razão e democracia

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    Razo e Democracia

    RAZOEDEMOCRACIAUSOPBLICODARAZOEPOLTICADELIBERATIVAEMHABERMAS

    Denilson Luis Werle1

    RESUMO: O objetivo do artigo examinar como Habermas, orientado pela intuio normativado uso pblico da razo, reconstri uma concepo procedimental de democracia deliberativa, que,sem desconsiderar da dimenso estratgica e instrumental da esfera pblica e da poltica, reformulaa dimenso epistmica da democracia: a aceitabilidade racional dos acordos polticos. Inicialmente,apresento brevemente a anlise sociolgica e histrica do conceito de esfera pblica crtica, realizadaemMudana Estrutural da Esfera Pblica (1962), para, em seguida, expor duas linhas de argumentaosobre o conceito de esfera pblica e de poltica deliberativa, em Direito e Democracia (1992): a que serefere ao princpio de legitimao baseado na razo pblica como uma reconstruo intersubjetiva e

    poltica do conceito kantiano de autonomia; e a que concerne aos aspectos essenciais da teoria crtica dasociedade fundada na distino entre mundo da vida e sistema e a traduo sociolgica e institucionaldo uso pblico da razo, nos conceitos de sociedade civil e esfera pblica.

    PALAVRAS-CHAVE: Esfera pblica. Poltica deliberativa. Uso pblico da razo. Habermas.

    O jogo poltico jurdico-institucional das democracias modernas

    marcado por muitas dimenses e elementos complementares e tambmcontraditrios ou de difcil conciliao. Qualquer que seja a forma comocaracterizamos esse jogo, trs elementos parecem ser fundamentais em qualquerdescrio ou reconstruo da poltica democrtica moderna: a autonomia privadados cidados, assegurada por um conjunto de direitos individuais fundamentaisque lhes permitem conduzir um plano de vida prprio, configurado a partir deinteresses, crenas e valores pessoais; a autonomia da cidadania democrtica (asoberania popular) expressa num conjunto de direitos de participao poltica

    e incluso equitativa de cidados livres e iguais na comunidade poltica; e umaesfera pblica poltica independente, que, enquanto esfera de formao livre

    1 Universidade Federal de Santa Catarina.

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    da opinio e da vontade, faz a mediao entre a sociedade civil e o Estado. Oprocesso de racionalizao social que levou separao funcional entre o poderpoltico administrativo do Estado e a economia capitalista de mercado explica

    por que as sociedades modernas no podem prescindir do elemento mediadorde um espao pblico, no qual as contribuies, atitudes, interesses e valoresdos cidados podem encontrar ressonncia e influenciar as decises polticas.Esses elementos formam, em geral, o cerne normativo do Estado de direitodemocrtico (HABERMAS, 2009, p. 89).

    O enraizamento desse cerne normativo no apenas no arcabouoinstitucional, mas tambm e, pelo menos, parcialmente na autocompreenso

    dos cidados representou uma resposta moderna ao desafio do pluralismo deplanos de vida individuais e formas de vida culturais consequentemente,de interesses, valores e concepes do bem-viver divergentes e, na maioriadas vezes, conflitantes e irreconciliveis entre si. Sem entrar no mrito dasinmeras explicaes sociolgicas das causas do pluralismo moderno, o fato que ele significou uma ruptura cultural profunda na autocompreensonormativa e nas concepes de mundo das pessoas modernas, que exigiu,entre outras coisas, novas formas de reflexo prtica sobre normas e valores

    e novos procedimentos de legitimao poltica das instituies e do poder.No contexto do pluralismo, desenvolveu-se um modo de justificao ps-metafsico segundo o qual as respostas s questes prticas j no podemmais se apoiar na concordncia metafsica com uma natureza concebidateleologicamente ou numa fundamentao testa de legitimao e de verdadeprtica, muito menos num ethostradicional que perpassa a sociedade comoum todo. Na ausncia de um consenso substancial sobre valores, normase princpios expresso numa imagem de mundo aceita e compartilhada por

    todos, o nico critrio de justificao das respostas s questes prticas (quepode funcionar como equivalente racional das fundamentaes tradicionais)reside no consentimento racionalde indivduos autnomos, livres e iguais. Osprotagonistas dessa nova compreenso da justificao racional so os indivduosautnomos, iguais e livres, que veem seus planos de vida, identidades, crenase pertenas comunitrias como sendo escolhidos livremente, independentesde qualquer pr-determinao natural, religiosa ou cosmolgica. Do mesmomodo, as instituies sociais e polticas somente esto justificadas quando

    refletirem os interesses, direitos e concepes de boa vida dos indivduos. Asprticas de justificao moral e de legitimao poltica, consideravelmentedificultadas pelo moderno pluralismo ideolgico, tico, religioso e poltico,

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    passam a adotar como critrio de verdade aquelas razes que puderem obtero consentimento pblico e o apoio universal de todos os indivduos.

    Como consequncia, os discursos de justificao racional no dependemmais da autoridade de algum, nem so posse privada de alguns iluminadospela verdade, mas passam a ser desenvolvidos na esfera pblica. A esferapblica o espao genuno no qual uma sociedade fundada na autonomia dosindivduos realiza seus discursos de autocompreenso e desenvolve sua prxisdiscursiva de legitimao. Ou seja, na dinmica da esfera pblica cidadoslivres e iguais podem no apenas apresentar suas reivindicaes particulares,mas tambm desenvolver e aprimorar sua prpria prxis de legitimao

    discursiva. No princpio de publicidade, manifesta-se uma compreensoreflexiva da justificao: as condies de aceitabilidade de razes que atribuemvalidade e eficcia s normas e decises coletivas e que possuem uma foramotivadora e geradora de consenso no o fazem porque esto em harmoniacom uma configurao pr-dada ou com princpios jusnaturalistas ltimos,mas por derivarem dos prprios elementos estruturais do procedimento de umacordo argumentativo (KERSTING, 2006, p. 110).

    Como sabemos, essa ideia de esfera pblica como principio e locus da

    legitimao do poder poltico , j no incio do contratualismo moderno, umelemento fundamental da teoria moderna da justificao prtica (KERSTING,2006). O que grande parte dos tericos da tradio contratualista pressupe,nesse princpio de legitimao por meio do uso pblico da razo, o vnculoindissocivel entre razo e liberdade. Isso, por exemplo, formulado demaneira explcita por Kant (Crtica da Razo Pura,A739/B767):

    Em todos os seus empreendimentos deve a razo submeter-se crtica e nopode fazer qualquer ataque liberdade desta, sem se prejudicar a si mesmae atrair sobre si uma suspeita desfavorvel. Nada h de to importante,com respeito utilidade, nem nada de to sagrado que possa furtar-sea esta investigao aprofundada que no faz exceo para ningum. mesmo sobre esta liberdade que repousa a existncia da razo; esta notem autoridade ditatorial alguma, mas a sua deciso outra coisa no queo acordo de cidados livres, cada um dos quais deve poder exprimir as suasreservas e mesmo exercer seu veto sem impedimentos.

    Contudo, por outro lado, esse deslocamento da prxis de justificaopara a esfera pblica despertou tambm a suspeita ctica de que as respostas questo prtica o que devo fazer? ou o que devemos fazer? no teriam

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    nenhuma relao com a verdade ou com uma moral racional: nada mais seriamdo que racionalizaes pstumas derivadas de motivos no racionais (todagama variada de paixes, emoes, interesses, sentimentos, que estariam na

    base de nossos juzos de valor). Consequentemente, razo e poltica, ou razo edemocracia, no teriam nenhuma relao entre si: a razo no desempenharianenhuma funo na poltica e na moral. A poltica, e o domnio prticoem geral, seria fruto de um clculo de custos e benefcios feito por atorespolticos em conflito. Logo, as instituies polticas e a comunidade polticacomo tal no se fundamentam em razes pblicas com apoio universal, massustentam-se a partir de um equilbrio de foras, isto , so consideradaslegtimas quando nenhum grupo social est em condies de eliminar os

    demais. Sobretudo, so fruto de um clculo de atores polticos inseridos emuma relao estratgica. A preservao da comunidade poltica no dependeda adeso racionalmente motivada dos atores sociais a determinados valores.

