reaja ebook(full permission)

52

Upload: marceloalvesandre

Post on 27-Dec-2015

26 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Reaja eBook(Full Permission)
Page 2: Reaja eBook(Full Permission)

!CRISTOVAM BUARQUEREAJA

Page 3: Reaja eBook(Full Permission)

Copyright © Cristovam Buarque, 2012

Direitos reservados para esta edição

Editora Garamond LtdaRua Cândido de Oliveira, 43 – Rio Comprido

20261-115 – Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Tel/fax: (21) 2504-9211

www.garamond.com.br

[email protected]

Capa e editoraçãoEstúdio Garamond · Anderson Leal

RevisãoRoberto S. Oliveira

ISBN 978-85-7617-280-2

Page 4: Reaja eBook(Full Permission)

Aos jovens:

Porque ainda têm

a chama.

E o tempo.

E para:

Pedro Simon, 82;

Ignacy Sachs, 85;

Edgar Morin, 93;

Stéphane Hessel, 95;

Oscar Niemayer, 104;

Que não pararam

de reagir.

Page 5: Reaja eBook(Full Permission)

REAJA contra a vida sempre bem comportada.

Escolha algumas aventuras para realizar: mon-

tanhas a subir, uma revolução a fazer, amores a

sentir. Coloque sua biografi a na frente do seu

curriculum, e o curriculum na frente do patri-

mônio. Coloque as urnas na frente das armas; e

os sonhos na frente das urnas.

Não se acostume. Sinta alergia à monotonia.

Reaja ao hábito que toma conta da gente ao vi-

ver em um mundo perverso; e contra a pior das

maldades que é se acostumar com ele. Ao se

Page 6: Reaja eBook(Full Permission)

8

acostumar com mau cheiro, sujeira, barulho, eles

começam fazer parte da gente. Não se acostume

à falta de ar em um mundo sem sonhos. Nem ao

vício de desejar apenas o possível. A grande van-

tagem de ser jovem é poder sonhar o impossível

e ter tempo para construí-lo. Quando o jovem

prende seus sonhos aos limites do possível, fi ca

velho. Não se acostume com a velhice antes do

tempo. E, quando ela chegar, não pare de desejar

o impossível, mesmo sabendo que não terá tempo

para construí-lo, nem vê-lo. Um dia Paulo Freire

me disse: “Não corte as asas dos seus sonhos na

tentativa de fazê-los possíveis. O mundo está

cheio de pessoas com tesouras cortando asas de

sonhos”.

Acostumar-se é morrer. Reaja aos costumes da

corrupção na política, no exercício profi ssional

ou nas relações pessoais. Não aceite o jeitinho de

furar fi la, colar nas provas, molhar a mão de fi scal.

Reaja ao acomodamento.

Page 7: Reaja eBook(Full Permission)

9

Reaja contra uma civilização que produz quase

setenta trilhões de dólares por ano, dez mil por

cada pessoa, e tem crianças com fome, sem

roupas, brinquedos, higiene. Sem escolas nem

assistência médica. Reaja contra o triste futuro da

civilização estampado nos olhos desses meninos

e meninas pobres do mundo, não importa o país.

Lute para criar o mundo como você gostaria que

ele fosse. E quando conseguir, não se acomode.

Se não mudar a realidade social, mude a posição

dos móveis da sua sala. E continue inconformado.

Reaja às dúvidas, procurando respostas. E quando

encontrar aquelas que lhe dão certezas, procure

novas dúvidas. Cada vez que se acostumar com

as respostas, mude as perguntas. Não aceite dú-

vidas sem procurar respondê-las, nem certezas

sem formular questionamentos.

Reaja contra a prisão invisível em que a ideologia

dominante o amarrou, roubando o que você tem

de mais sagrado: os poucos minutos de vida que

recebeu e a capacidade de usar esse tempo para

sonhar e viver livre. Com sorte, você terá 30 mil

dias de vida. Não os jogue fora trabalhando sem

Page 8: Reaja eBook(Full Permission)

10

gosto, nem vocação, apenas por um salário; sa-

crifi cando seu curto tempo de vida para comprar

o carro do ano.

Não considere banal a paisagem urbana onde

crianças estiram as mãos para pedir esmolas,

nem a realidade social que entristece os olhos

de mães com crianças no colo; crianças no colo

só devem combinar com olhos alegres. Reaja à

banalização da fome, do analfabetismo, da falta

de escolas, de postos de saúde e hospitais. Não se

acostume com tanques de guerra nas ruas, nem

fuzis apontando para civis. Não veja poesia nesta

rima maldita. Não se acostume com o fato de

que, para acender a luz de sua casa, foi preciso

destruir fl orestas, expulsar índios de seus hábitats,

exterminar espécies biológicas e até biomas intei-

ros. Não se acostume com o conforto pessoal que

vem da concentração de renda e com o custo de

destruição ambiental. Lembre que hoje não nos

acostumaríamos com os privilégios da nobreza ou

com a exploração de escravos. E naquele tempo

todos estavam acostumados. Não se acostume

agora com o luxo dos ricos ao lado da miséria

Page 9: Reaja eBook(Full Permission)

11

dos pobres. Escravocratas são todos os que vivem

indiferentes à pobreza que os rodeia.

Não se acostume com estômagos vazios em frente

a supermercados cheios; nem com escolas boas

para uns e ruins para outros, conforme a renda

dos pais; nem com a longevidade proporcional

ao tamanho da conta bancária da pessoa. Reaja à

aberração de dizer que há boa e má escola, bom

e mau hospital. Escola é ou não é escola; hos-

pital é ou não é hospital; tanto quanto oxigênio

é ou não é oxigênio. Não tolere passivamente a

imoralidade da desigualdade no acesso à saúde,

à educação e à justiça.

Reaja contra estas três desigualdades imorais: no

direito à vida, a compra dos serviços de saúde;

no direito à qualidade da educação, a compra do

acesso às escolas; e no direito a ser livre, porque

pode comprar justiça. Não aceite que a vida

seja comprada por quem pode pagar os servi-

ços médicos enquanto outros morrem porque

lhes falta dinheiro. Não aceite que um cérebro

seja jogado fora da escola de qualidade apenas

Page 10: Reaja eBook(Full Permission)

12

porque a família não tem dinheiro para pagar

a mensalidade. Não aceite que a justiça prenda

ou solte conforme o dinheiro que o criminoso

dispõe, independentemente do tamanho do crime

que comete.

