reconhecimento como ideologia e democracia: o trabalho ... · locais atuaram como agentes de...
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8º Encontro da ABCP
01 a 04/08/2012, Gramado, RS
Área Temática: Cultura Política e Democracia
Reconhecimento como ideologia e democracia:
o Trabalho Infantil Doméstico
Rousiley C. M. Maia (UFMG)
Danila Cal (UFMG/UNAMA)
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1. Introdução
Ainda que ganhem repercussão nos media e tenham regulamentação jurídica,
certos casos de injustiça dificilmente são percebidos como tal pelos sujeitos que
os vivenciam. Neste artigo, trataremos de uma situação na qual isso ocorre: o
trabalho infantil doméstico (TID), uma prática sócio-cultural arraigada que
acontece em diversas regiões do mundo. Crianças e adolescentes que o exercem
são frequentemente considerados como “os mais escondidos, invisíveis e
inacessíveis de todos os trabalhadores infantis” (Black, 2002, p.2). Tal
invisibilidade ocorre porque o serviço infantil doméstico usualmente não é
considerado “trabalho” por culturas locais. Ele acontece no ambiente privado das
casas de família, e, portanto, longe dos olhares públicos; e, ainda, patrões e
adolescentes, em muitos casos, equiparam o TID a uma relação familiar fundada
em ajuda mútua (Hoyos, 2001; Lamarão, Menezes e Ferreira, 2000; Cal, 2007; Cal
e Maia, no prelo).
Com base na teoria do reconhecimento desenvolvida por Axel Honneth, nosso
objetivo neste artigo é investigar problemas de poder arraigados em práticas
cotidianas que podem bloquear a transformação de experiências privadas em
problemas de injustiça. Nosso estudo foca-se no caso do trabalho infantil
doméstico em Belém (PA), uma das cidades escolhidas pela Organização
Internacional do Trabalho (OIT) para implantar um projeto piloto de enfrentamento
dessa prática. Pretendemos analisar o que as pessoas afetadas identificam como
injustiça a luz de discursos públicos e da própria experiência pessoal. Assim,
nosso trabalho é dividido em dois eixos principais: (i) análise de como o trabalho
infantil doméstico é apresentado pelos principais jornais do Pará de janeiro de
2000 a dezembro de 2004, que correspondem aos primeiros cinco anos do
Programa de Enfrentamento ao Trabalho Infantil (Petid); e (ii) análise da
conversação sobre os discursos da mídia a respeito do tema em grupos focais
com mulheres que foram trabalhadoras domésticas na infância e moram em áreas
periféricas de Belém.
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O caso estudado é relevante porque explora interfaces entre reconhecimento e
problemas de ideologia. Nossos achados mostram que os profissionais dos media
locais atuaram como agentes de advocacy para defender necessidades e direitos
da criança e do adolescente. Jornalistas sistematicamente escolheram fontes
ligadas a organizações civis que lutavam contra o trabalho infantil doméstico. Eles
também adotaram os enquadramentos preferenciais desses grupos para
expressar o quanto esse tipo de trabalho infantil é socialmente negligenciado e
envolve exploração, dominação e marginalização. Por sua vez, mulheres que
foram trabalhadoras domésticas na infância, ao refletirem sobre os discursos dos
jornais, falam sobre as razões pelas quais aceitaram livremente as tarefas e
obrigações do serviço doméstico, que consideram positivas para a auto-
realização. A partir de um “horizonte histórico de razões” (Honneth, 2007, p.340),
elas questionam discursos dos agentes de advocacy e qualificam o trabalho
infantil doméstico como bom ou como uma oportunidade de ganhar autonomia e
de se integrar de forma mais positiva à sociedade.
Argumentamos que, sob circunstancias específicas – particularmente quando
existem leis, políticas públicas e mobilização social para enfrentar o problema em
jogo –, agentes dos media podem disseminar discursos que desafiam hierarquias
sociais de valor. Seguindo a distinção que Honneth (2007) faz entre formas
“ideológicas” e “justificadas” de reconhecimento, sustentamos que as mulheres
ouvidas aceitam passivamente a própria submissão não por conta da
“internalização” irracional de hierarquias sociais de valor. Ao invés disso, elas
explicam suas escolhas e ações mobilizando razões com poder de
convencimento. Não obstante, argumentamos que essas mulheres desenvolvem
um conhecimento cognitivo a respeito da própria situação de forma fragmentada.
Elas identificam, julgam e criticam o que pode ser entendido como “injustiça” nas
suas vidas adotando premissas do reconhecimento ideológico, mas também
constantemente expressam incoerências, contradições e evidências empíricas que
desafiam tal forma ideológica de reconhecimento.
Este artigo está organizado em seis seções. Na primeira, apresentamos críticas
endereçadas à teoria do reconhecimento concernentes a problemas de poder e
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ideologia. Em seguida, contextualizamos brevemente nosso estudo de caso:
expomos as regulamentações acerca do TID e indicamos algumas políticas
públicas e programas de associações cívicas destinados a combater esse tipo de
trabalho no Brasil e, em particular, no Pará. Esclarecemos, na sequência, a
metodologia empregada. Na quarta seção, apresentamos os principais discursos
presentes na mídia local sobre o TID no período selecionado. Por fim,
examinamos, na quinta e na sexta seções, os resultados dos grupos focais. Na
conclusão, tecemos algumas considerações sobre o problema da ideologia e
relações de reconhecimento a partir de nossos achados empíricos.
2. Reconhecimento e Ideologia
A teoria de reconhecimento de Honneth busca conceder particular atenção ao
nexo existente entre o desenvolvimento da identidade e práticas sociais de
humilhação e degradação que impedem que os sujeitos estabeleçam uma auto-
relação positiva. A ideia central é a de que a falta de reconhecimento ou o
reconhecimento distorcido, se por um lado, compromete a condição essencial para
o florescimento humano e para a formação da própria autonomia, por outro lado,
proporciona a motivação moral para desencadear lutas por reconhecimento.
Uma objeção frequente feita à teoria de Honneth é a de que sujeitos que sofrem
maus-tratos podem não desenvolver um julgamento de injustiça e, assim, não ver
razões para lutar por reconhecimento (Thompson, 2006, p.166-167; Alexander e
Lara 1996). Essa crítica é importante para contestar leituras mais otimistas de que
os conflitos sociais levem necessariamente à emancipação. Tal objeção não
chega, contudo, a refutar as teses centrais da teoria do reconhecimento. Não
devemos supor que a negação de reconhecimento ou o reconhecimento distorcido
motive necessária e inevitavelmente lutas por reconhecimento. Os sujeitos podem
“dar sentidos” diversos ao dano e deixar de resistir à exploração, à humilhação e
ao desrespeito. Os olhares a nós direcionados, como Honneth diz, “não devem
inevitavelmente fixar-nos simplesmente em uma meta particular de ação”
(Honneth, 1995b, p.162-3). Nos encontros com os nossos parceiros sociais,
experimentamos de diferentes modos olhares que “encorajam ou desaprovam,
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questionam ou consentem, convidam ou mostram-se céticos” (Honneth, 1995b,
p.162-3). Assim, podemos responder de maneiras também variadas, dentro da
intrincada teia de sentidos das hierarquias valorativas e da complexidade das
relações sociais. Em situações de assimetria de poder, a sujeição e a passividade
podem ser algumas dessas respostas.