    A adeso s regras democrticas circunstancial, contingente. Depende,sobretudo, de consideraes estratgicas. Os indivduos tomam decises,antecipam consequncias de seus atos, escolhem instituies polticas; em umapalavra, agem politicamente. E a maneira como atuam desempenha um papeldecisivo na obteno e manuteno da democracia. Consequentemente, no

    se pode entender a prtica de justificao pblica como uma prtica dialgica,argumentativa, voltada para a fundamentao e realizao de um conjuntode razes morais aceitveis e compartilhadas por todos, isto , como umprincpio racional de legitimao da normatividade. A prtica de justificaoteria de ser vista a partir de uma racionalidade estratgico-instrumental,segundo a lgica de um mercado poltico. Como um espao da lgica deautoconservao individual, a poltica democrtica, mesmo concebida comouma prtica pblica de oferecer e receber razes, tem a ver com a ocorrnciada interao estratgica e da busca da afirmao de si ou do poder entreos indivduos e as coletividades em qualquer contexto institucional ou socialconcreto e independentemente do contedo especfico dos fins que possamser objeto de conflito ou cooperao em uma outra esfera de interao: finsreligiosos, materiais ou econmicos, poltico-institucionais, de classe, raa,etnia, gnero, gerao, ou qualquer que seja. As relaes polticas seguem amesma lgica das relaes vigentes no mercado: so expresses da ao de

    indivduos autnomos que articulam estratgias de ao onde possam obtera melhor eficcia possvel na adequao entre os meios disponveis e os finsalmejados. A prtica argumentativa e as razes apresentadas na esfera pblica

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    nada mais seriam do que racionalizaes do prprio interesse e sua funo noseria a de convencer, mas a de persuadir os demais.

    O objetivo deste texto examinar como, diante dessa reserva ctica esaudvel quanto aos poderes da razo e dinmica da esfera pblica, ainda possvel pensar em formas de justificao racional de respostas aos conflitosprticos que no sejam nem cinicamente derrotistas e nem abstratamenteingnuas. Para alm da poltica como mero jogo de interesses e de correlaode foras, a ideia ver como Habermas, orientado pelo modelo normativo deuso pblico da razo, desenvolve uma concepo procedimental de polticadeliberativa, que, sem desconsiderar a dimenso estratgica e instrumental da

    esfera pblica, recupera a dimenso epistmica da democracia: a aceitabilidaderacional gerada numa prtica argumentativa voltada para o entendimentomtuo. Inicialmente, apresento brevemente a anlise sociolgica e histrica doconceito de esfera pblica realizada por Habermas, emMudana Estrutural daEsfera Pblica (1962), para mostrar como emerge uma nova conscincia crticae reflexiva acerca da justificao prtica que se configura numa concepo deesfera pblica ao mesmo tempo crtica normativa e historicamente localizada econtingente. Em seguida, comento duas linhas de argumentao, interligadas

    entre si, sobre a importncia do conceito de esfera pblica desenvolvidaspor Habermas em Direito e Democracia (1997)2. A primeira consiste emdemonstrar como o princpio de legitimao baseado na razo pblicapode ser interpretado como uma expresso poltica do conceito kantiano deautonomia reformulado intersubjetivamente, o que leva Habermas a elaborarum princpio de justificao de normas em geral (o princpio do discurso) euma concepo multidimensional dos conflitos prticos, ligada a diferentesusos da razo prtica (pragmtico, tico e moral). A segunda est relacionada

    com aspectos essenciais de teoria crtica da sociedade, fundada na distinoentre mundo da vida e sistema e a traduo sociolgica e institucional do usopblico da razo. A esfera pblica e a poltica democrtica devem ser analisadasno s com instrumentos da teoria da ao, mas tambm com os instrumentosda teoria dos sistemas. Nesse sentido, a poltica deliberativa e o uso pblicoda razo como procedimento devem ser examinados tanto pela perspectiva daformao da vontade e da opinio baseadas no debate crtico-racional, quantopela perspectiva dos sistemas poltico-administrativos governados pelo medium

    do poder e da economia de mercado. O objetivo ver como os cidados2Aqui no sero abordadas as possveis mudanas do conceito de esfera pblica, na obra de Habermas.

    Aos interessados, recomendo o prefcio escrito por Habermas para a reedio alem, em 1990, dolivroMudana Estrutural da Esfera Pblica, tambm por ocasio da publicao da traduo em ingls.

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    podem influenciar o sistema poltico, por meio de processos de formao daopinio e da vontade coletivas sem, ao mesmo tempo, prejudicar a dinmicaprpria do sistema. A ideia evidenciar as vantagens e desvantagens dos dois

    modelos de poltica deliberativa propostos por Habermas, que expressamdiferentes relaes entre mundo da vida e sistema: o modelo do sitiamento,explicitado em Soberania Popular como Procedimento, e o modelo das eclusas,que aparece em Direito e Democracia.

    I

    A ideia de esfera pblica ocupa um lugar central no pensamento deHabermas, a partir da publicao deMudana Estrutural da Esfera Pblica,suaHabilitationsschrift, em 1962, at suas obras mais recentes sobre moral, polticae direito. Tendo como ponto de partida uma intuio kantiana do uso pblicoda razo, Habermas trabalhou sistematicamente no desdobramento dessaintuio, desde seus trabalhos iniciais at a sua teoria discursiva do direito.De certo modo, pode-se dizer que as concepes tericas desenvolvidas por

    Habermas nesse meio tempo a tica do discurso, a teoria consensual daverdade, a fundamentao pragmtica universal de normas, a evoluo histricada conscincia moral e a concepo de ao comunicativa podem ser vistascomo explicaes sempre renovadas e sucessivas tentativas de sistematizaodesse conceito crtico normativo fundamental: a legitimao democrtica pormeio do uso pblico da razo entre cidados livres e iguais.

    Em Mudana Estrutural, Habermas investiga principalmente asmudanas nos elementos estruturais e na funo poltica da esfera pblicaburguesa e da formao da opinio pblica desde o sc. XVIII at s sociedadescontemporneas do capitalismo tardio. Mas, mais do que isso, trata-sede uma longa reflexo sobre a natureza da vida pblica e sobre os modosde sua transformao, ao longo da prpria racionalizao social e culturaldo ocidente. Todavia, o foco de Habermas, na qualidade de terico crticoda sociedade, est mais voltado para o potencial de crtica imanente e nadinmica contraditria da esfera pblica burguesa, ou seja, nos potenciais de

    emancipao inscritos na dinmica da esfera pblica e tambm nos obstculos as patologias que impedem a realizao efetiva desses potenciais. Nessaperspectiva crtica, a reconstruo da dinmica da esfera pblica burguesa,

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    concebida no ambiente intelectual da antiga escola de Frankfurt, representauma espcie de Verfallsgeschichte, uma histria da ascenso e decadncia.

    Como muitos outros pensadores sociais e polticos, particularmentecomo Hanna Arendt, o primeiro passo de Habermas consiste na reconstruode diferentes tipos de esfera pblica, com base na distino mais ou menosestanque entre o pblico e o privado, na Grcia clssica, a gradativa dissoluodessa distino, na Idade Mdia europeia, e a emergncia da esfera pblicarepresentativa, para chegar, finalmente s novas configuraes e mediaesentre privado e pblico na esfera pblica burguesa, no mundo moderno.Mas diferentemente de Arendt, que narra a decadncia do pblico num

    esquema heideggeriano de esquecimento da origem, para Habermas, aemergncia e a decadncia da esfera pblica ocorre no interior da histriada sociedade moderna. A ascenso, a institucionalizao contraditria ea subsequente decadncia da esfera pblica esto vinculadas ascenso eexpanso da economia capitalista de mercado (mercantil e oligoplico) e doEstado moderno (inicialmente Absolutista, depois Liberal e o Estado social)(COHEN; ARATO, 1992).