Aprenda a chorar, mas não apenas por seus so-

frimentos pessoais. Isto todos sabem. Aprenda

a chorar pelo sofrimento dos outros, do velho,

jovem ou criança pobre, homem ou mulher, que

na esquina olha para dentro do seu carro e estira

a mão aberta, pedindo uma migalha do que você

leva no bolso. Chore cada vez que vê na televisão

meninos de olhos arregalados nos braços da mãe

sem leite; ele à espera da morte, ela à espera do

dia em que a falta de comida será esquecida pela

ausência do fi lho. Não aceite que o mundo seja

sempre assim. Sinta sua responsabilidade. Um

poeta tibetano de nome Milareta disse uma

vez: “Tendo meditado sobre a doçura e a pieda-

de, esqueci a diferença entre mim e os outros”.

Procure derrubar esta diferença, seja você, mas

sinta-se ligado a todos os outros bilhões de seus

contemporâneos atuais, lembrando os que já se

foram e aqueles que ainda virão.

Page 11: Reaja eBook(Full Permission)

13

Não aceite o hábito. O torturador se acostumou

tanto ao trabalho que o desempenha sem perceber

a indecência do seu ato. Nem aceite a desculpa

da omissão de quem lava as mãos porque não são

as dele que cometem o crime.

Reaja contra as desigualdades; mas, sobretudo,

contra a mãe de todas elas: a educação desigual.

Veja com horror a cara do futuro do país retratada

nas decrépitas escolas de hoje. Veja e reaja. Seja

um educacionista: no lugar de querer um país

rico para só então fazer a boa escola para todos,

queira a boa escola para todos como o caminho

de fazer o país rico. Lute para que os fi lhos dos

trabalhadores estudem nas mesmas escolas dos

fi lhos dos patrões. E cada um evolua conforme

seu talento, vocação e persistência – não pela

sorte lotérica da genética e da renda dos pais.

Lute pelo direito democrático de funcionamento

de escolas privadas, e para que um dia elas se

tornem desnecessárias, graças à qualidade de

toda escola pública.

Page 12: Reaja eBook(Full Permission)

14

Reaja contra a medicina que usa as doenças como

ponte para o lucro de empresas que fabricam

remédios ou equipamentos. Defenda um sistema

que trate a saúde das pessoas, e não a saúde das

empresas de medicamentos.

Reaja.

Reaja ao conceito de progresso baseado no cres-

cimento econômico, que consome a vida das

pessoas e destrói o equilíbrio ecológico em busca

de aumentar a produção de bens materiais priva-

dos e de curta duração. Não aceite como lógica a

riqueza medida pelo Produto Interno Bruto que

inclui as armas como benefício e não inclui as

mortes entre os custos. Não aceite como lógica

o que não atende à razão ou ao sentimento.

Reaja contra a indecente desculpa de que um

automóvel a mais é socialmente positivo porque

cria emprego para fl anelinhas fora da escola; ou

que a construção das casas dos ricos e palácios dos

marajás modernos é socialmente boa porque paga

um mísero salário mínimo aos trabalhadores que

Page 13: Reaja eBook(Full Permission)

15

moram em favelas a três horas de distância, onde

seus fi lhos não têm casa decente. Não aceite que

as mortes por violência ou acidente no trânsito

são detalhes irrelevantes que não entram na

medição dos resultados da produção.

O progresso foi uma das maiores invenções do

mundo das idéias, desde quando Condorcet e

Hegel imaginaram o que então parecia absur-

do: que a história tem um rumo e o mundo de

amanhã será melhor que o de ontem. Milhares

de cérebros – como os iluministas na França do

século XVIII e os liberais, utopistas e socialistas no

século XIX – construíram o humanismo moderno

sobre a ideia de progresso. Mas o século XX cor-

rompeu o conceito e apequenou progresso como

sinônimo de produção e consumo. Lembre do

poema de Drummond: “O progresso não recua/

Já transformou esta rua em buraco”. Perceba a

sacralidade que há em certos prédios que assis-

tiram a história passar à sua frente, história que

tem um valor superior ao do novo prédio que

construirão no lugar. Reaja contra a destruição

ou descaracterização do patrimônio cultural em

nome da novidade e a serviço da especulação e

dinamização do mercado.

Page 14: Reaja eBook(Full Permission)

16

Reaja ao progresso pela opulência: queira o pro-

gresso do bem-estar e da felicidade.

Reaja ao ufanismo de que a história é uma mar-

cha heróica do bem. Lembre o sangue derramado

em holocaustos para chegarmos até aqui. O mais

visível promovido pelos nazistas, especialmente

contra milhões de judeus. Também contra ciga-

nos, comunistas, defi cientes físicos. Lembre dos

pobres nos atuais campos de concentração das

favelas, imenso “gulag do neoliberalismo” criado

pelo capitalismo global. Reaja ao sentimento de

que a culpa é dos outros. Todos somos respon-

sáveis, por ação ou por não agir, ao escolher a

omissão e a alienação.

Não ignore nem esconda a triste realidade cons-

truída pelo lado negativo da civilização, sinta-se

em parte responsável. Veja a vergonha de cem

milhões de indígenas mortos ao longo dos cin-

co séculos de ocupação europeia nas Américas.

Nossos indígenas foram dizimados por doenças,

por trabalho forçado, por balas; e sob a mesma

Page 15: Reaja eBook(Full Permission)

17

bandeira da civilização continuamos assistindo

ao genocídio deles pela construção de estradas e

hidrelétricas em seus territórios, matando física

ou culturalmente os sobreviventes do holocausto

anterior.

Nossa civilização nasceu no século XVI arran-

cando cerca de dez milhões de africanos de suas

terras, seus lares, seus hábitats; sequestrou-os em

navios que cortaram os mares transportando-

-os como mercadorias imprensadas em porões

fétidos; os que sobreviviam eram vendidos como

ferramentas, tratados como gado, sem a menor

consideração pela família, separando fi lhos das

mães, maridos das mulheres. Isto de certa ma-

neira continua sob a forma, dita livre, dos emi-

grantes no subemprego dos bóias-frias, das viúvas

de maridos vivos, dos velhos que sustentam os

netos pelo desemprego permanente dos fi lhos.

Reaja contra a maldade da estrutura agrária que

sobrevive cercando terras sem homens e deixando

de fora homens sem terra, sem emprego, sem

comida.

Page 16: Reaja eBook(Full Permission)

18

Reaja contra o genocídio cultural que ainda hoje

escraviza 800 milhões de adultos analfabetos, lute

contra a deseducação de três bilhões de analfa-

betos funcionais ou com alguns poucos anos de

escolaridade. Reaja ao holocausto intelectual, à

estupidez do forno crematório de cérebros que

transforma em massa inconsciente o potencial

de centenas de milhões de talentos, gênios que

deixam de dar a colaboração que poderiam para

um mundo melhor e mais belo só porque, como

uma fl or, não foram regados no momento opor-

tuno por uma escola de qualidade. Crematório

de inteligência, mais nefasto que as queimas de

livros em outros tempos, quando seus escritores

sobreviviam. Na época em que o conhecimento

é o principal vetor do progresso, deixar pessoas

sem educação é como deixá-las fora da civilização.

