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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
Rafael Rocha Paiva Cruz
Educao em direitos humanos: caminhos para a efetivao da democracia
e dos direitos humanos e o papel da Defensoria Pblica
MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL
SO PAULO
2014
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Rafael Rocha Paiva Cruz
Educao em direitos humanos: caminhos para a efetivao da democracia e dos direitos
humanos e o papel da Defensoria Pblica
MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL
Dissertao apresentada Banca Examinadora
da Pontifcia Universidade Catlica de So
Paulo, como exigncia parcial para obteno
do ttulo de Mestre em Direito Constitucional,
sob a orientao do Prof. Dr. Roberto Baptista
Dias da Silva.
SO PAULO
2014
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Banca Examinadora
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Aos meus pais, minha av Yolanda e minha irm,
pelo carinho e por sempre estarem ao meu lado.
minha esposa Jackeline,
pelo amor que me faz viver.
Aos Defensores Populares,
pela inspirao e motivao.
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Agradecimentos
Aos meus pais, pelo imenso e incondicional apoio aos estudos desde a infncia.
minha av Yolanda, pelo carinho constante.
minha irm, pela ajuda sempre disponvel e pelo companheirismo.
minha esposa Jackeline, pela grande compreenso ao longo desta difcil empreitada e pelo
amor que me d energia.
Ao Professor Roberto Dias, pelo aprendizado e oportunidade que me proporcionou e pela
confiana.
s Professoras Silvia Pimentel e Flvia Piovesan, pelas gentis contribuies que forneceram a
este trabalho por ocasio da qualificao.
Aos amigos Gustavo Reis, Renata Anto, Sabrina Durigon, Delana Corazza, Ana Arantes,
Jnio Marinho, Erik Arnesen e demais participantes do Curso de Defensores Populares, pela
amizade e pelas contribuies que forneceram s pesquisas.
Aos amigos e colegas de Defensoria Marcos Nascimento, Andrew Toshio, Wagner Giron,
Patrcia Biagini, Bruno Miragaia, Diego Vale e Luciana Zaffalon, pelas contribuies
fornecidas.
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Escola da Defensoria Pblica do Estado de So Paulo e seus funcionrios, pelo estmulo e
viabilizao deste estudo.
Professora, amiga e colega de Defensoria Mnica de Melo, pelo auxlio sempre disponvel.
Amelinha Telles, pela inspirao decorrente da luta pela educao em direitos humanos
relacionada aos direitos das mulheres e pelas contribuies fornecidas.
Aos amigos e colegas de Defensoria Ricardo Zago, Flvio Frias e Renata Klimke, pelo apoio
incondicional.
Aos amigos e colegas de mestrado, especialmente a Luiz Panelli, Aline Freitas e Lcio Telles,
pelo estmulo e colaborao.
s vrias outras pessoas que colaboraram para este projeto.
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RESUMO
CRUZ, Rafael Rocha Paiva. Educao em direitos humanos: caminhos para efetivao da
democracia e dos direitos humanos e o papel da Defensoria Pblica. 2014. p. Dissertao
(Mestrado) Faculdade de Direito, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2014.
Esta dissertao objetiva estudar a educao em direitos humanos e suas relaes com a
efetivao dos direitos humanos e da democracia, com ateno especial aos processos de
discriminao e excluso, bem como analisar o papel da Defensoria Pblica nessa seara.
Justifica-se o estudo pela atualidade e importncia do tema nos cenrios nacional e
internacional e pela relao com os fundamentos e objetivos constitucionais. A hiptese de
que a educao em direitos humanos pode fornecer relevantes contribuies para a efetivao
da democracia e dos direitos humanos, inclusive nas questes que envolvem discriminao e
excluso, e que a Defensoria Pblica tem importante atuao nesse sentido. Para tanto,
inicialmente, a partir de um estudo histrico-crtico, analisam-se os sentidos e as principais
questes da educao, dos direitos humanos e da democracia que se relacionam com o tema.
Aps, verificam-se os diversos aspectos da educao em direitos humanos e a normativa
aplicvel existente no mbito internacional e nacional. Ao final, mostram-se as importantes
capacidades da educao em direitos humanos contribuir para a efetivao dos direitos
humanos e da democracia, especialmente em favor das pessoas e grupos discriminados e
excludos, bem como o relevante papel da Defensoria Pblica nessa seara, confirmando-se a
tese.
PALAVRAS-CHAVE
Educao em direitos humanos; efetivao da democracia e dos direitos humanos; papel da
Defensoria Pblica.
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ABSTRACT
CRUZ, Rafael Rocha Paiva. Educao em direitos humanos: caminhos para efetivao da
democracia e dos direitos humanos e o papel da Defensoria Pblica. 2014. p. Dissertao
(Mestrado) Faculdade de Direito, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2014.
The purpose of this thesis is to analyze human rights education and its relationships with the
realization of human rights and democracy, with emphasis on processes of discrimination and
exclusion, as well as the role of Legal Services in the aforementioned field. This analysis is
justified by the currency and importance of the subject in both national and international
settings, and its relationship with constitutional principles and objectives. The hypothesis is
that human rights education can contribute significantly to the realization of democracy and
human rights, including in cases involving discrimination and exclusion, and that Legal
Services have an important role therein. First, the meanings and main issues pertaining to
education, human rights and democracy are analyzed in association with the subject are
analyzed in a historical-critical study. Then, the several aspects of human rights education and
applicable national and international regulations are examined. Finally, this work
demonstrates the significant capabilities of human rights education to contribute to human
rights and democracy realization, particularly in favor of discriminated and excluded
individuals and groups, as well as the relevant role of Legal Services in this field, thus
confirming the thesis.
KEYWORDS
Human rights education; democracy and human rights realization; role of Legal Services.
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SUMRIO
INTRODUO 1
1. EDUCAO, DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA 3
1.1. Educao 3
1.1.1. Evoluo histrica 3
1.1.2. Sentidos da educao para a educao em direitos humanos 27
1.2. Direitos humanos 40
1.2.1. Evoluo histrica 40
1.2.2. Sentidos dos direitos humanos para a educao em direitos humanos 48
1.3. Democracia 55
1.3.1. Evoluo histrica 55
1.3.2. Sentidos da democracia para a educao em direitos humanos 64
2. EDUCAO, DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA NO ESTADO
DEMOCRTICO DE DIREITO BRASILEIRO 71
2.1. Estado Democrtico de Direito e a Constituio de 1988 71
2.2. Relao entre democracia e direitos humanos 75
2.3. Educao como direito fundamental 83
2.4. Educao na Constituio Brasileira de 1988 90
3. ASPECTOS GERAIS DA EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS 96
3.1. Histrico 96
3.2. Natureza jurdica 99
3.3. Conceitos 101
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3.4. Contedos 104
3.5. Finalidades 108
3.6. Pedagogias 111
3.7. Sujeitos 118
4. NORMATIVAS DA EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS 120
4.1. Normativa na Organizao das Naes Unidas 120
4.1.1. A normativa antecedente ao Programa Mundial para educao em direitos
humanos 120
4.1.2. O Programa Mundial para educao em direitos humanos 121
4.1.2.1. A primeira etapa do plano de ao 122
4.1.2.2. A segunda etapa do plano de ao 126
4.1.2.3. A terceira etapa do plano de ao 127
4.1.3. A Declarao das Naes Unidas sobre a educao e formao em direitos
humanos 130
4.2. Normativa na Organizao dos Estados Americanos 133
4.2.1. A normativa geral sobre educao em direitos humanos 133
4.2.2. Os programas especficos de educao em direitos humanos 141
4.2.2.1. O Programa Interamericano sobre Educao em Valores e Prticas
Democrticas 141
4.2.2.2. A proposta curricular e metodolgica para incorporao da educao em
direitos humanos na educao formal de meninos e meninas entre 10 e 14 anos 143
4.2.2.3. O Pacto Interamericano pela Educao em Direitos Humanos 144
4.2.2.4. O Marco estratgico 2011-2014: a educao como chave do futuro
democrtico 146
4.3. Normativa no Brasil 150
4.3.1. O Programa Nacional de Educao em Direitos Humanos e o Plano Nacional de
Educao em Direitos Humanos 150
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4.3.2. As demais medidas de implementao da educao em direitos humanos e do
Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos 155
5. EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS, DEMOCRACIA, DIREITOS HUMANOS
E DEFENSORIA PBLICA 161
5.1. Educao em direitos humanos e democracia 161
5.2. Educao em direitos humanos e direitos humanos 172
5.3. Educao em direitos humanos e o papel da Defensoria Pblica 181
6. CONCLUSES 200
BIBLIOGRAFIA 203
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1
INTRODUO
A Constituio Federal de 1988 inaugurou um Estado Democrtico de Direito,
fundado na dignidade da pessoa humana e na cidadania, que garantiu os direitos humanos
como clusulas ptreas, abriu espao para a absoro dos tratados internacionais de proteo
aos direitos humanos e se comprometeu com a transformao social para a construo de uma
sociedade livre, justa e solidria, para a erradicao da pobreza e marginalizao, para a
reduo das desigualdades sociais e regionais e para a promoo do bem de todos, sem
preconceitos ou discriminaes.
No obstante a nova Constituio, a efetiva ratificao de diversos tratados de
proteo aos direitos humanos, o reconhecimento da jurisdio da Corte Interamericana de
Direitos Humanos e do Estatuto do Tribunal Penal Internacional e os novos mecanismos de
participao e controle social das polticas pblicas de defesa e promoo dos direitos
humanos, a realidade nacional continua repleta de violaes aos direitos humanos e de
desigualdades e excluses de diversas naturezas.
