aula 2 _ overing - estruturas elementares da reciprocidade

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117 APRESENTAÇÃO: SYLVIA CAIUBY NOVAES* Meados da década de 1970, mais precisamente o primeiro semestre de 1974. Todo vestido de negro, calça e casaco de couro, camisa preta, cabelo pelos ombros, um docente francês oferece na USP um curso de pós-graduação em Antropologia Política em que põe por terra a clássica visão das sociedades primitivas como sociedades sem Estado. Para Pierre Clastres, o professor que ministrava o curso, convidado pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia da USP, estas eram sociedades contra o Estado. La Société contre l´État: recherches d´anthropologie politique é exatamente o título da obra de Pierre Clastres que a Editions de Minuit publicava naquele mesmo ano de 1974. Para Pierre Clastres, as sociedades primitivas devem ser vistas como sociedades contra o Estado, sociedades em que a presença do chefe não implica poder centralizado. A ausência de relações de poder nessas sociedades não significa desordem ou anarquia e tampouco pode ser entendida como selvageria ou arcaísmo. Não é possível pensar em estruturas elementares de poder; o poder existe ou não, só existe em exercício. É próprio da natureza mesma dessas sociedades a ausência de Estado, o que impossiblita pensar através delas a passagem da Sociedade sem Estado para as sociedades bárbaras e civilizadas, como queriam os evolucionistas. O grande mérito de Clastres foi afirmar essas sociedades pelo que elas são e não pela negativa – sociedades sem Estado, sem escrita, sem capacidade de acumulação de excedentes. Clastres vai mostrar como essas sociedades, através de rituais de iniciação, através de uma economia de subsistência, através do rigoroso controle da natalidade, através dos atributos exigidos de um chefe indígena, conseguem se manter como sociedades igualitárias. Dez anos depois, Joanna Overing publica este artigo, que é agora oportunamente traduzido pela Cadernos de Campo Cadernos de Campo Cadernos de Campo Cadernos de Campo Cadernos de Campo. Oportunamente porque nos dá a distância necessária para entender a gênese de suas reflexões e o caminho que estas reflexões puderam trilhar quase trinta anos depois. Se Clastres identificava o poder à natureza, força que deve ser mantida fora da sociedade, para Overing a filosofia indígena identifica o poder coercitivo às forças da cultura e seu produtos; daí a necessidade de seu controle. Apesar das diferenças entre as sociedades indígenas do Noroeste Amazônico, do Brasil Central e das Guianas, há algo subjacente a esta ampla diversidade: em todas elas a difer difer difer difer diferença ença ença ença ença é o E E E STR STR STR STR STR UTURAS UTURAS UTURAS UTURAS UTURAS ELEMENT ELEMENT ELEMENT ELEMENT ELEMENT ARES ARES ARES ARES ARES DE DE DE DE DE RECIPR RECIPR RECIPR RECIPR RECIPR OCIDADE OCIDADE OCIDADE OCIDADE OCIDADE * Chefe do Departamento de Antropologia - USP.

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Page 1: Aula 2 _ Overing - Estruturas Elementares Da Reciprocidade

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APRESENTAÇÃO: SYLVIA CAIUBY NOVAES*

Meados da década de 1970, maisprecisamente o primeiro semestre de 1974.Todo vestido de negro, calça e casaco decouro, camisa preta, cabelo pelos ombros,um docente francês oferece na USP umcurso de pós-graduação em AntropologiaPolítica em que põe por terra a clássica visãodas sociedades primitivas como sociedadessem Estado. Para Pierre Clastres, o professorque ministrava o curso, convidado peloPrograma de Pós-graduação emAntropologia da USP, estas eram sociedadescontra o Estado. La Société contre l´État:recherches d´anthropologie politique éexatamente o título da obra de PierreClastres que a Editions de Minuit publicavanaquele mesmo ano de 1974.

Para Pierre Clastres, as sociedadesprimitivas devem ser vistas como sociedadescontra o Estado, sociedades em que apresença do chefe não implica podercentralizado. A ausência de relações de podernessas sociedades não significa desordem ouanarquia e tampouco pode ser entendidacomo selvageria ou arcaísmo. Não é possívelpensar em estruturas elementares de poder;o poder existe ou não, só existe em exercício.É próprio da natureza mesma dessassociedades a ausência de Estado, o que

impossiblita pensar através delas a passagemda Sociedade sem Estado para as sociedadesbárbaras e civilizadas, como queriam osevolucionistas.

O grande mérito de Clastres foi afirmaressas sociedades pelo que elas são e não pelanegativa – sociedades sem Estado, semescrita, sem capacidade de acumulação deexcedentes. Clastres vai mostrar como essassociedades, através de rituais de iniciação,através de uma economia de subsistência,através do rigoroso controle da natalidade,através dos atributos exigidos de um chefeindígena, conseguem se manter comosociedades igualitárias.

Dez anos depois, Joanna Overing publicaeste artigo, que é agora oportunamentetraduzido pela Cadernos de CampoCadernos de CampoCadernos de CampoCadernos de CampoCadernos de Campo.Oportunamente porque nos dá a distâncianecessária para entender a gênese de suasreflexões e o caminho que estas reflexõespuderam trilhar quase trinta anos depois.

Se Clastres identificava o poder ànatureza, força que deve ser mantida forada sociedade, para Overing a filosofiaindígena identifica o poder coercitivo àsforças da cultura e seu produtos; daí anecessidade de seu controle. Apesar dasdiferenças entre as sociedades indígenas doNoroeste Amazônico, do Brasil Central e dasGuianas, há algo subjacente a esta ampladiversidade: em todas elas a diferdiferdiferdiferdiferençaençaençaençaença é o

EEEEESTRSTRSTRSTRSTRUTURASUTURASUTURASUTURASUTURAS ELEMENTELEMENTELEMENTELEMENTELEMENTARESARESARESARESARES DEDEDEDEDE RECIPRRECIPRRECIPRRECIPRRECIPROCIDADEOCIDADEOCIDADEOCIDADEOCIDADE

* Chefe do Departamento de Antropologia - USP.

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princípio metafísico ordenador daorganização social. Se nas sociedades jê ebororo há uma organização dual elaborada,sem uma regra nítida de casamentoprescritivo associado, há, por outro lado,uma exacerbação das diferenças internas.Entre os Bororo, por exemplo, tudo o queexiste no mundo, toda a riqueza material eimaterial, como cantos, nomes eornamentos, foi distribuído, em temposmíticos, entre os oito clãs que compõem estasociedade. Na sociedade Bororo, a própriaorganização espacial da aldeia já revela adistribuição dessas diferenças, através dascasas dispostas ao redor de um círculo, emposições fixas, associadas aos clãs; é entre osmembros destes clãs que giram todas asprestações rituais. No Noroeste Amazôniconão há organização dual, mas mecanismoselaborados de troca matrimonial exogâmicaque obedecem a critérios espaciais rigorosos.A distribuição dos patri-sibs pelo território,a partir do eixo cabeça-cauda da sucuriancestral, é uma clara demonstração dadistribuição das diferenças pelos grupossociais que compõem a sociedade – casa-se,forçosamente, com alguém de outro grupolocal. Já nas sociedades das Guianas, em quea organização espacial não reflete a ordemda vida social, a regra de casamentoprescritivo é de suma importância; não háorganização dual e o grande esforço é nosentido de anular as diferenças.

Essas diferenças referem-se às forças dacultura, sem as quais a vida social não épossível. Por outro lado, há um riscoimanente a essas forças que, se não foremdevidamente controladas, impedirãoqualquer possibilidade de uma vida socialtranqüila e segura. Estas são as questõespresentes em todas as sociedades descritasacima, a despeito da diversidade entre elas.Como controlar a diferença, como fazer para

que ela não se transforme em desigualdade?Este é o argumento central deste artigo deJoanna Overing, e é nas estruturaselementares de reciprocidade que a autoravai detectar a estratégia da filosofia políticaindígena.

“…it takes at least two somethings tocreate a difference”, diz Bateson (1979:76).Sem diferença não há, nem mesmo,possibilidade de percepção. Não há,tampouco, vida social. Mas, como apontaOvering neste artigo, é fundamental quehaja uma adequada mistura de coisas quesão as mesmas e de coisas que são diferentes.Grandes diferenças podem levar àdesigualdade, tirando dessas sociedades seuprincipal atributo, que é o de seremsociedades igualitárias. Apenas areciprocidade completa entre afins, atravésdas práticas culturais associadas ao dualismo,entre os Jê e Bororo, ou ao casamentoprescritivo, como idealizado pelas sociedadesda Guiana, nas quais os afins sãoconsanguinizados, pode assegurar atranqüilidade da vida social. Se Clastresafirmava que nas sociedades indígenas hámecanismos que impedem que os recursossejam apropriados e controlados por umgrupo em detrimento do outro, para JoannaOvering a questão do controle é central e éno interior das relações sociais que estecontrole deve ser exercido.