Não aceite esta exclusão, lute contra ela.

Considere o analfabetismo de adultos como

uma tortura sem sangue; brutal como todas as

outras formas, com o agravante de ser contínua

e constante. Reaja exigindo dos governos que

erradiquem esta grave maldição. Faça a sua parte.

Se você conhece alguém que não sabe ler, dê-lhe

incentivo para aprender, convença-o a estudar; se

Page 17: Reaja eBook(Full Permission)

19

tiver possibilidade, alfabetize você mesmo . Os

antigos diziam que a vida não é plena sem gerar

um fi lho e plantar uma árvore; é preciso acrescen-

tar: e “alfabetizar uma pessoa”. Considere como

o 11º mandamento: “Alfabetizarás o próximo

como a teus próprios fi lhos”.

Reaja contra o holocausto do abandono de crian-

ças no mundo, mostrado ao vivo quase todos

os dias nas redes mundiais de televisão. Não

aceite sem protestar e lutar contra esta chaga da

civilização que consiste em abandonar crianças,

negar-lhes a chance de desenvolver seus poten-

ciais intelectual e cultural por falta de apoio, de

escola, de brinquedo, de carinho. Pense que os

campos de concentração nazistas cercando e

assassinando judeus só existiram porque eram

escondidos; hoje, um mundo mais insensível acei-

ta campos de concentração onde pobres morrem

de fome, de doenças, ou sobrevivem na magreza

intelectual da privação de educação. Esquálidos

de esperança. Um holocausto assistido ao vivo

pela televisão.

Page 18: Reaja eBook(Full Permission)

20

Reaja contra a outra forma de holocausto que se

comete ao negar às futuras gerações o potencial

que lhes cabe das fl orestas, das águas limpas, dos

oceanos para todos.

Galeano escreveu um bom livro sobre as veias

abertas por onde o colonialismo e o imperialis-

mo levaram as riquezas minerais da América

Latina. Esqueceu que a nossa tragédia vem me-

nos das veias abertas que dos cérebros tapados

pelo desprezo à educação. E a causa não são mais

as nações imperialistas, e sim a própria vontade

política dos governantes que elegemos, iludidos

com seus discursos demagógicos e populistas.

Ao lado de tantas belezas artísticas, conforto

técnico e verdades científi cas, do século XX fi -

carão inesquecíveis palavras como Hiroshima,

Nagasaki, Auschwitz, Fukushima, Darfur,

Chernobyl, Exxon Valdez, Dresden, Vietnã,

Napalm , Campos de Concentração, Bombardeio

Aéreo, Bombas de Destruição em Massa,

Câmaras de Gás, Biafra. Os retratos de Hitler

Page 19: Reaja eBook(Full Permission)

21

e Stalin farão parte da galeria de fotos do século

XX ao lado dos de Gandhi e Luther King.

Por isto reaja aos que desejam acelerar esta ci-

vilização, em vez de reorientá-la. No lugar do

desenvolvimento, defenda, como diz Sachs, uma

nova civilização; no lugar de revolução dentro da

mesma civilização, defenda, como diz Morin,

uma metamorfose da civilização industrial em

uma civilização de harmonia entre os atuais

seres humanos e seus descendentes e deles com

a Natureza que os rodeia. Reaja contra os maus

tratos à natureza. No lugar das ferramentas que

a destroem, defenda o abraço para conviver com

ela, transformando-a para levar adiante o projeto

humano – que nela se originou – de libertação,

de busca da verdade, de conquista da beleza, sem

destruí-la. Usemos a Natureza para construir

um mundo onde nossa consciência, sendo parte

dela, a embeleze descobrindo os seus encantos

ao conhecer as verdades de seus mistérios e ao

deslumbrar-se com suas belezas.

Reaja contra a destruição da Natureza, mesmo

as menores. Aceite que recursos naturais se

Page 20: Reaja eBook(Full Permission)

22

transformem em produtos desde que sejam re-

postos, reciclados, renascidos.

Reaja à lógica de que árvore só tem valor quan-

do é derrubada para dar lugar a um produto da

economia. Reaja quando derrubam árvores em

nome da necessidade de aumentar o consumo

supérfl uo. Não aceite a derrubada de qualquer

árvore sem uma justifi cativa de interesse social;

e para cada árvore derrubada exija que muitas

outras sejam plantadas.

Ao destruir o equilíbrio ecológico estamos des-

truindo o projeto humano, por entendê-lo como

a tarefa esquizofrênica de produzir cada vez mais,

no lugar de usufruir cada vez mais. Olhando à

distância, a civilização parece uma luta sem sen-

tido e sem sentimento, sem direção moral e com

uma lógica só explicada depois que ocorreram

fatos nefastos. Observada de longe, a sensação

é de que agimos como animais, sem uma razão

para agir e sem uma razão na maneira de agir. É

como se fôssemos apenas mais um dos animais

da natureza, agindo para comer mas sofrendo

da loucura de criar mais fome sempre que con-

seguimos nos saciar: a fome insana do consumo.

Page 21: Reaja eBook(Full Permission)

23

Parecemos confi rmar a triste hipótese de Koestler

de que somos um animal suicida por defeito da

mutação biológica: com um cérebro lógico e uma

moral desgovernada. Capazes de inventar tudo o

que desejamos, de inventar novos desejos a cada

dia, mas incapazes de limitar o desejo.

Ainda que fosse verdade, não aceite a formulação

de que o animal-homem é uma espécie suicida

por ter um lado do cérebro tão poderoso na ló-

gica que é capaz de fazer uma bomba atômica

e outro tão indecente que é capaz de usar essa

lógica contra os próprios semelhantes. Talvez

seja uma verdade neurobiológica, mas além do

cérebro está a mente e sua espiritualidade.

Reaja contra a fome de supérfl uo, a fome de pro-

dutos que fi cam sem valor no dia seguinte ao que

o conseguimos. Não aceite a ideia equivocada de

que as coisas se tornam obsoletas a cada ano, só

porque surgiu um novo produto com novas cores

e mais botões; nem a de que velho e usado são

sinônimos de feio; nem o sentimento que torna

velho o produto de ontem e considera feio o que

Page 22: Reaja eBook(Full Permission)

24

ainda não é o de amanhã. Reaja ao exibicionismo

de consumir por grife. Lembre que um sapato

é para usar, não para mostrar a marca. Reaja

à propaganda que amplia suas necessidades e

manipula seus gostos e gastos.

Adote um estilo de vida para consumir menos,

adie a substituição de seus bens de consumo por

anos, ou até décadas. Veja a beleza de manter o

uso dos bens independentemente da idade que

eles tenham. Sinta a beleza de um pulôver antigo,

de um sapato usado. Torne supérfl uo o consumo

supérfl uo.

