razões econômicas, não economicistas, do golpe de 1964

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ISSN 0 103-9466 229 Razões econômicas, não economicistas, do golpe de 1964 Pedro Paulo Zahluth Bastos Março 2014

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2 - Razões econômicas, não economicistas, do golpe de 1964

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  • ISSN 0103-9466

    229

    Razes econmicas,

    no economicistas,

    do golpe de 1964

    Pedro Paulo Zahluth Bastos

    Maro 2014

  • Texto para Discusso. IE/UNICAMP, Campinas, n. 229, mar. 2014.

    Razes econmicas, no economicistas,

    do golpe de 1964

    Pedro Paulo Zahluth Bastos

    Narrativas histricas que buscam explicar processos polticos a partir de razes econmicas j estiveram mais em voga. Os pecados do reducionismo, esquematismo, funcionalismo e determinismo justificam a averso ao economicismo. Max Weber foi um dos primeiros e mais acerbos crticos. Mesmo na tradio marxista, contudo, a rejeio determinao dos movimentos da superestrutura pela base econmica hoje moeda corrente. O economicismo visto como uma herana do clima cultural do sculo XIX que sequer retrata corretamente a viso do prprio Marx. Este conferiu suficiente autonomia luta de classes e enfatizou a indeterminao do ritmo e dos resultados da mudana histrica em vrias obras clssicas. Chegou mesmo a frisar a importncia do acidente na histria. Marxistas que vivenciaram processos de regresso conservadora, como Gramsci, tiveram mais motivos prticos para questionar o economicismo progressista da Segunda Internacional. No representavam, porm, um corte radical com a viso do prprio Marx.

    Algumas tentativas de explicar o ciclo de regimes autoritrios de direita na Amrica Latina tambm foram rejeitadas por excesso de determinao econmica. As crticas foram dirigidas especialmente s explicaes de Guillermo ODonnell (1972) e Ruy Mauro Marini (1973) para o surgimento das ditaduras na regio. Para o caso brasileiro, Fernando Henrique Cardoso (1972) e Michael Wallerstein (1980) foram os alvos principais. Essas interpretaes compartilhavam da ideia que os golpes responderam a necessidades inexorveis impostas por aspectos econmicos estruturais ou cclicos. Uma crtica foi que no havia uma nica forma de sada da crise, existindo alternativas selecionadas pelo conflito poltico (Hirschman, 1977; Serra, 1979; Figueiredo, 1987). Outra, que os agentes que efetivamente comandaram o golpe os militares no citavam a crise econmica como fundamental para sua ao nem tinham um projeto acabado para resolv-la (Soares, 1994; Fico, 2004).

    Meu ponto que a rejeio de razes econmicas para o golpe de 1964 no Brasil foi longe demais. Para usar uma imagem gasta, em alguns casos jogou o beb junto com a gua suja. Concordo que havia alternativas de encaminhamento da crise econmica que no exigiam, inexoravelmente, golpes autoritrios de direita e as solues que deram para a questo. Discordo, porm, que razes econmicas no tivessem importncia fundamental nos conflitos que levaram ao golpe e no estilo de interveno que a ditadura promoveu sobre a economia e a sociedade.

    Pretendo defender essa posio de trs maneiras. Primeiro, mostro como a conjuntura da primeira metade da dcada de 1960 foi marcada por desequilbrios econmicos cclicos que tiveram forteimpacto sobre a distribuio de renda entre diferentes grupos sociais. Segundo, defendo que a

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    mobilizao poltica e ideolgica crescente no explicada apenas pelo conflito distributivo, mas desconsiderar a estrutura e a dinmica econmica empobrece a anlise. A insero econmica de classes e fraes sociais essencial para entender a posio ideolgica e o alinhamento poltico.

    Terceiro, argumento que o embate poltico elevava-se desde o conflito distributivo mais imediato at ao plano dos projetos alternativos para superar a crise em direo a uma certa viso desejada desociedade. Nesse sentido, o estilo de interveno econmica e social executado pela ditadura estava prenhe no apenas em algumas propostas j publicadas antes do golpe, mas tambm no diagnstico crtico quanto suposta desordem promovida pelo chamado populismo de Joo Goulart. Em suma, envolvia resolver os conflitos e sair da crise de um modo contrrio s aspiraes dos trabalhadores que eram interpelados por Goulart com promessas de redistribuio de propriedade e renda. O autoritarismo poltico, portanto, vinha em par com um plano de ao que visava recolocar os trabalhadores em seu devido lugar em uma viso desejada de sociedade que tinha um ntido contedo hierrquico e, naquela conjuntura, regressivo.

    Desacelerao e crise: no h esmagamento de lucros por salrios e impostos (antes pelo contrrio)

    No incio da dcada de 1960, a conjuntura econmica foi muito influenciada pela concluso dos investimentos planejados no Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek, desde 19561. Estes investimentos implicaram uma descontinuidade estrutural na economia brasileira, ao internalizar ramos novos de material eltrico, mecnico e de transporte, e ampliar ramos de insumos bsicos e a infraestrutura de energia e transporte. Com isto, o Plano de Metas colocou a economia brasileira em um estgio superior de desenvolvimento produtivo, com acelerao do ritmo de incorporao de progresso tcnico. A insero tradicional na diviso internacional do trabalho tambm era questionada: a maior parte das necessidades de insumos bsicos e bens de capital foi produzida internamente (ampliando-seinclusive a possibilidade de exportao de manufaturados), e o grau de autonomia em relao s oscilaes do setor exportador de commodities primrias aumentou. Em geral, os investimentos tinham requisitos de financiamento e complexidade tecnolgica incomuns para a economia brasileira, e exigiam plantas produtivas cuja escala mnima no era justificada pelo ritmo prvio de aumento da demanda corrente, mas sim pelos encadeamentos gerados, para frente e para trs das cadeias produtivas, pelo prprio bloco integrado de investimentos. Em outras palavras, os investimentos viabilizavam mutuamente a escala dos mercados que atenderiam, at serem concludos.

    O sucesso na concluso do Plano de Metas trazia, conjunturalmente, cinco problemas macroeconmicos centrais, que tornaram a gesto da poltica econmica muito complicada. Primeiro, um problema de sustentao da demanda agregada depois da maturao dos investimentos, que trouxe uma marcada desacelerao do crescimento. Afinal, a capacidade ociosa criada pelos investimentos

    (1) O que se segue est apoiado parcialmente em Bastos (2011a). Para aprofundamento sobre a dinmica cclica e seus desequilbrios, ver Tavares (1974).

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    postergava novas decises empresariais de acumulao de capital, provocando forte desacelerao do ritmo do gasto privado e da gerao de emprego. Segundo, um desequilbrio agudo da balana de pagamentos. Durante o Plano de Metas, as exportaes acumularam uma queda de 20% (sobretudo porque o caf entrou em nova fase de declnio de preos), mas as importaes de insumos bsicos e bens de capital puderam ser financiadas pelo influxo de investimentos diretos externos e crditos comerciais. A concluso do Plano, porm, no apenas provocava uma reduo dos influxos de financiamento colados ao ciclo dos investimentos, como invertia o sentido dos fluxos: as remessas de juros, lucros e dividendos pressionavam remessas cambiais escassas e a taxa de cmbio do cruzeiro, na primeira metade da dcada de 1960. Desse modo, a crise cambial expressava, em um certo momento do ciclo econmico, desequilbrios estruturais da economia brasileira: sua insero vulnervel na diviso internacional do trabalho e sua dependncia financeira.

