receÇÃo de camÕes na literatura inglesanlstore.leya.com/caminho/camoes/imagens/verbete_07.pdf ·...

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que esclarecem de modo interessante a sua perso- nalidade, foram utilizadas pelos biógrafos, mas mereceriam ser traduzidas. Ao contrário de Pessoa, Camões ainda não tem a honra de figurar entre os autores da prestigiosa Biblioteca da Pléiade. Em setembro de 2009, a Internet anuncia 18 600 páginas francófonas para Camões, mas 65 200 para Pessoa. Portanto, ainda fica muito por fazer no século XXI… Mas Camões tem leitores entusiastas. No blog Nova Folha de Alfred Teckel, em setembro de 2005, lê-se o seguinte comentário: «Camões é definitivamente um gigante das letras mundiais, o equivalente de um Shakespeare, um Goethe ou um Cervantes. E um gigante essencial, que é preciso ler e reler, sem receio, por ser tão bela a obra dele, e bastante fácil de ler. Não há tempo a perder, para os que não o conhecem o descobrirem, e para os outros mergulharem de novo nele com delícia.» BIBL.: BISMUT, Roger, «Camões en France», Arquivos XVI, Paris, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 1981, pp. 723-753; GALLUT-FRIZEAU, Anne, Camões en France (1600-1860), Thèse pour le Doctorat d’Etat, Université Sor- bonne Nouvelle, Paris III, 1972; MARTOCQ, Bernard, «Le nau- frage de Sepúlveda dans une pièce française du XVII e siècle: Les Portugaiz infortunez », in Vents du Large, Paris, Presses Sorbonne Nouvelle, 2002, pp. 123-139. Anne-Marie Quint RECEÇÃO DE CAMÕES NA LITERA- TURA INGLESA. Enquanto dados históricos da cultura recetora, condicionados por fatores con- junturais de ordem política, social, económica, religiosa, diplomática e militar, os contributos britânicos para a internacionalização de Camões abrangem não só traduções, adaptações e ensaios de caráter histórico, biográfico e crítico, como também produções literárias originais. Mesmo se nos cingirmos apenas a obras impressas até mea- dos do século XIX, salienta-se o facto de a tradi- ção poética inglesa haver incorporado, com frequência, não só alusões esparsas, mas também marcas de intertextualidade reminiscentes da obra camoniana, dentre as quais enumeramos as mais significativas. A similitude entre Milton e Camões na visão profética do futuro, inserida quase no termo das respetivas epopeias; a objeção de J. Dryden quanto à coexistência do maravilhoso pagão e da teologia cristã em Os Lusíadas ; a tematização da viagem do Gama e seu signifi- cado para a história da Índia, por parte de R. Cumberland; a descrição circunstanciada de uma tempestade marítima num poema célebre de J. Thomson; o facto de W. Bowles glorificar poeti- camente o pioneirismo português na abertura e exploração da carreira da Índia; a perfeição e per- vivência dos sonetos camonianos, considerados por W. Wordsworth dignos de figurar entre os mais inspirados da modernidade europeia; a importância atribuída pelo círculo de Lord Byron à relação entre a genialidade artística e os desven- turados amores de Camões e D. Catarina, episó- dio predileto da geração romântica que seria transposto nas versões de F. Hemans e, mais tarde, desenvolvido ao gosto da exuberância vito- riana, em textos como «Catarina to Camoens» e na sequência lírica, Sonnets from the Portuguese (1850), ambos de E. B. Browning. A despeito desta variedade temática, a obser- vância de imperativos editoriais impõe-nos, limi- narmente, duas restrições. Trataremos, aqui, de modo mais seletivo do que exaustivo, a receção inglesa da produção épica e lírica de Camões, com relevo para alguns textos traduzidos que, sintomáticos da sua época, lograram exercer influência mais marcante e duradoura sobre a posteridade. Para tanto, limitaremos geografica- mente o nosso campo ao horizonte britânico, ati- tude tanto mais redutora quanto é certo que, em nossos dias, os estudos anglísticos se definem em sentido tão lato que abrangem também a magni- tude da cultura norte-americana e de outras litera- turas, dispersas por territórios outrora integrados no império colonial anglófono. A primeira tradução inglesa d’Os Lusíadas por R. Fanshawe (1655) radica no contexto histó- rico duplamente complexo dos meados do século XVII. Por um lado, Portugal travava ainda a Guerra da Restauração e intensificava contactos diplo- máticos em Londres, tendentes a reforçar o apoio luso-britânico. Por outro, a Inglaterra vivia as sequelas dos graves litígios entre a Coroa e o Par- lamento, responsáveis pelo protetorado de Cromwell e pela Guerra Civil que precedeu a Restauração monárquica (1660). Partidário da causa régia, diplomata, literato e lusófilo, Fan- shawe situa-se na esteira de ambos os conflitos, pois não só participou nas negociações do casa- mento de D. Catarina de Bragança com Carlos II RECEÇÃO DE CAMÕES NA LITERATURA INGLESA 806