Clastres afirmava, retomando Lévi-Strauss, que as sociedades indígenas semantêm como sociedades igualitáriasporque os três elementos que caracterizama cultura como um sistema de troca (de bens,mensagens e mulheres) são elementos queo chefe indígena detém: ele é o grandeprovedor em épocas de crise, deve ter otalento da oratória e tem o privilégio dapoliginia. Por outro lado, são estes mesmoselementos que o transformam em eterno

SYLVIA CAIUBY NOVAES

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devedor para com sua comunidade. O statusontológico do chefe é, para Clastres,definido por sua relação de dívida em relaçãoà a sociedade.

Overing vai demonstrar, através de umaanálise dos dados da organização social dassociedades indígenas da América do Sul,que, se a vida social tem início a partir daposse de bens culturais diferenciados porparte dos heróis míticos que fundaram estassociedades, é apenas quando estas forças sãocontroladas e distribuídas (através dasprestações rituais típicas das sociedades deorganização dual ou do casamentoendogâmico nas sociedades das Guianas)que a vida social é possível. A existênciasocial implica, nessas sociedades, diferençae perigo (ao contrário da vida após a morte,quando há identidade e segurança), e éfundamental que se possa controlar essasforças que permitem, como mostra a autora,a saúde, a fertilidade da terra e a riqueza dacomunidade. Para evitar os riscos queameaçariam a vida social é preciso que areciprocidade entre afins seja completa, diziaOvering em 1984.

Hoje, quase trinta anos após a primeirapublicação de Estruturas Elementares deReciprocidade, os textos de Joanna Overingcontinuam a refletir sua preocupação coma filosofia indígena. Mas, se as preocupaçõessão as mesmas, a perspectiva que elaatualmente prioriza é certamente outra.Aliança entre afins e troca ou reciprocidadenão aparecem nem mesmo como verbetesem “The Social and Cultural Anthropology– the Key Concepts”, publicado por Rapporte Overing em 2000. Suas reflexões hojegiram muito mais em torno de umaetnografia voltada para as práticas cotidianasde convívio, para a construção diária de umasociabilidade, que propicie condiçõesfavoráveis a este convívio. “…it is not an

unusual cosmogonic vision that all forcesfor life, fertility, creativity within this worldof the social have their origin in thedangerous, violent, potentially cannibalistic,exterior domains beyond the social”Overing, 2000:6). Mas essas forças dacultura, que a autora já apontava comodestruidoras da vida social, serão controladasatravés da vontade, intenção e habilidade dosindivíduos que participam da vida social. Aênfase agora é nas virtudes morais e naestética das relações interpessoais, muitomais do que na estrutura que conformariaestas relações. Daí a importância deinvestigar as emoções, a cognição, a estéticae a poética, a dialógica, a fenomenologia e aorganização social (idem, p. 8).

A distinção fundamental entre osdomínios doméstico e jurídico da sociedade,tão enfatizada pelos pesquisadores doHarvard Central Brazil Research Project, caipor terra, principalmente por nãoreconhecer no domínio doméstico osaspectos que marcam a vida social. Centralà crítica desta oposição é a reflexão feministaque põe a nu a posição secundária ocupadapelas mulheres nessa distinção entre odomínio doméstico e o domínio jurídico.

“The chauvinistic reductionism of thestructural-functionalist and structuralistgrand paradigms of society and societalordering where the agency of women wasignored and society itself equated with malestructures of domination and subordination– to be ordered through either descent oralliance – took another couple of generationsto unveil and unravel. [...] Terms such associety, community, family, kinship,descent, lineage, or structure, function,system are to be used at the peril of totallyeluding another people´s understanding ofwhat they are doing socially – which is thevery raison d´être of the anthropological

tradução

SYLVIA CAIUBY NOVAES

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task” (Rapport e Overing, 2000: 221-223,grifo dos autores).

A vida social requer a ação de indivíduosque agem e pensam, pessoas, agentes morais– é disto que se constitui a sociabilidade.Se o foco é a sociabilidade, a esfera docompartilhar tem precedência sobreconceitos como troca ou reciprocidade.Nesta nova abordagem, Joanna Overing nãoestá só. Suas reflexões somam-se a de autorescomo Victor Turner, Roy Wagner, MarilynStrathern, para citar apenas alguns.

BBBBBIBLIOGRAFIAIBLIOGRAFIAIBLIOGRAFIAIBLIOGRAFIAIBLIOGRAFIA

BATESON, Gregory. Mind and Nature, anecessary unity. Toronto: Bantam Books,1979.

OVERING, Joanna e PASSES, Alan. TheAnthropology of Love and Anger, theAesthetics of Conviviality in NativeAmazonia. Londres: Routledge, 2000.

RAPPORT, Nigel e OVERING, Joanna.Social and Cultural Anthropology – TheKey Concepts. Londres: Routledge,2000.

SYLVIA CAIUBY NOVAES

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EEEEESTRSTRSTRSTRSTRUTURASUTURASUTURASUTURASUTURAS ELEMENTELEMENTELEMENTELEMENTELEMENTARESARESARESARESARES DEDEDEDEDE RECIPRRECIPRRECIPRRECIPRRECIPROCIDADEOCIDADEOCIDADEOCIDADEOCIDADE - U - U - U - U - UMAMAMAMAMA NONONONONOTTTTTAAAAA COMPCOMPCOMPCOMPCOMPARAARAARAARAARATIVTIVTIVTIVTIVAAAAA SOBRESOBRESOBRESOBRESOBRE

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AAAAAMAZÔNICOMAZÔNICOMAZÔNICOMAZÔNICOMAZÔNICO*****

JOANNA OVERING

Em A sociedade contra o Estado, PierreClastres (1977) alegou que a sutileza e aprofundidade da filosofia política ameríndiareside na recusa do desenvolvimento de umpoder coercitivo e, assim, neutraliza a“virulência” da autoridade política(1977:35) permitindo o estabelecimento deinstituições igualitárias. Segundo Clastres,essa sofisticação filosófica (ainda queinconsciente) levou os ameríndios aidentificar o poder à natureza, qual seja, auma força que deve ser mantida fora dosdomínios da sociedade. Em poucas palavras,o autor acreditava que a cultura, ao tomar opoder como ressurgimento da naturezapropriamente dita, acaba por negar ambosafirmando a predominância do princípio dereciprocidade, dimensão ontológicaprimária da sociedade ameríndia, contra aqual se opõem tanto o poder como anatureza. Concordo com Clastres que aaceitação do poder coercitivo de modo

substantivo poderia implicar a rejeição dareciprocidade, princípio mais básico parauma política igualitária. Não obstante,pretendo argumentar que os ameríndiosidentificam o poder coercitivo não às forçasda natureza, mas às forças da cultura, seusprodutos e o controle que se deve exercersobre eles. Não é a natureza que a sociedadeameríndia rejeita, mas a posse das forças dacultura que permitiria um uso coercitivo ouviolento e poderia impor, entre outras coisas,um controle sobre a atividade econômica eseus produtos. Quando uma sociedadeameríndia atinge o ápice de tamanharejeição, ela se torna uma sociedade semeconomia política1, em que não há quemocupe um papel político dirigido a ordenaro trabalho alheio ou os frutos deste.

A literatura etnológica recente apontauma variação considerável na organizaçãosocial das sociedades das Terras Baixas daAmérica do Sul. Diante desse quadro, minhainterpretação sobre os dados de povos doBrasil Central, do Noroeste Amazônico e dasGuianas pode parecer por demais genérica.

*

Por “economia política, entendo um sistema no interior doqual um grupo ou categoria social assume o controlecoercitivo sobre o trabalho (e seus produtos) de outrem.Minha discussão não está, necessariamente, em contradiçãocom o argumento de Rivière (1984), que postulava, para asGuianas, “uma economia política de pessoas” em oposiçãoa uma “economia política de mercadorias”.

1

Este artigo foi originalmente publicado como“Elementary structures of reciprocity: a comparative noteon Guianese, Central Brazilian, and North-West Amazonsocio-political thought”, na revista Antropologica (vol.59-62, 1983-1984, pgs.331-348; Caracas, Fundacion laSalle).

TRADUÇÃO DE RENATO SZTUTMAN**

**

***

Doutorando em Antropologia Social - USP, pesquisadordo NHII - USP e do GRAVI.

Docente USP.

REVISÃO DE SYLVIA CAIUBY NOVAES***

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Nas sociedades jê e bororo do Brasil Central,a apreensão da sociedade como um processoinserido em um esquema cosmológicoespecífico ganha forma espacial, que saltaaos nossos olhos, tanto no layout circularou semi-circular de suas aldeias como na vidaritual complexa. As classificaçõesdicotômicas da realidade são explicitadas navida cerimonial. Cada aldeia é repartida porum sistema de metades, ou séries de sistemasde metades, opostas de modo diádico e entreas quais relações elaboradas decomplementaridade lógica são ritualmenteformalizadas (ver Lave 1979, DaMatta1979, Melatti 1979, Crocker 1979,Maybury-Lewis 1979). No NoroesteAmazônico, princípios de estrutura socialsão semelhantemente visíveis a olho nu, masem graus distintos. A segmentação do corpoda sucuri ancestral, da cabeça à cauda,fornece o padrão conceitual da segmentaçãoterritorial dos patri sibs de um grupoexogâmico, que constituem unidades detroca com patri sibs de grupos exogâmicosde origem diversa no corpo da sucuri.Quando comparada à organização altamenteritualizada das sociedades do Brasil Centrale ao layout bem conceitualizado das aldeiasdo Noroeste Amazônico, os grupos deparentesco endogâmicos dos ameríndios dasGuianas aparecem como amorfos e fluidos.Nas Guianas, não há arranjos espaciaiscomplexos que reflitam a ordem da vidasocial. Não há tampouco grupos denominação, metades que estabeleçam trocasrituais umas com as outras, refletindocerimonialmente uma visão particular doordenamento cosmológico ou expressandoum eterno ordenamento do “outro mundo”pelo passado mítico. Não há ritual paradeclarar o elaborado intercruzamento dasunidades pelas quais a sociedade sereconstitui. À primeira vista, os grupos

sociais guianeses são atomísticos, dispersose altamente fluidos em sua forma.