Uma segunda objeção é a de que a teoria do reconhecimento, ao atribuir grande
ênfase à dependência do sujeito ao reconhecimento dos outros, pode
desempenhar um papel legitimador de certas operações de poder. Essa crítica
recupera o conceito de ideologia para explicar como um sistema de ideais,
tomados como reconhecimento, justifica ou legitima a subordinação de certos
grupos a outros, nas rotinas diárias. O conceito de ideologia – ainda que seu
sentido originário em Marx, como falsa consciência das relações de domínio entre
as classes sociais, tenha sido diversamente modificado, corrigido e alterado, por
vários autores1– mantém a noção de falsidade em seu cerne. Alguns críticos
(Rössler, 2007; Young, 2007; Bader, 2007) apontam que determinadas
expressões de reconhecimento teriam um caráter mistificador das hierarquias
valorativas que funcionam para legitimar e justificar o poder e a integração social,
tanto do lado da obediência quanto do lado do comando. Essa objeção é mais
radical porque ataca o próprio potencial crítico do reconhecimento para a
emancipação de grupos sociais.
Autores que desenvolvem essa crítica, apesar de tratarem de problemas em
esferas distintas, buscam mostrar que certas formas de reconhecimento podem
evocar uma auto-concepção que conforma os sujeitos aos papeis sociais deles
esperados, o que contribui, na verdade, para o preenchimento de certas funções
sociais. Teóricos da sociologia do trabalho apontam que um exemplo típico é o da
nova administração neoliberal, já que o reconhecimento de maior autonomia,
criatividade e flexibilidade para o trabalhador resulta, frequentemente, em
1 O conceito de ideologia possui obviamente uma complexa história, com conotações muito diversas perpassando discussões na política e economia, mas também dentro de outras tradições sociológicas tais como a Weberiana, a Durkheimiana e a estruturalista. Importantes desdobramentos são realizados por Mannheim na sociologia conhecimento; por Gramsci com o conceito de hegemonia e por Louis Althusser, concepção do aparato ideológico do Estado.
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crescente precariedade das condições de trabalho e em reduzida margem de
negociação. Nesse caso, o alegado reconhecimento contribuiria para a
subjugação dos sujeitos e para a manutenção dos imperativos do mercado.
Ao abordar diferentes racionalidades entre o trabalho na família (o qual inclui o
cuidado das próprias crianças) e o trabalho remunerado, Beate Rössler (2007)
busca mostrar que o princípio de estima (achievement) baseado na remuneração
pode obscurecer questões de bem viver e o que conta como reconhecimento no
trabalho doméstico. Também Iris Young (2007) argumenta que a teoria do
reconhecimento negligencia expectativas peculiares ligadas ao “cuidado” para
com as necessidades físicas e emocionais dos outros (care work) que não podem
ser tomadas como equiparáveis às do trabalho produtivo. Na visão de Young, a
atividade de cuidado implica uma retribuição distinta ao do trabalho regulado pelo
mercado porque ela se dá em termos de gratidão pelo atendimento às
necessidades particulares de um indivíduo, de maneira íntima ou particular (2007,
p.210-11). Tanto Rössler quanto Young alegam que a teoria do reconhecimento,
apesar ser uma teoria atenta às implicações da divisão do trabalho na família e às
lutas das mulheres pela busca de estima, não endereça adequadamente certas
formas de poder social que provocam tensões entre diferentes esferas que
contribuem para reproduzir formas de divisão de trabalho baseadas em gênero.
Essas objeções são fundamentais para nos deixar atentos às dificuldades que os
sujeitos enfrentam para converter experiências privadas de danos em uma
consciência pública de injustiça. Nestas situações, torna-se custoso para os
indivíduos afetados discernir o que conta como reconhecimento, como
analisaremos no caso do trabalho infantil doméstico. Cabe destacar que Honneth
(2007), apenas recentemente, trata explicitamente do problema da ideologia. Ele
procura distinguir entre formas de “reconhecimento ideológico” – que exercem
uma função normalizadora na medida em que “encoraja uma auto-concepção que
conforma [os sujeitos] à ordem existente dominante” (2007, p.337) – e formas
“justificadas de reconhecimento” – que “permitem uma realização consistente”
(2007, p. 346) dos valores então expressos, através de uma conduta coerente e
da introdução de medidas correspondentes nos arranjos institucionais.
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Ao invés de tratar as formas ideológicas de reconhecimento como sistemas de
crenças meramente irracionais, isto é, como “falsas representações” ou “falsas
imagens” que os homens fazem da própria situação social e de si que não
correspondem aos fatos ou à realidade, Honneth defende que não há uma clara
distinção entre juízos “corretos” e juízos “falsos” se as partes envolvidas não
experimentam práticas de reconhecimento como repressivas, restritivas ou
baseadas em estereótipos (2007, p.327). Na visão de Honneth, as respostas às
formas ideológicas de reconhecimento fundam-se em concepções racionais com
força convincente suficiente para que os próprios sujeitos afetados possam
mobilizar razões históricas e utilizá-las para explicar razoavelmente suas próprias
escolhas e ações, em determinadas circunstâncias. Para que o sistema de
crenças possa ser efetivo e o reconhecimento ideológico bem sucedido, Honneth
(2007, p.337-340) estipula três critérios. O sistema de crenças em questão deve: i)
conceder uma expressão positiva ao valor das pessoas ou aos membros de um
grupo, para que eles possam estabelecer uma auto-relação positiva; ii) ser “crível”
aos olhos daqueles a quem é endereçado, de modo a ser percebido como algo
que realisticamente reforça os próprios sentimentos de auto-valor e não restringe
a própria autonomia; iii) proporcionar expressão a alguma nova conquista ou a um
novo valor, de modo que os sujeitos se sintam mais propensos à ganharem
distinção, em comparação com o passado ou com situações anteriores. Essas
condições motivariam os indivíduos a realizarem certas metas e a exercerem as
funções sociais sem resistência. Contudo, nas formas de reconhecimento
ideológico, as promessas de reconhecimento não são verdadeiramente
cumpridas. Em contraste, as formas de reconhecimento justificadas expandiriam
efetivamente os graus de maior individualidade e a autonomia dos sujeitos, tal
como Honneth discute amplamente em seu Luta por reconhecimento e em
ensaios posteriores. Nesses casos, as expressões simbólicas e as justificativas de
reconhecimento são concretamente confirmadas por ações práticas.
