nentes, mas não as suasideias. Foi enunciando osprovérbios no original coma respectiva tradução e in-terpretação em português.Estava em causa apenas adesconstrução de dois sub-tipos daquelas falácias, afalácia do espantalho ouhomem de palha e a faláciada pista falsa. Tinha emsuas mãos um trabalho dig-no de ser lido.

Quer a falácia do espan-talho quer a falácia da pistafalsa merecem ser estudadasno contexto angolano. Voupartilhar com o leitor apenastrês provérbios que, além dasua eficácia contradiscursiva,oferecem recortes estéticose filosóficos interessantes.

Contradiscurso para a fa-lácia da pista falsa: “Okwãiocileñgi, kayevite ondaka”(Quem segue apenas a me-lodia, não presta a atençãodevida à frase que sustentaa opinião). Interpretação:Aquele que na discussão ar-gumentativa concentra aatenção nos aspectos para-linguísticos em detrimentoda dimensão semântico-pragmática, correrá o riscode violar a regra da rele-vância e do ponto de vista,podendo ser enganado poruma pista falsa.

A harmonia da argumentação e a táctica do espantalho

DR

Contradiscurso para a fa-lácia do homem de palha:“Ciyakwata ngandu, kulun-dila mwele tapu” (O crocodiloé o predador, não se atribuia culpa ao proprietário docais fluvial). Interpretação:Todo aquele que participanuma discussão argumen-tativa deve estar comprome-tido com o tema principal,afastando-se do que é aces-sório. É ilegítimo atacar ideiasque não sejam sustentadaspor provas internas fornecidaspelo discurso do oponente.

Contradiscurso para a fa-lácia “ad hominem”: “Osikilauwu ocila, opopela uwu oye-va” (Toca-se um instrumentomusical para quem dança efala-se para quem ouve bemo que os outros dizem). In-terpretação: A actividade ar-gumentativa de quem faladeve ser sempre endereçadaa um oponente de quem seespera um esforço sensorialequivalente. Do mesmo mo-do, o desempenho do músicoexige um esforço acinésicode quem dança.

Efectivamente, pode di-zer-se que, integrado no con-junto de falácias de diversão,a falácia do espantalhoé umamanobra perigosa. Suportauma argumentação fraca einválida em virtude de estarao serviço de fins perversos,recorrendo aos seguintesmeios: distorção e uso doconteúdo distorcido; ataquesdifamatórios à pessoa dooponente para o desacre-ditar; minagem dos argu-mentos do oponente portestemunho de factos dis-torcidos e irrelevantes; vi-timização do proponente;deslocação do foco para umdiálogo fictício.

Page 2: REFLEXÕES 15 21 de Junho de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1347953820_fim-de... · muito rebuscada para al-guns dos nossos concida-dãos. Seria melhor falar de falácias porque

ARTES16 Domingo21 de Junho de 2020

Na entrada da Chicala, emLuanda, entre obras de escul-tura e pintura, trajando cami-sola branca, sem mangas,Etona passa orientações a umgrupo de jovens, que mira,atentamente, um enorme tron-co de árvore com alguns riscos,rigorosamente, traçados.

Numa das mãos, o artistatem um saco contendo gingubae mandioca crua. O sol das 13horas queima. Convida aomergulho. A expectativa deuma boa almoçarada, ummufete de calafate , carapauou lambula, regado com umbom vinho tinto, no conjuntode barracadas ao lado do ate-lier, fica gorada com as pa-lavras proferidas pelo artista.“Este é o nosso dia-a-dia,mandioca com ginguba emãos no batente. Sirvam-se,são nossos convidados.”

É ao sabor desses quitutesda terra que decorre a visitaguiada ao recanto do artista,um espaço com dois grandescompartimentos, ornados compeças de escultura e quadrosde pintura. Nota-se que aliestá a sua alma. Isso é visívelno seu semblante.

Etona explica que os jovens

com quem conversava, quandochegámos ao atelier, são seusassistentes e, naquele mo-mento, trabalhavam na pro-dução de uma nova peça dearte, uma escultura.

António Tomás Ana “Etona”domina as duas artes: a pinturae a escultura. “A pintura aprendicom o mestre João Luís de Al-meida, o Luís Mulato, que merecebeu quando vim paraLuanda; a escultura, aprendicom artesãos do Soyo.”

Há peças nos mais variadosformatos e estilos, cada umacom um significado próprio.Acompanhando o nosso olhar,atraído por uma peça em par-ticular, Etona explica: “o quevocês vêem nesta obra, porexemplo, é sofrimento.

No domínio da escultura,retrato as situações da vida.Sempre que noto uma situa-ção anômala na sociedade,fico como se estivesse con-cebido. Chego no atelier efaço um parto, resultado des-sas situações.”

E em relação à pintura?Questionámos, apontandopara um quadro exposto numdos compartimentos do ateliere que reflecte a imagem de

uma mulher e muitos detalhesde cores e estilos. “A pinturaé sonho. É o registo de umsonho. Vou buscar aspectosbons ou maus e transporto-os para a tela. ”

Etona considera essa ati-tude de recolha e posteriorregisto das situações comoum momento filosófico. “Aarte é esta filosofia, o diálogopermanente entre o que vemose conseguimos analisar comsentido crítico e depois trazero seu registo e aí viver-se dentroda razão do belo. Deixar paraos outros também usufruíremo que nós vivenciamos. ”

Algumas obras estão aca-badas e arrumadas, outraspor concluir. Chama-nos aten-ção alguns detalhes mais ou-sados apresentados pordeterminadas peças. O artistaexplica que são obras feitaspor encomenda. Outras estãoa ser preparadas para uma ex-posição. “As peças para expo-sição não têm os mesmosdetalhes das outras”, disse.

Nesse compartimento, bas-tante convidativo, do atelierficámos para a conversa directae ousada com o artista plásticoAntónio Tomás Ana “Etona”.

A ARTE DE ANTÓNIO TOMÁS ANA “ETONA”

Mandioca com gingubae mãos no batente

Enormes peças de artesanato marcam as instalações onde funciona o atelier do artista plástico António Tomás Ana “Etona”, que se dedica à produção de obras de pintura e também de escultura

EDIÇÕES NOVEMBRO

Por essa agressividade todana arte dizem que éfeiticeiro. É verdade?Risos…. É verdade que hápessoas que dizem que oEtona é feiticeiro.

Mas é ou não?Não. Não sou. A verdade éque fui temperado pelo sole pela chuva para ter essaagressividade que tenho eque me faz continuar a resistirna arte, na vida e na luta pelobem da sociedade.