    Um terceiro problema era a acelerao inflacionria. Veremos que conservadores e trabalhistas a explicavam respectivamente pelos dficits pblicos e por estrangulamentos setoriais que podiam ser resolvidos com as polticas adequadas. Todavia, uma causa muito menos sujeita ao controle nacional era a prpria crise cambial. Dada a dependncia por insumos importados e a vinculao de produtos exportados aos preos internacionais, a desvalorizao cambial representava uma poderosa presso sobre custos bsicos do sistema produtivo, a qual reagiam todos aqueles que tentavam defender sua renda real repassando a presso adiante. A crise cambial tinha causas estruturais e determinantes cclicos, mas seu impacto sobre a inflao foi agravado por decises errneas no governo Jnio Quadros. Em 1961, pressionado pelo Fundo Monetrio Internacional, o governo Quadros eliminou o sistema de cmbios mltiplos criados pela Instruo 70 em 1953 e promoveu uma depreciao cambial do cruzeiro de 100%. A esperana era estimular exportaes, sem levar em considerao o fato de que nossa pauta de exportao era concentrada em produtos cujo demanda era inelstica ao preo, mas muitas de nossas importaes eram essenciais e de difcil substituio, a despeito dos preos. O resultado foi que as exportaes continuaram praticamente estagnadas, mas o encarecimento das importaes gerou um choque de custos com severo impacto inflacionrio.

    Os oligoplios industriais dominados por filiais estrangeiras que se constituram no Plano de Metas reverberaram esse choque de custos. Diante de um dlar mais caro, as filiais nos novos ramos industriais procuraram elevar margens de lucro para pagar dvidas externas e/ou remeter dividendos para as matrizes, reforando a presso inflacionria e a escassez cambial. O fato de que auferiam receitas em moeda local, mas calculavam a lucratividade nas moedas externas relevantes para as matrizes controladoras, tornava-as fortemente sensveis depreciao cambial. Sua capacidade de reao era grande porque o poder de mercado era enorme nos ramos industriais mais novos, fortemente concentrados. De fato, a capacidade ociosa em ramos cujas plantas mnimas eram grandes para o mercado brasileiro no colocou presso deflacionria sobre os preos. Ao encarecer importaes, a depreciao cambial tambm aumentava a proteo efetiva da indstria. Mesmo ramos industriais j estabelecidos e menos dinmicos, controlados por capital nacional, aumentaram margens de lucro

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    medida que a taxa de crescimento da demanda caa. Assim, a taxa de inflao em alta tinha comportamento inverso taxa de crescimento cadente da demanda agregada, acompanhava o comportamento dos custos e se alimentava do prprio conflito distributivo2.

    Por sua vez, se a acelerao inflacionria era influenciada pelo desequilbrio cambial, ela tambm influenciava outros desequilbrios. A inflao alta acentuava a desacelerao cclica, por conta de seus impactos distributivos. De fato, como os bens durveis de consumo (particularmente o automvel) j tinham alto valor unitrio em relao renda per capita, a inflao, em conjunto com a desacelerao do emprego, reforava a desacelerao do consumo privado de bens durveis. Alguns destes bens tinham uma aura de exclusividade que, em uma cultura de consumo sunturio em meio a um mar de pobreza, emanava status social. Paradoxalmente, a elevao de preos aumentava o apelo deexclusividade e talvez o desejo de participar do clube mas, ao mesmo tempo, limitava a entrada. Baixo crescimento, inflao e insatisfao social vinham juntos.

    Um quarto problema conjuntural era precisamente o conflito distributivo. Em meio desacelerao do crescimento, da incerteza quanto s taxas de cmbio e inflao, empresrios e trabalhadores procuravam defender sua renda real elevando preos e salrios tanto quanto possvel, o que tendia a reiterar a acelerao inflacionria e a instabilidade econmica e social. O conflito distributivo no era a raiz inicial ou o motivo principal da acelerao da inflao. O impacto da depreciao cambial sobre os preos e a reao dos oligoplios atravs da elevao de margens de lucro e suas remessas externas foi a espiral fundamental que determinou tamanha acelerao inflacionria. Em virtude da vulnerabilidade externa, era impossvel estancar a incerteza quanto taxa de cmbio sem refinanciar o passivo externo concentrado em obrigaes de curto prazo que venciam entre 1963 e 1964.

    Isso no significa que a reao de pequenas e mdias empresas, de um lado, e assalariados, de outro, no reiterasse a inflao. Todavia, no h bases para afirmar que foi a presso salarial que elevou a inflao, uma vez que os reajustes dos salrios nominais corriam atrs da inflao. Nos anos 1950, a instalao de ramos industriais novos foi acompanhada de forte queda dos custos unitrios do trabalho, uma vez que os aumentos de salrios reais sequer acompanhavam o aumento da produtividade. Entre 1961 e 1964, os custos unitrios do trabalho permaneceram estveis (ou caram levemente), no porque os salrios reais aumentassem mas porque a produtividade do trabalho praticamente estagnou, em vista da desacelerao do crescimento econmico e da reduo do investimento (Colistete, 2009).

    (2) Samuel Morley (1971) documentou que a inflao acompanhava a capacidade ociosa: o excesso de oferta potencial sobre demanda no reduzia preos. A nfase que confere escassez de financiamento para explicar uma suposta rigidez do nvel de produo, contudo, parece contraditria com a existncia de capacidade ociosa e com margens de lucro que podiam, por meiodo autofinanciamento, substituir crdito de capital de giro escasso. Ao invs de rigidez da produo por falta de capital de giro (que no demonstrada mas pode ter acontecido), seria mais simples explicar o impacto do aumento dos custos financeiros sobre a inflao por meio do aumento da margem de lucro sobre custos durante uma recesso, maneira de Kalecki (1939). O aumento das margens de lucro, alis, sim demonstrado por Morley para o caso brasileiro.

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    Sendo assim, no se pode afirmar que a desacelerao e a presso sobre a lucratividade resultasse da presso salarial, la teorias de profit squeeze, como era tpico na crtica conservadora ao governo trabalhista e luta sindical. Ao contrrio de esmagarem os lucros, os salrios reais que tendiam a ser esmagados pelo aumento de margens de lucro sobre custos. Isso no elimina a possibilidade que algumas empresas menores que j sofriam presso sobre margens de lucro em razo do conflito intercapitalista,padecessem mais com aumentos compensatrios do salrio mnimo ou com negociaes coletivas que aumentassem salrios nominais setorialmente e limitassem a reduo de custos por meio de salrios reais menores. E que empresrios expressassem insatisfao com a demagogia populista dos polticos que, por exemplo, apoiassem elevaes do salrio mnimo, impedindo que os prejuzos fossem arcados apenas pela classe trabalhadora. Vou abordar as implicaes polticas do conflito distributivo adiante, assim como o conflito entre diferentes propostas de soluo da inflao que opunham conservadores e trabalhistas.

    Um quinto problema era o dficit fiscal. A acelerao inflacionria corroa o valor real de tributos, e induzia contribuintes a atrasar o recolhimento, uma vez que as multas cobradas no compensavam a inexistncia de correo monetria dos tributos. Ou seja, empresas e contribuintes buscavam defender sua renda real transferindo o problema para o Estado, aproveitando a corroso inflacionria dos impostos devidos. Ao contrrio do esmagamento de margens de lucro por impostos, os impostos que eram corrodos pelo aumento de margens de lucro. Assim, a desacelerao do crescimento econmico tinha um impacto mais do que proporcional na arrecadao tributria. Nestas circunstncias, o dficit pblico tendia mais a sancionar as elevaes de preo oriundas do conflitodistributivo e das presses de custo, do que gerar uma presso excessiva de demanda sobre a oferta agregada. Ao contrrio de uma situao de inflao de demanda, a taxa de crescimento caa e o grau de ociosidade de vrios ramos industriais aumentava medida que as ltimas plantas eram inauguradas.