    Nas cidades-estado da antiga Grcia, a esfera da polis era separada

    do domnio privado do oikos. A vida pblica estava constituda na praado mercado e nas assembleias, onde os cidados se reuniam para discutire deliberar sobre as questes do dia; a esfera pblica era, em princpio,um mbito aberto ao debate no qual aqueles cidados que recebiam oreconhecimento por direito do statusde cidado podiam interagir entre elescomo iguais. Ainda que essa concepo clssica da vida pblica, enquantoideal normativo da democracia, tenha tido uma influncia perdurvel sobreo pensamento ocidental, as formas institucionais da esfera pblica variarammuito de um perodo ao outro. Na Idade Mdia europeia, segundo Habermas,no existia uma esfera pblica diferenciada: a esfera pblica estava ligada representao do statusde reis e senhores. As figuras pblicas se exibiam comorepresentantes ou personificaes de uma autoridade suprema ou algum podersuperior. Tal esfera pblica representativa atingiu sua expresso mais elaboradana vida cortes dos sculos XV e XVI, depois foi perdendo gradualmentesua significao com o desenvolvimento do capitalismo mercantil e com asmudanas jurdico-institucionais nas formas de poder poltico.

    Com a passagem das sociedades tradicionais para as modernas, foramcriadas as condies para o surgimento de um novo tipo de esfera pblicadiferente da ordem feudal, na qual a reproduo material da sociedade

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    estava subordinada aos controles polticos e ideolgicos de autoridades quese legitimavam de modo tradicional. Com o desdobramento do capitalismomercantil, foram criadas as condies que possibilitaram o domnio

    privado sobre a reproduo social em geral, inaugurando-se um processo dediferenciao entre as esferas culturais de valor decorrente de uma dinmicaendgena do social, que vai acabar na consolidao de uma nova vida pblica:a esfera pblica burguesa. Esse processo de diferenciao da sociedade ocorreem dois planos. O domnioprivadoinclui tanto o campo sempre em expansodas relaes econmicas, como tambm a esfera ntima das relaes pessoais,cada vez mais desligadas da atividade econmica e ancoradas na instituioda famlia. Entre o domnio da autoridade pblica ou o Estado, de um lado,

    e o domnio privado da sociedade civil e da famlia, de outro, surgiu umanova esfera do pblico: uma esfera pblica burguesa integrada por indivduosprivados que se reuniam para debater entre si um amplo leque de questes, asquais abrangiam diversos domnios da sociedade, mas as discusses principaisversavam sobre a regulao da sociedade civil e a administrao do Estado.

    Na reconstruo da lgica peculiar da nova vida pblica, Habermastraa uma linha de continuidade entre a constituio da publicidade, na

    esfera ntima da famlia patriarcal burguesa, e a emergncia de uma esferapblica literriaque vai se desdobrar numa esfera pblica poltica.A tese deHabermas que a emergncia de uma esfera pblica poltica, a partir da esferaliterria crtica, mantm o princpio de comunicao irrestrita, estabelecidaoriginalmente na esfera ntima da famlia burguesa. Habermas mostra que aesfera pblica burguesa o desdobramento de um princpio surgido na famliapatriarcal burguesa, o qual est na base da prpria economia de mercado:o ideal de uma interao livre do domnio e das restries sociais externas.

    Obviamente, a famlia, tal como em Hegel, continua a ser um meio elementarde socializao que impede a dissoluo da individualidade, nos vrios nveisda coletividade, mas o que importa a Habermas demonstrar que nela seforma um ideal de humanidade, o qual analisado nos seus componentes deliberdade, solidariedade mtua e igualdade.

    Em conformidade com a tradio hegeliano-marxista de buscaros parmetros de uma crtica imanente, Habermas apresenta o cartercontraftico e a funo legitimadora que esse ideal representa, seu choque comas funes econmicas reais, reino do individualismo possessivo, e as formaspatriarcais de subordinao. Contudo, o ideal no pura ideologia. O idealde humanidade, liberdade, solidariedade, o cultivo pessoal da esfera ntima e

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    o confronto de umpublikumformado de pessoas privadas que fazem um usopblico livre e irrestrito da razo tambm simultaneamente o fundamentoda crtica da ideologia: h uma tenso imanente ao social entre o ideal e o que

    est socialmente estabelecido.Assim, no caso da famlia burguesa, embora seja incapaz de eliminar

    as limitaes econmicas e as patologias de sua prpria herana patriarcal,Habermas reconstri as relaes familiares que expressam, apesar de tudo,a experincia subjetiva ntima e as relaes intersubjetivas de seus membroscomo seres humanos genricos. O que Habermas destaca so as potencialidadesemancipatrias dessa esfera ntima: as experincias de autoexame emotivo, a

    reflexo sobre a prpria vida e a busca racional da compreenso mtua socapazes de se desdobrarem em outras formas de institucionalizao diferentesda prpria famlia.

    Para mostrar como se deu a conexo emprica entre o mundo privadoda famlia burguesa e as formas primordiais da esfera pblica literria,Habermas descreve as caractersticas do salo burgus. Malgrado reconheaque o salo se origina na sociedade aristocrtica, salienta que o salo burgusperde suas funes representativas e ritualsticas: sua forma de comunicao

    j no mais teatral e retrica, e sua estrutura social no reflete a hierarquiade uma sociedade de ordens. Vinculado social e arquitetonicamente aosespaos residenciais privados da famlia, o novo salo estende e amplia oprincpio original da intimidade, revelando a subjetividade de cada indivduoem presena do outro, vinculando, dessa maneira, o privado com o pblico.Mantm-se nele o ideal de buscar a compreenso mediante a argumentaoaberta e a persuaso mtua, sem ter em conta o prestgio e o status.SegundoHabermas, a lgica de discusso e debate do salo da famlia burguesa desdobra-se em outras modalidades de debate e discusso, em outras formas reflexivas eautocrticas de sociabilidade. As casas de ch, os cafs e os clubes, os crculosde leitores, os pubs so extenso do mesmo princpio de crtica de todas asideias e significados recebidos; so ambientes nos quais as elites instrudaspodiam interagir entre si e com a nobreza, em um mesmo plano de igualdade.Esses espaos de sociabilidade constituram a incipiente institucionalidade deum pblico racional que comea a adquirir, pela primeira vez, algum tipo deimportncia universal. Habermas denominou esse pblico como sendo o deesfera pblica literria, de carter privado, no poltico.

    Alm das mudanas nos espaos de socializao primria, o surgimentodessa esfera pblica foi facilitado pelo desenvolvimento da imprensa peridica.

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    Habermas atribui uma importncia particular aos peridicos crticos esemanrios morais, os quais comearam a aparecer em algumas partes daEuropa entre o final do sculo XVII e comeos do XVIII. Embora essas

    publicaes tenham surgido como peridicos dedicados crtica literria ecultural, gradualmente foram se ocupando de questes de significado polticoe social mais geral. Por meio dos peridicos, revistas e jornais, estabeleceu-se uma audincia crtica de indivduos privados, fazendo com que a esferapblica literria fosse amadurecendo e expandindo o reino da reflexo crtica,at adquirir a configurao de uma esfera pblica propriamente poltica, comuma estrutura diferente da que tm as organizaes polticas voltadas buscado poder. Ocorre um deslocamento da crtica literria em direo s decises

    do poder poltico.Foi na Inglaterra, no incio do sculo XVIII, que se deram as condies

    mais favorveis para o surgimento da esfera pblica burguesa. A censura e ocontrole poltico da imprensa foram menos rigorosos na Inglaterra do que emoutros lugares da Europa. O sistema de licenas, que havia sido restabelecidopor Carlos II, em 1662, caiu em desuso no final do XVII, dando sequnciaa uma avalanche de novas publicaes peridicas. Ao mesmo tempo, as casas

    de caf proliferaram. Na primeira dcada do sculo XVIII, havia em tornode 3000 casas de caf somente em Londres, cada uma com seu ncleo declientes regulares. Muitos dos novos peridicos como o Tattler, o Spectator,a Reviewde Defoe e o Examinerde Swift estavam entretecidos com a vidadas casas de caf. Tais peridicos incluam comentrios polticos e stirasque se convertiam em parte integral das discusses nesses novos espaos desociabilidade. A imprensa peridica, desse modo, tornou-se um elemento-chave da esfera pblica em que os indivduos privados se congregavam, nos

    cafs e outros centros de sociabilidade, para tomar parte nas discusses crticassobre as atividades do Parlamento e da Coroa.