Como é que explica isso deser temperado?Com oito anos, andava naselva. Entrávamos nos bos-ques para caçar seixas, comredes de fibra de imbondeiro.Não havia, nem se podiamusar armas naquela altura.A PIDE e os jeeps da lutapela natureza entravam nosbairros e nas matas e per-seguiam-nos. Sempre queouvíssemos o rumor doscarros, corríamos até nãopoder mais. Largávamospelo caminho os ratos quetínhamos caçado e espetá-vamo-nos nas matas, paranão sermos apanhados. Esta forma de ser temperado,com o sol e a chuva - pois

sempre que chovesse, todaa carga se batia sobre nós esó nos secávamos quandoo sol abrisse – deu-me a en-durance que hoje tenho.

E onde é que entra a artenisso?É em tudo isso onde começao processamento da arte.

O Etona consome drogaspara buscar inspiração?Risos…Muita gente não acre-dita que não faço uso de be-bidas alcoólicas. Perguntamcomo pode ser possivel tera força que demonstro nasminhas criações e não medrogar.

Não mesmo?Não. Não faço uso de bebidasalcoólicas e não tenho outrosvícios. A minha droga é osofrimento do povo, o so-frimento dos outros.

É possível viver somente daarte?Apesar de haver graves si-tuações, por não termos ummercado livre em termos deindependência econômica,é possível sim. Mas o pro-blema que se põe não é oviver da arte na esperança

de que caia sempre umamoeda de uma obra de es-cultura ou de pintura.

Qual é então o problema?Quem se distingue na artefilosófica, não pode pensarsó no mercado da venda daobra da arte. Eu não sou ape-nas vendedor de obra dearte. Não quero ser. O queeu gostaria é que no mercadode arte de Angola estivessecontemplada uma lei quedeterminasse a defesa doangolano. Esse é o grandeproblema. Essa lei ainda nãoexiste e o Ministério da Cul-tura, Turismo e Ambienteestá longe de a encontrar.Esperamos que estas nossasalocuções ajudem a criaralgumas ideias junto da Pre-sidência da República, quepenso ser a entidade compoder para solucionar essesproblemas. Sem isso, nadafeito. Não é só viver da arte.Mas também sentir-se àvontade no mercado da arte.

Quais são as consequênciasdessa falta deindependência?Por não haver essa inde-pendência, hoje as pessoasse submetem a grupos onde

Page 3: REFLEXÕES 15 21 de Junho de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1347953820_fim-de... · muito rebuscada para al-guns dos nossos concida-dãos. Seria melhor falar de falácias porque

ARTES 17Domingo21 de Junho de 2020

Quem é o EtonaO Etona é um indivíduo que vem do indigenato, do Soyo,província do Zaire, onde nasceu e viveu parte da infância,repartida, depois, entre o Nóqui (Zaire), Luanda e Benguela,seguindo, mais tarde, na idade adulta, para o CuandoCubango, onde cumpriu o serviço militar obrigatório.

Qual o significado do seu nome?O nome Etona significa bandeira, marca, força, potência,nódoa, distinção. Todos esses elementos entram em mimde forma espiritual, por terem muita relação com o momentoem que nasci, um período muito conturbado.

Que período?Nasci no dia 22 de Junho de 1961. As movimentações doinicio da luta armada estavam muito vivas.

Como se dá a saída do Soyo para Luanda?Foi numa acção de guerrilha. Estava com 16 anos. O meu

irmão achou que se eu continuasse lá, não teria a possibilidadede estudar. A situação reinante, na altura, não permitia. Tí-nhamos de nos esconder, muitas vezes, nas matas para fugirda guerra e das rusgas. Vim para Luanda, para estudar e medistinguir na sociedade. Sou de uma família humilde e nãohavia quem a representasse, com grande visibilidade social.Então, vim para ser preparado para a vida.

E a ligação com a arte?Em Luanda, instalei-me na Ilha do Cabo, onde encontrei omestre João Luís de Almeida, o Luís Mulato, que tinha umatelier de pintura no Ponto Final. Cinco anos depois, fui entregar-me para o cumprimento doserviço militar obrigatório e destacaram-me no CuitoCuanavale, Cuando Cubango, onde frequentei um curso derádio retransmissor e fui colocado na área de Comunicações.Transferiram-me, depois, para as Operações, como Cartográfico,por ter o oficio das artes. Fiquei nas Operações da 16ª Brigadae, como sobrevivente, acabei por voltar para Luanda.

PERFIL

estão a ser exploradas. Es-peramos que esse paradig-ma mude para justificar anossa existência nos tem-pos de hoje.

Quais são em concreto osprincipais entraves para oartista?São identificados. Primeiro,a socialização política dentrodo conceito da arte. É precisoque o próprio político sintao que é a arte e a cultura.Segundo, gostaria que seterminasse com as termi-nologias diferenciadoras.

Poderia especificar isso?A palavra indigenato, porexemplo, surgida no século19, ainda hoje é vigente eestá a fazer sofrer os ango-lanos na sua origem, os au-tóctones. Se houver umapolítica de unificação e aca-bar-se com a diferenciaçãoentre cidadãos indígena eadministrativo, estaremosa resolver problemas quedeveriam estar resolvidosdesde 75. O primeiro Presidente deAngola, Agostinho Neto, nasua visita à União dos Es-critores Angolanos, disseque nenhuma cultura deveriaser submissa à outra. Erauma referência directa à cul-tura angolana que estavasubmetida à portuguesa.

Esta situação continua?Depois da independência,45 anos depois, será que An-gola se libertou dessa sub-missão? Creio que não. Ofacto de não se assumir essadiscussão, quer dizer que odiscurso ainda está vivo, quedeve merecer a atenção dequem dirige o país, para verse saímos do marasmo emque nos encontramos.

Há dificuldades em abordaras entidades?Não é fácil um indivíduo doindiginato ter acesso parafalar com o Presidente daRepública, trazer um projectoque seja discutido junto dasinstâncias do país. Todos es-ses elementos acabam poremperrar a evolução socialdo angolano.

O Etona também está nessacondição?O facto de ter a origem quetenho, por exemplo, de serBakongo, acaba por ser umempecilho até para assumiroutros cargos. É preciso que

se tenha a noção e se aceitereconhecer que esse não énenhum perigo. Eu não sounenhum perigo, porque tra-balho para os angolanos. Estasituação afecta no campo daformação e no do desenvol-vimento da arte.

Que outras situaçõescondicionam o mercado daarte?Sobrevive muito a partir deexpatriados. Os angolanosda classe média e alta nãocompram arte. Muitos estãoem igrejas evangélicas, paraas quais uma obra de arte éconsiderada feitiço. Essasreligiões têm sido um fossomuito grande para a destrui-ção da mentalidade filosóficados angolanos. As instituições públicas na-cionais, apesar de existiremrubricas nesse sentido, nãocompram obras de arte. Sãosituações que deveriam virà tona, serem discutidas anível da imprensa e em pa-lestras, mas não estão a serdiscutidas. Acabamos porestar mais virados à teologiado que à filosofia. Estamosa remar ao contrário. A in-dependência está na filosofia.É preciso ser culto para serlivre. Não estamos a lutarmuito pela cultura. Estamosa lutar mais por aquilo queé trazido de fora, o sacrilégioespiritual, a profanação.