    O conflito poltico e distributivo: antecedente histrico

    A estagflao afetava grupos sociais diferentemente. As formas de reao possveis tambm eram diversas. Como a inflao tinha na depreciao cambial uma causa fundamental, exportadores eram protegidos da crise e at ganhavam com ela. Todos os demais sofriam o efeito combinado da desacelerao do crescimento da renda e a inflao.

    Para acionistas e gestores das grandes empresas, o aumento de custo de passivos externos e de bens importados trazido pela depreciao cambial era um problema maior do que a folha salarial e aelevao de preos de empresas com menor poder de mercado. verdade que as taxas de lucro eram pressionadas pela desacelerao do crescimento e pela depreciao cambial. Exatamente por isso, as empresas com poder de mercado reagiam elevando margens sobre custos unitrios, o que acentuava a desacelerao do crescimento e jogava a presso sobre outros grupos sociais. Embora buscassem reduziro salrio real dos trabalhadores menos qualificados, provvel que os profissionais mais qualificados dessas empresas, com empregos tpicos da nova classe mdia (White collar), fossem melhor protegidos

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    pela barreira entrada em seu mercado de trabalho, dada a enorme desigualdade educacional da sociedade brasileira. Alm disso, as maiores empresas buscavam pressionar fornecedores e distribuidores de menor escala, forando a reduo de suas margens medida que a estagflao se instalava.

    De fato, empresas pequenas e mdias tinham muito menor poder de reao. Brigavam umas com as outras e, tipicamente, aumentavam a taxa de explorao da fora de trabalho, seja cortando o emprego e exigindo mais dos funcionrios remanescentes, seja reajustando salrios aqum da inflao. Emborafuncionrios mais qualificados fossem tratados melhor do que os desqualificados, provvel que no deixassem de sofrer a presso inflacionria e o endurecimento das relaes de trabalho em meio crise. Em suma, a pequena burguesia e a classe mdia tradicional experimentavam crescentemente um jogo de soma zero em que, medida que a estagflao se agravava, sua posio social e renda real eram ameaadas. A ameaa vinha de cima com a inflao dos bens produzidos pelos oligoplios ou importados e, de baixo, porque os trabalhadores aprimoravam seu poder de reao.

    Os trabalhadores organizados em sindicatos se mobilizaram em nmero crescente de greves. claro que as lideranas que buscavam superar a passividade dos pelegos vinham se organizando para conscientizar e mobilizar a base desde dentro dos sindicatos oficiais h muito tempo. A experincia da democracia, o relaxamento da represso sindical (desde 1951), o embate por direitos trabalhistas desrespeitados por empresas, as lutas nacionalistas, jornadas de campanhas salariais e greves geravam tendncia de organizao e confrontao coletiva que superava os limites do sindicalismo oficial. Areunio de sindicatos horizontalmente, atravs de diferentes categorias, ainda era ilegal mas vinha operando timidamente por meio de organizaes intersindicais nos anos 1950 e, mais livremente, desde a criao do Comando Geral dos Trabalhadores do Brasil em agosto de 1961 (Neves, 1997). Unidos em um coletivo maior, os sindicatos buscavam inclusive influenciar para alm do mundo do trabalho, apoiando candidatos nas eleies e recorrendo a greves ditas polticas como na Campanha da Legalidade que assegurou a posse de Joo Goulart em 1961.

    inegvel que a constituio desses sujeitos coletivos foi um processo poltico e social com determinaes prprias e no pode ser reduzido a razes econmicas. Seus objetivos tampouco se reduziam defesa ou melhoria da renda e condies de trabalho, envolvendo tambm reconhecimento social, participao poltica e novos direitos sociais e de cidadania. Tendncias econmicas, contudo, contriburam para o xito da mobilizao. Estruturalmente, porque a grande transformao urbana e industrial aumentou o contingente do proletariado e o concentrou em enormes categorias profissionais e bairros operrios. Conjunturalmente, porque a acelerao inflacionria induzia a organizao grevista e a mobilizao poltica.

    Em escala mais vasta e radical, a conjuntura do governo Goulart tinha semelhanas com aquela do final da Era Vargas3. A crise cambial de 1953 e a acelerao inflacionria resultante tambm fomentou o conflito distributivo e tornou difcil a conciliao de classes almejada por Vargas. Como se

    (3) O que se segue est apoiado parcialmente em Bastos (2001; 2011b; 2012).

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    sabe, algumas interpretaes de esquerda acusavam o logro populista inerente relao entre Vargas e as massas, sustentado na incorporao de interesses limitados de camadas populares com baixo nvel educacional e herdeiras da tradio de clientelismo, passividade e desorganizao poltica no campo.Dadas essas origens, o maquinrio de propaganda e a represso organizao autnoma de sindicatos e partidos, as novas massas urbanas se identificariam com lideranas carismticas que, desde cima,prometiam resultados imediatos e menores risco de conflito, atravs de programas de reformas do capitalismo e/ou benefcios diretos. A direita, ao contrrio, alegava que o objetivo do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) era a formao de uma repblica sindicalista, na qual a interpelao demaggica das massas, longe de amortec-las por pelegos sindicais, as levariam a parar o pas com greves e comcios, e exigir direitos ou elevaes salariais irrealistas.

    O risco apontado pela direita de que Vargas, e o esquema trabalhista em geral, perdesse o controle moderador sobre a massa popular e a classe trabalhadora era real. Mais importante que isso implicava uma dinmica de interao poltica na qual o lder assegurava sua legitimidade se atendesse demandas contnuas oriundas de baixo para cima. A indicao de Goulart como Ministro do Trabalho, em 1953, deve ser vista nesse contexto. A lgica da democracia fazia com que a redistribuio de renda se tornasse um dos principais temas da agenda poltica, seno o mais importante, em um pas to desigual quanto o Brasil. A prpria eleio de Vargas no pode ser entendida sem referncia s promessas de justia social, depois do congelamento do salrio mnimo e da represso aos sindicatos e s greves durante o governo Dutra4.

    De fato, as expectativas geradas pela eleio e o relaxamento da represso sindical estimularam greves, sobretudo em virtude do aumento do custo de vida nas grandes cidades. A presso inflacionria aumentou quando a desvalorizao cambial, evitada desde a Segunda Guerra, finalmente ocorreu em 1953. A conjuno de inflao, greves e resistncias conservadoras minaram a tentativa de conciliao: at Segadas Viana, ainda Ministro do Trabalho, repetia o alarme conservador que o anncio de Vargas de que pretendia aumentar o salrio mnimo indicava suas intenes continustas. Circulavam boatos na imprensa de que o governo se preparava para declarar estado de stio, defendendo-se barr-lo com um golpe preventivo em nome da democracia, como em 1945. Nesse contexto, Vargas resolveu aproximar-

    (4) Mesmo autores que enxergaram no populismo uma forma de logro admitem que o populismo foi um modo determinado e concreto de manipulao das classes populares mas foi tambm um modo de expresso de suas insatisfaes (Weffort, 1967, p. 62-63). claro que Vargas sabia que no sustentava seu prestgio junto aos trabalhadores apenas no carisma ou na lembrana das concesses do passado, devendo apoi-lo em novos benefcios. Dez dias depois da eleio presidencial, seu principal conselheiro informal, Jos Soares Maciel Filho, escrevia-lhe que: O povo espera comida, espera proteo, espera tudo. Mas, no esquea, espera tambm tudo sem trabalho. A concepo de pai dos pobres a de quem prov. a da Divina Providncia. Todos esperam o milagre do feijo, do arroz e da carne-seca. A desiluso do povo ser a maior crise contra o Brasil. Por mais absurdo que parea o que escrevo, necessrio cumprir o que no foi prometido, mas que o povo imaginou que ser dado (GV 50.10.13, grifos de Maciel Filho).