Reaja ao modernismo que tenta se impor apenas

porque é novo, sem uma base estética ou ética

para justifi car. Não veja o moderno como sinôni-

mo de bom ou de belo. Moderno deve ter apenas

signifi cado etimológico: aquilo que é de hoje –

hodiernus. Um conceito temporal, cronológico,

sem valor especial além do momento em que

surgiu. Olhe para o moderno com visão crítica,

buscando encontrar sua utilidade, sua beleza, sua

bondade, quando estas existirem.

Page 23: Reaja eBook(Full Permission)

25

Reaja contra a estrutura social que condena uma

parte dos seres humanos à miséria do desem-

prego – deixando-os sem acesso aos bens mais

essenciais – e outra parte à miséria do excesso

de trabalho – para pagar o custo do consumo

supérfl uo. Reaja à lógica que condena o ser hu-

mano à pobreza e à vergonha da falta de trabalho

ou ao trabalho desnecessário para fi nanciar um

consumo desnecessário.

Reaja contra a escravidão que continua, no sécu-

lo XXI, sob a forma direta do trabalho forçado;

ou disfarçada em serviços domésticos, trabalho

infantil, exploração sexual; ou então a moder-

na escravidão da dívida, as algemas modernas,

plásticas, dos cartões de crédito.

Reaja contra a ideia de que a riqueza consiste em

gastar a vida endividando-se e trabalhando mais

do que o necessário para comprar mais do que o

necessário; afastando-se de vizinhos, esquecendo

a família, deixando de olhar ao redor, sem se

deslumbrar com a beleza ou se indignar com as

injustiças.

Page 24: Reaja eBook(Full Permission)

26

Reaja contra o tempo que lhe é roubado da leitura,

do namoro, do lazer pelo trabalho indesejado que

você não escolheu, que lhe chegou. Reaja contra

o desviver de ocupar uma profi ssão que não lhe

dá prazer nem aventura. Nem sempre você vai

conseguir escapar, mas reaja mesmo assim. Você

não nasceu para ter um ofi cio; tem um ofício

para ajudá-lo a viver e fazer um mundo melhor

e mais belo.

Reaja.

Não deixe que o progresso roube a chance da hu-

manidade de usar sua capacidade de criar tempo

livre e usar esse tempo livre para as atividades

da cultura; não deixe a humanidade continuar

prisioneira do mercantilismo, do produtivismo

e do consumismo.

Reaja aos absurdos orçamentos militares que em

2010 consumiram no mundo inteiro o equivalente

a US$ 1,5 trilhão de dólares. Recursos que permi-

tiriam oferecer escola a todas as crianças pobres

Page 25: Reaja eBook(Full Permission)

27

do mundo. Recuse a lógica de um PIB medido

pelo valor das armas produzidas.

Não aceite o conceito de que a bala que matou

John Lennon aumentou a riqueza mundial por-

que serviu para ampliar o PIB norte-americano.

Não aceite que a bala usada por um assassino

aumenta a riqueza social medida pela produção

e, se for certeira no coração da vítima, aumenta

a renda per capita ao diminuir o número de habi-

tantes. Reaja contra a economia que se diz ciência

sem necessidade de ética; que trata a tragédia do

“desemprego” como “desequilíbrio”; a “destruição

de fl orestas” como “produção de riqueza”. Reaja

contra a economia que considera produtos as

armas que matam e comemora o aumento da

riqueza medido pelo uso delas.

Armas podem ser necessárias para defender

a riqueza existente, não para aumentá-la. As

muralhas que cercam uma mansão aumentam

a tranquilidade de seus moradores prisioneiros;

servem para afastar os indesejáveis, não para

tornar a vida mais alegre.

Page 26: Reaja eBook(Full Permission)

28

Veja com desconfi ança um mundo cercado de

muralhas por todas as partes, nos condomínios

e shoppings. Pense como será seu país quando for

governado por crianças que jamais colocaram os

pés nas ruas de suas cidades; que veem o mundo

pelas grades de seus jardins ou pelos vidros escu-

ros de seus carros, e só conseguem vê-lo de dentro

dos shoppings ou das escolas por causa do tamanho

dos muros que os rodeiam. Pense também como

será o seu país se vier a ser governado pelos que

cresceram do outro lado do muro, carregando

desejos não realizados, mágoas aumentadas.

Reaja contra a monocromática economia me-

dida pela produção. Defenda todas as cores da

economia: “verde”, porque respeita a natureza;

“vermelha”, por ser comprometida com a redução

da pobreza e a boa distribuição do produto e

da renda; “amarela”, por ser produto do conhe-

cimento, da ciência e da tecnologia a serviço

de todos, conforme a necessidade de cada um,

para aumentar a esperança de vida e o conforto;

“branca”, por não atribuir valor às armas; “azul”,

por medir a riqueza com base no bem-estar e

Page 27: Reaja eBook(Full Permission)

29

na felicidade das pessoas e não no quanto elas

ganham, têm ou consomem.

Reaja contra a defi nição de riqueza baseada na

renda e no consumo. Entenda que mais vale uma

hora livre para caminhar por dia que uma hora

perdida no trânsito, ou gasta em busca de salário

adicional para comprar coisas desnecessárias.

Mais vale respirar ar puro que comemorar o au-

mento na produção; mais vale chegar cedo à casa

da namorada que fi car preso no engarrafamento

dentro de um carro novo.

Reaja à lógica irracional e insensível que, im-

posta há tanto tempo, já tomou conta das nossas

mentes: a ideia de que felicidade é sinônimo de

consumo; como se esta visão fosse intrínseca à

humanidade, estivesse no DNA de cada ser huma-

no. Não está. Mas se estivesse, reaja mesmo assim.

Reaja contra todo e qualquer país que comemo-

re ser uma potência econômica sendo fracasso

social na educação, na saúde, na estrutura urbana,

na distribuição de renda, na harmonia entre as

Page 28: Reaja eBook(Full Permission)

30

pessoas. Reaja contra comemorar o aumento de

famílias recebendo assistência em vez de come-

morar a diminuição do número das famílias que

precisam desta ajuda.

Reaja à desigualdade. Hoje, 1% dos ricos do

mundo detém 40% do patrimônio mundial. As

três pessoas mais ricas têm patrimônio superior

à população somada das 48 nações mais pobres.

É preciso indignar-se, como pede Hessel, mas

também reagir contra esta realidade imoral. Mas

não basta reagir à má distribuição da renda e do

consumo, reaja também ao consumismo, porque

é impossível todos consumirem como os 20%

mais ricos. O planeta não suportaria.