Nesse ambiente conflitivo, a educao em direitos humanos cada vez mais vem
ganhando espao nos cenrios nacional e internacional, sobretudo com a progressiva
ampliao das prticas e a incorporao por instrumentos normativos, o que tem aumentado a
conscincia social da injustia, sobretudo pelos grupos sociais mais vulnerveis e excludos, e
formado uma conjuntura desafiadora, como observa Santos:
Noutra dimenso, este tambm um mundo em que progressivamente os cidados,
especialmente as classes populares tm conscincia de que as desigualdades no so
um dado adquirido, traduzem-se em injustias e, consequentemente, na violao dos
seus direitos. Longe de se limitarem a chorar na inrcia, as vtimas deste crescente
processo de diferenciao e excluso cada vez mais reclamam, individual e
coletivamente, serem ouvidas e organizarem-se para resistir. Esta conscincia de
direitos, por sua vez, uma conscincia complexa, por um lado compreende tanto o
direito igualdade quanto o direito diferena (tnica, cultural, de gnero, de
orientao sexual, entre outras); por outro lado, reivindica o reconhecimento no s de
direitos individuais, mas tambm de direitos coletivos (dos camponeses sem terra, dos
povos indgenas, dos afrodescendentes, das comunidades quilombolas etc.). essa
nova conscincia de direitos e a sua complexidade que torna o atual momento
sociojurdico to estimulante quanto exigente.1
Por sua importncia, a educao em direitos humanos tem interessado pesquisadores e
profissionais de diversas reas e representa verdadeiro exemplo de interdisciplinaridade,
1 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revoluo democrtica da justia. 3 ed. So Paulo: Cortez, 2011, p.
17-18.
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2
justamente por combinar duas questes que so consideradas fundamentais para o futuro
pacfico da humanidade: educao e direitos humanos.
Maia bem observa a relevncia do estudo da educao em direitos humanos:
Pensar as prticas pedaggicas, principalmente aquelas voltadas para o
desenvolvimento de uma cultura dos direitos humanos, impem-se como tarefa
cardeal aos trabalhadores intelectuais engajados com as angustiantes questes relativas
ao desrespeito integridade fsica, desigualdade social, e intolerncia em nosso pas.
Importante contribuir sensibilizao dos cidados, movimentos sociais, partidos, das
organizaes no governamentais etc. a se sentirem mais concernidos com as questes
relativas aos direitos humanos, em especial, se projetarmos sua influncia no mundo
jurdico. Os direitos humanos, por um lado, funcionam como elemento explicativo da
complexa questo acerca da dimenso e natureza da esfera de dignidade da pessoa
humana e, por outro, desempenha o papel incontornvel na justificao dos direitos
fundamentais.2
Nessa esteira, esta dissertao procura realizar um amplo estudo sobre a educao em
direitos humanos e suas potencialidades para efetivar a democracia e os direitos humanos,
sobretudo de grupos vulnerveis, discriminados e excludos, verificando-se o papel da
Defensoria Pblica nessa seara.
A dissertao desenvolve-se a partir de uma anlise histrico-crtica da educao, dos
direitos humanos e da democracia que permite verificar as discriminaes e excluses que
marcaram esses institutos e os sentidos emancipatrios que adquiriram na contemporaneidade
e que interessam para a educao em direitos humanos.
Verifica-se a conformao do Estado Democrtico de Direito na Constituio Federal
de 1988 e as relaes que nele se estabelecem entre direitos humanos e democracia, bem
como a posio destacada do direito fundamental educao nesse contexto.
Os diversos aspectos da educao em direitos humanos so analisados na sequncia,
juntamente com a extensa normativa existente no mbito da Organizao das Naes Unidas
(ONU), da Organizao dos Estados Americanos (OEA) e do Brasil.
Ao final, verificam-se as potencialidades da educao em direitos humanos funcionar
na efetivao da democracia e dos direitos humanos e a atuao da Defensoria Pblica nesse
contexto.
2 MAIA, Antonio Cavalcanti. Acerca dos direitos humanos e o dilogo intercultural. In: BITTAR, C.B. (coord.).
Educao e metodologia para os direitos humanos. So Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 103.
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3
1. EDUCAO, DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA
1.1. Educao
1.1.1. Evoluo histrica3
A anlise do histrico da educao est sujeita a diversas dificuldades. Alm das
naturais questes metodolgicas do estudo da histria em geral, a histria da educao possui
dificuldades adicionais decorrentes da escassez de trabalhos por conta do recente interesse
(sculo XIX) pela sistematizao especfica do tema, o que tardou ainda mais para acontecer
no Brasil. 4
As comunidades tribais, embora no possussem escolas (tambm no possuam
Estado, classes, escrita, histria ou comrcio), valiam-se da educao difusa para transmitir
seus mitos, ritos, tradies e atividades dirias, o que costumava ser feito sem castigos, ainda
que houvessem ritos de passagem que envolvessem tortura e sofrimento. A educao era
transmitida oralmente, por meio da imitao dos adultos, no havendo pessoa especfica
responsvel pela educao. Mesmo sem escolas, a educao era integral, abrangendo todo o
conhecimento, e universal, pois se destinava a todos da comunidade.5
Com o tempo, as sociedades se tornam mais complexas. Surgem as cidades, a escrita,
os excedentes de produo e alteraes sociais modificam a homogeneidade (ausncia de
relaes de dominao) das comunidades tribais. Nascem o Estado, as classes sociais (que
hierarquizam pela riqueza e poder) e as formas de servido e escravido. Inicia-se a excluso
social das mulheres da vida pblica e elas passam a ser confinadas ao lar e dependentes dos
homens.
nesse contexto, mais situado nas civilizaes da antiguidade oriental, que aparecem
as escolas, como ambiente destinado educao de alguns privilegiados.6 A educao, que
3 Neste item, a partir de um esforo interdisciplinar, procura-se realizar uma ampla anlise histrica da educao
que permita auxiliar na compreenso de todas as questes que envolvem a presente dissertao. 4 Cf. ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Histria da Educao e da Pedagogia: Geral e Brasil. 3 ed. rev. ampl.
So Paulo: Moderna, p.19-26. 5 Ibid., 34-36. 6 Com o tempo, enquanto nas tribos a organizao social era homognea, indivisa, foram criadas hierarquias
devido a privilgios de classes, e no trabalho apareceram formas de servido e escravismo; as terras de uso
-
4
antes era igualitria e difusa para toda tribo, sofre uma revoluo e passa a ter parte dela
restrita classe dominante, que frequenta as escolas.7
A Antiguidade Grega (perodo micnico at o helenstico) trouxe inmeras novidades
polticas, sociais e culturais que influenciaram decisivamente o desenvolvimento da
humanidade, inclusive no campo do conhecimento e da educao, que viu o surgimento das
primeiras teorias educacionais.
Aranha explica que, no perodo arcaico, com o ressurgimento da escrita, a inveno da
moeda e da filosofia, a utilizao das leis escritas pelos legisladores e a formao das cidades-
estados, inicia-se a lenta passagem da predominncia do mundo mtico para a reflexo mais
racionalizada e a discusso8, com o nascimento de uma nova viso de mundo e do indivduo,
o cidado da plis, que desenvolve sua autonomia com o uso da palavra na gora (praa
pblica)9.
Os gregos revolucionam o pensamento com a criao do conhecimento organizado,
sistemtico, racional e filosfico10. As repercusses dessa nova cultura e sociedade
comum passaram a ser administradas pelo Estado, instituio criada para legitimar o novo regime de
propriedade; a mulher, que na tribo desempenhava destacado papel social, ficou restrita ao lar, submetida a
rigoroso controle de fidelidade, a fim de garantir a herana apenas para os filhos legtimos.
Finalmente o saber, antes aberto a todos, tornou-se patrimnio e privilgio da classe dominante. Nesse momento
surgiu a necessidade da escola, para que apenas alguns iniciados tivessem acesso ao conhecimento. Se
analisarmos atentamente a histria da educao, veremos como a escola, ao elitizar o saber, tem desempenhado
um papel de excluso da maioria. (Ibid., p. 36). 7 Ibid., p. 45. 8 Ibid., p. 58-59. 9 A plis se constituiu com a autonomia da palavra. No mais a palavra mgica dos mitos, concedida pelos
deuses, mas a palavra humana do conflito, da argumentao. A expresso da individualidade engendrou a
poltica, libertando o indivduo dos desgnios divinos, para que ele prprio pudesse tecer seu destino na praa
pblica. A instaurao dessa ordem humana deu origem ao cidado da plis. (Ibid., p. 60). 10 Para DOREN, a descoberta revolucionria de como aprender de forma sistemtica, o que equivale a dizer a
inveno do conhecimento organizado. Antes de Tales, o conhecimento, cuja posse garantia o sucesso e
concedia a felicidade, por oposio misria, fora monopolizado pela classe dominante, isto , pelos reis e
sacerdotes. Tales e seus seguidores transformaram o conhecimento, que deixou de ser um mistrio e passou a
ser algo pblico. Quem soubesse ler poderia partilhar os seus benefcios. Quem entendesse os seus princpios
poderia contribuir para benefcio de todos, no apenas do seu.
(...)
Em resumo, de repente surgiu algo novo no mundo, uma coisa que os gregos chamaram episteme, e que
chamamos cincia. Conhecimento organizado. Conhecimento pblico, baseado em princpios que poderiam ser
revistos e testados, e questionados, periodicamente, por todos.
Houve consequncias enormes. Primeiro, espalhou-se a noo de que havia apenas uma verdade, e no muitas
verdades, sobre todas as coisas.
(...)
Em segundo lugar, surgiu a noo de uma relao fundamental entre aquele que conhecia e a coisa conhecida, o
elo, como poderia ser chamado, entre o mundo exterior e a mente interior.
(...)
Em terceiro lugar, implementou-se um novo conceito de educao. Os pais sempre tinham ensinado aos filhos as
regras de sua arte, e as mes ensinavam sua arte s filhas. O Estado exigia que todos os sditos jovens
aprendessem regras para a vida em sociedade. O castigo para quem no aprendia as regras era o exlio ou a
-
5
influenciaram a educao para a criao de uma concepo de educao integral, que
envolvesse corpo e esprito, baseada em um ideal de formao (paideia)11.
As escolas aparecem no final do perodo arcaico e se estabelecem no perodo clssico,
mas, como observa Aranha, mesmo que essa ampliao da oferta escolar representasse uma
democratizao da cultura, a educao ainda permanecia elitizada, atendendo
principalmente os jovens de famlias tradicionais da antiga nobreza ou pertencentes a famlias
de comerciantes enriquecidos12, sendo certo que a educao ateniense confinava as mulheres
ao gineceu, onde aprendiam afazeres domsticos.