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    se da base de trabalhadores urbanos e, rejeitando a represso s greves sugerida por Viana e a opinio conservadora, nomeou Joo Goulart como Ministro do Trabalho5.

    Em 1954, como se sabe, o embate novamente deu-se em torno da proposta de Jango de duplicar o salrio mnimo. Este era importante para os trabalhadores formalizados, mas menos qualificados e/ou membros de categorias com fraca capacidade de organizao e mobilizao para greves. Mesmo para trabalhadores no formalizados, provvel que o salrio mnimo influenciasse como referncia para rendimentos. Isso ajuda a explicar a resistncia dos ricos e a importncia conferida pelos pobres elevao do salrio mnimo (e ao dia Primeiro de Maio). Para a pequena burguesia e camadas mdias tradicionais, a elevao agravava a carestia e reduzia demagogicamente diferenas sociais baseadas no mrito. Embora a luta em sindicatos e tribunais para fazer valer direitos trabalhistas desrespeitados reafirmasse a importncia da legislao concedida no Estado Novo, o reajuste administrativo do salrio mnimo era o principal smbolo da capacidade presidencial de acionar as alavancas do Estado para beneficiar as massas pobres contra a presso dos ricos. Embora as greves dos setores organizados da classe trabalhadora pudessem contribuir na presso para reajuste do salrio mnimo, ao mesmo tempo provocavam interrupo de servios que podiam ser ressentidos por parte das massas desorganizadas. Diante da inflao, massas desorganizadas tinham poucos meios inequvocos de defesa seno esperar (eclamar) para que o salrio mnimo fosse elevado desde cima.

    por isso que, ao ser trazido para o mbito da deciso presidencial, uma questo de conflito distributivo tornava-se abertamente um tema de conflito poltico. A proposta de duplicao do salrio mnimo cerrou as alas da oposio contra Jango, que foi substitudo por um tcnico do Ministrio do Trabalho em fevereiro de 1954. Todavia, Vargas assumiu a responsabilidade direta pela duplicao do salrio mnimo, assim como seus nus e benefcios polticos, no comcio de 1o de maio. A oposio aumentou desde ento, seja com votao do impeachment de Getlio a pretexto das denncias de Carlos Lacerda sobre suposta conspirao entre os governos de Brasil, Argentina e Chile para apoiar repblicas sindicalistas, seja com o clamor por interveno preventiva contra a presumida conspirao continusta de Getlio. Alegava-se que o continusmo se apoiava no s em alguns militares golpistas como em 1937, mas em um movimento de massas ainda maior do que o queremismo em 1945, como no peronismo argentino6.

    claro que, como em 1945, o sucesso de um golpe preventivo dependia da disposio em intervir da cpula das foras armadas. Inexistindo mobilizao poltica relevante de no oficiais como em

    (5) Jango atendeu s reivindicaes da greve dos 100 mil, substituiu o presidente tido como pelego do sindicato dos martimos e, na sede do mesmo sindicato, fez discurso no qual prometia prestigiar os autnticos lderes... O Brasil precisa de lderes operrios. Precisa, outrossim, dessa unidade demonstrada na greve dos martimos, to indispensvel ao desenvolvimentodo sindicalismo brasileiro. (apud Brandi, 2001, p. 5963).

    (6). Por exemplo, o diretrio da UDN em So Paulo afirmou em maio: A pretexto da concesso de um salrio mnimo, que ningum honestamente se lembraria de negar, mas que deve ser fixado com justia e alta equidade, a luta de classes est sendo preparada e vai ser desfechada pelo Sr. presidente da Repblica. O momento, que ningum se iluda, pr-revolucionrio e a revoluo est sendo dirigida pelo Catete. (apud Brandi, 2001, p. 5966).

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    1964, impossvel afirmar que a disposio em intervir tivesse por objetivo preservar a hierarquia militar. pouco questionvel que a interveno militar estava a servio da conteno de mobilizaes sociais e de presses pela redistribuio de renda. Antes da exigncia de renncia do presidente, um precedente foi a eleio para a presidncia do Clube Militar em 1952, quando muitos partidrios da chapa do ex-Ministro da Guerra, Estillac Leal, conhecido nacionalista prximo a Vargas, foram impedidos de votar por meio de expurgos e prises preventivas. Mais significativo, sem dvida, foi o longo memorando publicado quando se cogitava a duplicao do salrio mnimo (em fevereiro de 1954, antes da demisso de Jango), assinado por coronis e tenente-coronis ligados direo do Clube Militar e que teriam grande influncia na ditadura de 1964, como Golberi do Couto e Silva, Slvio Frota e Amaury Kruel. O chamado Manifesto dos Coronis no disfarava o descontentamento que os oficiais compartilhavam com camadas mdias civis quanto s presses inflacionrias e influncia poltica dos trabalhadores menos qualificados sobre as decises de Vargas. Estas questes, contudo, eram tipicamente tratadas sob tica da ameaa de subverso s hierarquias de mrito, que s no seriam refletidas nas hierarquias de rendimentos por causa da poltica (democrtica). Esta beneficiava, naquela conjuntura, certas classes ou grupos, prenunciando indisfarvel crise de autoridade7.

    Uma viso hierrquica e antidemocrtica do poder inclusive dentro das foras armadas era combinada com uma viso hierrquica da estratificao social e da distribuio de renda. O alvo no era somente Goulart mas toda presso favorvel redistribuio de renda que a poltica democrtica implicava em um pas to desigual como o Brasil. No Distrito Federal, a duplicao do salrio mnimo o levaria a um patamar equivalente a de um segundo-tenente do Exrcito, encarecendo o custo de servios urbanos e produtos industriais intensivos em trabalho. Nessas circunstncias, difcil entender a mobilizao poltica e ideolgica de diferentes grupos sociais sem a articular com o conflito distributivo.

    A insero econmica de classes e fraes sociais essencial para entender seu lugar nos conflitos, sua posio ideolgica e seu alinhamento poltico. Camadas mdias urbanas seriam mais

    (7) Em 1954, o manifesto denunciava as ameaas de ...estagnao duradoura da mquina militar, entorpecida em sua eficincia pela deteriorao das condies materiais e morais indispensveis e seu pleno funcionamento. Prenuncia-se indisfarvel crise de autoridade, capaz de solapar a coeso da classe militar, deixando-a inerme s manobras divisionistas dos eternos promotores da desordem e usufruturios da intranquilidade pblica...a ameaa sempre presente da infiltrao de perniciosas ideologias antidemocrticas ou do esprito de partidarismo poltico, semeador de intranquilidade e conflitos, cadavez mais avulta na hora presente... vem acrescendo as dificuldades de vida com que lutam, principalmente, os oficiais subalternos, subtenentes e sargentos... pelas mltiplas preocupaes que decorrem da obrigao moral de assistir a seus familiares na satisfao das mais elementares necessidades de subsistncia. E no fora to grave e premente este problema, se no assistssemos compresso cada dia maior do padro de vencimentos militares ante a espiral inflacionria de preos... Sabido que em todas as guarnies, embora em escala varivel, lutam os militares com dificuldades cada vez maiores para a manuteno de um padro de vida compatvel com sua posio social... Perigosas s podero ser hoje, portanto, nos meios militares, as repercusses que j se pressentem e anunciam, de leis ou decises governamentais que, beneficiando certas classes ou grupos, acarretaro pronunciado aumento do custo j insuportvel de todas as utilidades... a elevao do salrio mnimo a nvel que, nos grandes centros, quase atingir o dos vencimentos mximos de um graduado, resultar, por certo, se no corrigida de alguma forma, em aberrante subverso de todos os valores profissionais, estancando qualquer possibilidade de recrutamento,para o Exrcito, de seus quadros inferiores (Cruz et al., 1983, p. 248-252).