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que esclarecem de modo interessante a sua perso-nalidade, foram utilizadas pelos biógrafos, masmereceriam ser traduzidas. Ao contrário dePessoa, Camões ainda não tem a honra de figurarentre os autores da prestigiosa Biblioteca daPléiade. Em setembro de 2009, a Internet anuncia18 600 páginas francófonas para Camões, mas 65200 para Pessoa. Portanto, ainda fica muito porfazer no século XXI… Mas Camões tem leitoresentusiastas. No blog Nova Folha de AlfredTeckel, em setembro de 2005, lê-se o se guintecomentário: «Camões é definitivamente umgigante das letras mundiais, o equivalente de umShakespeare, um Goethe ou um Cervantes. E umgigante essencial, que é preciso ler e reler, semreceio, por ser tão bela a obra dele, e bastantefácil de ler. Não há tempo a perder, para os quenão o conhecem o descobrirem, e para os outrosmergulharem de novo nele com delícia.»

BIBL.: BISMUT, Roger, «Camões en France», ArquivosX V I, Paris, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 1981, pp. 723-753; GALLUT-FRIZEAU, Anne, Camões en France(1600 -1860), Thèse pour le Doctorat d’Etat, Université Sor -bonne Nouvelle, Paris III, 1972; MARTOCQ, Bernard, «Le nau-frage de Sepúlveda dans une pièce française du XVIIe siècle:Les Portugaiz infortunez», in Vents du Large, Paris, PressesSorbonne Nouvelle, 2002, pp. 123-139.

Anne-Marie Quint

RECEÇÃO DE CAMÕES NA LITERA -TURA INGLESA. Enquanto dados históricos dacultura recetora, condicionados por fatores con-junturais de ordem política, social, económica,religiosa, diplomática e militar, os contributosbritânicos para a internacionalização de Camõesabrangem não só traduções, adaptações e ensaiosde caráter histórico, biográfico e crítico, comotambém produções literárias originais. Mesmo senos cingirmos apenas a obras impressas até mea-dos do século XIX, salienta-se o facto de a tradi-ção poética inglesa haver incorporado, comfrequência, não só alusões esparsas, mas tambémmarcas de intertextualidade reminiscentes da obracamoniana, dentre as quais enumeramos as maissignificativas. A similitude entre Milton e Camõesna visão profética do futuro, inserida quase notermo das respetivas epopeias; a objeção de J.Dryden quanto à coexistência do maravilhosopagão e da teologia cristã em Os Lusíadas;

a tematização da viagem do Gama e seu signifi-cado para a história da Índia, por parte de R.Cum berland; a descrição circunstanciada de umatempestade marítima num poema célebre de J.Thomson; o facto de W. Bowles glorificar poeti-camente o pioneirismo português na abertura eexploração da carreira da Índia; a perfeição e per-vivência dos sonetos camonianos, consideradospor W. Wordsworth dignos de figurar entre osmais inspirados da modernidade europeia; aimportância atribuída pelo círculo de Lord Byronà relação entre a genialidade artística e os desven-turados amores de Camões e D. Catarina, episó-dio predileto da geração romântica que seriatransposto nas versões de F. Hemans e, maistarde, desenvolvido ao gosto da exuberância vito-riana, em textos como «Catarina to Camoens» ena sequência lírica, Sonnets from the Portuguese(1850), ambos de E. B. Browning.

A despeito desta variedade temática, a obser-vância de imperativos editoriais impõe-nos, limi-narmente, duas restrições. Trataremos, aqui, demodo mais seletivo do que exaustivo, a receçãoinglesa da produção épica e lírica de Camões,com relevo para alguns textos traduzidos que,sintomáticos da sua época, lograram exercerinfluência mais marcante e duradoura sobre aposteridade. Para tanto, limitaremos geografica-mente o nosso campo ao horizonte britânico, ati-tude tanto mais redutora quanto é certo que, emnossos dias, os estudos anglísticos se definem emsentido tão lato que abrangem também a magni-tude da cultura norte-americana e de outras litera-turas, dispersas por territórios outrora integradosno império colonial anglófono.

A primeira tradução inglesa d’Os Lusíadaspor R. Fanshawe (1655) radica no contexto histó-rico duplamente complexo dos meados do séculoXVII. Por um lado, Portugal travava ainda a Guerrada Restauração e intensificava contactos diplo-máticos em Londres, tendentes a reforçar o apoioluso-britânico. Por outro, a Inglaterra vivia assequelas dos graves litígios entre a Coroa e o Par -lamento, responsáveis pelo protetorado deCromwell e pela Guerra Civil que precedeu aRestauração monárquica (1660). Partidário dacausa régia, diplomata, literato e lusófilo, Fan -shawe situa-se na esteira de ambos os conflitos,pois não só participou nas negociações do casa-mento de D. Catarina de Bragança com Carlos II

