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RAFAEL RODRIGUES DA SILVA EDIÇÃO E HERESIA: O LIVRO DE DANIEL PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA SÃO PAULO - 2005

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RAFAEL RODRIGUES DA SILVA

EDIÇÃO E HERESIA: O LIVRO DE DANIEL

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS

EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO - 2005

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RAFAEL RODRIGUES DA SILVA

EDIÇÃO E HERESIA: O LIVRO DE DANIEL

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica - área de concentração: Intersemiose na literatura e nas artes, sob a orientação da Professora Doutora – Jerusa Pires Ferreira.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS

EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO - 2005

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O senhor tolere minhas más devassas no contar. É ignorância. Eu não converso com ninguém de fora, quase. Não sei contar direito. Aprendi pouco foi com o compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não o

caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa... lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os

outros acho que não se misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo as coisas de rasa importância.

(Riobaldo – João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas)

Numa roda de amigos, alguém mostrou uma fotografia em que se via um homem de rosto severo, com o dedo levantado, quase agredindo o público. Todos ficaram com a idéia de se tratar de uma pessoa inflexível, antipática, que não permitia intimidade. Nesse momento, chegou um rapaz, viu a fotografia e exclamou: ‘É meu pai!’ Os outros olharam para ele e, apontando a fotografia, comentaram: ‘Pai severo, hein?!’ Ele respondeu: ‘Não! Não é não! Ele é muito carinhoso. Meu pai é advogado. Esta fotografia foi tirada no tribunal, quando ele denunciava o crime de um latifundiário que queria despejar uma família pobre de um terreno baldio da prefeitura, onde ela estava morando

havia vários anos! Meu pai ganhou a causa. Os pobres não foram despejados!’ Todos olharam de novo e disseram: ‘Que fotografia simpática!’ Como por um milagre, ela se iluminou e tomou um outro aspecto. Aquele rosto tão severo

adquiriu traços de uma grande ternura! As palavras do filho mudaram tudo, sem mudar nada!

(Carlos Mesters)

Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobre coitado... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre. – O senhor solte em

minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amem!

(João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas)

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ORIENTAÇÃO Profa. Dra. Jerusa Pires Ferreira BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________________ ___________________________________________________________ ___________________________________________________________ ___________________________________________________________ ____________________________________________________________

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AUTORIZO, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese por processos fotocopiadores ou eletrônicos.

Rafael Rodrigues da Silva São Paulo, agosto de 2005.

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PARA: ELIANA,

ANA CLARA E JOÃO PEDRO MEUS AMORES

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Jerusa Pires Ferreira, pela paciência e por ensinar sempre a arte da troca

de saberes.

Ao CEPE-PUC pela bolsa em 2002 e 2003, a qual proporcionou o desenvolvimento desta

pesquisa.

Aos professores do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP pelo apoio e

incentivo. Destacando os professores João Décio Passos, Silas Guerriero e Pedro Lima

Vasconcellos.

Aos Professores da UNISAL – Campus Pio XI pelo incentivo, de modo especial o coordenador

do Curso de Teologia, o prof. Dr. Ronaldo Zacharias.

À Comunidade Salesiana Santo Tomás de Aquino, na pessoa do Padre Diretor Edmilson Tadeu

C. dos Santos, pela acolhida nos tempos finais da elaboração da tese.

A Josias Abdalla Duarte que com muita atenção e carinho leu os manuscritos da tese.

Aos amigos e companheiros do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos que sempre me

desafiaram a ler a Bíblia bem junto do cotidiano do povo.

Aos meus familiares que aceitaram as minhas ausências, de modo especial, Eliana, Ana Clara e

João Pedro.

Aos alunos do ITESP, PIO XI e PUC-SP que foram pacientes em meio às correrias na etapa final

da tese.

Aos Professores Ênio da Costa Brito e Archibald M. Woodruf pelas valiosas contribuições no

Exame de Qualificação.

Agradeço a todos aqueles que direta e indiretamente contribuíram para a realização deste

trabalho.

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RESUMO “Edição e Heresia: O livro de Daniel” é um trabalho que visa estudar e analisar o Livro de Daniel em sua comunicação oral e escrita desde os primeiros séculos a.E.C. Em se tratando de um livro do gênero apocalíptico, é preciso levar em conta as características principais da apocalíptica. Partindo, pois, da origem social desta literatura e de um suposto contexto histórico-cultural, passo a trilhar pela matriz apocalíptica de Daniel e as suas interações com as construções míticas e mágicas do mundo da época. O primeiro caminho da pesquisa tomará como ponto de partida a aproximação e estudo do texto que foi sendo transmitido, comunicado e reconstruído em novas conjunturas. A intenção da pesquisa, na sua primeira parte, consiste no estudo do livro levando em conta seu simbolismo que nos conduz a imaginários e a vida cotidiana. Do texto que foi comunicado para seus contextos sócio-culturais. Nesta perspectiva busca-se perceber o intercruzamento entre oralidade, voz e escritura. Na segunda parte seguiremos os passos de sua comunicação no universo do cristianismo, perguntando pela circulação das suas imagens e símbolos no imaginário cristão desde suas origens. Para daí, na terceira parte acompanhar a recepção deste livro na América colonizada através da leitura e interpretação do padre Antônio Vieira, entre outros. Palavras-chave: Comunicação oral – Transmissão oral – Oralidade bíblica – Apocalíptica, Bíblia e Exegese – Hermenêutica.

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ABSTRACT

“Edition and Heresy: The book of Daniel” is a work that studies and analyzes the Book of Daniel in its oral and written communication since the first centuries b.a.c. (before age commom). Being an apocalyptic gender, it’s important to consider the main characteristics of the apocaliptic literature. Starting from the social origin of this literature and from a supposed historical-cultural context, I start the apocalyptic matrix of Daniel and its interactions with myths and magic from the world at that time. Firstly, this work will start with the approximation and study of the text that has been transmitted, communicated and rebuilt in new situations. In the first part of this research, my intention consists of studying the entire symbolism of the Book of Daniel which leads us to the imaginary and daisly life of its authors and to their different social and cultural contexts. In such perspective, I with point and the mixture of the oral, voicing and writing in the text. Secondly, I will follow the steps of the communication of the Book od Daniel in the Christianity context, asking for the circulations of the images and symbols at the Christian imaginary in its origins. So, in the third part, I will look for the reception of this book (Daniel) in colonized America through the reading and interpretations of the priest Antonio Vieira, among others. Key words: Oral communication – Vocal transmission – Biblical orality - Apocalyptic – Bible – Exegesis - Hermeneutic

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................................. 11 PRIMEIRA PARTE: O LIVRO DE DANIEL NOS PRIMEIROS SÉCULOS A.E.C....................... 16 CAPÍTULO 1: O LIVRO ARAMAICO DE DANIEL.......................................................................

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1. A organização do livro..................................................................................................... 46 2. Fontes e Tradições presentes e manifestas no Livro...................................................... 91 3. O Chão no qual surgiu o livro de contos, sonhos e visões de Daniel.............................. 99 CAPÍTULO 2: O LIVRO HEBRAICO DE DANIEL....................................................................... 107 1. A introdução narrativa de Dn 1,1 – 2,4............................................................................ 107 2. O livro de Visões – Dn 8,1 – 12,13.................................................................................. 109 3. O livro de visões de Daniel na Conjuntura da Guerra dos Macabeus............................. 134 CAPÍTULO 3: COSTURAS E ADIÇÕES AO LIVRO DE DANIEL NA SEPTUAGINTA............... 145 1. Adições e Omissões na tradução do Livro de Daniel...................................................... 152 2. Mudanças Interpretativas na versão grega de Daniel..................................................... 155 3. Os acréscimos de Daniel 3,24-90 e 13-14....................................................................... 158 4. Os acréscimos gregos na conjuntura dos conflitos na dinastia Hasmonéia.................... 167 SEGUNDA PARTE: TRÂNSITO E CIRCULAÇÃO DO LIVRO DE DANIEL NA TRADIÇÃO CRISTÃ........................................................................................................................................

171

CAPÍTULO 4: O LIVRO DE DANIEL E OS CRISTIANISMOS ORIGINÁRIOS........................... 174 1. A proximidade do Livro de Daniel com outros livros judaicos.......................................... 174 2. O livro de Daniel entre bandidos e messias.................................................................... 177 3. O livro de Daniel e a construção da imagem do Jesus apocalíptico............................... 187 4. O livro de Daniel e sua circulação nos Cristianismos...................................................... 198 TERCEIRA PARTE: RECEPÇÃO DO LIVRO DE DANIEL NA AMÉRICA COLONIZADA. EVOCAÇÃO DE HERESIAS.......................................................................................................

213

CAPÍTULO 5: A LEITURA E EXEGESE DE ANTÔNIO VIEIRA................................................. 217 1. Milenarismo, Messianismo e Quinto Império em Vieira................................................... 257 2. O Livro de Daniel nos Livros Primeiro e Segundo da História do Futuro........................ 280 3. O Livro de Daniel na Defesa de Vieira perante o Santo Ofício........................................ 298 CONCLUSÃO.............................................................................................................................. 306 BIBLIOGRAFIA............................................................................................................................ 316

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INTRODUÇÃO

Há alguns anos aprendi a ler a Bíblia num espaço ecumênico, popular e de serviço aos

pobres. Neste tempo adquiri uma leitura militante e comprometida na escola do CEBI (Centro

Ecumênico de Estudos Bíblicos). Carlos Mesters, companheiro e amigo de longa data, me

introduziu na leitura bíblica do CEBI e ali aprendi a ler o texto por trás das palavras. É um jeito

novo e antigo de se achegar às Escrituras, que aos poucos foi me convidando para entrar na

“casa do povo”1, e ali, experimentar as descobertas e aprender a fazer exegese sem modificar a

casa do povo e a transcender as fronteiras dos limites confessionais e eclesiais.

Na academia, encontrei muitas ferramentas que me auxiliaram e me ajudaram a crescer.

Encontrei ali outros métodos, o histórico-crítico, o sociológico ou sócio econômico e, de todos

estes, a minha leitura da Bíblia é também devedora. Ali aprofundei e fiz leituras da profecia e me

aproximei do discurso apocalíptico presente no livro de Sofonias. Fiz exegese e um ensaio de

leitura junto aos acampados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Na academia e

na leitura popular finquei os meus pés no compromisso junto às Comunidades Eclesiais de Base

e nas lutas sociais. O meu orientador no mestrado em Ciências da Religião, Milton Schwantes,

grande incentivador da leitura da Bíblia na América Latina, me ensinou que a luta do povo é o

ninho da Escritura, tanto no sentido de que a caminhada elucida o texto, quanto no sentido de

que este ilumina, anima, critica aquela. Me ensinou a ler e a ouvir a Bíblia em meio ao ambiente

político das lutas populares e me ajudou a sempre ter presente que as palavras na Bíblia são

contextuais.

Neste processo de aprendizados e práticas de leitura junto ao povo, continuei a visitar

sempre a profecia e a apocalíptica. Em meio às pesquisas do meu mestrado, escutei da exegese 1 Imagem da parábola da Porta do “Por trás das Palavras”. MESTERS, Carlos (1975: 13-19).

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sócio-econômica que a apocalíptica, de modo especial a de Daniel, surge em meio ao domínio

avassalador do helenismo e das arbitrariedades de um Antíoco IV Epífanes, que 166 a.E.C.

profanou o templo de Jerusalém. Aí brota o sonho apocalíptico de Daniel. É o grito de desespero

de um povo massacrado e encurralado, cujo alvo primeiro e imediato é o aniquilamento da

abominação. Nesta perspectiva, o livro de Daniel é, por execelência, um projeto anti-

imperialista.2

Diante desta interpretação apresentada pelo estudo acadêmico e diante de uma questão

que sempre me provocou nas aproximações aos textos bíblicos, a saber, a passagem da

oralidade para a escritura, o que há ‘por trás’ do texto, em resumo, ler o texto perscrutando as

“vozes silenciadas”. Nesta busca conheci Daniel D’Andrea que trabalha com contos populares,

num dos encontros de Bíblia do CEBI. Ali ele me falou de Jerusa Pires Ferreira e só depois de

algum tempo vim de fato a conhecê-la numa conversa amiga sobre o projeto de leitura do texto

de Daniel. De pronto iniciamos a caminhada neste projeto de pesquisa, numa cumplicidade e

troca de saberes. Aprendi muito nas aulas, nas orientações e nas conversas sobre o meu tema

de pesquisa, principalmente no que eu buscava: as tramas do texto e seu assento nas camadas

populares e como o texto tem uma matriz que gera outros textos. É uma pista de mão dupla: da

oralidade para a escritura e da escritura para a oralidade.

A inserção e descoberta da presença da Bíblia no cotidiano do povo e de seus leitores

caminham nos limites entre a pluralidade e a invenção3. Daí, percebermos que a leitura não está

inscrita no texto, pois entre o texto e o leitor aparece com força vital a interpretação feita pelas

2 Trecho de um dos primeiros textos que li de Milton Schwantes: Projeto de Deus na Bíblia (Anotações para uma palestra no Curso de Extensão Universitária “Fé e Educação Política”, promovido pelo Diretório Acadêmico do Instituto de Teologia, PUC, Porto Alegre, 30.09.1981), p.7. 3 Cf. CERTEAU, Michel de. (2000: 269-270): “Longe de serem escritores, fundadores de um lugar próprio, herdeiros dos servos de antigamente mas agora trabalhando no solo da linguagem, cavadores de poços e construtores de casas, os leitores são viajantes; circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta própria através dos campos que não escreveram, arrebatando os bens do Egito para usufruí-los. A escrita acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lugar e multiplica sua produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não tem garantias contra o desgaste do tempo (a gente se esquece e esquece), ela não conserva ou conserva mal a sua posse, e cada um dos lugares por onde ela passa é repetição do paraíso perdido”.

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sucessivas leituras e produções de sentido feitas por seus leitores. O texto torna-se cada vez

mais contíguo. De um lado, a leitura criativa e constante do texto e, do outro, a existência de

uma rede de significados que vai transformando o texto num mosaico.

O texto (produção, leitura, recepção e criação de um novo texto) é “sempre prática

encarnada por gestos, espaços e hábitos”. É o que percebemos nas várias leituras do livro de

Daniel. Textos que fogem às convenções de leituras e que podem ser lidos de formas diferentes.

Leituras de profetas, sacerdotes, sábios (maskilim), piedosos (hassidim), guerrilheiros

(macabeus), apocalípticos, a do messias e a do povo pobre. Livro que faz circular imagens e

símbolos e que no seu nascedouro destitui a imaginária hegemônica do poder perseguidor e

recria (criativamente) imaginários de resistência. Podemos dizer que o livro de Daniel representa

um corpus mixtum. Ali encontramos várias tradições, vários gêneros literários e muitas vozes.

Na busca do livro de Daniel e nas várias leituras que foram sendo feitas no decorrer da

história deste livro; bem como, nas primeiras leituras do livro somos impactados por dois

aspectos: a sua localização nas Bíblias e a apresentação de textos diferentes dentro do seu

conjunto. Na trilha das leituras era necessário ter presente o livro em suas origens e a sua

recepção em nosso contexto. Levando em conta essas buscas é que organizamos a pesquisa

em três partes.

Na primeira parte, “o livro de Daniel nos primeiros séculos a.E.C.”, buscamos entender o

livro, utilizando as ferramentas da exegese bíblica aplicadas sob três passos: o entendimento do

texto e a maneira como estão organizadas cada versão do livro em termos literários (estrutura,

forma e análise semântica). Neste primeiro passo, nos acercamos do documento para conhecer

o rosto do texto. Ao mesmo tempo que fomos conhecendo o texto e éramos informados do seu

conteúdo, descobrimos o que este texto dizia. No segundo passo sobre o conteúdo do texto

atingimos o coração das palavras. E, finalmente, no terceiro passo buscamos entender o seu

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contexto e quais os grupos que estão por trás de cada versão do livro: Estas palavras tem chão.

Atingimos os pés e as mãos do livro de Daniel.

Na segunda parte, passamos a discutir a circulação do livro de Daniel. Seus alcances e

suas relações com outros textos que existiram em seu entorno. Algumas de suas imagens e

símbolos presentes em outros livros e textos sagrados que existiram apesar das proibições e

sanções. Sua circulação no contexto do Cristianismo Primitivo. Esta parte tem a grande função

de dobradiça e ponte para a grande pergunta que fizemos sobre as leituras do livro de Daniel:

sua presença e circulação na América Colonizada.

Assim sendo, o foco da terceira parte está na comunicação do texto e suas leituras na

América. Nos dias da dominação colonial e entre as leituras coloniais nos deparamos com a

leitura e exegese do jesuíta Antônio Vieira. Priorizamo-la por perceber a sua importância na

formação da sociedade e o livro de Daniel em meio aos conflitos de interpretação e no jogo das

disputas por poder.

A chave de leitura que descobrimos ao final do trabalho consiste que este livro de Daniel

sofreu acréscimos, cortes, revisões, leituras várias e, de modo especial, em suas mais variadas

interpretações, foi evocador de heresia frente aos poderes de censura. Livro herege que demora

a entrar no cânon, livro herege que alimenta e coexiste com outros livros hereges (Enoque,

Oráculos Sibilinos, Apocalipse de João entre outros) e livro que está nas penas e discursos de

muitos que são acusados e condenados por serem heresiarcos.

No jogo das interpretações do livro (ou livros) de Daniel com suas leituras variegadas

apresento quase como epígrafe a leitura de Gerrard Winstanley no século XVII:

“La primera fiera que vio Daniel... era como un león...: es el poder real que toma la espada y se abre paso para gobernar a otros dando... así la tierra a algunos, negando a tierra a otros. La segunda fiera era como un oso: y éste es el poder de las leyes egoístas... el poder de las prisiones... la confiscación de los bienes... las horcas y hogueras... La tercera fiera era como un leopardo...: éste es el embustero arte que practican unos de comprar o vender la tierra, con sus frutos a otros. La cuarta fiera es el imaginario poder del clero, que en realidad es Judas: y ésta es más terrible y aterradora que las demás. (...) Son la maldición y

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la plaga de la creación... éstas imperan con su poder mientras la propiedad gobierna como rey... La creación no estará jamás en paz hasta que estas cuatro bestias con todas sus cabezas y sus cuernos... vuelvan a correr al mar... cristo hará que esto pase, con su aparición más gloriosa... Esto dejará el lugar a Cristo, el amor Universal, para que ocupe el reino y el dominio de la tierra entera”.4

4 Gerrard Winstanley. Apud. Christopher Rowland. “Los que hemos llegado a los fines de los tiempos”: lo apocalíptico y la interpretación del Nuevo Testamento. In: BULL, Malcolm (org.). (2000: 51).

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PRIMEIRA PARTE

O LIVRO DE DANIEL NOS PRIMEIROS SÉCULOS A.E.C.

Nos primeiros séculos antes da Era Comum5 circulam nos ambientes judaicos, tanto na

Judéia quanto fora dela (diáspora), vários textos e livros de natureza religiosa (sagrada). O livro

de Jesus Ben Sirac (mais conhecido como Sirácida ou Eclesiástico) registra entre os judeus a

existência dos livros, das leituras e das traduções.6 Através deste texto podemos vislumbrar que

existia a leitura e circulação de vários textos ou livros. No entanto, um livro nos chama a atenção

neste processo de formação dos textos religiosos e litúrgicos na tradição judaica: o livro de

Daniel, que nesse contexto, circula em suas três versões (aramaica, hebraica e grega). Ao nos

aproximarmos destas versões de Daniel algumas questões vão surgindo.

Podemos falar de um livro de Daniel? Ou temos, pelo menos, três livros? Pode parecer

fácil fixar uma data para o livro de Daniel e, sobretudo, elaborar uma hipótese para a sua

redação final. Existe uma redação final do livro de Daniel? Quando ela se deu? Quem são os

autores ou o autor (final) do livro de Daniel? Como as imagens e a linguagem simbólica

5Não vou seguir a fórmula padrão utilizada nas datações e passarei a utilizar a.E.C. para dizer antes da Era Comum e E.C. para Era Comum. 6 “Visto que a Lei, os Profetas e os outros escritores, que se seguiram a eles, deram-nos tantas e tão grandes lições, pelas quais convém louvar Israel por sua instrução e sua sabedoria, e como, além do mais, é um dever não apenas adquirir ciência pela leitura, mas, ainda, uma vez instruído, colocar-se a serviço dos de fora, por palavras e por escritos: meu avô Jesus, depois de dedicar-se intensamente à leitura da Lei, dos Profetas e dos outros livros dos antepassados, e depois de adquirir neles uma grande experiência, ele próprio sentiu necessidade de escrever algo sobre a instrução e a sabedoria, a fim de que os que amam a instrução, submetendo-se a essas disciplinas, progridam muito mais no viver segundo a Lei. Sois, portanto, convidados a ler com benevolência e atenção e a serdes indulgentes onde, a despeito do esforço de interpretação, parecermos enfraquecer algumas das expressões: é que não tem a mesma força, quando se traduz para uma outra língua, aquilo que é dito originariamente em hebraico; não só este livro, mas a própria Lei, os Profetas e o resto dos livros têm grande diferença nos originais. Ora, no trigésimo oitavo ano do falecido rei Evergetes, indo ao Egito e sendo-lhe contemporâneo, encontrei uma vida segundo uma alta sabedoria, e eu julguei muito necessário dedicar cuidado e esforço para traduzir este livro. Dediquei muitas vigílias e ciência durante este período, a fim de levar a bom termo o trabalho e publicar o livro para os que, fora da pátria, desejam instruir-se, reformar os costumes e viver conforme a Lei” (Prólogo grego do Livro do Eclesiástico, vv.1-34. Ver B.J.).