Sujeitos em desvantagem – como crianças pobres – podem sofrer de destituição
extrema, vulnerabilidade, opressão, ausência de liberdade (Sen, 1999; Souza,
2006, 2009; Bohman, 2007b; Ikäheimo, 2009) e, assim, não serem capazes de
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perceber claramente a própria situação de injustiça. Nosso caso de estudo permite
evidenciar o quão difícil pode ser para os indivíduos que sofrem de injustiça
colocar sob questão a legitimidade dos valores que sustentam o status quo.
Sustentamos que, sob certas circunstâncias, são agentes de advocacia como
associações voluntárias e empreendedores morais (acadêmicos, intelectuais,
artistas, agentes dos media) que buscam nomear a injustiça, defender valores,
representar e agir em nome desses sujeitos.
Para nossos propósitos, cabe destacar que os empreendedores morais e os
agentes de advocacy estão sempre sujeitos a um “paternalismo democraticamente
ilegítimo” (Bader, 2007, p.266, ver também Rubenstein, 2007), já que as
demandas feitas em nome de outros são sempre parciais e podem ser enganosas
ou constituírem novas fontes de opressão (Alcoff, 1991-1992; Kompridis, 2007).
Assim sendo, sustentamos que os discursos e os juízos dos agentes de advocacy,
por mais bem intencionados e informados que sejam, não podem substituir a
reflexão e o julgamento dos próprios sujeitos oprimidos sobre o que pode ser
entendido como injustiça num dado contexto. Os agentes de advocacy podem e
devem empreender medidas que visam a empoderar sujeitos oprimidos e a
deslanchar processos para a auto-reflexão, mas cabe a esses sujeitos fazer
sentido sobre injustiça, contestar e corrigir discursos abstratos daqueles que falam
em seu nome. Idealmente, este deve ser um processo de esclarecimento mútuo e
de ajustes interpretativos recíprocos sobre o que deve ser considerado e
reconhecido. Como discutiremos nas seções seguintes, os discursos públicos de
reconhecimento moral – expressos por agentes de advocacy e dispostos nos
media – não parecem suficientes, no caso sob investigação, para modificar “de
imediato” rotas interpretativas de formas de reconhecimento ideológico,
culturalmente arraigadas, assumidas pelas mulheres participantes de nossos
grupos de discussão.
3. Associações voluntárias e advocacia: esfera lega l e ações políticas
Os programas de combate ao TID no Brasil são frutos do trabalho de um conjunto
de atores cívicos, entidades de escopo transnacional, nacional e local que
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estabelecem variadas parcerias com o poder público. Trata-se de um caso típico
de advocacy – em que indivíduos, grupos e associações fazem demandas em
nome de interesses e valores que devem ser resguardados, com objetivo de
proteger “sujeitos vulneráveis” (Goodin, 1985, ver também Rubenstein, 2007),
como um dever de prevenir danos, particularmente na forma de uma
“responsabilidade especial”.
Desde 1990, entidades internacionais como Organização Internacional do
Trabalho (OIT) em parceria com associações nacionais desenvolvem uma série de
iniciativas para combater o TID, com ações para pressionar representantes
políticos a estabelecer políticas públicas para erradicar o trabalho infantil. Vistas
sob uma perspectiva formal, estas ações podem ser consideradas relativamente
bem sucedidas no Brasil. Na esfera legal, diversas convenções internacionais e
normas nacionais proíbem o trabalho infantil. É proibido o trabalho de meninos e
meninas com menos de 16 anos, salvo a partir dos 14 em atividades de ensino-
aprendizagem. Desde 2008, o TID foi considerado pelo governo brasileiro uma
das piores formas de trabalho infantil e, portanto, só deveria ser realizado a partir
dos 18 anos de idade.
Na esfera de políticas públicas, o governo federal desenvolveu programas para o
combate ao trabalho infantil, tais como o Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil (PETI)2 em 1996 e o Bolsa-escola em 2001 – este último integrado ao PETI
em 2005, prevendo a transferência de renda a famílias pobres e extremamente
pobres. No Pará, a organização social República de Emaús, por meio do Cedeca-
Emaús, foi a responsável pelo Programa de Enfrentamento ao Trabalho Infantil
Doméstico (Petid) em parceira com Unicef, OIT, Save The Children e entidades
locais, realizado entre 2000 e 2010.
No âmbito da esfera civil, essas organizações implementaram programas com o
objetivo de desenvolver capacidades críticas dos adolescentes e de pais que
encaminham seus filhos para o trabalho infantil e de capacitá-los a buscar fontes
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alternativas de renda. Paralelamente, organizaram ações – tais como congressos
e campanhas publicitárias – para incentivar o debate sobre o TID na esfera pública
e para promover a mobilização social. No contexto desses projetos, interessa-nos
ressaltar a importância dada aos media de massa, a fim de chamar a atenção
pública e de motivar a crítica social de maneira mais ampla. Foram realizados
encontros de capacitação de jornalistas para subsidiar a abordagem do tema de
modo mais apropriado, bem como campanhas e ações regionais, como o Petid, de
Belém.
4. Metodologia
Para desenvolver nossa pesquisa, estruturamos nossas investigações em dois
eixos:
(1) análise de cobertura do tema do TID nos principais jornais impressos
paraenses - O Liberal e Diário do Pará no período de 1º de janeiro de 2000 a 31
de dezembro de 2004. Por ser um estudo de abrangência local, não incluímos
veículos de inserção nacional. No total, foram analisadas 55 matérias jornalísticas
(32 em O Liberal e 23 no Diário do Pará). Cada texto jornalístico foi examinado a
partir de uma ficha específica, com o propósito de identificar: a) os speakers
(fontes) nas matérias; b) os enquadramentos e os discursos mobilizados sobre o
trabalho infantil doméstico por cada speaker; c) as referências expressas ao Petid.
(2) realização de grupos focais com mulheres que foram trabalhadoras doméstica
na infância – sendo três grupos organizados, nos meses de julho e agosto de
2006, em bairros pobres da Belém (chamados Bengui, Tapanã e Telégrafo),
cidade onde o Petid foi realizado. Cada grupo um teve cinco participantes, o que
pode ser considerado, segundo Morgan (1997) e Barbour e Kitzinger (2001), um
número adequado para permitir o aprofundamento dos pontos de vista dos
participantes. Escolhemos a técnica do grupo focal porque ela permite que os
participantes interajam e conversem sobre determinadas questões de modo
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relativamente espontâneo e de maneira mais ampla que nas sondagens opinião.