    Uma parte essencial da argumentao de Habermas sublinhar quea discusso crtica estimulada pela imprensa peridica teve um impactogradualmente transformador sobre a forma institucional dos Estados modernos.Constantemente chamado a comparecer ante o frum pblico, o Parlamentose abriu cada vez mais ao escrutnio pblico. Vale dizer, a uma forma depublicidade que se configurou fora do Estado. Sua base social foi constitudapor pblicos privados, formados por indivduos livres e proprietrios, donosde suas condies de vida, os quais procuravam fazer valer seus interesses frenteao Estado e submeter o prprio Estado ao poder da crtica. O meio dessa

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    confrontao, rico em consequncias, foi o uso pblico da razo, enquantoarticulado por indivduos privados que formavam um pblico raciocinante,de relaes horizontais e sem mediao do poder (HABERMAS, 1962, p. 27).

    Nesse percurso traado por Habermas, percebe-se como a esfera pblicadesempenha uma funo de integrao social, constituindo-se como espaode convivncia e de relaes intersubjetivas de reconhecimento recproco.Porm, esta apenas uma dimenso do processo de configurao da esferapblica burguesa. A outra dimenso a de sua funo poltica como instnciacrtica de racionalizao da dominao poltica e do poder administrativo doEstado. Isso decorre da prpria importncia pblica das questes vinculadas

    economia capitalista. medida que a economia capitalista foi-se expandindo,tornou-se cada vez mais evidente que a reproduo material teria de serorientada por alguma regulao que fosse alm da mo invisvel do mercado.

    A origem desse processo descrita por Habermas a partir da crtica daIlustrao ao Estado moderno na sua forma Absolutista. O Estado absolutistarepresenta o desafio que motiva o estabelecimento de uma sociedade civilcontra o Estado, que procura institucionalizar seus prprios campos decrtica, sem buscar destruir o Estado, nem se converter num novo Estado, mas

    estabelecer uma forma de dualismo poltico, na qual uma esfera pblica polticacontrolar a autoridade pblica do Estado. Para Habermas, a burguesia, cujopoder por definio privado, no pode governar, mas tambm no podeaceitar uma forma de Estado que seja potencialmente arbitrrio e no estejacontrolado. Alm disso, ela precisa de um poder unificado, capaz de garantiras precondies polticas e legais de uma economia capitalista de mercadoprivada, dentro e inclusive mais alm dos limites territoriais nacionais. Asoluo histrica foi a de conservar o Estado moderno criado pelo absolutismo,mas formalizando e racionalizando o exerccio de seu poder, subordinando-oao governo da lei, para obrig-lo a estabelecer formas de autolimitao (porexemplo, por meio um conjunto de direitos individuais fundamentais, civise polticos) e submet-lo ao jugo da reflexo crtica por meio do uso pblicoda razo. Nesse sentido, na esfera pblica burguesa, os indivduos tm umarelao argumentativa polmica crtica em face do Estado, e no uma relaoparticipativa. Supervisionam, procuram influenciar e de alguma maneiracontrolar o poder, mas eles mesmos no possuem uma parte do poder doEstado (COHEN; ARATO, 1992).

    Em acrscimo, com o desenvolvimento dos Estados constitucionaismodernos, onde so assegurados certos direitos e liberdades bsicas, o papel

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    poltico da esfera pblica foi formalmente reconhecido por meio do direito.Os direitos fundamentais institucionalizam formalmente a prpria ideia dehumanidade, gestada na esfera privada da intimidade. Esses progressos tiveram,

    segundo Habermas, uma considervel significao: comprovam o impactopoltico da esfera pblica burguesa e o papel que esta desempenhou na formaodos Estados constitucionais modernos (COHEN; ARATO, 1992). Ademais,quando a esfera pblica burguesa assume a configurao de uma instnciade racionalizao do poder, pelo debate crtico-racional entre indivduosautnomos, ela constitui um princpio ou padro de legitimao poltica quese mantm at hoje. A efetividade desse princpio pode ser averiguada por meioda anlise dos processos de formao da opinio e da vontade pblica, que se

    tornam o lugar privilegiado para avaliar a crtica social ao poder.O processo de consolidao da esfera pblica se d no interior de

    uma intrincada diferenciao social, com uma interpenetrao dos planosprivado e pblico. Enquanto forma de integrao social e mediao entresociedade civil e Estado, ocorre uma institucionalizao contraditria da esferapblica, instaurada numa dinmica tensa que manifesta tanto numa crescentepublicizao das questes privadas, as quais se mostram no mundo moderno

    como questes de importncia pblica e de interesse geral, e representam,conforme Habermas, um potencial emancipatrio, quando a publicizao sed segundo a norma de um debate crtico racional, quanto no risco de umaprivatizao das questes pblicas, quando a economia capitalista e o Estadomoderno vo impondo suas lgicas prprias sobre a esfera pblica crtica eracional, transformando-a numa esfera pblica demonstrativa e manipulativa,de mera agregao de interesses privados.

    esse carter contraditrio inscrito estruturalmente na esfera pblica queHabermas quer demonstrar com a tese da decadncia do carter crtico da esferapblica no capitalismo tardio. Paradoxalmente, quanto mais se amplia a esferapblica, mais perde seu carter crtico reflexivo. Para Habermas, a decadnciada esfera pblica burguesa foi o resultado da confluncia de diversas tendncias:1) a crescente interveno do Estado na economia capitalista. A separaoentre estado e sociedade civil que havia criado um espao institucional paraa esfera pblica comeou a decompor-se medida que o Estado assumiu umcarter cada vez mais intervencionista, expandindo a administrao pblicae a burocracia poltica. O Estado moderno liberal intervm na economiacapitalista para proteger a estrutura econmica ameaada por tendncias decrises endgenas e dos processos de autorregulao limitados. Alm disso, o

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    Estado social assume para si a responsabilidade de administrar o bem-estar doscidados. 2) A captura dos poderes pblicos por parte de associaes privadasde grupos de interesse. 3) A concentrao do capital e as desigualdades na

    capacidade dos indivduos se autorrepresentarem. A concentrao se estendeaos meios de comunicao de massa. 4) A decadncia da esfera ntima dafamlia. Esta [...] perde suas funes defensivas: de educao, defesa, cuidadoe direo, e inclusive de proporcionar tradies e orientaes... seu poder paraformar condutas em reas que eram consideradas mais internas dos membrosdas famlias burguesas. 5) A massificao da cultura e da poltica. No mbitoda cultura, a importncia dos espaos de sociabilidade como os cafs e salesvai declinando. Surge uma gama de instituies de meios de comunicao

    organizadas cada vez mais como empresas comerciais em grande escala. Acomercializao dos meios de comunicao alterou seu sentido: o que antesera um frum exemplar de debate crtico racional converteu-se num campo deconsumo cultural, e a esfera pblica tornou-se um mundo simulado de criaode imagem e de manejo da opinio pblica. No mbito da poltica: ascensoda poltica de partidos, manipulao da esfera pblica para garantir a lealdadedas massas (COHEN; ARATO, 1992).

    Com o esmaecimento da funo crtica da esfera pblica burguesa,houve, de acordo com Habermas (1962, p. 158), um processo de refeudalizaoda esfera pblica nas sociedades democrticas contemporneas. Assofisticadas tcnicas dos novos meios de comunicao so empregadas paraconferir uma aura de prestgio s autoridades pblicas, tal como outroraas figuras reais usavam de uma esfera pblica representativa nas cortesfeudais. Essa refeudalizao da esfera pblica transforma a poltica em umespetculo dirigido, em que os lderes e partidos pretendem, de tempos em

    tempos, obter uma aclamao plebiscitria de uma populao despolitizada.A maioria da populao est excluda da discusso pblica e dos processosde tomada de decises e manipulada como um recurso que permite aoslderes polticos obterem, com a ajuda de tcnicas miditicas, uma aceitaosuficiente para legitimar programas polticos. No desenvolvimento desseargumento pessimista, Habermas antecipou, com uma lucidez notvel, ocarter deslumbrante de nossas campanhas eleitorais atravs dos mass media.