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presentes nas diferentes versões de Daniel foram transmitidas? E como estas imagens e leituras

dos acontecimentos dos primeiros séculos a.E.C. continuaram a ser transmitidas e se fizeram

tão presentes nas tradições apocalípticas e se estendem até os dias de hoje?

Uma resposta para estas questões está na concepção de que texto cultural é mais amplo

do que apenas o texto escrito. “A história é sempre texto, ou mais amplamente, discurso, seja ele

escrito, iconográfico, gestual etc., de sorte que somente através da decifração dos discursos que

exprimem ou contêm a história poderá o historiador realizar o seu trabalho”.7 Ou podemos

afirmar à luz de Clifford Geertz de que a cultura se compõe de um conjunto de textos com

amplos significados, ultrapassando, assim, os textos escritos e verbais.8 Neste sentido, temos

que buscar a tradição e a memória subterrânea presente em Daniel.9 Porém, é preciso repensar

as relações entre oralidade e escritura, linguagem e história, memória, esquecimento e tradição

com o objetivo de trazer para o campo da exegese e da hermenêutica discussões sobre

tradições orais e escritura; bem como, as problematizações ao redor da escrita e da formação do

texto, como expressão de relações sociais que orientam caminhos, percepções, modos de

pensar e de viver.10 No entanto, será necessário, de um lado, perceber tanto o texto oral quanto

o texto escrito como frutos da cultura11 e da memória histórica e coletiva e, de outro, distinguir

7 CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (1997:377). 8 Cf. GEERTZ, Clifford (1989: 316). 9 As contribuições da história oral e/ou oralidade serão ferramentas imprescindíveis para a nossa compreensão da conjuntura, das múltiplas releituras dos símbolos e imagens apocalípticas. É neste aspecto que se insere a perspectiva de uma leitura do livro de Daniel que leve em conta a construção de um imaginário. ZUMTHOR, Paul (1997a: 28) vai nos ajudar a partir do seu entendimento do termo oralidade enquanto vocalidade, pois, na voz não só transita a linguagem como também é de onde nasce o sentido e transborda a palavra. Nas páginas 35-36 o autor vai dizer que a oralidade não se define por subtração de certos caracteres da escrita, da mesma forma que esta não se reduz a uma transposição daquela. 10Esta perspectiva se encontra nos seguintes textos: BURKE, Peter (1995); BURKE, Peter e PORTER, Roy (1993); BURKE, Peter (1997). CHARTIER, Roger (1990); DAVIS, Natalie Zenon (1990); GNERRE, Maurício (1994); ZUMTHOR, Paul (1997a, 1997b e 2001); Revista Projeto História (n.15/1997 e n.22/2001). 11Não quero aqui me estender no emaranhado de definições sobre cultura. No entanto, o meu interesse na definição de cultura reside na busca de um caminho para a compreensão das origens do livro de Daniel. Ver BURKE, Peter (2000: p.13). Cultura é uma teia de significados que foram transmitidos historicamente, incorporados em símbolos, formando um sistema de concepções herdadas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida. Ver GEERTZ, Clifford (1989: 15 e 103). Podemos conferir os textos de Alan Dundes. Oral Literature; J. A. Clifton. Cultural Anthropology: Aspirations and Approaches; BURKE, Peter e

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tradição oral12 e transmissão oral. Pois, o ato de narrar (contar e escrever) já por si carrega a

tarefa de manter viva a memória dos fatos e acontecimentos.13

Vale aqui acompanhar a formulação de Isabel Allende demonstrando a relação entre

escrita e lembrança: “Talvez seja esta a chave. Escrever para que os fatos não se apaguem,

para que a memória não seja varrida pelo vento. Escrever para registrar as coisas e dar nome às

coisas. Escrever o que não se deve esquecer...”.14

Por mais que tenhamos que nos debruçar sobre a tradição oral presente em Daniel,

temos de aceitar o inevitável: ela só chega a nós através de um texto. O texto ou escritura de

Daniel é resultado de uma longa tradição oral. Como descobrí-la? Como percebê-la dentro do

texto escrito?15 Quem redigiu o texto escrito foi fiel ao texto da tradição oral ou o silenciou?

Concordamos com Walter Ong acerca da presença da oralidade como aspecto vivificador da

cultura de uma sociedade, mesmo conhecendo e sendo totalmente dependente da escrita16; pois

a oralidade deve ser compreendida como parte da estrutura da sociedade e a memória não

PORTER, Roy (1993); BURKE, Peter Burke e PORTER, Roy (1997); THOMPSON, Edward Palmer (1998); LE GOFF, Jacques (1998); HUNT, Lynn (2001); BURKE, Peter (1992); DOSSE, François A história em migalhas. Dos Annales à Nova História. 2003; Projeto História: História e Oralidade, n.22, 2001 e Corpo e Cultura, n.25, 2002. 12 Paul Zumthor aponta quatro espécies de situações de oralidade: uma oralidade primária, sem contato com forma alguma de escritura; uma oralidade mista, que coexiste com a escritura num contexto sociológico no qual a influência desta última é de caráter parcial, externo e retardado; uma oralidade secundária que na realidade se recompõe a partir da escritura (a voz pronuncia o que antes se tem escrito ou se tem pensado em termos de escritura) num âmbito onde, tanto na prática social como na imaginação, predomina o escrito sobre a autoridade da voz; uma oralidade mediatizada, a que hoje nos oferece o rádio, o disco e outros meios de comunicação. In: Permanência de la voz. Correio do UNESCO. n.1, p.5. 13 Segundo Homi K. Bhabha (1998: 93) “a tradição é aquilo que diz respeito ao tempo, não ao conteúdo. Por outro lado, o que o Ocidente deseja da autonomia, da invenção, da novidade, da autodeterminação, é o oposto – esquecer o tempo e preservar, acumular conteúdos; transformá-los no que chamamos história e pensar que ela progride porque acumula. Ao contrário, no caso das tradições populares... nada se acumula, ou seja, as narrativas devem ser repetidas o tempo todo porque são esquecidas todo o tempo. Mas o que não é esquecido é o ritmo temporal que não pára de enviar as narrativas para o esquecimento”. 14 Isabel Allende. Apud. Hans de Wit (1988: 29). 15 No estou me referindo a texto impresso como o concebemos hoje, mas aos textos que aos poucos foram sendo escritos num processo que vai das inscrições em pedras, argilas (cerâmicas), papiros, pergaminhos, rolos e códices. 16Cf. ONG, Walter J. (2001: 69).

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como uma simples recordação dos fatos e acontecimentos, mas como uma maneira criativa de

reproduzir a cultura e a tradição.

“El hecho de que los pueblos orales comúnmente, y con toda probabilidad en todo el mundo, consideren que las palabras entrañan un potencial mágico está claramente vinculado, al menos de manera inconsciente, con su sentido de la palabra como, por necesidad, hablada, fonada e, por lo tanto, accionada por un poder. La gente que está muy habituada a la letra escrita se olvida de pensar en las palabras como primordialmente orales, como sucesos, y en consecuencia como animadas necesariamente por un poder; para ellas, las palabras antes bien tienden a asimilarse a las cosas, “allá afuera” sobre una superficie plana. Tales “cosas” no se asocian tan fácilmente a la magia, porque no son acciones, sino que están muertas en su sentido radical, aunque sujetas a la resurrección dinámica”.17

Uma questão importante se coloca na leitura de textos apocalípticos, proféticos,

sapienciais, enfim, de textos que registram os acontecimentos do passado ou até mesmo que se

apresentam como comunicadores da tradição18, ou seja, é preciso indagar se os textos

17Idem. p.39. 18 Vale a pena lembrar que os textos apocalípticos, além de serem considerados uma espécie de mixtum compositum” (afirmação de Gerhard von Rad) podemos elencar algumas de suas características, no tocante a uma literatura que mescla leitura dos acontecimentos passados e uma história do futuro: 1. as revelações são comunicadas e transmitidas através de visões, epifanias (acompanhadas pela figura do mediador ou intérprete que apresenta uma explicação da visão na forma de discurso ou diálogo), viagem a outro mundo e revelação escrita num documento. Estas revelações são acompanhadas pela presença de um mediador transcendente, de modo geral na figura de um anjo, e, de um receptor da revelação, que normalmente é identificado por uma figura venerável do passado. Eles utilizam o recurso da pseudonímia. Na mesma dinâmica, o texto é produzido numa conjuntura de crise e a “revelação” é projetada para um momento arquetípico (origens e formação de Israel, exílio da Babilônia, etc.). 2. Em termos de conteúdo, os apocalipses apresentam alguns temas: a) assuntos que tratam do começo da história ou da pré-história: teogonia ou cosmogonia; eventos primordiais que tem significado paradigmático para o resto da história, como a interpretação do pecado de Adão; b) releitura da história do mundo ou de Israel (no sentido de lembrança do passado) ou uma prophetia ex-eventu, onde a história passada é disfarçada como futura; c) salvação presente que se dá através do conhecimento (tema próprio dos apocalipses gnósticos); d) uma escatologia da crise, que se dá na descrição de uma perseguição dos justos ou nos desastres e sofrimentos que perturbam a natureza e a história; e) julgamento escatológico e de destruição dos opressores (nos textos gnósticos e o julgamento e destruição do mundo) e das forças de outro mundo (as forças de Belial, de Satanás e de outros poderes do mal), que é provocado por intervenção sobrenatural (transformação cósmica) e f) salvação escatológica através de transformação cósmica para renovar o mundo ou de uma salvação pessoal (tanto na forma de ressurreição ou de exaltação para o céu enquanto outras formas de vida após a morte). 3. No tocante ao eixo espaço, aparecem os elementos de outro mundo (regiões celestiais) com viagens do receptor da revelação ou de seres transmundanos (anjos e demônios). 4. Na literatura apocalíptica encontramos também a Parenese em suas várias formas. As pareneses são fornecidas pelo mediador no momento da revelação (raramente aparece nos apocalipses judaicos e tem mais proeminência nos apocalipses cristãos). 5. Elementos finais: Instruções para o receptor (por exemplo, escrever ou esconder a revelação); uma conclusão narrativa que descreve o despertar ou a volta à terra, a partida do mensageiro e ações conseqüentes (alguns textos gnósticos faz referencia à perseguição sofrida pelos receptores por causa da revelação). “É preciso levar em conta também a intenção dos apocalipses de exortar, gerar esperança e segurança na salvação em função de um contexto

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apocalípticos foram produzidos por gente camponesa empobrecida ou pelos escribas e doutores

conhecedores das leis e escrituras? Por mais que os camponeses da Judéia desconhecessem a

escrita e comunicassem as suas tradições através da oralidade, não podemos nos esquivar do

fato de que o poder da escrita daqueles que estão nos palácios e nas cidades depende da

dinâmica da oralidade. Portanto, “embora haja culturas orais sem alfabetização, não há culturas

letradas sem oralidade”.19 Pois, segundo Walter Ong:

La oralidad no es un ideal, y nunca lo ha sido. Enfocarla de manera positiva no significa enaltecerla como un estado permanente para toda cultura. El conocimiento de la escritura abre posibilidades para la palabra y la existencia humana que resultarían inimaginables sin la escritura. Las culturas orales hoy en día estiman sus tradiciones orales y se atormentan por la pérdida de las mismas, pero nunca me he encontrado ni he oído de una cultural oral que no quisiera lograr lo más pronto posible el conocimiento de la escritura. (Desde luego, algunos individuos se resisten a la escritura, pero en su mayor parte se les pierde de vista pronto.) Sin embargo, la oralidad no es desdeñable. Puede producir creaciones fuera del alcance de los que conocen la escritura; la Odisea es un buen ejemplo. Asimismo, la oralidad nunca puede eliminarse por completo: al leer un texto se le “oraliza”. Tanto la oralidad como el surgimiento de la escritura a partir de la oralidad son necesarias para la evolución de la conciencia.20

Nesta perspectiva por mais que se queira ler o livro de Daniel como fruto e resultado do

trabalho de redatores (redação final), não dá para se esquivar da constatação de que o texto

contém as marcas da oralidade, pois a cultura de Israel/Judá (dos tempos pré-exílicos) se

caracteriza pela memória e tradição oral. Segundo Nyberg, "quase toda escrituração de qualquer

obra no Oriente teve... como predecessor um período mais ou menos longo de tradição oral, e

sócio-politico e cultural de sofrimento”. Ver CROATTO, José Severino (1990: 8-21) e NÁPOLE, Gabriel M. (2001: 353-355). 19 Esta é uma afirmação de Crossan, que aponta para alguns exemplos de estudos que nos impulsiona a enxergar a divisão entre oralidade e alfabetização não no oral versus o letrado, mas no oral sozinho versus oral e letrado juntos. Eis os exemplos: primeiro é o estudo de Brian Stock demonstrando que a grande mudança na sociedade se dá nas combinações entre oralidade e escritura. O segundo, nos diz que o modelo ideológico de alfabetização se concentra na interação de modelos orais e letrados (Brian Street). E Jack Goody, terceiro exemplo, diz que é um erro fazer a divisão entre culturais orais e escritas, e devemos perceber que a divisão aparece entre a oral e a oral mais escrita. E, por fim, o estudo de James Fentress e Chris Wickham, que defende a tese de que por mais que uma sociedade tenha adquirido a habilidade de representar seu conhecimento através de formas escritas não significa que tenha deixado de ser oral. CROSSAN, John Dominc (2004: 129-130). 20 ONG, Walter J. (2001: 169).

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mesmo depois que foi posta por escrito a tradição oral continua a ser a forma normal de

existência e do uso de uma obra".21 Além disso, uma leitura dos verbos no livro do

Deuteronômio revelará por que Israel é reconhecido como "um povo por excelência da

memória", portador de uma "religião da recordação": guarda-te...não esqueças... lembra-te...

ouve, ó Israel...recorda-te... Nele a tradição oral se mostrou um caminho fecundo pelo qual,

através da voz e da escuta foi conservada e transmitida a sua sabedoria, o seu mundo, a sua

história. A voz designa o sujeito a partir da linguagem e nela a palavra se enuncia como

lembrança e memória-em-ato.22 A memória oral passa de geração a geração e aos poucos

produz uma dinâmica de manutenção das tradições, mitos, ritos, cosmovisões e história. É uma

memória coletiva que é recriada coletivamente para que em cada momento ecoe a experiência

dos antepassados. Em presença da voz e da escuta cada geração com "boca", "olhos" e

"ouvidos" atentos às necessidades cotidianas, realiza uma leitura da vida e da história, na busca

de orientação diante das problemáticas concretas. Assim, a tradição e o passado podem ser

re-significados como utopia e futuro. Em Israel (no período histórico aqui considerado e a partir

do livro de Daniel) tais perspectivas se fazem notar intensamente.23

Assim, desde a antigüidade a escrita representava, de um lado, aumento de sabedoria

e, de outro, uma armadilha através da perda da transmissão de conhecimento e valores entre as

gerações.24 Ernst Robert Curtius ao abordar o livro como símbolo diz que entre os gregos

dificilmente encontraremos na sua poesia a utilização de um sentido figurado para livro ou

escritura como encontramos em outras culturas:

“Conta Sócrates que o deus egípcio Teuth (isto é, Thot), inventor da escrita, recomendara sua invenção ao rei Thamus: ela tornaria os egípcios mais sábios e preservaria sua memória. O rei, porém, não aceitou: ‘Isso causará

21 Apud BENTZEN. Aage (1968a: 119). 22 Cf. ZUMTHOR, Paul (1997a: 13). 23 Ver SILVA, Rafael Rodrigues da (2003: 197-210). 24 ZUMTHOR, Paul (1997a:19). A memória, que é transmitida por textos, objetos, pedras, edifícios e máquinas, embora dê a impressão de preservar o passado em sua totalidade, reproduz apenas parte do que foi vivenciado anteriormente.

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esquecimento nas almas dos que o aprenderem, pois deixarão de exercitar a memória... Da sabedoria só ofereces aos discípulos a aparência, não a verdade’. Os apontamentos escritos, segundo Sócrates não passam de um auxílio mnemônico para quem já sabe do que trata o escrito. Jamais podem proporcionar sabedoria. Só o pode fazer o discurso oral, escrito cientificamente na alma do estudante”.25

Conforme Ernst Robert Curtius, a escritura e/ou o livro aparecem em linguagem figurada

ou metafórica em todas as épocas da literatura universal, evidentemente com as suas diferentes

características em cada cultura. Das metáforas apontadas por ele podemos destacar as

seguintes: nas culturas antigas o livro se reveste de caráter sagrado26, chegando a ser

designado como escrito pelas divindades; já na Grécia antiga representa instrução filosófica oral

e memória, pois a vida é comparada a um livro; das poucas metáforas que vêm da literatura

romana, aparece em meio às guerras o conceito de “Livro da História”, no qual alguém é inscrito

“com letras de ouro”. Porém, na tradição bíblica herdamos a imagem da Escritura Sagrada, das

Tábuas da Lei e o Livro da Vida como “escritas pelo dedo de Deus”, onde no início da Idade

Média, os mártires são vistos como “páginas atribuídas a Cristo” e na obra de Isidoro aparece

uma concepção mágico-mística dos elementos da escrita27; já, no apogeu da Idade Média,

utiliza-se a rubrica como metáfora para o sangue derramado pelos mártires e o rosto humano é

comparado a um livro, no qual se devem ler os seus pensamentos; também nos sermões dos

pregadores são utilizadas metáforas acerca do livro a partir dos textos bíblicos28; do século XIII

25 Cf. CURTIUS, Ernst Robert (1996: 377-78). 26 Cf. CURTIUS, Ernst Robert (1996: 377). Privilégio de uma casta de sacerdotes e veículos de idéias religiosas. Aí encontramos livros “celestiais”, “sagrados” e “litúrgicos”. A própria arte de escrever participa do mistério, e ao escritor é reconhecida especial dignidade. 27 Isidoro afirma também que os “antigos” dirigiam as linhas como o lavrador abre os sulcos (Et. VI, 14,71). Escreviam “em bustrofêdon” (em grego bostrofhdo,n: “como os bois de um sulco para o outro”, isto é, escrevendo alternadamente da esquerda para a direita, depois da direita para a esquerda). A metáfora “relha” por “estilo” não ocorre, ao que eu saiba, em nenhuma outra obra da literatura romana, mas é encontrada nos poetas medievais. Deve, portanto, em qualquer caso, provir de Isidoro. A base da comparação é, naturalmente, mais antiga. Já em Platão encontramos a comparação do cultivo do campo com a escrita. Os romanos raramente usavam arare como metáfora do ato de escrever.. O composto exarare (“exarar”) é muito mais freqüente, mas parece não ser mais sentido como expressão figurada, significando apenas “assentar no papel”, “reduzir a escrito”... A metáfora de “arar” por “escrever” passou da literatura medieval para as línguas vulgares. Cf. CURTIUS, Ernst Robert (1996: 388). 28 Uma pregação sobre Dt 4,1 atribuída a Hildebert de Lavardin, que explica aos ouvintes como se prepara um livro: “primeiramente o escritos, com uma raspadeira, limpa o pergaminho da gordura e da

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em diante aparece com força a imagem do “Livro da Natureza”29 ou “Livro da criatura”. Enfim,

perpassa nas entrelinhas da literatura a conotação do livro e da escritura como símbolo da

sabedoria. (“Tua pena é a sabedoria, o mundo, o livro em que escreves”).

Nesta perspectiva, a busca de um livro de Daniel só nos faz ver que estamos diante de

um conjunto de livros, ou melhor dizendo, de textos que foram sendo produzidos por grupos

sociais diferentes. No entanto, estes textos não estão preocupados em transmitir a exatidão dos

fatos, mas em descrever uma conjuntura vivida e experienciada. O modo de transmissão, seja

através da fala/palavra e da escrita, consiste em comunicar histórias, temas e experiências.

Estes elementos e tantos outros estruturam as narrativas.

A composição do livro de Daniel deixa entrever os marcadores de uma transmissão oral.

