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Filipa Maria de Paula-Coelho Caldeira Canavarro de Morais Gouvêa de Almeida
RECIPROCIDADE E TROCA MERCANTIL:
CONTRIBUTO PARA UMA ANÁLISE INSTITUCIONAL DO MICROCRÉDITO
Tese no âmbito do Doutoramento em Governação, Conhecimento e Inovação orientada pelo
Professor Doutor José Reis e apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Janeiro de 2019
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Filipa Maria de Paula-Coelho Caldeira Canavarro de Morais Gouvêa de Almeida
Reciprocidade e Troca Mercantil: Contributo para uma análise institucional do Microcrédito
Tese de Doutoramento em Governação, Conhecimento e Inovação
apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
para a obtenção de grau de Doutor
Orientador: Prof. Doutor José Reis
Coimbra, Janeiro/2019
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RESUMO
O microcrédito na sua versão informal tem uma história de séculos, sobretudo nos países menos
desenvolvidos onde, até hoje, constitui uma das poucas oportunidades de as populações mais pobres
poderem aumentar os seus rendimentos. Foi sobretudo na sua versão formal popularizada por M. Yunus
a partir dos anos 70 do séc. XX que o microcrédito ganhou maior visibilidade porque as instituições não-
lucrativas de microfinança conseguiram encontrar maneiras inovadoras de abordar o problema da
pobreza e exclusão. Entre elas está a concessão de microcrédito com vista ao desenvolvimento de
iniciativas económicas sustentáveis que permitissem ao mutuário criar o seu próprio emprego e melhorar
as condições de vida do seu agregado. Os sucessos desta abordagem da pobreza e marginalização social
por estas instituições de microfinança passam, por um lado, por terem como vocação social procurar
melhorar a situação económica das populações mais vulneráveis e, por outro, por o fazer através da
inclusão destas na economia. Procurando viabilizar iniciativas empresariais, as instituições que concedem
microcrédito desenvolveram práticas de acompanhamento e apoio aos mutuários e aos seus negócios,
para além do seu financiamento. Isso traduziu-se em elevadas taxas de cumprimento, o que constitui um
indicador da sustentabilidade destas iniciativas. A verificação de que é possível emprestar aos pobres de
forma sustentável - graças aos mecanismos que as instituições de microcrédito desenvolveram para
selecionar candidaturas, definir modalidades de reembolso, incentivar o seu cumprimento e a boa
aplicação dos montantes concedidos – chamou a atenção dos Estados para uma forma alternativa de lidar
com os problemas de pobreza, desemprego e marginalização social numa perspectiva mais sustentável e
menos assistencialista. Chamou também a atenção do sector privado, que outrora tinha um reduzido
interesse em conceder pequenos montantes de crédito a clientes pobres sem garantias face aos elevados
custos de transação e riscos associados, e que agora se apercebem que este é um nicho de mercado, não
só potencialmente rentável como de uma enorme dimensão, dados os milhões de indivíduos que ainda
hoje, a nível mundial, não têm acesso a serviços financeiros formais.
Mas o microcrédito, enquanto fenómeno social e objeto de estudo, está emerso em controvérsia.
No que respeita ao papel do Estado, muitos consideram que afetar fundos públicos para o microcrédito é
subsidiar iniciativas que, pela sua reduzida dimensão, terão poucas oportunidades de chegar a um nível
de eficiência que lhes permita vingar num mercado competitivo, desviando os apoios públicos de outras
iniciativas de desenvolvimento social ou do apoio às PME que também enfrentam problemas de
financiamento. O sector privado, por sua vez, está cada vez mais presente no sector na forma de
instituições de microfinança de estatuto lucrativo ou linhas/programas de microcrédito de bancos ou
instituições financeiras comerciais convencionais. Mas discute-se a crescente especulação, concorrência,
e assunção de outros riscos com maior probabilidade rendibilidade, favorecendo os interesses dos
investidores em detrimento dos clientes pobres. E isso foi alvo de grandes críticas, sobretudo aquando
das crises de sobre-endividamento e das consequências económicas e sociais daí resultantes. Ao mesmo
tempo, aproveitou-se para questionar a vocação original do microcrédito de libertar os mais
desfavorecidos de situações e dependência, pobreza e exploração.
É nosso entendimento que o microcrédito tem virtudes e defeitos e que não existe uma resposta
única à questão: qual o efetivo impacto do microcrédito? E também dificilmente haverá um modelo único
de microcrédito virtuoso, aplicável a todos contextos geográficos, sociais, legais, económicos ou
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institucionais. O que retemos da análise do microcrédito é que, como outros fenómenos que facilmente
se classificam de natureza económica ou financeira, o microcrédito é antes de tudo um fenómeno social,
afetado nas diversas modalidades, nas suas forças e fraquezas e nos seus impactos pelas características
do contexto social mais amplo em que se insere.
A Economia clássica, mas também a teoria social, centraram excessivamente a análise da sociedade
a partir do mercado desde a industrialização e o surgimento da economia capitalista do século XIX. Como
sustenta Polanyi (2012 [1944]), em vez de se perceber as relações económicas no seu contexto social,
tomou-se o mercado como principal mecanismo de regulação da vida social.
Em nosso entender existem hoje, como no passado, formas de organização económica a que as
categorias de agente racional ou maximização do lucro não se aplicam. Há uma pluralidade de formas de
atividade económica que escapam às categorias (neo)clássicas, e não se resumem ao que muitos definem
como economias comunitárias de tipo pré-industrial, o que em si é já uma definição redutora das mesmas.
Assim, fomos procurar, não só em perspetivas económicas não-ortodoxas, especialmente as correntes
institucionalistas, como na nova Sociologia Económica, mas também na Antropologia, na Biologia e na
Psicologia evolutivas, sustentação para pensar os fenómenos económicos de uma forma mais pluralista e
abrangente, na diversidade e complexidade que eles se manifestam na prática. A contextualização social
deste fenómeno levou-nos a considerar os contributos do Institucionalismo Económico, da Sociologia
Económica, da Antropologia e das perspetivas evolucionistas que nos esclarecem, não só como explicar
comportamentos de reciprocidade e cooperação na esfera económica, como a diversidade de
representações e práticas que constituem as diferentes formas de organização da economia enquanto
esfera da vida social, bem como a forma como as instituições evoluem. Estas perspetivas orientaram o
enquadramento teórico deste trabalho e permitiram a discussão dos dados aqui analisados respeitantes
ao desempenho, sustentabilidade e impacto das diferentes tipologias institucionais envolvidas no
microcrédito.Tal levou-nos a considerar questionáveis os pressupostos da visão mainstream do que é o
homem enquanto agente económico e de como a vida económica se organiza confinada ao mercado;
consideramos que, como sustentam vários autores, não existem razões para tomar o homem apenas
como sujeito racional, calculista e maximizador do seu benefício no mercado ou que este último tenha a
capacidade de se autorregular e tender sempre para o equilíbrio. As crises financeiras que se tornam
económicas e sociais e atingem dimensões globais revelam as limitações do mecanismo de mercado na
afetação de recursos escassos à satisfação das necessidades dos indivíduos. E existe base teórica para
sustentar que a vida económica não é necessariamente um contexto de competição feroz por recursos
escassos e que o homem tem uma propensão para a partilha e cooperação. Essa capacidade de cooperar
este por trás tanto do sucesso evolutivo de coletividades humanas como de não-humanas, pelo que
rejeitamos a ideia de um homo-economicus calculista e hedonista e caracterizamos formas de organização
económica em que noções como ação solidária, bem comum, confiança, altruísmo, coresponsabilidade e
reciprocidade são aspetos sociais, institucionais e, portanto, normativos a que as relações económicas
estão submetidas.
Não encontramos estes laços de altruísmo e reciprocidade apenas nas comunidades rurais
tradicionais, mas em outros tipos de iniciativa económica local em que se destaca a capacidade da
sociedade civil ultrapassar falhas de Estado e de mercado e se organizar, não face ideologias políticas ou
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imperativos de rendibilidade, mas em vista dos interesses dos membros do que chamamos comunidade,
no sentido relacional do termo.