Uma regra prescritiva de casamentoassociada às variações de um tipo dravidianode terminologia de relação é, até onde sesabe, universal aos grupos ameríndios dasGuianas (ver, por exemplo, Rivière 1974sobre a organização caribe, Overing Kaplan1972 e 1975 sobre os Piaroa, Lizot 1971sobre os Yanomami). Por toda essa região, aunião privilegiada, no sentido que Lévi-Strauss (1969:120) confere ao termo, ocorreno interior do grupo local de pertencimento,identificado então como unidade deparentes2 próximos (ver Riviére 1969,Henley 1979, Albert sobre os Yanomami inRamos & Albert 1977, Overing Kaplan1981). O grupo local tradicional convivecomumente em uma grande casa comunalque se revela um grupo de parentescocognático endogâmico. O pertencimento àcasa é normalmente baseado em umprincípio de afinidade. Um adulto deve secasar no interior desta casa, mantendo alisuas relações com afins. Classifiquei, emoutro momento, essa estrutura como um“grupo de parentesco baseado na aliança”(1973, 1975), visto que se mantém comounidade de cognatos pela restrição ideal datroca em seu interior. Sua unidade como talé associada ao número de trocasmatrimoniais entre homens no interior dopróprio grupo local (Overing Kaplan 1984).

Como já comentei (1984), é uma ironiaque nas sociedades em que a regra prescritiva

2 O termo “parente(s)” corresponde à tradução do termo eminglês kin ou kinsmen. Este termo contrasta com outro queserá igualmente encontrado no texto – “aparentado”, quedesigna o que em inglês aparece como relative. Emportuguês, o termo “parentesco” possui um camposemântico maior que o de kinship, já que este último reúneapenas as relações consangüíneas, reservando para o termorelatedness um campo que abriga os laços de afinidade.(Nota do tradutor)

JOANNA OVERING

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de casamento é de esmagadora importânciapara a organização de seus grupos locais nãohaja evidência de uma organização dual, aopasso que na organização das relações entreas metades nas sociedades jê e bororo, a trocade mulheres entre metades assuma um papelrelativamente menor na compreensão dainteração social (Lave 1979, DaMatta 1979,Melatti 1979, Crocker 1979, Maybury-Lewis 1979). Nas Terras Baixas da Américado Sul, a organização dual não éfreqüentemente associada a uma regraprescritiva de casamento, e, de fato, apresença de tal regra não implica, de modoalgum, a presença de uma organização dual.Esse contraste – de um lado, sociedade comorganizações duais elaboradas, mas sem regrade casamento prescritivo associado; deoutro, sociedades com regra prescritiva, massem evidência de uma organização dual –será pertinente para a discussão seguinte apropósito da variação que encontramosentre sociedades na elaboração de princípiosde troca no interior delas. Meu argumentoé de que, sob tal contraste, reside umprincípio unitário de sociedade. O contrastena organização reflete meramente os váriosmodos pelos quais uma filosofia da vidasocial semelhante pode expressar “estruturaselementares de reciprocidade”.

Desse modo, devo afirmar que, apesar dogrande contraste na organização das sociedadesdo Brasil Central e do Noroeste Amazônico emrelação às das Guianas e de suas estruturas sociaismuito dessemelhantes, reside uma filosofiasemelhante de existência social que implicatambém uma compreensão particular do poderpolítico e do controle sobre as forças da cultura,ou dos recursos escassos no mundo, que tal poderpoderia impor. O princípio da vida social ao qualme refiro é a idéia de que a sociedade pode existirapenas mediante o contato e a mistura apropriadosentre entidades e forças, diferentes que são umas

das outras (ver Overing Kaplan, 1977 e 1981).Hesito aqui em empregar o termo “dualismossubjacentes”, preferindo diferença como termopara descrever o princípio metafísico quereivindico como princípio de ordenamentocomum a todas essas sociedades. Afirmo aindaque, na teoria indígena, a “diferença” está associadaao perigo e, por isso, deve ser compreendida, emúltima instância, como variação no conjunto deforças na cultura e do poder em geral controlado.Em suma, a existência social é identificada tantocom a diferença como com o perigo e,inversamente, a existência a-social (por exemplo,o mundo depois da morte) com a identidade e asegurança. É por essa razão que os ameríndiosconferem tanta ênfase à vida social como produtode uma adequação de elementos e forças, quedevem, necessariamente, ser diferentes uns dosoutros para que a sociedade exista: é apenas pormeio de tal mistura “adequada” que a segurançapode ser conquistada e o perigo, afastado.Finalmente, a segurança na sociedade torna-se nada mais senão a “reciprocidade completa”,que contrasta com a “incompleta”, em queforças mutuamente perigosas encontram-seperigosamente (ver Overing Kaplan, 1984).

Tais princípios são expressos abertamentenas cosmogonias dos Piaroa3 e do Noroeste

3 A pesquisa de campo entre os Piaroa realizou-se em 1968 e1977 com M.R. Kaplan, ao qual devo muito pelos dadoscoletados em conjunto. A pesquisa de 1977, da qual advêmmuitos dos dados apresentados a seguir, foi financiada pelaSSRC Grant HR 5028, Fundo de Pesquisa Central daUniversidade de Londres, Fundo da Escola de PesquisasEconômicas, e o Instituto de Fundos de Viagem Latino-Americana. O SSRC também concedeu-me um ResearchGrant (HRP 673) que me dispôs de tempo para a análisedos dados adquiridos em 1977. Os Piaroa residem nasGuianas ao longo do médio rio Orenoco. Integram umgrupo lingüístico independente, o Saliva, e têm um númerosignificativo de “intrusões” caribe em seu vocabulário. Naestrutura social e política, pertencem etnograficamente àsGuianas. Ver Dreyfus (1984), que acentua a importânciado tratamento das Guianas, ao lado das ilhas da Costa, comoum todo unitário singular (embora complexo) no que dizrespeito à sua organização política.

tradução

ESTRUTURAS ELEMENTARES DE RECIPROCIDADE

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Amazônico e na vida cerimonial do BrasilCentral. Não foi, contudo, pelo viés daanálise estrutural que cheguei às minhasconclusões. A medida pela qual os gruposcaribe se referem abertamente, seja no ritual,seja na cosmologia, a uma teoria queequaciona sociedade com diferença e perigo,com a reunião de forças culturais diferentesem origem, é um tema a ser explorado. Setal discurso não aparece imediatamentecomo evidente, devo, não obstante,acrescentar que a estrutura social caribe, emseu ideal de união endogâmica, promoveuma afirmação encoberta desses princípiosque poderiam bem ser acentuados de formamais óbvia em outras sociedades de florestastropicais.

Os Piaroa e os índios das Guianas emgeral fazem o possível para que a organizaçãodo grupo local suprima as diferenças quecompõem a sociedade, ao passo que asculturas jê, bororo e do Noroeste Amazônicotendem a enfatizá-las. O reconhecimento detal variação entre os ameríndios namanifestação social dessa diferenciaçãocultural ou, ao contrário, a supressão destaconduz a um longo caminho de reflexãosobre as estruturas sociais dos grupos dasTerras Baixas da América do Sul. Entre osJê, os Bororo e os ameríndios do NoroesteAmazônico, as forças da cultura sãosocialmente controladas, como evidenciadopelos princípios relativamente formais deorganização típicos dessas sociedadesmencionados acima. Sugiro que as estruturassociais atomizadas, comumente encontradasnas Guianas, e os agrupamentos sociaisguianeses são advindos de uma filosofiaindividualista4, fortemente veiculada poresses ameríndios, uma filosofia que contrasta

os habitantes das Guianas em geral com seusvizinhos mias “sócio-centrados” ao Sul, quedestinam certos tipos de controle ao jugoda sociedade. Nas Guianas, tal controle éresponsabilidade do indivíduo.