Analisando atentamente as versões do livro que chega até os nossos dias (o aramaico: 2,4-7,28;

o hebraico: 1,1-2,3 e 8-12 e o grego: 3,24-90 e 13-14) iremos perceber não só as costuras feitas

pelo redator, mas também a dinâmica de transmissão do relato e a sua releitura no novo texto.30

Assim, a memória dos acontecimentos e transformações do 3o século ao 1o a.E.C. é comunicada

pela tradição e transmissão orais.

Um aspecto importante a ser ressaltado é o do intérprete e do ouvinte na relação entre

oralidade, escrita e memória. Nesta dinâmica, o ouvinte é receptor de um texto oral e, ao mesmo

tempo, co-autor desse texto ao transmiti-lo oralmente.31 Por isso, temos de levar em conta que o

texto de Daniel, no seu conjunto, é o resultado de um processo, no qual intercalam-se a tradição

oral, a transmissão oral, a memória e a escritura. Por um lado, a primeira etapa do surgimento

sujeira mais evidente. Depois com uma pedra-pomes, remove os pêlos e as fibras. Sem isto, o escrito não serviria nem duraria. Depois pauta o pergaminho para que a escrita seja regular. Tudo isso deveis fazer também com o vosso coração”. Cf. CURTIUS, Ernst Robert (1996: 394). 29 “Vê, a Natureza é um livro vivo, incompreendido mas não incompreensível; pois teu coração sente forte e grande desejo de juntar em si toda a alegria que pode haver no mundo, toda a luz do sol, todas as árvores, toda beira-mar, todos os sonhos” (Goethe). Cf. CURTIUS, Ernst Robert (1996: 402). 30 Mais adiante iremos detalhar estas diferenças literárias no livro de Daniel ao tratar de sua formação, “edição” e circulação. 31 Ver ZUMTHOR, Paul (1997a: 221-256); (2001: 96-116) e (1997b).

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do texto de Daniel está na formação de uma pequena coleção (Dn 2-7) de legendas ou histórias

da corte32, que, numa segunda etapa são agregados os capítulos em hebraico (Dn 1 + 8-12),

demonstrando que o texto base já existia sob uma forma literária. Ou seja, o livro aramaico de

Daniel já tinha passado de texto oral para texto escrito, constituindo-se numa espécie de

panfleto.33 Na seqüência, o livro hebraico que é um conjunto de compilações toma o texto

transmitido e o recria numa nova dimensão. Uma terceira etapa, consiste dos enxertos que

foram colocados num livro já organizado, ou seja, o texto grego (Dn 3,24-90 e 13-14). Aqui, a

memória desempenha um papel de grande importância, pois antes de ser escrita, a apocalíptica

de Daniel foi memória transmitida, e antes de ser memória foi palavra e voz da tradição oral.34

Entendo que este processo dinâmico que vai da tradição oral para a memória ou

panfleto, da memória para o escrito e deste para a transmissão e releitura, é marcado por

constantes mudanças e ampliações. A memória e o texto escrito amplificam a tradição oral, pois

nas nossas lembranças se processa a construção de um saber que chega até nós como

fragmentos de um conhecimento, que, na sua origem, diz, analisa e interpreta uma dada

conjuntura e, que ao serem lembrados ou esquecidos, são reinterpretados à luz de novos pontos

de vista. Dois exemplos para ilustrar o que estou querendo dizer:

No capítulo 2 do livro de Daniel é relatado o sonho de Nabucodonosor; neste, uma

grande estátua, constituída de vários materiais como ouro, prata, bronze e que tem os pés de

ferro e barro. A interpretação de Daniel sobre o sonho amplia o ferro e o barro para os dedos (2,

33.41-43). Na descrição das visões de Daniel, no capítulo 7, aparece a figura do Filho do

Homem (13), que na interpretação é transformado na categoria dos Santos do Altíssimo (22ss).

32 Os capítulos 2-6 + 1 de Daniel são comumente considerados nos comentários bíblicos como romances populares, histórias paradigmáticas, parêneses, profecia ex-eventu, fábulas, parábolas, alegorias, profecia interpretada, entre outras classificações do gênero literário. 33 Utilizamos aqui uma conceituação formulada por Milton Schwantes na sua análise sobre a formação do livro de Amós. Cf. SCHWANTES, M. (1987: 79-92). 34 Para M. Scholz o surgimento da escritura está ligado ao desenvolvimento do comércio, das comunicações e do direito; enquanto para M. Clanchy, o que favoreceu a difusão da escritura é a relação estreita que ela mantinha com a voz. Apud ZUMTHOR, Paul. (2001: 97).

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Na movência do texto oral para a escritura, não só acontece uma transcrição, mas uma

trans-criação das imagens e da voz. O texto oral ao ser fixado na escritura, de certa maneira,

acaba sendo transmitido e conservado. Ou seja, a existência da tradição oral depende da

transmissão oral e da escritura. O que acontece no livro de Daniel é que a escritura foi um dos

caminhos para a conservação dos contos, imagens e símbolos apocalípticos. Mas, ao mesmo

tempo, foi provocadora de novas leituras e de uma transmissão oral. O texto, como escritura, se

integra na dinâmica da memória como parte de um texto mais amplo.

A memória35 é muito mais uma reconstrução criativa do que uma simples recordação

exata dos acontecimentos, pois numa dada conjuntura e situação política as pessoas (envolvidas

ou não) lembrarão ao cruzar os seus dados e noções comuns com os dos outros. Assim, a

lembrança (enquanto elemento essencial na memória coletiva) desafia os indivíduos a se

colocarem desde o ponto de vista do outro. A interação entre memória individual e memória

coletiva se assenta na história vivida e não na história aprendida36; pois “ao lado de uma história

escrita, há uma história viva que se perpetua ou se renova através do tempo”37. Diria como

35 A memória é uma construção coletiva sobre o passado feita a partir das condições sociais que o grupo vivencia no presente. Ao mesmo tempo, a lembrança do passado informa o grupo sobre o seu presente, de forma que passado e presente se constroem mutuamente – são socialmente percebidos por meio de informações que um projeta sobre o outro. Na sua função de explicar o presente, a memória (que às vezes se apresenta na forma de relatos míticos) equivale à herança de uma « lente cultural » que define a visão e a interpretação que o grupo pode ter sobre os fatos que vivencia. Como um retrato do passado, a memória coletiva tem também um papel importante na construção da identidade do grupo. Os indivíduos se apresentam aos outros e enxergam a si mesmos tendo como referencial básico as suas origens, desenhadas a partir de uma memória compartilhada e transmitida através das gerações. Neste sentido em particular, a memória coletiva expressa os valores culturais do grupo, pois se a memória é constituída por uma seleção de feitos e marcos « memoráveis », ou seja, dignos de lembrança, ela demonstra os critérios que o grupo utiliza para fazer sua seleção. Assim sendo, a memória coletiva pode ser compreendida como a moldura cultural que define os parâmetros para a realização dos processos cognitivos da memória particular de cada indivíduo que dela participa. Ver LIMA, Deborah de Magalhães e ALENCAR, Edna Ferreira (2001: 27- 48); CONNERTON, P. (1989) e BARROS, Myrian Moraes Lins de (1989: 29-42). 36 Ver Memória coletiva e memória individual. HALBWACHS, Maurice (2004: 29-56). 37 HALBWACHS, Maurice (2004:71). Halbwachs a propósito deste problema afirma: “Assim, cada sociedade recorta o espaço a seu modo (...) de modo a constituir um quadro fixo onde encerra e localiza suas lembranças (...) . Não é certo então, que para lembrar-se, seja necessário se transportar em pensamento para fora do espaço, pois pelo contrário é somente a imagem do espaço que, em razão de sua estabilidade, dá-nos a ilusão de não mudar através do tempo e de encontrar o passado no presente; mas é assim que podemos definir a memória; e o espaço só é suficientemente estável para poder durar sem envelhecer, nem perder nenhuma de suas partes”. (pp.166-67).

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João Guimarães Rosa: a estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a

História.38

Na leitura das narrativas de sonhos, nos contos e visões do livro de Daniel percebemos

o texto não como a apresentação de uma dada conjuntura, mas como um dos materiais

necessários e imprescindíveis para reconstruí-la.39 Nesta tentativa de reconstrução, o texto traz

as marcas da memória e do esquecimento.

Diante da circulação das imagens presentes no livro de Daniel, podemos sugerir que os

autores deste livro (profético, sapiencial e apocalíptico) jogam com os ouvintes e leitores. O texto

é um jogo.40 Por um lado, deixa transparecer as intencionalidades dos autores em seu contexto

presente e, por outro, suscita nos leitores, a imaginação e a interpretação, aspecto que desloca o

texto para novos tempos: o tempo da leitura e da hermenêutica. Assim, o mundo presente no

texto sofre as mutações através da capacidade de imaginar e interpretar daqueles que recebem

o texto e que se tornam os grandes transmissores do texto. Nesta perspectiva, o mundo do texto

de Daniel é concebido como se fosse realidade. Um exemplo: a narração sobre a presença,

participação e vida de um judeu exilado na corte de Nabucodonosor é apenas uma conjuntura

encenada para revelar a situação de um povo num dado contexto, que por sinal, dialoga com o

mundo vivencial e experimentado pelo leitor ou ouvinte.

Na relação entre poeta e historiador, Spingarn vai dizer que eles têm muitos pontos em

comum. Assim, podemos relacionar o historiador com aqueles que criaram as narrativas

presentes no livro de Daniel, pois descreve lugares, pessoas, seus diálogos, suas leis; as

representações de vícios e virtudes. Porém, o historiador ao narrar a história procura contá-la

38 João Guimarães Rosa (2001: 29). . 39 Iúri Lotman afirma que “todo texto contribui tanto para a memória como para o esquecimento. E um texto não é então a ‘realidade’ mas os materiais para reconstruí-la. (...) a transformação da vida em texto não é interpretação, mas a introdução de eventos na memória coletiva”. Apud. FERREIRA, Jerusa Pires (1994: 118). 40 Cf. Wolfgang Iser. O jogo do texto. In: LIMA, Luiz Costa (2002b: 105-18).

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exatamente como aconteceu, ao passo que ao narrador de contos e sonhos sempre haverá a

perspectiva de um aspecto a mais a ser acrescentado. Este tipo de texto narrativo sapiencial e

apocalíptico é aberto e permite que o leitor ou o grupo e comunidade receptora acrescente o que

deseja.41

O esquecimento pode ser visto como um dos mecanismos utilizados pelas culturas

hegemônicas e colonizadoras para apagar certos elementos da tradição que estão presentes na

memória coletiva. Porém, podemos percebê-lo como um fundamento (pivô) no universo das

narrativas poéticas e contos populares.42 Esquecimento e memória devem ser vistos como

instrumentos de ação, no qual os fatos selecionados pelos indivíduos e/ou comunidade e o

esquecimento demarcam a originalidade do que está sendo narrado. “O esquecimento seria

responsável pela continuidade, pela memória e até pela lembrança (...). É o esquecimento que

vem quebrar uma certa continuidade na ordem mental, sendo responsável pela criação de uma

outra ordem”.43

Entendendo a memória como a capacidade de reter fatos e experiências do passado e

de retransmiti-los às novas gerações é que nos deparamos com três tipos de memória: 1) a

memória individual que contém as vivências e experiências de um indivíduo (mesmo inserido

num determinado grupo social); 2) a memória coletiva que traz à tona fatos e aspectos da vida

social que são julgados relevantes pela sociedade; e, 3) as memórias subterrâneas ou marginais

41 Spingarn. Apud. LIMA, Luiz Costa (2002a: 260). 42 Cf. ZUMTHOR, Paul (1997b: 16). Ver FERREIRA, Jerusa Pires (2004: 91-127). “Mas o que fica em várias passagens ressaltado é que de um modo ou de outro a cultura se dirige contra o esquecimento. Vive-o, transformando-o num dos mecanismos da memória. Por conseqüência, podem-se criar hipóteses sobre precisas limitações no volume da memória coletiva que determinaram a substituição de uns textos por outros. Mostra que existe um profundo abismo entre o esquecimento enquanto elemento de memória e enquanto elemento de destruição desta memória. Ocorre levar em conta que uma das formas mais agudas de luta social na esfera da cultura é a imposição de uma espécie de esquecimento obrigatório de determinados aspectos da experiência histórica. É claro que esta afirmação tem de ser relativizada, e não existe passividade que acolha totalmente um “esquecimento obrigatório”, imposto por um sistema político ou pela comunicação de massas”. (p.79). 43 FERREIRA, Jerusa Pires (2004: 94).

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que correspondem às versões sobre o passado dos grupos dominados e que são transmitidas

oralmente44.

À luz destas questões sobre tradição oral, memória, escritura e transmissão oral é

preciso ter presente o conceito de livro e de texto no período de formação e compilação das

versões aramaica, hebraica e grega de Daniel.

A origem do texto hebraico, ainda é uma das questões não resolvidas na exegese e no

estudo literário. Uma antiga opinião dizia que o Texto Massorético45 já estava fixado em tempos

antigos e daí fora passado com fidelidade absoluta às gerações posteriores, porém, há muito

tempo esta teoria tem trilhado os caminhos da incerteza. Dizemos isto simplesmente porque

devemos nos aproximar desses textos antigos da escritura hebraica e dos povos vizinhos

atentos à sua pluralidade. Visto que este texto existia desde o início em diferentes formas.46

Tomando em mãos as mais variadas introduções ao Antigo Testamento perceberemos que a

evolução dos textos da Bíblia Hebraica segue um processo que vai da oralidade à escrita de

pequenas unidades de textos (perícopes), destas pequenas unidades aos textos proto-

massoréticos, e destes até a compilação feita pelos massoretas.

A tradição oral é muito forte e presente em Israel e Judá desde os tempos do pré-exílio e

tem um longo caminho na formação e transmissão das escrituras hebraicas. É bom lembrar que

as perícopes se apresentam carregadas de tradições orais, e estas, estão assentadas nas mais

variadas comunidades e grupos. 44 VON SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes (2004). In: www.ufpa.br/nupe/artigo1.htm (retirado da Internet no dia 10/09/2004). 45 Ver definição de FRANCISCO, Edson de Faria (2005: 209-270). “A designação ‘Texto Massorético’ (lat. Textus Masoreticus, heb. hr’AOSM”h; xS;nU, nussaH ham-mässôrä, texto da Massorá), normalmente abreviado como TM, é uma expressão criada e utilizada pelo mundo acadêmico. Tal denominação refere-se a um grupo de manuscritos hebraicos da Bíblia, datados desde os primeiros séculos da Idade Média, sendo que todos apresentam semelhanças entre si. Estes manuscritos possuem um padrão elevado de uniformidade textual devido ao trabalho consistente e meticuloso dos escribas judeus do período medieval, conhecidos como massoretas, que adotaram um rígido sistema de preservação e de transmissão do texto da Bíblia Hebraica sem corrupções e alterações significativas” (p.209). Ver também MAINVILLE, Odette (1999: 17-22). 46 Cf. BENTZEN, Aage (1968a: 63-65).

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Três espaços sócio-culturais são marcantes no período do Segundo Templo (515 a.E.C.

a 70 E.C.) para a conservação da memória e das tradições: a casa camponesa; as sinagogas e

o Templo de Jerusalém. Por um lado, estes espaços são marcados pela necessidade da

memória para garantir a identidade judaica diante das mudanças culturais e da difícil realidade

da dispersão e, por outro, aparecem as tentativas de lideranças e escribas na arte de contar e de

reunir histórias, acontecimentos, lembranças, festas, cantigas, ditos e provérbios, parábolas e

alegorias, narrativas populares, contos e casos. Dois verbos em hebraico demonstram uma das

atividades dos escribas e das lideranças no meio do povo: contar (rp;s,.: contar, relatar (verbo

denominativo), tendo os seguintes substantivos de origem: rp,se: escrito, livro; h,>,**()_{r'p,,, ,,si: livro;

rpeso: escriba; rp,,.s.: censo, contagem; hr'pos.: número e rP,.s.mi: número)47 e reunir (@s"a':

reunir, ajuntar, recolher).48 Interessante que por trás destes verbos estão designados dois

grupos sociais ligados à recuperação e manutenção das tradições do povo: os escribas (rpes) e

os asafitas ou o grupo de cantores de Asafe (@s"a').

Neste rico ambiente de memória na região da Judéia surgem escolas de leitores, ou

seja, aqueles que vão exercitar a leitura dos textos e pontuar as diferenças entre as palavras

47 Sepher é empregado para designar a atividade matemática em geral. Pode-se fazer a contagem de objetos, pessoas, períodos de tempo, ações, pensamentos, etc. O verbo no grau piel tem conceito reiterativo de “recontar”, assim, passa a ter também a idéia de “narrar”, “contar”, “anunciar”, “demonstrar”. Neste sentido, as palavras sepher e sopher, consideradas empréstimo lingüístico do acadiano (sepher vem do acadiano siphru, “escrito”, “mensagem” [o vocábulo acadiano procede de saparu, “enviar”, “escrever”] e sopher, do acadiano sapiru, “escriba”. A posição social e o trabalho do sopher eram de grande importância no antigo oriente médio. Na Babilônia a arte dos escribas começou em tempos bem remotos e era regulamentada e estimulada mediante o estabelecimento de escolas para escribas, nas quais se dava uma educação formal rigorosa em todos os aspectos da cultura escrita. No Israel pré-exílico a posição social e o trabalho dos escribas não estavam bem definidos. Sabe-se que o ofício existia e que o escriba, aparentemente, gozava de uma posição favorável e de responsabilidade no governo, tendo até mesmo aposentos especiais no palácio. Em 2Rs 25,19 há um escriba que tinha a função de “alistar o povo da terra” (para o serviço militar). O substantivo sepher veio também a designar documentos legais importantes (Dt 24,1.3; Is 50,1: Jr 3,8) ou cartas oficiais (1Rs 21,8; 2Rs 19,14: Est 1,22: Jr 29,1). Não há dúvida de que tais escritos ou livros existiam principalmente na forma de rolos (Nm 5,23; Sl 40,7; Is 34,4; Ez 2,9), escritos em colunas (Jr 36,23) e às vezes dos dois lados (Ez 2,9-10). Cf. HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1056-58). 48 ~yrI+p'S. / “livros” – Dn 9,2 A Septuaginta traduz bi,bloij (livrinho, folheto) daí a conotação de escritura: bibli,a ta. a[gia – “livros santos_ - 1Mc 12,9 e iera.n bi,blon – “livro sagrado – 2Mc 8,23.

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lidas e as palavras escritas. Estou falando da riqueza na língua hebraica do ketiv e qerê. Devido

a existência de variantes nos antigos manuscritos aplicam-se estes termos para determinar

quando uma palavra deve ser lida de forma diferente da que foi escrita. Daí o uso da palavra

bytiK. / ketîv que literalmente significa o que está escrito; enquanto que a palavra yrEq. / qerê

ou qerî (do aramaico yrEq. YrIq.), literalmente quer dizer o que é lido.49

Deste modo, todo o trabalho de compilação, tradução, transmissão e compreensão dos

textos que compunham a tradição das Escrituras hebraicas têm os seus inícios formais no

período da elaboração do Cânon Hebraico (a partir do final do I século E.C.) talvez marcado pela

disputa entre judeus e cristãos.50 Estes textos proto-massoréticos foram utilizados e copiados

por fariseus e grupos de escribas do templo de Jerusalém.51 No entanto, o trabalho dos

massoretas tem o seu desenvolvimento na Idade Média.

No entanto, é forte ainda a concepção de que a autoria dos textos da Bíblia pertencem

aos autógrafos ali presentes, passando pelos manuscritos hebraicos medievais e chegando até

nossos dias em nossas edições impressas. Porém, a descoberta dos Manuscritos de Qumran

trouxe uma nova luz sobre esta questão e, de modo geral, demonstrou a fidelidade com que o

texto hebraico foi conservado e a pluralidade de textos e versões que circulavam entre o Io

século a.E.C. e o IIo século E.C. No tocante ao livro de Daniel foram encontrados oito

49 “As anotações de Qerê e Ketiv são relacionadas a diversas situações textuais próprias da Bíblia Hebraica: eufemismos, grafias incomuns, tipos de grafia (plena e defectiva), correções de formas arcaicas ou dialetais, correções gramaticais, correções estéticas, omissão de letras em algum vocábulo, omissão ou adição de palavras no texto, metátese, leituras errôneas, além de outras peculiaridades”. Cf. FRANCISCO, Edson de Faria (2005: 179). Ver também SILVA, Cássio Murilo Dias da (2000:42): “Um recurso dos massoretas para esclarecer dificuldades com a vocalização, quando esta é incompatível com as consoantes. Ou seja, quando o texto apresenta consoantes de uma palavra com vogais de outra”. 50 Para BARRERA, Julio Trebolle (1996: 53): “quando, porém, os cristãos começaram a servir-se da versão grega dos LXX e do cânon amplo correspondente, os rabinos judeus decidiram estabelecer uma Bíblia única reconhecida e autorizada: a Tanak em língua hebraica, com um texto minuciosamente fixo e com um cânon reduzido, que deixava ‘fora’ os considerados ‘exteriores’ (hîsonîm) ou apócrifos, alguns dos quais figuravam na Bíblia grega dos cristãos”. 51 Caminham nesta direção os comentários de: BARRERA, Julio Trebolle (1996: 327-329); GOTTWALD, Norman K. (1988: 124-125) e PISANO, Stephen. O texto do Antigo Testamento. In: SIMIAN-YOFRE, Horacio (2000: 39-71).

