recenÇões

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RECENSÕES SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, tradução, prefácio, nota biográ- fica e transcrições de J. Dias Pereira, vols. I e II, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991 (vol,I: livro I a VIII), 1993 (vol.II: livro IX a XV), [1442]pp. Digna dc registo, no âmbito das publicações de interesse filosófico em Portu- gal, é a iniciativa de pôr à disposição do leitor de língua portuguesa uma das obras mores da história da cultura e da filosofia no Ocidente, como é De Civitate Dei de Santo Agostinho. A recente edição dos primeiros quinze livros desta obra, agrupados cm dois volumes c vertidos para português, dá-nos oportunidade não de realçar alguns aspectos da sua apresentação, como de articular diversos itinerários dc leitura sobre o seu conteúdo filosófico. 1. Características principais da edição Como convém à publicação dc uma tradução cientificamente acreditada dc textos antigos, o original latino utilizado neste caso é identificado logo no início de cada vol.: trata-se do texto da 4 a ed. de B. Dombart e A. Kalb (confrontado pari passu com o da ed. beneditina de S. Mauro, de acordo com informação acrescentada no limiar do vol.II). Quanto ao labor desta tradução, importa reconhecer que tal constitui uma tarefa ingente, atendendo às dificuldades que sobrevêm pela erudição e pela elaboração retórica do estilo de Santo Agostinho, como denuncia, no prefácio, o próprio tradutor. São, pois, compreensíveis as opções estratégicas, por este assumidas, de desdobramento real ou apenas aparente (através da disposição gráfica) dos extensos c densos períodos do texto latino em períodos c mesmo

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  • RECENSES

    SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, traduo, prefcio, nota biogr-fica e transcries de J. Dias Pereira, vols. I e II , Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1991 (vol,I: livro I a VIII), 1993 (vol.II: livro IX a XV), [1442]pp.

    Digna dc registo, no mbito das publicaes de interesse filosfico em Portu-gal, a iniciativa de pr disposio do leitor de lngua portuguesa uma das obras mores da histria da cultura e da filosofia no Ocidente, como De Civitate Dei de Santo Agostinho. A recente edio dos primeiros quinze livros desta obra, agrupados cm dois volumes c vertidos para portugus, d-nos oportunidade no s de realar alguns aspectos da sua apresentao, como de articular diversos itinerrios dc leitura sobre o seu contedo filosfico.

    1. Caractersticas principais da edio

    Como convm publicao dc uma traduo cientificamente acreditada dc textos antigos, o original latino utilizado neste caso identificado logo no incio de cada vol.: trata-se do texto da 4a ed. de B. Dombart e A. Kalb (confrontado pari passu com o da ed. beneditina de S. Mauro, de acordo com informao acrescentada no limiar do vol.II).

    Quanto ao labor desta traduo, importa reconhecer que tal constitui uma tarefa ingente, atendendo s dificuldades que sobrevm pela erudio e pela elaborao retrica do estilo de Santo Agostinho, como denuncia, no prefcio, o prprio tradutor. So, pois, compreensveis as opes estratgicas, por este assumidas, de desdobramento real ou apenas aparente (atravs da disposio grfica) dos extensos c densos perodos do texto latino em perodos c mesmo

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    pargrafos mais curtos na verso portuguesa. , tambm, admissvel, embora quase sempre discutvel, o uso de palavras diferentes em portugus para exprimir a variao de sentido de um mesmo termo latino em ocorrncias distintas, como acontece, alis, noutras tradues em lnguas modernas. , ainda, aprecivel o cuidado de reproduzir, em notas de rodap, as citaes em latim de autores sagrados ou profanos, que faz Santo Agostinho ao longo da sua obra. Bem dispensado seria, no entanto, esse cuidado por meio de uma edio bilingue, que teria a bvia vantagem dc permitir a comparao imediata da traduo com o original na sua integralidade, apesar da onerosa desvantagem da multiplicao dos volumes.