No perodo helenstico, a despeito da decadncia das cidades-estados, a cultura
helnica prevaleceu. A paideia tornou-se enciclopdia (educao geral para formao da
pessoa culta, houve maior desenvolvimento do ensino secundrio com a retrica (alm das
demais disciplinas gramtica, retrica, aritmtica, msica, geometria e astronomia
formando as sete artes liberais) e as escolas filosficas se espalharam, perdurando at o
perodo de dominao romana.13
A filosofia de Scrates (469-399 a.C.) trouxe importantes consequncias para a
educao que se sentem at os dias atuais e que se relacionam com a educao em direitos
humanos, tanto que as ideias de Scrates foram consideradas subversivas e seus inimigos
conseguiram conden-lo morte.
Segundo Aranha, as principais consequncias da filosofia socrtica so: o
conhecimento tem por fim tornar possvel a vida moral; o processo para adquirir o saber
dialgico; nenhum conhecimento pode ser dado dogmaticamente, mas como condio para
desenvolver a capacidade de pensar; toda educao essencialmente ativa e, por ser
autoeducao, leva ao conhecimento de si mesmo; a anlise radical do contedo das
discusses, retirado do cotidiano, provoca o questionamento do modo de vida de cada um e,
em ltima instncia, da prpria cidade14.
morte. Mas no havia um tronco de conhecimento organizado que todos pudessem aprender, ou que todos os
jovens devessem aprender. De repente, surgiu outra coisa novam a que os gregos chamaram de paideia: um
currculo que todos (com as excees habituais: mulheres, escravos, estrangeiros etc.) deviam estudar para que
se tornassem bons homens, bem como bons cidados.
Finalmente, havia a noo da prpria cincia e de sua jovem rainha, a Matemtica. (DOREN, Charles Van.
Uma breve histria do conhecimento. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012, p. 80-81). 11 Op. cit., p. 61-62. 12 Ibid., p. 62 13 Ibid., P. 67. 14 ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Histria da Educao e da Pedagogia: Geral e Brasil. 3 ed. rev. ampl. So
Paulo: Moderna, p. 70.
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6
Outras consequncias importantes podem ser extradas da filosofia de Plato (248-347
a.C.). Para ele, o Estado deve ser responsvel pela educao e todos, tanto homens quanto
mulheres, devem estudar at os vinte anos de idade. Somente devem prosseguir nos estudos
os que tiverem maior aptido, conforme o mrito e no a riqueza, at formar uma aristocracia
de intelectuais responsvel pelo governo (sofocracia ao invs de democracia). 15 Trata-se de
ideia que se faz ainda muito presente, de que o cidado comum no tem condies de
conhecer sobre cincia poltica.16
Plato ainda valoriza a educao intelectual (estudo das cincias, com destaque para
matemtica e dialtica) como forma de elevao do mundo sensvel ao mundo das ideias.
Desenvolve a ideia de que aprender lembrar, o que significa que educar no levar o
conhecimento de fora para dentro, mas despertar no indivduo o que ele j sabe,
proporcionando ao corpo e alma a realizao do bem e da beleza que eles possuem e no
tiveram ocasio de manifestar17.
Grandes legados para a educao tambm foram deixados por Aristteles (384-332
a.C.). A partir da teoria do movimento e das causas, toda educao deve levar em conta o
fato de que o ser humano se encontra em constante devir. A educao tem como finalidade
ajud-lo a alcanar a plenitude e a realizao do seu ser, a atualizar as foras que tem em
potncia18. A nfase na ao da vontade, exercitada pela repetio, traz para a educao a
ideia de que a criana se educa repetindo os atos dos adultos19.
Ranieri explica que ...antes de meados do sculo V a.C., a educao dos cidados
gregos foi dominada pela vida social e poltica; e mesmo aps a introduo, pelos sofistas, de
prticas educacionais mais voltadas para o indivduo, a partir da segunda metade do sculo V
a.C., manteve-se o preparo para a vida coletiva. o que se nota em A repblica de Plato
(427-347 a.C.) e na Poltica de Aristteles (469-399 a.C.)20.
15 Ibid., p. 72. 16 Iscrates (436-338 a.C.), adepto da retrica, instrumento importante para a democracia grega, critica Plato,
considerando-o muito intelectualista e seus ensinamentos restritos demais a um pblico elitista. (Ibid., p. 73). 17 Ibid., p. 72. 18 Ibid., p. 75. 19 Ibid., p. 75. 20 RANIERI, Nina Beatriz Stocco. O Estado Democrtico de Direito e o sentido da exigncia de preparo da
pessoa para o exerccio da cidadania, pela via da educao, 2009. Tese (Live-Docncia em Direito) Universidade
de So Paulo, p. 211-212.
Apoiada nas lies de Monroe, Ranieri explica: A idia em torno da qual se desenvolveram as consideraes
educacionais de Plato em A repblica simples: cada indivduo, ao realizar o seu prprio bem, realiza o maior
bem possvel para a sociedade. Para realizar o seu prprio bem, cada um deve se dedicar a fazer aquilo que esteja
mais de acordo com suas aptides; nessa linha de postulao, a virtude cvica deriva do conhecimento. No por
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7
As teorias da educao desenvolvidas pelos filsofos clssicos, baseadas na concepo
de natureza humana racional, formaram uma tendncia essencialista da pedagogia que
provocou grandes influncias na cultura ocidental, especialmente a partir da Idade Moderna.21
No perodo helenstico, influenciados pela insegurana das guerras, pela conquista
macednica, pela perda da autonomia das cidades-estados, pela expanso do Imprio
Alexandrino e pelo contato com o pensamento oriental, nascem novas filosofias, como o
estoicismo22 e o epicurismo23, que trazem uma nova concepo de educao, menos focada na
educao fsica, na metafsica e na poltica e mais interessada nas questes ticas e subjetivas
de controle dos sentidos e paixes.24
Ranieri explica que, em meados do sculo III a.C., as estreitas relaes entre a
educao e a sociedade grega, assim como as obrigaes do cidado educado para com seus
concidados, incentivadas pelo Estado e realizadas pelas famlias, foram abandonadas25,
considerando que na medida em que o individualismo se exacerbou, o cidado se isolou e se
outras razes Plato preconiza idntica educao para homens e mulheres, independentemente de qualquer outro
fator. Em Aristteles, diversamente, a virtude cvica deriva do uso da razo. (Ibid., p. 212).
Ranieri complementa que: A paidia visou moldar, por via da aquisio do conhecimento ou da prtica do bem,
o cidado que melhor servisse plis, Mas bem poucos podiam desenvolver, intelectualmente, o conhecimento
ou o bem, razo pela qual as propostas de Plato e Aristteles apresentam um marcante vis aristocrtico, o que
no lhes retira o mrito da concepo dual da educao, como meio de favorecer o desenvolvimento integral da
personalidade humana e de habilitar o homem livre a fazer uso de sua liberdade, finalidades que se tornaram
universais e atemporais. Essa concepo ser retomada parcialmente na Renascena, e de forma mais completa
nos sculos XIX e XX, como faz, por exemplo, em outro contexto e outras circunstncias, o art. 205 da
Constituio Brasileira de 1988, ao proclamar as finalidades da educao. (Ibid., p.212). 21 ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Op. cit., p.77. 22 Segundo DOREN, Zeno (335-263 a.C.), o Estoico, fundou uma escola em Atenas na primeira metade do
sculo III a.C., conhecida por Stoa Poikile ou Colunata Pintada, e ensinava que a felicidade consistia na
conformao da vontade razo divina, que governava o universo. Um homem ser feliz se aceitar totalmente o
que , e se no desejar o que no pode ser. (DOREN, Charles Van. Op. cit., p. 95).
ARANHA explica que, para o filsofo, ao buscar a felicidade o ser humano deve fugir do prazer, que em ltima
anlise apenas proporciona dor e sofrimento. O exerccio da virtude consiste na autossuficincia, alcanada
quando o indivduo conseguir afastar-se dos bens materiais e dominar as paixes que trazem intranquilidade
alma. O domnio racional leva aceitao do destino e resignao, por isso o ideal do sbio a ataraxia
(impertutbabilidade), a apatia (ausncia de paixo) e a aponia (ausncia de dor). (Op. cit.., p. 76) 23 DOREN explica que Epicuro, grego, que viveu de 341 a 270 a.C., fundou num jardim em Atenas uma escola
informal de nome O Jardim, que aceitou mulheres e pelo menos um escravo. Nesta escola, ensinava que
felicidade era uma vida sem dor, preocupaes e ansiedade, uma ausncia de vida poltica, pois era difcil ser
feliz na vida pblica. Defendia uma vida simples no jardim. (Op. cit., p. 94-95)
ARANHA esclarece que, para Epicuro, o ideal do sbio atingir igualmente a ataraxia, embora diferentemente
dos esticos. Epicuro um hedonista (hedon, prazer) e, por isso, ao considerar a felicidade como busca do
prazer, no nega as afeces humanas, nem prope a insensibilidade. O indivduo deve evitar tudo o que se ope
felicidade (temor, dor, sofrimento) e aproximar-se de tudo o que a proporciona, como a satisfao das
necessidades fsicas e espirituais, entre as quais distingue especialmente a amizade. (Ibid., p. 76) 24 ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Op. cit., p. 75-76. 25RANIERI, Nina Beatriz Stocco. Op. cit., p. 212.
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distanciou da comunidade. Foi com esse novo carter que a paidia grega se espalhou pelo
Ocidente, aps a conquista romana26.