Além disso, esse tipo de coleta de dados tem se mostrado bastante rico em
estudos sobre debate público nos media (Duschesne; Haegel, 2010; Maia, no
prelo; Marques, 2007). No primeiro momento, o moderador incentivou uma
discussão informal entre as participantes do grupo seguindo um roteiro semi-
estruturado, sendo que, apenas num segundo momento, os discursos que
circulam nos media foram a elas apresentados. Nesse procedimento, seguimos
parcialmente o estudo de Gamson (1992), de modo que discursos dos media –
selecionados de modo a contemplar a pluralidade de enquadramentos e de vozes
disponíveis no material empírico – serviram como “recursos conversacionais”. O
objetivo central foi o de motivar a reflexão compartilhada e o engajamento
dialógico entre as participantes do grupo.
4. Media e Advocacy: a expressão pública de novas f ormas de
reconhecimento
Em trabalhos anteriores (Cal, 2007; Cal e Maia, no prelo), examinamos a
cobertura de jornais paraenses sobre o trabalho infantil doméstico, no período
estipulado. Constatamos que os principais falantes nos media são atores cívicos
ligados ao combate do TID: Cedeca-Emaús/Movimento República de Emaús,
agentes do Programa PETID e seus parceiros representaram 58% de todas as
falas no período selecionado. No conjunto de matérias jornalísticas analisadas,
houve pouca diversidade de fontes, sendo que os agentes do governo raramente
foram ouvidos sobre este tema, o qual requer uma clara política pública.
A saliência de vozes de atores cívicos no caso sob análise é particularmente
surpreendente, uma vez que o sistema de jornalismo na América Latina
estabelece fortes conexões com o Estado e o mercado, mas fracas articulações
com a sociedade civil (Waisbord, 2009, p.106; Maia, 2008). Geralmente, as
notícias sobre temas de desenvolvimento social, como pobreza, fome, saúde e
educação são abordadas sob o ponto de vista de opiniões oficiais (ANDI, 2003).
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A preponderância de vozes de atores cívicos e de empreendedores morais no
caso em tela pode ser explicada, primeiro, pela credibilidade social que o
Movimento República de Emaús e o Cedeca-Emaús gozam na sociedade local,
por causa de seu tradicional engajamento em diversos programas destinados a
assegurar os direitos da criança. Em segundo lugar, o Cedeca-Emaús contou com
dois jornalistas em sua equipe, com o objetivo de formular e empreender
estratégias de comunicação do Programa, incluindo o estabelecimento de
relações com diferentes tipos de media.
Interessa-nos destacar que discursos tradicionais, que legitimam o TID, existentes
na sociedade local não ganharam visibilidade nos media, no período investigado.
A tematização pública sobre o trabalho infantil doméstico se organizou em torno
de dois enquadramentos principais, conforme apresentado na Tabela 1: a
invisibilidade do TID e as injustiças do TID.
A invisibilidade do TID relaciona-se, primeiro, com a noção de que a
responsabilidade pelo trabalho doméstico e o cuidado de crianças são
majoritariamente atribuídos às mulheres, como se fossem uma realização da
“natureza interior” feminina. Há muito a crítica feminista contesta tal naturalismo, o
qual impede que o trabalho doméstico seja “valorizado” como uma “conquista” ou
com uma “contribuição produtiva” – para utilizar os termos de Honneth (2003b,
p.148) –, passível, assim, de justificar qualquer forma de estima. Em segundo
lugar, a invisibilidade do TID relaciona-se com noções culturais do passado
colonial e escravocrata no Brasil, momento em que as tarefas domésticas cabiam
às classes subalternas (Hoyos, 2001; Lamarão, Menezes e Ferreira, 2000). Ainda
hoje, tais tarefas são frequentemente caracterizadas como “próprias” das
mulheres pobres, porque, apesar de exigir muito esforço, dependem de pouca
qualificação (Carneiro e Rocha, 2009, p.125).
Nos jornais paraenses examinados, o enquadramento sobre a invisibilidade do
trabalho infantil doméstico encampa discursos que apontam este tipo de trabalho:
a) por ser uma prática com profundas raízes culturais, é visto como “natural” e não
como um “problema” a ser enfrentado e solucionado; b) por realizar-se na
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intimidade dos lares, um ambiente supostamente acolhedor, não chama a atenção
pública, diferentemente do trabalho infantil em ambientes hostis como no campo
ou em carvoarias,; c) por ser desempenhado prioritariamente por meninas, a quem
“naturalmente” cabe as tarefas domésticas, segundo concepções hegemônicas da
divisão de trabalho baseada em gênero, não provoca questionamentos.
Tabela 1- Enquadramentos dos media sobre o TID
Enquadramentos e exemplos dos discursos apresentado s nos media
Enquadramento da invisibilidade do TID
� “A idéia é sensibilizar a sociedade para o problema e encontrar
alternativas para combater a exploração do trabalho infantil doméstico. O coordenador do projeto da OIT, Renato Mendes, lembra que o trabalho de menores em residências não desperta a mesma indignação que a atividade infantil em lixões e carvoarias, ou as notícias de exploração sexual”. - Trabalho doméstico também faz vítimas no Pará. O Liberal, 20/03/2002.
� “O ‘determinismo’ cultural do gênero feminino está na raiz do
problema do TID, mas, na sociedade atual, outros fatores são determinantes, como a exclusão econômico-social. Os especialistas apontam que o problema alimenta o ciclo da pobreza, porque crianças empregadas domésticas serão empregadas domésticas adultas?”. - Um crime ‘maquiado’ rouba direitos da infância, O Liberal, Página de Responsabilidade Social, 12/02/2004.
Enquadramento da injustiça do trabalho infantil doméstico
� “’’Explorar o trabalho infantil doméstico é desrespeitar os direitos
fundamentais de uma criança, de brincar e de estudar’, a declaração é do assessor de comunicação do Cedeca, Luciano Miranda”. - Cedeca lança campanha de conscientização e denúncia, O Liberal, Página de Responsabilidade Social, 18/03/2004.