    No se sabe, alis, qual o critrio que preside diviso em volumes desta edio. Um critrio plausvel seria o plano da obra que Santo Agostinho expe numa carta a Firmo, presbtero de Cartago. Ainda que a traduo desta carta venha inserida numa seco preliminar dc Transcries, esta edio no segue as instrues de Agostinho quanto diviso em volumes. Tais instrues recomendam duas hipteses alternativas para esta diviso: ou em dois volumes, de modo que o primeiro contenha os dez primeiros livros e o segundo, os doze restantes; ou em cinco volumes, de modo que os dez primeiros livros venham agrupados cinco a cinco e os doze restantes, quatro a quatro. Ora, nenhuma destas alternativas aquela que esta edio observa, uma vez que congrega no primeiro volume apenas os oito primeiros livros, no segundo volume, os sete livros seguintes, fazendo prever, para um terceiro volume, a reunio dos ltimos sete livros. Esta diviso, constituindo uma opo diversa daquelas que o autor da obra sanciona, mereceria uma justificao suplementar. Seria tambm muito til para uma rpida localizao da leitura, que cada pgina comportasse a indicao cimeira do livro c do captulo a que pertence, prevenindo assim eventuais lacunas na identificao das citaes da obra de Santo Agostinho. Para uma orientao da leitura em to vasta obra, esta edio inclui, todavia, um instrumento valioso: o ndice dos Captulos, que reproduz os sumrios dispostos no incio dc cada livro e de cada captulo em particular. Os sumrios dos livros procedem da ed. beneditina, enquanto que os sumrios dos captulos traduzem os breviculi que acompanham o plano da obra na carta de Agostinho a Firmo.

    Para introduo leitura da obra, esta edio oferece, entretanto, uma Nota biogrfica sobre Santo Agostinho, redigida pelo tradutor Joo Dias Pereira com base na Vita Augustini de Possdio. Trata-se de uma opo de introduo que discutvel, embora manifeste, desde logo, alguns aspectos positivamente apreci-veis. Antes de mais, tal nota biogrfica informa sobre o motivo histrico que deu origem elaborao desta obra de Santo Agostinho: referimo-nos obviamente ao saque de Roma pelas tropas de Alarico em 410, um episdio trgico do declnio do Imprio, que muitos julgaram devido ao abandono dos cultos pagos e oficializao do cristianismo como religio imperial. Contra esta viso dos acontecimentos, decide o bispo de Hipona escrever a obra que nos ocupa e que mostra assim satisfazer um propsito apologtico. Para alm de trazer evidn-cia este propsito, a nota biogrfica sobre o autor aduz profcuos elementos

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    informativos, como sejam frequentes anotaes biogrficas sobre figuras contemporneas de Agostinho ou de algum modo marcantes na sua vida e, muito especialmente, uma cronologia completa das suas obras1. Por fim, o teor pro-priamente biogrfico da nota introdutria em destaque sugere-nos duas observa-es, uma concernente s fontes e outra, imagem dominante de Agostinho que nela ressalta. Por um lado, gostaramos de ver acrescido o contributo de Confes-sionum de Santo Agostinho em comparao com a fonte preferencial e explici-tamente assumida da Vita Augustini dc Possdio. Ainda que aquela obra aparea por vezes referida em notas de p de pgina, ela parece no desempenhar seno um papel de instrumento paralelo de confirmao pontual. Por outro lado, cabe-nos perguntar: qual a imagem de Agostinho que sobressai na nota biogrfica de Joo Dias Pereira, inspirada em Possdio? No a expresso do homem inte-riormente torturado em via de converso, como emerge em Confessionum. Ser, porventura, a imagem combatente de Agostinho catlico em confronto aberto com o maniquesmo, com o donatismo e o pelagianismo; ser, porventura, a imagem resistente de Agostinho romano perante a desagregao do Imprio atingindo as provncias de frica. No obstante a pertinncia destas facetas biogrficas, gostaramos ns de realar a imagem persistente de Agostinho filso-fo, que no deixa de se reflectir no largo alcance de uma obra que nasce to comprometida com o seu mundo prximo, como a A Cidade de Deus.