    Contudo, apesar das transformaes estruturais da esfera pblica nossculos XIX e XX terem transformado radicalmente a natureza da vida pblica,Habermas continua argumentando que a esfera pblica burguesa expressaideais e princpios na verdade, ela deu o impulso institucionalizao de

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    princpio racional de legitimao poltica caros s democracias constitucionaiscontemporneas e que mantm sua pertinncia at hoje. A ideia maisimportante a do princpio crtico da esfera pblica. Trata-se da ideia de

    que as opinies pessoais dos indivduos privados podem desenvolver-se numprocesso de debate racional crtico, aberto a todos e livre de dominao, em queprevalece a fora do melhor argumento. Habermas sustenta que, a despeito dodeclnio da esfera pblica burguesa, que proporcionou uma realizao parciale imperfeita do ideal, o princpio crtico da esfera pblica conserva seu valorcomo ideal normativo, como um forma de critrio crtico mediante o qualas deficincias e os momentos de inrcia das instituies existentes podemser avaliados. O princpio de um uso pblico da razo o conceito nuclear

    de uma teoria da democracia ou da poltica deliberativa, ainda em esboorudimentar, emMudana Estrutural da Esfera Pblica.3

    II

    Nas ltimas dcadas, a investigao de Habermas deslocou-se para as

    relaes entre moral, poltica e direito, no marco de uma teoria da democraciadeliberativa. Continua o problema de saber como uma teoria da democracia,fortemente impregnada pelo ideal normativo que noutro tempo encarnou aesfera pblica burguesa, poderia ser desenvolvida e aplicada sob as condiesdas sociedades modernas, complexas e plurais. De um modo esquemtico,pode-se afirmar que Habermas defende uma forma de republicanismo kantianoque se autointerpreta como uma justificao ps-metafsica e no religiosa dosfundamentos normativos do Estado de direito democrtico. Para Habermas

    (2007, p.163), [...] o Estado constitucional democrtico, que depende de umaforma deliberativa de poltica, representa, em geral, uma forma de governopretensiosa do ponto de vista epistmico e, de certa forma, sensvel verdade.Sua legitimidade depende de pretenses de validade contestveis em pblico,portanto, de um uso pblico da razo no qual devem ser levados em contatodos os temas, posicionamentos, informaes e argumentos que encontram

    3 Nas pginas finais do livro, Habermas prope algumas ideias de como o princpio crtico da esferapblica poderia tornar-se efetivo, dentro de organizaes e grupos de interesses que tm assumido

    um papel cada vez mais crescente nos assuntos polticos. No esboo dessas propostas para umademocratizao intra-organizativa, percebe-se a dvida de Habermas com a obra de seu orientador,

    Wolfgang Abendroth, de Marburg. Entretanto, as propostas apresentadas por Habermas eram muitovagas e acabaram deixando a impresso de que, dada a complexidade das sociedades modernas,internamente diferenciadas, tais propostas eram em sua maior parte impraticveis.

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    ressonncia na esfera pblica (informal e formal) e contribuem de alguma formapara a mobilizao de certas decises implementadas pelo poder poltico.

    Abreviando muitos aspectos das reflexes de Habermas sobre arelao e possveis mediaes entre moral, poltica e direito na teoria damodernidade, para fins de exposio, pode-se, grosso modo, diferenciarduas linhas de argumentao sobre diferentes formas de realizao do idealnormativo do uso pblico da razo e de entender o conceito de esfera pblica,em Direito e Democracia (1997), obviamente interligadas entre si. Por umlado, na reconstruo da sua concepo intersubjetiva do conceito kantianode autonomia, a partir dos pressupostos pragmticos da ao e de liberdade

    comunicativas. Habermas condensa essas qualidades noprincpio do discurso,pelo qual somente so vlidas as normas de ao s quais todos os possveisatingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantesde discursos racionais (HABERMAS, 1997, I, 142). Por outro lado, numaabordagem apoiada nas teorias sociolgicas da democracia e do direito, oprincpio do discurso traduzido para as condies do procedimentodeliberativo de legitimao prprio do Estado de direito democrtico, parao qual os prprios cidados membros de uma comunidade jurdica concreta

    podem chegar, no uso de sua razo na esfera pblica (informal das redesannimas e formal do sistema poltico-institucional) e na sociedade civil, auma autocompreenso de si mesmos a propsito das bases normativas de suavida em comum.

    O princpio do discurso satisfaz uma necessidade ps-metafsica dejustificao, explicitando [...] o sentido da imparcialidade de juzos prticos,servindo como um procedimento de teste para a fundamentao de normasde ao em geral (ticas, morais e jurdicas). Segundo Habermas, [...] esteprincpio possui certamente um carter normativo, mas ainda no umprincpio moral, pois conta apenas com uma intersubjetividade de ordemsuperior situada num nvel de abstrao que, apesar de seu contedonormativo, ainda neutro em relao ao direito e moral (HABERMAS,1997, I, p. 142). Pelo fato de no poder mais recorrer a conceitos fortes denatureza, que extraem os elementos normativos de uma constituio do enteou da subjetividade, a teoria discursiva de Habermas

    [...] procura obter um contedo normativo da prpria prtica deargumentao, da qual nos sentimos dependentes sempre que nosencontramos numa situao insegura no apenas como filsofos oucientistas, mas tambm quando, em nossa prtica comunicativa cotidiana,a quebra de rotinas nos obriga a parar um momento e refletir, a fim de

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    nos certificarmos reflexivamente acerca de expectativas justificadas.(HABERMAS, 2007, p. 96).

    No contexto do pluralismo, o reservatrio de elementos comunsencolheu o nico recurso dos cidados para resolver suas controvrsiase conflitos lanar mo do contedo normativo dos pressupostos daargumentao.

    Para Habermas, o ponto de partida de um princpio de justificaops-metafsico encontra-se naqueles pressupostos pragmticos inevitveisnos quais os participantes da argumentao tm de se apoiar implicitamente

    quando decidem participar de uma busca cooperativa da verdade, aqual assume a forma de uma disputa por melhores argumentos. Imperanessa busca a coero no-coercitiva do melhor argumento. O que valecomo melhor argumento depende do fato de a aceitabilidade racional deafirmaes questionveis estar fundada, em ltima instncia, na ligao entrebons argumentos e idealizaes (contrafticas) da situao cognitiva queos participantes tm de assumir, na condio de participantes de discursosprticos racionais. Os pressupostos pragmticos inevitveis mais importantesso: inclusividade, distribuio simtrica das liberdades comunicativas;condio de franqueza, ausncia de constrangimentos externos ou internos daestrutura da argumentao (HABERMAS, 2007, p. 97).

    O importante, para Habermas, que no se pode extrair desse contedonormativo dos pressupostos da argumentao regras morais deontolgicasdo tipo dever de tratar a todos como iguais ou o dever da franqueza. Ospressupostos da argumentao possuem um sentido performtico, [...] so

    normativos num sentido transcendental (HABERMAS, 2007, p. 92), e nopodem ser confundidos com obrigaes morais, pelo fato de que no podemser transgredidos sistematicamente sem que o prprio jogo da argumentaoseja destrudo: so condies de possibilidade para a justificao de regrasmorais (entre outras). O contedo normativo do jogo da argumentaorepresenta um potencial de racionalidade o qual pode ser atualizado nouso pblico da razo, no exame crtico-reflexivo de diferentes pretenses devalidade, sem estabelecer diretamente normas de ao, [...] mas critrios para

    um processo de aprendizagem que se corrige a si mesmo (HABERMAS,2007, p. 99). A nica coero a obrigao de assumir o nus de julgar(burdens of judgment, na linguagem de Rawls). Esse potencial de racionalidadedesenvolve-se em diferentes direes, dependendo do tipo de pretenso de

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    validade que tematizada e do correspondente tipo de discurso. O princpiodo discurso, enquanto procedimento de teste intersubjetivo de fundamentaops-convencional de normas de ao em geral, ainda no especifica quais

    tipos de razes so convincentes e capazes de gerar acordos ou consensos. Talcomo o imperativo categrico de Kant, expressa apenas um procedimentode justificao imparcial de normas e valores, que possibilita aos prpriosindivduos resolver suas controvrsias, fazendo uso da razo prtica em todasua extenso: para fundamentar regras do agir instrumental que tm a vercom a escolha racional de meios e fins; orientaes valorativas e ticas que sereferem vida boa; normas e juzos morais sob a perspectiva da justia.