Os artistas angolanos nãotêm essa visão?Os nossos artistas estão aagregar-se aos estrangeirospara ver se conseguem en-contrar formas de sobrevi-vência. Estão a pensar nassuas barrigas.

E o Etona?Por lutar pelos outros, es-tou a apanhar de todos oslados. Esquecem que o Eto-na está a lutar para a paz,

para a independência, paraa liberdade. Nós ainda nãonos consciencializamos.Mas, pronto, se o Etonamorrer hoje, como o Viteixque também lutava para oefeito, virão outros. Não va-mos sossegar.

Qual é o destino dado àssuas obras?Hoje, não posso falar mal dodestino das minhas obras.Além da obra, em termos deartefactos, as minhas ideiastambém estão a ser estuda-das. O Dr. Patrício Batsicama,por exemplo, fez um estudoe positivou o Etonismo.

Que é o Etonismo?O Etonismo é um pensa-mento filosófico baseada naessência e forma da obraplástica de Etona.

E essa ideia tem sido bemrecebida?Quando se positiva umaideia, nem sempre é bemrecebida. Há, muitas vezes,até combates contra ela, co-mo tem acontecido até hoje.A prova está bem patente. Aescola de arte não se dignavisitar o atelier onde o Etonatrabalha, porque os profes-sores são os primeiros a com-baterem essa filosofia, estetrabalho. E quando um dis-cípulo está aqui, é injustiçado.Mas penso que quem vai fa-zer a justiça, um dia, será anatureza em si. Sinto penade todos aqueles que lutamcontra isso. A vida costumaa dar a resposta. Os que ma-taram Cristo hoje sentem asua justiça. São os mesmosque ajoelham aos seus pés.O Etona está nessa direcção.

Como está organizado emtermos administrativos?Este é uma outra parte. Sem-pre lutei para me organizare estruturar. Tenho assis-tentes, professores que estãoa dar aulas num centro quetenho em Viana, no Zango4. É um centro sem fins lu-crativos para o ensino decultura e arte. Depois, tenhoaqui o atelier e os escritóriosde apoio administrativo. Or-ganizei-me como empresa.

Teve alguma dificuldadenesse capítulo?Numa primeira fase, gasteimuito dinheiro para construirum empreendimento, emMalanje, e conseguir algumlucro. Mas, depois de todo o

investimento feito, em 2013surgiu a crise e acabei porser comprimido. Hoje lutopara me recompor e mantervivo. Fui obrigado a venderpatrimónio para me man-ter, nada fácil porque omercado angolano da artenão ajuda muito.

Qual a capacidade deprodução de um ateliercomo esse?Não é fácil encontrar um ate-lier com a administração or-ganizada, com uma estruturade uma sede de filosofia. Parachegar até aí, a cabeça temde estar muito adstrita à fi-losofia, senão vai se ter umaoficina para fazer bonecosde arte, mas não será, nunca,um atelier de arte.

Qual é o reconhecimentoque tem de todo essetrabalho?Risos...Embora existam al-gumas barreiras, não pode-mos correr para os prêmios.

Que barreiras?O Etona nunca ganhou o Prê-

mio Nacional de Cultura eArte, nunca ganhou o PrêmioENSA Arte e sempre que tentaconcorrer é afastado, não éselecionado, porque dizemque não é artista.O engraçado é que tenho re-conhecimento internacional,graduações a nível mundial.Ter um word master entreas artes plásticas, pintura eescultura é um título queem África não existem mui-tos, mas está no mapa mun-dial dos mestres. Ter umamedalha de Primeiro Grauna Arte Civil, também nãoé fácil. Passar pela UniãoNacional dos Artistas Plás-ticos (UNAP), com terceiromandato, também em ter-mos de filantropia, tudo issosão graduações que devemser respeitadas.

E não são respeitadas?É preciso ter educação pararespeitar esses graus. Semeducação e consciência in-telectual elevada, não se chegaaté aí. Por isso, fico satisfeito.A justiça acaba sempre porse sobrepor à injustiça.

São quantos assistentes?Tenho dois assistentes e doisdiscípulos.

Por que?Há assistentes em qualqueratelier e em qualquer partedo mundo. Quando se chegaa um certo nível, um artistaacaba por ser um consultor.Se ficar um mês a escavarmadeira, automaticamentese confina e já não será umartista. Não terá mais essegrau. O artista vive de so-nhos, vai ao céu, buscarjunto de Deus alguns pro-jectos e traz à terra, masnão é ele mais que deve de-senvolver em termos me-cânicos. Põe as ideias nopapel e entrega aos assis-tentes que executam. Elefaz, depois, a revisão técnicafilosófica para depois apurare chegar a uma obra. É comoo compositor. Mas tudo de-pende do nível das pessoascom quem trabalha. Precisade formá-las de forma ade-quada para não distorcerema essência do que processao artista.

“Por não haverindependência no

mercado da arte deAngola, hoje as

pessoas sesubmetem a grupos

onde estão a serexploradas”

EDIÇÕES NOVEMBRO

EDIÇÕES NOVEMBRO

Page 4: REFLEXÕES 15 21 de Junho de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1347953820_fim-de... · muito rebuscada para al-guns dos nossos concida-dãos. Seria melhor falar de falácias porque

ENTREVISTA18 Domingo21 de Junho de 2020

Depois da licenciatura e mestrado em Ensino daHistória pelo Instituto Superior de Ciências daEducação de Luanda (ISCED), Fernando Jones Bambiacaba de concluir o seu doutoramento em CiênciasHistóricas pela Faculdade de CiênciasSociais da Universidade de Oriente, em Cuba. Na sua tese, abordaa resistência dos Jindembu àpenetração portuguesa de 1872a 1919. Trata-se de uma dasresistências que mais desgostosprovocaram aos portuguesesdurante as campanhas depenetração em África, queocorrem em partes doDembo, actual municípiodo Bengo. Em entrevistaao Jornal de Angola,o historiador desfazos mitos aindapersistentes. “Ficouregistado na Históriacomo o mais sériodesafio àspretensõescoloniaisportuguesas emAngola”, avança,lembrando quehá uma listade heróis que devem deixarde ser anónimos

Gaspar Micolo

Acabou de se doutorar emCiências Históricas pelaUniversidade de Oriente(Cuba). A sua formaçãoresultou de alguma parceriaentre instituições cubanas eangolanas ou estudou comfundos próprios? Seria desejável se a minhaformação doutoral resultassede uma parceria institucio-nal, o que não aconteceu,pois a ida à República de Cu-ba, na companhia de outrostrês colegas, resultou de umconvite formulado por umprofessor da Universidadede Oriente, que no âmbitoda cooperação Angola e Cubaprestava serviço no nossopaís. Embora fizesse parte

do plano previsional de for-mação pós-graduada da ins-tituição pública onde estouvinculado, em Cuba estivena condição de estudanteauto-financiado para maistarde beneficiar de apoiosde uma instituição privada,que sem o qual dificilmenteterminaria a formação, dadoo agudizar da crise que seseguiu a 2014.