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de Inglaterra (1662), como também aproveitou asituação transitória de preso político, para sededicar à tradução da epopeia camoniana queprovavelmente conhecera em Madrid, pela mão deFaria e Sousa. O translato revela a preocupaçãode ultrapassar a mera fidelidade literal, através decritérios que restaurem valores semânticos epragmáticos, essenciais ao valor estético do textomas entretanto tornados obsoletos pela evoluçãolinguística. Por vezes, a ausência de anotaçõesexplicativas da densidade camoniana leva Fan -shaw a adicionar e a integrar, no próprio corpo dotexto, variadas explicitações parentéticas. Numesforço de abrangência eclética, e embora respei-te as relações intertextuais d’Os Lusíadas com osmoldes clássicos de Virgílio, o tradutor incorporatambém no texto outras sugestões, re colhidas nasepopeias modernas, ao modo de Boiardo, Ariosto,

Tasso e Spenser. Semelhante amálgama de ele-mentos heterogéneos ameaça comprometer odesígnio unitário de Camões que não se dispensa-ra de tomar a factualidade histórica como maté-ria-prima, sujeita a reelaboração e transmutaçãocriativas, operadas pela imaginação poética.Considerada, por alguns, simples versão parafrás-tica destituída de autêntica valia estética, a rees-crita de Fanshaw toma como unidade de traduçãoa estrofe e, no seu interior, reordena as com -ponentes frásicas e proposicionais sem, no entan-to, conseguir revitalizar a oitava rima, já entãofora de moda em Inglaterra. Esta persistência deestruturas obsoletas, para mais incrustadas numtexto publicado já no declínio do retarda tárioRenascimento inglês, contribuiria para explicar areduzida repercussão coeva da obra de Fanshaw,mais tarde relegada para o limbo editorial dondecríticos novecentistas da envergadura de C. M.Bowra e E. M. W. Tillyard haveriam de resgatá --la. Mesmo sem emitir juízo valorativo sobre areescrita de Fanshaw, deve reconhecer -se que elaconstitui tradução direta do original camoniano e,em certo sentido, marca um mo mento inauguralna apresentação da literatura portuguesa aos leito-res britânicos.

Um século depois de Fanshaw, a traduçãod’Os Lusíadas (1756) por W. J. Mickle denota ocontexto macroeconómico da expansão e consoli-dação do império mercantil britânico e, em ter-mos periodológicos, situa-se no processo deevolução do paradigma cultural racionalista, pró-prio do neoclassicismo augustano, para o quadroda sensibilidade proto-romântica, anunciadoradas poéticas oitocentistas emergentes. No panora-ma das relações luso-britânicas setecentistas,avultam dados significativos, como sejam arepercussão internacional da catástrofe sísmica deLisboa (1755), o facto de Portugal se haver pau-latinamente tornado destino habitual de viajantesingleses, impelidos por variadas motivações, eainda a ação de fomento cultural desenvolvidapor mecenas lusófilos, uns frequentadores do cír-culo do Dr. S. Johnson e outros agrupados emtorno da Companhia das Índias ou vinculados ànossa legação em Londres. Todos estes fatoresgeravam no leitor coevo expectativas literárias aque a tradução de Mickle procura corresponder,adotando algumas soluções de compromisso. Porexemplo, enquanto a nível prosódico opta pela

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Folha de rosto da 1.ª edição em língua inglesa d’Os Lusíadas,traduzidos por Richard Fanshaw, Londres, 1655

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contenção e rigidez do dístico heroico fechado, aogosto do neoclassicismo, o tradutor explora igual-mente categorias estéticas já protorromânticas. A título exemplificativo, citaremos o pitoresco pai-sagístico do exotismo tropical e a intensidadeestética do sublime, presente na descrição dooceano tempestuoso, das forças cósmicas emfúria e no retrato grandioso e patético do giganteAdamastor. Além disso, transpondo Camões paraos horizontes mercantis do século XVIII, Mickleinterpreta globalmente a obra como a modernaepopeia do contacto e do comércio internacio-nais, no duplo sentido de celebrar o diálogo como Oriente e de inaugurar auspiciosas rotas queviabilizam as comunicações e as trocas de merca-dorias no espaço euro-afro-asiático. Desta forma,relegando para posição subalterna o sentido cole-tivo e teleológico da História portuguesa que sedepreende d’Os Lusíadas, as atenções de Mickleconcentram-se na heroicidade individual doGama e na especificidade espaciotemporal dosDescobrimentos. Com efeito, estes parecem-lheconstituir um legado e um precedente históricossuscetíveis de legitimar a translação do impériomarítimo, construído pelo Portugal quinhentista,para a supremacia empresarial do colonialismobritânico do século XVIII. Essa transferência dehegemonia geoestratégica multiplicaria as possi-bilidades de discriminação étnica e cultural, masafigurava-se que ela poderia ser neutralizada pelaética igualitária, professada pela cristianizaçãoconcomitante. Por conseguinte, Mickle logroulevar a bom termo o projeto de anglicização ideo-lógica do canto camoniano, o que contribuiu pre-sumivelmente para a aceitabilidade da traduçãojunto da crítica e do público, num êxito expressoem múltiplas edições e reimpressões. Em todo ocaso, o juízo valorativo do nosso tempo deverárelativizar o sucesso da versão de Mickle cujamicroanálise revela, além de inexatidões pon-tuais, certas amplificações hiperbólicas e altisso-nantes, a atenuação censória dos episódios demanifesto erotismo e variadas omissões, além deinexplicados aditamentos ou de interpolações,sobremaneira discutíveis (306 versos no CantoIX). Todavia, se a interpretação subjetivante e aliberdade criativa da reescrita fazem de Mickle,porventura, o menos fiel tradutor camoniano, nãodeixa de ser consensual a qualidade poética dotranslato, o que lhe valeu acolhimento na Acade -