No perodo da realeza e incio da Repblica Romana, a educao heroico-patrcia era
destinada aos jovens aristocrticos patrcios (proprietrios rurais e guerreiros) com a
finalidade de perpetuar os valores da nobreza, sendo certo que a educao se dividia para as
meninas e meninos: as primeiras, aprendiam os servios domsticos; os segundos, eram
educados pelo pai, visitavam festas, acontecimentos importantes, ouviam histrias dos heris,
decoravam a Lei das Doze Tbuas, aprendiam a cultivar a terra, a ler, escrever, contar,
manejar armas, cavalgar e, a partir dos quinze anos, acompanhavam o pai no foro, praa onde
se fazia comrcio e se tratava de assuntos pblicos e privados, para aprender sobre civismo e,
com dezesseis anos, eram encaminhados para a funo militar ou poltica.27
As modificaes sociais decorrentes do enriquecimento de plebeus e do processo
expansionista trazem modificaes para a educao, que se torna mais cosmopolita. Os
romanos passam a incorporar os povos vencidos conferindo-lhes cidadania em troca de
impostos e tambm incorporam o grego como idioma, assim como vrios padres culturais
gregos, fundindo a cultura romana e a helenstica. A ideia de cultura universalizada
humanitas passa a ser desenvolvida, buscando aquilo que caracteriza o ser humano, em
todos os tempos e lugares28 e ultrapassa a formao do sbio, estendendo-se formao do
homem virtuoso, como ser moral, poltico e literrio29.
As escolas particulares do sculo IV a.C., que ensinavam crianas de 7 a 12 anos a ler,
escrever e contar, de cor e sob ameaas de castigo, so substitudas, no sculo III e II a. C.,
por influncia dos povos helnicos, por escolas dos gramticos, que seguiam a ideia de
enciclopdia (educao geral), trazendo o estudo da lngua grega, da literatura clssica grega e
de geografia, aritmtica, geometria e astronomia.30
Com o aprofundamento da retrica, surge um terceiro grau de educao escola do
retor (professor de retrica) no sculo I a.C., na qual os jovens da elite se preparavam para a
26 Ibid., p. 212. 27 ARANHA explica que a educao pouco se voltava para o preparo intelectual e mais para a formao moral,
baseada na vivncia cotidiana e na imitao de modelos representados no s pelo pai, mas tambm pelos
antepassados. (Op. cit., p. 89-90). 28 Ibid., p. 89. 29 Ibid., 89. 30 Ibid., p. 90.
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vida pblica, assembleias e tribunais.31 Ccero (106 a.C. a 43 a.C.), importante pensador
romano, contemporneo a este perodo32, assim como Lucrcio (95 a.C. a 52 ou 51 a.C.)33.
A partir da implantao do Imprio por Otvio (27 a.C. a 476 d.C.), a interveno do
Estado na educao foi se ampliando paulatinamente, desde a fiscalizao at a subveno,
controle e total responsabilidade. Medidas relativas aos professores foram adotadas, como
direito de cidadania, liberao dos impostos, pagamentos e nomeaes. O ensino superior foi
desenvolvido, com cursos de filosofia, retrica, medicina, matemtica, mecnica e direito e
diversas bibliotecas, escolas e museus foram criados.34
O ideal de humanitas se degenerou ao longo do tempo, restringindo-se ao estudo das
letras e descuidando-se das cincias35. Como ensina Aranha, os romanos adotaram uma
postura mais pragmtica, voltada para o cotidiano, para a ao poltica e no para a
contemplao e teorizao do mundo. Da o prevalecer da retrica sobre a filosofia.36 Para
DOREN, essa orientao mais prtica da educao romana foi importante para o sucesso
imperialista, transformando a educao de liberal para vocacional37.
31 Segundo ARANHA, Como se v, predominava a educao aristocrtica, no s por ser privilgio da elite,
mas por estar interessada nas atividades intelectuais, que excluam o trabalho manual e por isso eram
consideradas mais dignas. (Ibid., p. 90). 32 ARANHA explica que Ccero foi um dos maiores representantes da humanitas romana, pois defendia que a
educao integral do orador requer cultura geral, formao jurdica, aprendizagem da argumentao filosfica,
bem como o desenvolvimento de habilidades literrias e at teatrais, igualmente importantes para o exerccio da
persuaso. (Ibid., p. 93). 33 DOREN explica que Lucrcio combinava o estoicismo e o epicurismo, e desejava trazer a filosofia ao nvel
humano. Tinha noo de que muitas vezes a filosofia grega parecia muito espiritual e inacessvel aos romanos.
Ele queria que as pessoas comuns, tal como ele, segundo afirmava, compreendessem e apreciassem o
pensamento filosfico.
Nem mesmo este conceito era original. Scrates tambm fora aclamado como o pensador que trouxera a filosofia
para o mercado, onde as pessoas comuns poderiam discutir ideias. Mesmo assim, Scrates manteve-se sempre
uma figura relativamente austera, que exigia dos seguidores mais do que estes conseguiam lhe dar. Por mais que
gostemos de Scrates enquanto homem, nunca conseguiremos deixar de sentir que no somos capazes de viver
tal como ele disse que o deveramos fazer.
Mesmo tendo herdado a simplicidade divina de Scrates em sua interpretao do epicurismo e do estoicismo,
Lucrcio no cometeu o erro de humilhar seus seguidores e leitores. Em vez disso, tentou apresentar uma
imagem agradvel do universo, tal como Epicuro o concebera, cujas atraes convenceriam mais pessoas do que
qualquer argumento. (Op. cit., p. 95-96).
Nota-se que a preocupao de Lucrcio com a traduo da filosofia ao povo, s pessoas comuns, o que, segundo
DOREN, tambm j havia sido iniciado por Scrates, mas Lucrcio a desenvolve com mais humanidade. 34 Cf. ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Op. cit., p. 90-92. 35 Ibid., p. 89. 36 Ibid., p. 92. 37 DOREN explica que os romanos sabiam o que os gregos sabiam e mais algumas coisas que os fizeram
vencedores nas guerras contra eles. Sustenta que os gregos no eram muito prticos, e que, pelo contrrio, os
romanos eram sempre prticos. Essa caracterstica manifestava-se de muitas formas. Diluram as grandes
filosofias gregas, tornando-as muito mais agradveis para as massas. Reduziram a paideia, o nobre e complexo
sistema grego de educao, desenvolvido por Aristteles e outros, a um curso de Retrica e Oratria, pois saber
fazer discursos convincentes era a chave do sucesso nos negcios e na poltica. Em termos modernos, esta viso
teve como resultado a transformao da educao de liberal para vocacional. Os romanos tambm converteram o
conceito de fama imortal a honra mortal, sendo habitual venerar os imperadores como deuses vivos,
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Percebe-se, em sntese, que a educao romana solidificou a cultura helenstica no
mediterrneo, desvalorizou o trabalho manual (realizado pelos escravos) e continuou a
privilegiar a formao intelectual, destinada elite dominante, com tendncia essencialista
(educao tem a funo de realizar o que o homem deve ser).38
A Idade Mdia envolve um perodo muito longo (476 a 1453) que, embora tenha sido
em grande parte obscuro, tambm contou com momentos de produo cultural variada, de
difcil generalizao, por envolver elementos greco-romanos, germnicos, cristos, bizantinos,
islmicos e orientais.39
O Imprio Bizantino manteve intensa atividade cultural durante o perodo medieval e,
embora houvesse nfase na vida religiosa, a meta da educao continuava a mesma da
Antiguidade, ou seja, a formao humanista e a preparao de funcionrios capacitados para a
administrao do Estado.40
A civilizao islmica, produto da unificao de diversas tribos da Pennsula Arbica,
com base na religio fundada por Maom no sculo VII, avanou pelo Oriente Mdio, norte
da frica e Pennsula Ibrica e assimilou a cultura clssica e dos povos vencidos, tornando-se
muito rica. Diferentemente dos cristos, os islmicos no tinham restries quanto pesquisa
e experimentao, o que os fez ter destaque em reas da matemtica, medicina, geografia e
cartografia.41
J o Ocidente ingressou em perodo de obscuridade. Inicialmente, surgiram as escolas
monacais (nos mosteiros), onde se aprendia latim e humanidades, alm de filosofia e teologia.
Os mosteiros passaram a monopolizar a cincia, concentrar as obras, traduzi-las para o latim,
adapt-las e reinterpret-las de acordo com o cristianismo e multiplicar os textos clssicos por
meio dos monges copistas,42 controlando as leituras proibidas e as permitidas, colocando a
razo como instrumento da f (a filosofia era serva da teologia), por meio das filosofias crists
aprofundando ainda mais a distino entre a honra e a fama. Por fim, o triunfo de Augusto transformou a
gloriosa, mas em ltima anlise impraticvel, Repblica num Imprio totalitrio infeliz e perigoso, mas eficiente.
Subjacente a todas estas mudanas estava uma crena muito importante adotada pelos romanos, mas no pelos
gregos: uma ideia grandiosa que no funciona menos vlida do que uma mais modesta que funcione. Os
romanos edificaram sobre este princpio uma cidade-imprio que resistiu mil anos. (DOREN, Charles Van. Op.
cit., p. 90). 38 Cf. ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Op. cit., p. 94-95. 39 Ibid., p. 101. 40 Ibid., p. 104. Destaca-se a Universidade de Constantinopla, que, de 425 a 1453, desenvolveu importantes
estudos de filosofia e cincia e preservou a sistematizao do Direito Romano realizada pelo Imperador
Justiniano no sculo VI por meio do Corpus Juris Civilis. 41 Ibid., p. 105. Diversas escolas foram criadas no sculo X para ensinar leitura e escrita, alm do
desenvolvimento da educao moral pelo aprendizado do Alcoro de cor. 42 Ibid., p. 105-106.
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Patrstica (sculo II ao V, baseada principalmente nas ideias de Santo Agostinho) e
Escolstica (sculo IX ao XIV, fundada, principalmente, nas teorias de Toms de Aquino)43.
No final do sculo VIII e incio do sculo IX, inicia-se o renascimento carolngio.