Na sua tese, aborda aresistência dos Jindembu àpenetração portuguesa de1872 a 1919. Porqueescolheu esse tema para odoutoramento?A principal motivação paraa escolha do tema resultouda necessidade de preencheras lacunas detectadas nahistoriografia, particular-

mente a angolana, onde otema é pouco trabalhado,inclusive nas instituiçõesde ensino superior. No qua-dro das lutas contra a pe-ne t ra ç ão p o r t ugu e saprotagonizadas pelos Jin-dembu derivou o tratado depaz que os portugueses ti-veram de assinar em 1872,conhecido historicamentecomo a independência dosJindembu, um facto históricosingular e de transcendentalimportância política e só-cio-económica, para a his-tória de Angola, mas poucoinvestigado e conhecido.

Entre 1913 e 1917, a regiãodos Jindembu é estável edirige o seu destino, e atétolera a autoridadeportuguesa presente nas

HISTORIADOR FERNANDO JONES BAMBI

“É gritante a faltade conhecimento

sobre a resistênciados Jindembu”

DR

fortificações. O que estevena base destaindependência em relaçãoa outras localidades dolitoral?As lutas nos Jindembu foramuma constante desde a che-gada dos portugueses emseu território no decurso doséculo XVI. Todavia, em1872 ocorreu nos Jindembuum levantamento genera-lizado por causa da cobrançade impostos, o que conduziua grandes enfrentamentosmilitares com resultadosdesastrosos para os portu-gueses que tiveram de as-sinar um tratado de paz comos nativos que permitiu aretirada dos portugueses daregião, o que ficou conhe-cido como a independênciados Jindembu que duraria

47 anos. Isso ficou registadona história como o maissério desafio às pretensõescoloniais portuguesas emAngola, ao destruir a or-dem militar por meio daforça e da diplomacia, fi-cando a região impenetrá-vel para os portugueses,incluindo nativos que sevestiam à europeia.

E afinal essa independênciatermina em 1917...Esta independência por ocor-rer numa região próxima deLuanda era vista como umaautêntica vergonha para oprestígio dos portugueses,que decidem enviar para aregião entre 1907 e 1913, asmais poderosas colunas mi-litares lideradas por João deAlmeida e David Magno, que

apesar de terem reconhecidoa região, não foram capazesde submeter os povos. Logo,a relativa estabilidade, quese verifica no período 1913-1917, dá-se devido ao poucoespaço de manobra militardos portugueses nos Jindem-bu. Não tinham efectivos su-ficientes e havia a necessidadede dedicar todas as suas forçaspara o Sul de Angola a fimde conter o avanço alemão,que aproveita as acções dosOvawambo sob liderança deMandume para assegurar asua influência no Sul de An-gola e Norte da Namíbia, ac-ções ocorridas no contextoda Primeira Guerra Mundial.Daí que com a morte de Man-dume e o fim da Grande Guerrao esforço português é todo di-reccionado para os Jindembu.

Page 5: REFLEXÕES 15 21 de Junho de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1347953820_fim-de... · muito rebuscada para al-guns dos nossos concida-dãos. Seria melhor falar de falácias porque

ENTREVISTA 19Domingo21 de Junho de 2020

Que outros projectos deinvestigação tem emcarteira? Infelizmente, até ao mo-mento, tudo foi feito comrecursos próprios e, casose consiga apoios, daremoscontinuidade ao projectoa fim de se trabalhar parapublicar o valioso materialque se encontra em nossaposse, assim como, tentarencontrar junto do Governoda Província do Bengo edo Ministério da Cultura,soluções que concorrampara a retirada do anoni-mato e reconhecimentodos inúmeros patriotas efiguras históricas da região,assim como a inventaria-

ção, classificação e conser-vação dos monumentos esítios que recordam a secularresistência deste povo, o quea acontecer, poderá contri-buir para o fomento do tu-rismo histórico-cultural.

O que acha que se podefazer para estudarmoscada vez mais a nossaHistória? A história é uma área doconhecimento que dispõede um importante papelsocial, pois para além deolhar para o passado paraencontrar as respostas dopresente, ela ajuda a fo-mentar o sentimento depertença, de identidade

nacional e permite sabera relação do homem comos seus pares, com a so-ciedade, com a natureza,com a tecnologia e as trans-formações que estas rela-ções sofreram ao longo dotempo. Dada esta relevân-cia, seria desejável que elafosse ensinada em todosos níveis de ensino e emtodos os cursos, pois nãohá nada que não tenha his-tória ou que não esteja re-lacionado com ela. Poroutro, seria desejável se osprogramas de história pu-dessem conter aspectosmais relacionados com anossa realidade continental,regional e local.

“Enfrentaram uma força muito superior

“História deveria ser ensinada em todos os níveis de ensino”

Como os Jindembuaguentaram a resistência àocupação portuguesa,apesar da política deocupação efectivaresultante da Conferênciade Berlim?Os homens dos Jindembudemonstraram ser hábeisguerreiros e defensores dasoberania do seu povo, graçasà sua astúcia e capacidadecombativa que combinavaa luta de guerrilha com osmétodos da luta regular eigualmente de acolher noseu território todo ambundoque se sentisse farto da tutelaportuguesa. Aproveitam-seigualmente as condiçõesgeográficas locais na lutacontra os seus invasores, as-sim como a utilização deuma combinação de outrastácticas não militares comoas de ordem política/diplo-mática e sócio-económicas,que contribuíram para a es-tratégia da manutenção dasua soberania por largos anos,sendo dos últimos povos aserem submetidos e o seuterritório um dos mais ricosem fortins militares que sim-bolizam a sua resistênciacontra o opressor.

Na sua tese, como avaliou ofim da resistência em 1919,já que o capitão Ribeiro deAlmeida, tinha na suacompanhia africanos, queapenas transportavam omínimo indispensável...O fim da resistência dos Jin-dembu é associado a umadiversidade de factores, desdea falta de unidade entre osdistintos chefes, à traição demuitos africanos que setransferiram para o lado por-tuguês e as dificuldades paraobter armamento e pólvora,uma das consequências dasmedidas implementadas porNorton de Matos, em 1913.Há ainda o sufoco pela mas-siva concentração de tropasque contra eles lançou Por-tugal; pois, Jindembu, aoser dos últimos territóriosque se mantiveram resis-tindo, teve que enfrentaruma força muito superiorem homens e técnicas, dasque Portugal havia utilizadonoutras regiões.