Para os Piaroa, e provavelmenteoutros guianeses, as forças da cultura,a - soc i a i s em sua o r igem, s ãodomesticadas no interior do indivíduo,que pos su i a r e sponsab i l idade decontrolá-las privadamente. A ênfasep ia roa na r e sponsab i l idade doindivíduo sobre tais forças não é senãoum aspec to de uma f i lo so f i aind iv idua l i s t a su t i l , ex t rema emqualquer escala pela qual pode sermedida (ve r Lukes , 1973) , e queas sume um pape l exce s s i vamenteimpor tante no pensamento soc ia lpiaroa, como suspeito ser, da mesmaforma, o caso dos falantes de línguacar ibe na s Guianas , que t ambémenfa t i zam o auto-cont ro l e e aresponsabilidade individual. SegundoMelatti (1979:67), entre os Krahó,falantes de uma língua jê do BrasilCentral, o self físico recebe, duranter i tuais e laborados , uma roupagemexterna de identidade cultural que, porsua vez , fo rnece ao ind iv íduoidentidade social. De modo diverso,entre os Piaroa, o social, a cultura esuas forças – inc lu indo os nomespróprios – integram uma roupageminte rna , cu ja na tureza é pr ivada ,devendo se r domes t i cadaindividualmente. Como devo ilustrarabaixo, o controle social do self não ésenão par te de um conjunto maisamplo de idéias que os Piaroa guardamsobre a auto-identidade, a composiçãodo self e a domesticação dos elementos(forças) de que é constituído.

4 Ver Rivière (1984) que também enfatiza a importância doindividualismo para o pensamento sócio-político guianês.

JOANNA OVERING

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O O O O O CONTRCONTRCONTRCONTRCONTROLEOLEOLEOLEOLE SOCIALSOCIALSOCIALSOCIALSOCIAL DA SD ASDA SD ASDA S FORÇASFORÇASFORÇASFORÇASFORÇAS D AD AD AD AD A

CULCULCULCULCULTURATURATURATURATURA: : : : : EXEMPLEXEMPLEXEMPLEXEMPLEXEMPLOSOSOSOSOS DODODODODO B B B B BRASILRASILRASILRASILRASIL C C C C CENTRALENTRALENTRALENTRALENTRAL EEEEE

DODODODODO N N N N NOROROROROROESTEOESTEOESTEOESTEOESTE A A A A AMAZÔNICOMAZÔNICOMAZÔNICOMAZÔNICOMAZÔNICO

Etnógrafos das sociedades jê setentrionais(Melatti 1979, Lave 1979, DaMatta 1979)observam a articulação das instituiçõessociais complexas com um conjunto decrenças associadas à transmissão deidentidades sociais baseada em nomes, queenvolvem a relação entre doadores ereceptores de nomes. A continuidade dasociedade não pode ser compreendida forade tal mecanismo de transmissão de umconjunto de nomes tomado como um todoimutável. Grupos portadores de nomes sãodescritos por estes autores como unidadescorporadas adquirindo, em sua perpetuação,não apenas conjuntos de nomes, mastambém ritos, parafernália ritual e locaçõesde grupos rituais (ver Overing Kaplan1981). Em outras palavras, os conjuntos denomes dividem entre si os recursos escassosda sociedade que são, digamos (tomando aevidência do caso bororo), as forças dacultura: forças que permitem a saúde, ariqueza e a fertilidade da terra e dacomunidade, e, nesse sentido, forçasdoadoras de vida (e destruidoras de vidas)do mundo. Para os Jê setentrionais, atransmissão do nome carrega consigo atransmissão da afiliação cerimonial, oconhecimento esotérico e os direitos eobrigações rituais: em sua aquisição, o nomefornece ao indivíduo uma identidade sociale, assim, transforma-o em membro de umgrupo social que possui uma parte das forçasda cultura disponíveis no mundo.

A observação certamente mais clara sobreo controle social das forças culturais noBrasil Central foi oferecida por Crocker(1979) sobre os Bororo. A sociedade bororo,representada na aldeia, é composta de

metades exogâmicas, cada qual contendoquatro matriclãs que permanecem emordem espacial fixa distanciando-se uns dosoutros ao redor do círculo da aldeia. Essadivisão da aldeia em oito partes correspondeàs oito seções das forças do cosmo. Todos osnomes de coisas no universo estariamrepartidos entre os oito matriclãs, cada qualpossuindo um oitavo do estoque de nomese de sua força, o aroe corporado, ou “essênciacategórica” de cada elemento possuído. Natopografia do mundo subterrâneo, o mundodos aroe, todas as “entidades totêmicas” (suaforça?) e os membros mortos de um clãdeterminado vivem juntos na clareiraalocada por aquele clã, um arranjo espacialque é replicado na aldeia. Assim, as forçasda cultura, os recursos escassos possuídos porcada clã, possuem sua fonte sob a terra. Amais valiosa riqueza do clã, suas próprias“representações dos espíritos”, é dada depresente aos clãs da metade oposta para serdesempenhada pelos seus membros. Cadaclã deve realizar sua responsabilidadecategórica e ritual em relação aos outros clãs,representando uma das oito categorias pelasquais o universo é classificado.

Como os grupos portadores de nomes jêe os clãs bororo, o sib pira-paraná doNoroeste Amazônico também controla osrecursos rituais e seu próprio conjunto denomes pessoais (C. Hugh-Jones 1979, S.Hugh-Jones 1979). Como entre os Bororo,as forças da cultura apropriadas socialmente,por cada sib, têm sua fonte nas profundezasda terra, onde se alojam em “casas dodespertar”, as casas de pedras dos sibslocalizadas no mundo subterrâneo, de ondevêm as almas dos recém-nascidos e para ondevão as almas dos mortos. É no contexto daposse por cada clã de seus próprios estoquesde nomes pessoais, reciclados em cadageração alternada, juntamente com as almas

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que vivem na “casa de despertar”, quepodemos compreender parcialmente oquebra-cabeça chave das sociedades doNoroeste Amazônico. Com exceção dosCubeo, os ameríndios do NoroesteAmazônico casam-se idealmente fora de seugrupo lingüístico, o que implica que a línguaque se fala é herdada do pai. ChristineHugh-Jones (1979) acrescenta que a línguadeveria ser considerada como parte dapropriedade do grupo de descendência, aolado da parafernália ritual. Sendo assim, cadagrupo exogâmico – um conjunto de sibs,que descende de uma sucuri ancestral e quetem a mesma filiação lingüística – tem seupróprio estoque de nomes de coisas nomundo. Se o aroe corporado, totensnomeados, de um clã bororo compreendeum oitavo do universo, no NoroesteAmazônico, cada grupo exogâmico “possui”um vocabulário especial, idiossincrático emrelação a si mesmo, que cobre todos os itensno mundo. É bem possível que o controlesobre um conjunto específico de nomes paracoisas imponha para esses ameríndios umpoder particular sobre essas coisas ou umacesso à sua força (ver Overing Kaplan1981).

Christine Hugh-Jones (1979) conta queo casamento entre os ameríndios doNoroeste Amazônico deve serexplicitamente exogâmico não apenas emrelação ao grupo lingüístico e à linhagem,mas também em relação à associação dehabitat, identificação conferida pelopertencimento ao sib e explicada por mitosde origem. No tempo mítico, o sol primevodera luz a três sucuris, associadasrespectivamente aos domínios do céu, daterra e da água, que são ancestrais dos trêsgrupos exogâmicos. Por meio dointercasamento dos membros desses grupos,cada qual remontando a uma origem em

fontes de poder advindas de diferentesdomínios do cosmo, a sociedade veio à luz.A distinção entre habitats cósmicos maisamplos, e as forças associadas a cada um,tornou-se, ao menos para alguns povos doNoroeste Amazônico, uma distinçãoprimordial entre semelhança e diferença,fornecendo o idioma para a discussão daidentidade e da diferença no que toca àsrelações sociais e, nesse sentido, possui umgrau considerável de força classificatória noordenamento da troca matrimonial e da vidaritual no Uaupés.

Entre as sociedades do NoroesteAmazônico, aqueles do mesmo grupoexogâmico são identificados a um domíniohabitacional particular, ao passo que os afinssão associados a um outro. O fato de asemelhança e a diferença serem expressas pormeio da linguagem desse domínio sugere oreconhecimento de um controle sobreforças, econômico em sua base. Acosmogonia piaroa, ao narrar a criação domundo, a origem da cultura e dos recursosnaturais da terra, narra também a ocorrênciade batalhas entre os dois grandes demiurgosdo tempo mítico, afins um do outro, porrecursos e forças dos domínios, que cadaqual havia sido o responsável pela criação e,por conseguinte, pela posse. Ambosdesejavam apropriar-se do controle sobre asforças e os domínios do outro. Nacosmogonia e teogonia piaroa, há umamenção explícita aos perigos graves aos quaiso homem social se vê exposto quando diantedo poder que procura apropriar-se dosprodutos do universo, poder que assumerapidamente uma expressão coercitiva,violenta e incontrolada. Ao mesmo tempo,como no Noroeste Amazônico, essacosmogonia associa afinidade à diferença,no que diz respeito tanto à sua fonte deorigem como ao tipo de poderes adquiridos.