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    prejudicadas pela reduo das desigualdades salariais do que os empresrios, pois tinham menos capacidade de se proteger da inflao e mais dependncia de salrios bsicos baixos para manter renda real. Pequenos empresrios sofreriam mais do que grandes. Se as foras armadas eram o pndulo decisivo, camadas mdias e pequenos empresrios eram inegavelmente a base de massas da oposio udenista e da grande burguesia ao populismo, em vista de sua dependncia do pagamento de salrios bsicos baixos para preservar seu status social e seu padro de consumo diferenciado frente aos trabalhadores sem qualificao (Saes, 1985; Cardoso de Mello; Novais, 1998).

    A conjuntura pr-1964 era semelhante, mas os conflitos atingiam um estgio superior por causa do nvel de organizao, mobilizao e autonomia alcanado pelos trabalhadores urbanos. A inflao era elevada e crescente, com impacto distributivo maior. E Joo Goulart recuperava o poder comopresidente, depois de ter sido vetado, em 1961, pela credencial de agitao demaggica dos de baixo. Ele no era apenas lder do PTB e defensor histrico dos sindicatos, como tambm patrono da proposta de duplicao do salrio mnimo, refeita em 1964.

    O projeto trabalhista: esforo de conciliao e veto conservador

    O embate poltico em torno economia no se limitava ao conflito distributivo e a decises pontuais de poltica econmica. A oposio poltica inclua economistas que racionalizavam os interesses de empresrios e camadas mdias, criticavam os governos trabalhistas e propunham um plano de sada que recolocaria os trabalhadores em seu lugar na hierarquia tradicional da sociedade brasileira. A ditadura criaria as condies polticas para que esse plano fosse implementado a despeito de resistncias.

    O governo Goulart, ao contrrio, no dispunha da concentrao de poder para executar seus planos sem negociao. Aparentemente no tinha nem teria, a mdio prazo, suporte popular ou nas foras armadas para uma estratgia de mobilizao e confronto que resolvesse o impasse por meio da fora. Assim, decises cruciais para a execuo do primeiro projeto proposto, o Plano Trienal, dependiam da renegociao da dvida externa com credores e de leis em um Congresso Nacional no qual os conservadores tinham poder de veto pelo menos at as eleies de 1966. Mesmo se quisesse, Goulart no podia implementar um programa que atendesse apenas aos interesses de sua base poltica. Por isso, procurou inicialmente implementar um programa econmico que buscava conciliar opostos e exigir concesses de ambos os lados. O problema foi que seus inimigos no estavam dispostos a qualquer concesso que aumentasse suas chances de sucesso, consequentemente sua popularidade e a capacidade de seu bloco poltico avanar em um programa de reformas mais profundo. Esse programa de reformas era conhecido e tambm era racionalizado por economistas, como Celso Furtado, como condio tcnica de sada da crise8.

    (8) O que se segue est apoiado parcialmente em Bastos (2011a). Para aprofundamento sobre a gesto econmica do governo Goulart e o Plano Trienal, ver Fonseca (2004), Pinkusfeld et al. (2005), Morato (2010) e Loureiro (2012).

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    O Plano Trienal foi proposto pela chamada esquerda positiva liderada por Santiago Dantas e Celso Furtado. luz do conjunto do plano, no parece vlido caracteriz-lo apenas como um plano de estabilizao ortodoxo, embora contasse com austeridade creditcia e fiscal, alm de moderao salarial, para iniciar a conteno da espiral inflacionria. Ele considerava, afinal, que a renegociao da dvida externa e um conjunto de reformas de base tambm eram necessrias para assegurar o controle da inflao a mdio prazo.

    Para entender a lgica da combinao entre austeridade e reformas de esquerda, preciso compreender a interpretao de Furtado para o processo inflacionrio, apresentada em vrios textos anteriores ao Plano Trienal. Ao contrrio da opinio ortodoxa, ele no considerava que o excesso de demanda gerado por irresponsabilidade fiscal e creditcia fosse o motivo fundamental da inflao. Ele tambm no negava que o dficit pblico pudesse ser um motivo da inflao, mas alegava que a existncia de estrangulamentos de oferta era mais importante que o nvel de demanda agregada para explic-la. O problema era que o processo de diversificao produtiva de uma economia perifrica no era homogneo: a oferta em certos ramos no era facilmente ampliada por causa da existncia de barreiras financeiras e tecnolgicas, de modo que, para um certo nvel de demanda agregada, diferentes ramos teriam diferentes graus de capacidade ociosa. Por isto, uma poltica de conteno da demanda agregada para combater a presso inflacionria, que se localizava apenas em certos ramos onde havia estrangulamento de oferta (industrial ou agrcola), deixaria a economia como um todo crescendo muito aqum de seu potencial. Assim, seria prefervel orientar a destinao de investimentos pblicos e privados para superar estrangulamentos de oferta, e influenciar o estilo de consumo por meio do sistema de impostos e subsdios. Em geral, a arrecadao tributria deveria aumentar, com a maior justia distributiva possvel, para financiar necessidades de investimento exigidas pelo desenvolvimento e pela estabilidade de preos.

    claro que estrangulamentos setoriais de oferta tinham importncia, mas considero que a raiz da acelerao inflacionria, tamanho o ritmo que alcanou, estava no desequilbrio externo e na reao oligopolista aos problemas de lucratividade. Como vimos, a presso sobre taxa de lucro do capital monopolista originava-se da combinao de desvalorizao cambial e frustrao dos nveis de ocupao desejada da capacidade trazida pela desacelerao cclica. A reao empresarial por meio de elevao de margens de lucros e remessas externas atendia a objetivos microeconmicos mas agravava o problema sistmico. A reao de pequenas e mdias empresas, de um lado, e assalariados, de outro, era um efeito secundrio mas crucial para reafirmar a acelerao da inflao. Embora o conflito distributivo fosse sobredeterminado pela conjuntura de crise cambial e pela estrutura oligopolista das filiais industriais, ele tinha impacto autnomo na reiterao de ndices de inflao.

    Como um economista cepalino, porm, Furtado tambm enfatizava que o desequilbrio externo no resultava do excesso de demanda (ou carncia de poupana), mas de fragilidades estruturais de uma economia subdesenvolvida e perifrica. Naquelas circunstncias, a soluo do desequilbrio cambial exigia, a curto prazo, restaurar controles cambiais e/ou alongar o prazo de pagamento do passivo externo,

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    enquanto a programao do desenvolvimento deveria estimular a diversificao das exportaes e superar estrangulamentos de oferta. Em outras palavras, a programao do desenvolvimento seria o nico remdio estrutural contra a inflao. Com implicaes significativas para o Plano Trienal, isto significava que controles de demanda podiam unicamente comprar tempo para as reformas que propiciariam a adequada programao do desenvolvimento.