mia das Ciências de Lisboa e lhe granjeou lugarde realce na camonologia inglesa. Além disso, aorefutar objeções formuladas por Voltaire (1733), aversão de Mickle e respetivos paratextos ensaísticosvieram consolidar o lugar canónico e a interna-cionalidade de Camões e, por extensão, promove-ram a apreciação mais alargada da literaturaportuguesa além -fronteiras. A título de curiosida-de, interessa ainda registar como, no plano práti-co, a versão de Mickle se tornou uma espécie devade-mécum histórico-cultural e fonte informativade leitura obrigatória para quantos planeavam via-jar ou residir entre nós.

No século XIX, a imagem de Camões arti -cula-se com a evolução das relações luso-britâni-cas, reativadas quando da ofensiva napoleónica,alimentadas por sucessivas vagas da emigraçãoliberal para Inglaterra e sustentadas pelo prósperointercâmbio comercial de lanifícios e produtosvinícolas. O diálogo foi ainda reforçado diploma-ticamente pelo parentesco entre as casas reinantesde ambos os países, embora se agravasse maistarde pelo conflito colonial relacionado com a

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Folha de rosto de The Lusiad; or The Discovery of India. An Epic Poem, Oxford, 1776

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partilha do continente africano que conduziria aoUltimato de 1890. No contexto inglês, a receçãooitocentista de Camões documenta as profundasalterações estéticas que, sob várias designaçõesperiodológicas, sempre remetem para o cerne doparadigma cultural romântico e se repercutem emtodos os setores da atividade literária e artística.Em conformidade, regista-se uma significativamodificação de ponto de vista, na medida em quea nova hierarquia de interesses tende a concederatenção prioritária à obra lírica de Camões, referi-da já por W. Hayley em An Essay on Epic Poetry(1782) e cuja tradução se inaugura com Poemsfrom the Portuguese (1803) de Lord Stran g ford.Diplomata acreditado em Lisboa e familiarizadocom a língua portuguesa, o tradutor seguiu amoda vigente e adaptou Camões ao gosto dos lei-tores seus destinatários, em sintonia com as poéti-cas da sinceridade que postulavam a obra literáriacomo um repositório de emoções autênticas,experimentadas pelo próprio autor empírico.Assim, na imagem de um Camões romantizado,valoriza-se o discurso do poeta egocêntrico emconstante postura de confessionalismo autobio-gráfico e investido de poderes geniais e demiúrgi-cos que verbalizam a sua sensibilidade ímpar e alibertam da observância de normas preexistentes.Deste modo, a partir de sugestões documentáveisem Faria e Sousa e Severim de Faria, a interven-ção de Strangford constrói uma biografia senti-mental de Camões que faz deste o protagonista dadiáspora e do exílio em paragens inóspitas, vítimade desventuradas coitas de amor, alvo de ingratanegligência por parte dos seus contemporâneos e,sobretudo, testemunha angustiada de um descon-certo cósmico próximo da vivência trágica. Prefa -ciadas e anotadas, as versões de Strangford recriamtambém, sob diversas formas, o tom medievali-zante das redondilhas bem como o código cortêse petrarquista dos sonetos camonianos. Em com-plemento, a respetiva contextualização históricaderiva também da referência a possíveis fontes eanálogos, respigados na tradição lírica siciliana,provençal, italiana e inglesa. Quanto aos critériosde tradução adotados, a rejeição liminar da litera-lidade leva Strangford a perfilhar metodologiassobremaneira criativas, visando transcrever o sen-tido genérico do original, mesmo com prejuízo daequivalência de palavras, versos ou estrofes. Deum modo geral, as omissões, os aditamentos e as

alterações introduzidas demonstram o modocomo, no quadro poetológico romântico, o distan-ciamento criativo em relação ao texto de partidapode originar um translato tendencialmente auto-nomizável e com energia estética capaz de revita-lizar a tradição sonetística inglesa. Nem todosconcordarão com o modo como Strangford rees-creve Camões, intensificando a grandiloquência,explicitando ambiguidades e diluindo a tensãodramática, por recurso a um tom declamatório,recheado de exclamações, interrogações e após-trofes. De resto, a aceitabilidade de semelhantesprocedimentos pode avaliar-se com base na opinião algo reticente da crítica coeva, todaviacompensada pelo elevado número de edições ereimpressões da versão de Strangford durante oséculo XIX.