Entenda que levar o consumo das classes médias

a toda a população mundial exigiria uma Terra

sete vezes maior que o seu tamanho real. Esta

pegada ecológica seria ainda maior se quisermos

levar o consumo dos 10% mais ricos a todos os

sete bilhões de seres humanos. Não aceite que a

solução seja congelar a concentração de renda e

o consumo para poucos. A ética da igualdade e

Page 29: Reaja eBook(Full Permission)

31

os limites ecológicos só podem ser compatíveis

com a redução do consumo supérfl uo e talvez até

mesmo com um decrescimento harmônico e feliz,

no lugar do crescimento esquizofrênico e suicida.

Veja que a globalização criou um país dos ricos do

mundo inteiro, unidos pelo padrão de consumo,

pela cultura dita universal, pelos gostos e gastos,

pela culinária e as marcas de vinho, e até mesmo

pela temperatura nos carros, nos shoppings e ae-

roportos. E manteve um arquipélago de pobres

espalhados, excluídos, diferentes até mesmo

dentro dos próprios países. Observe o mundo

mais dividido entre os incluídos e os excluídos

da modernidade, ricos e pobres, do que entre as

nações. Não aceite ser parte do superconsumo

de um Primeiro Mundo Internacional dos Ricos

cercado por Ilhas do Arquipélago Social onde

os pobres sobrevivem na escassez. Reaja e aja

para derrubar a barreira que divide o mundo

separando as pessoas por uma cortina invisível

que divide países, mas é concreta nos muros dos

shoppings centers, nas grades dos condomínios, nas

muralhas que separam as populações dos EUA e

do México, nos guichês da polícia de fronteira

em cada país.

Page 30: Reaja eBook(Full Permission)

32

A vocês foi prometido um mundo sem a Cortina de Ferro que separava países segundo o seu siste-

ma social e econômico, capitalismo ou socialismo.

Mas construíram outra separação. Reaja à Cortina de Ouro que serpenteia o planeta dividindo entre

ricos e pobres as populações de cada país, que de

tão desiguais já começam a perder o sentimento

de semelhança. Não aceite a marcha em direção

à quebra da convicção de que todos os seres hu-

manos são semelhantes entre si.

Não aceite que as maravilhas da ciência e da

tecnologia sejam usadas para induzir uma mu-

tação biológica em benefício dos ricos, capazes

de comprar o conhecimento da genética, da

biotecnologia, da medicina. Não assista passiva-

mente à evolução de poucos para a situação de

um neo-homo-sapiens, superior na esperança de

Page 31: Reaja eBook(Full Permission)

33

vida, na saúde física e no potencial intelectual aos

neo-neanderthals a que os excluídos do mundo

estão sendo condenados a transformar-se. Esta

evolução pela ciência e tecnologia representa o

mais violento passo de involução ética, pior que

o racismo nazista e o apartheid sul-africano.

Reaja contra a globalização que destrói nações.

Reaja à visão de que a antropofagia só ocorre

quando o corpo de um ser humano é comido; ela

também ocorre quando a alma é convertida por

uma religião alienígena ou pelo consumismo de

uma civilização esquizofrênica. O que criticar na

antropofagia que come carne quando assistimos

à antropofagia que come almas e culturas? Mas

também reaja contra o isolamento que quer tratar

cada país como ilha. Veja o mundo como um

condomínio de nações; cada uma independente,

mas todas solidárias. Perceba que no mundo in-

tegrado de hoje todo ser humano é vizinho, não

importa em que lugar do planeta viva.

Reaja ao mundo dividido por fronteiras políticas

artifi ciais que dividem os seres humanos. Por isto

é necessário solidariedade internacional: globali-

zar a mente e os corações, não apenas os bolsos

Page 32: Reaja eBook(Full Permission)

34

e as contas. Não confunda internacionalismo e

globalização. Reaja contra a globalização que

começa por cima, universalizando os ricos, em

vez da sonhada internacionalização que nasceria

por baixo, unindo os trabalhadores. Este era

o sonho dos internacionalistas do passado, no

sentido contrário ao dos globalistas do recente

neoliberalismo.

Reaja ao direito de cada país sentir-se no direito

de queimar suas fl orestas, sujar seus rios, jogar

lixo no espaço ou no oceano. Não aceite a visão

do nacionalismo primário e egoísta em nome do

qual um país justifi ca jogar dióxido de carbono

na atmosfera, estragar a vida no Planeta Terra

só porque no passado outros países cometeram

este crime antes, sem medidas protetoras.

Defenda os recursos naturais como patrimônio de

todos, sob os cuidados de cada nação e cada gera-

ção. De todos: do passado e do futuro. Defenda

a necessidade da internacionalização moral do

patrimônio comum da humanidade: as fl ores-

tas, o oceano, o espaço, os museus. Lute pelos

Page 33: Reaja eBook(Full Permission)

35

direitos daqueles que ainda não nasceram. Não

aceite deixarmos para eles um mundo pior do

que o recebemos de nossos antepassados. Faça

o possível para que no mundo deles haja mais

fl ores, mais harmonia, as baleias continuem

donas do mar ainda azul, os pássaros donos

do céu também ainda azul e os seres humanos

continuem falando em todos os seus idiomas, e

com mais entendimento. Reaja ao suicídio que

parece tomar conta da humanidade.

Reaja à lógica que defi ne a demanda de energia

em função de um consumo sem sentido, justi-

fi cando lagos que destroem a diversidade e ex-

pulsam nações indígenas de seus locais sagrados.

Não aceite a visão utilitária mercantilista que

seria capaz de perfurar a Terra Santa ou a Meca

em busca do petróleo, porque a rentabilidade

da exploração de combustível prevalece sobre o

valor moral da conservação do solo sagrado. E

enquanto isto não ocorre vão comprometendo o

futuro da humanidade, explorando petróleo no

Polo Norte.

Page 34: Reaja eBook(Full Permission)

36

Enquanto a ciência e a engenharia não forem

capazes de garantir total segurança, reaja contra a

alternativa de energia nuclear, cujos impactos em

condições normais podem ser limpos ecologica-

mente, mas em caso de desastres provocam catás-

trofes que perduram por centenas de milhares de

anos, atingindo centenas de milhares de pessoas.

Como vi em Chernobyl, e acompanhamos pela

televisão em Fukushima. Atingindo inclusive

crianças que ainda não nasceram.

Não aceite ser parte da civilização-meteoro que

ameaça provocar um desastre de proporções

equivalentes ao provocado por um meteoro na-

tural vindo do espaço 65 milhões de anos atrás.

Apesar de tudo, reaja ao pessimismo.