É aqui que julgamos residir a virtude do microcrédito formal original. Vêmo-lo enquanto iniciativas
que, antes de tudo, têm uma missão social de beneficiar os mutuários abrangidos e contribuir para o
desenvolvimento local. Os protagonistas são instituições do terceiro sector ou inseridas em intervenções
mais holísticas visando a melhoria da situação global das populações mais desfavorecidas, atendendo às
várias dimensões da pobreza e exclusão social. Assume-se que há um conjunto de diferentes necessidades
a que importa dar resposta em cada contexto específico. As iniciativas de microcrédito sustentáveis no
plano económico e social terão que ser eficientes no plano financeiro, para atrair o investimento do sector
privado que lhes permita aumentar a escala das suas operações para responder ao propósito social de
servir aqueles que ainda não têm acesso a crédito e se encontram em situações de precaridade ou
exploração; poderão também necessitar do apoio e supervisão por parte de instituições políticas
nacionais e internacionais que lhes reconheçam o mérito de encontrar uma forma viável de combater a
pobreza. Porém, a nosso ver, para além de Estado e mercado, e de relações de redistribuição ou troca
mercantil, deveremos vê-las como relações de reciprocidade ou iniciativas de cariz solidário e natureza
local, em que a qualidade das relações que se estabelece entre membros de grupos de empréstimo e
entre mutuários e intermediários ou instituições de microfinança pode fazer a diferença entre o sucesso
e o fracasso das iniciativas de microcrédito. Por último, procurar perceber todos os fatores que
contribuem para o sucesso ou fracasso do microcrédito para credores e mutuários leva-nos a não
esquecer que existe uma variedade de atores que intervêm no microcrédito, com missões institucionais
e, consequentemente, atuações distintas que explicam a variedade dos resultados da concessão de
microcrédito.
Não existirá, senão na sua definição formal, um microcrédito, mas várias formas de microcrédito
em contextos políticos, demográficos, económicos e geográficos distintos. Porque é do carácter das
relações sociais que se estabelecem, de representações sociais e aspetos normativos que condicionam a
ação no plano do microcrédito que se trata, entendemos que perceber as diferentes lógicas que animam
os autores envolvidos - sobretudo olhando ao papel de Estado, mercado e terceiro sector, e as
consequências das suas ações - implica a nosso ver, não só o enquadramento social do microcrédito, mas
a sua análise institucional que nos propusemos realizar neste trabalho. É em função disto que o problema
de investigação que nos acompanhará ao longo desta tese se pode formular do seguinte modo: em que
medida o contexto institucional explica a variedade de lógicas e formas de atuação dos agentes
intervenientes no microcrédito, o seu desempenho e os impactos daí resultantes para os mutuários.
Palavras-chave:
Microcrédito; institucionalismo; incrustação social da atividade económica; reciprocidade; Estado,
mercado e terceiro sector
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ABSTRACT
Microcredit in its informal version has a history of centuries, especially in less developed countries
where, to date, it is one of the few opportunities for the poor to increase their incomes. It was mainly in
its formal version popularized by M. Yunus from the 1970s onwards. XX that microcredit gained greater
visibility as microfinance institutions were able to find innovative ways to address the problem of poverty
and exclusion. Among them is the granting of microcredit intending to develop sustainable economic
initiatives that allow the borrower to create his own job and improve the living conditions of his
household. The successes of this approach to poverty and social marginalization by these microfinance
institutions are, on the one hand, having as social vocation to seek to improve the economic situation of
the most vulnerable populations and, on the other, to do so by including them in the economy. In order
to make business initiatives viable, microfinance institutions have developed follow-up and support
practices for borrowers and their businesses, in addition to their financing. That has resulted in high
compliance rates, which is an indicator of the sustainability of these initiatives. The fact that the poor are
able to make a profit for themselves - thanks to the mechanisms that microcredit institutions have
developed for the selection of applications, to set up reimbursement modalities, to encourage compliance
with them and to ensure the proper application of the amounts granted - has drawn the attention of
States for an alternative way of dealing with the problems of poverty, unemployment and social
marginalization in a more sustainable and less assistentialist perspective. It also drew the attention of the
private sector, which once had little interest in granting small amounts of credit to poor clients without
guarantees given the high transaction costs and associated risks, and now realize that this is a niche
market not only potentially profitable but of enormous size given the millions of individuals who still today
do not have access to formal financial services worldwide.
But microcredit, as a social phenomenon and object of study, is emerging in controversy.
Concerning the role of the State, many consider that to allocate public funds to microcredit is to subsidize
initiatives that, because of their small size, will have little opportunity to reach a level of efficiency that
will avenge them in a competitive market, diverting public support from other social development
initiatives or support to SMEs which also face funding problems. The private sector, in its turn, is
increasingly present in the sector in the form of profitable microfinance institutions or microcredit lines /
programs of conventional commercial banks or financial institutions. But it is discussed the growing
speculation, competition and the option for other risk taking with greater probability of increased
profitability, favoring the interests of investors to the detriment of poor customers. And that was
criticized, especially in the wake of the crises of over-indebtedness and the resulting economic and social
consequences. At the same time advantage was taken to challenge the original vocation of microcredit to
free disadvantaged situations and dependence, poverty and exploitation.
It is our understanding that microcredit has virtues and defects and that there is no single answer
to the question: what is the real impact of microcredit? And there is hardly a single model of virtuous
microcredit, applicable to all geographic, social, legal, economic or institutional contexts. What we retain
from the analysis of microcredit is that, like other phenomena that are easily classified as economic or
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financial, microcredit is first and foremost a social phenomenon, affected in its various forms, its strengths
and weaknesses and its impacts by the characteristics of the social context in which it is inserted.
Classical Economics, but also social theory, have over-centered the analysis of society in the market
since the industrialization and the emergence of the capitalist economy of the nineteenth century. As
Polanyi (2012 [1944]) maintains, instead of perceiving economic relations in their social context, the
market was taken as the main mechanism of regulation of social life.
In our view there are today, as in the past, forms of economic organization to which the categories
of rational agent or maximization of profit do not apply. There is a plurality of forms of economic activity
that escape the (neo) classic categories and that are not limited to what many define as pre-industrial
community economies, which in itself is already a reductive definition of them. Thus, we have sought not
only in non-orthodox economic perspectives, especially institutionalist currents, but also in the new
Economic Sociology, evolutionary Anthropology, Biology and Psychology, support for thinking about
economic phenomena in a more pluralistic and comprehensive way, in diversity complexity they manifest
in practice. This has led us to consider the presuppositions of the mainstream view of man as an economic
agent and of how economic life is organized confined to the market; we consider that, as several authors
maintain, there are no reasons to take man only as a rational, calculating and maximizing subject of his
benefit in the market or that the latter has the ability to regulate and always tend to balance. Financial
crises that become economic and social and reach global dimensions reveal the limitations of the market
mechanism in the allocation of scarce resources to the satisfaction of the needs of individuals. And there
is a theoretical basis for sustaining that economic life is not necessarily a context of fierce competition for
scarce resources and that man has a penchant for sharing and cooperation. This ability to cooperate is
behind the evolutionary success both of human as non-human collectivities, so we reject the idea of a
calculating and hedonistic homo-economicus and characterize forms of economic organization in which
notions such as solidarity, common good, trust, altruism, co-responsibility and reciprocity are social,
institutional, and therefore normative aspects to which economic relations are subject.
We do not find these ties of altruism and reciprocity only in traditional rural communities, but in
other types of local economic initiative in which civil society's ability to overcome state and market failures
and organize, not against political ideologies or imperatives of profitability, but in view of the interests of
the members of what we call community, in the relational sense of the term.
It is here that we believe that the virtue of the original formal microcredit resides. We regard it as
initiatives that, first and foremost, have as social mission to benef the borrowers involved and contribut
to local development. The protagonists are third sector institutions or institutions within more holistic
interventions aimed at improving the overall situation of the most disadvantaged populations, taking into
account the various dimensions of poverty and social exclusion. It is assumed that there is a set of different
needs that need to be addressed in each specific context. Socially and economically sustainable
microcredit initiatives must be financially efficient to attract private sector investment that allows them
to scale up their operations to meet the social purpose of serving those who do not yet have access to
and are in precarious or exploitative situations; they may also need the support and supervision of
national and international political institutions that recognize the merits of finding a viable way to fight
poverty. However, in our view, in addition to state and market, and relations of redistribution or
mercantile exchange, we should see them as relations of reciprocity or initiatives of solidarity and local
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nature, in which the quality of relations established between members lending groups and between
borrowers and intermediaries or microfinance institutions can make a difference between the success
and failure of microcredit initiatives. Finally, seeking to understand all the factors that contribute to the
success or failure of microcredit for creditors and borrowers leads us not to forget that there are a variety
of actors involved in microcredit, with institutional missions and, consequently, distinct actions that
explain the variety of the results of the microcredit concession.
There will be, in its formal definition, only microcredit, but various forms of microcredit in distinct
political, demographic, economic and geographical contexts. Because it is the character of the social
relations that are established, of social representations and normative aspects that condition the action
in the microcredit that is treated, we understand that to perceive the different logics that animate the
authors involved - mainly looking at the role of State, market and third sector, and the consequences of
its actions - implies in our view, not only the social framework of microcredit, but its institutional analysis
that we propose to carry out in this work. It is because of this that the research problem that accompanies
us throughout this thesis can be formulated as follows: to what extent the institutional context explains
the variety of logics and forms of action of the agents involved in microcredit, their performance and the
resulting impact to borrowers.