Na geração seguinte, os estudos camonianoslevados a cabo por J. Adamson atingem posiçãocimeira. Leitor de Manuel Correia, Pedro deMariz, Severim de Faria e dos comentários deFaria e Sousa, frequentador de círculos lusófilosbritânicos (Lorde Holland, Hayley, Southey, Qui -l li nan, Strangford, Musgrave, etc.) e relacionado

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Folha de rosto de The Lusiad, an Epic Poem, Londres, 1826

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com literatos portugueses como Garrett, oMorgado de Mateus, o duque de Palmela e tantosoutros, Adamson delimitou a camonologia comotema preferencial de reflexão especializada, den-tro da vasta área da moderna lusitanística. Comefeito, por um lado, deve-se-lhe a publicaçãoinconclusa de Lusitania Illustrata (1842-1846),ambicioso projeto editorial sobre a história, a lite-ratura e a cultura portuguesas; por outro lado,desenvolveu e sistematizou investigação biográfi-ca, bibliográfica e crítica sobre Camões, reunidaem vários estudos de que se salientam Memoirsof the Life and Writings of L. De C. (1820), tra-balho de e para especialistas; finalmente, nasequência do interesse dos tradutores românticospelo reflexo especular da autobiografia na obralírica, selecionou e deu a lume diversas versõesem Sonnets from the Portuguese of L. de C.(1810). A introdução e as anotações respetivassintetizam o trabalho de escoliastas anteriores,mas situam Adamson dentro de uma espécie decírculo viciado, ao pretender explicar a lírica deCamões em termos da sua vida e, ao mesmotempo, ao procurar suprir lacunas biográficas,recorrendo a informes alegadamente contidos naobra. Todo este infatigável labor, extensivo aoutros aspetos da literatura portuguesa tardo --renascentista torna Adamson um dos mais pro -fícuos agentes de mediação interculturalluso-britânica, ainda que a sua projeção junto dosconterrâneos ficasse aquém do seu real valor.Com efeito, se excetuarmos recensões laudatóriasdispersas na imprensa da época, teremos de regis-tar várias opiniões depreciativas, como a de R.Southey, que não esclarece até que ponto se limi-ta a verberar os ornatos retóricos usados pelo eru-dito Adamson ou, pelo contrário, reprovaalegadas deficiências da própria escrita original.Em contrapartida, como reconhecimento pelocontributo prestado à internacionalização deCamões, Adamson foi, entre nós, agraciado comconde corações e honras académicas e poderá serglobalmente considerado precursor distante dostrabalhos de Juromenha e Storck.

Apesar de no período oitocentista se registaruma propensão muito especial para explorar adimensão lírica de Camões, importa ter presenteque também a epopeia atraiu sucessivos traduto-res que a reescreveram, de forma fragmentária ouintegral. Na maior parte dos casos tais versões

manifestaram respeito formal pela oitava rimamas, em alternativa, recorreram ao pentâmetrojâmbico não rimado (verso branco) ou até à cha-mada estância spenseriana, ou seja, acomodaramCamões a fórmulas canónicas diretamente inspi-radas na tradição prosódica do quinhentismoinglês. Entre os tradutores incluem-se T. Mus -grave (1826), cuja estratégia elidiu ou expurgoupassos d’Os Lusíadas suscetíveis de levantarobjeções em matéria da licenciosidade de costu-mes, obviamente proscrita pelo rigorismo puritanoda sociedade de oitocentos. Também E. Quilli nandeixou incompleta uma versão dos cinco primei-ros cantos, postumamente publicados (1853), querevelam aprofundado conhecimento da língua eliteratura portuguesas, próprio de um lusófiloeducado entre nós, mas documentam maior fluên-cia narrativa do que intensidade lírica e obede-cem ao imperativo censório de tornar o poemacompatível com a moralidade oficial da Inglaterravitoriana. Quase em simultâneo, sob a responsa-bilidade de T. Mitchell, veterano da GuerraPeninsular, veio a lume outra tradução (1854)que, visando preservar integralmente o espíritodo texto de partida, utiliza uma dicção arcaizantee excessivamente literalista, com prejuízo dosvalores conotativos e poéticos do original. Demaior qualidade e importância se reveste a tenta-tiva de J. J. Aubertin (1878), primeiro estudioso aincentivar o cotejo entre a epopeia original e orespetivo translato, impressos lado a lado, nopressuposto de que a sua versão corresponderia àque Camões teria plausivelmente composto, seacaso o inglês fosse a sua língua. Para tanto, con-cretiza uma estratégia de tradução que procurasubsumir e assimilar a voz do autor e identificar --se com o seu pensamento criativo, para maisrigorosamente lhe transcrever as cadências emelodias do canto. Levando tal atitude às últimasconsequências, Aubertin chega mesmo a afirmarque só por autêntica metempsicose se poderiaatingir plenamente o objetivo de traduzir Camões.Ainda assim, o fruto da sua tarefa demonstra nãosó apurada capacidade de análise e produção tex-tual, mas também assinalável discernimento naultrapassagem das mais graves dificuldades, porexemplo, a de resistir à tentação de sobreorna-mentar a escrita camoniana, preservando-lhe asofisticada simplicidade e a consumada mestria.Embora apontando algumas objeções menores, os