Não aceite o niilismo daqueles que optam pelo

acomodamento ao sentirem que o ser humano

é incapaz de cuidar do Planeta, porque nesse

caso seríamos inexoravelmente movidos pelo

individualismo e imediatismo da voracidade

do consumo. Nem aceite o niilismo ainda mais

radical daqueles que consideram a humanidade

Page 35: Reaja eBook(Full Permission)

37

carente de importância cósmica e acham que o

desaparecimento da espécie humana e mesmo

de toda a vida na Terra nenhum impacto teria

sobre a imensidão do universo. É verdade: diante

do Sol, das estrelas e galáxias somos menos que

poeira. Mas esta poeira embeleza o Cosmo ao

deslumbrar-se com ele, ao buscar explicações

para ele. É pelo Cosmo que é importante salvar

a humanidade e sua civilização, com sua ciên-

cia, sua arte – ou seja, a nossa consciência, que

não existe nas pedras, nas plantas, nos demais

animais.

Sem a nossa consciência, o mundo continuará,

mas sem existir.

Por isto, não se deixe levar pelo pessimismo, ainda

sabendo que ele é mais lúcido do que o otimismo.

Transforme a impossibilidade de salvar a humani-

dade na justifi cativa de sua luta. É como as altas

montanhas: se é impossível subir, mais razão para

tentar. Só porque estão ali. Além de que, nada

impede que outras poeiras conscientes existam

em outros mundos da imensidão. E se nenhum

Page 36: Reaja eBook(Full Permission)

38

outro valor houvesse para salvar a humanidade,

justifi caria salvá-la para continuarmos buscando

outras vidas conscientes, como Colombos siderais.

Se nos salvarmos dos nossos equívocos, da nossa

inteligência técnica sem alma, sem ética, corroída

pela maneira como transformamos as pedras, as

plantas e os animais em produtos que atendem à

voracidade do consumismo, tentando preencher

o vazio de nossa existência.

Reaja contra a falta de liberdade. Grite, grite

sempre e o mais alto possível contra o silêncio

que acomoda e engana. Reaja contra o partido

único, criado pela submissão e a conivência

dos bajuladores e oportunistas; grite alarmado

contra o pensamento único criado pela mudez

conformada, assustada ou conivente dos intelec-

tuais, pela imprensa medrosa ou comprada, ou

simplesmente cega, sem capacidade de análise

independente. Diga não. Sinta o orgulho de dizer

não quando todos ao redor dizem sim. O prazer

de nadar contra a corrente de ideias.

Page 37: Reaja eBook(Full Permission)

39

Reaja à universidade que sempre diz sim e luta

apenas por mais verbas e não por novas ideias.

Reaja contra a universidade alienada dos pro-

blemas do mundo. Contra as aulas consumidas,

aprendidas apenas até o dia da prova, o dia da

prova servindo apenas para o dia da formatura e

a formatura servindo apenas para o diploma. Não

veja o seu conhecimento apenas como ferramenta

para um emprego. Veja a universidade como o

lugar de sua realização, o templo onde você vai

conquistar o céu do saber das coisas do mundo.

Veja, sinta e ajude a construir uma universidade

tridimensional: com o Departamento que lhe

oferece uma profi ssão e um saber aprofundado em

certa área do conhecimento; o Núcleo Temático

Multidisciplinar que lhe oferece compromisso

para conhecer e transformar a realidade; não

se contente com uma universidade que não lhe

oferece a chance de um Núcleo Cultural onde

você possa manifestar seu lado lúdico e seu po-

tencial humanista. Não aceite universidade sem

fi losofi a. Sem fi losofi a, qualquer profi ssional, por

mais preparado, é uma máquina de pensar, não

um ser pensante. Para ser um ser pensante, leia

fi losofi a, mas não apenas os textos de fi lósofos:

veja a fi losofi a que há nos contos e romances

Page 38: Reaja eBook(Full Permission)

40

da literatura, nas poesias, até nas músicas, nos

jogos de que você participa.

Reaja contra o vazio ideológico que tomou conta

do mundo. Não aceite a falta de propostas, de

bandeiras de luta. Escolha a sua bandeira. Se

nenhuma lhe satisfi zer, crie uma nova e vá para

a rua buscar aliados. Não se contente em optar

por uma das alternativas que lhe oferecem: bus-

que e escolha entre outras ainda desconhecidas,

que ainda parecem impossíveis. As opções entre

alternativas conhecidas não permitem sonhos.

Só a escolha livre permite sonhar com o impos-

sível. Não deixe de sonhar com uma utopia. Se

você percebe a morte da utopia capitalista ou

socialista, crie uma nova utopia, mais radical.

Não queira mudar apenas o sistema econômico

e social, queira mudar a própria civilização atual.

Lembre que no mundo de hoje o capitalismo é

um carro de luxo em alta velocidade na direção de

um abismo jogando poeira no povo da margem;

e o socialismo é um ônibus com velocidade um

pouco menor que recolhe todos os que estavam na

margem mas vai na mesma direção do precipício.

Page 39: Reaja eBook(Full Permission)

41

A nova utopia ainda não tem nome, cabe a você

criá-la e batizá-la. Mas não há dúvida de que o

retrato da utopia será um país sem muros cer-

cando escolas, hospitais, condomínios, shoppings. Reaja contra o labirinto de muros que serpenteia

a superfície social do mundo. Essa utopia vai

exigir um piso – social – mínimo, abaixo do qual

nenhum ser humano e sua família serão abando-

nados, por mais pobre que seja; e um teto – eco-

lógico – máximo, acima do qual ninguém poderá

consumir, qualquer que seja a sua renda; entre

esses dois limites, uma desigualdade de renda e

consumo será tolerada conforme a ascensão social

de cada pessoa. A escola de qualidade igual para

todos será a escada que defi nirá a posição social,

conquistada livremente, conforme o talento, a

persistência, os desejos e a vocação.

Page 40: Reaja eBook(Full Permission)

42

Reaja contra o vazio estético que esconde belezas

ansiosas para serem expostas. Roube as belezas

ainda escondidas. Conforme sua vocação, não

deixe páginas em branco sem textos escritos;

não deixe bloco de mármore com uma escultura

aprisionada; não deixe cores isoladas escondendo

quadros ainda inexistentes que desejam afl orar;

assovie quebrando o silêncio que aprisiona as

canções. Roube também as verdades que estão

guardadas na ignorância de fi losofi as incomple-

tas, ciências superfi ciais, éticas preconceituosas.

No fundo do mar do conhecimento há riquezas

a serem liberadas, trazidas à superfície da sua

consciência e espalhadas pelas consciências de

outros. Reaja contra o vazio epistemológico que

esconde verdades ansiosas para serem descobertas,

porque usamos métodos tradicionais de pensar.

Não pense apenas o novo e o impossível, pense

de maneira nova e imprevisível.

Reaja contra projetos que desalojam índios de

suas terras ou expulsam moradores de favelas.