“O trabalhador infantil é constituído de meninos e meninas forçados a trabalhar num regime de escravidão como empregado doméstico geralmente em casas particulares de família, sujeitos a toda sorte de humilhação e de exploração de mão-de-obra gratuita, além de terem sonegados seus direitos à saúde e à educação. Nesse cenário, as crianças e os adolescentes são submetidos a longas jornadas de trabalho, o que lhes tira a oportunidade de freqüentar uma escola, não têm qualquer tipo de assistência médica e pouco menos de lazer. E raros são os que recebem algum pagamento ou benefícios. As meninas, infelizmente, ainda estão sujeitas a abusos sexuais, o que lhes causa danos psicológicos e físicos duradouros”. Nódoa social, editorial, O Liberal, 18/06/2004
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O segundo enquadramento identificado nos jornais examinados refere-se às
injustiças do trabalho infantil doméstico, o qual encampa discursos que definem
esta situação como exploração, dominação/opressão e marginalização. Primeiro,
o TID é uma exploração porque as crianças e as adolescentes não recebem
qualquer remuneração ou são sub-remuneradas, cabendo, aos seus familiares,
muitas vezes, gerenciarem o dinheiro. Trata-se de uma exploração “desregulada”,
já que os termos e as condições do trabalho – horas de trabalho, tarefas e
remuneração – não são obviamente prescritas em um contrato. Segundo, o TID é
uma dominação ou opressão por que as meninas ficam expostas aos potenciais
riscos do trabalho e a abusos, a castigos ou a violências, incluindo abuso sexual,
impetrados pelos patrões. De início, as crianças e as adolescentes não têm
autoridade e nem qualquer poder de negociação e, assim, ficam inteiramente à
mercê da família. Terceiro, o TID é uma exclusão ou marginalização devido à
violação dos direitos da criança, incluindo o direito à infância, à educação, à
cidadania e à dignidade. Esse tipo de trabalho compromete o desenvolvimento de
habilidades e capacidades de crianças e adolescentes necessários para a futura
inserção no mercado de trabalho, por meio do trabalho qualificado, o que, então,
reproduz o ciclo de pobreza.
Em razão dos diferentes tipos de injustiça presentes no TID, vários falantes nas
matérias analisadas – incluindo um editorial – associam essa prática à
“escravidão”. Também estudos sobre o TID em diversos países qualificam essa
prática como escravidão, pelo fato de as meninas trabalharem em uma casa
privada sem remuneração, sem horas estabelecidas para a jornada de trabalho e,
em alguns casos, virtualmente aprisionadas e tratadas como propriedade do
empregador (Black, 2002). Sob a ótica do reconhecimento, Heikki Ikäheimo (2009,
p.40) refere-se à condição do escravo como “sem liberdade, sem amor e sem
gratidão”:
A escravidão envolve todos esses três danos: (1) as atividades que preenchem a vida de um escravo não são livres; (2) seu bem-estar tem idealmente apenas um valor instrumental para o mestre; e (3) porque o trabalho não é livre, ele não conta como uma cooperação genuína e não produz a satisfação e a realização que a pessoa que trabalha livremente e altruisticamente pode receber na forma de gratidão dos outros” (Ikäheimo, 2009, p.40)
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Ainda que as medidas para combater o TID fiquem muito aquém das expectativas
legítimas de reconhecimento de crianças e adolescentes envolvidos nessa prática,
não podemos supor que os “acordos implícitos” que a sustentam estejam
espraiados por toda a sociedade, como se “quase todos assumissem que quase
todos concordam” (Bader, 2007, p). Os media locais publicizaram para uma ampla
audiência discursos que invocam os princípios de reconhecimento, os quais, nos
termos de Honneth, “nos compele a ampliar nosso horizonte valorativo de
percepção e, assim, intensificar ou ampliar o reconhecimento” (Honneth, 2007,
p.341). As opiniões e os juízos que circularam nos media ofereceram
enquadramentos contra-hegemônicos sobre o TID e uma linguagem que
possibilitam as mulheres participantes em nossos grupos de discussão se
distanciarem eventualmente da hierarquia de valores predominantes. Como
discutiremos na próxima seção, a conversão da experiência privada dos danos em
uma consciência de injustiça não é um processo facilmente alcançável,
principalmente se as práticas recorrentes se organizam em torno do que podemos
se chamar de “um reconhecimento ideológico”.
5. TID: Promessas de auto-realização e oportunidade s para melhorar de vida
Diante dos discursos presentes nos media, muitas mulheres ex-trabalhadoras
domésticas, que também enviam suas filhas para o trabalho em casas de família,
mostram-se convencidas de que as promessas de uma vida melhor – acesso à
educação, nova vivência sócio-cultural e, eventualmente, alguma recompensa
financeira – constituem uma oportunidade para o desenvolvimento pessoal e para
a auto-realização. Diante de privações múltiplas e severas em seus lares de
origem, o TID é visto pelas mulheres que trabalharam na infância como uma forma
de escapar da pobreza ou de evitar “cair na prostituição”. Em suas falas
transparece, contudo, que as promessas de auto-realização, através do TID, não
são genuinamente concretizadas. As mulheres relatam que foram e que ainda
continuam sendo exploradas (“somo muito explorado, principalmente se
[ganhamos] salário doméstico”). Apontam que sofriam insegurança emocional e
eram mal tratadas e desrespeitadas (“não me acostumava nas casas, com meus
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doze anos, mas depois eu fui começando me acostumar”). E, por causa da própria
desvalorização do trabalho doméstico, elas não sentem valorizadas como seres
humanos e estimadas por suas habilidades (“se não tem estudo avançado, nós
não somo nada”; “tem pessoas lá que se é doméstico eles passam e não falam”).
Como explicar o fato de essas mulheres, apesar de nomearem maus-tratos e
identificarem experiências danosas em suas vidas, não articularem uma
percepção mais clara da injustiça dessa situação? Os três requerimentos
estabelecidos por Honneth para caracterizar um reconhecimento ideológico
parecem ser preenchidos no caso em tela. Primeiro, o TID não causa danos à
auto-imagem das meninas e permite que elas se relacionem consigo mesmas de
maneira afirmativa em um novo “lar”. A sequência de falas demonstra que as ex-
trabalhadoras, também no papel de mães, esperam mais para as vidas das
crianças e adolescentes que o simples trabalho doméstico. Joana diz que se sente
feliz pelo fato de sua filha estar com a “madrinha”. O uso de termos como
“madrinha” e “tia”, ao invés de empregadores, sugere ambiguamente que as
crianças estariam sob a guarda de pessoas que se importam com o bem-estar
pessoal delas (Lamarão, 2008; Cal, 2007).
Amanda: Eu acho que é melhor, por causa que lá [no interior] os pais não tem como dá, fazer as coisa pros filho, não tem como dá a educação melhor pros filho, eu acho que é melhor isso. Joana: Como a Vera falou, eu agradeço por minha filha ter vindo pra cá com a madrinha dela, ela tinha treze anos, não quis mais estudar lá. Até hoje eu me sinto feliz de minha filha estar aqui (...) com a madrinha dela, graças a Deus (Grupo Tapanã)
Segundo, as vantagens do TID são percebidas, pelo menos parcialmente, como
positivas e críveis. As mulheres valorizam o TID, sobretudo, como uma
oportunidade para estudar, a fim de “ser alguém na vida”. É preciso que se tenha
em mente que no Brasil, diferentemente de países andinos, da América Central ou
do Haiti, há a expectativa de que os empregadores enviem as crianças e os
adolescentes à escola (Black, 2002).