    2. A re levncia f i losfica da obra

    E verdade que esta obra contempla uma floresta de assuntos de diversificado interesse histrico-cultural, o que no redunda cm disperso porque apela integrao num amplo horizonte filosfico-teolgico. Este prov compreenso da Histria, entre uma origem primordial - a Criao - e um fim ltimo - a reali-zao supra-histrica e escatolgica da Cidade Celeste. So estes os largos parmetros de compreenso da Histria, que Agostinho contrape queles que, limitando-se a tecer relaes de causa a efeito entre acontecimentos prximos, atribuem cristianizao de Roma os infortnios da sua histria recente. Para tal compreenso, o autor convoca toda a sua erudio histrica, filosfica e exeg-tica. Compete-nos salientar, em especial, o papel que a filosofia desempenha na efectivao do plano compreensivo de A Cidade de Deus, o que sobressai nos primeiros quinze livros j publicados nos volumes I e II da edio portuguesa em curso. Podemos considerar que duplo o papel que a filosofia obtm na elabora-o desta obra: por um lado, a filosofia aparece com uma funo extrnsecamente mediadora entre a crtica das religies pags e a apologia do cristianismo; por outro lado, filosofia exerce uma funo intrinsecamente estruturante no apura-mento e dilucidao de problemas filosficos que o cristianismo suscita ou revisita em virtude do confronto quer com a realidade premente quer com outras mundividncias. E em conformidade com esta dupla funo da filosofia que arti-culamos os seguintes motivos de interesse para uma leitura filosfica da obra.

    1 Vd. Nota biogrfica in A Cidade de Deus, v.I, pp.[39]-[45].

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    2 . 1 . O valor da filosofia

    Ainda que tomada em herana dos gregos pelos romanos, a filosofa surge declaradamente, em A Cidade de Deus, como um valor universal: mais dignos de culto do que os deuses pagos, seriam os filsofos que descobriram coisas teis felicidade e dignidade da vida humana2. Determinante para o sentido da felici-dade c da dignidade do homem , para Santo Agostinho, o conhecimento de Deus. E, portanto, natural que o mesmo autor aprecie o valor relativo das diver-sas filosofias conhecidas, em funo, sobretudo, da teologia que comportam3. Com efeito, depois de haver apresentado a tripla diviso da teologia segundo M.T. Varro - a teologia fabulosa dos poetas, a teologia civil do povo, a teologia natural dos filsofos4 - c de haver criticado longamente as duas primeiras5, o bispo de Hipona debrua-sc finalmente sobre a teologia natural dos filsofos6. A mais elevada teologia natural determina a melhor filosofia, a dos platnicos 7. Por conseguinte, no cabe s filosofias pr-platnicas seno uma brevssima recenso crtica 8, enquanto que Plato c, principalmente, alguns autores da sua linhagem filosfica, como Apuleio, Plotino e Porfrio, merecem do pensador patrstico mais demorada ateno. A revisitao augustiniana de Plato pode ser desvalori-zada na medida em que no resulta de uma interpretao directa dos textos, como ressalta da anlise tripartida da filosofia platnica de acordo com a diviso esti-ca da filosofia, equvocamente atribuda ao prprio Plato 9. Todavia, a conside-rao mais abrangente da filosofia dos platnicos em A Cidade de Deus da maior importncia para a avaliao do prprio platonismo de Santo Agostinho em fase amadurecida do seu pensamento. Se os primeiros textos filosficos de Agostinho acusam acentuada influncia neoplatnica, A Cidade de Deus d testemunho de uma aprecivel distanciao face ao platonismo por via de uma dupla atitude de elogio c de crtica selectiva.