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manuscritos (gruta 4) que conservam a diferenciação entre os textos de língua hebraica e os

textos de língua aramaica. Apresentam algumas adições e variantes que coincidem com a

versão da Septuaginta.52 Vale lembrar que as traduções e/ou as versões de um mesmo relato

(narrativa) ou acontecimento são marcadas, em termos hermenêuticos, pelo deslocamento

contextual que altera o sentido do texto, dando-lhe um novo sentido.

“As Escrituras bíblicas, como toda literatura e mais do que qualquer literatura, são um contínuo reescrever o que já foi escrito. A Bíblia não é somente seus textos, senão também as citações, alusões e ecos de seus livros em outros textos (intertextualidade), que por sua vez permitem descobrir novos aspectos do próprio texto bíblico. Se a literatura bíblica nasce de formas simples como a canção, o provérbio, o oráculo etc., a literatura pós-bíblica nasce da “citação” e é toda ela uma imensa citação do AT. A citação não é simples reprodução de um texto, mas produção de um novo texto. O deslocamento contextual altera o sentido da citação que se pretende mais exata, dando novo sentido ao citado.”53

Porém, dentro das questões literárias é preciso levar em conta a materialidade da

escritura. No Egito, na Mesopotâmia e nas regiões da Síria e Israel foram encontradas algumas

inscrições cuneiformes em pedra. No Egito, essas inscrições estão presentes nos túmulos,

templos, muros, etc.; e na Mesopotâmia, se reduzem aos textos oficiais e às estelas públicas.

Também encontramos registrados em 1 Macabeus e nos Manuscritos de Qumran textos escritos

em placas de bronze (veja 1Mc 8,22; 14,18.26.48 e o Rolo de Cobre). Vale lembrar que a argila

foi se constituindo num dos materiais mais utilizados nas escrituras oficiais, literárias e, até

mesmo, para cartas, recibos, ensino, etc., isto devido a sua forte presença nos vales entre os

rios Tigre e Eufrates e pelo seu baixo custo. Da argila úmida eram modeladas as tabuletas, no

qual se inscreviam os sinais pictográficos ou cuneiformes, estas depois eram colocadas ao sol

para secar. A durabilidade da escritura dependia se a tabuleta sofria um cozimento em forno.

Algumas tabuletas eram conservadas com máxima segurança por conterem textos oficiais e

outras eram devidamente classificadas por se tratarem de conteúdo literário. Até mesmo as

52 Mais detalhes sobre os manuscritos de Qumran ver BARRERA, Julio Trebolle (1996: 330-48). 53 BARRERA, Julio Trebolle (1996: 60).

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cerâmicas quebradas eram utilizadas para diferentes atividades (cartas, recibos, listas,

exercícios escolares, contas, etc.) e eram conhecidas como óstracos.54

A escritura hebraica e cuneiforme mesopotâmica passou das tabuletas para os papiros e

daí para os rolos ou volumes (megillâ ou megillat seper que é traduzida para o grego por

kephalís biblíou). De um lado, os papiros representaram um trabalho mais fácil de ser feito do

que cunhar a escrita em tabuletas, mas, de outro lado, era um material que facilmente se

deteriorava (de modo especial nas regiões mais úmidas). Grande parte dos papiros que foram

conservados, provém do Egito e do Mar Morto e permaneceram guardados por muito tempo em

vasos de cerâmica.

Tendo presente a riqueza da tradição oral; bem como, as compilações e formações de

pequenos textos escritos em diferentes materiais e épocas, isto nos leva a refletir acerca das

versões, circulação e popularização do livro de Daniel. E aqui estamos, diante de um livro que é

texto55 e de um texto que se compõe de histórias contra a História.

“O texto é um palimpsesto que foi exaustivamente escrito e reescrito de tantas maneiras que os estudiosos modernos encontram grande dificuldade em ordená-las. A reedição do que conhecemos como Antigo Testamento quase certamente reflete os conflitos político-sociais que existiam entre os filhos de Israel; tal cânone foi estabelecido pelo clero judaico. O próprio texto mostra que os profetas e reis freqüentemente discordavam, e o tributo atribuído pela Bíblia aos governantes individualmente espelha o valor que lhes é dado pelos editores ligados à Igreja! A narrativa contida no Novo Testamento é produto de uma convulsão social. O cânone, como já sabemos, foi o produto final de acirradas controvérsias sobre o que era ‘herético’ e, portanto, ‘apócrifo’, e o que era ortodoxo...” 56

Inicialmente, podemos dizer que o livro de Daniel se compõe de textos independentes e

que só depois foram reunidos e compilados. Este momento primeiro da escritura de Daniel nos

leva à constatação de que os textos enquanto unidades separadas pertencem a um grupo, lugar 54 BARRERA, Julio Trebolle (1996: 102-103). 55 Curtius ao comparar a literatura com a arte e as fotografias vai dizer: “(...) a literatura, excluindo todas as outras, é portadora de pensamentos, e as artes plásticas, não. Mas a literatura também tem outras formas de movimento, de crescimento, de continuidade, diferentes das artes plásticas... Para a literatura, todo o passado é presente ou pode vir a ser. (...) O livro é muito mais real que o quadro. Nele há uma relação ontológica e a real participação numa existência intelectual... um livro é um ‘texto’. Podemos entendê-lo ou não”. Cf. CURTIUS, Ernst Robert. (1996: 46). 56 Cf. HILL, Christopher (2003: 25).

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sócio-cultural e conjunturas diferentes. São vários livros que mais tarde serão condensados e

organizados numa versão aramaica, depois numa outra versão hebraica e, por fim, numa versão

grega. Ou seja, muitos livros dentro de um livro.

Na aproximação aos textos bíblicos devemos ter em mente, independente da

antiguidade da escrita com relação à tradição oral, é que a tradição oral, em grande medida

costuma ser anônima (sem autoria), enquanto que a tradição escrita na maioria das vezes tende

a identificar a autoria.57 Não estaríamos, observando pelo uso de pseudônimos no livro de

Daniel, num momento intermediário, que conjuga tradição oral, escritura e transmissão?

Justamente esta é uma das questões que devemos ter presente ao ler as versões do livro de

Daniel, juntamente com a quebra do fetiche da autoria individual.

O livro de Daniel – como muitos da Bíblia Hebraica – foi composto ao longo de muitos

anos. Evidentemente que passou por um processo de compilação, com possíveis cortes e

agregações, tradições que foram privilegiadas e outras que foram colocadas de lado. Uma das

tradições carregadas de novidades no livro de Daniel são os contos e legendas dos capítulos 2-

7, que se constituem de relatos leves, amenos, muito conhecidos e com conteúdo teológico

profundo, mas que constantemente correm o risco de serem interpretados superficialmente.58

Nestes capítulos se entrelaçam diálogos, narrativas, sentenças, orações, sonhos, interpretações

e teologia. Estas são algumas das características de como o livro de Daniel é apresentado na

Bíblia Hebraica; e olhando de perto o conjunto do livro percebemos algumas unidades,

provavelmente de distintas fontes, que o compõem. De certa maneira as palavras/orações que

formam o texto têm uma estrutura ou uma rede de relações que são portadoras de sentido.

Porém, vale salientar que deparamos no texto não só com o que está articulado ou explicito, mas

57 Cf. FRYE, Northrop (2004: 242). 58 Ver a opinião de SICRE DIAZ, José Luis (1996: 445-446).

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também com o não articulado e implícito. É preciso descobrir as relações internas do relato,

dando ênfase a uma melhor compreensão de seu sentido.59

A leitura de um texto pelo viés histórico-crítico nos ajuda a compreender as mentalidades

e os tipos de organização sócio-política ou sócio-econômica por trás das palavras. No entanto,

outras aproximações são possíveis, de modo especial, aquelas que se movem entre a

palavra/linguagem e a sua produção de sentido.60 Nesta perspectiva, o estudo de um texto terá

que levar em conta todas as considerações do sujeito (tanto como destinatário quanto como

autor), o que implica no tratamento do texto como expressão de uma mentalidade individual ou

coletiva.61 Do acontecimento ao texto, o “adiante” do texto e a intertextualidade da Bíblia (práxis

e interpretação).62

“A contribuição produtiva do intérprete pertence de modo irrevogável ao sentido da própria compreensão - conduz a ver a interpretação menos como um ato de restauração do passado do que como ajuste ao presente; ajuste não arbitrário, isto é, que violenta a letra do texto, à medida que no presente continua o passado, através das tradições que servem de ponte quanto ao contexto original do objeto interpretado”.63

No bojo das discussões hermenêuticas é que o livro de Daniel tem causado grande

interesse de pesquisa, não somente por ser um livro que sofreu várias colagens e que teve

sérios problemas para ser aceito no Cânon. A leitura do livro de Daniel abarca desde as

59 “A hermenêutica parece estar ligada à diacronia, ao devir do sentido, à semântica ou transformação do sentido das palavras ou dos textos, ao passo que a semiótica concede um lugar privilegiado à sincronia, à simultaneidade, às leis estruturais que dirigem a realização da linguagem”. CROATTO, José Severino (1986: 16). 60 O método semiótico ou semiológico apresenta três pontos importantes: a separação da organização sincrônica das transições diacrônicas; a separação entre língua e palavra e a consideração da linguagem como um sistema (a linguagem como sistema, acontecimento, texto e escrita). 61 RICOUER, Paul. Du conflit a la convergence des méthodes em Exégèse Biblique. In: AAVV (1978a: 219-243). 62 Cf. CROATTO, José Severino (1986: 36-58). Ver também: AAVV. Análisis Estructural y Exégesis Bíblica. 1973. 63 H. G. Gadamer. Apud LIMA, Luiz Costa (2002a: 69). “Pode-se compreender um discurso apenas quando se compreendeu a pergunta da qual ele é uma resposta (...). A pergunta, de cuja reconstrução se trata, não concerne em primeiro lugar às vivências mentais do autor mas sim apenas ao sentido do próprio texto. Quando se compreendeu o sentido de uma frase, i.e., que se reconstruiu a pergunta a que ela de fato responde, deve então ser possível dirigir a pergunta àquele que a fez e à sua opinião, de que o texto talvez seja uma possível resposta” (pp.85-86).

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discussões acerca da origem do cânon, da história do texto e da origem do livro, passando pelas

tentativas de se elaborar uma História das Sagradas Escrituras até chegar em nossos dias em

meio às variadas definições de apocalíptica e suas raízes. De certa maneira, a grande guinada

nos estudos da Bíblia na modernidade se deve a Hermann Günkel que com muita sabedoria

elaborou uma história literária sintético-criativa64, fazendo uma ponte entre a história da literatura

e a história das formas e gêneros literários.

A literatura apocalíptica (bem como a interpretação sócio-política e econômica da Bíblia)

tem recebido especial atenção nos últimos anos65. Uma dos aspectos importantes nesta leitura

reside na busca de correlacionar o texto literário com a realidade66. Porém, a investigação acerca

dos contextos sociológicos dos apocalipses a partir das fontes históricas comuns, resulta numa

tarefa não tão fácil de ser realizada, pois não temos informações sobre os grupos e/ou indivíduos

que os produziram e escreveram, devido ao não conhecimento do funcionamento e utilização

dos textos apocalípticos e, também, por estarmos diante de textos antedatados, que utilizam o

recurso da pseudonímia67 e que se apresentam como prophetia ex eventu. Estes recursos têm

como função a arte de convencer/exortar e anunciar uma mensagem.

“La ‘revelación’ se traspone a un tiempo (o a un personaje) clave en la tradición del grupo, de modo que el destinatario del texto puede comprobar que todo se ha cumplido hasta su momento histórico; por tanto, también se cumplirá lo que falta, el fin de la crisis en que vive y, por lo mismo, la liberación/salvación futuras. Por no tener en cuenta este fenómeno literario y cosmovisional, algunos pueden sostener la simultaneidad del autor del libro de Daniel con el escenario literario (el siglo VI A.C.). Con deducir de allí que el texto quiere describir y anticipar una historia futura (que puede "estirarse" hasta nosotros en base a combinaciones increíbles), todo parece satisfecho. Pero no es así. Todo lo contrario, pues se desvanece el mensaje especifico del texto apocalíptico, lo que quiere decir, en el caso de Daniel, a los judíos fieles a sus

64 Expressão de BENTZEN, Aage (1968a: 23). 65Ver o balanço elaborado por WOODRUFF, Archibald Mulford e NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza (2000: 227-245). 66Claudio Bedriñán por exemplo vai propor uma leitura do livro do Apocalipse a partir da dimensão sócio-política da linguagem simbólica. Toma como referência as questões apresentadas pelos seguintes autores: David E. Aune, Elisabeth Schüssler Fiorenza, Pierre Prigent, John G. Gager, Adela Y. Collins, George W. E. Nickelsburg, David L. Barr, Leonard L. Thompson e Jan A. Du Rand. In: “Apocalipsis una comunidad que resiste al imperio”. http://www.franciscanos.net/teologos/biblia/apocresisten.htm. (retirado em 15/09/2004). 67 Implica um autor diferente, bem como outra situação e outros destinatários que os enunciados no texto.

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tradiciones, agobiados por la presión política, cultural y religiosa de los reyes seléucidas, en particular por Antíoco IV Epifanes (siglo II A.C.)”.68

A grande maioria dos autores que comentam a tradição apocalíptica, afirmam que esta

literatura surgiu no período pós-exílio. Ambiente este marcado pela centralização no Templo e na

Lei. Grupos remanescentes e desejosos da volta dos tempos áureos da monarquia de

Israel/Judá aceitam a crítica da profecia de que a situação de crise instaurada pelo exílio foi

provocada pela quebra da Aliança. Resultado dessa afirmação está no regime da lei e do templo

como o único capaz de garantir a fidelidade e a volta a Javé. Para Pedro Trigo, a literatura

apocalíptica na forma de visões e interpretação de enigmas por parte de alguém que tenha nome

de prestigio entre o povo (um sábio, Daniel, um homem de Deus, Salomão, Enoc, e outros),

demonstra a existência de um mundo celeste como prefiguração do terrestre e anuncia uma

ação próxima do Deus da Aliança em favor de seus fiéis para libertá-los (nos moldes da

profecia), porém, a libertação não se dará neste tempo e consistirá na passagem para outro

tempo, através de uma guerra sem quartel entre os detentores do poder tirânico, os impérios e

as forças celestes de Deus69.

Do período de dominação persa em diante tem grande difusão a apresentação de

profecias com o recurso da pseudonímia e/ou pseudoepigrafia. Mas de que consiste esta

pseudonímia? A pseudonímia se resume em destinar a autoria de um texto ou livro na atualidade

a um personagem do passado e com isso esboçam pseudoprofecias.70 Este recurso utilizado

pelos textos apocalípticos tenta esboçar também uma expansão da história para além dos fatos.

É o que podemos encontrar no Apocalipse das Semanas, no Apocalipse Animal de 1 Enoque,

em Daniel 10-12, em Jubileus 23, em 4Q390 e nos fragmentos do Pseudo-Daniel.

68 Cf. CROATTO, J. S. (1990/3: 131). 69 Cf. TRIGO, Pedro. (2003). In: http://www.servicioskoinonia.org (retirado da Internet no dia 14/02/2003). 70 Ver METZGER, B. M. (1972: 3-24).

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Nesta perspectiva podemos dizer que o nome Daniel pode ser também um pseudônimo

que era utilizado para dar autoridade a um grupo ou movimento que atuou no segundo século

a.E.C. A identidade de Daniel é desenvolvida assim, através de um conjunto de narrativas

acerca da participação e atuação de judeus na corte babilônica. Muitos autores apostam na

presença de um grupo de sábios e piedosos, conhecidos como maskilim, que atuam diretamente

na instrução das pessoas.71

Daniel aparece como um intérprete de sonhos e de sinais misteriosos, a exemplo de

José que fora vendido como escravo ao Egito pelos seus irmãos (Gn 37-50). Em termos

políticos, Daniel funciona como uma espécie de conselheiro e crítico junto a reis a quem prediz a

elevação e caída de reinos. As predições apocalípticas de Daniel 7-12 têm caráter político. Os

contos de Daniel 1-6 demonstram os papéis sociais de aspiração dos maskilim e é um indicativo

de que eles se caracterizavam como uma espécie de conselheiros religiosos em negócios

políticos.72

Neste sentido, por mais que a narrativa se apresente carregada de símbolos e imagens,

faz-se necessário na leitura levar em conta que o texto interpreta uma conjuntura de crise e, com

isso, quer suscitar no ouvinte e leitor o despertar para a situação em que está inserida a

comunidade ou grupo social73. Por isso, muitos comentários sobre a literatura apocalíptica

atribuem como um dos objetivos dos textos o de provocar uma saída da situação de crise74 (vale

salientar que nem todos os apocalipses evocam uma realidade de crise75).

No entanto, “é tarefa do historiador, não só analisar suas formas de literatura, sua história, sua origem, para mostrar como o material internacional, folclórico,

71 Mais adiante falaremos deste grupo que está por trás do livro aramaico de Daniel. 72 Ver DAVIES, Philip R. "Reading Daniel Sociologically". In: WOUDE, A. S. van der (1993: 355). 73Veja os artigos da revista Semeia n.36, Decatur, GA: Scholars, 1986. 74HENGEL, Martin (1974) nos diz que a cosmovisão apocalíptica resulta de dois fatores: de um lado, da experiência de vida durante a aguda crise que muitos judeus enfrentaram com a invasão da cultura helênica em Jerusalém e, de outro, da forte influência que receberam do pensamento helenista. 75John J. Collins apresenta uma análise de textos apocalípticos na conjuntura do Segundo Templo. In: COLLINS, John J. (1997c).

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poético e teológico deixou sua marca nele, e estudar sua função na vida cúltica e diária; mas também mostrar como as formas de literatura são usadas estilisticamente, e em compilações eruditas, que não obras de homens religiosos e de teólogos que as colecionam e moldam, até à época em que o Cânon exclui o que não é considerado como divinamente inspirado, e portanto normativo para a fé e para a vida”76.

Para uma compreensão do processo de formação do livro de Daniel deve-se levar em

conta o método histórico-crítico, tendo presente que o Cânon tem sua origem num processo de

seleção em meio a um grande número de escritos que não foram aceitos e outros que foram

aceitos com ressalvas.77 Se se considera os livros apócrifos enquanto pseudoepigráficos (textos

que foram produzidos sob um nome fictício ou pseudônimo), automaticamente teremos que

classificar o livro de Daniel como um texto apócrifo. Porém, pelo fato de Daniel ter sido aceito no

Cânon não é apropriado aplicar aleatoriamente o termo pseudoepigrafia para os escritos

apócrifos, pois nem todos os livros são classificados como pseudonímicos.78 Muitos textos são

aceitos e outros são simplesmente excluídos. Se compararmos os textos apocalípticos de

Daniel, do Livro dos Vigilantes e do Livro dos Jubileus encontraremos muitas características em

comum, principalmente, na reafirmação da identidade moral e étnica de Israel; porém, o que

ocorreu para o livro de Daniel ser aceito no Cânon e os outros não?

76 Idem., pp.25-26. 77 Neste aspecto é que se encaixa a expressão apócrifos (apokryphos) que tem o significado de “escondido, secreto”. Na tradição cristã tem a conotação de escritos que foram excluídos do Cânon ou excluídos do uso público. Podemos conferir as várias denominações dos livros apócrifos na obra dirigida por DIEZ MACHO, Alejandro (1984/1: 27-30). Segundo FERREIRA, Jerusa Pires (1992: 83) “entende-se, em geral, por apócrifo uma obra ou fato sem autenticidade de autoria ou cuja autenticidade não se aprovou. Em definições correntes significa também aquilo que é oculto, escondido, encoberto, restrito à consciência de alguns (...). A proibição de livros, a definição destes como não-canônicos, nocivos ou falsos liga-se à luta da Igreja contra as correntes de oposição dentro do cristianismo; assim as chamadas heresias, que continham com freqüência idéias sociais avançadas”. 78CROATTO, José Severino (1990: 16): “Quanto à maneira como se transmite a revelação, pode ser uma visão, uma audição (discurso, diálogo), uma viagem a outro mundo, ou a recepção de uma escritura ( como as “tabuinhas celestiais” do Enoc etíope 93,2 ou 81,1-2). Junto com o meio pelo qual se dá a revelação há também um mediador transcendente (anjo, na maioria dos apocalipses: Cristo, no NT) e, naturalmente, um receptor. Este geralmente é pseudônimo (Enoc, Moisés, João, etc.), o que não responde ao intento de legitimar um texto recorrendo a um personagem significativo e aceito (o que se dá em outros contextos) mas sim a uma intenção básica destes textos que é a de criar segurança no desenlace da história. Isto tem a ver com a periodização da história: o receptor da revelação aprende tudo o que acontecerá no mundo até o fim dos tempos, mas o leitor do texto que contém a revelação está no último espaço de tempo antes do fim escatológico”.