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A mensagem mítica consiste na idéia de quea interação de tais diferenças, como pré-requisito para a vida social, é potencialmenteperigosa. Trata-se de um perigo que emergequando a reciprocidade entre afinspermanece incompleta (por exemplo,quando de roubo ou incesto) e, por isso,pode ser evitado apenas por meio doestabelecimento cuidadoso da reciprocidadeentre eles. Os perigos da afinidade são tãograndes que os Piaroa preferem suprimirlingüística e socialmente uma classificaçãoque enfatizaria as diferenças subjacentes enecessárias para a relação afim e, desse modo,também para a ordem social. Assim, entreos Piaroa, não há associação simples de umaclassificação de domínios significativos comregras de casamento e identificação grupal.A classificação dos domínios e suas forças,tão importante para a cosmogonia, nãoganha projeção sobre o sistema matrimonial,tampouco fornece o meio para identificargrupos sociais.

Os Piaroa, assim como as culturas doNoroeste Amazônico, enfatizamsobremaneira as práticas matrimoniais detempos primordiais. Foi por meio deintercasamentos entre os primeiros homense mulheres piaroa, cuja origem se dera emespaços separados de criação – acima eabaixo da terra –, que a sociedade pôde vir àluz fazendo com que todos os Piaroa setornassem cognatos, como o são atualmente.Apesar de o pertencimento clânico nãoimplicar, de forma alguma, obrigações parao indivíduo nessa vida, seu clã representa asua origem e a casa para a qual ele voltaráapós a morte. Os Piaroa acreditam que, nopós-vida, os membros de cada clã viverãojuntos em um local espacialmente separadode todos os outros clãs – separado dos afins,dos animais, de todos os seres diferentes desi. Conceitualmente, trata-se de algo

próximo à terra dos aroe entre os Bororo eos casas de despertar no Pirá-Paraná. Noentanto, ao contrário da imagem dos laressubterrâneos dos Bororo e do NoroesteAmazônico, os clãs pós-morte piaroa sãocasas sem qualquer cultura (ta´kwarü).Dessa feita, não há forças de vida nem decultura que possam ser extraídas por umPiaroa vivo de sua fonte de origem, lugardesprovido de poder. Para o Piaroa, asdistinções espaciais do pós-vida e da criaçãonão são de modo algum replicadas na vidasocial, onde, por meio de combinações, osclãs perderam completamente suadistintividade espacial e social.

A classificação de habitats significativosé usada politicamente, sempre que asdistinções são expressas ativamente porcompetidores políticos para estruturar suasbatalhas individuais. Antes de discutir asupressão, na vida social piaroa, da diferençaque, apesar de suprimida é necessária àordem social e à sua expressão no campopolítico, devo descrever de maneira breveaspectos da cosmogonia piaroa, buscandoesclarecer uma discussão recente5.

CCCCCOSMOGONIAOSMOGONIAOSMOGONIAOSMOGONIAOSMOGONIA PPPPPIARIARIARIARIAROOOOOAAAAA: : : : : VIOLÊNCIAVIOLÊNCIAVIOLÊNCIAVIOLÊNCIAVIOLÊNCIA EEEEE CACACACACAOSOSOSOSOS

PRIMEIRPRIMEIRPRIMEIRPRIMEIRPRIMEIROSOSOSOSOS

Ricoeur nota, em The symbolism of evil(1969:178), que o “mal é tão velho quantoo mais velho dos seres; o mal é o passado doser”. Como nos mitos das civilizações antigasa que Ricoeur faz referência, a mitologiapiaroa remete também a uma violência depoder inscrita na origem das coisas. Trata-se de um princípio de violência que tanto

5 Ver para um relato detalhado tanto sobre a cosmogoniacomo sobre o sistema clânico piaroa, Overing, “The pathsof sacred words”, apresentado no seminário “Xamanismonas Terras Baixas da América do Sul” no 44o. CongressoInternacional de Americanistas, 1982, Manchester.

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estabiliza como destrói (ver Ricoeur,1969:182-3). Os poderes incontrolados enão-domesticados envolvidos no trabalho dacriação se revelam demasiado destrutivos,selvagens e venenosos para permaneceremlivres como forças ilimitadas dentro domundo social. Para que a ordem criada poreles permaneça intacta, esses poderespossantes, ao final do tempo mítico, foramapartados do mundo social, instalando-seem outros mundos. Essa separação asseguraum maior controle dessa maldade, dessapotencialidade para o mal.

Antes da criação dos mundos celeste eterrestre, todas as fontes de poder douniverso estavam instaladas abaixo dasuperfície da terra, cuja face ainda não haviase constituído. No tempo mítico, essespoderes subterrâneos, que se tornavamlentamente desgovernados, adquiriam umaforça responsável pela criação de todos oselementos e seres do universo superficial epelo conhecimento que permitia uma certaexistência. A maior parte dos poderesresponsáveis pela forma e vida da superfícieterrestre provinha do mundo subterrâneo deOfo/Da´a, uma Anta/Sucuri quimérica.Dois grandes afins míticos, Kuemoi eWahari, cujo nascimento resultou de um atode Ofo/Da´a e cujos poderes foramconcedidos pelo mesmo, foram, á sua parte,responsáveis pela criação da maior parte doselementos do mundo piaroa. Os poderes quea Anta/Sucuri transmitiu a esses doisdemiurgos eram distintos em sua origem eopostos em seus efeitos. Kuemoi, senhor dodomínio aquático, trazia para a superfícieda terra poderes de seu local de nascimento,o mundo subaquático, permitindodesenvolver, entre outras coisas, práticas decultivo de plantas, o fogo de cozinha,ornamentos, poderes de caça, curare, venenode peixe. Wahari, senhor da floresta, criava

a topografia da terra, seus elementos naturais(montanhas, rochas, sistemas fluviais,cachoeiras). As forças da Anta/Sucuri,associadas a esses dois conjuntos de criação,o da cultura em oposição ao dos elementosnaturais da terra e do céu, eram diferentesem qualidade e, quiçá, em força. Os poderesde Kuemoi eram venenosos e malignos porsua selvageria, ao passo que os de Wahari,relativamente controlados e benevolentes emsua força. A oposição entre selvageria econtrole refletia no tipo de seres criados aolongo do tempo mítico, seres que não eramsenão aspectos de seus respectivos poderese, como tais, revelavam-se auxiliares nasbatalhas contínuas pelo poder engendradaspelos dois feiticeiros mais poderosos dotempo mítico.

A fonte da cultura na terra, nas suasorigens, eram as forças venenosas e selvagensde Kuemoi, que lhe foram dadas pelo paiOfo/Da’a sob a forma de alucinógenosvenenosos. Embora senhor da cultura e docultivo, Kuemoi criou todas as cobrasvenenosas e insetos do mundo. Envenenoutodas as grandes formações rochosas e ascorrentes. Ele é avô dos ferimentos, pai daspiranhas e criador de sapos venenosos. Étambém avô do sono e senhor da escuridão.O crocodilo, o jacaré e peixes perigosos sãoda família de Kuemoi, como o são tambémo esquilo e o urubu, o primeiro o queanuncia o perigo e o segundo, predador deanimais selvagens. Em suma, todos osanimais que mordem e que apresentamperigo e todas as coisas venenosas nessemundo, sendo classificados como “animaisselvagens” (dea ruwa), categoria que incluios próprios Piaroa, são da família ou dacriação de Kuemoi e são classificados como“pensamentos de Kuemoi”. Assim, nacosmogonia piaroa, a cultura pertence aopoder incontrolado e venenoso de Kuemoi

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e tem sua fonte na loucura do mesmo. Comoprovedor de cultura aos habitantes dafloresta (os Piaroa e, antes deles, Wahari),seu “presente” é venenoso, tão selvagemcomo os seus poderes desenfreados defeitiçaria. Mesmo os seus filhos, as plantasdo roçado, são venenosos.

A cultura, constituída de poderesvenenosos e descontrolados que advêm daescuridão, é parcialmente domada pelasforças da luz que criaram os elementosnaturais (inanimados) do universo. Wahari,genro de Kuemoi e senhor da floresta, gastaboa parte do tempo mítico não apenastentando roubar a cultura de Kuemoi, mastambém para transformar os seus estragosem forças mais controladas e mais eficazespara seu uso seguro pelos habitantes dafloresta. Se o poder de Kuemoi édescontrolado, Wahari representa apossibilidade de um poder controlado. Aforça de seus atos espetaculares de criaçãoderivaram de um alucinógeno não venenosooferecido pela Anta/Sucuri quando aindahabitava a morada subterrânea de seunascimento. Como criador da maioria dascaracterísticas da terra, Wahari foidenominado “senhor do mundo”. SeKuemoi era o senhor das trevas e da noite,Wahari era o senhor da luz – seu poder eratanto que foi capaz de instalar o sol no céu.Ele era também o senhor dos animaisselvagens, então humanos em sua forma, ede sua morada. Por meio de seuspensamentos, ele criou todos os animaisrupestres e pássaros selvagens. Foi eletambém quem criou os Piaroa valendo-sede peixes capturados em lagos. Wahari podiavoar e, com efeito, sempre se transformavaem beija-flores e gaviões, produtos de seupróprio pensamento, para realizar atosfantásticos, para percorrer grandes distânciassobre a terra e dentro dela. Contrastava,

assim, com Kuemoi, que também setransformava em aspectos de seus própriospensamentos (por exemplo, predadores,como a onça e o urubu).