Carlos Magno trouxe para a corte diversos intelectuais e surgiu a escola palatina, que
reestruturou e fundou escolas monacais, escolas catedrais e escolas paroquiais, as quais
tinham como contedo as sete artes liberais e que, na Idade Mdia, passaram a constituir o
trivium, que abarcava gramtica (inclua letras e literatura), retrica (inclua histria) e
dialtica, e o quadrivium, que abarcava geometria (podia incluir geografia), aritmtica,
astronomia e msica.44
Com as Cruzadas e a liberao das navegaes, reinicia-se o comrcio e as cidades
renascem, surgindo a nova classe da burguesia. A sociedade se divide nos polos da nobreza
(muitos tinham a educao voltada para a formao militar e cavalaria), do clero, e da
burguesia e esta ltima classe passa a fundar, no sculo XII, as escolas seculares, no-
religiosas, para atender s suas necessidades prticas, substituindo o trivium e o quadrivium
por histria, geografia e cincias naturais. Contudo, a partir do sculo XIII, uma diviso na
burguesia modifica a educao: os burgueses mais ricos, bancrios, aproximam-se da nobreza
e passam a se dedicar cultura desinteressada, enquanto os pequenos comerciantes e
artesos continuam a se dedicar educao profissional.45
As universidades, novo modelo de educao superior, surgem e crescem a partir do
sculo X, XI e XII, para ampliar os estudos de filosofia, teologia, leis e medicina, a fim de
atender s solicitaes de uma sociedade cada vez mais complexa46, e passam a se basear na
Escolstica, sobretudo nas ideias de Toms de Aquino, mas entram em decadncia no sculo
XIV, diante da resistncia da Inquisio e asfixiadas pelo dogmatismo decorrente da
ausncia de debate crtico47.
A diviso esttica de classes da Idade Mdia exclua os servos da gleba da educao
intelectual, destinando a eles apenas a formao crist, com exceo dos os servos libertos,
que, na cidade, podiam se dedicar educao profissional nas corporaes de ofcios.48
43 Ibid., p. 112-117. 44 Ibid., p. 106-107. 45 Ibid., p. 107-108. 46 Ibid., p. 110. 47 Ibid., p. 111. 48 Ibid., p. 108-112.
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Ademais, durante a Idade Mdia, as mulheres no tinham acesso educao formal49 e os
tericos que estimulavam a educao o faziam considerando a necessidade de formao para
os fins do casamento, maternidade e vida domstica.
Em sntese, a educao ocidental durante a Idade Mdia foi desenvolvida com o
objetivo de formao crist, baseada em ideais ascticos (distanciamento dos prazeres) e
tcnicas rigorosas e formais, as quais influenciaram durante sculos o trabalho escolar.50
Com o desenvolvimento da burguesia, nascimento das monarquias absolutistas
(associao entre a burguesia e os reis), ampliao das navegaes e novas descobertas
cientficas, surge o Renascimento (sculos XV e XVI), que retoma a cultura greco-romana e
prope o humanismo (antropocentrismo) em oposio teologia medieval, separando o saber
da religio, buscando os prazeres mundanos, a individualidade, a confiana na razo e o
esprito de liberdade e crtica.51
O interesse pela educao ganha destaque e os colgios se proliferam, especialmente
para receber os filhos da pequena nobreza e da burguesia, mantendo-se os segmentos
populares restritos aprendizagem de ofcios. Inicia-se a preocupao com a separao das
crianas segundo graus de aprendizagem e uma disciplina severa, com castigos corporais,
aplicada, tendo por meta a formao intelectual (trivium e quadrivium e latim) e tambm
moral.52
Aos poucos, escolas leigas passaram a surgir, mas, em contrapartida, tambm surgiram
escolas protestantes53 e catlicas que, em reao Reforma, se expandiram pelo mundo por
49 Ibid., p 111. As mulheres pobres tinham que trabalhar com o marido; as nobres aprendiam msica, religio,
rudimentos das artes liberais e trabalhos manuais femininos nos castelos; as burguesas apenas passaram a ter
acesso com as escolas seculares. Apenas as que estudavam nos mosteiros tinham maior acesso educao
intelectual (leitura, escrita, arte, latim, grego, filosofia e teologia). 50 Ibid., p. 117-118. 51 Ibid., p. 123-125. ARANHA ensina que, durante o Renascimento, no houve o desenvolvimento coerente e
organizado de uma filosofia da educao, com exceo Juan Luis Vives (1492-1540), humanista espanhol que
lecionou na Universidade de Oxford, que escreveu sobre a educao da mulher (embora reconhecesse sua
fundamental presena no lar), teve como principal obra Tratado de ensino e apresentou preocupaes com o
corpo e com a psicologia no ensino, com a valorizao dos mtodos indutivos e experimentais, com a observao
dos fatos e ao como forma de aprendizagem e com o estudo da lngua materna.
Tambm aponta que Erasmo de Rotterdam (1467-1536) criticava a educao excessivamente severa, os castigos
corporais e defendia o aprendizado com diverso, defesa que tambm era feita por Franois Rabelais (1494-
1553), o qual ainda criticava o ensino livresco, assim como Michel de Montaigne (1533-1592) (Ibid., p. 132-
134) 52 Ibid., p. 125-126. 53 Lutero (1483-1546) defendia a escola primria para todos (universal), como responsabilidade do Estado
(pblica), e criticava os castigos. Ibid., p. 126-127.
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meio de diversas ordens religiosas, entre elas a Companhia de Jesus, com o objetivo de
propagar a f e conquistar os jovens.54
Nos colgios jesutas, a educao era baseada na formao clssica e humanista, mas
adequada aos ideais cristos, com vis essencialista, disciplina rgida e didtica baseada em
repetio e memorizao, alm de estmulo e competio entre classes e alunos. Havia menor
nfase matemtica, histria e geografia, ao desenvolvimento do esprito crtico e as novas
descobertas cientficas (Descartes, Galileu, Kepler, Newton) eram desconsideradas, sendo
certo que o foco da catequese era transformar o no-cristo em cristo.55
Assim, o Renascimento foi marcado por contradies tpicas de um perodo de
transio, em que a burguesia buscava a formao para os negcios, para o conhecimento
clssico e para os luxos e prazeres, enquanto a escolas religiosas se expandiam pela Europa e
mundo colonizado. Essa sociedade, embora rejeitasse a autoridade dogmtica da cultura
eclesistica medieval, manteve-se ainda fortemente hierarquizada; exclua os propsitos
educacionais da grande massa popular, com exceo dos reformadores protestantes, que
agiam motivados tambm pela divulgao religiosa56.
No incio da colonizao brasileira (a partir do sculo XVI), que no pode ser
compreendida sem considerar o contexto europeu e de Portugal, a educao teve como
finalidade difundir a religio e manter a unidade da colnia, que servia para extrao de cana-
de-acar para exportao, com destaque para a atuao dos jesutas.57
Referindo-se atuao da catequese dos jesutas sobre os ndios, Aranha explica que
convictos de que o cristianismo representa uma vocao humana universal que implica
integrao e unidade, lanaram-se com empenho na incorporao territorial e espiritual dessas
etnias, na esperana de acentuar as semelhanas todos eram seres humanos e apagar as
diferenas58.
A educao no territrio nacional surge com a tentativa dos jesutas de europeizar e
cristianizar os nativos59, modificando os seus costumes e modo de vida, a partir do
54 Ibid., p. 126. 55 Ibid., 128-131. 56 Ibid., p. 135. 57 Ibid., p. 139. 58Ibid., p. 141 Nota-se que a educao partia de uma concepo de homogeinizao, de superioridade da cultura
europeia em relao indgena. Como alerta ARANHA, s na contemporaneidade os estudos de etnologia nos
alertaram para o respeito s diferenas que existem entre os povos e culturas. A partir desse conhecimento,
mudou a disposio para aceit-los sem consider-los inferiores: hoje em dia a educao deve atender s
demandas pluritnicas e manter-se multicultural. (Ibid., p. 131). 59 Ibid., p. 142.
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pressuposto de que os ndios viviam a infncia da humanidade60 e deveriam ser corrigidos
pelos europeus, inclusive com sanes pblicas violentas.
Embora as primeiras escolas reunissem filhos de ndios e colonos, logo houve uma
separao, pois a educao dos primeiros visava cristianizar e pacificar para o trabalho,
enquanto a dos segundos podia se ampliar para letras humanas, filosofia e cincia e teologia e
cincias sagradas61.
No sculo XVII, fortalecem-se os Estados Absolutistas, que controlam a economia
mercantilista, e fundamentados em teorias como a do contrato social de Thomas Hobbes
(1588-1679). O fortalecimento da burguesia gera a insurgncia contra o excessivo controle
estatal e a Revoluo Gloriosa (1688) instaura a Monarquia Constitucional na Inglaterra,
prevalecendo as ideias do liberalismo econmico e poltico de John Locke (1632-1704).62
Aranha observa que embora a teoria liberal se apresentasse como democrtica,
inevitvel encontrar na sua raiz o elitismo que a distingue como expresso dos interesses da
burguesia. Na vida em sociedade, somente aqueles que tm propriedades, no sentido restrito
de fortuna, podem participar de fato da poltica, por serem os que teriam reais condies de
exercer a cidadania. Essa mesma perspectiva elitista define a reflexo sobre a educao.63
No plano filosfico, Descartes, Bacon, Locke, Hume e Espinosa passam a se dedicar
ao estudo do mtodo e, no mbito cientfico, surge um novo paradigma com a valorizao da
tcnica e do mtodo experimental (Galileu 1594-1642), a partir do qual o homem no mais
busca o saber apenas pelo saber, mas para transformar e controlar a natureza.64
Iniciativas de educao elementar pblica para todos foram realizadas no sculo XVII
na Alemanha e na Frana, como forma de propagar a f religiosa. O progresso cientfico e a
decadncia das universidades (com exceo da Alemanha) tambm fez aumentar a procurar
pelas academias.65
A filosofia moderna racionalista (Descartes) e empirista (Bacon e Locke) fornece
bases para o nascimento da pedagogia realista, que busca novos mtodos para tornar a
educao mais agradvel e ao mesmo tempo mais eficaz na vida prtica66, privilegiando a
60 Ibid., p. 142. 61 Ibid., p. 142-143. 62 Ibid., p. 150-151. 63 Ibid., p..151. 64 Ibid., p. 151-152. 65 Ibid., p. 153-154. 66 Ibid., p. 155.