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críticos portugueses e britânicos acolheram demodo muito favorável o trabalho criterioso deAubertin sobre a epopeia e a lírica, sublinhando aexcelência dos efeitos obtidos e a superior quali-dade poética do translato. Ainda em finais doséculo XIX, merece referência a tradução d’OsLusíadas dada à estampa por R. F. Duff (1880),sobretudo porque o esforço de anglicização daepopeia conduziu à escolha de uma estrofe par -ticular (nove versos jâmbicos de oito e doze sí -labas), cuja popularidade se deve ao poetarenascentista E. Spenser, contemporâneo deCamões. Desta forma Duff pretendia ressituarcronologicamente o translato e instaurar umarelação de homologia entre ambos os poetas,desiderato que, com frequência, obrigou a altera-ções substanciais que denunciam também as mar-cas da originalidade poética do tradutor.

Pelos finais do século XIX, agudizava-se acrise internacional provocada pela partilha deÁfrica entre as potências coloniais participantesna Conferência de Berlim (1884-1885). Ora, jus-tamente centradas em 1880, as comemorações dotricentenário da morte de Camões, poeta daexpansão europeia ultramarina, ofereceram mol-dura adequada a algumas iniciativas, então leva-das a efeito por reputados lusófilos ingleses.Entre elas, conta-se o vasto projeto, amadurecidodurante várias décadas por R. F. Burton, literato,orientalista e explorador que redigiu diversosvolumes de temática camoniana, inclusive a tra-dução Seventy Sonnets of Camoens (1881) e umaversão integral, em oitava rima, intitulada TheLusiads (1880). Viajante incansável e conhecedordireto de Portugal e da maioria das paragens lon-gínquas onde Camões deambulara, o tradutoracreditava que, por comparação com o dos ante-cessores, o elevado mérito do seu trabalho sólograria receber plena consagração por parte dosvindouros e antecipava mesmo alguns dos reparosque efetivamente haviam de lhe ser diri gidos.Com efeito, animado pelo propósito assimilativode reproduzir a epopeia com o maior grau deaproximação possível, Burton experimentou umadicção poética que, tendo em conta as divergên-cias prosódicas entre ambas as línguas, traçasseuma via de compromisso entre a excessiva litera-lidade de alguns predecessores e o desregramentoimaginativo de outros. Não obstante, compareceno translato elevado número de estrangeirismos,neologismos e sobretudo vocábulos e locuções desabor arcaizante que visam evocar o ambientequinhentista do original, sem, no entanto, conse-guir recuperar a energia melódica e conotativa darespetiva expressão poética. O resultado finaldocumenta uma espécie de idioleto literário, cir-cunstância que compromete a sua própria legibili-dade, pois o leitor coevo, de cultura mediana,sentiria estranheza e extrema dificuldade em ade-rir a um texto deliberadamente distanciado dassuas expectativas linguísticas. No que toca à pro-dução lírica, em Luís de Camoens: the Lyrics(1884) Burton ultrapassou os mais de trezentossonetos selecionados e, tradutor versátil, nãohesitou em verter outras formas, por exemplo,canções, odes e sextinas. De um modo geral, aespontaneidade da inspiração camoniana altera-sesobremaneira, pela reiteração de fórmulas este-

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Frontispício da edição inglesa em dois volumes d’Os Lusíadas,traduzidos por Richard Francis Burton, Londres, 1880

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reotipadas, pela explicitação unívoca e redutorade expressões originariamente polissémicas oupela amplificação interpretativa da fra se. Emcomplemento, a obra ensaística Camoens: hisLife and his Lusiads (1881) revela as qualifica-ções de Burton como investigador e estudiosodiligente que, a partir de informes de amplitudequase enciclopédica, compendia e desenvolve, porvezes de modo impressionista, sugestões e co -men tários sobre a biobibliografia do poeta, a his-tória portuguesa, a cosmografia, a náutica e osrelatos de viagens. A completar abundantes anota-ções histórico-literárias, o trabalho contém aindaglossário, índice analítico e uma seleção de re -censões críticas. Tomadas globalmente, as diver-sas facetas do labor camoniano desenvolvido porBurton entrecruzam-se num padrão complexoonde predomina uma abordagem que hoje diría-mos multidisciplinar e que abrange tanto a rece-ção criativa, consubstanciada na tradução literária,como a receção crítico-valorativa que ilustra pro-cedimentos exegéticos, condicionantes da acultu-ração de Camões na tradição histórica anglófona.