Key words:
Microcredit; institutionalism; social embeddedness of economic activity; reciprocity; State, market
and third sector.
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ÍNDICE
Capítulo 1
O microcrédito como fenómeno social
1. Introdução ………………………………………………………………………………………………………………………………..…………. 1
2. Relevância, finalidade e desenvolvimento do Microcrédito………………………………………………..…………………. 2
3. O Microcrédito, a microfinança e os problemas que suscitam………………………………………………………………. 7
4. Acesso e impactos do Microcrédito……………………………………………………………………………………………………. 14
5. O microcrédito na Europa……………………………………………………………………………………………………................. 20
6. Empréstimos de grupo e mecanismos alternativos de Microcrédito………………………………..………............ 24
7. Relevância e as limitações do Microcrédito na atualidade………………………………………………………………..… 34
Conclusão………………………………………………………………………………..…………………………………………………………… 42
Capítulo 2
O microcrédito enquanto objeto de estudo
1. Introdução: a controvérsia atual suscitada pelo microcrédito………………………………………………..…………… 45
2. Estado, mercado, terceiro setor e a sustentabilidade do Microcrédito…………………………………………..……. 48
3. Sustentabilidade, taxas de juro, sobre-endividamento e liberalização do microcrédito………………………. 53
4. Sobre-endividamento e crises da microfinança: análise da evolução recente do microcrédito…............. 58
5. Discussão crítica: privatização versus papel social do microcrédito……………………………………..…….………... 63
6. Questões metodológicas na avaliação dos resultados do Microcrédito.…………………………………………….… 70
7. Pobreza, exclusão e o significado social do Microcrédito na atualidade…………………………………………..…... 74
8. Limitações dos estudos de impacto: importância da contextualização social na avaliação dos resultados do Microcrédito…………………………….………………………………………………………………………………......... 83
Conclusão…………………………………………………………………………………………………………………………………………….. 93
Capítulo 3
Teoria social, desenvolvimento e instituições: Contributos da análise sociológica e económica para a contextualização do microcrédito
1. Introdução: Sociedade, Economia e Instituições……………………………………………………………………..…….…….. 97
2. Contextualização social da organização económica: diversidade de atores e articulações institucionais…………………………………………………….……………………………. 99
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3. Teoria social e desenvolvimento…………………………………………………………………………………………..……………. 110
4. Comunidade, Sociedade e a dimensão relacional e institucional do Microcrédito................................. 118
5. Microcrédito, comunidade local e modelos de desenvolvimento……………………….……………………………… 123
6. Instituições e pluralidade de formas de organização económica………………………………………………………... 133
7. Contributo do Institucionalismo para a compreensão das formas organizacionais, do lugar do mercado e das relações sociedade/mercado……………………………………………………………………….………………… 148
8. Instituições, governação da economia e custos de transação………………………….…………………………………. 163
Conclusão…………………………………………………………………………………………………………………………………………... 169
Capítulo 4 A noção de Homo-economicus, o altruísmo recíproco e as relações económicas
1.Introdução: cooperação, reciprocidade e limitações da economia ortodoxa para a análise do microcrédito………………………………………………………………………….......…………………………………………………....…. 171
2. Homo-economicus e homo-reciprocans…………………………………………………………………………………………….. 175
3. A explicação biológica do comportamento social: seleção natural e altruísmo………………………………….… 183
4. O conceito de altruísmo recíproco……………………………………………………………………………………………………… 188
5. O Dilema do Prisioneiro, as Estratégias Evolutivamente Estáveis e a explicação da cooperação………… 192
6. As perspetivas biológicas e sociais da cooperação e sua aplicabilidade à compreensão das
relações económicas…………………………………………………………………………………………………………………………… 204
7. Seleção natural e evolução cultural……………………………………………………………………………………………….…… 211
8. Aprendizagem social, instituições e altruísmo na punição………………………………………………………………….. 222
Conclusão…………………………………………………………………………………………………………………………………………… 229
Capítulo 5 Teorias sociais e Institucionalismo: Enquadramento teórico para a análise do Microcrédito
1. Introdução: Importância do enquadramento social e institucional da realidade económica……………... 235
2. O conceito de «embeddedness» e a contextualização social da organização económica……………………. 244
3. Reciprocidade, troca e redistribuição de Polanyi e Triângulo de Evers……………………………………………….. 253
4. Análise institucional, particularidades e articulações do terceiro sector…………………………………………..… 267
5. Dinâmica social e variação institucional……………………………………………………………………………………………… 281
6. Diálogo entre a Nova Sociologia Económica e o Institucionalismo Económico…………………………………... 288
Conclusão…………………………………………………………………………………………………………………………………………… 310
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Capítulo 6
Microcrédito e Instituições
1. Introdução: Estado, mercado e terceiro sector no Microcrédito………………………………………………………… 313
2. Méritos, problemas e desafios atuais das instituições de microcrédito……………………………….……………… 397
3. A pertinência de uma abordagem institucionalista do microcrédito…………………………………………………… 423
4. Da transformação da sociedade pela economia de mercado ao enquadramento social dos fenómenos económicos……………………………………………………………………………………………………………………… 425
5. Evolução, configurações institucionais, tipologias de microcrédito e seus resultados………………………... 443
6. Diversidade de organização económica e necessidade de uma análise institucionalista para a compreensão da evolução do microcrédito………………………………………………………………………………………... 449
7. O microcrédito como forma de governação institucional e a variação contextual……………………………... 460
Conclusão…………………………………………………………………………………………………………………………………………… 467
Capítulo 7
Evolução institucional do Microcrédito no mundo: Análise Empírica
1. Introdução: Microcrédito, reciprocidade, concorrência mercantil e impacto social………………………….… 471
2. Metodologia…………………………………………………………………………………………....……………..………………………… 474
3. Análise de Conteúdo de 14 estudos do Microcrédito e da discussão dos seus resultados…………………… 477
4. Proposta para a conceptualização dos condicionantes dos resultados de diferentes tipologias
de instituição/modalidades de microcrédito……..…….……………………………………………………………………………. 490
5. Comparação de tipologias de Instituições de Microcrédito……………………………………………….…………………505
6. Discussão de Resultados……………………………………………………………………………………………….………………….. 530
7. Conclusões………………………………………………………………………………………………………………………………...……… 535
Considerações Finais: A relação Estado-sociedade-mercado e o que a análise institucional do microcrédito nos ensina……….. 539 Referências……………………………………………………………………………………………………………………………………….…. 543
Anexo 1 …………………………………………………………………………………………………………………………………………..…… 569
Anexo 2 …………………………………………………………………………………………………………………………………………....… 570
Anexo 3 ……………………………………………………………………………………………………………………………………………….. 613
Anexo 4 ……………………………………………………………………………………………………………………………………………….. 615
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ÍNDICE DE FIGURAS
Fig. 1 - Percentagens de agregados com acesso a serviços bancários, aferido pela posse de uma conta de depósitos numa instituição financeira formal, em 2009……………….………………………………………………..….. 3
Fig. 2 - Distribuição geográfica de contas bancárias em 2014…………………………………………………………………….... 4 Fig. 3 – Fontes de novos empréstimos formais e informais por regiões geográficas…………………………………..… 4 Fig. 4 – Distribuição geográfica do acesso a crédito formal em 2014……………………………………………………………. 5 Fig. 5 – Cobertura geográfica por fornecedores de serviços financeiros………………………………………………………. 6 Fig. 6 - Cobertura pelas MFI………………………………………………………………………………………………………..……………….. 6 Fig. 7 - Retrato do sector de acordo com o Microfinance Barometer: Portfólio de empréstimos e número de mutuários em 2014……………………………………………………………………………………………………………….................. 14 Fig.8 - Percentagem de adultos com conta bancária e contas móveis (mobile accounts) em 2014……………... 18 Fig. 9 - Canais de distribuição alternativos da microfinança………………………………………………………………………... 18 Fig. 10 - Penetração do mobile banking por país de acordo com o Mobile Banking Overview 2015………….... 19 Fig. 11 – Impacto da migração para canais móveis nos custos de transação dos bancos…………………………….. 19 Fig. 12 - Agências de bancos comerciais por 100000 adultos em 2015……………………………………………………..… 23 Fig. 13 – Fontes de financiamento por tipo/estatuto legal de FSP……………………………………………….……………. 64 Fig.14 - Razões para a candidatura dos indivíduos analisados a um empréstimo (Spandana)…………………..… 67 Fig. 15 - Teoria da Mudança do Microcrédito……………………………………………………………………………………………… 75 Fig. 16 – Teoria da Mudança dos Modelos de Graduação segundo Devereux e Wheeler (2015)………….……… 77 Fig. 17 – Impacto do microcrédito nos 6 RCTs conduzidos por Banerjee, Karlan e Zinman (2015)………………. 90 Fig. 18 - Variação do Impacto do Microcrédito em seis países segundo Sandefur (2015)……………………………. 91 Fig. - 19 Relação entre duas ordens de valores sociais e duas formas de dívida económica……………………... 116 Fig. 20 – Atributos dos principais modos de Governação segundo Williamson…………………………………………. 168 Fig. 21 - Dilema do Prisioneiro………………………………………………………………………………………………………………….. 173 Fig. 22 – Evolução dos atos de Altruísmo, Egoísmo e Spite por Kin Selection, segundo Wilson………………….. 187 Fig. 23 – Matriz do Dilema do prisioneiro de A. W. Tucker 1983 [1950]………………………………………………….… 192