    Esta interpretao foi, em linhas bsicas, repetida no documento do Plano Trienal (Furtado, 2011). Alegava que os desequilbrios fiscais, inflacionrios e cambiais no podiam ser resolvidos meramente por controles de curto prazo. A mdio prazo, uma reforma administrativa do Estado brasileiro, uma melhor programao do desenvolvimento (influenciando inclusive o perfil de consumo dispendioso de reservas cambiais), uma maior diversificao das exportaes, e reformas que superassem estrangulamentos de oferta, como a reforma agrria e a orientao de investimentos industriais, eram necessrias para um estilo de desenvolvimento mais justo e menos sujeito a desequilbrios monetrios e cambiais. A curto prazo, sem uma reforma tributria preliminar, e sem renegociao dos prazos de pagamento da dvida externa, os desequilbrios no podiam sequer comear a ser enfrentados, como, alis, os economistas da ditadura militar devem ter aprendido com a experincia do Plano Trienal. Como relembrou em Fantasia Desfeita, Furtado alegava no Trienal que o dficit previsto na conta corrente exigiria uma reduo de pelo menos 30% das importaes, caso a dvida externa no fosse refinanciada, o que tornaria ainda mais difcil (para no dizer impossvel) toda poltica de estabilizao.

    Os argumentos de Furtado sobre a centralidade da reforma tributria eram semelhantes, e tinham tambm um objetivo poltico bvio: alm de dramatizar a gravidade do problema econmico, transferiam parte essencial da execuo do Plano Trienal para alm do Ministrio da Fazenda. claro que instrumentos de controle do gasto pblico e do crdito estavam disposio do Ministrio, sob comando de San Tiago Dantas, que tentaria executar o Trienal em 1963. Mas a reforma tributria e a renegociao da dvida externa dependiam da m-vontade do Congresso Nacional no Brasil, e do governo e da comunidade financeira nos Estados Unidos. Furtado certamente compreendia as dificuldades polticas para executar o Plano Trienal, e parece ter planejado tambm um roteiro de ao poltica para a gesto econmica de San Tiago Dantas. De incio, tratava-se de oferecer a contribuio amarga do governo para conter a demanda por recursos fiscais e cambiais escassos, em troca da contribuio do Congresso brasileiro e do governo dos EUA para ampliar a oferta de recursos fiscais e cambiais. A chamada esquerda positiva resolvera testar publicamente o quo positiva era a postura da direita, diante dos desequilbrios financeiros e cambiais do Brasil.

    O desafio de qualquer plano de estabilizao, naquela conjuntura, era assegurar a estabilidade cambial para conter novas presses de custos e, ao mesmo tempo, evitar que o conflito distributivo escalasse para nveis crescentes de reajuste inflacionrio. Coordenar as decises de preos e as demandas salariais sempre muito difcil em uma economia capitalista com alta inflao. Faz-lo em conjuntura de crise cambial e politizao crescente da questo distributiva mais ainda.

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    Foi em meio a essas circunstncias extremamente restritivas que o Plano Trienal foi proposto. Aopo do Plano Trienal foi agir simultaneamente em trs frentes: recuperar o controle sobre a taxa de cmbio por meio da renegociao da dvida externa, limitando, assim, preos de commodities e as presses de custo sobre filiais oligopolistas; conter a demanda agregada para enfraquecer a capacidade de repasse de pequenas e mdias empresas; e negociar moderao nos reajustes salariais. Em outras palavras, combinar o controle da raiz do problema com a regulao do conflito distributivo.

    A estratgia era arriscada porque ameaava alienar, pelo menos temporariamente, parte importante da base poltica do trabalhismo, sem assegurar a boa vontade dos polticos e empresrios hostis no Brasil e no exterior. De todo modo, Dantas iniciou a execuo do Trienal retirando subsdios sobre o consumo de trigo e derivados de petrleo, e contraindo a oferta de crdito, embora tentasse atrasar a desvalorizao cambial. Logo a seguir, as negociaes com o Congresso Nacional e os credores externos fracassaram: na prtica, o Plano Trienal acabava sob o poder de veto de seus inimigos, tendo apenas se iniciado. O risco de perda da base poltica do governo tambm aumentava: as presses pela correo do salrio mnimo e do salrio do funcionalismo pblico (civil e militar) saam do controle no primeiro semestre. Joo Goulart resolveu abandonar o esforo de estabilizao, demitiu Dantas em 20 de junho de 1963 (menos de cinco meses depois de t-lo nomeado), e passou a ceder a demandas de diferentes grupos sociais e polticos, para recompor sua base de apoio e se proteger do avano da conspirao, em meio ao agravamento da instabilidade econmica.

    A ttulo de mero exerccio contrafactual, algo diferente poderia ter sido feito para salvar o Trienal? A meu ver, a construo retrica e lgica de Furtado a respeito das condies de viabilidade do Trienal abria, implicitamente, um rota de fuga, caso a primeira opo de negociao com os credores externos fracassasse. Com efeito, se no estava disposio do governo impor uma reforma tributria ao Congresso (como fez a ditadura militar depois), era possvel decretar uma moratria da dvida externa. No se sabe se Furtado fez em 1963 a proposta que faria em 1982, mas San Tiago Dantas fez9. Jornais da poca circulavam como boato a hiptese antes da demisso de Dantas. Depois da demisso, Dantas chegou ao ponto de fazer um esforo para reconstruir a base poltica do governo Goulart que tinha, como pea de programa econmico, a moratria da dvida externa, que abriria a possibilidade de travar a depreciao cambial e seu impacto inflacionrio, e unir foras de centro-esquerda contra um inimigo externo que, de fato, j estava conspirando contra a democracia brasileira. O evento dramtico talvez aumentasse, tambm, a presso democrtica pela reforma tributria. Jango preferiu, contudo, barganhar com o governo dos EUA por meio da ameaa de regulamentar a Lei de Remessa de Lucros em troca do refinanciamento da dvida. Quando no obteve o refinanciamento desejado, a regulamentao do regime de remessas estava longe de resolver o desequilbrio externo (e pouco afetou as filiais), mas ofereceu oposio interna e externa um pretexto para recusar-se a qualquer nova aparncia de colaborao com o governo populista.

    (9) Recentemente, a publicao pstuma do ltimo artigo escrito por Furtado sugere que ele defendeu a necessidade da moratria externa em 1963 (Furtado, 2012).

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    Em seguida, o que s vezes descrito como uma virada esquerda de Goulart representou uma reao ao risco de perda da base trabalhista, cansada com apelos ao sacrifcio que no traziam resultados palpveis. Foi tambm um esforo de mobilizar a base e ampliar seu contingente por meio da conscientizao e do debate pblico. No fundo, o governo abandonou qualquer esforo de combate inflao que, de todo modo, fora sabotado por seus inimigos polticos. A nica linha de combate inflao que dependeria apenas do governo, sem contar com o Congresso ou os credores, seria redobrar a austeridade. Todavia, ela apenas aceleraria o declnio poltico de Goulart sem resolver um processoinflacionrio que, em meio recesso crescente, evidentemente no resultava do sobreaquecimento da demanda.

    A aposta de Goulart parece ter sido a de aumentar seu poder de barganha, como representante legtimo de um contingente mobilizado e crescente da sociedade brasileira, no campo e na cidade. Era uma estratgia democratizante que no se alinhava aos clamores golpistas de parte de seus correligionrios e envolvia mobilizar trabalhadores por meio de comcios pblicos e organizaes sindicais. Como apontado por Caio Toledo (2004), a racionalizao dos golpistas de que realizaram um golpe preventivo no foi confirmada depois da busca frentica de documentos que, em abril de 1964,sustentassem a alegao contrarrevolucionria.