    Habermas elabora uma tipologia de conflitos que caracterizariam apoltica deliberativa, numa sociedade democrtica: conflitos de interesses e dequestes pragmticas; conflitos tico-culturais (as lutas por reconhecimento);questes de justia e morais. Trata-se de um modelo multidimensional deconflitos na esfera pblica democrtica, no qual o uso pblico da razo ficavinculado a trs dimenses da razo prtica: a dimenso da moralou dajustiauniversalista, orientada para a resoluo equitativa e imparcial de conflitosinterpessoais que tm de ser ajuizados sob o ponto de vista do que bom para

    todos, reivindicando uma aceitabilidade racional universal para suas normas;a dimenso tico-poltica, orientada para as avaliaes fortes sobre a vida digna,a interpretao de valores culturais e de identidades, e como tal reivindica aaceitao de valores ticos, a partir do ponto de vista do que bom para ns,membros de uma determinada comunidade poltica; e a dimensopragmticainstrumental, orientada para a satisfao instrumental e estratgica de certosfins e interesses, preocupada com a adequao de meios e fins atravs de regrasprticas, cuja validade dada por critrios de eficcia e de utilidade. Essas

    trs dimenses produzem diferentes tipos de acordo racional. Em Direitoe Democracia,Habermas associa Einverstndnis [acordo pelo entendimento]aos discursos e s convices racionalmente motivadas relativas a questes deverdade e de moral; Vereinbarung [acordo pelo ajuste das partes] s negociaese formao de compromissos em torno de interesses; e Konsens[acordo peloconsenso],usado para designar o acordo acerca da autocompreenso coletiva.O que diferencia os tipos de acordo so os tipos de razes vlidas: o primeirotipo de acordo exige que as partes aceitem o resultado a partir das mesmas

    razes, enquanto, no segundo caso, o resultado pode ser aceito pelas diferentespartes por razes diferentes. J o consenso exige a conciliao, concordncia[bereinstimmung] reflexiva entre as orientaes de valores das partes. O que

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    importa so as condies procedimentais de chegar a uma compreenso mtuasobre as pretenses de validade contestadas.

    Esse procedimento deliberativo no exclui de antemo o possvelpotencial de verdade de diferentes fundamentaes (religiosas ou seculares).

    A nica exigncia que as diferentes contribuies ou posies tm de sertraduzidas numa linguagem comum acessvel a todos, o que pode envolvercustos de traduo a todos os envolvidos.

    Para Habermas, isso o mximo que uma filosofia social crticapode oferecer para as democracias constitucionais marcadas pelo pluralismolegtimo: a reconstruo de um procedimento pelo qual os prprios indivduos

    podem chegar a uma avaliao imparcial das questes prticas fundamentais. Eesse procedimento formalizado por Habermas no princpio do discurso. Do

    ponto de vista cognitivo, o princpio do discurso coloca em evidncia o sentidodas exigncias de uma fundamentao ps-convencional e das condies deaceitabilidade racional, enquanto, do ponto de vista normativo, explicita osentido da imparcialidade dos juzos prticos. Nada vem antes da prtica deautodeterminao dos cidados, a no ser o princpio do discurso, o qual estinscrito nas condies de socializao comunicativa em geral e no prprio

    sistema de direitos fundamentais, constitutivo do Estado democrtico dedireito. O ponto de vista imparcial operacionalizado no princpio do discursoconstitui um procedimento de teste, o [...] procedimento aberto de umaprxis argumentativa que se encontra sob os pressupostos exigentes do usopblico da razo e que no exclui de sada o pluralismo das convices e visesde mundo (HABERMAS, 1998, p. 54).

    A segunda linha de argumentao sobre esfera pblica desenvolvida

    por Habermas est relacionada com aspectos essenciais de sua teoria crticada sociedade fundada na distino entre sistema e mundo da vida, elaboradade forma mais sistemtica em Teoria da Ao Comunicativa (1981). Comessa distino, como forma de sociabilidade e na sua funo poltica comoprincpio de legitimao poltica por meio do debate crtico racional, a esferapblica ganha contornos distintos nas sociedades contemporneas, com umaexpanso de sua infraestrutura social.

    Neste ponto, precisamos acompanhar o desdobramento do princpiodo discurso na forma de um princpio da democracia, institucionalizado noprprio sistema de direitos das democracias constitucionais. Trata-se de vercomo Habermas reconstri a institucionalizao jurdica (no vnculo interno

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    entre sistema de direitos fundamentais e soberania popular) do uso pblicoda razo, encarregado de introduzir o ponto de vista da imparcialidadenos processos de formao da opinio pblica e da vontade poltica. Sem

    essa exigncia de imparcialidade, no possvel pensar a legitimidade doexerccio do poder poltico, no qual os limites da tolerncia so definidos.O exerccio de um poder que no consegue justificar-se de modo imparcial ilegtimo porque, nesse caso, uma parte estaria impondo sua vontade aoutra. Cidados de uma comunidade democrtica devem apresentar, uns aosoutros, argumentos porque somente assim o poder poltico perde seu cartereminentemente repressivo (HABERMAS, 2007, p. 138). Num Estado dedireito democrtico que precisa permanecer neutro do ponto de vista das

    diferentes doutrinas abrangentes, s valem como legtimas [...] as decisespolticas que puderem ser justificadas luz de argumentos acessveis em geral(HABERMAS, 2007, p.138).

    De acordo com Habermas,

    [...] o principio da democracia destina-se a amarrar um procedimento denormatizao legtima do direito. Ele significa que somente podem pretendervalidade legtima as leis jurdicas capazes de encontrar o assentimento de

    todos os parceiros do direito num processo jurdico de normatizaodiscursiva. O princpio da democracia explica, noutros termos, o sentidoperformativo da prtica de autodeterminao de membros do direito que sereconhecem mutuamente como membros iguais e livres de uma associaoestabelecida livremente. (HABERMAS, 1997, I, p. 145).

    O princpio da democracia pressupe a possibilidade da deciso racionalde questes prticas em geral, mais precisamente, refere-se legitimao

    daquelas normas de ao que surgem sob a forma do direito. O princpio dademocracia enquanto tal no uma regra da argumentao, nada diz sobre se ecomo possvel abordar discursivamente questes prtico-morais: relaciona-ses condies abstratas de institucionalizao da formao racional da opinioe da vontade, atravs de um sistema de direitos que garante a cada um igualparticipao no processo de normatizao jurdica.

    Conforme a reconstruo de Habermas, o princpio da democracia e o

    sistema de direitos no esto numa relao de subordinao, mas se pressupemmutuamente. Existe uma cooriginariedade e uma interdependncia recprocaentre eles. O sistema de direitos aparece como o outro lado do princpio dademocracia e este somente pode aparecer como o cerne de um sistema de

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    lei universal carrega todo o peso da legitimao. E, diferentemente de Kant,a forma do direito exige, como direito positivo,

    [...] o papel de um legislador poltico pelo qual a legitimidade da legislao

    se explique mediante um procedimento democrtico que assegure aautonomia poltica dos cidados. Os cidados so politicamente autnomossomente quando podem entender-se a si mesmos conjuntamente comoautores daquelas leis a que se submetem como destinatrios. (HABERMAS,1998, p. 69).

    O que Habermas acredita que deve ser demonstrado o argumento de

    que um sistema de direitos pode ser desenvolvido somente quando a formajurdica adquirir expresso no procedimento da soberania popular, em cujoexerccio os cidados especificam o que pode ser considerado como uma leiuniversal.

    A forma do direito, portanto, no pode subsistir num estado de purezatranscendental: as liberdades subjetivas tm de ser configuradas e interpretadaspelos prprios cidados. Isso implica considerar o vnculo interno entreautonomia privada e pblica, direito e democracia.

    O princpio do discurso pode assumir atravs do medium do direito aforma de um princpio da democracia somente medida que o princpiodo discurso e o medium do direito se interliguem e desenvolvam numsistema de direitos que coloca a autonomia privada e pblica numarelao de pressuposio mtua. E vice-versa, qualquer exerccio daautonomia poltica significa ao mesmo tempo uma configuraoconcreta e interpretao destes direitos atravs de um legislador histrico.(HABERMAS, 1997, I, p. 165).