    Aps o elogio, atente-se nas reas da critica. Uma destas reas a da demo-nologia, no mbito da qual Agostinho critica longamente Apuleio 1 0 , sem deixar de comentar Plotino" e Porfrio 1 2 . A demonologia dos platnicos, que visava

    2 Cf. A Cidade de Deus (doravante citada por meio das iniciais CD), v.I, 1,11, cc.VII e XIV, pp.[209]-[2I0], [227M229].

    3 Cf. CD, v.I, l.VIII, c l , pp.[703]-[704]. 4 Cf. CD, v.I, I.VI, c.V, pp.[569]-[572]. 5 Cf. CD, v.I, II.VI e VII. Acerca da interpretao naturalista destas teologas, cf. CD,

    v.I, I.VI, c.VIII, pp.[583]-[585]; 1.V1I, cc .XXVII-XXIX, pp.675]-[683]. 6 Cf. CD, v.I, l.VIII. 7 Cf. CD, v.I, l.VIII, cc.I, V, IX-XI , pp.[704], [713]-[71], [725]-[733]. 8 Cf. CD, v.I, l.VIII, cc.II e III, pp.[705]-[708]. 9 Cf. CD, v.I, l.VIII, cc.IV, VI-VIII , pp.[709]-[711], [717]-[724]; v.II, l.XI, c.XXV,

    p.[1049]. 10 Cf, CD, v.I, l.VIII, cc.XII-XXII, pp.[735]-[764]; v.II, l.IX, cc.III, VI-VIII, XII-XIII,

    XVI, pp.[825]-[826], f833]-[839j, [847]-[852], [859]-[S62]. 11 Cf. CD, v.II, l.IX, cc.X-XI, pp.[843]-[845]. 12 Cf. CD v.II, I.X, cc.IX-XI, X X V I - X X V I I I , pp.[909J-91SJ, [957]-[964J.

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    assegurar a mediao entre os homens e os deuses, contrape o autor patrstico, no s uma angelogia de inspirao b b l i ca 1 3 , como, muito especialmente, a doutrina de Cristo mediador nico entre Deus e os homens 1 4. Outra rea particu-larmente sensvel da crtica selectiva do neoplatonismo , alis, a relao de Cristo com a Trindade: embora concedendo afinidades entre as trs hipstases divinas dos neoplatnicos e a Trindade crist, o bispo de Hipona dirige uma crtica veemente a Porfrio por este rejeitar a incarnao do Filho de Deus 1 5 . Permanecem, entretanto, dois pontos de convergncia ratificada entre Santo Agostinho e o neoplatonismo de Plotino: a doutrina da i luminao 1 6 e a afirma-o de providncia div ina 1 7 . Por fim, a terceira rea relevante da crtica augustiniana ao platonismo a que concerne alma. Para alm de recusar a conotao de Deus com uma alma universal, segundo Varro 1 8 , Agostinho rejeita algumas doutrinas platnicas sobre as almas humanas: a transmigrao e, mesmo, a reen-carnao das almas' 9; a pr-existncia das almas unio com os corpos 2 0; o sentido da unio da alma com o corpo como uma queda, pelo que censura tambm Or genes 2 1 ; a possibilidade de um caminho de libertao das almas sem a mediao dc Cristo 2 2 ; finalmente, a imortalidade da alma separada do corpo, doutrina incongruente com a escatologia da ressurreio 2 3 . , sobretudo, neste domnio da filosofa da alma que o autor de A Cidade de Deus mais se afasta de posies bem platonizantes assumidas em escritos anteriores.

    2.2. Problemas filosficos

    Como acima sugerimos, o papel da filosofia nesta obra no s se afirma pelo privilgio criticamente concedido ao platonismo na mediao entre a cultura pag e o cristianismo, como se exerce na dilucidao de problemas filosficos no horizonte da mundivncia crist. Entre esses problemas, podemos distinguir aqueles que no se originam daqueles que se originam nesta mundividncia. Por um lado, aqueles problemas, que no se originam mas se fazem recolocar e solu-cionar de certa maneira no contexto do cristianismo, so interpelaes constantes

    13 Cf. CD, v.I, I.VIII, c .XXV, p.[779]; v.II, l.IX, cc.XIX-XXIH, pp.[867]-[878]; l.X, cc.VII-VlII, XII , X V - X V I , pp.[903]-[907], [919], [925R930]; 1X1, cc.IX, XI, XIII-X X , X X I X , X X X I I - X X X I V , pp.[1007]-[1010], [1015]-[1016], [10I9]-[1036], [I061]-[1062], [1067]-[1076].