É dos poucos a nívelnacional a desenvolver aomais alto nível de estudo a

minados critérios e umanova concepção da históriad i fe rente daque la quetransmitiu uma visão pe-jorativa e prejudicial dosseus povos que em certamedida ainda perdura.

E os aspectos distorcidos...Vários aspectos podem serapresentados como distor-cidos, dentre os quais se podemencionar o facto de se apre-sentar na literatura a resis-tência dos Jindembu comorevolta ou acto de rebeldia.Os fingidos actos de vassa-lagem assinados por Jindem-bu não poderiam ser vistoscomo actos de sujeição à co-roa portuguesa, pois erammeras tácticas de conserva-ção do poder, logo, estes nãopoderiam revoltar-se ou re-belar-se, o que quer dizerque o conceito de revolta ourebelião não se aplica parao período anterior à ocupaçãocolonial. Por outro, as qua-lidades guerreiras dos Jin-dembu apenas são descritasao exaltar as do seu vencedor.Kakulo Kahenda, NgombeYa Mukiama, Kazuangongoentre outros, só vêem osseus nomes reconhecidosao se reconhecer os heróisportugueses a exemplo deDavid Magno, João de Al-meida e Ribeiro de Almeida,tão pouco se põe em con-sideração o valor deste povoque foi sujeito da construçãode uma história de heroís-mo em todos os ângulos ecapaz de ser modelo paraas novas gerações.

Além de bibliografia, pôdefazer recurso a fontes orais edocumentos de arquivos? É óbvio que para além dasreferências bibliográficas,que constituem o ponto departida, um estudo com adimensão de uma tese nãopoderia ter credibilidade senão se trabalhasse com asfontes primárias, sobretudoas documentais produzidasna época pelos comandantesmilitares que participaramdas expedições, assim comoas distintas correspondênciastrocadas entre Jindembu eas autoridades portuguesasestabelecidas em Luanda.Daí que foi de importânciacapital a consulta de docu-mentos conservados nosfundos raros do Arquivo Na-

temática sobre osJindembu. Confirma ou nãoser isso que notou quandofez o levantamentobibliográfico? A resistência dos Jindembué uma que apresenta inú-meros estudos, maioritaria-mente enquadrados nachamada historiografia co-lonial, que como se sabe éuma historiografia que sepreocupa com a exaltaçãodos feitos de seus heróis, eque muitas das vezes apre-sentam os nativos como sefossem meros espectadoresda sua história. Entretanto,no quadro da chamada his-toriografia renovadora, exis-tem alguns estudos feitosque resultaram em artigos,monografias e dissertaçõesproduzidos por portuguesese brasileiros. Não encontra-mos qualquer estudo a nívelde doutoramento, que pos-sivelmente possa existir masque não estava publicado oudisponível durante o períododa nossa pesquisa. Outros-sim, não é apenas na tesede doutoramento onde re-side a relevância da nossapesquisa, mas o facto decoordenar um projeto ins-titucional de investigaçãocientífica designado RESI-DEM (Resistência dos Dem-bo s ) , q u e no p e r í o docompreendido entre 2015 e2019 produziu vinte e duasmonografias por parte dosestudantes filiados no pro-jecto, cujas linhas temáticase os seus autores se encon-tram no anexo nº 18 da tese,assim como realizamos fó-runs estudantis em Angolae publicámos em revistasindexadas e actas de eventosinternacionais meia dezenade artigos que se julga serum contributo, não só paraa existência de um sistemaintegrado de conhecimentoshistóricos sobre essa resis-tência, como também parao enriquecimento do fundobibliográfico da historio-grafia angolana.

Que factos sobre os Dembusainda são desconhecidos oudistorcidos?É gritante a falta de conhe-cimentos sobre a resistênciados Jindembu, não só peloimpacto que teve no governocolonial mas sobretudo pelofacto de a mesma situar-senuma restringida lista de re-sistências que mais desgostosprovocaram aos portuguesesdurante as campanhas depenetração em África, a sin-gularidade do seu processode independência que con-tribuiu para a generalizaçãodas resistências a Norte, Cen-tro, Sul e Leste de Angola,os instrumentos jurídicosproduzidos pelos portuguesese que se repercutiram emtoda Angola. Apesar da suaocupação, o espírito de re-sistência do seu povo se man-teve vivo com reflexos naslutas que conduziram a in-dependência em 1975. Es-tudar as resistências africanasparticularmente as ocorridasem território angolano, re-quer um exercício crítico ede desconstrução de deter-

cional de Angola, ArquivoNacional Torre do Tombo,Arquivo Ultramarino Por-tuguês, Arquivo MilitarPortuguês, Biblioteca Na-cional de Portugal, Biblio-teca da Sociedade Geral deGeografia de Lisboa. Porseu turno, as fontes da tra-dição oral em geral e par-ticularmente da históriaoral dos Jindembu ocupa-ram um lugar de grandeimportância no processode elaboração da tese, namedida em que garantiu avisão interna de como essepovo se organizou sobre a

autoridade de seus líderespara enfrentar um inimigomelhor armado.

Pergunto isso porquegrande parte dos trabalhosacadémicos, até mesmo aonível de mestrado, recorremuito pouco às fontesprimárias, aos arquivos e afontes orais?Provavelmente, a dificuldadereside no acesso a essa ti-pologia de fontes. No casodas fontes orais, uma das di-ficuldades que tem existidoestá relacionado com o factode os informadores não se

expressarem em portuguêse os pesquisadores, por suavez, não dominarem as lín-guas locais, o que requer apresença de um tradutor. Nocaso específico das fontesdocumentais, uma delas po-de estar relacionada ao factode as fontes não estarem dis-poníveis ao público por ra-zões políticas ou mau estadode conservação, principal-mente quando o horizontetemporal de investigação formuito recuado, entretanto,cabe ao pesquisador encon-trar formas para contornartais dificuldades.