Deusa: Eu trouxe as minhas sobrinhas, 3 sobrinhas do Marajó pra trabalharem aqui, mas graças a Deus, elas trabalhavam, estudavam, né, se adiantaram bastante no estudo, pegaram patroas boa mesmo, eu tava ali também em cima com elas né, mas tinha meninas que vinham do interior e a patroa não deixava
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estudar, até hoje já são senhora que não sabe nem escrever o nome, porque as patroa nunca botaram, não deixaram elas estudarem. Carla: Eu concordo com ela, tem uns patrão que é bom, tem uns patrão que é ruim, ainda quer fazer maldade com as adolescente, como a gente ver por ai na televisão, o caso da menina. [As participantes referem-se ao caso de Marielma que tinha 11 anos e foi assassinada pelos patrões. O caso ganhou repercussão nos jornais em 2005] (Grupo Telégrafo, grifos nossos)
As participantes do grupo focal demonstram consciência de apenas sob certas
condições – isto é, dependendo do esforço pessoal e da sorte para “pegar uma
patroa boa”, as meninas “podem ir evoluindo”. Diferentemente de outros países,
como Bangladesh, Índia ou Nepal, em que as meninas ficam a serviço dos patrões
a qualquer hora do dia ou da noite e raramente deixam a casa (Black, 2002, p. 7),
no Brasil, a expectativa é a de que o TID não se restrinja ao trabalho, mas ofereça
oportunidades para o desenvolvimento pessoal e a socialização nas classes
médias e superiores. As participantes de nossos grupos focais identificam esta
prática como recompensadora, apesar de terem consciência dos riscos
envolvidos, porque esperam que as meninas estudem, freqüentem ambientes
“diferentes” e “participem de coisas melhores”.
Vera: eu acho que é uma oportunidade. Até porquê tem local que nós queremos freqüentar e não temos condição, mas [tem] acompanhado os patrões. Ele leva as menina. As menina vão se evoluindo, se interessando, por olhar aquelas pessoas que se dizem diferente e por participar de coisas melhores. [Isso] nos dá influencia sim; pra quem se interessa dá um bom futuro, eu acho muito bom. Amanda: eu também acho que dá futuro, é muito bom (...). A gente quer ir numa praia que a gente nunca foi, não tem condição de ir naquele lugar e aí eles já leva a gente. (...) é a única oportunidade que eu tenho. (Grupo Tapanã).
Conforme discutem E. P. Thompson (1987, 1988, 1989) e Bourdieu (1977; 1984)
as relações de classe se reproduzem não apenas a partir de relações econômicas
definidas de modo estrito, mas, de modo mais amplo, por meio de formas culturais
e simbólicas que asseguram a distribuição desigual de distinção e privilégio. Neste
sentido, é possível dizer que as participantes do grupo focal expressam a
expectativa de que o TID ofereça oportunidades para que as meninas também
superem a própria “cultura de classe” e adquiram o que Bourdieu chama de capital
cultural - a posse de certos bens intelectuais ou educacionais – motivações,
disposições, gostos, preferências que reproduzem e confirmam poder e status nas
relações diárias. Assim, o engajamento no TID tende a ser percebido, não como
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uma ausência de alternativa devido à destituição extrema, mas, ao invés disso,
como uma “escolha”, i.e “uma oportunidade” para que as meninas possam ampliar
seus horizontes, ganhar algum nível de independência na vida, eventualmente
perseguir uma carreira e ascender socialmente.
O terceiro requisito apontado por Honneth para que o reconhecimento ideológico
seja eficaz – o contraste de uma determinada situação vista como positiva em
relação ao passado ou à uma condição anterior – encontra-se também presente
no entendimento das mulheres sobre o TID. As participantes do grupo de
discussão compartilham a visão de que o TID dá um “bom futuro”, se comparado
com as perspectivas de desenvolvimento pessoal em seus lares de origem. Além
de ser uma alternativa ao ócio e uma fonte de renda, o TID proporciona melhores
condições que a vida no campo e que o trabalho na lavoura; permite que elas se
“preparem para o melhor” – acesso ao estudo, aquisição de capital cultural e
vivência no “mundo” do patrão. O “sonho” de “ser alguém na vida”, seria
inimaginável na condição de privação extrema.
Vera: Eu acho assim, pra quem não tem condições, não temos tanto o que fazer no caso (...) o pessoal do interior, vai pra ir pra lavoura, que nem um futuro tem ainda. A casa de família, se a pessoa souber e quiser, futuramente pode se formar de um doutor, pode se formar de um bom advogado (...), enfim de uma coisa que seje bom. Porque a casa de família paga o seu salário, tem a sua alimentação, vive o seu dia-a-dia, participa de coisas que os patrões também participa, tudo isso nós estamos se preparando pro melhor. Letícia: Eu também prefiro trabalhar em casa de família de que ficar só em casa sentada, fazendo nada e não ganhando o meu salário, (...) o salário ajuda a gente comprar roupa, a gente sai pra passear e sem esse dinheiro a gente não tem como fazer várias coisa né. Amanda: Eu gosto da vida, (...) porque a minha patroa, (...) fala assim, “Ah Amanda, tu tá trabalhando aqui”, eles me tratam como se eu fosse da família, “ah, tu trabalha aqui, mas eu quero que tu seja uma outra pessoa, quero que tu estude, termine teu estudo, pra ser alguém na vida”, e por ela eu tava, eu terminando meu estudo, por mim mesmo é que não dá assim pra mim estudar, porque as vezes eu chego do trabalho cansada pra ir pro colégio, aí as vezes eu tentava, mas por ela eu tava estudando (Grupo Tapanã).
As mulheres participantes do grupo de discussão mobilizam um sistema de
crenças que não podem ser tomadas como meramente irracionais, mas, como
Honneth acentua, contém razões com “poder de convencimento” (2007, p.340)
para que possam ser aplicadas às suas vidas, ao de suas filhas e aos outros que
compartilham da mesma condição. O processo de reconhecimento ideológico
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parece complexo porque as mulheres, nas idealizações que constroem sobre si,
concebem o TID como uma nova possibilidade de aumentar a própria autonomia e
a inclusão na sociedade. Como discutiremos na próxima seção, as expectativas
relativas às promessas associadas ao TID são perpassadas por contradições
derivadas do entrecruzamento das esferas do amor e da estima social – o que
torna mais difícil o entendimento das relações de poder em questão e dos
constrangimentos simbólicos da ordem social.