    A verdade que o bloco de direita preferiu no negociar nem esperar para resolver o impasse democraticamente, por meio do voto, em contexto de mobilizao popular crescente. O ganho de autonomia dos sindicatos era inegvel. O giro esquerda do PTB era ntido, sem que o risco de instabilidade afastasse massas desorganizadas. Seu crescimento eleitoral era evidente, inclusive nos chamados grotes, apoiado em programas de alfabetizao que intitulavam novos eleitores e em um programa de reformas que empolgava massas rurais, como a extenso dos direitos trabalhistas para o campo e a reforma agrria. Assim como o avano organizacional de sindicatos urbanos, a proliferao rpida de ligas camponesas e sindicatos rurais anunciava um processo longo de conscientizao e mobilizao no campo que poderia questionar hierarquias tradicionais e mudar a correlao de foras nopas como um todo10.

    O objetivo do golpe foi barrar a onda democratizante e defender o status quo. A sada da crise econmica era uma questo relacionada. O diagnstico e o programa de sada vinham sendo apresentados por economistas conservadores que propunham superar a desordem promovida pelo chamado populismo de Joo Goulart. Na prtica, resolver os conflitos e sair da crise de modo contrrio s aspiraes populares interpeladas por Goulart com plataforma de redistribuio de propriedade e renda. Como a raiz da crise seria o conflito distributivo e a desordem poltica que destruam a

    (10) Para o realinhamento eleitoral e o avano do PTB nas regies menos urbanizadas e mais pobres, ver Soares (1973), Souza (1976) e Lavareda (1991). Para o movimento de sindicalizao rural e seu impacto poltico, Page (1972), Mallon (1978),Martins (1981), Azevedo (1982), Camargo (1986) e Welch (2006).

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    racionalidade econmica e a confiana empresarial, o autoritarismo poltico seria essencial para restaurar ambos.

    A imaginao autoritria

    O autoritarismo poltico, portanto, combinava-se a um plano de ao econmica que recolocaria os trabalhadores em seu devido lugar. A proposta dos economistas conservadores tinha um ntido contedo hierrquico que legitimava o bloqueio da presso redistributiva que a poltica democrtica implicava em um pas to desigual como o Brasil. No surpreende que ela tivesse afinidade eletiva com a crtica dos militares desordem e irracionalidade trazida pela democracia, que permitia a agitao demaggica do PTB e dos sindicatos. Tanto o manifesto dos ministros militares contra a posse de Goulart em 1961, quanto a instruo reservada do chefe do Estado-Maior do Exrcito, general Castelo Branco, aos demais generais em 20 de maro de 1964, faziam aluso ao perniciosa dos sindicatos sobre a hierarquia poltica e a ordem econmica, com beneplcito da liderana trabalhista. O alvo era o recurso s greves na luta poltica e econmica. Nos termos do manifesto de 1961:

    J ao tempo que exercera o cargo de ministro do Trabalho, o sr. Joo Goulart demonstrara, bem s claras, suas tendncias ideolgicas, incentivando e mesmo promovendo agitaes sucessivas e frequentes nos meios sindicais, com objetivos evidentemente polticos e em prejuzo mesmo dos reais interesses de nossas classes trabalhadoras... No cargo de vice-presidente, sabido que usou sempre de sua influncia em animar e apoiar, mesmo ostensivamente, manifestaes grevistas por conhecidos agitadores... Pas em busca de uma rpida recuperao econmica que est exigindoenormes sacrifcios, principalmente das classes mais pobres e humildes; em marcha penosa e rdua para estgio superior de desenvolvimento econmico-social... no poder nunca o Brasil enfrentar a dura quadra que estamos atravessando, se apoio, proteo e estmulo vierem a ser dados aos agentes da desordem, da desunio e da anarquia (Heck et al., 1961).

    Na instruo de 1964, a ameaa era a escalada das greves para pressionar pela redistribuio de propriedade e renda atravs das reformas de base:

    Compreendo a intranquilidade e as indagaes de meus subordinados nos dias subsequentes ao comcio de dia 13 do corrente ms (maro)... So evidentes duas ameaas: o advento de uma Constituinte como caminho para a consecuo das reformas de base e o desencadeamento em maior escala de agitaes generalizadas do ilegal poder do CGT. As Foras Armadas so invocadas em apoio a tais propsitos... Entrarem as Foras Armadas numa revoluo para entregar o Brasil a um grupo que quer domin-lo para mandar e desmandar e mesmo gozar o poder? Para garantir plenitude do agrupamento pseudo-sindical, cuja cpula vive na agitao subversiva cada vez mais onerosa aos cofres pblicos? ... O CGT anuncia que vai promover a paralisao do pas, no quadro do esquema revolucionrio. Estar configurada uma calamidade pblica... preciso a, perseverar, sempre dentro dos limites da lei. Estar pronto para a defesa da legalidade...contra a calamidade pblica a ser promovida pela CGT e contra o desvirtuamento do papel histrico das Foras Armadas (Branco, 1964).

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    Esta concepo antidemocrtica do poder, da estratificao social e da distribuio de renda epropriedade seria modernizada, pelo menos na forma, com a contribuio dos argumentos tcnicos dos economistas conservadores. J consolidada a ditadura, o coronel Jarbas Passarinho, ministro do Trabalhoem 1970, assim se referiu aos efeitos distributivos injustos e inflacionrios da democracia e da demagogia trabalhista:

    Os governos pseudo-trabalhistas, ou vidos de popularidade, calculadamente distribuam favores individuais ou grupais, como forma de assegurarem o apoio das cpulas corruptoras (dos sindicatos)e, atravs delas, obterem a simpatia da massa operria. Os favores pagava-os a Nao, em ltima anlise os trabalhadores. Em 1964 havamos chegado ao clmax dos efeitos perniciosos dessa poltica de clientela trabalhista... A poltica de salrios media-se pela improvisao e pelo prestgio de cada grupo reivindicador. Dentro da anarquia sindical produzida pela concesso demaggica de aumentos salariais desordenados, produzia-se a injustia dos reajustamentos substancialmente diferentes... Claro que isso decorria da convenincia do Estado em favorecer grupos de presso sindical, na medida em que esses grupos eram vitais sua imagem de governo trabalhista, o que levava inclusive ao desempenho do papel patrocinador de greves. Como consequncia, a indstria e o comrcio no absorviam a mo de obra deslocada dos campos. A inflao, autoalimentada pelos dficitsdescontrolados do Tesouro e pelos aumentos demaggicos dos salrios das categorias mais agressivas dos trabalhadores, acumulava mais de 23% no primeiro semestre de 1964, ameaando chegar a 140% naquele ano (Passarinho, 1970, apud Costa, 1997, p. 36).

    Embora os termos lembrassem a aluso demagogia distributiva presente pelo menos desde o Manifesto dos Coronis de 1954, a crtica ao trabalhismo estava vinculada agora ao programa conservador que restaurara a racionalidade econmica e a neutralidade distributiva. Tradicionalmente, o conservadorismo econmico explicava a inflao pelo excesso de demanda monetria e culpava o dficit pblico pelo excesso, propondo o corte de gasto (preferencialmente ao aumento de impostos) para reduzir o dficit. Esta era a viso que a Unio Democrtica Nacional (UDN) apresentava desde o programa da campanha presidencial do Brigadeiro Eduardo Gomes em 1945, ecoando argumentos esgrimidos ento pelo decano liberal Eugnio Gudin e pelo jovem Octvio Gouveia de Bulhes. Novos argumentos e projetos de reforma que adaptavam o iderio conservador ao contexto da dcada de 1960 foram elaborados por think tanks financiados por filiais e empresrios nacionais, como o Instituto de Pesquisas Econmicas e Sociais e o Instituto de Bases da Ao Democrtica (Dreifuss, 1973;Bielschowsky, 1985).