“As fontes datradição oral em geral e

particularmenteda história oral dos Jindembu

ocuparam um lugarde grande

importância noprocesso de

elaboração da tese”

“Kakulo Kahenda,Ngombe YaMukiama,

Kazuangongo,entre outros, foram

sujeitos daconstrução de uma

história deheroísmo em todosângulos e capaz deser modelo para asnovas gerações”

DR

Page 6: REFLEXÕES 15 21 de Junho de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1347953820_fim-de... · muito rebuscada para al-guns dos nossos concida-dãos. Seria melhor falar de falácias porque

REPORTAGEM20 Domingo14 de Junho de 2020

MUNICÍPIO DO AMBRIZ COMPLETA 165 ANOS

Uma festa de muitas reflexõesAmbriz completou 165 anos. Não teve festa de arromba. Mas a data não foi esquecida. Serviu para reflexão sobre a

situação social das suas populações e as principais carências do município

Pedro Bica | Ambriz

O município piscatório doAmbriz, província do Bengo,completou, em Maio, 165anos desde a data da sua fun-dação. Mas não pode celebrarcomo sempre fez, com festase muitas actividades, porqueo momento não permite.Apesar disso, a data não

passou em branco. A po-pulação do município re-c e b e u men s a g e n s d efelicitações e encorajamentodas autoridades locais e dogoverno da província, alémde outros incentivos.A governadora do Bengo,

Mara Quiosa, além das fe-licitações, garantiu melhoriasnas condições sociais dosmunícipes, embora reco-nheça os enormes prejuízoseconómicos derivados dapandemia da Covid-19 queassola o país e o mundo.Para que as populações

obtenham essas melhoriasno mais curto espaço de tem-po terão, igualmente, de em-

penhar-se para ajudar o go-verno nessa empreitada.“Juntos poderemos encon-

trar as soluções para os inú-meros desafios que temos pelafrente, quer a nível do Ambriz,enquanto município,quer paratoda a província do Bengo”,disse Mara Quiosa.

Sistema de captaçãoUma das maiores necessi-dades que o município pis-catório do Ambriz apresentaé de um novo sistema decaptação, tratamento e dis-tribuição de água potávelpara as populações locais,conforme disse o adminis-trador municipal, José Do-mingos Muginga, porque oque possui actualmente aindaé do tempo colonial.

ElectrificaçãoOutra grande preocupaçãoprende-se com a eletrificaçãodas comunas do Tabi e daBela-Vista, pois o projectodo Ciclo Combinado do Soyopermitiu apenas electrificara sede municipal.

SaúdeO sector da saúde conta com12 unidades sanitárias e amaior dificuldade reside nafalta de enfermeiros e me-dicamentos essenciais.A região conta com apenas

três médicos e 42 enfermei-ros, número insuficientepara os 20 mil habitantesda circunscrição.Precisa-se de mais mé-

dicos nas especialidadesde clínica geral, pediatriae ginecologia.O único hospital muni-

cipal é assegurado por qua-tro médicos e 16 enfermeirose o Banco de Urgências re-cebe, em média, trinta pa-cientes por dia, sendo amalária, as doenças respi-ratórias agudas, diarreicase os traumatismos por aci-dentes rodoviários as en-fermidades mais frequentes.O hospital gere uma verba

mensal de 12 milhões dekwanzas, com a qual compraremédios, garante alimen-tação aos internados e a lim-peza dos compartimentos.

EducaçãoO Município do Ambriz pos-sui 22 escolas, correspon-dentes a 129 salas de aulas,que dão suporte aos três ní-veis de ensino (pré-escolar,primário e secundário).Parao presente ano lectivo, es-tão matriculados mais de8.000 alunos.Um total de 278 profes-

sores, que leccionam da ini-ciação à décima classe,garantem o normal funcio-namento do sector que,ainda assim, clama pormais professores e a juven-tude, pela implementaçãodo ensino superior.

Origem dos povosReza a história que a popu-lação do Ambriz é descen-dente de Kongo-Dia-Ntotela,actual Mbanza Congo.No ano de 1824, o Gover-

nador de Angola determinavaa ocupação do Ambriz e a fozdo Rio Zaíre, por parte dasforças e autoridades portu-guesas, com o pretexto de aca-bar com o tráfico de escravos

que se fazia em larga escala apartir desse território.A região existe desde antes

da ocupação de Angola porparte das forças estrangeiras,sobretudo portugueses.Eraconstituída por sete pequenosreinos e o responsável os-tentava o título de Nfumu-a-Ntoto ou Dembo, com asubordinação direta ao Reido Kongo e a eleição era feitapor regime consanguíneo.A Vila do Ambriz ascen-

deu a categoria de Distritoem 1855 e compreendia osconcelhos do Ngoge (Bembe)e o Comando do Kongo (Pos-to Militar de São Salvador).Os reinados, na altura,

eram o reino de Nkolo YoNymy, Nsulu, Nsonso, NenéCapita, Pambala Longua,Nsanzu a Kalunga e da Ma-kiassa Ma Mbambi.

História O edifício da antiga câmaramunicipal do Ambriz, de umsó piso, é um dos locais his-tóricos da região.Tem naparte central da fachada uma

torre de 4 pisos, que lhe dáuma característica particular.A sua construção foi termi-nada em 1906.Outro local de interesse

histórico é a conhecida Casada Escravatura. Muito antesfoi Paiol, local em que osHolandeses armazenavama pólvora, munições e ex-plosivos.Mais tarde, serviude local de trânsito para ocomércio e tráfico de es-cravos para o Brasil e outrasparagens.A Casa da Escravatura foi

construída por volta do sé-culo XIX – 1868, e classifi-cada como Patr imônioNacional, através do Despa-cho nº46, de 10 Novembrode 1993.

TurismoO turismo é feito nas praiasdos Pescadores, do Kinfuka,do Kapulo, do Yembe e doTabi, nas Cascatas do LogeGrande (Quedas do Vala-wa), na Pedra Mariana enas Rochas sedimentaresda Bela Vista.

| EDIÇÕES NOVEMBRO

Page 7: REFLEXÕES 15 21 de Junho de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1347953820_fim-de... · muito rebuscada para al-guns dos nossos concida-dãos. Seria melhor falar de falácias porque

António Capapa

Gerir emoções, no regressoao encontro com Deus nasigrejas, é visto pela fun-cionária pública Eulália Vi-tória como uma grandeprova na luta para a miti-gação da Covid-19. Ela temeque não se consiga gerir aansiedade dos fiéis nos pri-meiros dias. Para Eulália,devia-se continuar com asmissas televisivas ou atravésdas redes sociais.

O temor da fiel reside nofacto de o comportamentodas pessoas nem sempre sero mais correcto, porquanto“mesmo estando na igrejamanifestam rebeldia e o es-pírito de desobediência”.

Segundo Eulália Vitória“é complicado, nada é fácil”,quando se nota o aumentodos casos de contágio pelonovo coronavírus.

A funcionária pública jáolha para a reabertura dasigrejas como uma decisãopouco aconselhável por estaaltura, tendo em conta ofacto das pessoas “gostaremde furar em tudo”.

Apesar de reconhecer afome de Deus, que a maioriados fiéis acredita que só serásaciada em missas ou emcultos, Eulália Vitória afirma“não ser preciso correr tantoassim”. “Desde que o mundoé mundo, sempre houveigrejas e todo mundo semprerezou. As pessoas começa-ram em casa com as famílias,depois é que fomos para asigrejas. Por essa razão, nãoprecisamos de correr”.