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Fig. 24 - Ilustração da Evolutionary Game Theory no Jogo Falcão-Pombo……………………………………………….… 197 Fig. 25 - Classificação de comportamentos sociais (Ruhela e Sinha, 2010)…………………………………………….….. 217 Fig. 26 - Componentes do Triângulo de segurança e bem-estar sociais de Evers (1991)……………………………. 266 Fig. 27 - Relação entre o Triângulo de Evers e os Princípios de regulação de Polanyi segundo Almeida……. 271 Fig. 28 - Conceptualização do «lugar do terceiro sector» na Governação de Almeida (2010)…………………….. 271 Fig. 29 – Estrutura da economia plural de Roustang et al. (1997) in Evers e Laville (2004)………………………... 273 Fig. 30 - O welfare mix de Pestoff (1992) na adaptação de Evers e Laville ……………………………………………….. 274 Fig. 31 - A “civil and solidarity-based economy”………………………………………………………………………………………... 275 Fig. 32 - Os papéis das OTS segundo Neumayr e Meyer (2010)…………………………………………………………………. 321 Fig.33 - Tipologia de Fornecedores de Microfinança quanto ao grau de formalização……………………………… 329 Fig.34 – Classificação das MFIs segundo o seu grau de formalização…………………………………………………………. 331 Fig.35 - Vantagens e desvantagens dos principais tipos institucionais………………………………………………………. 335 Fig.36- Formalização, alcance, rendibilidade sustentabilidade das MFIs…………………………………………………... 337 Fig. 37 - Continuum de fornecedores de crédito – GDRC………………………………………………………………………….. 339 Fig. 38 - Características principais dos fornecedores de serviços financeiros institucionais segundo Ledgerwood (2013)………………………………………………………………………………………………….……………………………… 354 Fig. 39 - Tipologia dos principais tipos de Instituições que oferecem Microcrédito……………………………………. 368 Fig. 40 – Fontes de financiamento das MFIs……………………………………………………………………………………………… 370 Fig. 41 -Relação entre a missão e o estatuto de propriedade das MFI segundo Lapenu Pierret………………… 373 Fig. 42 - Relação entre forma institutional e governação segundo Lapenu e Pierret………………………………….. 374 Fig. 43 – Rácios de Desempenho das MFIs em 2013…………………………………………………………………………………. 389 Fig. 44 – Princípios e indicadores de Proteção do Cliente da Smart Campaign…………………………………………. 398 Fig. 45 - Social Performance Management ………………………………………………………………………………………………. 400 Fig. 46 - Disparidade entre objetivos declarados e registados pelas MFIs…………………………………………………..404 Fig. 47 – Abordagem ampla do sobre-endividamento de Morvant-Roux et al. (2014)………………………………. 419 Fig. 48 - Síntese dos estudos empíricos apresentada por Schicks e Rosenberg (2011)………………………………. 422
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Fig. 49 - The economic Iceberg (de Ken Byrne)………………………………………………………………………………………….. 427 Fig.50 - A «diverse economy framework» de Gibson-Graham…………………………………………………………………… 427 Fig. 51 - «A Diverse Economy» segundo Gibson-Graham…………………………………………………………………….….. 428 Fig. 52 – Esquema de análise da diversidade da realidade económica segundo Newbury………………………… 434 Fig. 53 – Distribuição mundial da origem de novos empréstimos formais, em 2014……………………………….… 440 Fig. 54 – Quadro síntese de resultados da análise estatística (testes de diferenças)…………………......…….…. 529
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ÍNDICE DE GRÁFICOS
Gráfico 1 – Mutuários por Tipo de Instituição (MFI)……………………………………………………………..………………… 511
Gráfico 2 – % mutuários do sexo feminino por Tipo de Instituição (MFI)……………………………………..…………. 511
Gráfico 3 – Empréstimos pendentes por Tipo de Instituição (MFI)………………………………………………………..… 512
Gráfico 4 – Portfólio de empréstimos por Tipo de Instituição (MFI)………………………………………………………. 513
Gráfico 5 – Relação portfólio de empréstimos/empréstimos pendentes por Tipo de Instituição (MFI)…… 514
Gráfico 6 – Saldo médio de empréstimo e custo por mutuário segundo o tipo de Instituição (MFI).......... 514
Gráfico 7 – Número de depositantes, depósitos e saldo médio por tipo de Instituição (MFI)………………… 515
Gráfico 8 – Número de dependências, funcionários e empréstimos por tipo de Instituição (MFI)…………… 516
Gráfico 9 – Rendibilidade por tipo de Instituição (MFI).……………………………………………………………………..….. 516
Gráfico 10 – Custo por mutuário e mutuários por funcionários segundo o tipo de Instituição (MFI)……... 517
Gráfico 11 – Portfólio de crédito em risco por tipo de Instituição (MFI)…………………………………………………. 518
Gráfico 12 – Portfólio e cobertura de risco por tipo de Instituição (MFI)…………………………………………………. 518
Gráfico 13 – Evolução do estatuto das Instituições de Microfinança…………………………………………..…………. 520
Gráfico 14 – Evolução da Taxa de Retenção de Clientes…………………………………………………………………………. 521
Gráfico 15 – Evolução do alcance (outreach) pelas MFIs………………………………………………………………………… 522
Gráfico 16 – Evolução da sustentabilidade das MFIs..……………………………………………………………………………. 523
Gráfico 17 – Sustentabilidade Operacional por Estatuto institucional……………………………………………………. 524
Gráfico 18 – Alcance por Estatuto institucional………………………………………………………………………….………….. 525
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Capítulo 1
O microcrédito como fenómeno social
1. Introdução
O objeto de estudo do presente trabalho é o microcrédito nas diferentes formas que assume e nos
resultados que lhes estão associados. O problema de investigação que aqui se coloca é saber em que medida
o agente institucional que gere o microcrédito é, pelos seus distintos princípios e práticas, essencial para
explicar os resultados alcançados e a posição em que ficam os mutuários. Consideramos que a compreensão
do microcrédito conduz necessariamente à análise do papel de entidades do setor público, privado e terceiro
setor que são analisadas na parte empírica desta investigação. Procurará chegar-se a uma conclusão sobre o
significado das modalidades de microcrédito que garantem uma relação forte com os contextos de vida dos
mutuários e que privilegiam a dimensão institucional desse relacionamento, distinguindo-se assim das que
têm uma atitude puramente mercantil. A hipótese de partida é que o microcrédito assente nestas condições
é mais robusto. Esta comparação inspira-se na distinção proposta por Polanyi (1944) entre redistribuição,
troca mercantil e reciprocidade, que se opõe a uma análise de fenómenos económicos centrada apenas no
mecanismo do mercado, do indivíduo como maximizador racional, egoísta e calculista e às categorias da
Economia clássica em geral. A análise dos aspetos relacionais, normativos ou culturais do microcrédito é,
igualmente, necessária para a sua compreensão
No presente capítulo descreve-se o que é o microcrédito, as suas modalidades, a sua relevância, as suas
potencialidades e os seus problemas.
Microcrédito é a designação para um conjunto de práticas diversas que têm em comum facultar o acesso
a pequenos montantes de crédito a indivíduos com baixos rendimentos, sem possibilidade de apresentar
garantias e, consequentemente, sem acesso a serviços financeiros convencionais, com o propósito original
de financiar uma iniciativa empresarial suscetível de melhorar as suas condições de vida. Levadas a cabo hoje
por um conjunto de diversas entidades dos sectores público, privado e do terceiro sector, em diversos
contextos um pouco por todo o mundo, tais práticas, na sua versão formal,1 têm a sua origem nos anos 70
no Bangladesh, onde surgiram com o propósito de responder às necessidades das populações mais pobres.
Estas populações, sujeitas a privações múltiplas como a falta de acesso a um emprego e a um rendimento
regular, a serviços de financeiros não exploradores ou a apoios sociais do Estado para responder às
necessidades económicas, de saúde, habitação ou educação dos agregados familiares, teriam no acesso a
crédito a possibilidade de investir numa atividade económica e uma oportunidade de sair de uma situação
de pobreza. As instituições de microcrédito são também diversas nos seus objetivos, designadamente missão
social ou propósito lucrativo, sendo financiadas tanto por doações, como por subsídios e programas de
governos nacionais e instituições políticas internacionais e por investidores privados.