Como grandes feiticeiros, Kuemoi eWahari representam o fracionamento naTerra dos poderes de Ofo/Da’a, o deussupremo Anta/Sucuri, cuja casa seencontrava abaixo da superfície terrestre.Wahari casou-se com a filha de Kuemoi.Com a união desses dois grandes poderes,opostos pela associação de cada um com umdiferente domínio do cosmo – o mundosubaquático e o mundo terrestre –, asrelações sociais passaram a existir e afertilidade do deus Anta/Sucuri ganhouexpressão como sociedade. Em outraspalavras, essa união conduziu à emergênciado estado social em tempos míticos.Contudo, a relação afim então estabelecidapermaneceu desleal, manifestando uma não-reciprocidade gritante. Como mencionadoacima, a maior parte dos mitos piaroadestina-se à narração de duelos entre essesdois demiurgos pela conquista e controle deelementos, forças e domínios. Kuemoi,senhor das águas, desejava comer animaisselvagens, e Wahari permanecia atento paraas armadilhas que o primeiro tramava paraele e sua família. Á sua parte, Waharidesejava cultura. Foi apenas em seucasamento com Maizze, filha de Kuemoi,que ele recebeu como dons plantascultivadas e o conhecimento para a suapreparação. Depois de tê-la desposado,Wahari despendeu muito do tempodisponível roubando artefatos culturais deseu sogro, sempre procurando domá-los emproveito de seu uso. No final do tempomítico, ele roubou artefatos culturais,possuídos pelos “pais” dos animais selvagens.

Toda a cultura que Wahari recebeu ouroubou pertence atualmente aos Piaroa, uma

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das criações do demiurgo. No entanto,atualmente, os Piaroa não recebem forçasde cultura de Wahari. No final do tempomítico, Wahari matou Kuemoi em retaliaçãopor invasões canibalísticas em seu domíniona floresta. Wahari foi então morto pormembros de sua própria família em vingançapelos seus pecados a-sociais, especialmentepelo incesto cometido com a irmã, Cheheru.Ambos, Kuemoi e Wahari, foram mortospor sua irresponsabilidade social – oprimeiro reencarnou na Terra como sucuri,e o último, como anta. Ambos perderam ospresentes concedidos pelo criador Anta/Sucuri – as forças da cultura e as forças paradomesticá-la – para outros seres, deuses quevivem, no mundo atual, uma existênciaetérea sob as quedas d’água de suas casascelestiais. São esses deuses que fornecem, aosPiaroa, os conhecimentos e os poderes dacultura, forças demasiadamente destrutivase, por isso, instaladas fora do mundoterrestre, onde a vida social e conduzida demaneira selvagem e venenosa. Assim, ospoderes ilimitados de Kuemoi e Waharipermanecem, sob a vigilância e a posse dosdeuses celestiais, guardados em caixas decristal.

As lições do passado mítico dizemrespeito à asserção de que nenhuma vidasocial ordenada seria possível se tais forçasvagassem livremente. Sua existênciadesregrada contínua encorajaria, comoocorrido no tempo mítico, atos decanibalismo, incesto, loucura e furto –compulsões a-sociais que ridicularizam asregras de reciprocidade (e a tranqüilidadeque delas resulta), das quais, segundo a visãopiaroa, a sociedade é dependente em suacontinuidade. Como será discutido a seguir,o mais adequado, ou melhor, a relação detroca mais segura é aquela que deve serreciprocada, pois é apenas por meio da

reciprocidade repetida que o risco, intrínsecoà relação afim, pode ser contornado, que operigo da diferença absoluta pode serafastado. Por outro lado, para que asociedade continue, as forças da culturadevem ainda integrá-la, tanto para lhe darvida, como para protegê-la.

O O O O O INDIVÍDUOINDIVÍDUOINDIVÍDUOINDIVÍDUOINDIVÍDUO EEEEE AAAAA DOMESTICAÇÃODOMESTICAÇÃODOMESTICAÇÃODOMESTICAÇÃODOMESTICAÇÃO D AD AD AD AD A

CULCULCULCULCULTURATURATURATURATURA

Vimos antes que nas sociedades bororoe do Noroeste Amazônico, as forças culturaispertencem a clãs e sua fonte permanece depropriedade clânica, sendo ela instaladaabaixo da superfície terrestre no interior dasmoradas primordiais de cada clã. De mododiverso, entre os Piaroa, as forças da culturanão pertencem a grupo social algum, masaos deuses, e são trazidas de volta à sociedadepor meio da iniciativa individual e a partirda responsabilidade do indivíduo. São osdeuses que fazem com que as forças dêemvida (ta´kwarü), “a vida dos pensamentos eda cultura”, tanto para o indivíduo comopara a sociedade em que vive. Tais forçassão trazidas para a sociedade por meio dahabilidade do xamã, que domestica a suaselvageria, ao alocá-las dentro de suas contasde conhecimento, ou auxilia outros a fazero mesmo. A cultura deve ser, nesse sentido,domesticada no indivíduo.

Em geral, os Piaroa conferem muito valorà habilidade de conduzir uma vida tranqüila(adiupawi). O primeiro ensinamento formalao qual uma criança é submetida consisteem lições sobre controle. Os Piaroaconsideram tal treinamento como parte deum processo de “domesticação”. A criançadeve adquirir cada vez mais responsabilidadesocial (ta´kwakwomena) para suas própriasações, deve controlar as forças da culturaconforme as incorpora. À medida que cresce,

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uma pessoa deve decidir por si só quantos equais poderes – como a caça, a pesca, afeitiçaria, o canto – poderá suportar dasfontes não-domesticadas localizadas dentrode si mesmo. Esses poderes são adquiridospor meio da liderança do xamã experiente,que apreende essas fontes cautelosamenteem seus vôos à morada dos deuses. Quandoum indivíduo cresce, ele recebe dos deusesgrande quantidade de contas, quepermanecem instaladas no seu interior edentro das quais os poderes da cultura sãoarmazenados e, então, domesticados. Oestado interno de uma pessoa, com omínimo de poderes incorporados, torna-seconfuso quando elementos exógenos ainvadem seja por sua permissão, seja porvontade alheia (doença). A roupageminterior do xamã é elaborada especialmentee, dessa forma, é ele que deve exibir o maiorcontrole. O controle apropriado dasemoções implica o apaziguamento das forçasculturais que habitam o interior de umapessoa. Sentimentos viciosos, intentosmalignos e ciúmes aborrecem, mas não sãoconsiderados prejudiciais ao homem quetomou para si poucos poderes dos deuses.Essas mesmas características, em um xamã,são consideradas como resultado da falta dedomesticação adequada de poderespotencialmente selvagens e malignos, ouseja, são pensadas como altamente perigosaspara o bem-estar da sociedade e como umindicador de um poder interno incontroladocapaz de matar por pouco, causar desastresnaturais, impedir o aumento da caça eprovocar a perda de fertilidade da terra.

As forças da cultura, introjetadas napessoa, não exigem a posse de seu produto,mas sim a habilidade ou capacidade de usá-lo. O xamã como líder político, como aqueleque possui dentro de si domesticada umaquantidade de força de cultura maior que

de qualquer homem comum, não podepossuir tudo o que há no mundo.Atualmente, os senhores da terra e da águapossuem os domínios da água e da floresta.Eles não são Wahari e Kuemoi, mas oespírito da floresta, Re´yo, e o espírito daágua, Ahe Itamu, que adquiriram talcontrole sobre esses habitats no final dotempo mítico. Estes dois espíritos guardamseus respectivos domínios, os protegem,tornam seus habitantes férteis e punem osque ameaçam suas formas de vida. Elestambém cooperam como guardiões dacomida dos roçados. O ponto relevante é,obviamente, que os habitats de terra e água,e seus produtos, não são possuídos porhomens. Tal controle não é parte do escopodo poder político na sociedade piaroa, umpoder que seria visualizado pelos Piaroacomo de fato muito perigoso. O líder xamãnão tem poder para ordenar o trabalho deoutros. Durante as grandes cerimônias queele oferece, convida os outros paratrabalharem para ele e para a suacomunidade, mas jamais ordena quetrabalhem. É sua obrigação controlar e lutarcontra as forças selvagens da cultura queadentram a sociedade, mas não controlar (aomenos abertamente) o comportamentosocial de indivíduos de sua comunidade;cada qual deve administrar seu própriocontrole pessoal, um assunto privado em quese deve manter domesticadas as forças dacultura e as capacidades para tais no interiorda pessoa.