E contra discriminação. Todas elas: por defeito

físico, raça, gênero, opção sexual ou religião

Page 41: Reaja eBook(Full Permission)

43

professada. Não seja tolerante ou conivente com

desvios éticos e seja intolerante com a intolerância

dos preconceitos.

Reaja contra a corrupção de políticos que põem

dinheiro público no bolso ou na conta, por pro-

pina ou desvio de recursos. Mas também contra

a disfarçada e igualmente grave corrupção nas

prioridades que faz opção por gastos públicos que

benefi ciam apenas a minoria rica, relegando sis-

temas de água e saneamento, escolas e hospitais

para a maioria. Reaja contra o cinismo de políti-

cos; e de eleitores também. Repudie o político que

não cumpre as promessas que fez na campanha,

e o eleitor que vota apenas por interesse pessoal

imediato, ou debochadamente, sem respeito ao

nobre ritual de escolher seus representantes no

parlamento ou no poder executivo.

Escolha políticas da ética, não da ótica. Os éticos

têm valores morais e com base neles elaboram

seus programas; os óticos têm apenas o olhar

ávido pelo poder e são capazes de sacrifi car suas

almas.

Page 42: Reaja eBook(Full Permission)

44

Mas reaja também contra a corrupção de outros

poderes, no sistema judiciário, na mídia, nos

sindicatos, clubes esportivos ou carnavalescos.

Reaja contra a corrupção de cada um, no dia a

dia. Não feche os olhos para aqueles que usam

jeitinhos para burlar os direitos dos outros.

Reaja contra o terrorismo, seja de que lado for,

seja qual for sua justifi cativa. Tanto o terrorismo

de grupos e indivíduos quanto o terrorismo ofi -

cial de Estados e governos. Reaja contra todas

as formas de violência até mesmo quando feitas

contra criminosos; mas, sobretudo, reaja contra

a violência como são tratadas as crianças, as

mulheres, os índios, os negros, os homossexuais,

os pobres.

Reaja ao que se faz contra os habitantes da

Palestina, e aos que jogam bombas sobre habi-

tantes de Israel; contra aqueles que atacam os

gays em diversos países, os pobres na América

Latina, os muçulmanos em quase todos os países

ocidentais. Reaja também contra aqueles que

desejam esconder ou negar o holocausto contra

os judeus ou o direito dos judeus de terem seu

próprio país. E contra governos que usam tanques

Page 43: Reaja eBook(Full Permission)

45

para enfrentar pedras. Reaja contra o abandono

do povo pelos ricos do mundo e pelos ricos do

próprio país.

Reaja à maneira como a educação é destratada.

Reaja às consequências diretas deste destrato e

contra todos os que conduzem a economia presa

aos séculos XIX e XX, despreparada e resistente ao

salto em direção à economia do conhecimento

que caracteriza o século XXI.

Reaja ao descaso dos serviços públicos, escolas

parcialmente ativadas, hospitais que parecem de

guerra, não importa em que país isto aconteça.

Reaja contra as fi las que o povo enfrenta para ter

atendidos seus direitos mais essenciais: seja para

receber comida em Mogadíscio ou educação e re-

médios em São Paulo. E, ainda mais fortemente,

reaja contra as promessas do livre mercado que

barram até mesmo as fi las, impondo a exclusão

até da esperança de esperar.

Reaja contra a apropriação da ciência e da tec-

nologia a serviço da violência da guerra e da

Page 44: Reaja eBook(Full Permission)

46

ganância dos ricos. A inteligência é produto do

cérebro de uma pessoa, mas a inteligência de

cada pessoa se deve aos cérebros das milhares de

pessoas que direta ou indiretamente participaram

de sua educação; é resultado do esforço coletivo

de intelectuais que pesquisam e de trabalhadores

que os alimentam para que possam pesquisar. A

inteligência é de uma pessoa, mas o conhecimen-

to é produto de todos, e deve pertencer a todos os

homens e mulheres. É indigno que a descoberta

de um remédio só sirva a quem pode pagar por

ele, prostituindo-se a inteligência dos cientistas

que o descobriram.

Reaja contra a transformação da maravilha da

arte do futebol em ópio que impede a justa e

necessária revolta do povo.

Reaja àqueles que transformaram a beleza da

liberdade sexual na vergonha da pornografi a; e de

forma irada reaja ao maldito crime da pedofi lia.

Reaja contra a ideia de que o mundo vai bem,

apenas porque não vai tão mal quanto antes.

Page 45: Reaja eBook(Full Permission)

47

Não aceite ser sequestrado por ideias. Com elas

devemos casar quando nos deslumbram, mas

nunca devemos nos subordinar a elas só porque

nos chegam bem pintadas e arrumadas, porque

trazem dinheiro ou são impostas por pessoas que

se fazem passar por donas da verdade. Derrube

as verdades que se apresentam como donas do

mundo. Escolha aquelas que lhe agradam e

adote-as. Não deixe que elas o adotem. Recuse ser

guiado por mensagens que não tenham passado

pelo fi ltro de sua consciência nem penetrado

fundo em seu coração. Respeite os que pensam

diferente. Reconheça as qualidades até mesmo

daqueles de quem você não gosta; e não deixe de

criticar os erros mesmo daqueles de quem você

gosta. Se um bandido escrever um bom livro,

diga que ele escreveu um bom livro; e continua

sendo bandido. Não ignore que ele escreveu um

bom livro nem deixe que isto esconda que ele é

bandido.

Para cada fato e ideia assuma uma posição. E

defenda-a. Não aceite análises simplistas, nem

apresentações complexas. Toda posição simplista

é insufi ciente para apresentar o novo; mas toda

análise e proposta complexa pode ser apresentada

Page 46: Reaja eBook(Full Permission)

48

de forma simples. Busque o difícil fazendo-o

bonito pela simplicidade.

Não se conforme com a lei da gravidade. Tente

voar por todos os meios disponíveis, asas delta,

para-quedas, planadores; ou nas asas de sua

imaginação. Procure ver a beleza da matemática

procurando novos caminhos para provar velhos

teoremas na álgebra, cálculo ou geometria; re-

aja contra geógrafos, desbravando novas terras;

refaça os mapas com seu caminhar; enfrente as

ideologias criando novas visões do mundo.

Reaja aos limites do seu idioma, aprendendo ou-

tros, testando novas formas gramaticais, criando

novas palavras. Se você realmente pensa o novo,

terá de criar palavras novas. Não tema o ridículo

que elas carregam ao nascer, no primeiro mo-

mento em que são usadas.

Reaja aos slogans. Todos eles, inclusive o “Reaja”.