O propósito original do microcrédito formal era essencialmente social. Pretendia-se, através do acesso
ao crédito, oferecer uma oportunidade de inclusão às populações em situações de pobreza e exclusão pelo
que, como refere Yunus (2002), reconhecido como seu fundador, o microcrédito tem menos a ver com capital
1 Na sua versão informal, como os grupos de crédito de aldeias, o microcrédito é muito mais antigo.
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financeiro de que com capital humano. Relativamente a outras estratégias de desenvolvimento
socioeconómico, o microcrédito representa uma abordagem bottom-up que reconhece as capacidades
empreendedoras dos mais desfavorecidos e procura combater a pobreza removendo as barreiras à sua
iniciativa económica.
2. Relevância, finalidade e desenvolvimento do Microcrédito
O microcrédito é originário de países menos desenvolvidos, inicialmente na Ásia e depois na África e na
América Latina. Corresponde a situações em que é difícil ou impossível aceder a serviços financeiros de
qualidade, que não sejam usurários ou sujeitem o mutuário a grande pressão social. Na sua versão formal
estendeu-se, depois, com maior ou menor intensidade, ao resto do mundo, mantendo como propósito
político o combate à exclusão financeira e, deste modo, o apoio à iniciativa económica, à promoção do
emprego e à redução da pobreza no mundo. No entanto, o microcrédito informal tem vários séculos de
história designadamente nos países menos desenvolvidos. A ideia de oferecer crédito barato aos mais pobres
está já presente na proibição de juros pelo Islão e na instituição das lojas de penhores, assim como na
tentativa da Igreja Católica de combater a usura, considerada um pecado. Pode considerar-se que no
ocidente a origem do microcrédito remonta ao século XV. Contudo, é apenas no século XIX que surgem na
Europa as instituições formais de crédito, sendo que o microcrédito tem ainda raízes no crédito agrícola e,
em particular, no movimento das cooperativas financeiras especialmente vocacionadas para os pobres, que
da Europa se espalhou para vários países (Helms, 2006; Banerjee, 2013).
Calcula-se que atualmente o microcrédito esteja presente em cerca de 150 países e, segundo a
Microcredit Summit de 2015, que existam no mundo mais de 3000 instituições de microfinança (ou Micro
Finance Institutions - MFIs - na designação mais habitual2) que em 2013 reportaram ter atingido um número
record de mais de 200 milhões de clientes (State of the Campaign Report, 2015). Na sua maioria, estes
clientes são indivíduos que se podem considerar como os mais pobres do planeta, estimando-se que o
microcrédito concedido ultrapasse os 60 000 milhões de dólares e tenha possibilitado aumentar o bem-estar
de aproximadamente 500 milhões de pessoas (Microcredit Summit; MIX Market). A Mixmarket oferece uma
ideia da evolução do microcrédito no mundo: se em 2004 a plataforma registou um total de 30 milhões de
beneficiários de empréstimos no mundo servidos por 675 instituições, passada uma década registou dados
de 1064 instituições que forneceram crédito a mais de 112 milhões de clientes. A relevância deste fenómeno
não se prende apenas com os montantes de crédito concedido ou o número de micronegócios financiados,
mas com as consequências que estes podem ter em populações em situação de maior vulnerabilidade
económica, nomeadamente, sem capacidade de obter um crédito em condições normais que lhes permita
criar o seu próprio negócio e posto de trabalho. Esta relevância torna-se ainda mais evidente atendendo ao
facto de persistir no planeta um grande número de pessoas sem possibilidade de recorrer a serviços
financeiros de qualidade que, apesar da disparidade dos dados sugeridos pelas diferentes instituições, deverá
2 A sigla MFI designa usualmente Microfinance Intitutions, mas por vezes também Microfinance Intermediaries, entendedidos como as entidades que fazem a ponte entre as instituições financeiras ou investidores privados e os mutuários do microcrédito, no terreno.
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rondar os dois mil milhões e meio de pessoas (Chaia et al., 2009; Demirguc-Kunt et al./WB 2015, Global
Findex, 2014).
Reconhecendo-se, hoje, as virtudes e os problemas da microfinança, o debate centra-se sobretudo na
questão de como ultrapassar as barreiras que impedem que uma importante parte da população mundial -
cerca de 50% - tenha acesso a serviços bancários como crédito, que é simultaneamente a população mais
desfavorecida e com mais dificuldades em aceder a outras fontes de rendimento (Chaia et al., 2009). Com o
microcrédito formal procura-se que esse acesso seja possível em condições socialmente justas e que
favoreçam uma melhoria da sua situação económica de forma sustentável. No entanto, no momento
presente o microcrédito e outros serviços financeiros ainda estão longe de garantir acesso a todos ou de
conseguir a satisfação das necessidades específicas de cada grupo de clientes.
Fig. 1 - Percentagens de agregados com acesso a serviços bancários, aferido pela posse de uma conta de depósitos numa instituição financeira formal, em 2009:
(Fonte: CGAP, 2010)
O propósito de aumentar a cobertura, eficiência e escala das suas operações, bem como a diversificação
de serviços que respondam àquelas necessidades estão na base das críticas atuais às instituições de
microfinança. Tais críticas estão respeitam à crescente privatização da microfinança como solução para o
crescimento do sector. A busca de investidores privados encontra-se associada a uma deriva relativamente
aos propósitos e práticas que caracterizaram o microcrédito original, ou seja, substituir a melhoria da
situação económica dos mutuários pelo aumento da rendibilidade dos investimentos privados.
No que respeita especificamente à necessidade de obter crédito, existem muitas diferenças entre os
países mais ricos e os países mais pobres na possibilidade de aceder a instituições financeiras formais, como
se pode observar na figura que seguidamente se apresenta.
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Fig. 2 - Distribuição geográfica de contas bancárias em 2014:
(Fonte: WB/ Global Findex, 2014)
Fig. 3 – Fontes de novos empréstimos formais e informais por regiões geográficas:
(Fonte: Demirguc-Kunt et al., 2015)
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No momento atual, embora muito mais presente na Ásia e também na África e América Latina onde se
concentra a grande maioria dos indivíduos que não utilizam serviços financeiros formais e representam quase
50% da população adulta mundial (Chaia et al., 2009), o microcrédito chegou aos países ditos desenvolvidos
(que representam menos de 1% dos beneficiários no Mundo). De acordo com a Microcredit Summit
Campaign, em 2011, os países da América do Norte e de toda a Europa ocidental não ultrapassavam 0,01%
do número de empréstimos e nestes países quase 90% da população tem acesso a bons serviços financeiros,
destinando-se, portanto, aos pequenos segmentos mais vulneráveis dessa população (WB/Global Findex
2014):
Fig. 4 – Distribuição geográfica do acesso a crédito formal em 2014:
(Fonte: Global Findex/Banco Mundial http://datatopics.worldbank.org/financialnclusion)
Desenvolvido a partir da Ásia desde os anos 70 do século XX, o microcrédito formal foi popularizado pelo
sucesso do Projeto Banco Grameen fundado em 1976 por Muhammad Yunus, pioneiro do microcrédito que
viria a receber o prémio Nobel da Paz em 2006. A fundação do Grameeen Bank resultou do entendimento de
Yunus que era viável conceder crédito às populações mais pobres do planeta e o Grameen Bank surgiu com
o propósito de transformar as suas capacidades em atividades económicas sustentáveis (M. Yunus, 2002).
Na sequência do sucesso do Grameen Bank e de outras experiências de microcrédito, assiste-se nos anos
80 a um rápido crescimento do número de instituições de microfinança, muitas delas ONG (Organizações
não-Governamentais) financiadas por doações privadas e fundos públicos. A sua atividade veio demonstrar
que o microcrédito pode ser viável porque os pobres investem esse crédito maioritariamente na criação do
seu emprego (Morduch, 1999) e conseguem pagar as suas dívidas, ou seja, cumprir os reembolsos dos
empréstimos nos prazos previstos (Brau e Woller, 2004; MicroWorld.org, 2016).
Os anos 90 são caracterizados por uma grande expectativa das instituições internacionais de apoio
desenvolvimento relativamente ao microcrédito enquanto instrumento de combate à pobreza.