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Evidentemente, muitos interesses e questões doutrinais e de fundamentos da prática

religiosa estarão em jogo. Por enquanto, podemos pensar como Elaine Pagels que o livro de

Daniel não tenta a todo custo imaginar um inimigo sectário e nem tampouco condena a maioria

de seu povo como apóstatas. Enquanto o livro de Daniel reafirma a identidade tradicional de

Israel e, contrariamente, os outros livros destacavam uma minoria significativa, isto quer dizer

que opunham-se nestas literaturas diferentes grupos judaicos.79

Talvez seja por isso que facilmente encontramos no livro de Daniel com duas fortes

características literárias da apocalíptica: a periodização da história e a pseudonímia, que ajudam

o autor a falar da história presente, projetada no passado e, ao mesmo tempo, prevendo

acontecimentos futuros.80 Os autores apocalípticos legitimavam a sua mensagem e buscavam

estabelecer uma conexão com os personagens do passado e da tradição do seu povo.81

A pseudonímia, os símbolos e as visões representam um jeito dos autores apocalípticos

preservar a tradição, porém, trazendo à tona as suas releituras e retrospectivas da história a

partir de um olhar futurista e inserido num contexto social de opressão que estava sendo

enfrentado.82

No livro aramaico de Daniel nos deparamos com a grande reputação de Daniel como

interpretador de sonhos e de sinais misteriosos (como descreve o capitulo 5: a escritura na

79PAGELS, Elaine (1996: 84-85). 80H. H. Rowley, no seu livro The Relevance of Apocalyptic (A importância da Literatura Apocalíptica: um estudo da literatura apocalíptica judaica e cristã de Daniel ao Apocalipse publicado pelas Paulinas), no primeiro capítulo apresenta uma revisão dos diversos estudos acerca das origens da apocalíptica, girando em torno dos dois últimos séculos a.E.C. e o primeiro E.C. Rowley julga a apocalíptica autêntica sucessora da profecia e que é difícil contrapor a idéia de que a apocalíptica seja filha da profecia. Porém, na linha de Robert Henry Charles, busca estabelecer as diferenças entre profecia e apocalipse; o profeta fala do ponto de vista do presente, enquanto que o apocalíptico se interessa pelo futuro. Apresenta uma explicação acerca da pseudonímia, que é utilizada pelos autores apocalípticos e, principalmente pelo autor do livro de Daniel. Ver DELCOR, Mathias (1987). 81 Cf. VANNI, Ugo. (1989: 10). Vale salientar que a pseudonímia (constante nos escritos apocalípticos) não aparece no Pastor de Hermas. Ver AUNE, David. (1996: 512). 82 Cf. CROATTO, José Severino (1990: 8-9).

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parede). No conjunto de interpretações de sonhos, Daniel tem grande influência política, pois é

conselheiro e critico dos reis ao predizer elevação e caída de reinos83.

Numa primeira aproximação ao conteúdo do livro de Daniel, percebemos que ele pode

ser dividido em duas partes. Na primeira parte (capítulos 1-6) deparamos com narrativas de

sonhos e interpretações e casos de condenação e livramento no contexto das cortes dos

dominadores (de Nabucodonosor a Dario e Ciro). Esta primeira parte, narrada em terceira

pessoa compõe-se de `aggadôt (histórias populares).84 Na segunda parte (capítulos 7-12) a

descrição dos sonhos e visões de Daniel com uma forte conotação futurista.85 Porém, tomando

as duas versões lingüísticas do livro como um parâmetro de divisão, temos de um lado os

capítulos 1,1 – 2,4a + 8 – 12 e, do outro, 2,4b – 7,28. Hans de Wit propõe que o texto aramaico

seja dividido em duas partes (2,4b – 6,28 e 7,1-28) enquanto que outros autores sugerem que o

capítulo 7 foi acrescentado para servir de ponte e eixo entre as duas versões: 1, 1 – 2,4a

(hebraico) + 2,4b – 6,28 (aramaico) + 7,1-28 (aramaico) + 8, 1 – 12,13 (hebraico).86

A época da composição do livro é muito debatida entre os comentários87; bem como

entramos num matagal sem fim se tomarmos o rumo das discussões de cada proposta de

83Esta conotação podemos encontrar em WOUDE, A. S. van der (org.). (1993: 352-355). 84Ver DE WIT, Hans (2000: 138). 85Os capítulos 1-6 basicamente são compostos de histórias, nas quais a referencia a Daniel se dá na terceira pessoa; enquanto que os capítulos 7-12 são ostensivamente revelações sobre o futuro, apresentadas por Daniel em primeira pessoa. Outro aspecto que corrobora esta divisão está presente nas referências cronológicas: os capítulos 1-6 estão situados nos reinados de Nabucodonosor (caps. 1-4), Baltazar (cap. 5) e Dario, o medo (cap.6); os capítulos 7-8, embora revertam para o reinado de Baltazar, seguidos na seqüência por Dario (cap.9) e Ciro da Pérsia (cap.10). Ver COLLINS, John Joseph (1984: 28). 86DE WIT, Hans (2000: 138): “Do ponto de vista gramatical e lexical os cap. 2-6 formam uma unidade coerente. São produto de um processo redacional sofisticado e deliberado (Wesselius: 208). Expressões características de 1-6 faltam no cap.7 ((kol-qobel encontra-se 20 vezes em 2-6 e falta em 7). A análise literária demonstra que os cap. 2-6 provêm de um círculo cultural determinado e pode ter sua origem entre os judeus da diáspora oriental, pois têm elementos gramaticais que se encontram também em textos ‘orientais’ do século V, a época dos aquemênidas (530-330 a.C.). Os cap. 7 e 8-12 obedecem a outro contexto, certamente mais tardio (Folmer: 754-755)”. 87 Destacam-se duas opiniões: a primeira, que tem um grande consenso, de que o livro foi composto no segundo século com a finalidade de fortalecer a resistência do povo de Israel/Judéia frente a perseguição de Antíoco IV Epífanes (dominação selêucida nos anos 167-142 a.E.C.). O livro escrito nesta época impulsiona o povo a permanecer fiel a Deus e acreditar na vitória sob o império selêucida. Cf. RUSSELL, D. S. (1997: 7): “sugeriu-se que o (s) autor (es), em torno do ano 165 a.C., escreveu (eram) no aramaico

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divisão do livro, pois aparecem aquelas que partem por uma hipótese cronológica88, outras que

tentam buscar uma coleção original89 e as tentativas de demonstração de um processo de

formação do livro90. Além, da idéia de que todo o livro de Daniel foi escrito em aramaico no

período dos Macabeus e que as partes que nos chegaram em hebraico, nada mais são do que

uma antiga tradução do aramaico.91 Uma síntese destas propostas aparece no comentário aos

profetas de Luis Alonso Schökel e José Luis Sicre Diaz92.

Julgo importante, antes de passarmos adiante, atentarmos para dois aspectos: primeiro,

que há um certo consenso de que o capítulo 7 funciona como eixo e interlocução entre os textos

aramaico e hebraico.93 Portanto, é o que veremos nesta primeira parte de nossa pesquisa: as

vernáculo as narrativas populares contadas nos capítulos 2-6 transmitidas de tempos anteriores provavelmente em forma oral, tendo concluído sua narrativa com o capítulo 7 que, observamos tem bastante em comum com o capítulo 2. em seguida, como uma espécie de comentário ao capítulo 7, recordaria (m) suas visões do “fim” e do Reino vindouro, contidas nos capítulos 8-12 em hebraico a língua sagrada, atribuindo estas ao herói das narrativas, indicando assim autoria comum. Finalmente, teria (m) escrito em hebraico uma introdução ao conjunto até o ponto onde se narra que os caldeus falavam “em aramaico” (2,4)”. A segunda opinião é a de que o livro foi escrito no sexto século, na Babilônia, por um judeu exilado, cujo nome é Daniel e que conseguira êxito e exerce a profecia das previsões para o futuro. Cf. BRADSHAW, Robert I. (2001: http://www.biblicalstudies.org.uk/daniel.pdf retirado em 14/08/2001): apresenta os argumentos de alguns autores acerca da datação do livro de Daniel no sexto século. Primeiro, há quem se guie pelo próprio texto, no qual Daniel faz varias referências aos acontecimentos do sexto século na qualidade de testemunha (cf. Dn 7,2,; 8,1. 15. 27; 9,22; 10,2. 7 e 12,5) e outros julgam que as informações históricas ali contidas são desconhecidas de um autor que está vivendo no segundo século. Porém, estes argumentos podem valer também para a posição de quem defende a hipótese do segundo século, pois o livro contém informações históricas equivocadas. 88 G. Hölscher propõe que os capítulos 1-6 (todos em aramaico) foram escritos no terceiro século, depois este livro aramaico foi no mesmo século alargado para os capítulos 1 – 7 e, finalmente foi expandido para os capítulos 1 – 12 no período da guerra dos Macabeus. Apud COLLINS, John Joseph (1984: 29). 89 O. H. Steck lança a hipótese de uma coleção original composta pelos capítulos 2 – 6, num segundo estágio foi incluído o capítulo 7 e provavelmente em aramaico 1,1 – 2,4a e, num último estágio, a inclusão dos capítulos 8 – 12 em hebraico e a tradução ou nova composição de 1,1 – 2,4a para o hebraico. Apud COLLINS, John Joseph (1984: 29). 90 J. G. Gammie que demonstra o processo de formação do livro em três níveis: primeiro o texto aramaico de 2,4b – 7,18 (exceto 7,7b-8.11a.12); segundo, a introdução 1,1 – 2,4a e os capítulos 10 e 12,1-4 e, o último nível, os capítulos: 7,19-28; 8 – 11; 12,5-13; 7, 7b-8.11a.12. Apud. COLLINS, John Joseph (1984: 29).. 91R. H. Charles apud. ROWLEY, Harold Henry. (1980: 85). 92 Cf. ALONSO SCHÖKEL, Luis e SICRE DIAZ, José Luis (1991: 1261-62): a) a obra original foi escrita em hebraico, e uma parte dela foi traduzida para o aramaico, língua corrente daquela época; b) o original era aramaico, e alguns dos capítulos foram traduzidos para o hebraico; c) o autor do livro empregou, por razões desconhecidas, ambas as línguas; d) existia uma coleção aramaica de relatos sobre Daniel (caps. 1-6 ou 1-7); um autor posterior traduziu o cap. 1 e acrescentou em hebraico as visões dos caps. 8-12; e) as narrações dos caps. 2-6 circulavam oralmente em aramaico; o autor do livro recopilou-as e as reelaborou nesta mesma língua; acrescentou depois o sonho do cap.7, redigindo-o igualmente em aramaico, e completou o conjunto com os caps. 8-12, escritos em hebraico. 93 RICHARD, Pablo. O povo de Deus contra o Império. Daniel 7 em seu contexto literário e histórico. In: AAVV (1990: 26-27) vai dizer que o capítulo 7 é o coração do livro de Daniel, pois não só retoma as

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três versões ou livros de Daniel: o livro aramaico (2,4b-7,28), o livro hebraico, que forma uma

certa moldura do texto aramaico (1,1-2,4a + 8-12) e o livro grego (3,24-90 e 13-14).

Segundo, o livro de Daniel, pode ser considerado como um mosaico94 produzido nos

limites entre profecia e apocalíptica, história e ficção, interpretação da história e relato moralista

de caráter sapiencial95, que vai aglutinar uma mistura de gêneros literários e, sobretudo, trazer

uma das marcas fundamentais dos textos apocalípticos: a descrição dos sonhos ou visões que

foram testemunhados por um vidente, o qual descreve o sonho (na primeira pessoa). Grande

parte desses textos é de autoria anônima, ou seja, não dá para saber com exatidão quem de fato

o escreveu. Por isso, são atribuídos a certos indivíduos, em sua maioria figuras lendárias, tais

como, Adão, Enoque, Abraão, Moisés, Esdras, Daniel e outros. A pseudonímia, é vista como um

recurso que visa promover a aceitação do texto (livro). Para John Joseph Collins o nome de

Daniel é usado para emprestar autoridade a um determinado grupo ou movimento do segundo

século a.E.C. 96

Nesta perspectiva, o livro aramaico de Daniel procura desenvolver a identidade do

protagonista a partir de uma coleção de histórias sobre judeus bem sucedidos na corte

babilônica; o livro hebraico descreve as visões de um sábio no período de dominação, crise e

conflitos com o helenismo e, finalmente o livro grego produz uma leitura das imagens

apocalípticas evocando a grande vitória que vem do poder de Deus.

imagens do capítulo 2, bem como, contribui para a construção dos capítulos 8 – 12. Com isso, os capítulos 2, 7, 8, 9 e 10-12 formam os cinco apocalipses do livro de Daniel. 94Ver FRYE, Northrop (2004: 244): “A Bíblia é, em primeiro lugar, um mosaico, para usar uma palavra não menos precisa do que a feitio, neste caso. Ela é um mostruário de mandamentos, aforismas, epigramas, provérbios, parábolas, enigmas, excertos, dísticos em paralelismo, fórmulas, contos do populário, oráculos, epifanias, ‘gattungen’, sentenças, fragmentos ocasionalmente em verso, glosas marginais, lendas, aparas de documentos históricos, leis, correspondência, sermões, hinos, visões extáticas, rituais, fabulas, listas genealógicas, e por aí afora. Todos esses elementos, para valermo-nos de uma expressão de Milton na Aeropagitica, são contíguos, não contínuos; de nada adianta procurarmos em meio a eles uma consistência de continuidade, daquela que encontramos em verso ou prosa controlados por uma única mente”. 95Cf. ASURMENDI, Jesús M. (2004: 411). 96Cf. COLLINS, John Joseph (1984: 101).

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CAPÍTULO 1:

O LIVRO ARAMAICO DE DANIEL

Sabemos que alguns dos textos hebraicos da Bíblia são, de fato, traduções e versões de

um texto aramaico original, o que sugere que a introdução do livro de Daniel (1,1 – 2,4a) escrita

em hebraico seja recriação de um texto aramaico.97 E estes escritos aramaicos originais que

foram conservados na Bíblia Hebraica aparecem em Esdras 4,8 – 6,18 e 7,12-26; Daniel 2,4b –

7,28; Jeremias 10,11 e Gênesis 31,47. Nos livros de Esdras e Daniel o fragmento aramaico é

introduzido com o termo tymi_r'a] / ´árämît, indicando, assim, a sua delimitação (Esd 4,7: “E nos

dias de Artaxerxes escreveu Bislão, Mitredate, Tabeel e os outros da sua companhia, a

Artaxerxes, rei da Pérsia: e a carta estava escrita em caracteres aramaicos e na língua

aramaica” e Dn 2,4a: “E os caldeus disseram ao rei em aramaico”).

Para Aage Bentzen, o fato de Daniel não aparecer no capítulo 3 demonstra que essas

legendas eram originalmente narrativas independentes e que foram colecionadas posteriormente

num ciclo. Diante de algumas inconsistências e relações estabelecidas entre estes capítulos,

Bentzen aponta para a não correspondência da data de 1,1-2 com a de 2,1; bem como, o

comportamento de Nabucodonosor, no capítulo 4, que não se coaduna com os capítulos

anteriores.

“Além disso, algumas legendas são variantes do mesmo motivo, por ex., os caps. 2 e 4; 3 e 6 (ver ainda a história apócrifa de Bel e o Dragão). De outro lado, uma série de fenômenos em 1-6 mostra que essas legendas foram unidas e unificadas. O cap.5 se refere ao cap.4 (5.20 ver 4.6). No cap.2, onde Daniel é o principal ator judeu, são, não obstante, mencionados seus amigos... Por conseguinte, é preciso que encaremos 1-6 como um ciclo de legendas que exortam os ouvintes a se manterem fiéis à religião judaica. Mas o sonho do

97 Cf. ASURMENDI, Jesús M. (2004: 414): “Os aramaísmos do hebraico encontram-se sobretudo em Dn 1, o que leva a pensar que esse capítulo foi traduzido do aramaico, embora não haja rastro de um material original aramaico”.

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cap.7, sendo escrito em aramaico, parece estar ligado de alguma forma com 1-6”.98

Estas antigas histórias populares e legendárias vêm de diferentes lugares e de materiais

diversos que foram compilados, colecionados por um ou mais autores, numa clara tentativa de

descrever os problemas enfrentados pelo povo judeu durante o exílio na Babilônia. Com certeza,

os compiladores não estavam interessados em descrever com detalhes e fundamentações

históricas o que foi a realidade de muitos judeus deportados para a Babilônia por

Nabucodonosor; porém, ao relatarem os casos ao redor de Daniel e dos seus companheiros que

estavam a serviço da corte babilônica, acabaram, nas entrelinhas, dizendo algo da conjuntura

que viviam sob a dominação grega e, posteriormente, os conflitos e intrigas palacianas

envolvendo “grupos nacionalistas” e as disputas de poder entre os generais da Síria e do Egito.

Os casos narrados nos capítulos 2-6 + a visão do capítulo 7 descrevem Daniel e seus

companheiros como judeus fiéis à tradição e às crenças mosaicas mesmo estando a serviço de

um rei “gentio”. Estamos diante de narrativas que estão entrelaçadas: o capítulo 3 traz três

judeus que se arriscam à morte mas não adoram a estátua (ídolo ou divinização do poder)

levantada pelo rei; no capítulo 6 é a vez de Daniel arriscar a vida e não abandonar a sua prática

de oração diária; nos capítulos 2 e 4 Daniel e o seu Deus são capazes de revelarem os mistérios

dos sonhos do rei; no capítulo 5, Daniel crítica duramente o rei que desagrada ao Deus do povo

com as suas práticas abomináveis e idólatras, e, interpreta a escritura na parede, declarando o

fim do reinado; e, finalmente, o capítulo 7 que interpreta a visão dos animais e projeta uma

reviravolta social à luz do sonho do capítulo 2. Esta parece ser a temática que acabou sendo

colocada como pano de fundo para o livro aramaico de Daniel.99

No entanto, vejamos como o livro está estruturado.

98 Cf. BENTZEN, Aage (1968b: 221). 99 Talvez nesta perspectiva é que poderemos entender não só a proximidade temática do livro de Daniel com a novela de Ester, como também a sua localização lado a lado dentro do Cânon hebraico.

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1. A Organização do Livro

Percebemos num primeiro momento em Daniel 2 – 7 um paralelismo entre os capítulos 2

e 7 no tocante ao esquema dos quatro reinos, formando assim uma estrutura em forma de

quiasmo.100 Da mesma forma que os capítulos 3 e 6 se relacionam como casos de libertação e

atas de martírio e, o miolo do livro, se concentra nos capítulos 4 e 5 nos quais encontramos

críticas aos reis101. Eis uma visualização desta estrutura:

Daniel 2: sonho dos quatro reinos

Daniel 3: ata de mártires

Daniel 4-5: juízo sobre os reis

Daniel 6: ata de mártires

Daniel 7: sonho dos quatro reinos

Um esquema mais detalhado é elaborado por José Severino Croatto que parte de duas

constatações: as relações existentes entre os capítulos 2 e 7 diferenciam-se pelo menos num

100 Ver TORREBLANCA, Jorge. Jeremias: uma leitura estrutural. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana: Os livros proféticos. A voz dos profetas e suas releituras. no. 35/36, Petrópolis: Editora Vozes, São Leopoldo: Editora Sinodal, pp.77-92. Na página 79 o autor apresenta o seguinte aspecto acerca da análise estruturalista: a aproximação de um texto através de um método onde se perceba a sua estrutura literária, visando as recorrências, as relações (de identidade e de oposição) e as imagens que vão surgindo, requer descobrir no texto a sua simetria. Esta pode ser na forma de paralelismo (os elementos aparecem na mesma ordem ou na mesma posição – A B C D – A’ B’ C’ D’), na forma de enquadramento de certos elementos, palavras ou frases e, na forma concêntrica ou de quiasmo (duas ocorrências aparecem na segunda oportunidade na ordem invertida – A B C D – C’ B’ A’). 101Parece-me que o paralelismo entre os capítulos 2 e 7 , 3 e 6 e 4 e 5 já é um consenso nos mais variados comentários sobre o livro de Daniel. Vou mencionar alguns a título de exemplo: COLLINS, John J. (1989); DE WIT, Hans (1990); RICHARD, Pablo O povo de Deus contra o Império. Daniel 7 em seu contexto literário e histórico. In: AAVV (1990: 22-40); AAVV. Apocalpsismo. Coletânea de Estudos. (1983); SILVA, Rafael Rodrigues da (2001: 82-100); DELCOR, Mathias (1987); PIERCE, Ronald W. (1989: 211–222) e WOODRUFF, Archibald Mulford (1990: 1-23). É interessante a proposta de estrutura literária do livro de Daniel feita por Robert I. Bradshaw num estudo baseado no comentário de David W. Gooding (The Literary Structure of the Book of Daniel and its Implications. Tyndale Bulletin, 32 (1981: 43-79), onde ele elenca alguns temas comuns e organiza o livro em duas seções paralelas: No capítulo 1 Daniel e seus companheiros são promovidos a altos cargos na Babilônia por recusar seguir os costumes impostos pelo rei, obtendo com isso a simpatia dos funcionários da corte e no capítulo 6, Daniel é restabelecido como alto funcionário por recusar a cessar de praticar a sua religião diante das intrigas feitas contra ele pelos funcionários da corte. Nos capítulos 2-3 e 7-8 nos deparamos com uma avaliação da história e da ação dos impérios. Os capítulos 4 e 9 tematizam a disciplina de Deus e a arrogância humana. Finalmente, os capítulos 5 e 10-12 estão entrelaçados pelo tema do tempo do fim do império e da desolação. In: http://www.biblicalstudies.org.uk/daniel.pdf (retirado na Internet em 14/08/2001).