Para ela, faz sentido opensamento de algumaspessoas segundo o qual “hálíderes religiosos que jánão estão a esconder a von-tade de receberemo di-nheiro dos fiéis”.

Conquanto considerenormal o receio da sociedadequanto a retoma dos cultos,o reverendo Alberto Cam-buembue, da Igreja Evan-gélica Universal de Luanda,afirma que “não se podever a igreja como um lugarde propagação da pande-mia, mas de solução”.

O líder religioso reconhe-ce o quanto o homem é emo-cionado, o quanto a alma éentusiasta, mas diz acreditarno fruto da sensibilizaçãodiária, na colaboração dosfiéis que respeitam a suavida e a da sua família.

O reverendo Cambuem-bue apega-se à Carta de SãoPaulo aos Romanos, parafundar a sua tese de que aigreja é o lugar de maior ra-cionalidade, é parceira doEstado e não deve deixar-

lhe caminhar sozinho. Aigre ja , segundo disse ,não deve esconder-se naluta contra a pandemiada Covid-19.

“Sou defensor de que aigreja deve estar no combatea Covid-19 e não somentenos confinarmos nas nossascasas”, refere.

Em relação à prevenção,Alberto Cambuembue tomade empréstimo a passagembíblica da Primeira Cartade São Paulo a Timóteo, ca-pítulo cinco, versículo oito,para esclarecer que “a fé éaquela que cuida do próxi-mo e da família”.

“Estamos num momentoem que somos surpreen-didos pela negatividadedaCovid-19, quenos pres-siona. Logo, o momento éde exigência. E a exigênciaque temos é a racionalidadee o cuidado para com a so-ciedade”, reitera o reve-rendo Cambuembue.

Ao nível da Igreja Evan-gélica Unida Anglicana, se-gundo a reverenda Filomena

REPORTAGEM 21Domingo21 de Junho de 2020

Gerir as emoções no retorno aos cultos

Teta, tem havido, igualmen-te, um trabalho de sensibi-lização junto dos fiéis, tendoem conta a sua ansiedade,jáque “os anglicanos foramacostumados a uma culturade missa presencial”, ma-nifestando alguma incon-formidade em relação àsmissas online que têm sidorealizadas para que não lhesfalte a palavra de Deus.

Considerando os possíveisperigos que podem advir douso dos transportes públicos,a Igreja Anglicana socor-reu-se da estatística paradividir os seus fiéis de modoa estarem mais próximosdas zonas de residência, fa-cilitandoa sua locomoção,evitando recorrer aos trans-portes públicos, onde, se-gundo Filomena Teta,”estáo maior perigo”.

A igreja decidiu pelatransferência entre as pa-róquias e está a dar a pos-sibilidade de cada membroescolher a melhor horapara participar da missa.

A reverenda Filomena

Teta assegura que estão pre-parados para contraporeventuais facilidades quealguns fiéis quererão ter,ou seja, entrar na igrejamesmo já não havendo lu-gar disponível.

Filomena Teta diz quecom a presença dos guar-diões da igreja não acreditaque se promova a desordem,já que os membros estãoorientados à obediência aocorpo de Cristo.

“Estamos preparados comos nossos guardiões e pro-curaremos clarificar que essafacilitação pode vir preju-dicar primeiro quem vai darfacilidades e depois todosos outros”, sublinha Filo-mena Teta.

Contenção e fiscalizaçãoO sociólogo Vidal Machadoacredita que os fiéis estãoávidos pela retoma do en-contro com Deus nas suasigrejas, nas mesquitas, nosseus templos, um desejoque, no seu entender, deveser concretizado com cautela

e “mediante um domíniototal, porquanto a aberturados cultos não significa já ofim da pandemia, pelo con-trário, ainda não se está nemao meio, nem no fim do con-trolo desse mal que afectatotalmente a humanidade”.Por essa razão,

Vidal Machado chama aatenção para a responsabi-lidade individual de cadafiel, de cada membro, de ca-da líder, para se prevenir apropagação da doença.

O sociólogo entendeque para isso é impor-tante que haja o domínioemocional, do lugar deculto, das regras sanitá-rias e evitar-se a anarquiae a desobediência.

Conhecedor das mais va-riadas manifestações espi-rituais, Vidal Machadodefende a contenção de al-guns ritos de adoração quelevem os fiéis ao êxtase eponham em causa as me-didas de distanciamento fí-sico e outras necessáriaspara impedira transmissão

do novo coronavírus.Fiscalização é o que de-

fende o psicólogo CarlinhosZassala, que sugere quenão se deve descurar damesma, sob o risco de seregistar o pior.

“É bom que o sistema defiscalização funcione mes-mo, para verificar se as igre-jas têm condições. Caso nãotenham, não as autorizar”.

Se a fiscalização não forefectiva, se não for eficiente,“as consequências podemser alarmantes”, alerta Car-linhos Zassala.

O psicólogo apela aosfiéis a terem um espíritocrítico, a olharem para aexperiência de outros paísesonde se registaram casosde contágios com a reaber-tura das igrejas.

Para Carlinhos Zassala afé é, primeiramente, umaquestão individual, razãopor que os fiéis que vão àsigrejas devem ser pruden-tes, e, principalmente, ma-nifestarem o espírito deresponsabilidade.

IGREJAS REABREM NA QUARTA-FEIRA

Ansiedade na perspectivado encontro com Deus nos locais de culto e o temor de eventuais contaminações, sãosentimentos que se digladiam nas almas dos crentes, a poucas horas do regresso às missas e cultos. Os fiéis estão

ávidos pela retoma do encontro com Deus nas suas igrejas, nos seus templos, nas suas mesquitas. Mas tem de havercautela, a abertura não é o fim da pandemia da Covid-19

| EDIÇÕES NOVEMBRO

Page 8: REFLEXÕES 15 21 de Junho de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1347953820_fim-de... · muito rebuscada para al-guns dos nossos concida-dãos. Seria melhor falar de falácias porque

22 Domingo21 de Junho de 2020

No cenário onde se desenvolve a mortal batalha mundial contra a Covid-19 multiplicam-seepisódios dignos do olhar atento da câmara jornalística e dos espectadores debaixo da

bananeira, no sofá ou no imbróglio das vítimas

O DILEMA DE ABRIR OU NÃO AS ESCOLAS

As aulas dos nossos petizes

Pombal Maria

Nalguns recantos das quatroparedes do mundo mudam-se cenários, episódios cadavez mais estrondosos, no he-misfério Sul e na Américado Norte e mesmo no VelhoContinente. Avanços e recuoscomo nas famosas batalhasde Kifangondo, Cuito Cua-navale, Mavinga e outras queassinalam a história recentede Angola. Longe do seu fim,a guerra mundial contra omonstro invisível conquistacada vez mais o olhar elec-trizante da comunicação so-cial moderna e de empresasde marketing social, com asua teia digital espalhada pe-los cantos e recantos do pla-neta água, mas que todoschamam planeta terra. Desde os semelhantes de