Se quiser, construa os seus próprios. Lembre-se

Page 47: Reaja eBook(Full Permission)

49

que os slogans morrem, os motivos que lhes

deram nascimento também; mas sua razão e

sua crença pessoal fi cam, pelo menos enquanto

você assim considerar correto e justo. Reaja aos

dogmas: de padres, pastores, rabinos, gurus,

líderes políticos ou sindicais, patrões, aiatolás,

professores e generais. Milite em um partido

para libertar e libertar-se, nunca para escravizar

ou ser escravizado.

Reaja às ordens vindas de uniformes de todos os

tipos, batinas, fardas, ternos, togas, macacões.

Olhe nos olhos de quem as dita. Só aceite as

mensagens pelo conteúdo, nunca pela ordem

nem pela embalagem de quem as diz.

Reaja ao imobilismo, sob todas as maneiras e pre-

textos. O parado não é vivo, move-se apenas em

sua degradação natural. Como cadáver. Mova-

se e mova as coisas ao seu redor, as coisas e as

ideias. Dê volta nas ideias do mundo e naquelas

que você carrega. Não se contente com uma ideia

parada. Ideia parada é ideia morta. Não aceite o

sedentarismo, nem o sectarismo. O primeiro é

Page 48: Reaja eBook(Full Permission)

50

a paralisia física, o segundo a paralisia mental:

pensamento engessado. Mude de cidade onde

mora ao menos uma vez em sua vida. Renove

suas relações pessoais fazendo de cada dia um

novo dia com as pessoas que você ama e com

aquelas que não ama também.

Viaje sempre que puder; para onde escolher, e

até sem escolher nem planejar. Cada pessoa é

um Marco Polo. Quando lhe disserem para ir de

avião, tente um trem ou barco; se o conselho for

para ir de carro, tente um ônibus ou caminhar.

Quando não puder viajar fi sicamente, abra um

livro sobre viagens feitas por outros. Não tema o

desconhecido, nem a curiosidade para caminhar

e olhar ao longo do caminho por onde passa.

Nunca feche os olhos para as paisagens, nem os

ouvidos para os sons que ocorrem ao longo do seu

caminho. Teste o gosto de todos os alimentos que

encontrar nas paradas. Prove todas as comidas

que lhe forem oferecidas.

Ame o desconhecido, esta é uma forma de reagir

ao dia a dia, ao imobilismo, ao conformismo. Seja

curioso. A curiosidade de conhecer o mundo

e como ele funciona. Não mova o interruptor

Page 49: Reaja eBook(Full Permission)

51

da sua sala sem se perguntar como é possível

que aquele gesto faça a luz acender. Derrube as

paredes. Sobretudo as invisíveis. Estas são as

piores: construídas à sua volta desde os primei-

ros anos, vão sufocando sem que você perceba.

São estas paredes que aprisionam o espírito e

o intelecto até quando não puder mais escapar.

Leia, leia, leia muito, mas interagindo com o

autor; às vezes para deslumbrar-se, outras para

indignar-se; outras para entender e outras para

se contrapor. Leia muito, mas não seja leitor

passivo. Liberte os personagens trazendo-os à

vida da sua imaginação, não os deixe prisioneiros

dos livros em páginas fechadas, cemitérios de

livros esquecidos. Em cada texto veja onde você

mudaria as vírgulas, que outras palavras usaria,

quais destinos alternativos daria a cada perso-

nagem, e até mesmo que novo enredo armaria.

Ouça música, tanto quanto puder, mas ouça com

o corpo inteiro, a partir das entranhas, não dos

ouvidos; veja pinturas e esculturas mergulhando

nelas, não apenas como espectador distante.

Page 50: Reaja eBook(Full Permission)

52

Reaja à arrumação dada às pedras deste quebra-ca-

beça que chamamos mundo. Independentemente

de como ele foi criado, lute, trabalhe, aja para

mudar a arrumação das peças buscando fazer a

realidade mais harmônica, com mais justiça, mais

beleza, mais equilíbrio. Redesenhe, nem que

seja um pequeno pedaço do mundo. Prometa a

si próprio que, ao morrer, pelo menos uma peça

estará em posição diferente daquela que estava

no dia que você nasceu. Basta ter um fi lho e o

quebra-cabeça do mundo já fi cou diferente; ter

vivido um belo amor, mesmo sem fi lho, rompe o

quebra-cabeça; construa uma casa; mude o curso

de um rio conversando com o vale onde ele corre;

plante árvores; escreva, ainda que seja um verso

simples de poema. Basta contar uma anedota

numa tarde de sábado, fazendo os amigos rirem,

e você já mexeu nas peças do mundo. Faça o

mundo ser AV, Antes de Você, e DV, Depois de

Você. É a isto que se chama razão de viver.

Borges, cego, quando esteve no deserto egípcio se

agachou, agarrou um punhado de areia, levantou,

deu um passo e deixou escorrer aos poucos entre

Page 51: Reaja eBook(Full Permission)

53

os dedos a fi na areia desértica. Olhando para

o ponto distante aonde os cegos miram, disse:

“Acabei de mudar o universo”. Mudou duas vezes:

ao mover a areia e ao fazer um poema. Procure

fazer mudanças mais radicais do que Borges,

mas se não tiver a chance ou não quiser, faça

um simples poema e o quebra-cabeça já estará

transformado, o DV estará diferente do AV: você

terá justifi cado sua existência. Mas, para isto,

precisa ter consciência de seu papel no mundo.

Reaja ao silêncio. Não aceite esconder qualquer

fato da história do seu país e do mundo. Não

se conforme com segredos históricos, exija a

máxima transparência em todas as decisões

políticas. Reaja ao silêncio entre você e alguém

desconhecido ao lado. Converse, converse, para

não se arrepender do silêncio-barreira entre você

e o seu ao-redor. Saiba que o silêncio no passado

carrega remorsos para o futuro, quando imaginar,

anos depois, o que perdeu por não falar naquele

instante. Nunca deixe o silêncio impedir a pon-

te que você pode construir com pessoas. Nem

ignore o risco do arrependimento por não ter se

manifestado em cada instante de sua vida.

Page 52: Reaja eBook(Full Permission)

54

Reaja ao fato de a Natureza não ter lhe dado asas,

usando ao máximo as pernas que você tem e as

asas invisíveis de sua imaginação para compensar

as que você não recebeu, por não ser pássaro. A

Natureza lhe deu as asas do sonho, voe com a

imaginação nos livros que você ler, nas músicas

que escutar, nas cores que vir, com as conversas

que tiver. E também sem nada disto, pelas asas

puras, suas, nos dias de chuva ou de sol, quando

sem nada fazer você voa por si, sozinho. Para isto,

precisa ter consciência de que está voando. Não

tenha inveja dos pássaros, eles não imaginam o

voo.

Ao fechar um livro que leu até o fi nal, reaja ao

que leu. E não reaja apenas por reagir. Aja. Para

isto, escreva seu próprio livro, com suas ideias e

ações. Esta será uma forma de reagir.