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detalhe: enquanto no capítulo 7 há uma visão interpretada por um anjo, há no capítulo 2 o sonho

interpretado por Daniel, e, o capítulo 7, funciona como ponte entre as duas partes do livro de

Daniel (1-6 + 7-12); favorece, neste sentido, uma intercomunicação no nível de sua significação

querigmática102. Eis o esquema estrutural que ele apresenta:

Dn 2 Dn 3

Dn 4 Dn 5 Dn 6

Dn 7

Sonho de Nabucodonosor

Instância Religiosa: Estátua

Sonho: árvore Visão: Escritura na parede

Instância Religiosa: oração

Sonho/Visão de Daniel

Estátua: quatro metais

Daniel interpreta

Daniel interpreta

Quatro animais

Denúncia/Martírio/ Libertação

Denúncia/Martírio/ Libertação

Sinal do céu Sinal do céu Sinal do céu Figura humana

Fracasso dos magos

Fracasso dos magos

Daniel interpreta: Reino Futuro

Confissão Em Daniel: Espírito de Deus

Em Daniel: Espírito de Deus

Confissão Anjo interpreta: Reino Futuro

Cumpre-se a explicação

Cumpre-se a explicação

Confissão de fé Prosperidade Confissão Morte Prosperidade

À luz deste esquema vejamos a coerência e a unidade deste livro em sua forma literária

e no seu conteúdo.

a) Daniel 2 e 7: Sonho e visão dos quatro reinos

O sonho de Nabucodonosor – 2,1-49

O relato de Daniel 2,1-49 coloca em evidência uma crítica aos impérios e ao mesmo

tempo procura apresentar a conjuntura político-econômica e social em Judá. Mesmo que alguns

autores apostem na hipótese de que os capítulos 2-7 de Daniel sejam fruto da leitura e análise

que brotou dos judeus da diáspora na época do exílio na Babilônia, podemos inferir o quanto

102 Cf. CROATTO, José Severino (1990/3: 143).

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este texto serviu para uma leitura dos sérios conflitos com os generais selêucidas. Conflitos

estes que culminaram na guerra dos Macabeus entre 167 a 142 a.E.C. O texto, simbolicamente,

focaliza o período de dominação de Nabucodonosor (o famoso exílio da Babilônia entre 597/587

a 538 a.E.C.). A narrativa do sonho do rei e a interpretação de Daniel estão emolduradas pelo

diálogo e decreto do rei (vv.3-12) e o engrandecimento de Daniel e de seus companheiros

(vv.46-49). Duas figuras são centrais na construção do texto: o rei e Daniel. De um lado, o rei

que tem um sonho que lhe tira o sono, e que o deixa com o espírito perturbado e desejoso de

conhecer o significado deste sonho. Daniel e seus amigos serão engrandecidos quando o

primeiro diz conhecer o sonho de Nabucodonosor e o interpreta.

Buscando identificar a forma e o jeito que o redator imprimiu em 2,1-49, podemos,

inicialmente, dizer que eles formam uma unidade narrativa. Percebemos num rápido olhar que

estamos diante de um texto compilado em dois grandes blocos que realçam a intervenção de

Daniel seja junto a Ariok, o chefe designado pelo rei para matar os sábios; seja junto ao próprio

rei, descrevendo o sonho que este teve e a sua interpretação. Vale lembrar que a narrativa faz

um jogo entre guardar segredo e revelar, pois, o rei guardou segredo acerca do sonho e

esperava que algum sábio ou adivinho revelasse não apenas os sentidos do sonho mas que

fosse capaz de descrevê-lo. Martin Noth faz a seguinte observação:

“A visão de Daniel 2 está emoldurada por uma narrativa. Segundo esta narrativa, o rei neobabilônico Nabucodonosor teve um sonho que muito o inquietou e que nenhum de seus adivinhos conseguiu interpretar, uma vez que já nem conseguiam cumprir a sua exigência de que lhe narrassem o sonho, sem que ele lho contasse. Somente Daniel, que fazia parte dos judeus deportados por Nabucodonosor para a Babilônia, é que conseguiu, em virtude da sabedoria divina a ele concedida, anunciar-lhe o sonho e sua interpretação”. 103

Vejamos a estrutura do texto

103Cf. NOTH, Martin. A concepção de história no apocalipsismo do Antigo Testamento. In: AAVV (1983: 81).

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Introdução (1-2)

Diálogo entre o rei e os caldeus (2-12)

Decreto do rei e intervenção de Daniel (13-16)

Revelação para Daniel (17-24)

Intervenção de Daniel junto ao rei (25-28a)

Daniel descreve o sonho do rei (28b-36a)

Interpreta o sonho (36b-45)

Conclusão (46-49)

A organização concêntrica de um texto é algo muito presente na literatura hebraica,

onde a parte inicial está relacionada com a parte final e, conseqüentemente, as outras partes vão

sento costuradas de maneira circular. De um lado, a abertura do texto (vv.1-2) apresenta o tema

do sonho e a perturbação do rei e, no outro, a conclusão do relato (vv.46-49) que aponta para as

benesses que o rei dá a Daniel por este ter revelado e interpretado o sonho. A segunda costura

gira em torno dos diálogos de Nabucodonosor, sendo o primeiro diálogo entre este e os seus

sábios (vv.3-12) e, o segundo, é o da grande fala de Daniel na qual descreve-se o sonho e a sua

interpretação (vv.28b-45). Esta palavra de Daniel tem dois momentos: a descrição do sonho

(vv.28b-36a) e a interpretação (vv.36b-45).104 A terceira costura tematiza a intervenção de Daniel

diante do decreto de extermínio promulgado pelo rei (vv.13-16 e 25-28a). A parte central (vv.17-

24) está fora do âmbito do palácio, e se desenvolve na casa de Daniel, onde recebe a revelação

do enigma do rei.105 No miolo do texto encontramos o pedido de oração de Daniel juntamente

com a sua louvação e a descrição das características do seu Deus.

104Notemos que no v.28b a palavra de Daniel é dirigida ao rei Nabucodonosor, pois o diálogo entre os dois tem o seu início no v.26. E toda a descrição do sonho e da sua interpretação é dirigida ao rei, como podemos notar nos vv.29,31 e 37. 105 A combinação de reinos e metais na imagem da estátua implica num gradual declínio da ordem política do Oriente Próximo. A destruição da estátua implica na subordinação de todos estes reinos ao reino de Deus. As implicações escatológicas do sonho numa leitura presente no material tradicional adaptado pelo autor de Daniel 2. No contexto de Daniel 2 a primeira ênfase recai na habilidade de Daniel para dizer e interpretar o sonho do rei, enquanto os homens sábios (caldeus) falham. O rei reage com admiração para este feito, mas não presta qualquer atenção para o conteúdo da interpretação, qual a força que pode se esperar de sua consternação. O foco da história está muito mais na revelação do mistério do que mostrar a iminência da intervenção divina. COLLINS, John Joseph (1997b: 135-136).

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Acompanhando a parte central do capítulo, descobre-se o seguinte esquema:

v.17 – Daniel foi para casa e fez saber a palavra a seus companheiros v.18 – Para que pedissem compaixão ao Deus do céu e não aconteça o extermínio

v.19a – O segredo foi revelado em visão

v.19b - E Daniel louvou o Deus do céu

vv.20-22 – Bendito o nome de Deus Dele a sabedoria e o poder Ele muda os tempos Ele revela

v.23a – Para ti, ó Deus de nossos pais, dou graças

v.23b – E agora me fizeste saber o que pedimos de ti

v.24 – Daniel foi ter com Ariok Não extermine! Faze-me entrar diante do rei...

Esta análise das costuras do texto mostra que o centro (miolo) está nos versículos 20-

22, que coloca em evidência a teologia do texto.

Vejamos cada uma destas costuras do texto:

a) E aconteceu sonho... (1-2)

A introdução da narrativa do sonho da estátua tem por objetivo apresentar três aspectos,

que de alguma maneira vão permear o conjunto do texto: uma informação cronológica, uma nota

sobre o sonho e a perturbação do rei e a convocação feita por este a todos os sábios para que

revelem e interpretem o seu sonho.

A informação cronológica tenta acompanhar e dar uma certa uniformidade a estes

textos106. Isto não significa que os capítulos e a conjuntura do livro de Daniel estejam

106Cada capítulo vai de certa forma apresentar uma espécie de informação cronológica: Dn 1,1: “No ano terceiro do reinado de Joaquim, rei de Judá, veio Nabucodonosor, rei de Babilonia, a Jerusalém, e a sitiou”; Dn 2,1: “E no segundo ano do reinado de Nabucodonosor...”; Dn 4,1: “Nabucodonosor rei...”; Dn

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corretamente relacionados ao período histórico da redação do livro.107 Aliás, vamos encontrar em

Daniel 1-7 uma certa confusão nos dados históricos. Por exemplo, no final do capítulo 5 é

mencionado que o sucessor de Belsazar é Dario, o medo; o que não corresponde às

informações que recebemos na história da transição dos babilônicos aos persas108, pois

Belsazar era filho de Nabonidus e não era um descendente direto de Nabucodonosor como o

livro de Daniel quer informar. Da mesma maneira, quem acaba vencendo a Babilônia, que estava

sob o governo de Nabonidus, foi Gobryas, general de Ciro. É provável que a referência a Dario,

o medo, seja uma confusão com Dario I, que reinou na Pérsia entre os anos 522-486 a.E.C.109.

A notificação sobre o sonho de Nabucodonosor tenta situar o leitor de que se trata de um

texto sobre os sonhos. Aliás, a palavra sonho (helem / ~lx e termos derivados) aparece 15

vezes em todo o texto110. A informação sobre o sonho do rei não está separada da menção à

perturbação e perda do sono: “e perturbado111 seu espírito e seu sono112 se foi113 sobre ele”.

5,1: “O rei Belsazar deu um grande banquete...”; Dn 5,30-31: “Naquela mesma noite foi morto Belsazar, rei dos caldeus. E Dario, o medo, ocupou o reino, na idade de sessenta e dois anos”; Dn 6,1: “E pareceu bem a Dario constituir sobre o reino a cento e vinte presidentes, que estivessem sobre todo o reino” e Dn 7,1: “No primeiro ano de Belsazar, rei de Babilônia...” 107Cf. BENTZEN, Aage (1968b: 222), as inúmeras inexatidões históricas corroboram para uma rejeição da data tradicional das narrativas. 108 Este é um dos pontos do debate entre Porfírio e Jerônimo acerca da autenticidade de Daniel. O debate muito se centrou na questão da historicidade de Dario, o medo e na possibilidade de uma profecia de previsão. De certa maneira, Nabucodonosor e Ciro são figuras inquestionáveis, porém os fatos e acontecimentos em que estão envolvidos no livro de Daniel não são efetivos. Podemos dizer que discussões acerca da autenticidade de Daniel de uma maneira ou de outra estarão ao redor dos problemas cronológicos que encontramos no livro. Ver COLLINS, John Joseph (1984: 28-29). 109 Cf. COLLINS, John Joseph (1984: 68-69). 110 2,1: ~l;x: sonhou / tAm+l{x: sonhos; 2,2: wyt'_mol{x: seus sonhos; 2,3: yTim.l'_x' ~Alx: sonhei um sonho / ~Al)x]h;-ta: o sonho; 2,4.5.6.7.9.26.36:. am'l.x,: o sonho e 2,28: %m'l.x,: teu sonho. 111 ~[,P't.Tiw:: conjunção aditiva ou adversativa (W: e, mas) + verbo hithpael 3ª pessoa imperfeita feminino singular (~[P). No qal tem o sentido de empurrar, golpear e no hithpael a conotação de uma inquietude interna. Tomando as condições descritas no final do versículo em que se encontra o rei, devemos traduzir por: estar perturbado; sentir-se perturbado. No v.3 tem o sentido de estar perturbado e aqui no v.1: sentir-se perturbado. Ver KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter. (1985: 771) e HOLLADAY, William L. (1988: 295). 112 Atn"v.W: Conjunção aditiva ou adversativa (W:e, mas) + substantivo comum feminino singular construto com sufixo em terceira pessoa masculina singular ( hn"ve, an"ve, tn"v.: dormida, sono, sono profundo). 113 ht'y>h.nI: verbo niphal na 3ª pessoa feminino singular: hyh: ser, acontecer, ocorrer. Este verbo aqui é incomum, pois o sentido é: ele perdeu o sono. Na tentativa de buscar um melhor entendimento Walter Baumgartner (autor das notas do Livro de Daniel na BHS) propõe à luz de Dn 8,27 e 6,19 que este verbo seja substituído pelo verbo ddn: fugir, escapar, mover, agitar, afugentar. Aqui temos o sentido de alguém que se movimenta e se agita de um lado a outro por falta de sono. Assim, ganha força a interpretação de que Nabucodonosor perdeu o sono por causa do sonho e por este motivo não conseguia dormir novamente.

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O último aspecto está relacionado à convocação feita pelo rei a todos os magos,

astrólogos, encantadores e caldeus para que pudessem mostrar o sonho para o rei e, conclui

com a apresentação destes diante do rei (v.2). É interessante perceber nesta introdução, a

referência às ações de grupos distintos relacionados com o mundo mágico e interpretativo: os

magos (~jor>x;)114, os astrólogos (@v;a) 115, os encantadores (~ypiV.k;m.l) 116 e os caldeus(~yDIf.K) 117.

b) Diálogo entre o rei e os caldeus (v.3-13a)

Estes versículos estão organizados ao redor do verbo responder (hn[) que aparece nos

versículos 5,7,8 e 10. Neste sentido, podemos dizer que se trata de um diálogo que aconteceu

entre o rei e os caldeus que foram convocados para revelar o sonho e sua interpretação.

Estes versos têm a seguinte estrutura:

Justamente é esta a leitura e/ou interpretação que encontramos na tradução da Septuaginta: evge,neto avpV auvtou/ e na Vulgata: fugit ab illo. O contexto sugere: “o seu sono terminou” ou “o seu sono se foi”. Ver KEIL, C. F. e DELIZSCH, F. (1975: 86-87). 114 ~yMijur>x;l;{(: artigo (l: os) + ~jor>x; masculino plural absoluto: magos, sacerdotes adivinhos, astrólogos. Indica a prática de magia dos sacerdotes, os magos sagrados do Egito e os homens sábios da Babilônia. Ver KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter (1985: 333) e OSBURN JR., William (1982: 94). 115 ~ypiV'a;l'(w>: w conjunção; l artigo; @V'a; substantivo plural masculino comum absoluto emprestado do akádico (isippu) e do aramaico (@va). Designa os encantadores ou aqueles que invocam os espíritos. 116 ~ypiV.k;m.l;(w> – @vK verbo piel particípio masculino plural absoluto: no piel quer designar aquele que pratica a feitiçaria. AAVV. (2000: 106). Para Robert L. Alden os feiticeiros “são agrupados junto com os Hákämîm, “sábios”, e os Hartummîm, “magos”... em Daniel 2,2. À semelhança do faraó, o rei Nabucodonosor convocou seus “feiticeiros” juntamente com seus “magos” (Hartummîm), “encantadores” (´ashshäpîm, q.v.) e “caldeus” (kasdîm q.v”. HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason e WALTKE, Bruce K. (1998:1051-52). 117 ~yDIf.K;l;w>: conjunção (w) + preposição (l) + substantivo próprio absoluto (~yDIf.K;) . Em grande parte indica os habitantes da Babilônia. “Caldeus” é um termo antigo para se referir aos babilônicos e à região da baixa Mesopotâmia. Porém, kasdîm significa também aqueles que praticam a astrologia (astrólogos). Para Koehler e Baumgartner em Dn 2,2.4 kasdîm representa os astrólogos e os sábios. KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter (1985: 458). Ver também HOLLADAY, William L. (1988:165-166). Nos Manuscritos de Qumran encontramos a seguinte formulação: ~yyDIf.K/ kasdîîm. No sentido de demonstrar uma classe social bem qualificada que a Septuaginta traduz por: Caldai,wn. O texto estabelecido a B.J. registra que: “O termo ‘caldeu’ aqui designa todo aquele que pratica a arte da adivinhação, supostamente originária da Caldéia...”, p.1681. Ver 2Rs 24,2; Is 43,14; Ez 23,14 e 2Cr 36,17. Em Ez 11,24 encontramos a forma m'yDI’f.k; – indicando povo e território (caldeus e Caldéia).

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v.3: E disse para eles o rei...

v.4: E falaram os caldeus para o rei...

vv.5-6: Respondeu o rei e disse para os caldeus...

v.7: Responderam pela segunda vez e disseram...

vv.8-9: Respondeu o rei e disse...

vv.10-11: Responderam os caldeus diante do rei e disseram...

vv.12-13a: Reação do rei...

O objetivo do rei é simplesmente saber acerca do seu sonho; porém, apresenta as suas

medidas (reação) caso seja corretamente revelado e interpretado o sonho. O rei promete e

ameaça. O versículo 3 abre as conversações com a enunciação do problema que aflige o rei:

saber o sonho. Podemos notar que o narrador quer que o leitor esteja atento para a reação do

rei que ordena a execução de todos os sábios de Babilônia (v.12). As palavras do versículo 5

estão carregadas de ameaças aos sábios da Babilônia: se não conseguirem dizer o sonho e a

sua interpretação: suas casas serão assoladas e eles mesmos serão destruídos118. No entanto,

as palavras do rei no versículo 6 estão cheias de promessas: dádivas e bênçãos se conseguirem

dizer o sonho e sua interpretação. Este versículo tem na abertura e fechamento a mesma

afirmação: “se o sonho e sua interpretação mostrais a mim” e no centro do versículo

encontramos o objeto da promessa: dádiva e honra grande.

118 O tom das ameaças deixa transparecer uma descrição dos feitos de Nabucodonosor durante da invasão a Judá/Jerusalém em 597/587 a.E.C. Aliás a descrição do exílio da Babilônia é marcada por destruição, devastação e deportação. O cativeiro iniciado por Nabucodonosor é o ponto inicial das histórias populares no livro de Daniel.

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!wOx]h;T.( ‘Hrev.piW am'l.x, !hew> 6 E se o sonho e sua interpretação mostrarem

ayGIf; rq"ywI hB'z>bin>W !n"T.m; presentes119 e recompensa120 e honra121 grande

ym'_d'q\-!mi !WlB.q;T. recebereis122 diante de mim

`ynIwO*x]h; Hrev.piW am'l.x, !hel' portanto o sonho e sua interpretação mostrem

para mim

Do outro lado, encontramos nas palavras dos caldeus todo um enlace ao redor do não

conhecimento do sonho e de sua interpretação; igualmente, funciona como estratégia neste

diálogo para que o rei revele o sonho e, com isso, eles possam interpretá-lo. As duas primeiras

falas/respostas dos sábios (vv.4 e 7) têm a mesma intenção: que o rei diga o sonho para eles

apresentarem a interpretação. Porém é na fala dos versículos 10-11 que o narrador praticamente

antecipa no jogo da narrativa a justificativa para a presença e intervenção de Daniel (vv.14-16).

O fato de Nabucodonosor descobrir as intenções dos seus sábios tem um tom irônico e

sarcástico na narrativa, pois demonstra a impotência daqueles que faziam parte da corte123. A

fala dos sábios é a constatação da incapacidade da sabedoria da corte de desvendar mistérios,

enigmas e segredos. Primeiramente dizem que não existe homem que seja capaz de mostrar o

que o rei pede; bem como não existe rei, príncipe ou chefe que tenha feito pedido semelhante.