Até finais de oitocentos, a receção de Ca -mões na cultura inglesa foi sobretudo obra deliteratos amadores que, com motivações lusófilas,comentaram e reescreveram um discurso épico elírico onde o seu gosto individual reconhecia qua-lidade e excelência estética. Essa tradição aindahoje se prolonga na devoção de estudiosos inde-pendentes que, antes de mais, desejam fruir e par-tilhar o comprazimento da sua experiência deleitura literária, eximindo-se ao analitismo demetalinguagens especializadas, alegadamentesuscetíveis de prejudicar a ligação afetiva com otexto. Todavia, no decurso do século XX e noespaço luso-britânico, regista-se gradualmenteum fenómeno de institucionalização dos saberesliterários que tende a concentrar a receção camo-niana nas mãos de historiadores e críticos profis-sionais, na sua maioria vinculados aos meiosuniversitários. Esta mudança implica a constitui-ção dos estudos camonianos como objeto deinvestigação científica no quadro das humanida-des modernas, o que pressupõe requisitos disci-plinares de extremo rigor. Na verdade, adisponibilização de fontes documentais em edi-ções fidedignas, o acesso a um modo de leituraassente na perspetiva crítica e genética dos sabe-res filológicos, a destrinça entre a imagem lendá-

ria e ficcionalizada do poeta e os factos apuráveispor aturada pesquisa biobibliográfica, o conheci-mento aprofundado do contexto quinhentista noplano sociopolítico, económico, histórico-culturale estético-literário, a perspetivação comparatistadas redes transnacionais de migração textual quese entrecruzam na obra camoniana e a partir delairradiam — todas estas e tantas outras orientaçõesda pesquisa no espaço anglófono têm assumidoimportância, amplitude e proporções consentâ-neas com a extrema complexidade dos problemasem discussão. Um dos primeiros nomes a reter nacamonologia inglesa contemporânea será o deEdgar Prestage, especialista em história diplomá-tica do século XVII, sócio da Academia dasCiências de Lisboa e, desde 1923, professor cate-drático de Literatura Portuguesa na Universidadede Londres. Coube-lhe a responsabilidade depublicar Minor works of Camoens (1924) e tam-bém The Passion of Christ: Two Elegies ofCamoens (1924) com estudos acerca das éclogas,redondilhas, oitavas e elegias, algumas das quais,vertidas para inglês, revelam sinais de religiosi-dade mística em Camões. Além desse distintolusitanista cujo fecundo magistério contribuiupara formar numerosos discípulos, Aubrey Belltambém é nome sobejamente conhecido, pelointeresse das reflexões insertas em PortugueseLiterature (1922) e Luís de Camoens (1923) eainda pelo critério clarividente com que selecio-nou e traduziu o lirismo camoniano em Poemsfrom the Portuguese (1913). Igualmente devemosa W. J. Entwistle uma importante discussão sobreo mérito relativo da inspiração épica e lírica(1943), enquanto numa série de artigos em presti-giadas revistas científicas (1934-1973) GeorgeWest se ocupou com minúcia biográfica, históricae crítica da figura e da obra de Mickle, célebreintrodutor d’Os Lusíadas na Inglaterra setecentista.Por seu turno, C. M. Bowra e E. M. W. Tillyard,dois dos maiores especialistas ingleses na históriae estrutura do género épico na literatura europeia,dedicaram a Camões estudos seminais, respetiva-mente em From Virgil to Milton (1948) e TheEnglish Epic and its Background (1956). Consi -derados em paralelo, ambos afirmam que a epo-peia camoniana, celebração da heroicidade detodo um povo, se inscreve no contexto humanistae classicizante do Renascimento e demonstra umaproveitamento seletivo da nossa historiografia,

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para melhor enaltecer o significado da mundiali-zação económica e cultural viabilizada pelosDescobrimentos portugueses.

Quanto à receção criativa dos textos camo-nianos, recordemos obras como Adamastor (1930)e Sons of the Mistral (1945) da autoria de RoyCampbell, poeta de origem sul-africana familiari-zado com paisagens naturais e humanas descritasem Os Lusíadas e tradutor que se sentia atraídopor Camões com quem julgava identificar-se, nafundamentação ideológica do império colonial. Jáno terceiro quartel do século XX e após revisitar amitologia sebastianista e lhe dar reelaboração dra-matúrgica, também o lusófilo Jonathan Griffinpublica Camões: some Poems (1976), coletâneade traduções com enquadramento ensaístico ondefiguram, entre outras, re escritas de sonetos, redon-dilhas e canções. Também Keith Bosley se encar-rega de traduzir Camões: Epic and Lyric (1990),exemplo que dará igualmente frutos em traduçõesnorte-americanas recentes.

Deve acrescentar-se que, na segunda metadedo século XX, a epopeia camoniana continuou acongregar atenções de natureza múltipla. Nasequência da Segunda Guerra Mundial, umaautêntica revolução no mercado editorial alargouo consumo do livro que, em formato e preçoacessíveis, atinge elevadas tiragens para corres-ponder ao aumento exponencial da procura.Veículo de instrução e entretenimento, o chamadolivro de bolso destinava-se a um público de nívelcultural mediano e habituado a um código lin-guístico referencial, prioritariamente denotativo,de alcance utilitário e, na prática, isento de fun-ções características da literariedade. Todo esteenvolvimento explica o facto de a tradução emprosa The Lusiads (1952) por W. C. Atkinson,lançada pela editora Penguin, ter conhecido êxitocomercial sustentado durante décadas. Tratava-se,com efeito, de aceder a um poema épico, atuali-zado e vulgarizado, através de um enunciado pro-saico de onde haviam sido rasurados não sóreferentes culturais estruturantes, como tambémvestígios de metaforização e elaboração estética,de tal forma que o efeito trivializante do resultadofinal configurava notório desrespeito pela integri-dade do texto camoniano.