Por parte dos partidários de uma ideologia mais liberal, há hoje uma contestação da prática de taxas de
juro inferiores às que a banca convencional cobraria junto dos clientes mais pobres visados pelo microcrédito,
bem como o início de uma crítica dos seus reais impactos (Bateman e Chang, 2012). De acordo com a
http://datatopics.worldbank.org/financialnclusion
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MixMarket - plataforma da organização Microfinance Information Exchange (MIX), que recolhe e
disponibiliza informação relativa à maioria das MFIs e a outros fornecedores de serviços financeiros (financial
service providers - FSPs) que dirigem a sua atividade às populações de baixos rendimentos - no momento
presente, a cobertura das principais regiões do mundo por fornecedores de serviços financeiros (FSPs) é a
que se indica na figura seguinte:
Fig. 5 – Cobertura geográfica por fornecedores de serviços financeiros:
(Fonte: Mixmarket http://www.themix.org/mixmarket)
Relativamente ao acesso a microfinança pelas famílias que vivem abaixo da linha de pobreza, a
cobertura dessas famílias pelas MFIs por região geográfica é a que seguidamente se apresenta.
Fig. 6 - Cobertura pelas MFI:
(Fonte: Daley-Harris, 2009 in Guntz, 2011: 12)
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A evolução do microcrédito é representada pela sua transição dos países da Ásia para a África e América
Latina, sobretudo para os menos desenvolvidos, com objetivo servir populações que não tinham outra
possibilidade de acesso a serviços financeiros ou outra fonte de rendimento, mas posteriormente também
para os países desenvolvidos do Ocidente onde se insere num conjunto de outras medidas dirigidas aos
segmentos da população em situação económica precária e com dificuldades de acesso a crédito dos bancos
comerciais. O microcrédito foi sofrendo alterações na sua forma de funcionamento, designadamente,
passando dos empréstimos de grupo para empréstimos individuais e registando a entrada de novos
intervenientes, com destaque para os do sector privado, para os quais o microcrédito se tem tornado cada
vez mais atrativo dado o sucesso das iniciativas em termos do cumprimento dos reembolsos e taxa de
sobrevivência dos micronegócios financiados.
O microcrédito tem na sua origem uma vocação social, pretendendo constituir um instrumento de
combate à pobreza e não substituir a banca convencional ou a economia capitalista. Porém, caracteriza-se
por uma lógica solidária e de equidade, visando contribuir para a inclusão de indivíduos que de outra forma
o mercado se encarregaria de excluir, procurando combater alguns dos limites desse mercado e fatores de
desigualdade e marginalização característicos das sociedades contemporâneas. Nem todos os indivíduos
estão, de facto, mesmo nos países mais ricos, em condições de aceder aos serviços da banca tradicional. Para
a banca comercial em geral, os clientes mais pobres apresentam grandes riscos pois não oferecem garantias,
têm dificuldades em poupar e em apresentar um negócio viável. Por outro lado, os custos de transação com
a análise, monitorização e aprovação de empréstimos a este tipo de clientes são demasiado elevados se se
tiver em conta os pequenos montantes em causa. A microfinança veio, assim, responder às necessidades de
serviços financeiros das populações de baixos rendimentos em várias regiões do mundo e cresceu face ao
sucesso demonstrado pelo microcrédito em termos das capacidades de cumprimento dos reembolsos pelos
clientes pobres e a sustentabilidade das iniciativas económicas financiadas.
O desenvolvimento do microcrédito no início do séc. XXI coloca, de acordo com a generalidade dos
estudos mais recentes, três grandes questões que cremos interligadas: i) a viabilidade ou sustentabilidade
das instituições de microfinança que, para continuarem a crescer, devem deixar de depender de doações ou
subsídios dos Estados, tornando-se eficientes em termos de custos e proveitos, ii) a atração do sector privado,
i.e., de instituições financeiras/bancárias comerciais como investidores e atores neste mercado (uma vez que
as doações públicas ou privadas são limitadas)de forma a aumentar a cobertura e iii) a prática de taxas de
juro que permitam cobrir os custos e o risco associados à concessão de crédito a clientes que não apresentam
garantias ou histórico bancário, sem que tal faça perder de vista os propósitos de oferecer serviços
financeiros acessíveis aos mais pobres.
3. O Microcrédito, a microfinança e os problemas que suscitam
Hoje, o microcrédito associa-se a outros mecanismos, financeiros e não só (como os programas de
graduação que se centram em resolver problemas de habitação ou saúde, apoiar o aumento dos níveis de
consumo ou conceder formação em áreas relevantes para a gestão de um negócio), de apoio ao
empreendedorismo e ao desenvolvimento social. Segundo a EAPN (European Anti Poverty Network), os
serviços financeiros designados microfinança incluem, para além do crédito, o acesso a seguros, poupanças,
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literacia financeira, assistência financeira no desenvolvimento de negócios, tendo um papel fundamental na
inclusão social: a “Microfinança é amplamente considerada como [promotora] da melhoria de condições de
vida, reduzindo a vulnerabilidade e fomentando o empowerment social assim como económico”
(http://www.eapn.eu). Entre as áreas mais críticas e também de maior inovação da microfinança estão a
acessibilidade dos serviços financeiros, favorecida pelo acesso à internet e o desenvolvimento de serviços
bancários através das comunicações móveis, assim como a adaptação dos produtos financeiros às
necessidades de indivíduos e a contextos específicos, o que se tem traduzido no desenvolvimento de
diferentes modalidades de microcrédito que se afastam do conceito original do Grameen Bank de Yunus.
A concessão de empréstimos de pequenos montantes a populações sem condições de obter crédito
bancário convencional insere-se num conjunto de instrumentos designado por microfinança, que nos últimos
anos têm suscitado grande atenção a nível mundial pelo seu potencial como ferramenta de combate à
pobreza e à exclusão (CGAP/World Bank; ONU; Microcredit Summit). A microfinança compreende o conjunto
de serviços dirigidos às populações excluídas do acesso a instituições financeiras formais convencionais,
sendo o microcrédito o mais relevante desses mecanismos que incluem ainda os microseguros, as
microtransferências e a micropoupança (associados às necessidades pessoais dos beneficiários do crédito e
às necessidades do micronegócio).
A vulnerabilidade, simultaneamente causa e consequência da dificuldade em aceder a crédito, é, por
sua vez, antecedida pela dificuldade em poupar dada a falta de instituições financeiras adequadas que
caracteriza sobretudo os países mais pobres. A poupança relaciona-se não só com as necessidades dos
clientes, mas com o financiamento das próprias instituições de microfinança e, consequentemente, com a
sua independência e sustentabilidade. As transferências e seguros, por seu turno, pretendem assegurar um
acesso a serviços financeiros com equidade, segurança e rapidez em contextos em que a infraestrutura,
regulação, supervisão e mecanismos de proteção social são escassos. Estes serviços de microfinança
pretendem afetar positivamente a gestão dos micronegócios e as condições de vida dos indivíduos
abrangidos. Talvez por esta razão em países desenvolvidos como os da Europa Ocidental ainda não se tenha
verificado a transição do microcrédito para a microfinança. Os outros mecanismos de microfinança são, pois,
complementares ao microcrédito, sofrendo dos mesmos problemas desafios, e traduzem uma visão recente
da microfinança, já não apenas como financiadora de iniciativas empresariais, mas como promotora da
inclusão financeira (Mader e Sabrow, 2015).
Existe hoje, por todo o mundo, uma grande variedade de instituições de microfinança, entendidas como
as entidades oriundas do sector privado, público ou terceiro sector que oferecem serviços financeiros a
populações de baixos rendimentos. Se as Organizações não-governamentais têm tido um papel de destaque
ao operarem em regiões onde não existe acesso a serviços financeiros, têm surgido recentemente cada vez
mais Instituições de Microfinança (MFIs na designação mais corrente) com fins lucrativos, designadas como
Non-Banking Financial Companies ou Non Banking Financial Institutions (NBFIs) assistindo-se hoje, segundo
muitos autores, a uma tendência de comercialização da microfinança, ou seja, de mudança do estatuto das
organizações de não-lucrativo para lucrativo. Esta mudança de estatuto pode ter efeitos positivos, como a
atração de investimento privado e a submissão da sua atividade a supervisão por parte de uma autoridade
financeira formal, como um banco central, mas coloca o risco de o propósito do microcrédito ser substituído
pelos interesses dos investidores/acionistas a quem passam a ter que prestar contas (Guérin, 2015; Bateman
e Chang, 2012; Ledgerwood et al.2013).
http://www.eapn.eu/
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A ANDC (Associação Nacional de Direito ao Crédito), que foi a organização mais importante no
microcrédito em Portugal, sustenta que “Embora se trate de quantias pequenas, representam o suficiente
para alterar o rumo das vidas de quem recorre ao microcrédito. Por isso, enquanto instrumento de promoção
da iniciativa e empreendedorismo, (…) o Microcrédito revela-se um instrumento de política
macroeconómica, cujos efeitos multiplicativos são muito poderosos” (ANDC, 2016). Mais do que um
instrumento ou produto financeiro relativamente novo, o microcrédito pode consistir numa alternativa a
outras políticas públicas de inclusão, fomento do emprego e combate à pobreza, assim como um instrumento
para as ONG que promovem o desenvolvimento, com maiores possibilidades de atingir a
autossustentabilidade, ou seja, um mecanismo que pretende o combate às causas da pobreza e exclusão e
não apenas alívio dessas através de subsídios ou doações.