PPPPPOLÍTICAOLÍTICAOLÍTICAOLÍTICAOLÍTICA, , , , , AFINIDADEAFINIDADEAFINIDADEAFINIDADEAFINIDADE EEEEE CLCLCLCLCLASSIFICAÇÃOASSIFICAÇÃOASSIFICAÇÃOASSIFICAÇÃOASSIFICAÇÃO

MÍTICAMÍTICAMÍTICAMÍTICAMÍTICA

A mensagem mítica, assim pensam osPiaroa, equaciona a sociedade e a suapossibilidade com a afinidade, com acombinação de itens diversos. A sociedade

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existe apenas por meio da interação deentidades e forças que são potencialmentemuito perigosas umas às outras: a relaçãoentre doadores e tomadores de esposas é pordefinição perigosa, uma vez que os afins sãoestranhos capazes de atos canibais e de furtosterríveis. O perigo intrínseco à relação entreafins só pode ser evitado por meio dareciprocidade apropriada. Ao reconhecerque a sociedade só pode existir pela interaçãodas diferenças, de seres distintos uns dosoutros, e ao compreender que tal misturacarrega em si bastante riscos, os Piaroadespendem boa parte de sua energia social eestrutural no mascaramento dos princípiosde diferença buscando alcançar o estado desegurança. Essa observação deve, nãoobstante, ser tomada com cautela, uma vezque não pode dar conta do comportamentopiaroa como um todo. Assim, se as relaçõesafins são veladas no interior da casa comunal(itso´de), elas são acentuadas na relação entrecasas no interior de um território político(Overing Kaplan, 1984).

Ao manter a visão de que a sociedadeganha existência apenas por meio dacoexistência de forças dessemelhantes, arelação jurídica na sociedade piaroaconcentra-se na figura dos afins (in-laws), eas relações políticas são expressas pelo idiomada afinidade (Overing Kaplan, 1975).Compete-se politicamente com alguémidentificado a uma categoria de afinidade,mas jamais com um “pai”, “irmão” ou“filho”. Como escrevi certa vez (1975), umhomem piaroa situa-se como afim – nacategoria de “sogro”, “cunhado” ou “genro”– em relação à maioria dos homens nointerior de seu território. Classificando-osde tal maneira, ele pode competir com elescomo xamãs, assim como negociarcasamentos para seus filhos e germanos. Embatalhas políticas, no interior do território,

símbolos cosmológicos de poder fornecemas condições semânticas por meio das quaisos competidores estruturam a suacompetição. Como xamãs, eles podem,valendo-se das propriedades dosalucinógenos, transformar-se, como fizeramos demiurgos no tempo mítico: eles tambémpodem se transformar em gaviões, sucuris,cascavéis, onças, trovões, crocodilos eurubus. Cada tipo de transformaçãodistingue um tipo e uma ordem específicosde poder. Algumas dessas transformaçõesremetem a Kuemoi e, como tais, consistemem manifestações de poder ao mesmo tempomalignas e descontroladas. Outras, queimplicam o poder de voar e não o de devoraroutrem, remetem a Wahari. Na competiçãopolítica, o oponente, também um“cunhado”, “sogro” ou “genro”classificatório, é referido pelos atributos deKuemoi, pois que seu poder é tido comodescontrolado: faz uso de alucinógenosvenenosos, transforma-se em sucuri – areencarnação de Kuemoi na terra – ou emonça – ao mesmo tempo o animal deestimação de Kuemoi e sua manifestaçãocomo caçador. O oponente é também vistocomo um feiticeiro que envia doenças fatais,tornando sua ação canibal, como era a deKuemoi. Vale lembrar que, entre os Piaroa,a doença é considerada sempre como umprocesso de ser devorado (ver OveringKaplan, 1982).

Esse uso da classificação mítica naestruturação das batalhas de poder entrecasas dentro de um território comum nãoimplica um ordenamento metafórico emnatureza, antes remete a estados metafísicosespecíficos. Sob efeito de drogasalucinógenas, um xamã vê-se transformadoem um belo Wahari, e vê o seu oponentetransformado em Kuemoi. O xamãcompreende tais visões como uma verdade

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literal, e age com eles desta forma. Nesseponto, a metáfora converte-se em umaontologia que afirma explicitamente que o“fantástico” é verdadeiro.

Tal linguagem – e as transformações –extraída das classificações dos elementos eforças do cosmo como existiam no tempomítico não deve ser usada para estruturarrelações dentro da casa: não se deve jamaisfrisar a diferença essencial de um afim, umavez que se vive com ele. Se a competiçãopolítica na casa torna-se séria, esta sofreimediatamente uma fissão. Assim, o afimpotencial é Kuemoi, o canibal, o portadorde forças culturais indomáveis. Com ele,nenhuma troca matrimonial é controlada eos laços de afinidade são fracos. O doadorde doenças, o canibal, é aquele com quemse trava uma relação de reciprocidadeincompleta ou, ainda, negativa. A relaçãoentre afins efetivos que vivem juntos na casanão deve ser modelada pela relação vigentena sociedade mítica entre dois afinsarquetípicos, mutuamente inimigos (verOvering Kaplan, 1984).

Os Piaroa classificam suas relações comos outros em um contínuo que se move doperigo à segurança, da diferença àidentidade. Essa classificação, que supõeuma escala crescente de empatia social, nãoé tão incomum. Tomemos alguns aspectospertinentes sobre essa discussão sobre aclassificação de outros via categorias quedenotam graus vários de distância eproximidade social. As relações maisdistantes e perigosas são aquelas comanimais e membros de outras tribos, comquem os Piaroa nutrem uma relação depredação: o perigo é sempre o da morte,tanto para os Piaroa, por meio de suas ações,como para os animais e os estrangeiros (viafeitiçaria). Porque eles têm o direito de mataros membros de ambas as categorias e

enfraquecê-los, os Piaroa estão em umarelação de não-parentesco com eles. Eles nãosão chamados “afins”. A maior parte dasmortes entre os Piaroa são causadas porfeiticeiros de outras tribos, e a vingançapiaroa a tais mortes se dá por meio daquiloque os jovens chamam de “a bomba piaroa”,uma mágica de vingança poderosacombinando venenos potentes e certaspartes da anatomia da vítima que sãoqueimadas em conjunto e enviadas pelafumaça e pelo canto ao território dofeiticeiro, onde resultam mortes em massa.A relação, em exceção daquela com oparceiro comercial ocasional, é dereciprocidade negativa acentuada.

Menos perigosas, porém aindaameaçadoras, são as relações com membrosde outros territórios piaroa. Nesse caso, nãohá uma relação natural de morte ou detransmissão de doença, o perigo é, isso sim,o de morte social, e a relação permanececomo reciprocidade negativa. Quando seviaja para outro território, leva-se consigoalimentos que não podem ser trocados e,ainda pior, uma esposa. Com exceção daparceria formal de comércio, as demandaspor reciprocidade não podem ser atendidas.Para não ter de enfrentar um problema dessetipo, os indivíduos com quem se interagedevem ser sempre classificados como“parentes”, e não “afins”, uma classificaçãoque carrega a conotação da extremasegurança mediante as ameaças de uma terraestranha, da comida estranha e de pessoasestranhas.

No interior de um território, ondehomens classificam a maior parte homensde outros grupos locais como afins, hásempre a possibilidade de conquistar comeles uma relação de reciprocidade e deestabelecer uma relação confiável de troca.Tais transações com afins potenciais são por

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definição de reciprocidade incompleta, e omaior perigo é o de que tais relações possamdegenerar-se da mesma maneira que asrelações intertribais e interterritoriais,relações de reciprocidade negativa.

As relações mais seguras ocorrem,obviamente, no interior de um grupo local,tanto com os afins como com os parentes quelá vivem. A casa, não obstante, não pode existircomo unidade autônoma, pois tanto o poderxamânico como a troca matrimonial implicama presença de outras casas, apesar da vigênciade uma ideologia que preza por um estado deautonomia. A classificação de todos os homensdentro do território como afins pode serparcialmente compreendida comoreconhecimento dessa dependência: é apenaspor meio da afinidade que a reciprocidadepode ser ativada. Vê-se, pois, que o contínuoque se move do perigo para a segurança e dadiferença para a identidade, move-se ao mesmotempo da reciprocidade negativa àreciprocidade potencial e, finalmente, àreciprocidade completa – a intensidade dessaúltima relação é tão extrema que quase seaproxima da empatia que Sahlins (1972)denomina “reciprocidade generalizada”. Asegurança com o afim efetivo é parcialmenteadquirida por meio de reciprocidade adequada,e é por essa razão que a troca matrimonial entreos Piaroa é firmemente baseada sobre umprincípio de reciprocidade levado adiante pormeio da repetição em série e múltipla de laçosafins.....