    14 Cf. CD, v.II, l.IX, cc.XV e XVII , pp.[855]-[857], [863]-[864]; l.X, c.XX, p.[939]; l .XI.c .II , pp.[989]-[990].

    15 Cf. CD, v.II, l.X, cc .XXIII-XXIV, XXVIII -XXIX, pp.[945]-[949], [963]-[969]. 16 Cf. CD, v.II, l.X, c.II, pp.[887]-[888]. 17 Cf. CD, v.II, l.X, c.XIV, pp.[923]-[924]. 18 Cf. CD, v.I, l.IV, c.XII, p.[403]; l.VII, cc.VI e XXIII, pp.[623], [661]-[663]. 19 Cf. CD, v.II, l.X, c .XXX, pp.[971]-[973]; l.XII, cc.XXI e XXVII , pp.[l 133]-[1137J,

    [1151]. 20 Cf. CD, v.II, l.X, c .XXXI, pp.[975]-[976]. 21 Cf. CD, v.II, l.XI, c.XXIII, pp.[1043]-[1045]. Vd. tambm l.XIV, c.V, pp.[!247]-

    [1248]. 22 Cf. CD, v.II, l.X, c .XXXII, pp.[977]-[984]. 23 Cf. CD, v.II, l .XIII, cc.XVI-XIX, pp.[l 191]-[1205].

  • 160 Recenses

    da vida humana, que nenhuma expresso verdadeiramente englobante de cultura pode deixar de registar, como sejam o sofrimento e a morte, o mal e a busca de felicidade. Por outro lado, os problemas que o cristianismo especialmente coloca reflexo filosfica so aqueles que os seus prprios temas comportam, dos quais se destacam, nesta obra, a Criao e a Ressurreio, porquanto a Cidade de Deus no s peregrina entre aquele princpio e este fim como determina o sentido dc ambos.

    Dado que o saque de Roma em 410 fora o motivo prximo e funesto desta obra, no de estranhar que esta comece por levantar o problema do sentido do sofrimento, em especial, de causa violenta 2 4 . O problema pode no obter uma soluo imediata e cabal, mas solicita, desde logo, uma tomada de posio acerca dc uma resposta possvel: o s u i c d i o 2 5 . A recusa do suicdio por Agostinho s se compreende, porm, mais adiante na ordem de composio da obra, luz do sentido da morte no horizonte de uma escatologia da ressurreio. Quanto morte, o bispo de Hipona no s nega a necessidade natural pela afirmao de uma origem positiva 2 6 , como distingue uma dupla acepo: uma morte fsica, que significa a separao da alma c do corpo actual; uma morte moral, que traduz a separao da alma e dc Deus 2 7 . E esta segunda acepo de morte, no a primeira, que pode afectar mais profundamente o destino do homem c a conquista da feli-cidade 2 8 . Por conseguinte, esta ltima, para alm de supor a satisfao dc condi-es morais 2 9 , no confina com os limites da vida terrena 3 0, Mas tanto a dupla acepo da morte quanto o sentido da felicidade inscrevem-se no mbito de uma escatologia da ressurreio, que no deixa de colocar, por sua vez, problemas especficos de inteligibilidade, como sejam o da possibilidade e o da natureza de corpos incorruptveis 3 1 .

    A doutrina da ressurreio , entretanto, uma escatologia consistente com a filosofia da Criao. Aquela visa preservar a individualidade c a corporeidade do homem no seu destino ltimo, o que no valeria a pena, se o indivduo e o corpo no fossem instituies benignas da criao primordial. Ora, tambm o tema bblico da Criao gera problemas especficos, dos quais sobressai, nesta obra, o problema da relao entre Criao e tempo, que o autor colheu da controvrsia anti-maniqueia e que mereceu um dos desenvolvimentos mais singularmente augustinianos da filosofia da Criao. No se trata apenas de inquirir sobre a temporalidade ou atcmporalidade do acto de Cr iao 3 2 , como, ademais, dc deci-