    Por um lado, no existe nenhum direito sem liberdades subjetivas deao que assegure a autonomia privada das pessoas de direito individuais.Por outro, no existe nenhum direito legtimo sem a legislao democrticacomum dos cidados livres e iguais. Um condio para o outro: o contedonormativo dos direitos de liberdade condio para a institucionalizao

    jurdica do uso pblico da razo dos cidados. Porm, ao mesmo tempo, s

    existem quando configurados e interpretados na prpria razo pblica.4

    4Nada vem antes da prtica de autodeterminao dos cidados, a no ser, de um lado, o princpio dodiscurso, que est inserido nas condies de socializao comunicativa em geral, e, de outro, o mediumdo direito. Temos de lanar mo do medium do direito caso queiramos implementar no processo

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    Dessa ligao interna entre autonomia privada e pblica segue-se queas questes de justificao da normatividade no podem ser respondidasapenas pelo princpio da soberania popular ou apenas se recorrendo ao

    imprio das leis garantidas pelos direitos individuais bsicos. Tal comoRawls, Habermas parte do fato de que a filosofia poltica no logrou dirimirde forma satisfatria a tenso entre soberania popular e direitos humanos, ouliberdade dos antigos e liberdade dos modernos. Para Habermas, essa tensopode ser apaziguada quando se considera o procedimento democrtico delegitimao poltica a partir do princpio do discurso. Sob as condies dopluralismo cultural, o processo democrtico que confere fora legitimadoraao processo de criao do direito.

    A almejada coeso interna entre direitos humanos e soberania popularconsiste assim em que a exigncia de institucionalizao de uma prticacidad do uso pblico das liberdades comunicativas seja cumprida

    justamente por meio dos direitos humanos. Direitos humanos quepossibilitamo exerccio da soberania popular no se podem impingir defora, como uma restrio. (HABERMAS, 2002, p. 292).

    Isso significa interpretar de outra maneira o sistema de direitosfundamentais.5 Por um lado, o sistema de direitos no pode ser reduzido auma interpretao moral, como querem os liberais6. Por outro, no pode ser

    de legislao - com o auxlio de iguais direitos de comunicao e de participao - o princpio dodiscurso como princpio da democracia. Entretanto, o estabelecimento do cdigo jurdico enquantotal j implica direitos de liberdade, que criam o statusde pessoas do direito, garantindo sua integridade.No entanto, esses direitos so condies necessrias que apenas possibilitam o exerccio da autonomiapoltica: como condies possibilitadoras, eles no podem circunscrever a soberania do legislador,

    mesmo que estejam sua disposio. Condies possibilitadoras no impem limitaes quilo queconstituem (HABERMAS, 1997, I, p. 165).5Habermas (1997, I, p. 159-160) apresenta cinco categorias de direitos: [...] direitos fundamentaisque resultam da configurao politicamente autnoma do direito a maior medida possvel de iguaisliberdades subjetivas de ao; direitos que resultam da configurao politicamente autnoma do statusde um membro numa associao voluntria de parceiros do direito; direitos fundamentais que resultamda possibilidade de acionar os direitos e da configurao politicamente autnoma da proteo judicialindividual; direitos fundamentais participao, em igualdade de oportunidades, em processos deformao da opinio e da vontade, nos quais os cidados exercitam sua autonomia poltica e atravsdos quais criam direito legtimo; direitos fundamentais a condies de vida garantidas social, tcnica

    e ecologicamente, na medida em que isso for necessrio para um aproveitamento, em igualdade deoportunidades, das quatro categorias de direitos anteriores.6A reivindicao de legitimidade das normas jurdicas apia-se sobre vrios tipos de razes. A prxislegislativa justificadora depende de uma rede ramificada de discursos e negociaes e no apenas dediscursos morais (HABERMAS, 2002, p. 289).

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    simplesmente a expresso da autocompreenso tica da soberania popular, comoreivindicam os republicanos e os comunitaristas. A autonomia privada doscidados no pode ser sobreposta e nem subordinada sua autonomia poltica.

    Na reconstruo do vnculo interno entre estado de direito edemocracia deliberativa, apresentada no nvel de socializao horizontal daautodeterminao dos cidados, o argumento de Habermas consiste emressaltar o sentido intersubjetivo dos direitos da cidadania democrtica: sorelaes que tm sua base nas estruturas de reconhecimento recproco, tm osmesmos pressupostos da racionalidade comunicativa. Os pressupostos quasi-transcendentaisdas experincias de reconhecimento recproco, vivenciadas no

    face a face da vida quotidiana e na forma reflexiva do discurso, esto incorporadosno prprio sistema moderno de direitos, que possibilita diferentes experinciasde respeito e reconhecimento recprocos entre indivduos estranhos entre si, eque querem permanecer estranhos.

    Contudo, vale destacar que essa reconstruo se d no nvel conceitual,mas no h garantia de que isso v necessariamente acontecer nas deliberaespblicas efetivas. Trata-se de um pressuposto que confere sentido ao ideal deautodeterminao poltica dos cidados. No entanto,

    [...] compete aos destinatrios decidir se eles, enquanto autores, voempregar sua vontade livre, se vo passar por uma mudana de perspectivasque os faa sair do crculo dos prprios interesses e passar ao entendimentosobre normas capazes de receber o assentimento geral, se vo ou no fazerum uso pblico de sua liberdade comunicativa, [ou seja], as instituies

    jurdicas da liberdade decompem-se quando inexistem iniciativas deuma populao acostumada liberdade. Sua espontaneidade no pode serforada atravs do direito; ele se regenera atravs das tradies libertriase se mantm nas condies associacionais de uma cultura poltica liberal.(HABERMAS, 1997, I, p. 167-168).

    A cultura poltica liberal de um mundo da vida racionalizado umadas condies essenciais realidade efetiva da prtica de justificao e doideal normativo da democracia. Assim como o conceito de mundo da vida complementar ao de ao comunicativa, pode-se afirmar que a noo de cultura

    poltica comum complementar ao conceito de discurso prtico, como formade apaziguar o risco do dissenso e assegurar alguma estabilidade da tenso entrefacticidade e validade. Evidentemente, os discursos prticos contam tambmcom sua institucionalizao no sistema de direitos. Todavia, Habermas no

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    desconsidera o enraizamento do universalismo liberal-igualitrio do sistemade direitos na cultura poltica comum, que tem um apelo mais forte aoscoraes e mentes das pessoas. O uso pblico da razo (e sua traduo numa

    poltica deliberativa) passa tanto pela institucionalizao dos procedimentosdiscursivos e a garantia do universalismo do sistema de direitos fundamentais,quanto pelo enraizamento na autocompreenso tico-poltica dos cidadosmembros de uma comunidade poltica, o que torna inevitvel a impregnaoticade qualquer comunidade jurdica e de qualquer processo democrticode concretizao dos direitos fundamentais. Isso implica, por sua vez, quenas democracias constitucionais modernas existe uma tenso insupervelna definio dos limites da tolerncia: entre o universalismo (abstrato) dos

    direitos fundamentais (institucionalizados) de uma comunidade poltico-jurdica de cidados livres e iguais, e o particularismo dos cidados que sesentem membros de uma comunidade poltica concreta que compartilhavalores, linguagem, tradies e narrativas comuns.

    Na formulao de sua concepo de democracia radical e na suaperseverana no projeto do socialismo concebido no como uma forma devida real, mas como expresso-sntese das condies necessrias para formas

    de vida emancipadas, sobre as quais os cidados tm de se compreender porsi prprios Habermas reconstri o uso pblico da razo a partir das formasde comunicao e espaos de sociabilidade de uma sociedade civil que advmde esferas privadas mantidas intactas, nos fluxos comunicativos de uma esferapblica vitalizada e assentada numa cultura poltica liberal. Nesse sentido,critica a ideia republicana de uma democracia radical que, entre outras coisas,desconsidera o carter sistmico e a dinmica prpria das relaes de poder econflito, numa sociedade democrtica.

    Segundo Habermas, a poltica democrtica deve ser analisada no scom instrumentos da teoria da ao, mas tambm com os instrumentos dateoria dos sistemas. Nesse sentido, a poltica deliberativa e o uso pblico darazo como procedimento tm de ser examinados tanto pela perspectiva daformao da vontade e da opinio baseadas no debate crtico-racional quantopela perspectiva dos sistemas poltico-administrativos governado pelo mediumpoder e da economia de mercado. Surge a questo de como os cidados podeminfluenciar o sistema poltico, atravs de processos de formao da opinio eda vontade coletivas sem, ao mesmo tempo, prejudicar a dinmica prpriado sistema. Habermas desenvolveu dois modelos, que expressam diferentesrelaes entre sistema e mundo da vida.