Adão e Eva acomodados nosarranha-céus de Nova Iorque,Londres, Paris aos incómodossobreviventes, fobados, dosguetos de Luanda, Johan-nesburg, Kinshasa, Yamous-soukro e outras capitais, ainformação chega quente,em primeira mão, sem seperceber o distanciamentogeográfico, do primeiro aocoração do terceiro mundo.Alguns países com outro

pedalar de desenvolvimentomostraram, ao resto do pla-neta, que terão vencido ofantasma do medo, quebran-

do algum confinamento, cominício das aulas, abertura derestaurantes, fábricas, trans-portes públicos e outros ser-viços indispensáveis ao barcodo desenvolvimento huma-no. A verdade não tardou, oadversário do momento nãoabandonou sua resiliência.E foi, exactamente no abrirdas salas de aulas, no lugardos homens do amanhã, her-deiros do planeta, onde osgolpes mais dolentes se ve-rificaram. A imprensa nãodeixou de espalhar palavraspor todos os recantos, cha-mando atenção aos manda-chuva destes países e domundo. Em França, terra deJean-Paul Sartre, as salas deaulas abriram e 79 novas in-fecções levaram a fechar asportas com a velocidade deum vendaval; Nos Camarões,492 novas infecções levarama seguir o exemplo do ex-colonizador - as criançasvoltaram a casa - enquantoisso, na África do Sul, terrado Arco-Íris, os alunos de-veriam sentar-se nas car-teiras no Dia Mundial daCriança, mas a ministra daEducação colocou um travão,assumiu não haver as pre-missas necessárias. Na Coreiado Sul, 500 escolas trancaramas portas. Diante desta in-formação que se espalhavana teia da mídia mundial, omundo acabou despertando

como canguru, olhando paraa paisagem humana, numglobo pasmado e titubeante,não se sabe bem se o fantas-ma do medo voltou ao Oci-dente e demais países, ou seé puro reflexo dos efeitos danova guerra mundial. Mastal como a fonte de água épura como a verdade, o mun-do caminha ainda titubeantenos nossos dias.Em Angola, terra do bas-

ketball africano, os pronun-ciamentos de altas figurasdos orgãos do Estado ligadasao ensino deixam sem pa-lavras a Associação Angolanado Ensino Privado, expec-tante quanto ao início dasaulas. No terceiro mês docorrente ano, esta associaçãoconseguiu uma vibranteproeza. Proeza essa trans-formada em profunda dorde cabeça para os encarre-gados de educação. Os 60por cento a pagar aos colégiospor parte dos encarregadosde educação deixaram meiomundo estatelado. Esse re-sultado tem o sabor de umaforte campanha de advocaciaexercida por este organismoassociativo, que começa aver caído na lama o troféu.Os encarregados de educação,cada vez mais paupérrimos,que outrora imitavam os lá-bios dos suínos ao resmungara medida assinada com bompulso, começam a desenhar

docentes, com justa razão,vão exigir o preço do suordo rosto, o salário. Até porquedesde que começou o con-finamento social, muitosainda não sentiram o fundodo bolso. Todos os cenáriossão possíveis para subir nomuro do horizonte e obser-var, com binóculos, o ama-nhã. Nesta caminhada, maisum abanão na árvore da vidaonde o impacto negativo dosventos da Covid-19 desenhaos nossos dias. Enquanto isso, os labo-

ratórios ganham pernas ecorrem contra o tempo àprocura do antídoto. Asso-ciado a estes, os gigantescosgrupos farmacêuticos, mons-truosas empresas do ramo,tentam encontrar a tábua desalvação para o resgate domundo de Noé. As soluçõestradicionais do hemisférioSul são ignoradas, num gestocaracterístico do cinismoocidental, embora no silêncioda noite os seus cabeçudosfaçam grandes cábulas dosnossos curandeiros. Para elesa espionagem industrial nãobasta, o conhecimento dascomunidades do outro mun-do é um recurso a ter emconta e a não reconhecerimediatamente. O famoso Chá de Mada-

gáscar dá o seu show, os de-mais produtos naturais damedicina angolana, congo-

lesa, enfim, africana, nãodeixam de estar no menu daprodução a oferecer soluçõesaos mais cínicos laboratóriosmundiais. Foi com eles queas comunidades maltratadasno pesadelo da história dahumanidade sempre cura-ram as suas patologias. Aqui, neste pedaço de Áfri-

ca, onde as importações le-vantam o gigante de barroadormecido em jazigos deouro e diamantes, não temoslaboratórios para a corridaao mesmo nível que do pri-meiro mundo, vontade nãofalta, as estratégias de pre-venção estão a assustar osmais desenvolvidos. As ex-pectativas aterrorizadoras daOMS começam a ser vencidas. Mas, enquanto a maré não

transborda, a pulga na orelhado grande povão é saber seos alunos voltam às salas deaulas ou não. Vontade paraque estes se sentem diantedo mestre não falta. De váriasformas, os mais interessadosno conhecimento dos in-fantes são os próprios pro-genitores. Enquanto o lobonão vem, vamos continuarnas nossas trincheiras, nossascasas, usar a saudação quemeu pai considerava de jo-vens traquinos, para nãofalar de bandidos, e cum-prirmos com todas as me-didas de prevenção.Que haja rigor…

um sorriso brilhante no rostocansado e indefeso. Nestequadro meio aterrorizador,enquanto a decisão final nãoconhece a assinatura, a des-peito do início ou não dasaulas em Angola, os encar-regados de educação apenasoram para que o mal nãoaconteça. O teatro obser-vado noutros países podeservir de exemplo paraquem olha para o espelhoe vê o seu próprio rosto.Várias correntes de opinião

ocupam o espaço de antenada imprensa local, tambémorganismos privados ligadosao ensino, em tempo opor-tuno, fazem ouvir o seu si-lêncio, o famoso silêncio deouro. Realmente as aulaspodem não iniciar na dataprevista, e novamente, haveradiamento para mais um oudois meses. Corre-se o riscode chegarmos ao ponto dedobrar o ano lectivo e o jo-garmos ao mar como um pa-pel que se perde a meio dabatalha. Os motivos estão jádevidamente justificados,caberá à história assinar amemória. A acontecer, oscolégios poderão entrar emchamas. Bombeiros não fal-tarão. Os mestres já têm oscontratos assinados, não exis-tem planos para mitigar crisesdo género nestas instituiçõesescolares, os bolsos do Go-verno estão meio rotos. Os

ARÃO MARTINS | EDIÇÕES NOVEMBRO | HUÍLA

CRÓNICA