    24 Cf. CD, v.I, LI , cc.VIII-X, X X V I I I - X X I X , pp.[117]-[131], [175]-[180]. 25 Cf. CD, v.I, 1.1, cc .XVII-XXVII , pp.[ 149J-[ 174], 26 Cf. CD, v.II, l .XIII ,c .I , p.[1157]. 27 Cf. CD, v.II, l .XIII, cc.II-XII, pp.[l I59]-[l 183]. 28 Cf. CD, v.I, 1.1, c.XI, pp.[133]-[134]; v.II, l.IX, c.XIV, p.[853]. 29 Cf. CD, v.I, l.IV, cc.III e XVIII , pp.[381]-[382], [415]-[416J; v.II, l.XI, c.XII,

    p.[1017]. 30 Cf. CD, v.II, l .IX, c.XXIII, pp.[875]-[878J; l.XIV, c.XXV, pp.| 1311]-[1312]. 31 Cf. CD, v.II, l .XIII, cc .XVII-XXIII , pp.ll 195]-[12I9]. 32 Cf. CD, v.II, l .XI, cc.IV-VIII, pp.[993]-[1006]; l.XII, cc.XIII, XV e XVI, pp.[l 109]-

    [1110],[1115]-[1121].

  • Recenses 161

    dir da compatibilidade ou incompatibilidade desta origem com a multmoda concepo do tempo cclico 3 3 . Mais consentnea com a filosofia da Criao do que com a concepo do tempo cclico , por seu turno, a desfatalizao do mal operada pela reduo da sua origem vontade34. Tal interpretao da origem do mal traz para primeiro plano os temas da vontade e da liberdade, com alguns problemas inerentes. Com a liberdade, advm os problemas da sua compossibili-dade quer com o destino 3 5 quer com a prescincia 3 6. Com a vontade, aduz-se o problema da sua relao com as paixes, determinando o sentido e a ordem destas lt imas 3 7 .

    2.3. As duas cidades

    Contudo, no s a dimenso e a relao destes problemas ilustram a relevn-cia filosfica de A Cidade de Deus, mas tambm e muito peculiarmente o tema da cidade que perpassa ao longo da obra, determinando o sentido da sua unidade. Com efeito, entremeando a reflexo sobre os problemas filosficos, emergem aluses e explicaes acerca de duas cidades, a terrestre e a celeste: aquela de fundao humana e esta de fundao divina, para alm de extensiva aos anjos e aos homens38. Esta uma cidade susceptvel de significao soteriolgica e esca-tolgica, que permite ao bispo dc Hipona uma leitura da incorporao do cristia-nismo na Histria, menos adstrita a efeitos imediatos do que aberta perspectiva de uma aco diacrnica de longa durao. Nessa medida, mais do que a resposta a uma conjuntura histrica prxima, esta obra oferece uma proposta de sentido ltimo para o devir histrico da humanidade, no que revela o seu mais largo alcance especulativo.

    Uma vez que pertence ao tema da cidade veicular esse sentido, importa desta-car a ordem de determinaes que o caracteriza. Ora, sob as significaes teol-gicas discriminadas, h nveis de significao filosfica que constituem funda-mentalmente a noo de cidade celeste em relao com a terrestre. Atenda-se, pelo menos, a dois nveis: o da instituio de uma ordem positiva e o da integra-o numa ordem universal. Por um lado, as duas cidades possuem uma caracte-rstica comum: ambas exprimem, no laos naturais de parentesco, mas vnculos positivos dc vontade. A diferena entre os dois vnculos que separam entre si as

    33 Cf. CD, v.II, I.XII, cc.X, XII, XIV, XVIII, X X e XXI , pp.[1103], [1107], [1111]-[1113], [1125]-[1127], [1131]-[1137].

    34 Cf. CD, v.II, l.XI, c.XVII, p.[1029]; l.XII, cc.III, VI-VIII, pp.[1085]-[1086], [1091]-[1098]; l.XIII, cc.XIV e XV, pp.[l 187]-[1190]; l .XIV, cc.I-IV, XI-XIV, pp.[1233]-[1246], [1271]-[1281].