6. O TID e reconhecimento ideológico: contradições e incoerências das
promessas não realizadas
O TID por estar associado à ideia cultural de “pegar a criança para criar”, “tomar
conta dela para a mãe” e proporcionar-lhe “um lar” – incluindo o provimento de
necessidades materiais, cuidados (cuidados psicológicos, descanso e lazer) e
recursos para o auto-desenvolvimento (estudo e outras oportunidades) –
“mascara” a exploração de meninas e adolescentes e a exploração do trabalho
(Lamarão, Menezes e Ferreira, 2000; Lamarão, 2008). Se, por um lado, as
mulheres identificam certas metas – ancoradas principalmente nos princípios do
amor e da estima – para aumentar o próprio valor, por outro lado, as chances para
que elas possam ser bem sucedidas nas diferentes esferas são estruturadas pela
existente distribuição desigual (e profundamente injusta) de recursos emocionais,
econômicos e sociais.
O TID é frequentemente confundido com as obrigações para cuidar e atender as
necessidades do outro. Não se trata aqui propriamente do trabalho de cuidado
(“care work”) exercido por mães ou cuidadores, como discutem Rösseler (2007) e
Young (2007). Na situação do TID, têm-se a expectativa de que as meninas
trabalhadoras devam satisfazer as necessidades da família à qual ela se encontra
agregada, em troca de alimentação, cuidados médicos, moradia, acesso ao
estudo etc. Essa “troca” não implica uma simetria, no sentido normativo do
princípio do amor, o qual leva potencialmente os parceiros a perceberem as
necessidades uns dos outros e, assim, tornarem-se mais sensíveis e capazes
para cuidar do bem estar do outro. Para as patroas, a força de trabalho das
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meninas e das adolescentes, muitas vezes, tem apenas um “valor instrumental”,
do qual fala Ikäheimo (2009), já que a realização das tarefas domésticas rotineiras
e sem valor social libera as próprias patroas para atividades mais úteis ou mais
prazerosas. Ademais, atribuem-se às meninas e adolescentes trabalhadoras as
responsabilidades para cuidar de crianças e bebês, tarefas para as quais elas não
têm capacidade ou treinamento necessário. Ao invés de receberem retribuição na
forma de gratidão como discute Young (2007), as trabalhadoras domésticas,
principalmente quando são crianças e adolescentes, tornam-se frequentemente
alvo de agressão e humilhação. Em vários grupos, as ex-trabalhadoras infantis
domésticas relatam experiências de falta de respeito, descritas como
insuportáveis: “os filhos deles [dos patrões] gostam de tá gritando”; “um [menino]
uma vez deu um tapão assim na minha cara”.; “eu levei um prato de comida na
cara e, aí eu saí de lá para ele não ficar me maltratando”.
Além de realizar os afazeres domésticos para atender as necessidades mais
imediatas da família, têm-se a expectativa que as trabalhadoras infantis, em
alguns casos, satisfaçam os desejos sexuais dos homens da casa. A
instrumentalização refere-se aqui não apenas aos corpos das meninas e
adolescentes destinados ao trabalho, mas, também, aos seus corpos como
propriedades do patrão – quem, então, “pode fazer o que quiser” com eles:
Maria : já trabalhei na casa de um pessoal lá que, (...) tava tendo um aniversário lá não sei de quem, eu tava sentada lá na cadeira que agente não podia dormi ainda só quando acabasse o aniversario, aí o filho da mulher veio querer pegar no meu peito, ai eu fiz o maior esparro e fui contar pra ela, aí ela pegou e disse: “Que qui tem? Ele é homem e é filho da tua patroa e teu patrão também pode fazer que quiser contigo”. Moderadora: A patroa disse isso? Maria : Foi, ai eu peguei minha roupas tudinho e escondi lá no jardim, aí quando eles estavam bem lá distraídos, vim me embora que eu até errei o caminho de casa fiquei na casa de uma mulher pra li já, aí no outro dia de manhã que eu vim sabe aonde era a casa que eu estava. Moderadora : Quantos anos você tinha? Maria : Devia ter uns 16 anos. (grupo telégrafo)
Em várias situações, as mulheres participantes dos grupos de discussão se
mostram indignadas, sobretudo, com os “maus patrões” e os “maus-tratos” ou
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“abusos” por eles cometidos. Contudo, elas recorrentemente fazem a distinção
entre os “bons” e os “maus” patrões (“tem uns que trata a gente bem, tem uns que
já não trata”). Elas identificam os danos provocados pelo TID como casos
particulares, contingentes, decorrentes de falta de sorte ou da ausência de
empenho pessoal. De tal modo, elas assumem o ônus do esforço e os riscos para
o trabalho na casa de terceiros (e persistência diante de adversidades) para nutrir
o “sonho de ser alguém” – ter chances de ingressar no mercado consumidor e a
dignidade de viver do próprio trabalho, como apontado anteriormente.
Contudo, as promessas do reconhecimento na esfera da estima também não são
genuína e satisfatoriamente realizadas. Nas condições de trabalho organizado
pelo mercado, espera-se que o emprego remunerado proporcione auto-
determinação na busca de objetivos externos e ofereça possibilidades para
satisfazer as necessidades de alguém, incluindo a possibilidade de conquistar
propriedade e segurança econômica. Ademais, espera-se que o trabalho produtivo
ofereça auto-estima, no sentido de incluir a pessoa num contexto de cooperação
social num sistema de necessidades sociais (Rössler, 2007, p.158). As
trabalhadoras domésticas, ainda que tenham conquistado uma série de direitos
nas últimas décadas no Brasil – como a regulamentação das condições de
trabalho e melhorias no nível salarial – continuam sem lugar na “boa sociedade” e
sofrem a dor moral da desvalorização social (Carneiro e Rocha, 2009, p.125). Nos
termos de Honneth, o trabalho doméstico não é valorizado como uma contribuição
produtiva para a sociedade de modo a justificar a estima social.
Em nosso caso, parece óbvio que as formas de reconhecimento ideológico
bloqueiam a capacidade das mulheres criticarem os arranjos sociais e as
hierarquias valorativas que legitimam a própria subordinação e desvalorização. As
mulheres participantes de nossos grupos focais, ao mobilizarem o horizonte de
valores próprio do ideário liberal individualista, valorizam o esforço e a disciplina
individual (“se a pessoa souber e quiser”) para melhorar suas condições de vida.
Conformam-se, assim, aos papeis delas esperados para a realização das funções
sociais. A distribuição desigual de recursos materiais e a hierarquia valorativa
social – condições que estão muito além do próprio controle – impedem que elas
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obtenham sucesso e sejam valorizadas por suas contribuições à sociedade
(Souza, 2009).