Depois confirmam a sua total incapacidade afirmando que somente os deuses são capazes de

dar resposta ao que o rei pede.124

119 !n"T.m;än – plural de hn"T.m;\; – presente, donativo, doação (conferir em Dn 2,48 e 5,17). 120 hB'z>bin>W – Conjunção (w) conjunção + substantivo comum feminino singular absoluto (hB'z>bin>): recompensa, retribuição e presentes (ofertas). Sempre acompanhado por hnTm (conforme Dn 2,6 e 5,17). Ver KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter (1985:1097). 121 rq"y>>. – Honra, estima, consideração. Ludwig Koehler e Walter Baumgartner propõem dignidade, nobreza tomando como referência que este substantivo aparece em Dn 2,37; 4,27.33; 5,18.20 e 7,14. 122 !WlB.q;T. – verbo (lbq) pael imperfeito 2a. pessoa masculina plural: recebereis. 123 Cf. STORNIOLO, Ivo (1999: 25). 124 Para Airton José da Silva nos v.1-13 são encontradas algumas oposições: “o poder absoluto e despótico do rei se contrapõe ao servilismo e à impotência dos sábios babilônicos, que são seus servos. Contrapõe-se igualmente o poder dos deuses, que tudo podem e sabem, à limitação dos homens, que não podem saber os pensamentos do rei. Ainda: o despotismo real aparece fortemente no poder do rei de fazer alguém viver em grande honra ou morrer em grande desgraça”. Retirado do site: http://www.airtonjo.com/apocaliptica02.htm (no dia 24.04.2003).

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Tudo indica que o v.13 funciona como “dobradiça”, ou seja, a primeira parte conclui este

bloco sobre o diálogo do rei com os sábios e culmina com a promulgação do decreto do rei: “E

saiu a sentença para os sábios serem mortos” (13a). Já a segunda parte do versículo introduz o

leitor ao bloco seguinte que dará inicio à intervenção de Daniel. Porém é preciso saber que a

intervenção de Daniel em favor dos sábios tem a ver com a sua situação de também perseguido

e ameaçado pelo decreto de morte: “e buscaram a Daniel e seus companheiros para serem

mortos” (13b).

c) A intervenção de Daniel (14-16)

Os versículos 14 e 17 têm a mesma fórmula inicial: laYEnID' !yId:aBe / “Imediatamente

Daniel...” (v.14) e laYEnID") !yId:a/ / “Então Daniel...” (v.17). O narrador quer deixar bem claro

como Daniel interveio para transformar a situação. Nos vv.14-16 Daniel busca informações com

o chefe da guarda do rei encarregado de cumprir o decreto; enquanto os vv. 17-24 põem em

evidência as estratégias de Daniel. Neste bloco causa estranheza o v.16 que dá a entender que

Daniel está diante do rei e pede tempo para interpretar o sonho, porém somente nos vv. 25-28a

é que Daniel é introduzido na presença do rei para dizer o sonho e apresentar o seu significado.

Neste sentido, muitos consideram os vv.16-23 um adendo ao texto125. Para Louis F. Hartman os

vv.14-23 são uma inserção posterior neste capítulo, pois o v.24 encaixaria bem depois do v.13;

bem como, os vv.25-26 não concordam com o v.16, que pressupõe os vv.18-20. A menção aos

companheiros de Daniel, que não aparecem em nenhum outro lugar deste capítulo é outro

indício de que estes versículos foram enxertados pelo redator.126

125 Ver COLLINS, John Joseph (1984: 49). 126 HARTMAN, Louis F. (1971: 299).

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d) Revelação a Daniel (17-24)

Os versículos 17 e 24 são marcados pelo movimento e mudança de lugar: no primeiro

Daniel foi para a sua casa e noutro encontra-se com Ariok. No entanto, o v. 24 está em

continuidade com o v.15.

É interessante observar que a revelação do segredo/enigma (hz"ßr' - räzâ)127 a Daniel vai

se dar no âmbito da casa e em meio a orações. A narrativa não dá informações acerca da

revelação, pois a intenção é fazer com que o leitor/ouvinte acompanhe atentamente a descrição

do sonho (28-36) e a interpretação (36-45) apresentada por Daniel. A grande marca destes

versículos está na louvação, liturgia, doxologia e teologia apresentada por Daniel. A reza

confiante e agradecida nos versículos 20-23 é uma apresentação das características do Deus de

Daniel e da comunidade que produziu esta narrativa.

Esta reza e louvação tem a estrutura bem simples: no v.20 o grande enunciado da

oração e hino de louvor: a evocação do nome de Deus bendito, que é introduzido pelo “Falou

Daniel e disse”. Nos vv.20c – 22 encontramos a descrição das ações desse Deus (motivação

para o louvor e para o ato de confiança) e no v.23, a conclusão da oração com palavras de

agradecimento.

127 Nos versículos 17-24 não aparece a palavra sonho e sim a palavra zr': segredo, enigma. A Daniel foi revelado o segredo. No v.24 apenas menciona: “faze-me entrar diante do rei e a interpretação para o rei mostrarei”. Aqui a interpretação está relacionada ao segredo e não ao sonho como aparece nos versículos anteriores.

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Introdução v.20a-b Falou Daniel e disse:

Aconteça o nome de Deus bendito128 de eternidade à eternidade

Ações de Deus: Motivações para o louvor v.20c-22

pois que a sabedoria129 e o poder são dele130. E ele que muda o tempo131 e os tempos de remover reinos132 e de levantar reinos133

dá a sabedoria para os sábios e o conhecimento para conhecer discernimento134

Ele revela o profundo e as coisas secretas135 conhece o que na escuridão

e a luz com ele habita136 Conclusão v.23 Palavras de agradecimento

Para ti, ó Deus de nossos pais, eu te louvo e o glorifico a sabedoria e a força destes para mim e agora me fizeste saber o que pedimos de ti o que enche o rei nos fizeste saber.

O que marca o encontro de Daniel com Ariok (v.24) é o pedido para que o chefe da

guarda não coloque em prática a ordem do rei. A palavra de Daniel é incisiva e propositiva: “não

extermine os sábios de Babel! Faze-me entrar diante do rei.”

128%r;b'm. ah'l'a/-yD Hmev. awEh/l, - Esta doxologia nos remete para Jó 1,21: %r")bom. hw"hy> ~veîyhiy> (aconteça nome de Iahweh bendito). 129at'm.k.x' - Uso semelhante ao hebraico (Hokma / Hokmot), podendo significar conhecimento técnico e capacidade profissional (nas construções do templo e do palácio, nas guerras e nas atividades políticas da corte). Porém, na maioria das vezes, relacionada com os sábios e anciãos, significa conhecimento adquirido e experiência. Para George Fohrer a Hokma aparece, por um lado, como mediadora de revelação, já que intervem com a sua proclamação como o profeta e, igual a este, atribui a si mesma a máxima autoridade e, por outro lado, como revelação da vontade divina com respeito ao homem, já que oferece ao homem a vida e indica que sua aceitação equivale à aceitação da vontade divina. Apud in: JENNI, Ernst e WESTERMANN, Claus (eds.). (1985a: 788). 130 Aqui o pronome possessivo independente é formado pelo pronome relativo (yDIî) seguido pela preposição (l): ayhi(-Hle( yDIî at'r>Wbg>W at'm.k.x' / a sabedoria e o poder são dele. ROSENTHAL, Franz (1983: 20). 131‘aY"n:D'[i anEv.h;m. aWhw>û - Dois substantivos são utilizados para descrever o tempo: !D:*[I: tempo (ano, momento) e !m:*z>: tempo determinado, prazo (muito usado para indicar tempo sagrado, festas, calendário, etc.). Neste sentido João Ferreira de Almeida traduz assim: “Ele muda os tempos e as horas”; e a Bíblia de Jerusalém traduz da seguinte maneira: “É ele quem muda tempos e estações”. A Septuaginta traduz por kairou.j kai. cro,nouj. Veja o comentário de KEIL, C.F. e DELITZSCH, F. (1975: 99). 132ykil.m; hDe[.h;m. aY"n:m.zIw> - O verbo hd[ no hafel significa a ação de tirar fora, remover e destronar. 133!yki_l.m; ~yqEh'm.W - O verbo ~wq no hafel tem o significado de erguer para cima, estabelecer, ser colocado de pé. Aqui tem a conotação de suscitar um reino ou de estabelecer/entronizar reis. Ver AAVV. (2000: 299). 134hn")ybi y[ed>y"l. ['D>n>m;W - No âmbito da sabedoria em Israel a conjugação de [dy (conhecer) e hnyb (discernir) está relacionada com a vivência e experiência de vida que é transmitida na casa/clã. 135at'_r'T.s;m.W at'q'yMi[; aleG" aWh± - O verbo aleG" muitas vezes é traduzido pelo verbo avnakalu,ptw: desvelar, descobrir. 136are(v. HMe[i ar'yhin>W - Luz, brilho, iluminação. Muitas vezes está relacionado com a sabedoria ou iluminação da mente. A Septuaginta interpreta dizendo que com a luz ele dissolve a escuridão (avnakalu,ptwn ta. baqe,a kai. skoteina. kai. ginw,skwn ta. evn tw/| sko,tei kai. ta. evn tw/| fwti, kai. parV auvtw/| kata,lusij).

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e) Daniel intervém junto ao rei (25-28a)

Estes versículos introduzem o relato do sonho e a interpretação feita por Daniel. De um

lado, reforça a questão levantada pelo rei acerca da capacidade dos sábios em dizer o sonho ou

até mesmo de sonhar o que ele sonhou. E, de outro lado, reforça a confiança e teologia de

Daniel de que só existe o Deus dos céus que pode revelar o segredo e, conseqüentemente, os

magos, adivinhos, sábios e caldeus ficam incapacitados de revelar os enigmas e

acontecimentos.

f) Daniel relata o sonho do rei (28b-36a)

Os versículos 28b-30 introduzem o relato (aWh) hn"D> %b"K.v.mi-l[;( %v"are ywEz>x,w>

e visão de tua cabeça e sobre tua cama é esta...) reforçando que as visões e os sonhos são uma

maneira das divindades revelarem os acontecimentos futuros. “Tu, ó rei, teus pensamentos

sobre tua cama subiram137 o que acontecerá depois disto. Aquele que revela o segredo te faz

saber o que acontecerá. E eu não na sabedoria que existe em mim de todos os viventes, o

segredo este revelou para mim, mas para que a interpretação para o rei faça saber e conheças

os pensamentos138 de teu coração”.

E o versículo 36a conclui o relato através da fórmula: am'l.x, hn"D>, este o sonho. Os

versículos 31-35 se encarregam de descrever o sonho, utilizando uma fórmula introdutória

(t'y>w:h] hzEx' aK'l.m; hT..n>.a;, Tu, ó rei, estavas vendo...). Os vv.31-33 apresentam uma

descrição da estátua com as suas várias partes139; enquanto que os vv.34-35 retomam a visão,

137 Ou surgiram. 138ynEAy[.r;w> : !Ay[.r; substantivo plural construto masculino: pensamentos. A Septuaginta traduz: upe,labej th/| kardi,a| / o que entende / imagina teu coração. 139“La estatua es una sola, los cinco elementps (oro, plata, bronce, hierro y barro) presentes en cinco partes (cabeza, pecho y brazos, vientre y muslos, piernas, pies) forman una sola imagen, son parte de lo mismo, constituyen un solo cuerpo. Del aspecto de la imagen no se nos dice mucho, solamente que hay cierta dualidad, pues es terriblemente impactante y, al mismo tiempo, impactantemente terrible. Desde arriba para abajo desde la cabeza a los pies, (cabeza de oro, pies de barro) la estatua se va deteriorando, debilitando y va perdiendo esplendor. Lo que debiera haber sido el elemento más firme, los

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utilizando a mesma fórmula introdutória (t'y>w:h] hzEx', estavas vendo), para descrever o

elemento de mudança que é a “pedra sem mãos” que destruirá a imagem (estátua) e esta se

transformará numa grande montanha.

vv.31-33: A descrição da imagem: Tu ó rei estavas vendo e eis que imagem140 uma grande

a imagem esta grande141 e seu esplendor142 excelente estava de pé diante de ti e sua aparência terrível143

sua cabeça de ouro bom seus peitos e seus braços de prata seu ventre144 e suas coxas de cobre145 Suas pernas de ferro seus pés parte de ferro e parte de barro vv.34-35: estavas vendo, quando... Estavas vendo até que foi cortada146 pedra sem mãos147 e atingiu a imagem Sobre seus pés de o ferro e o barro e os esmigalhou Então esmigalharam148 juntamente

O ferro, o barro, o cobre, a prata e o ouro e se tornaram como palha da eira de verão

e levantando eles o vento e todo vestígio não achou para eles

E a pedra que atingiu a imagem Tornou-se uma montanha grande e encheu toda a terra.

g) Daniel interpreta o sonho do rei (36b-45)

pies y las piernas, resulta ser una extraña mezcla de un material que jamás podrá sostener el resto del cuerpo”. DE WIT, Hans (1990: 118). 140 Imagem / estátua. Como no hebraico ~lec. Significa imagem, figura, reprodução, estátua, escultura (Nm 33,52; 1Sm 6,5.11; 2Rs 11,18; Ez 7,20; 16,17; 23,14; Am 5,26). ALONSO SCHÖKEL, Luis (1997: 561). Acir Raymann acrescenta “modelo” e “desenho”. In: AAVV. (2000: 205). A gramática de Hollemberg-Budde simplesmente considera imagem, ídolo como significado de ~lec.. Ver: HOLLEMBERG, W., HOLLEMBERG, J., BUDDE, K. e BAUMGARTNER, W. (1996: 403). Uma visão geral do termo ~lec. na Bíblia Hebraica cf. RIBEIRO, Osvaldo Luiz (2003: 103-128). 141 br; – adjetivo masculino singular absoluto: grande. Aqui tem o sentido figurado: grande em poder. Tem a conotação de engrandecimento, exaltação. Muito usado para designar número de destacamento militar. 142wyzI – brilho / esplendor / cor / aparência. 143 lyxi(D> – verbo peal passivo: temer / amedrontar. Aqui tem a conotação de uma imagem que causa medo / amedronta / terrível / medonha. A Septuaginta traduz pelo adjetivo fobera, : terrível / assustador. 144 Ou abdômen. 145 Ou bronze. 146 O verbo rzG (cortar) no hithpeel tem o sentido de algo que é cortado em duas partes. No hebraico este verbo também significa ser separado e daí a relação com o vocábulo decidir (cortar fora). 147Algumas versões propõem que seja acrescentada depois de ‘!b,a, (pedra) o verbo arwjm : atingir, tocar, mirar. Assim dando a conotação de que a pedra que foi lançada e atingiu a imagem tinha uma mira. 148Uma variante gramatical propõe que o verbo qqD (conjugado no peal perfeito em 3a.pessoa masculina plural: WqD' – esmigalharam) pode ser lido com um sujeito plural indefinido: wQD: - eles esmigalharam. Pode ser traduzido também como: “eles foram esmigalhados”.

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O v.36b introduz a interpretação de Daniel (e sua interpretação diremos diante do rei) e o

v.45 conclui: “e seguro149 o sonho e digna de confiança sua interpretação”. Podemos dizer que

os vv.28b a 45 funcionam como uma unidade. Estes versos apresentam a longa fala de Daniel

diante do rei, que consiste na descrição do sonho e a sua conseqüente interpretação. Aqui, o

relato já demonstra a ação de Daniel (no diálogo com o rei) que está em oposição ao diálogo do

rei com os caldeus. Daniel diz e interpreta o sonho enquanto os sábios não conseguem revelá-lo

e nem decifrá-lo. As palavras de Daniel podem ser divididas em dois momentos: descreve e

interpreta os significados das partes (metais) que compõem a estátua parte por parte (vv.37-43)

e, na seqüência interpreta os sentidos da pedra e da montanha (vv.44-45a).

Martin Noth vai apresentar a seguinte leitura destes versículos:

“Trata-se, portanto, de uma seqüência de impérios mundiais em número de quatro; pois, se bem que a estátua tivesse cinco partes, as duas últimas, ou seja as pernas de ferro e os pés de ferro e barro, na realidade somente significam subdivisões de uma só parte; isto se depreende não só do fato de o material ferro aparecer em ambas as subdivisões, mas também pela pressuposição expressa da interpretação, que explica também os pés de ferro e barro a título de “quarto reino”. E finalmente a pedra que destroça a estátua é interpretada como o Reino eterno de Deus que haverá de eliminar e tomar o lugar de todos os reinos humanos”150.

Podemos observar que a interpretação de Daniel enfatiza a descrição da quarta parte da

estátua, ou melhor dizendo, os pés de ferro e de barro.

Visualizemos a descrição da estátua e a interpretação de Daniel:

149 byCiy: – adjetivo masculino singular absoluto: seguro, verdadeiro, certo, confiável (de confiança), bem estabelecido. A Septuaginta traduz por avkribe.j (avkribh,j, e,j): exato, com precisão. 150 NOTH, Martin. A concepção de história no apocalipsismo do Antigo Testamento. In: AAVV (1983: 81-2).

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Descrição da estátua Interpretação apresentada por Daniel sua cabeça de ouro bom Tu ó rei, rei de reis

porque o Deus dos céus, o reino, o poder151 e a força152 e a honra153 deu para ti E em tudo que habitam filhos dos homens, bestas do campo e aves do céu deu em tuas mãos e teu domínio em tudo; tu és a cabeça de ouro (vv.37-38)

seus peitos e seus braços de prata E depois de ti se levantarão reino outro inferior154 ao teu (v.39a) seu ventre e suas coxas de cobre e reino terceiro outro155 de cobre que dominará em toda a terra (v.39b) Suas pernas de ferro E o reino quarto será forte156 como o ferro em conformidade o ferro

tritura157 e esmaga158 tudo e como o ferro que quebra em pedaços159 todos estes tritura e quebra em pedaços (v.40)

seus pés parte de ferro e parte de barro

E o que vistes os pés e os dedos em parte barro de oleiro e em parte ferro reino dividido160 será e da firmeza do ferro será nela em conformidade verá o ferro misturado com barro de lodo.161 E dedos162 do pé em parte ferro e em parte barro: parte do reino será forte e parte será quebrada. Do que viste o ferro misturado com barro de lodo, misturados serão com semente163 de homens e não serão ligados um ao outro assim como o ferro não misturado164 com o barro. (vv.41-43)

A interpretação do sonho dada por Daniel na qual descreve a sucessão de quatro reinos

dominadores165 é algo claro no texto e não suscitou muita discussão entre as várias leituras e

151!sex/ – força, poder do rei. Palavra associada ao verbo tomar posse, daí a conotação de riqueza. Walter Baumgartner apresenta os seguintes significados para esta palavra: Força, lugar seguro, armazém, tesouros, fortificado, poder, riqueza. In: KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter (1985: 1076-77). 152 Fortalecer-se. Como termo derivado: poder, ser forte. 153 rqy – honra – tem a mesma conotação no hebraico: “ser precioso”. 154 A nota da BHS aponta que o adjetivo a[r;a] pode ser usado adverbialmente ([r;a]) 155 a repetição do adjetivo yrIx\a' (outro) tem o objetivo de ajudar o ouvinte/leitor a distinguir e separar as partes da imagem e/ou reinos. 156 @yQiT; – Substantivo comum feminino singular absoluto: força. Relacionado com ações de poder: fazer cumprir ordens, decretos. Também tem o sentido de endurecer-se. Este substantivo aparece igualmente no versículo 42. 157qqD verbo hafel – triturar, esmagar, pulverizar, fazer em pedaços. 158Lvx – verbo peal: esmagar, esmoer, esmigalhar. Tem também o sentido de ser reduzido, ser comprimido, subjugado, oprimido e, ainda, ser rachado ou danificado. 159 [[;r. – esmagar, quebrar em pedaços, despedaçar. 160glP – verbo peal passivo: ser dividido. Em Dn 7,25 aparece em estado construto: metade. 161!yji Substantivo comum masculino singular absoluto: barro (molhado), lodo, argila. Quando aparece junto com @s;x] quer indicar artefato de barro ou cerâmica. 162[B;c.a,: dedos da mão ou do pé. 163[r;z> – semente, descendência. Como no hebraico é um substantivo que é utilizado em quatro categorias: 1) época da semeadura; 2) a semente que é semeada; 3) semente no sentido de sêmen e 4) a semente como descendência (por exemplo o texto clássico da promessa de Deus a Abraão). Veja HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 409-411). 164 br[ – verbo hithpaal (misturar) particípio masculino singular absoluto: misturado. 165 Na alegoria do livro de Daniel, os impérios são os seguintes: 1) cabeça de ouro: império neobabilônico; 2) peito e braços de prata: reino medo; 3) ventre e coxas de bronze: império persa e 4) pernas de ferro e pés de ferro/argila: império grego de Alexandre (ferro), depois dividido entre Ptolomeus