Destinada a estabelecer a transição entredois séculos e milénios, a geração seguinte pro-curaria experimentar estratégias translatórias

alternativas, como é patente na versão inglesad’Os Lusíadas (1997) da autoria de LandegWhite. Convirá ter presente que, nas décadasanteriores, todo o processo de descolonizaçãohavia acarretado mudanças aceleradas nas rela-ções euro-afro-asiáticas, provocando redistri -buições de supremacia e novos dispositivosreguladores das relações internacionais. Tornava --se, pois, necessário, readaptar o poema épicoque exalta as virtudes da expansão portuguesados séculos XV e XVI, de modo a transferi-lo paraa cultura anglófona tardo-novecentista, ou seja,para um contexto histórico pós-colonial onde seformulam acerbas críticas à multissecular hege-monia europeia nos trópicos. Em última análise,traduzir Camões implica, por um lado, repensaro pendor tendencialmente eurocêntrico da cultu-ra ocidental face ao reconhecimento de valores eespecificidades locais, regionais e nacionais noespaço multicontinental do chamado TerceiroMundo e, por outro, reler Os Lusíadas como

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Frontispício da edição inglesa d’Os Lusíadas, com introduçãoe notas de J. D. M. Ford, Cambridge, Mass., 1946

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poema precursor dos diálogos interculturais esta-belecidos num quadro ecuménico de igualdade erespeito mútuo. Com semelhante estratégia, otradutor poderá aproximar o poema dos estereó-tipos mentais hoje vigentes e, por consequência,ir ao encontro da expectativa dos destinatáriosimediatos, reintegrando o translato no contextoda cultura recetora e acentuando a sua pertinên-cia para o nosso tempo.

Mais recentemente, o mesmo tradutor assinaThe Collected Lyric Poems of Luís de Camões(2008), texto que denota certa preocupação deordem filológica, embora não consiga despren-der-se de tentações biografistas na leitura e inter-pretação literária dos poemas traduzidos, cujaordenação sequencial, evocativa de uma viagemreal e figurada, pretensamente revela um proces-so de gradual maturação autoral que, todavia,dificilmente encontra correspondência na versãoem inglês. O futuro ditará a fortuna crítica demais esta tentativa de aculturação da obra líricacamoniana, nos alvores do século XXI.

Do que fica dito talvez se possam extrairuma síntese e um alvitre. Em primeiro lugar, narede de constantes (trans)migrações textuais quecaracterizam a literatura intercultural da Europamoderna e contemporânea, a receção da obra deCamões na literatura anglófona acompanha todasas vicissitudes do multissecular relacionamentoluso-britânico. Globalmente apreciado, esse vastocorpo textual testemunha paradigmas epocaiscuja sequência define a evolução de modelos teo-réticos, critérios operativos e estratégias discursi-vas, condicionantes da leitura e da reescrita deCamões na cultura recetora. Quer procurem, prio-ritariamente, adequar-se ao original quer bus-quem cumprir o desiderato da aceitabilidadejunto dos destinatários, os translatos aqui reuni-dos em diacronia constituem uma espécie denúcleo em torno do qual se organizam enquadra-mentos contextualizadores que visam fornecerinformações extratextuais necessárias ao entendi-mento e fruição do discurso poético quinhentista.Em segundo e último lugar, valeria a pena inver-ter o sentido da reflexão e indagar até que ponto areceção pela anglofonia poderá revitalizar, naatualidade, o estatuto da literatura portuguesa nocontexto multicultural euro-atlântico. Parece nãorestar dúvidas de que, pelo facto de o inglês teradquirido a posição de língua franca da cultura

contemporânea, lhe cabem funções privilegiadasde intermediação cultural. Em virtude de tal alar-gamento de horizontes geográfico-literários,encontram-se virtualmente ampliadas as reper-cussões transnacionais da obra camoniana quepoderá encontrar, na anglofonia, um veículo dedisseminação e canonização quase à escala plane-tária. Por conseguinte, os incentivos à consolida-ção do estatuto de Camões nas literaturas deexpressão inglesa talvez devessem merecer aatenção redobrada de quantos hoje se ocupam empromover, além-fronteiras, a imagem do nossopatrimónio cultural.

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João Almeida Flor

RECEÇÃO DE CAMÕES NA LITERA -TURA ITALIANA. A cultura italiana ficou mar-cada muito cedo pelo fascínio de Camões, esempre se considerou que o conhecimento dopoema épico se tinha difundido na PenínsulaItálica muito provavelmente através das tradu-

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