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experincia e os problemas da poca, a lngua materna ao invs do latim e as cincias da
natureza.67
Locke tambm apresenta uma teoria pedaggica (Pensamentos sobre educao) em
que prope o desenvolvimento fsico, moral e intelectual, para a formao do homem-gentil,
com nfase na formao do carter. Contudo, defende que a educao da elite que ir
governar deve ser realizada em casa, para que a criana seja bem acompanhada e vigiada, e
no na escola, onde estuda o povo em geral68, tendncia de educao dualista que se destaca
no sculo seguinte.69
Joo Ams Comnio (1592-1670), educador de importncia destacada no sculo XVII,
desenvolve sua teoria no sentido de obter uma forma rpida e segura de aprender. Defende a
importncia da ao no aprendizado e o ensino de conhecimentos universais (pansofia), que
propicie o desenvolvimento crtico, intelectual, moral e espiritual. Prope, ainda, a
democratizao do ensino, garantindo acesso a todos (homens e mulheres, ricos e pobres).70
Fnelon (1651-1715), bispo francs, preocupa-se com a educao feminina, embora
no visse como prioritria e no reconhecesse a mulher como ser autnomo. Recomenda uma
educao mais alegre para as mulheres, com instruo geral sobre gramtica, poesia, histria e
leitura de obras clssicas e religiosas, restringindo a continuidade dos estudos apenas para
uma minoria com destaque e reservando a educao religiosa e moral para a maioria, como
forma de enriquecer a vida domstica de mes e esposas. 71
De outro lado, no sculo XVII, enquanto na Europa se estabelecia a contradio entre
o ideal da pedagogia realista e a educao conservadora, no Brasil a atuao da Igreja
permaneceu muito mais forte e duradoura72, uniformizando o pensamento brasileiro, com o
desenvolvimento das misses entre os ndios, a educao conservadora para a elite, a excluso
das mulheres, negros e da cultura popular e a desqualificao dos trabalhos manuais.73
No sculo XVIII (Sculo das Luzes), a hegemonia da burguesia, confirmada nas
Independncia dos Estados Unidos (1776) e na Revoluo Francesa (1789), e as ideias
67 Ibid., p.155. 68 Ibid., p. 156-157. 69 Ibid., p.156. 70 Ibid., p.157. 71 Em 1686, a esposa de Lus XIV, Madame de Maintenon, funda o Colgio Saint-Cyr, opo secularizada para
meninas de 7 a 12 anos, que poderiam permanecer at os vinte, com rigorosa educao moral e negligente
educao intelectual. (Ibid., p. 158). Nota-se que, mesmo quando h preocupao com a educao das mulheres,
ela voltada para reforar a sua posio social como 72 Ibid., 166. 73 Ibid., 162-166.
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iluministas impactaram fortemente a educao, que passou a sofrer tendncias liberais e
laicas, com a busca de novos formas de aprendizagem e autonomia do educando, que,
segundo Aranha, sugerem algumas ideias: educao ao encargo do Estado; obrigatoriedade e
gratuidade do ensino elementar; nacionalismo, isto , recusa do universalismo jesustico;
nfase nas lnguas vernculas, em detrimento do latim; orientao prtica, voltada para as
cincias, tcnicas e ofcios, no mais privilegiando o estudo exclusivamente humanstico. 74
A despeito das novas ideias, a situao da educao na Europa era crtica, o que
dificultava a efetivao na prtica75. Ademais, o dualismo escolar, que acabava por gerar uma
escola para o povo e outra para a burguesia, continuava em vigor e era aceito com base na
ideia liberal de que o talento e a capacidade no eram igualmente repartidos entre todos.76
Nessa poca, merecem destaques as contribuies dos enciclopedistas, embora alguns
tivessem tendncias aristocrticas, do naturalismo de Rousseau (1712-1778) e da pedagogia
idealista de Kant (1724-1804).
Rousseau provocou uma revoluo na pedagogia ao centralizar os interesses
pedaggicos no aluno e no mais no professor, buscar a educao do indivduo para si e o
distanciamento das convenes e vcios sociais para alcanar os interesses naturais do
indivduo (educao negativa). Critica o intelectualismo, o ensino formal e livresco, o
autoritarismo e o adestramento (que se baseia na concepo de natureza humana m),
valorizando a razo sensitiva, o desenvolvimento livre e espontneo, com respeito existncia
concreta da criana (transio da pedagogia da essncia para a pedagogia da existncia) e o
ensino de dentro para fora, que ensina a criana a aprender a pensar, a lidar com os seus
prprios desejos e a conhecer os seus limites.77
Por seu turno, Kant relaciona sua filosofia com sua pedagogia, dando primordial
importncia educao, qual compete desenvolver a faculdade da razo e formar o carter
moral, garantindo que o sujeito tenha autonomia e autodeterminao. Une educao e
liberdade e, criticando a educao dogmtica, refora a atividade do aluno de aprender a
74 Ibid., 174. 75 A situao na Alemanha era um pouco diversa e o Estado passou a investir na educao, tornando obrigatrio
o ensino primrio, bem como criou escolas tcnicas e cientficas, em oposio ao ensino tradicional e exclusivo
das humanidades. (Ibid., p. 175). 76 Ibid., 174. 77 Ibid., p. 177-183. Rousseau recebe crticas que o acusam de propor uma educao elitista, por referir a
existncia de um preceptor para Emlio, no livro Emlio ou da educao (1762), e de defender uma educao
individualista, por separar o aluno da sociedade. Ademais, criticado por sustentar que a mulher deve ser
educada para servir o homem. (Ibid., p. 179-180).
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pensar por si mesmo, de modo que nenhum conhecimento vem de fora, transmitido ou
imposto, mas construdo pelo sujeito.78
Aranha observa que a Revoluo Francesa substituiu a viso aristocrtica para
desenvolver lentamente as conquistas da cidadania na construo das democracias atuais...e
que, embora inicialmente o liberalismo fosse muito elitista, por privilegiar os proprietrios e
excluir a grande massa, aos poucos foram introduzidos mecanismo de maior participao
popular, ainda que, devamos reconhecer, muitas vezes de maneira formal e nem sempre
efetiva79. Complementa destacando que a ambio dos pensadores do Iluminismo do sculo
XVIII foi a da emancipao humana, do sujeito com autonomia de pensar e agir, sustentada
pela garantia dos direitos conquistados.80
Ranieri explica que a importncia social e poltica da educao pblica gratuita como
preparo para a cidadania foi reconhecida por diversos lderes no sculo XVIII, entre eles
Frederico da Prssia, Maria Tereza da ustria, Kant, Nicolas de Condorcet81, Benjamin
Franklin, George Washington, Thomas Jefferson e destaca a doutrina de John Stuart Mill,
considerando a necessidade de educao pblica como necessria para o exerccio do voto.82
No Brasil, aps a expulso dos jesutas em 1759 e com o despotismo esclarecido
portugus, o Marqus de Pombal reformou o ensino, criando a educao leiga de
responsabilidade do Estado em 1772, que, de incio, no conseguiu substituir prontamente o
ensino dos jesutas, mantendo-se o panorama de analfabetismo, com ensino universal e
abstrato destinado a uma elite de homens filhos de colonos, em uma sociedade agrria em que
os escravos realizavam o trabalho manual.83
78 Ibid., 180-183. 79 Ibid., p. 240. 80 Ibid., p. 240. 81 Ranieri explica que Condorcet considerava, por um lado, que a instruo pblica faria do bem pblico a
preocupao de cada cidado e, de outro, que garantiria o saber contra a tirania. A excelncia seria, portanto, a
forma mais alta de igualdade. Alm disso, como cada criana era vista como um sujeito racional de direito, a
instruo pblica no deveria se sujeitar a vontades particulares ou utilidade imediata que pudesse propiciar,
mas assegurar a educao nacional. Como podemos notar, Condorcet estabelece o liame entre a instruo, a
adeso dos cidados aos direitos do homem e formao da vontade geral. (RANIERI, Nina Beatriz Stocco. O
Estado Democrtico de Direito e o sentido da exigncia de preparo da pessoa para o exerccio da cidadania, pela
via da educao, 2009. Tese (Live-Docncia em Direito) Universidade de So Paulo, p. 219-220). 82 Ibid., p. 218-219. 83. Segundo ARANHA, resultou da um ensino predominantemente clssico, por valorizar a literatura e a
retrica e desprezar as cincias e a atividade manual. (Ibid., p. 190-193).
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No sculo XIX84, com a urbanizao, o capitalismo industrial, os pensamentos
positivistas85, idealista86 e socialista87 e as modificaes sociais, os ideais de educao estatal,
laica, gratuita e obrigatria comeam a se concretizar na Europa e nos Estados Unidos. D-se
maior valorizao para a educao elementar e para o cuidado com o mtodo de ensino para
as crianas (psicologia infantil), bem como para a educao cvica e nacionalista. Alm disso,
nascem preocupaes em preparar a criana para a vida em sociedade e para a cidadania, com
destaque para a educao integral e politcnica.88
Embora tenha havido acesso educao aos pobres pelo Estado, de forma geral, ainda
havia dicotomia, com os ricos procurando escolas tradicionais religiosas e, no ensino
secundrio, com os ricos mantendo a formao clssica e os pobres a formao tcnica.89
Ranieri, apoiada nas lies de Monroe, assevera que, fazendo do preparo dos
indivduo para um ambiente de mudanas a maior sntese de seus desgnios, pode-se afirmar
que a educao pblica, desde os primrdios do sc. XIX, pelo menos, se voltou aos
princpios bsicos da vida comunitria, com exaltao do altrusmo e do patriotismo90, com a
finalidade de ...assegurar a estabilidade e o melhoramento da sociedade, especialmente em
face do progresso industrial, expressando uma forma de controle social e de elaborao da
mentalidade social que a equiparou teoria darwiniana da evoluo das espcies.91
ARANHA destaca como principais pedagogos do sculo XIX o suo-alemo
Pestalozzi (1746-1827), que defendia a escola popular extensiva a todos, reconhecia a funo
social do ensino e que a educao deveria contribuir para a formao completa do ser; e os
84 ARANHA observa que, no sculo XIX vivemos o tempo das rupturas, das luras revolucionrias para a
construo de uma sociedade mais justa e democrtica, incluindo-se a no s o anseio de liberdade, mas tambm
de igualdade. (Ibid., p. 240). 85 Destacam-se as Augusto Comte (1798-1857), Herbert Spencer (1820-1903) que privilegia o ensino das
cincias e de questes utilitrias, em oposio ao humanismo e John Stuart Mill (1806-1873). (Ibid., p. 206). 86 ARANHA destaca as ideias de Hegel (1770-1831), que concebe a educao como meio de espiritualizao
humana e valoriza o papel do Estado nessa seara; de Fichte (1762-1814), que considera que a educao forma o
prprio homem, que se humaniza quando se afirma como sujeito, com conscincia e liberdade, e tambm
salienta o papel do Estado; e de Schleiermacher, Von Humboldt, Goethe e Schiller, que representam a pedagogia
do neo-humanismo, sustentando que a educao deve desenvolver a formao humana do homem integral
(Bildung). (Ibid., p. 206-207). 87 ARANHA aponta que as ideias socialistas, especialmente de Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895),
defendem a educao universal e politcnica e, duvidando da capacidade da educao, por si s, transformar o
mundo, estabelecem algumas tarefas para os educadores enquanto no se realiza a ao revolucionria: a luta
pela democratizao do ensino (universal) e pela escola nica (no dualista), isto , sem distino entre formar e
profissionalizar; a valorizao do pensar e do fazer, em que o saber esteja voltado para a transformao do
mundo; a desmistificao da alienao e da ideologia, ou seja, a conscientizao da classe oprimida. (Ibid., p.