    35 Cf. CD, v.I, l.V, cc.I-VIII, pp.[463]-[484], 36 Cf. CD, v.I, l.V, cc.IX-X, pp.[485]-[495]; v.II, l.XI, c.XXI, pp.[1037]-[1039]; l.XII,

    cc.XXIII e X X V I I I , pp.[l 141], [1153]-[1154]. 37 Cf. CD, v.I, l.V, cc.XIII-XIV, XIX-XX, pp.[509]-[513], [529]-[534]; v.II, l.IX,

    cc.IV-V, pp.[827]-[832]; l .XIV, cc.VI-X, X V - X X I V , XXVI , pp.[1249]-[1270], [1283]-[1309], [1313]-[1315].

    38 Cf. CD, v.I, l.V, cc.XV-XVIII, pp.[515]-[527]; v.II, l.XI, c.I, p.[987]-[988]; l.XIV, cc.I e XXVIII , pp.[1233], [1319]-[1320]; l.XV, cc.I-VIII, pp.[l323]-[ 1350].

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    duas cidades concerne relao entre a vontade e as paixes, diversamente configurada no extremo amor de si, prprio da cidade terrestre, e no extremo amor de Deus, prprio da cidade celeste. Por outro lado, as duas cidades coexis-tem numa ordem universal ou providencial, que nenhuma ordem subordinada poder infringir. O horizonte de uma ordem universal uma exigncia eminen-temente filosfica que se faz sentir desde os primeiros textos de Santo Agostinho c que no abandonada nesta obra de maturidade, nela aflorando com significa-tiva frequncia 3 9. A Cidade de Deus no deixa, porventura, de corresponder a essa mesma exigncia com respeito s desordens do mundo humano.

    Maria Leonor Xavier

    MALCOLM SCHOF1ELD, The Stoic Idea of the City, Cambridge/ /N. York/Port Chester/Melbourn/Sidncy, Cambridge University Press, 1991, pp. xii + 164

    1. A obra visa a reconstituio da filosofia poltica dos primeiros esticos, tendo como ponto de partida a anlise da Repblica de Zeno de Cicio (sc. IV-- I I I a.C.) e a reelaborao dos seus contedos fundamentais por parte de Crisipo (sc. I I I a.C), focando e contextualizando a recepo, mais ou menos polmica, de que esta foi objecto no seio do estoicismo, assim como entre os seus crticos.

    Na introduo, o estudo dos esticos mais antigos comparado com o dos pr-socrticos, quer nas dificuldades de que se rodeia, quer no fascnio que exerce. No que toca ao primeiro aspecto, o desaparecimento dos escritos torna a investigao estritamente dependente das fontes doxogrficas e dos diferentes ecos que as respectivas doutrinas foram tendo, veiculados por autores de forma-o heterognea e de credibilidade varivel. No que respeita ao segundo aspecto, o encanto de que se reveste uma pesquisa deste tipo tem a ver com o interesse pelas origens c, nessa perspectiva, a filosofia poltica estica representa, ao mesmo tempo, "uma morte e um nascimento" (p. 2). Com efeito, o autor prope-se demonstrar "como Zeno e Crisipo criaram as condies intelectuais para o termo da filosofia poltica no estilo clssico, republicano ou comunitrio, de Plato e de Aristteles, c para o comeo da tradio da lei natural no pensamento poltico" (ibid.), destacando nesse percurso dois momentos cruciais: "Zeno em dialctica com Plato, e Crisipo na exegese de Zeno" (ibid.). Dito por outras palavras, trata-sc de uma evoluo radical da filosofia poltica que deixa de se circunscrever ao horizonte da polis para se desenvolver em torno da ideia de direito natural.

    39 Cf. CD, v.I, l.V, cc.XI, XXI-XXII , pp.[497]-[498], [535]-[538]; v.II, l.X, cc.XIV e XV, pp.[923]-[926]; l .XI, cc.XVI, XVIII , XXI-XXII , pp.[ 1027]-[l028], [1031]-11032], [1037]-[1042]; I.XII, cc.IV-V, XIX, pp.[1087]-[1089], [1129]-[1130]; l.XIV, c .XXVII, pp.[1317]-[1318].