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    Em Soberania Popular como Procedimento (1990)7, a poltica deliberativaaparece segundo um modelo do sitiamento: a fortificao poltica, o poderburocrtico das administraes pblicas, sitiada medida que os cidados,

    por intermdio de discursos pblicos, tentam influenciar, sem pretenses deconquista, os processos de julgamento e deciso. As liberdades comunicativasaprisionadas devem se efetivar por meio do uso pblico da razo. Todavia, ainfluncia das opinies concorrentes na esfera pblica e o poder comunicativoformado no horizonte da esfera pblica, conforme procedimentos democrticos,s podem se tornar efetivos se atuarem sem intenes de conquista sobre o poderadministrativo, programando-o e controlando-o.

    Em Direito e Democracia, a poltica deliberativa pensada no modelo deeclusas, no qual o sistema poltico constitudo a partir do Estado constitucionalconsiste em um centro (parlamento, tribunais, administrao) e uma periferia.Os influxos comunicativos vindos da periferia tm de transpor as eclusas dosprocedimentos democrticos e do Estado constitucional, para atingirem oscentros de tomada de deciso. Como so as matrias que precisam de umaregulamentao no podem ser definidas somente pelo legislador poltico, masrequerem, por parte da administrao e da justia, que eles mesmos legislem,

    essa atividade legislativa paralela e implcita necessita de outras formas departicipao, para ser legitimada. Nesse sentido, uma dose de formaodemocrtica da vontade tem de migrar para dentro da prpria administrao;o judicirio, por sua vez, que implementa o direito, tem de se justificar diantede foros ampliados de crtica jurdica.

    Em ambas as formulaes, a esfera pblica o campo de mediaotensa e conflitante entre os imperativos sistmicos do Estado e da Economiae as demandas do mundo da vida. A esfera pblica no pode ser concebidacomo uma instituio, nem como um sistema ou uma organizao: ela secaracteriza por um fluxo comunicacional de horizontes abertos, permeveise deslocveis, adequada para a comunicao de contedos, tomadas deposio e opinies; nela os fluxos comunicacionais so filtrados e sintetizados,a ponto de se condensarem em opinies pblicas enfeixadas em temasespecficos. Ela constitui principalmente uma estrutura comunicacional doagir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espao social geradono agir comunicativo. A infraestrutura social da esfera pblica consiste emum leque abrangente de associaes formadoras de opinio, especializadasem temas e contribuies, que vo desde associaes que representam grupos

    7Texto publicado em HABERMAS,1997.

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    de interesses claramente definidos, sindicatos, instituies culturais, gruposcom preocupaes especficas, como proteo ao meio ambiente, proteo dosanimais, teste de produtos, etc., igrejas e instituies de caridade.

    A esfera pblica poltica descrita por Habermas como uma caixa deressonncia para problemas que devem ser trabalhados pelo sistema poltico,por que de outro modo no poderiam ser resolvidos. Nesse sentido, a esferapblica um sistema de alarme com sensores no especializados, porm sensveisno mbito de toda sociedade. Mas, do ponto de vista da teoria democrtica, aesfera pblica deve reforar a presso dos problemas, isto , no apenas percebere identificar os problemas, mas tambm tematiz-los de modo convincente

    e de modo eficaz, dota-los de contribuies e dramatiza-los de tal modoque sejam assumidos e trabalhados pelo complexo parlamentar. funo desinalizao deve ser acrescentada uma problematizao eficiente. Alm disso,a capacidade limitada de tratar os problemas deve ser compensada por umcontrole posterior do tratamento dado aos problemas no interior do sistemapoltico. A esfera pblica tem o papel de fazer com que complexo formadopelo sistema poltico institucional, a administrao pblica e o judicirio seconstituam como contextos de justificao que estejam ligados aos contextos

    de descoberta. A esfera pblica s conseguir desempenhar este papel se estiverenraizada no mundo da vida, ela tem de perceber e tematizar os problemas dasociedade como um todo e, portanto, tem de ser formada a partir dos contextoscomunicacionais daqueles potencialmente atingidos. Ela carregada por umpblico recrutado da totalidade dos cidados. Na multiplicidade das vozes destepblico ecoam as experincias de histrias de vida provocadas pelos sistemas deao funcionalizados: economia e Estado. Habermas argumenta que os canaisde comunicao da esfera pblica esto ancorados nos domnios da vida privada

    nas interaes densas da famlia e do crculo de amigos e nos contatos maissoltos com vizinhos, colegas de trabalho, conhecidos, e assim por diante, demodo que as estruturas espaciais das interaes simples podem se ampliadase abstradas, mas no destrudas. Assim, a prtica cotidiana do entendimentomtuo continua valendo tambm para a comunicao entre estranhos, que levada a cabo em esferas pblica ramificadas de modo complexo. A esferapblica retira seu impulso a partir da elaborao privada de situaes sociaisproblemticas que repercutem nas biografias particulares.

    A esfera pblica tem um ncleo organizatrio: a sociedade civil. Soaquelas associaes no estatais e no-econmicas de base voluntria queancoram as estruturas comunicativas da esfera pblica nos componentes sociais

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    do mundo da vida. A sociedade civil formada por associaes, organizaese movimentos que emergem de maneira mais ou menos espontnea e queabsorvem e condensam a ressonncia que as situaes-problemas da sociedade

    encontram nos campos vitais, transportando-as de forma amplificada para aesfera pblica. Contudo, ela preserva sua ambiguidade estrutural: um espaodo exerccio pleno da cidadania democrtica, mas tambm um espao demanipulao e afirmao dos imperativos dinheiro e poder. Cabe ao tericocrtico da sociedade manter-se sensvel dinmica contraditria do real,elaborando diagnsticos de pocas que apontem tanto para os potenciaisemancipatrios quanto para as patologias de uma razo com pretensesuniversais, reconstrudas no em espaos sociais e horizontes de expectativas

    historicamente situados.

    WERLE, Denilson Luis. Reason and Democracy. Public use of reason and deliberativepolitics in Habermas. Trans/Form/Ao, Marlia, v. 36, p. 149-176, 2013. Edio Especial.

    ABSTRACT:e objective of this article is to examine how Habermas, guided by a normative intuitionof the public use of reason, reconstructs a procedural conception of deliberative democracy which,without disregarding the strategic and instrumental dimensions of the public sphere and of politics,reconstructs the epistemic dimension of democracy: the rational acceptability of political agreements.First, I briefly present a historical and sociological analysis of the concept of the public sphere ine Structural Transformation of the Public Sphere(1962). I then present two lines of argumentationregarding the concept of the public sphere and deliberative democracy in Between Facts and Norms(1992): one refers to the principle of justification based on public reason as an intersubjective andpolitical reconstruction of the Kantian concept of autonomy; the other refers to the essential aspects

    of the critical theory of society based on the distinction between lifeworld and system, and on thesociological and institutional translation of the public use of reason in the concepts of civil societyand public sphere.

    KEYWORDS: Public use of reason. Public sphere. Deliberative politics. Habermas.

    REFERNCIAS

    COHEN, Jean; ARATO, Andrew. Civil society and political theory. Cambridge/Mass.: MIT

    Press, 1992.HABERMAS, Jrgen. Strukturwandel der Oeffentlichkeit. Neuwied,Darmstadt: HermanLuchterhand Verlag, 1962.

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    HABERMAS, Jrgen. Direito e Democracia. Entre Facticidade e Validade. (v. I e II) Trad.Flvio Sibeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

    HABERMAS, Jrgen; RAWLS, John. Debate Sobre el Liberalismo Poltico. Barcelona:

    Paids, 1968.HABERMAS, Jrgen. A Incluso do Outro. Estudos de teoria poltica. Traduo: GeorgeSperber e Paulo Astor Soethe. So Paulo: Loyola, 2002.

    HABERMAS, Jrgen. Entre Naturalismo e Religio. Estudos filosficos. Trad. FlvioSiebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.

    KERSTING, Wolfgang. Gerechtigkeit und ffentliche Vernunft. ber John Rawls politischenLiberalismus. Paderborn: Mentis, 2006.