207-209). 88 Ibid., p. 199-215. 89 Ibid., p. 200-201. 90 RANIERI, Nina Beatriz Stocco. Op. cit., p. 222. 91 ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Op. cit., p. 222.
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alemes Froebel (1782-1852), que se dedicou ao ensino elementar, valorizava a atividade
ldica e fundou os jardins da infncia (Kindergarten); Herbart (1776-1844), que trouxe maior
rigor metodolgico para o desenvolvimento da pedagogia como cincia, aplicou a psicologia
experimental educao e defendia que a educao moral no se separa da instruo; e
Nietzche (1844-1900), que critica a erudio vazia, a educao intelectualizada e separada da
vida, o excesso de disciplina, a escola utilitria e profissionalizante, excessivamente
pragmtica, os riscos de uma educao submetida ideologia do Estado e a transformao da
cultura em mercadoria.92
No Brasil, a chegada da Corte portuguesa em 1808, em poca que ainda predominava
o modelo agrrio-comercial, provocou diversas modificaes, inclusive no campo cultural,
com a instalao da imprensa, museu, biblioteca e academias. Na rea da educao, houve a
criao de escolas superiores para atender s necessidades existentes e manter o privilgio das
classes superiores, sem valorizao do ensino elementar, o que mantinha a maioria da
populao, que era rural, no analfabetismo.93
Mesmo aps a independncia em 1822 e a referncia da Constituio de 1824 a um
sistema nacional de educao, o Decreto Imperial de 1827 no atendeu adequadamente ao
comando constitucional e o ideal do ensino para todos logo foi considerado inexequvel94,
de modo que a elite mantinha o sistema de educao primria privada, com a contratao de
preceptores, e tinha o privilgio da educao superior.95
O pas ainda seguia tendncia de criao de escolas religiosas, desvalorizava a
formao de professores, a educao popular e a formao tcnica, que era associada
mentalidade escravocrata e considerada inferior, privilegiando as profisses liberais
destinadas elite, sem preocupao com a realidade e com os problemas prticos e
econmicos.96
A educao da mulher tambm era extremamente restrita no Imprio, pois viviam em
condio de inferioridade e dependncia. Mesmo com o Decreto Imperial de 1827, que
92 Ibid., 209-215. 93 Ibid., 219-221. 94 Ibid., p. 222. 95 221-227. ARANHA observa, ainda, que o Ato Adicional de 1834 emendou a Constituio e deixou para a
Coroa a responsabilidade do ensino superior e para as provncias a competncia pelo ensino elementar e
secundrio, mas logo ocorreu uma certa centralizao do ensino secundrio com a criao, em 1837, do Colgio
D. Pedro II, que era destinado elite intelectual, servia de padro para os demais colgios e era o nico que
podia realizar exames para conferir o grau de bacharel, necessrio para o acesso aos cursos superiores. (Ibid., p.
223-225). 96 Ibid., p. 227-229.
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determinou a realizao de aulas regulares para as meninas, a educao era simplria e
destinada ao melhor exerccio das funes maternais. Merece destaque a criao da seo
feminina, em 1875, na Escola Normal da Provncia, que se destinava a formar mulheres na
carreira de magistrio e que, no final do sculo, passou a ter pblico predominantemente
feminino, j que a atividade poderia ser conciliada com as obrigaes domsticas, tinha baixa
remunerao, o que era mais aceito pelas mulheres, e era socialmente admitida, por ser
relacionada com a experincia maternal das mulheres. Mas a excluso ao ensino superior era
vigente, pois os exames do Colgio D. Pedro II eram apenas para homens.97
No final do sculo XIX, o crescimento industrial e da burguesia-industrial, o aumento
imigratrio, a abolio da escravatura, a queda da monarquia e a proclamao da Repblica
trouxeram mudanas que impactaram a educao. As ideias positivistas favoreceram a luta
pela escola pblica, leiga e gratuita e as discusses realizadas nas conferncias pedaggicas,
no Congresso de Instruo e no Parlamento, com o projeto de reforma da educao relatado
por Rui Barbosa, alimentaram durante muito tempo as esperanas de transformao da
sociedade por meio da educao universal, no esprito que mais tarde iria caracterizar o
otimismo da Escola Nova, confiante no carter de democratizao da educao98.
Aranha observa que o sculo XX trouxe a implementao de alguns ideais de
liberdade e igualdade nascidos nos sculos anteriores pelo sufrgio universal, ao estender s
mulheres e aos analfabetos o direito de voto nas sociedades democrticas. Alis, nesse sculo
intensificou-se a defesa dos direitos do cidado, da mulher, da criana, do trabalhador, das
etnias, das minorias, dos animais e da natureza99. Novos sujeitos passaram a integrar a
educao, como as mulheres, as pessoas com deficincia100, as etnias excludas etc.
Na pedagogia, destacam-se a forte influncia das cincias humanas e da valorizao da
cultura cientfica no contedo; o positivismo e a sociologia de Durkheim101 e o
97 Ibid., p. 227-230. 98 Ibid., p. 232. 99 ARANHA destaca que um sculo marcado por uma srie de fatos relevantes, como a ascenso e decadncia
dos regimes socialistas, a crueldade do totalitarismo, a luta contra o apartheid, a xenofobia e a intolerncia
tnica, o progresso das cincias e da tecnologia, mas que deixam prevalecer os interesses econmicos e vises
estritamente utilitaristas e consumistas, e a produo de massas e de mecanismos de controle das massas. (Ibid.,
p. 240). 100 Vale destacar as teorias e o trabalho de Maria Montessori (1870-1952), primeira italiana formada em
medicina pela Universidade de Roma, que desenvolveu mtodos para a educao de crianas com deficincia
mental baseados na autoeducao. (Ibid., p. 263-264). 101 P. 255-256 Na esteira do positivismo cientfico, mile Durkheim (1858-1917) conferiu autonomia
pedagogia e enfatizou o carter determinista e a natureza social da educao, que se desenvolve pelas geraes
adultas como preparo fsico, intelectual e moral das novas geraes para adequ-las sociedade poltica e meio
que se encontrem. (Ibid., p.256-257)
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behaviorismo102; a fenomenologia e o existencialismo francs103; o pragmatismo104 e as ideias
de John Dewey105; a Escola Nova106; as teorias socialistas107; as tendncias no-diretivas108; a
102 O behaviorismo, valorizador da exterioridade do comportamento e da instruo programada mecanicista,
influenciou a orientao tecnicista da educao, a qual traz a mentalidade empresarial para o ensino, enfatizando
a objetividade, o planejamento, a organizao, a diviso, a especializao, a burocratizao e o uso de tecnologia
para alcanar eficincia e produtividade e atender aos interesses do mercado, (Ibid., p. 257-258) 103 Construda pelas ideias de Edmund Husserl (1859-1938), Heidegger, Jaspers, Sarte, Merleau-Ponty e Martin
Buber, a fenomenologia humanizou a cincia. Na pedagogia, valeram-se dessas ideias Dilthey, os gestaltistas
Khler e Koffka, Rollo May, Carl Rogers que reduziu ao mnimo a interferncia do professor, centralizando-se
a ateno no aluno e Sartre que, com o existencialismo francs, trouxe a ideia de que o homem, inicialmente,
existe e, depois, se define, de modo que a educao permite que o educando reconhea a sua liberdade e construa
sua vida autntica. (p. 259-260) Para ele, cada pessoa nica, deve se fazer a si mesma em comunicao com
as outras, com as quais estabelece a intersubjetividade. (Ibid., p. 260).
A gestalt ou psicologia da forma trouxe crticas ao processo de aprendizagem mecnico, enfatizando a
necessidade de compreenso dos mltiplos aspectos e relaes que envolvem a realidade. (Ibid., p. 260) 104 Opondo-se ao conhecimento contemplativo e puramente terico, focou-se na prtica e na experincia, na
funcionalidade ou instrumentalidade do conhecimento (Ibid., p. 260-261) 105 Influenciado pelo pragmatismo de William James (1842-1910), o filsofo e pedagogo John Dewey (1859-
1952) desenvolveu suas teorias que fundamentaram a Escola Nova. Para ele, o conhecimento deve se voltar para
resolver os problemas da experincia humana, com nfase no aprendizado por meio da ao, para conferir ao
educando condies de resolver, por si mesma, seus prprios problemas. Critica a educao tradicional, o
intelectualismo, a memorizao, a educao pela instruo e a obedincia. Defende que a criana deve ser o
centro do processo de aprendizagem, que deve ocorrer de acordo com os interesses da criana, valorizando o
esprito de iniciativa e independncia, valores democrticos. Considerando a noo central de experincia,
Dewey conclui que a escola no pode ser uma preparao para a vida, mas a prpria vida. Por isso, vida-
experincia-aprendizagem no se separam, e a funo da escola est em possibilitar a reconstruo continuada
que a criana faz da experincia. A educao progressiva consiste justamente no crescimento constante da vida,
medida que aumentamos o contedo da experincia e o controle que exercemos sobre ela.