    Antes do golpe de 1964, Gudin e Bulhes eram acompanhados por Roberto Campos e por um conjunto de jovens economistas, e associavam o dficit, a inflao e o baixo crescimento ao programa populista: aumento de salrios acima da produtividade do trabalho, gastos sociais indevidos, preos relativos definidos politicamente, apreciao cambial, irresponsabilidade fiscal e monetria,regulamentao de remessas de lucros, ameaas de reforma agrria e urbana. Alm do excesso de demanda, a oferta no poderia crescer adequadamente por causa dos limites aos lucros impostos pelo controle de preos administrados pelo governo: aluguis, produtos agrcolas, taxas de juros, cmbio e salrios. Os lucros precisavam ser liberados das restries polticas para que a oferta pudesse

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    acompanhar a demanda. O salrio no poderia aumentar acima da produtividade (independentemente do patamar inicial das duas variveis). O gasto pblico no podia estar sujeito s demandas irresponsveis dos cidados por salrios indiretos (na forma de bens e servios pblicos gratuitos) que, de modo inadvertido e contraproducente, os prprios cidados acabariam pagando, supostamente, com mais inflao.

    Desse modo, a ortodoxia conservadora culpava o conflito distributivo e poltico pela inflao. Mais precisamente: a culpa era dos trabalhadores que queriam auferir reajuste de salrios (diretos e indiretos) supostamente maiores que o aumento marginal da produtividade e dos polticos que se alimentavam da demagogia, usando recursos tributados das classes produtivas, emitindo moeda oupropondo reformas irrealistas dos direitos de propriedade. Vetos conservadores reforma tributria, margens de lucro crescentes, endividamento externo ou crise cambial? No, o culpado ltimo pela crise seria um sistema poltico em que as decises eram influenciadas por presses democrticas. Nas palavras de Mario Henrique Simonsen:

    Ordenar as aspiraes da sociedade num programa de ao exequvel, eis o grande desafio dos governantes no mundo moderno... Lamentvel verificar que o sufrgio universal frequentemente premia aqueles candidatos que prometem dividir o bolo em partes de soma superior ao todo. Nascem assim as experincias da incompatibilidade distributivista, cujos resultados so apenas a exploso inflacionria, a insolvncia externa, a falncia do crescimento e a desordem social. Enquanto boa parte do mundo continua mergulhada nos dilemas da perplexidade, o Brasil vem se destacando, desde a Revoluo de 1964, como uma ilha de racionalidade (Simonsen, 1974, apud Serra, 1979, p. 138-9).

    Em outro texto, Simonsen explicaria que a frmula de reajuste que provocou forte queda do salrio mnimo real estabelece um critrio objetivo para as negociaes coletivas de salrio, resolvendo pela matemtica o que em muitos pases se resolve pelas greves e presses polticas (Simonsen, 1976,apud Serra, 1979, p. 106). Em livro escrito com Roberto Campos, escreveriam ainda:

    A Revoluo de 1964 abriu uma nova fase da Histria Econmica do Brasil... a especificao do desenvolvimento econmico como objetivo nacional prioritrio, num quadro poltico estvel, atento continuidade de princpios, e que permitiu que as decises econmicas se formulassem por critrios tcnicos isentos de injunes eleitorais (Simonsen; Campos, 1974, p. 1-2).

    Os economistas forneciam uma legitimao tcnica da autocracia poltica. Se aceita sua linha deargumentao, era impossvel superar o problema econmico com democracia, pois os demagogos e o povo ignorante quanto aos princpios de economia tinham incentivo para perpetuar o erro e prejudicarem a si mesmos. A tcnica supostamente correta s podia ser imposta, de cima para baixo, para alm do conflito. Para alm da irracionalidade da poltica democrtica. A afinidade eletiva entre essa racionalizao ideolgica e a viso autoritria dos militares sobre conflito poltico, estratificao social e distribuio de renda no pode ser subestimada. Ela esteve a servio no da neutralidade distributiva, mas de uma enorme concentrao da renda e da propriedade. Foi o prprio Simonsen quem revelou, tecnicamente, que:

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    De um modo geral o Governo Castello Branco reservou a correo monetria para aquelas reas em que ela se mostrava mais recomendvel do ponto de vista do estmulo produo, equidade fiscal e ao mercado de capitais. O campo politicamente mais tentador para a indexao, o dos salrios, foi devidamente contornado pela frmula do reajustamento pela mdia e no pelo pico... Devido subestimativa do resduo inflacionrio, esse critrio parece ter provocado certo declnio dos salrios reais entre 1965 e 1967, o que afinal era a contrapartida da melhoria da posio que se pretendia garantir aos locadores de imveis, aos concessionrios de servios de utilidade pblica, aos portadores de ttulos de renda, e aos demais beneficirios da inflao corretiva (Simonsen, 1970, p. 184).

    Uma vez iniciada a ditadura, os economistas que antes criticavam o populismo tambm defenderam um programa gradualista de combate inflao contra o tratamento de choque proposto pelo FMI. Desta vez, um governo socialmente conservador e politicamente alinhado a Washington e Wall Street obteve rapidamente o apoio do governo e da comunidade financeira dos EUA para renegociar a dvida externa - o que permitiu apreciar o cmbio por alguns anos para conter a inflao, em ntido episdio de populismo cambial. E iniciou-se um programa de reformas estruturais exatamente pela reforma tributria, agora simplesmente imposta a um Congresso Nacional tornado servil. Os direitos trabalhistas foram alterados, e a poupana compulsria formada a partir da folha salarial serviu para subsidiar a construo de subrbios que segmentavam burguesia e camadas mdias, de um lado, e a populao desprovida de condies adequadas de moradia e servios pblicos, do outro lado do muro. Os latifndios aumentaram e receberam subsdios para a modernizao tcnica, enquanto o xodo rural inchava a periferia insalubre das grandes cidades e rebaixava o salrio dos trabalhadores desqualificados. A concentrao de renda resultante animou a construo civil e a indstria de bens durveis que atendia parte minoritria da populao, gerando um estilo de desenvolvimento excludente que nada tinha de tecnicamente necessrio, sendo consequncia direta do modo como os conflitos dos anos 1960 foram resolvidos.

    claro que o sentido poltico e o impacto distributivo do programa de reformas da ditadura era inverso ao programa trabalhista: basta lembrar que o salrio mnimo real caiu 35% entre fevereiro de 1964 e maro de 1967. O avano da concentrao de renda asseguraria, como diria o General e Presidente Emlio Garrastazu Mdici, que o Brasil fosse bem mas o povo fosse mal - ainda que seu principal economista, Antnio Delfim Neto, assegurasse ser tecnicamente necessrio fazer crescer o bolo para depois distribui-lo, antes de comandar uma reduo ainda maior do salrio mnimo na dcada de 1980. Isto serve para nos lembrar que decises importantes de poltica econmica no costumam ter neutralidade distributiva. E que o programa trabalhista no foi implementado porque seus opositores organizavam-se para executar um programa inverso de construo de uma sociedade desenvolvida.

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