O O O O O CASAMENTCASAMENTCASAMENTCASAMENTCASAMENTOOOOO ENDOGÂMICOENDOGÂMICOENDOGÂMICOENDOGÂMICOENDOGÂMICO EEEEE AAAAA AFINIDADEAFINIDADEAFINIDADEAFINIDADEAFINIDADE

MÚLMÚLMÚLMÚLMÚLTIPLTIPLTIPLTIPLTIPLAAAAA66666

Para os Piaroa, a sociedade ganhaexistência com a associação de elementos

dessemelhantes: tanto a história mitológicacomo a ordenação cosmológica veiculamessa mensagem (ver a discussão acima sobreos clãs mortuários, onde não se vive nemcom afins nem com cultura). Essacompreensão sobre a natureza das coisas nomundo social e cultural é justamente o queos Piaroa cuidam de ignorar em suas relaçõesno interior da casa comunal. Se os Piaroausassem a classificação mítica dos domíniosterrestre e aquático como linguagem paraordenar suas trocas matrimoniais – como,ao contrário, se dá no Noroeste Amazônico– ou mesmo a distinção entre “alto” e“baixo”, subjacente ao seu sistema demetades, eles afirmariam abertamente queos afins efetivos são criaturas essencialmentediferentes umas das outras e, como tais,podem devorar-se mutuamente. Assim, paraignorar tais divisões haveria um métodocapaz de solapar os perigos da diferença,mascarar os elementos e forças pelos quais asociedade é composta ou qualquer dualismono qual deve consistir. Os Piaroa nãopretendem aceitar as implicações advindasdo reconhecimento da diferença essencial,e é por meio de seu ideal muito forte decasamento endogâmico que eles são capazesde atenuar a necessidade da diferença,essencial à vida social, no grupo local. Odispositivo mais óbvio a que eles lançammão para ignorar a diferença, tendo em vistaa garantia da segurança (sua finalidade), é ocasamento com um aparentado próximo ou,ao menos, bem conhecido que vive namesma casa. Esse ideal de endogamia degrupo local, tão enfatizado pelos índiosguianeses, não é senão o outro lado damoeda do medo do estranho, igualmenteenfatizado (ver, por exemplo, Rivière 1969,Henley 1979).

Escrevi em outra ocasião (1973 e 1975)que as maiores casas entre os Piaroa, dentro6 Ver Overing Kaplan (1981).

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das quais habitam quase todos os membrosde diferentes parentelas conjugais, aproximam-se, ao menos em um nível ideológico, do idealde uma parentela endogâmica. A grande ficçãoé, certamente, que a sociedade como grupoendogâmico isolado, que se replica no tempoé constituída da associação de itens“semelhantes”, seguros uns aos outros, e nãoperigosos, como os afins “dessemelhantes”.Aqui, vislumbra-se, entre os Piaroa, umadialética interessante entre a sociedade comomundo ideal de parentelas endogâmicas e asociedade que inclui o todo mais amplo: afinspotenciais e oponentes políticos.

O casamento endogâmico não implicaapenas segurança, mas também manutençãode todos em casa como aparentadospróximos, o que torna fluida a distinçãoentre “parentes” e “afins”; trata-se de umcasamento reciprocado, que faz reafirmar oslaços prévios de afinidade no grupo. Nateoria piaroa, quanto maior o número detrocas matrimoniais decretadas entre doisafins, mais segura a relação e mais unificadoo grupo como unidade de cognatas. Este éum tipo de troca matrimonial freqüentementeencontrado nas Guianas (ver Rivière 1969,Henley 1979, Arvelo-Jiménez 1971), emque a viabilidade da relação de afinidade, aaliança política e a unidade do grupo sãocorrelacionados com o número de trocasmatrimoniais estabelecidas entre homensdentro do grupo local. Teoricamente, areduplicação de qualquer laço de afinidadedentro do grupo – como quando umconjunto de irmãos se casa com umconjunto de irmãs – é ao mesmo tempo umcasamento replicado e reciprocado, do pontodo grupo como um todo. No interior deum grupo endogâmico, o laço matrimonialnão precisa ser diretamente reciprocadocomo na troca de irmão/irmã: qualquercasamento dentro do grupo é ao menos

indiretamente reciprocado, como na trocaindireta, à medida que todo homem nointerior do grupo recebe uma esposa dedentro do mesmo. Em certo sentido, pormeio do casamento endogâmico, a próprianoção de troca matrimonial, e não apenasos seus perigos, foi apagada. Ironicamente,é por meio da troca matrimonial,especialmente a desempenhada dia após diano interior da casa, o dom continuamenteretornado, que as diferenças são anuladas ea segurança readquirida. Se visualizarmos areciprocidade, como faz Lévi-Strauss(1969:84), como meio mais imediato deintegrar a oposição entre o self e os outros,os Piaroa, pelo viés do casamentoendogâmico, têm levado esse princípio aoseu extremo lógico, visto que aí o self e osoutros não são apenas unificados, mastornados todos de um só tipo.

Assim, a sociedade é, para os Piaroa,equacionada com a afinidade, a conjunçãode itens diversos (afins) e forças culturais. Aendogamia se torna, para eles, uma filosofiada sociedade, um “meio caminho”, quesupera até certo ponto os perigos do estadosocial, e um ditado que sustenta que asociedade só pode existir na conjunção deelementos perigosos e diferentes. Em suma,a endogamia como ideal expressa o medopiaroa em relação ao estado social, tornando-se, então, um princípio subjacente a umasociedade suspeita de sua própria naturezasocial.

CCCCCONCLONCLONCLONCLONCLUSÃOUSÃOUSÃOUSÃOUSÃO: : : : : ESTRESTRESTRESTRESTRUTURASUTURASUTURASUTURASUTURAS ELEMENTELEMENTELEMENTELEMENTELEMENTARESARESARESARESARES DEDEDEDEDE

RECIPRRECIPRRECIPRRECIPRRECIPROCIDADEOCIDADEOCIDADEOCIDADEOCIDADE77777

Acredito ser possível afirmar de maneirageral sobre os ameríndios da floresta tropical

7 Ver Overing Kaplan (1981).

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que suas noções de reciprocidade, adequadae inadequada, impõem uma filosofia darelação entre coisas que são as mesmas e darelação entre coisas que são distintas entresi. É sob essa perspectiva que vejo ser possívelalcançar uma compreensão mais apurada daproliferação dos dualismos no interior dessasculturas, a despeito de seus conteúdos oudas maneiras pelas quais eles são expressos.Há entre os Piaroa a expressão cosmológicade uma charada, que creio ser geral aosíndios das Terras Baixas Sul-americanas e deconsiderável importância para acompreensão de certas ambigüidades noordenamento dos seus universos sociais, quealega a necessidade das diferenças para a vidasocial – em última instância, diferenças nasforças da cultura. Trata-se, porém, de ummundo onde a conjunção de tais diferençasacarreta perigo, ao passo que a convivênciade elementos e forças semelhantes implicasegurança e não-sociedade, ou seja, umaexistência a-social.

Tanto os Bororo como os Jê evitam osperigos da diferenciação social por meio detransações rituais elaboradas entre metades,que estabelecem “vias rituais” entre gruposde nominação (ver, por exemplo, Crocker1979, DaMatta 1979, Lave 1979 e Melatti1979). Por meio de inversões comuns a essessistemas, em que o “eu” se torna o “outro” eo “outro” se torna o “eu” – onde o chefe deuma metade é escolhido pelo outro ou arepresentação dos totens de uma metade éencenada pelos outros –, a identidade e adiferença entre categorias culturais (e sociais)tornam-se tão indistintas como nocasamento endogâmico guianês. Em cadauma dessas sociedades, os princípios de trocasão até certo ponto princípios metafísicos,em que a ênfase é dada menos na obtençãode um tipo particular de formação grupal,mas na aquisição de relações apropriadas

entre seres de categorias vistas comosignificativamente diferentes, necessáriosuns aos outros para que a sociedade exista.Tais princípios de troca expressam tambémuma filosofia política particular, que alegaque nenhum homem ou grupo pode terposse exclusiva das forças da cultura, ou deum conjunto destas, tampouco pode exercerum controle total sobre os seus produtos.

Se as distinções expressas referem-se àlógica classificatória de nomes, aos atributossimbólicos de habitats cósmicos, ou, comono caso clássico, a “parentes” e “afins” ou“casáveis” e “não-casáveis”, como ditado poruma regra prescritiva de casamento; em cadaexemplo, tais contrastes são empregados naelaboração de trocas que são claramente“elementares” em sua forma – contudo, umaelaboração que é, em ultima instância,derivação cultural, e não social. J. C. Crocker(1979:296-7) comenta, no que diz respeitoà elaboração de estruturas entre os Jê eBororo, que categorias encontradas emoutras fontes de distinções, que não aquelasadvindas de uma regra prescritiva decasamento, “podem possuir precisamente asmesmas implicações inexoráveis para ainteração social, que deve exprimir ummodelo lógico como a mais rígida estrutura‘ elementar prescritiva’”. Em vez de “sistemaselementares de parentesco e casamento”, épossível remeter-se, de maneira mais geral,a “estruturas elementares de reciprocidade”e, nesse sentido, tratar as sociedadesameríndias das Guianas, do NoroesteAmazônico e do Brasil Central como algunsdos muitos exemplos de uma estruturabásica.

As implicações para a vida social indígenado ordenamento das estruturas elementaresde reciprocidade apontam que a sociedadeem si torna-se uma lógica para a manutenção

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de um balanço, uma relação apropriadaentre itens culturais no universo que permiteà sociedade perpetuar-se. A reciprocidadeem si pode ser, assim, igualmente vista comoum modo particular de auto-perpetuação,não de grupos – que podem impor ocontrole coercitivo tanto de pessoas comode recursos escassos —, mas de relações, umaperpetuação que se contrapõe aodesenvolvimento de tal controle.

BBBBBIBLIOGRAFIAIBLIOGRAFIAIBLIOGRAFIAIBLIOGRAFIAIBLIOGRAFIA

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