O microcrédito tem tido resultados materiais e sociais positivos, tanto nas populações dos países mais
pobres, quanto nos segmentos mais vulneráveis dos países mais desenvolvidos: do apoio em situações de
emergência social na satisfação das necessidades de consumo prementes das populações mais
desfavorecidas, à capacitação de iniciativas suscetíveis de favorecer o autoemprego, a criação de um
rendimento estável e, em consequência, a melhoria das condições de vida dos cidadãos em situação de
vulnerabilidade social.
O microcrédito está, todavia, também associado a impactos sociais negativos e a atenção que tem
recebido a nível internacional nas últimas décadas tem também suscitado dúvidas e críticas: ao representar
para as ONG e estados nacionais uma possível solução atrativa para a o problema da pobreza, cria-se uma
pressão política e social para a concessão de grandes montantes de crédito e, simultaneamente, para o sector
privado, para a assunção de maiores riscos e custos. Deste modo, o microcrédito pode traduzir-se numa
tendência para conceder demasiado crédito demasiado rápido às populações mais desfavorecidas, por um
lado, e na prática de taxas de juro elevadas, para cobrir um crescente risco, por outro. É neste sentido que o
microcrédito pode resultar em sobre-endividamento, dificuldades de reembolso e incumprimento, o que
representa consequências negativas, tanto para as instituições que concedem o crédito, quanto para os
beneficiários dos empréstimos.
Assim, o microcrédito enfrenta hoje um duplo desafio: atingir a sustentabilidade das suas instituições
(através de uma maior eficiência e atração de investimento privado) e tornar-se verdadeiramente inclusivo
para permanecer fiel aos princípios que estiverem na sua origem.
Se ainda há uma grande proporção de ONGs presentes no microcrédito, certo é que este, assim como a
microfinança em geral, captaram a atenção de governos e do sector privado, sendo hoje possível afirmar que
o microcrédito pode aliviar a situação de pobreza e marginalização das populações mais desfavorecidas do
Mundo e fazê-lo gerando lucros (Helms, 2006; CGAP, 2014). E, independentemente de toda a controvérsia
que tem suscitado, o microcrédito conseguiu pôr de parte o mito, de que Yunus discordou, de que não se
pode emprestar com sucesso aos pobres porque estes não são capazes de pagar. Apesar de não o ser para
todos (Chowdhury, 2009; Banerjee, 2013), o microcrédito pode ser para muitos dos indivíduos mais pobres
do planeta uma saída (senão a única) de situações de grande carência e marginalização social, oferecendo a
oportunidade de, através das atividades financiadas, aumentar o rendimento dos beneficiários e a sua
independência em relação a situações de precaridade e exploração que caracterizam as alternativas não-
formais a que os mais pobres habitualmente podem recorrer para fazer face às suas necessidades.
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Em qualquer dos casos, pelas suas consequências económicas, sociais, familiares ou políticas, pela rede
de indivíduos e entidades envolvidos, pela variedade de fatores que o promovem, condicionam ou explicam
a diversidade de formas que assume, o microcrédito é um fenómeno social total no sentido que M. Mauss
(in Esteves e Fleming, 1980) lhe atribuiu. É possível perceber a emergência de uma variedade de experiências
de microcrédito nas últimas três décadas pelos diferentes contextos sociais locais em que se desenvolveram
e, simultaneamente, perceber a sua importância pelas consequências que produz nas sociedades em causa.
No contexto de enquadramento social e cultural dos fenómenos económicos pode discutir-se o
microcrédito enquanto forma de inclusão de indivíduos que, numa ótica de mercado de maximização da
rendibilidade e minimização do risco, não interessariam à banca tradicional, dados os reduzidos montantes,
o elevado grau de risco associado à ausência de garantias e os elevados custos de transação que os mico
empréstimos representam, aliados a uma baixa rendibilidade oferecida pelo financiamento de iniciativas
empresariais de muito reduzida dimensão (micronegócios). Porém, foi o sucesso das iniciativas de
microcrédito de cariz social que, progressivamente, atraiu os estados a incluí-lo nas políticas públicas de
combate à pobreza e exclusão - com é o caso das instituições da União Europeia a que nos referimos
posteriormente – e o setor privado a considerar os mais pobres como um segmento de mercado
potencialmente rentável. Com o seu desenvolvimento, o microcrédito traduziu-se numa diversidade de
experiências levadas a cabo por atores de diversa natureza. Consideramos que a controvérsia que envolve a
microfinança se prende essencialmente com a falta de prudência na concessão de crédito, quando se
abandonam as práticas que estiveram por trás do sucesso do microcrédito de missão social e se assumem
crescentes riscos na tentativa de aumentar a escala e rendibilidade , designadamente, pelas entidades do
setor lucrativo, e o problema de falta de acesso a crédito é substituído pelo do sobre-endividamento.
Durante o século XX, houve iniciativas de facultar crédito e outros serviços financeiros aos pobres das
zonas rurais com o objetivo de os libertar de situações de dependência, aumentar o investimento e os seus
rendimentos. Até aos anos 70, o crédito aos pobres rurais subsidiado pelos governos revelou-se um fracasso,
que seria posteriormente atribuído por muitos à prática de taxas de juro baixas que, aliadas a uma elevada
taxa de incumprimento, não permitiram que as instituições financeiras cobrissem os seus custos (Adams e
Von Pishke, 1991; Bateman e Chang, 2012).
É consensual que nos anos 70 nasce oficialmente, no Bangladesh, o microcrédito associado ao projeto
piloto de M. Yunus e ao Grameen Bank, considerado o primeiro banco de microcrédito no mundo, criado
com objetivo de combater a pobreza com a prática inovadora de oferecer crédito aos mais pobres dos pobres
sem a exigência de colateral (Yunus, 2002; Grameen Bank, 2011)3.
A partir dos anos 80, assiste-se a um grande desenvolvimento do microcrédito, sendo que o crédito
visando a redução da pobreza que tinha sido orientado para os pequenos agricultores passou a dirigir-se a
populações urbanas mais vulneráveis, sobretudo a mulheres que pretendam criar um micronegócio. As
elevadas taxas de reembolso e a prática de taxas de juro bastante inferiores às que caracterizam o crédito
informal, mas que permitiam cobrir os custos com os empréstimos (Cull et al., 2015; Rosenberg et al.2009;
3 Ainda que em 1973 já tivesse havido pelo menos uma experiência piloto de microcrédito da Accíon
International no Brasil e que, em 1974, o BRAC (então Bangladesh Rehabilitation Assistance Committee, posterior Bangladesh Rural Advancement Committee e actual Building Resources Across Communities) tivesse começado a providenciar microcrédito aos mais pobres.
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Brau e Woller, 2004), que verificariam nessa década em várias experiências de microcrédito, contribuíram
para a sua boa reputação.
Nos anos, 90 o fenómeno ganhou grande visibilidade a nível internacional associando-se a instituições
e políticas de combate à pobreza no Mundo, atenção que começou também a suscitar análises e críticas do
fenómeno. É por esta altura que o microcrédito começou a ser englobado no termo microfinança traduzindo
o propósito de oferecer outros serviços financeiros adequados às necessidades dos mais pobres (Helms,
2006; Banerjee, 2013).
Com o início do séc. XXI, assiste-se a uma multiplicação dos atores envolvidos na microfinança,
designadamente do sector lucrativo e, paralelamente, a uma crescente atenção às questões da inclusão
financeira - e consequentemente à necessidade da microfinança alargar a sua ação aos muitos milhões de
indivíduos pobres ainda sem acesso a serviços financeiros de qualidade – e da sustentabilidade das suas
instituições.
Em 2006, o CGAP (Consultative Group to Assist the Poor) que reúne mais de trinta instituições de
desenvolvimento, públicas e privadas, com o objetivo comum de aumentar a inclusão financeira dos mais
pobres, definiu um conjunto de princípios de microfinança que foi apoiado pelos líderes dos G8, permite
perceber as tendências no entendimento atual a respeito da missão e das potencialidades da microfinança
(CGAP, 2006):
“1. Poor people need a variety of financial services, not just loans. In addition to credit, they want savings,
insurance, and money transfer services.
2. Microfinance is a powerful tool to fight poverty. Poor households use financial services to raise income,
build their assets, and cushion themselves against external shocks.
3. Microfinance means building financial systems that serve the poor. Microfinance will reach its full
potential only if it is integrated into a country’s mainstream financial system.
4. Microfinance can pay for itself, and must do so if it is to reach very large numbers of poor people.
Unless microfinance providers charge enough to cover their costs, they will always be limited by the scarce
and uncertain supply of subsidies from governments and donors.
5. Microfinance is about building permanent local financial institutions that can attract domestic
deposits, recycle them into loans, and provide other financial services.