Menos óbvia, contudo, é a complexidade das expectativas de reconhecimento que
essas mulheres perseguem. Elas relatam que desde crianças (“meninazinhas”)
trabalham e assumem obrigações na casa dos próprios pais ou em casas de
terceiros, com a motivação de criar ou de conquistar: alguma independência
financeira, mínima que seja para “ter as suas coisinhas”; autonomia para “seguir o
próprio pensamento”; “capacidade” (recursos financeiros e emocionais) para
cuidar das necessidades e do bem estar dos filhos, ainda que elas mesmas
tenham sido privadas de cuidados na infância.
Joana: (...) lá no interior não é como aqui (...). A gente luta pelos interior, lutando, trabalhando (...) na roça. Aqui não, a pessoa tem como trabalhar e ganhar o seu dinheiro. Deusa: (...) eu casei tinha 12 anos, nunca dependi de opinião de homem, sempre dependi de mim, de meu pensamento, de meu conselho meu, e é por isso que eu trabalho na casa de família, trabalho porque eu tenho uma meninazinha assim. [Eu falo pra ela] (...) olha Ranna, eu tô trabalhando, eu trabalho direto na casa de família, porque o que minha mãe e o meu pai não puderam me dá, eu quero te dá. Eu não quero que tu fique aí na rua, sabe, correndo por aí pela rua, suja. Não, eu quero te dá o que eu não tive...
Os tipos de luta expressos pelas participantes em nossos grupos focais não
resultam em uma mudança na distribuição existente dos recursos materiais e
simbólicos na sociedade. O ciclo de pobreza não é quebrado e as fontes da
injustiça permanecem, em grande parte, inalteradas. As mulheres não constroem
uma semântica coletiva de que vivenciam uma situação comum de injustiça e nem
se mobilizam para transformação social. Através da sequência de fala das
mulheres, é possível perceber que elas transitam entre a percepção do dano, a
resignação e o esforço para articular suas demandas e expectativas. Ainda que
não questionem os arranjos sociais e as pré-condições sócio-econômicas e morais
que moldam seu lugar na sociedade de classes, as mulheres “lutam”
constantemente para “buscar o melhor”, dotar suas vidas de sentido rumo à auto-
realização, mantendo-se do lado da moralidade e da dignidade. Devemos,
portanto, indagar como as diferentes expectativas de reconhecimento expressas
por estas mulheres podem vir a se articular umas com as outras, a fim de que elas
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possam imaginar alternativas mais amplas para elas próprias e desafiar as
promessas do reconhecimento ideológico. A atenção a esse potencial parece
importante para que não tornemos essas mulheres ainda mais subjugadas e
vitimizadas do que já são.
7. Conclusão
Apesar de os agentes dos media serem frequentemente vistos como atores que
reforçam as hierarquias de prestígio e as estruturas de poder na sociedade
contemporânea, em nosso estudo eles atuaram como agentes de advocacy para
criticar situações de injustiça – juntamente com ONGs e movimentos sociais de
escopo local, nacional e transnacional que representam e agem em nome de
crianças e adolescentes. Num contexto em que há regulamentações legais e
políticas públicas, ainda que deficitárias e muito aquém das expectativas legítimas
de reconhecimento de crianças e adolescentes, os jornalistas escolheram
sistematicamente fontes ligadas às organizações cívicas empenhadas na
erradicação do trabalho infantil doméstico. Eles assumiram seus enquadramentos
preferenciais para contestar a invisibilidade do TID e dar a ver as diversas formas
de injustiças envolvidas. Nesse sentido, nosso estudo aponta a importância de se
examinar detidamente as situações especificas em que os agentes dos media
operam, a fim de não tomar as hierarquias valorativas da sociedade mais
predominantes que de fato são.
Contudo, “a realidade social” na qual as mulheres participantes de nossos grupos
de discussão se movem parece permanecer organizada por consensos implícitos
culturalmente arraigados. É esse conhecimento de fundo que parece coordenar
suas práticas sociais cotidianas e fornecer os elementos para que elas possam
produzir sentido das próprias experiências vividas. Se os discursos que circulam
nos media forneceram os enquadramentos e as linguagens para que as mulheres
ex-trabalhadoras domésticas pudessem eventualmente se distanciar das visões
tradicionais hegemônicas e das hierarquias de prestígio predominantes (Bader,
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2007), elas não parecem vislumbrar como as coisas “poderiam” ser diferentes em
suas vidas.
Nosso caso mostra que o desenvolvimento do sentido de injustiça por sujeitos
explorados ou marginalizados não deve ser compreendido como uma dinâmica
cognitiva linear, um processo intelectual e afetivo completo de uma vez por todas.
Não se trata de dizer que as mulheres não percebessem os riscos e os danos
envolvidos no TID e nem que elas passivamente internalizassem a subordinação.
Ao invés disso, a percepção avaliativa que as mulheres fazem da própria situação
funda-se, como buscamos evidenciar, principalmente nos princípios do amor e da
estima (achievement) para buscar auto-realização e maior inclusão na sociedade.
As mulheres participantes em nossos grupos focais, ao explicarem suas escolhas
e ações relativas ao TID, transitam entre a percepção fragmentada de relações
que parecem legítimas (a boa patroa, que cuida das crianças) e a contestação das
relações ilegítimas de maus-tratos e exploração (a má patroa, que maltrata as
crianças). Contudo, o que elas identificam como condição necessária para a
conquista de autonomia e estima, constitui, em grande medida, obstáculos para
que desafiem as condições estruturais das assimetrias de poder e as hierarquias
de prestígio que geram a subordinação e a desvalorização pessoal.
Buscamos demonstrar que as participantes dos grupos focais adotam premissas
de uma forma ideológica de reconhecimento para explicar suas escolhas e ações.
Não parece correto, contudo, assumir que a auto-imagem, a auto-percepção e o
auto-valor expressos estejam irremediavelmente danificados, a ponto obstruir a
capacidade mínima necessária para que elas possam produzir julgamento crítico e
exercer algum tipo de agência. Podemos supor, no pior dos casos, que a força
das interpretações hegemônicas incessantemente impedirá que os sentidos
latentes do dano sejam articulados como injustiça, o que, então, contribui para a
manutenção e a reprodução das assimetrias de poder e as profundas
desigualdades na sociedade brasileira. No melhor dos casos, podemos supor que
as mulheres que vivem tal situação poderão vir a articular criticamente suas
experiências particulares como coletivas e desenvolverem a própria percepção e
definição de injustiça. Essa possibilidade não parece ser mera alquimia, em
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particular, quando há condições sociais – tais como leis, políticas públicas,
práticas de advocacy por associações voluntárias e, como no caso examinado, a
expressão pública de discursos críticos nos media,– para enquadrar os
sofrimentos e os danos por elas vivenciados como injustiça.
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