(...)
Marcado pelos efeitos da Revoluo Industrial e pelo ideal de democracia, Dewey queria preparar o aluno para
sociedade do desenvolvimento tecnolgico e formar o cidado para a convivncia democrtica. A escola seria o
instrumento ideal para estender esses benefcios a todos, indistintamente, caracterizando a funo
democratizadora da educao de equalizar as oportunidades. (Ibid., p. 262).
ARANHA aponta que da resultou a iluso liberal ou o otimismo pedaggico da Escola Nova, que
desconsiderava as contradies sociais. 106 ARANHA explica que a Escola Nova, preconizada por Feltre, Basedow e Pestalozzi, defendia mtodos ativos
de educao, para a formao global, que inclua a educao intelectual, moral, fsica, ativa, prtica, com
trabalhos manuais, exerccios de autonomia, vida no campo, internato, coeducao e ensino individualizado.
Buscava superar o intelectualismo da escola tradicional e trabalhar com mtodos que estimulassem o interesse da
criana sem cercear a espontaneidade. (Ibid., p. 246-245) Tinha por ideal educar para a liberdade, no sentido de
possibilitar a autogesto do educando e a construo da sociedade democrtica. (Ibid., p. 251) A autora
complementa que, ao lado de uma ateno especial na formao do cidado em uma sociedade democrtica e
plural que estimulava o processo de socializao da criana , havia o emprenho em desenvolver a
individualidade, a autonomia, o que s seria possvel em uma escola no-autoritria que permitisse ao educando
aprender por si mesmo, e aprender fazendo.
Desse modo, a nfase da educao no est na acumulao de conhecimentos, mas na capacidade de aplic-los
s situaes vividas. (Ibid., p. 263) 107 A educao nos pases socialistas tinha como prioridade. a educao popular, com a universalizao do
ensino elementar, gratuito e obrigatrio, o esforo pela alfabetizao, o trabalho coletivo, a auto-organizao dos
estudantes e a relao entre escola e vida e entre trabalho intelectual e manual. (Ibid., p. 247).
Havia o relacionamento dialtico entre educao e sociedade e a estreita ligao entre educao e poltica, no
s para estimular a crtica alienao e ideologia, como tambm para estimular a praxis revolucionria nos
pases em que o socialismo teria chances de ser implantado, ou para mant-la ativa naqueles que j haviam
passado pela revoluo. (Ibid., p. 266).
Destaca-se a posio de Antonio Gramsci (1891-1937), que traz a ideia de hegemonia cultural, construda pelo
consenso, pela persuaso, pela qual a classe dominante conquista a adeso da classe dominada e a mantm
desestruturada e passiva. Prope, em substituio escola classista burguesa, a escola unitria, que oferece a
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teoria crtica da Escola de Frankfurt109; as teorias crtico-reprodutivistas110; as teorias
progressistas111; e as teorias construtivistas112.
Assim, cada vez mais a educao assumiu carter poltico, devido ao seu papel na
sociedade como instrumento de transmisso da cultura e formao da cidadania: formar o
cidado, ou seja, o sujeito poltico que conhece seus direitos e deveres113. A educao se
estruturou na sntese entre teorias que surgiram para defender a escola como esperana para
democratizar a sociedade e outras que se seguiram destacando o uso ideolgico da escola pela
classe dominante. Diante desse dilema, Aranha sustenta que, se a educao no pode tudo,
mesma educao para todos, conciliando trabalho intelectual e manual, fazer e pensar, cultura erudita e cultura
popular, formando o novo humanismo socialista. 108 Inspiradas nas ideias de Rousseau, que centraliza a educao no aluno e no no professor, permitindo que o
aluno desenvolva sua experincia por conta prpria. Rebatem o autoritarismo educacional nazifascista e do
totalitarismo sovitico, bem como as formas dissimuladas de autoritarismo. Embora tenham sido criticadas por
deixarem os alunos vulnerveis s foras sociais da ideologia dominante, trouxeram questionamentos
importantes sobre o autoritarismo, doutrinao, individualismo, que freqentemente prevalecem na herana da
escola tradicional, impedindo a democratizao da escola, no s na ampliao do seu alcance (uma educao
igual para todos) como na sua prpria gesto (uma autogesto pedaggica). (Ibid., 272).
Destaca-se a contribuio de Carl Rogers (1902-1987), para quem a prpria relao entre as pessoas que
promove o crescimento de cada uma, ou seja, o ato educativo essencialmente relacional e no individual (p.
269) e de Alesander S. Neill (1883-1973), que criou a escola Summerhill, na costa sul da Inglaterra, que
valorizava as emoes e as capacidades de autorregulao individual e de autogoverno coletivo, com a resoluo
das questes de disciplina pelos prprios alunos em Assembleia Geral da Escola. (p. 269), bem como a
desescolarizao de Ivan Illich (1926-2002) e as ideias anarquistas de escolas sob a responsabilidade da
sociedade (Ibid., p. 270-271). 109 A Escola de Frankfurt, entre outras coisas, critica o autoritarismo, a cultura de massa, o uso da cincia a
servio do capital e prope a recuperao da razo para a emancipao humana, o que gera influncias na
educao. (Ibid., p. 272-273). 110 Para tais teorias, desenvolvidas por Althusser, Establet, Baudelot, Bourdieu e Passeron, a escola est de tal
forma condicionada pela sociedade dividida que, em vez de democratizar, reproduz as diferenas sociais,
perpetuando o status quo. (Ibid., p. 273). 111 ARANHA inclui nesse movimento Makarenko, Pistrak, Gramsci, Snyders, Suchodolski, Charlot, Giroux,
Manacorda e Lobrot, que busca, entre outras coisas, de forma mais ampla, a superao da dicotomia entre
trabalho manual e intelectual e a nfase nos contedos do ensino, vinculando o saber abstrato s necessidades
sociais. George Snyders defende o papel do professor, com funo poltica, e da escola e, embora reconhea a
crtica dos tericos reprodutivistas, ressalta o carter contraditrio da escola, que pode desenvolver a
contraeducao, evitando assim a mera reproduo do sistema. (Ibid., p. 274). 112 As teorias construtivistas questionam o racionalismo, o empirismo e o universalismo metafsico modernos ao
considerar que o conhecimento construdo pela interao contnua entre sujeito e objeto, que se modifica e se
refaz conforme se d o surgimento de fatos novos e a modificao das circunstncias histricas e sociais. Como
conseqncia para a educao, a criana no passiva nem o professor transmissor de conhecimento. Outra
caracterstica desse momento epistemolgico decorre da constatao de que o conhecimento se produz a partir
do desenvolvimento por etapas ou estgios sucessivos, nos quais a criana organiza e reorganiza o pensamento e
a afetividade. (Ibid, .p. 275-276).
Seguindo a linha construtivista clssica e mais recente ARANHA destaca, entre outros: Jean Piaget, que, entre
outras coisas, aponta a importncia da educao para o desenvolvimento da conscincia moral e conquista da
autonomia ou capacidade de autodeterminao; Vygotsky; Emilia Ferreiro; Kohlberg, que destaca a educao
para valores, baseando-se nos pressupostos kantianos; Edgar Morin, que observa a crise dos paradigmas da
modernidade, as contradies e incertezas do final do sculo XX, a complexidade do conhecimento e do sujeito e
a importncia da transdisciplinaridade; Philippe Perrenoud, Richard Rorty, que traz o neopragmatismo, a
importncia e a relao entre socializao (que visa integrao) e individualizao (que visa crtica), a
continuidade do processo educativo, a recusa da verdade objetiva e a abertura do conhecimento. (Ibid., p. 275-
284). 113 Ibid., p. 245.
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mesmo assim ela tem uma funo importante a desempenhar, porque ela no s instrui
socializando, como pode ser emancipadora, ao abrir espaos para a desmistificao da
ideologia114.
Contudo, a despeito de alguns avanos, os projetos de escola pblica, gratuita,
obrigatria, unitria e universal no se implementaram por completo na prtica e o liberalismo
que prevaleceu sobre o socialismo no foi capaz de democratizar a sociedade e a educao. O
sculo XX presenciou o uso poltica da educao pelos Estados totalitrios115, a manuteno
do dualismo escolar, que divide educao para o trabalho e educao humanista, alm da
utilizao da educao para atender os interesses de mercado116, preparando indivduos
pouco crticos para exercerem suas funes no mercado de trabalho117.
Nesse contexto, Aranha observa que o modelo de escola tradicional passou por
inmeras crticas, desde a Escola Nova at as mais contemporneas teorias. No entanto, alm
das tentativas de mudanas metodolgicas118, a prpria instituio escolar que se acha em
crise. Mesmo porque, nesse incio do sculo XXI, o nosso modo contemporneo de pensar,
sentir e agir est posto em questo, o que exige, sem dvida, profundas modificaes na
pedagogia e nas formas de educar.119
114 Ibid., p. 245. 115 Segundo ARANHA, o nazismo e o fascismo so avessos teoria, e se vangloriam de um anti-
intelectualismo fundado no primado da ao. Mais do que ideias, a eles interessam a retrica e seus efeitos de
doutrinao, que levam obedincia e disciplina. (Ibid., p. 250).
Complementa que a educao assumiu carter privilegiado de controle e difuso da ideologia oficial.
(...)
Nas escolas propriamente ditas, valorizavam-se as disciplinas moral e cvica, para formar o carter, a fora de
vontade, a disciplina e o excessivo amor ptria. Especial ateno era dedicada educao fsica, para atender
ao ideal de corpos sadios e rgidos (o endurecimento do corpo exige rigor militar). Por outro lado, prevalecia
evidente desprezo pelas atividades intelectuais e por qualquer teoria, lembrando que o primado da ao consistia
em meta explcita de Mussolini. (Ibid., p. 251). 116 ARANHA observa que o sculo XX presenciou movimentos sociais de contestao (movimentos de contra-
cultura), que criticavam a sociedade massificada de con