6. Microcredit is not always the answer. Other kinds of support may work better for people who are so
destitute that they are without income or means of repayment.
7. Interest rate ceilings hurt poor people by making it harder for them to get credit. Making many small
loans costs more than making a few large ones. Interest rate ceilings prevent microfinance institutions from
covering their costs, and thereby choke off the supply of credit for poor people.
8. The job of government is to enable financial services, not to provide them directly. Governments can
almost never do a good job of lending, but they can set a supporting policy environment.
9. Donor funds should complement private capital, not compete with it. Donor subsides should be
temporary start-up support designed to get an institution to the point where it can tap private funding
sources, such as deposits.
10. The key bottleneck is the shortage of strong institutions and managers. Donors should focus their
support on building capacity.
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11. Microfinance works best when it measures—and discloses—its performance. Reporting not only
helps stakeholders judge costs and benefits, but it also improves performance. MFIs need to produce accurate
and comparable reporting on financial performance (e.g., loan repayment and cost recovery) as well as social
performance (e.g., number and poverty level of clients being served)”.
Nesta conceção, o microcrédito segue uma visão semelhante à de Yunus segundo a qual, com o acesso
a serviços financeiros, os pobres, através das suas iniciativas empresariais, poderão ultrapassar uma situação
de marginalização e integrar-se na economia de mercado.
De forma análoga, a Microcredit Summit Campaign, que desde 1997 reúne instituições financeiras, de
ensino, agências de ajuda ao desenvolvimento, ONGs e profissionais envolvidos na microfinança dos cinco
continentes procurando promover as melhores práticas e a troca de conhecimentos com vista à inclusão
financeira e combate à pobreza, foi sucessivamente redefinindo os seus objetivos, à medida que o fenómeno
da microfinança foi sendo melhor entendido, designadamente no que respeita ao impacto dos programas de
microcrédito. Assim, em 1997, a Microcredit Summit Campaign definiu como objetivos fornecer crédito e
outros serviços financeiros para autoemprego a 100 milhões das famílias em pobreza extrema.
Em 2006, redefiniu estes objetivos estabelecendo “a qualidade, ênfase e intenção dos stakeholders da
microfinança para fazer do fim da pobreza um objetivo de toda essa indústria”, reconhecendo então a
necessidade i) da sustentabilidade financeira dos programas de microcrédito através de uma melhor
eficiência: mudando taxas de juro e comissões para poder cobrir custos operacionais e financeiros e
encorajando a autossuficiência dos programas de microcrédito e ii) da avaliação do impacto do microcrédito
na melhoria das condições de vida dos mais pobres, e não apenas em indicadores relativos às MFIs tais como
números de clientes ou taxas de reembolso - “a campanha está comprometida com o facto de os programas
terem um impacto positivo, mensurável nas vidas dos muito pobres (…) promovendo o uso e a recolha de
dados [provenientes] de ferramentas de medição da pobreza para permitir às MFIs gerar produtos e serviços
que ajudam da melhor forma os seus clientes a sair da pobreza” (www.microcreditsummit.org).
Em 2016, no 18th Microcredit Summit, os líderes mundiais reuniram-se para discutir a inclusão social e
financeira e, tendo em vista o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de acabar com a pobreza extrema
até 2030 (ONU), a Microcredit Summit Campaign, até então um projeto isolado, foi englobada no RESULTS
Educational Fund, pretendendo dar continuidade ao trabalho em prol da inclusão financeira. Foram definidas
quatro áreas prioritárias para conseguir o maior impacto possível no combate à pobreza extrema:
“programas de proteção social transformativos e de graduação; estratégias de desenvolvimento rural; gestão
do risco pelos pobres; finanças desenvolvidas pela comunidade” (Idem). Estas iniciativas constituem uma
visão mais abrangente da pobreza e da forma de a combater nas suas diferentes dimensões que, co se
discutirá, está associada ao maior sucesso aquando da concessão de microcrédito.
Se no discurso atual a respeito da microfinança é patente uma perspetiva pró-mercado que se centra
no desempenho financeiro e independência das suas instituições, também a análise do seu desempenho
social é tema de grande debate. Na filosofia do Grameen Bank, o microcrédito assume o propósito de servir
as populações mais desfavorecidas, especialmente em países em que as condições institucionais não
permitem o acesso a serviços financeiros, não existem mecanismos de proteção social para os mais pobres e
nos quais o recurso ao crédito informal coloca essas populações numa posição de grande vulnerabilidade.
http://www.microcreditsummit.org/
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O facto de uma grande proporção da população mundial não utilizar serviços financeiros formais não
significa necessariamente que não tenha acesso, sendo que nas populações mais pobres que se recorre mais
frequentemente a mecanismos informais. No entanto, se estes oferecem maior flexibilidade que os
instrumentos formais, como Chaia et al. (2009) sintetizam, aos “serviços financeiros informais faltam a
fiabilidade (por exemplo, qualidade e disponibilidade consistentes), segurança” (p.3), taxas de juro que os
mutuários consigam pagar e possibilidade de aumento da escala dos serviços oferecidos.
Compreende-se a importância do acesso a serviços financeiros submetidos a regulação e supervisão,
sobretudo no momento atual em que, para além de uma grande desigualdade de rendimentos (segundo a
Oxfam/Credit Suisse, a riqueza acumulada pelo 1% mais rico da população mundial equivale pela primeira
vez em 2015 à riqueza dos restantes 99%) existe uma grande discrepância entre as regiões ou países mais
ricos e mais pobres no acesso a serviços financeiros formais e, segundo o Banco Mundial, a população
mundial em situação de pobreza extrema atinge perto de mil milhões de indivíduos (IFC/WB, 2014). Neste
contexto, os serviços de microfinança (crédito, poupança, seguros e transferências) podem representar para
as populações mais pobres uma oportunidade de desenvolver uma atividade económica rentável, gerir a
incerteza, preparar-se para situações de emergência, investir no futuro, melhorar as suas possibilidades de
consumo e satisfazer necessidades de saúde, habitação, alimentação ou educação.
Se hoje está provado que é possível servir financeiramente os mais pobres de forma lucrativa, também
é certo que a microfinança está longe de ter atingido o seu potencial bem como o propósito de ser
verdadeiramente inclusiva (Brau e Woller 2004; Helms, 2006; Chaia et al. 2009).
No geral, a microfinança tem aumentado a escala e o alcance da sua intervenção e atraído cada vez mais
o sector privado, não ocupando hoje uma posição marginal no sistema financeiro mundial, tendo em
consideração o enorme mercado potencial representado pelos países pobres, próximo dos 3 mil milhões de
pessoas. Christen et al. (2004) consideram o conjunto de instituições que prestam serviços financeiros aos
mais pobres como tendo uma “double bottom line”: conciliar o desempenho financeiro com a finalidade
social de servir as populações sem acesso a empresas financeiras ou bancos convencionais. Designando-as
de instituições financeiras alternativas (AFIs), os autores incluem nesse conjunto as MFIs e também os bancos
públicos e de desenvolvimento e as associações de crédito e poupanças, argumentando que, se “Quando
vistas da perspetiva convencional dos ativos totais do sistema financeiro, as AFIs não são jogadores
significativos na maioria dos países (…) a imagem é muito diferente quando se conta cidadãos em vez de
dinheiro. [As] AFIs provavelmente representam uma parcela significativa – por vezes a maioria – de clientes
do sistema financeiro em países em desenvolvimento e transição” (Christen et al., 2004: 2).
No entanto, se as várias entidades intervenientes na microfinança procuram servir as populações mais
pobres cobrindo os seus custos, a microfinança ainda está muito aquém do seu potencial, não só em termos
de acessibilidade, como na qualidade dos seus serviços (Helms e CGAP, 2006). Mais ainda, como referem, a
acessibilidade “não é apenas (…) ter uma conta bancária. É também a conveniência e segurança da conta e
se estes serviços têm preços justos, satisfazem as necessidades dos clientes, e são oferecidos por uma
instituição sólida que estará [por perto a longo prazo] para ajudar os seus clientes a gerir as suas vidas
financeiras (Idem: 6)”.
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4. Acesso e impactos do Microcrédito
Diferentes tipos de instituição de microfinança distribuem-se desigualmente por diferentes zonas
geográficas, têm diferentes formas de atuação, produtos e mercados-alvo. Se as instituições financeiras não-
bancárias e as ONG procuram atingir os mais pobres dos pobres, os bancos privados, compreensivelmente,
centram-se nos clientes mais comercialmente viáveis (Ledgerwood, 2013; Cull e Molineus, 2015), sendo que
estes últimos registam um maior valor do montante global de empréstimos e um número mais reduzido de
mutuários comparativamente ao outro tipo de instituição (MIX, 2016).
A microfinança está ainda concentrada na região Ásia/Pacífico e num reduzido n