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comentários do texto de Daniel, vale observar que “o esquema de quatro sucessivos impérios,

ou ‘reinos’, mundiais era bem conhecido no antigo Oriente Próximo, mas nas mãos do

compilador do Livro de Daniel – que presenciou o auge da perseguição de Antíoco e o levante

macabeu – , ele adquiriu novo significado”166. No entanto, para Martin Noth a visão de Dn 2 tem

uma forte relação de dependência com tradições preexistentes que relacionam metais com eras

mundiais ou impérios, porém, “a interpretação do sonho no sentido de impérios mundiais

sucessivos é uma concepção original do livro de Daniel”.167 Certamente, o autor das narrativas

de sonhos e visões do livro de Daniel utilizou várias fontes e materiais, mais adiante, vamos nos

deter nas possíveis fontes presentes na edição do livro aramaico de Daniel.

h) O rei engrandece a Daniel e seus companheiros (46-49)

Estes versículos concluem a narrativa em contraposição à ação, projeto e atitude do rei

no início: perturbado, desejoso de saber sobre o sonho e seu significado e que ordena a

matança dos sábios. Agora, rende homenagem a Daniel (v.46), louva o Deus de Daniel (v.47) e

o promove e aos seus amigos a cargos de extrema confiança. A breve doxologia no versículo 47

reforça a teologia de Daniel e amarra o grande tema da narrativa que é a revelação de segredos

e mistérios. O Deus de Daniel é para o rei, Deus dos Deuses e Senhor dos reis. É Aquele que é

capaz de revelar segredos. Dizer que Daniel estava às portas do rei é reforçar a imagem de

Daniel em todas as narrativas do livro: um judeu presente na corte/palácio do império.

e Selêucidas. Veja Airton José da Silva. Apocalíptica. In: http://www.airtonjo.com/apocaliptica02.htm (retirado no dia 24.04.2003) 166 COHN, Norman (1996: 222). “A cabeça de ouro, explicou Daniel ao rei, era o próprio Nabucodonosor, enquanto as partes de prata e bronze representavam reinos futuros, inferiores ao babilônico. Mas o principal interesse de Daniel estava reservado para o quarto reino, representado pelas pernas de ferro e pelos pés de ferro e argila. Assim como o ferro esmaga e esfacela todas as coisas, do mesmo modo, previu ele, esse reino irá esmagar e esfacelar toda a terra: evidentemente, ele estava prevendo a história do império de Alexandre e os Estados que o sucederam. A despeito disso, esse reino sofreria de fraquezas internas: fracassariam as tentativas de unir suas inúmeras partes por meio de casamentos dinásticos, pois essas partes seriam tão incompatíveis quanto o ferro e a argila – uma referencia explícita ao difícil relacionamento entre os selêucidas e os ptolomeus”. 167 NOTH, Martin. A concepção de história no apocalipsismo do Antigo Testamento. In: AAVV (1983: 83-84). Nas páginas 86-93, Martin Noth demonstra a progressão da concepção dos quatro impérios desde as suas primeiras formas no período persa até chegar às tradições que caracterizaram o império romano como sendo a quarta parte da estátua ou a quarta fera de Dn 7.

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As visões de Daniel - 7,1-28

O capítulo 7 de Daniel nos apresenta sob a forma de sonho e visão as ações dos

impérios na história.168 São animais ferozes e estranhos que dilaceram, esmagam e engolem o

povo. Eles não existem fisicamente (leão com asas de águia, urso com costelas na boca,

leopardo com quatro asas e quatro cabeças e um animal terrível com dentes de ferro e dez

chifres), mas estão inseridos no contexto da vida do povo. Pois, além de ter amplos poderes,

devoram e fazem em pedaços as suas presas. Daí, podemos dizer que na experiência de

opressão que o povo estava vivendo nos anos 200 a.E.C em diante, esses animais passam a

existir concretamente. Noutras palavras, as características estranhas desses animais querem

representar situações concretas da dominação que o povo estava sofrendo. O texto nos convida

a dar maior atenção ao quarto animal, que é terrível, pois além de triturar tem um chifrinho

poderoso dotado de olhos e boca. Eis uma das imagens que o texto utiliza para descrever as

ações do império, seja no que se refere à violência e ao poder manipulador.

Um aspecto importante que descobrimos no texto é o jogo com três palavras que se

aproximam pela sonoridade: hzx ((Házâ): visão; hyx (Hayâ): vida e aw"yxe (Hêwä´): animais.

Evidentemente que estas palavras não têm nenhuma correlação em seus significados, mas na

sonoridade e vocalização acabam prendendo a atenção do ouvinte. São palavras que seguram o

texto e aguçam a percepção do ouvinte e leitor (usando uma imagem popular: é como o prego

que segura o quadro na parede).169

Antes de entrar no conteúdo do texto, vejamos a sua forma e estrutura. Daniel 7 é

relativamente simples. Ele compreende duas partes bem distintas, mas complementares. Numa,

168 Ver RICHARD, Pablo (1990: 22-40). 169 hzx ((Házâ): significa visão, ver. Associada à ~l,xe (sonho) indica a atividade do visionário. Esta palavra está presente nos seguintes versículos: 7, 1. 2.4.6.7.9.11 (2x).13 e 21. Muitas vezes está conjugada com o verbo aw"h; ou hw"h; (acontecer, ser, estar), que aparece em: 7,2.4.6.7.8.9.11 (2x).13 e 21. Termo correlato que aparece neste capítulo é Wzx/ (visão, aparição, aparência), que podemos conferir em 7,1.2.7.13.15. Somente em 7,20 tem o significado de aparência (Hw:ßz>x,).

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temos a descrição da visão (vv.2b-14) e na outra, a sua interpretação (vv.15-27). Estas duas

partes são amarradas por uma introdução (vv.1-2a) e por uma conclusão (v.28). Como indicam

os vv.1 e 28, este capítulo tem a forma literária de uma visão que é colocada por escrito.

A – INTRODUÇÃO – vv.1-2a 1. Cronologia: No primeiro ano de Belsazar, rei de Babilônia (v.1a) 2. Apresentação do conteúdo: Teve Daniel, na sua cama um sonho e visões (v.1b) 3. A escrita do sonho (v.1c) 4. Fórmula para introduzir o relato do sonho e visão: Falou Daniel e disse: (v.2a) B – VISÕES – vv.2b-14 A VISÃO DOS QUATRO ANIMAIS – vv.2b-7

a. Expressão introdutória das visões: Eu estava olhando... e quatro animais subiam do mar (vv.2b-3)

b. O primeiro era como leão (v.4) c. Continuei olhando e eis que o segundo animal (v.5) d. Continuei olhando e eis outro (v.6) e. Continuava olhando... e eis aqui o quarto animal (v.7) A VISÃO DE UM CHIFRE PEQUENO – v.8 Estando eu considerando os chifres... subiu outro chifre pequeno A VISÃO DO TRONO – vv.9-10

Eu continuei olhando até que foram postos uns tronos... e um ancião de dias se assentou...

A VISÃO DO JULGAMENTO – vv. 11-12 1. Então estive olhando... as ações do pequeno chifre (v.11a) 2. Estive olhando até que animal foi morto... Destruição dos animais (vv.11b-

12) A VISÃO DO FILHO DO HOMEM – vv.13-14

1. Eu estava olhando nas minhas visões da noite e eis... um como Filho do Homem (v.13)

2. Descrição do seu domínio e reino (v.14)

C – INTERPRETAÇÃO DAS VISÕES – vv.15-27 a. Interpretação – vv.15-18

1. Daniel comenta o seu estado (v.15) 2. Pedido de esclarecimento das visões a um intérprete (v.16) 3. Interpretação (vv.17-18)

b. Desejo de conhecer mais sobre as visões – vv.19-27 1. O que deseja esclarecer sobre as visões (vv.19-20) 2. Visão da guerra entre o pequeno chifre e os Santos do Altíssimo (vv.21-

22) 3. Continuação da interpretação das visões (vv.23-27)

D – NARRATIVA DE CONCLUSÃO – v.28

1. Aqui findou a visão (v.28a) 2. Daniel comenta o seu estado (28b)

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Gerard van Groningen apresenta uma proposta de estrutura do capítulo 7 de Daniel (ver

o quadro abaixo), na qual a primeira unidade (vv.2-14) está integrada de maneira seqüencial,

enquanto que a segunda unidade (vv.15-27) tem uma integração irregular.170

Parte 1 Parte 2 Parte 3 Parte 4 Quatro ventos, quatro bestas saídas do mar

Tronos colocados e o Ancião de dias

senta-se

A quarta besta esquartejada

O Filho do Homem recebe o trono

7.2-8

7.9,10

7.11,12

7.13,14

A segunda seção se refere a estas quatro partes, mas não na mesma seqüência

7.17 – as bestas

representam quatro reinos

7.22 – Ancião de dias faz julgamento

7.19-21 – a quarta besta guerreira

7.23-26 – a tirania e o fim da quarta

besta

7.18 – o reino é dado aos santos

7.27 – o triunfo do

reino

Na introdução (vv.1-2a) encontramos os elementos de uma fórmula redacional que está

presente em outros capítulos (cf. 2,1). Escrita na terceira pessoa do singular, tenta situar o leitor

na época, no lugar , no gênero e tema do texto e, introduz o personagem principal. Notamos

nesta introdução as marcas da intencionalidade do compilador ou redator do texto: demonstrar a

importância dessas visões, dizendo que a escrita171 da visão é para que ela não seja esquecida

e, com isso, possa fortalecer a memória (“então o sonho escreveu (de) cabeça”).

170 VAN GRONINGEN, Gerard (2003: 770). 171 O verbo btK (escrever, ser escrito) que aparece no início do relato da visão de Daniel (7,1) quer exprimir o sentido de dois vocábulos hebraicos: bt;K. (escrito, documento, edito) e bT;K.mi (escrito, texto). Nesta perspectiva podemos pensar na composição de um pequeno texto contendo os elementos principais da visão. Tanto que o redator tomou cuidado em dizer no início do capítulo que “Daniel escreveu o sonho

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Evidentemente a cronologia apresentada pelo redator não tem valor histórico, mas sim

uma intencionalidade teológica e, de certa maneira, deseja ajudar o leitor ou ouvinte a entender

o presente, falando do passado ou do futuro. Isto significa que o livro de Daniel tem valor literário

ao criar uma narrativa que fornece ao imaginário social, digamos, o estabelecimento de um

distanciamento espaço-temporal. Interessante que o livro de Daniel e, de modo especial, este

capítulo carregado de imagens constrói uma representação de tempo e espaço fictícios, como

podemos perceber na menção ao reinado de Belsazar e aos animais esquisitos, que, de fato,

são imagens irreais e símbolos mitológicos.172

Na descrição das visões (vv.2b-14) encontramos cinco blocos: a visão dos animais

(vv.2b-7); o chifre pequeno (2,8); o trono (vv.9-10); o julgamento (vv.11-12) e a visão de “um

como filho do homem” (vv.13-14). Estas visões são costuradas com as seguintes expressões:

ay"+l.yle(-~[i ywIz>x,B. tywEh] hzEx' vi acontecer em visões na noite (v.2b)

tywEh] hzEx' hn"D> rt;aB' Depois disto vi acontecer (v.6)

ay"l.yle( ywEz>x,B. tywEh] hzEx' ûhn"D>

rt:aB'

Depois disto vi acontecer na visão da noite (v.7)

aY"n:r>q;B. tywEh] lK;’T;f.mi Observando aconteceu nos chifres (v.8)

tywEh] hzEx' Estava vendo... (v.9)

!yId;aBe tywEh] hzEx' Estava vendo então (v.11)

yDI’ d[; tywEh] hzEx' estava vendo até que (v.11)

ay"l.yle( ywEz>x,B. ‘tywEh] hzEx' Estava vendo em minhas visões da noite (v.13)

de cabeça” (7,1) e no final, diz: “e conservei tudo isto em meu coração” (7,28). O redator cria uma relação entre vare (cabeça) e bb;l. (coração). 172 A apocalíptica utiliza-se de mitos e da ironia (em alguns textos proféticos, como por exemplo Sofonias, aparece como caricatura) para transmitir formas diferenciadas de compreender o mundo e se aproximar da vida “velada”. Por isso, a característica fundamental de um apocalipse é a “revelação” (des-cobrir o que está encoberto).

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Estas expressões vêm acompanhadas pelas locuções adverbiais: Wra]w: (e eis que)

Wla]w:û (e eis que) e yDI’d[; (até que), dando um caráter de vivacidade aos traços dos animais

e produzindo uma sensação de surpresa. E estas repetições parecem ter a intencionalidade de

envolver os leitores na cena.

Outro aspecto importante na descrição dos animais é que eles são esquisitos, e têm

correspondência com o poder e violência exercida pelos reis e/ou imperadores. Simbolicamente

as partes do corpo (pés, costas, olhos, boca, coração, cabeça) podem indicar o alcance das

ações de domínio desses animais sobre a vida e, conseqüentemente, revelam uma situação sem

perspectiva de saída e solução. Os três primeiros animais são descritos “à semelhança de...”

seguido de um detalhamento de suas características: “era como um leão” (v.4); “era como um

urso” (v.5); “era como um leopardo” (v.6); enquanto que o quarto animal, o mais violento, é

descrito de forma direta e incisiva: “e eis que animal quarto terrível173 e terrível174 e sua força

extraordinária e tinha grandes175 dentes de ferro e come e tritura e o resto com seus pés pisa e

ele se diferencia de todos os animais de diante dele e chifres176 dez para ele”(v.7).

A grande oposição apresentada no texto se dá entre a humanidade e os animais (as

grandes feras contra o humano) que se traduz na resistência das comunidades (povo fiel e justo)

173hl'yxiD>: termo derivado do verbo temer, amedrontar, meter medo a alguém (cf. Dn 4,2). No particípio passivo quer significar: medonho, terrível. 174Adjetivo feminino: terrível. No hebraico ~ya': pavoroso. 175Hipólito acrescenta: kai. oi, o[nucej au.tou/ calkoi/ (vxn yd hyrpjw): e suas garras de bronze. Esta inserção está relacionada com o v.19: vx'n>-yDI( Hyr;p.jiw. 176!r<q< significa chifre (de um animal) ou trombeta (instrumento feito com chifre de animais) e tem o mesmo sentido no hebraico. “O vocábulo denota basicamente o chifre de diversos animais (carneiro, boi selvagem)... Uma denotação derivada que ocorre com certa freqüência tem que ver com força, orgulho e vigor. L. Schmidt acertadamente declarou: No AT o chifre não é apenas uma expressão de força física na ação simbólica dos profetas (1Rs 22,11) ou na descrição visionária do poder que dispersou Israel (Zc 2.1-4); é um termo direto para poder”. Schmidt assinala ainda que, conquanto dentes, boca e garras transmitam a imagem do exercício violento da força, o chifre denota o poder e a capacidade física...”. HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1374-75).

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contra os impérios177. Já é notório nas várias interpretações deste capítulo de Daniel que os

quatro animais representam os impérios babilônico, medo, persa e grego178. Por detrás da

descrição de cada animal, são afirmadas as imagens e marcas da opressão experienciada pelos

grupos que resistem.

“Mesmo que não haja diabos no mundo de Daniel, há anjos e há inimigos. Ele apresenta os inimigos estrangeiros, os governantes dos impérios persa, medo e helênico, na imagística visionária tradicional, como animais monstruosos. Em uma visão, o primeiro animal é como um leão com asas de águia; o segundo como um urso, que devora ferozmente sua presa; o terceiro, como um leopardo, com quatro asas de ave nas costas e quatro cabeças; e o quarto animal é terrível, espantoso e sobremodo forte, o qual tinha grandes dentes de ferro: ele devorava e fazia em pedaços, e pisava aos pés o que sobejava. Em uma outra, Daniel viu um bode peludo de dois chifres, que o anjo Gabriel explicou ser “o rei da Grécia”. Em todas as suas visões, os animais monstruosos representavam governantes estrangeiros que ameaçavam Israel”.179

O leão com asas de águia180 (o império assírio-babilônico) traz as marcas de guerra:

invasão, deportação e destruição. Posto de pé como um homem, este animal recebeu um

coração humano e representa a repressão e o medo. Vemos que o texto de Daniel não se fixou

num rei específico, mas quer descrever o medo e o grande poder babilônico. Parece que esta

imagem (Dn 7,4) quer ilustrar a descrição do poder e glória de Nabucodonosor: "Ó rei! Deus, o

Altíssimo, deu a Nabucodonosor, teu pai, o reino, e a grandeza, e a glória e a magnificência. E

por causa da grandeza, que lhe deu todos os povos, nações e línguas tremiam e temiam diante

177É muito importante perceber as semelhanças entre Daniel e o livro de Henoc (principalmente o Livro dos Sonhos - 1 Henoc 83-90) no tocante à descrição das ações dos impérios e dos animais que devoram e impõem medo. 178"O livro de Daniel tem dois erros históricos: põe Baltazar como filho de Nabucodonosor e o império medo como posterior ao babilônico (...) em termos gerais, o império medo não é sucessor mas coetâneo do império babilônico: os medos ao norte e os babilônicos ao sul". Pablo Richard. Opus cit., p.34. 179Cf. PAGELS, E. (1996: 85). COHN, Norman (1996: 224) diz o seguinte: “O significado dos quatro animais monstruosos é explicado no mesmo capítulo 7: como as quatro partes da estátua no segundo capítulo, eles representam as potencias imperiais que haviam dominado os judeus. O quarto monstro, muito mais terrível que seus predecessores, é identificado com o império de Alexandre e os Estados que o sucederam; os dez chifres são os diversos monarcas, com Antíoco sendo representado tanto pelo décimo chifre como pelo “chifre pequeno”. Porém, há muito mais nesse simbolismo”. 180Esta imagem se encontra nas reproduções de arte assírio-babilônicas. Conhece-se, por exemplo, a existência de leões alados que guardam a entrada dos palácios de Assurbanipal. Veja DELCOR, Mathias (1968: 290-312).

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dele: a quem queria matava, e a quem queria dava a vida; e a quem queria engrandecia, e a

quem queria abatia" (Dn 5,18-19). O leão e a águia representam o império que exibe o seu

poder, intimida o povo pela brutalidade, age com violência e derrama muito sangue181.

O urso (7,5) se levanta para devorar ainda mais. É um animal que precisa de mais

comida para saciar a sua fome de “expansão”182. Eis um animal terrível: abraça, agarra e

esmaga. Assim, a apocalíptica quer descrever as marcas das ações do império medo-persa.

Representa os inícios das ações de Ciro e de Dario. Estes causaram grande impacto no meio do

povo da Judéia, por se apresentarem como “benevolentes”183 e, com isso, se engrandeceram e

alargaram o campo de ação. No entanto, em poucos anos transformaram o poder em terror184. O

leopardo com suas quatro cabeças pode representar o império persa com toda a sua

organização e domínio muito bem articulado. A velocidade e as asas demonstram rapidez e

astúcia próprias da dominação dos persas.

Toda a atenção do sonho e da interpretação, no que se refere às marcas e sinais da

opressão, se dá na descrição do quarto animal. É o animal terrível, medonho, e

extraordinariamente forte: tem dentes de ferro que tritura e devora e pisoteia com os pés o que

sobrava. Este animal representa o domínio helênico de Alexandre Magno. Os gregos chegam

com audácia e com a grande estratégia militar de Alexandre Magno. Este sabe a arte de

dominar! A perseguição a Dario III realizada por Alexandre alarga o avanço e a conquista dos

territórios. Assim, a sua estratégia militar consistia na não captura de Dario III, pois a fuga de

181Na profecia de Jeremias encontramos uma comparação das ações de um leão com os impérios assírio e babilônico: "Cordeiro desgarrado é Israel: os leões o afugentaram. O primeiro a devorá-lo foi o rei da Assíria; e por último, Nabucodonosor, rei de Babilônia, lhe quebrou os ossos" (50,17; cfr. 49,19). 182 Em termos econômicos refiro-me ao projeto expansionista dos impérios antigos e se olharmos a partir de uma perspectiva geopolítica, estamos falando de expansão em termos de tomada e invasão de território e de divisas. Estas são práticas muito comuns nos impérios antigos (Egito, Assíria, Babilônia, Media, Pérsia, Grécia e Roma). 183 Entre as benesses oferecidas pelo império medo-persa aos habitantes da Judéia está a autorização de viver e praticar a sua religião, o financiamento para a reconstrução da cidade de Jerusalém e do Templo e, em alguns momentos a isenção dos tributos. 184Ver KELLNER, Wendelin (1987: 26). Para a descrição das ações do império persa, ver NOTH, Martin (1966: 275-318) e HERRMANN, Siegfried (1985: 381-432).

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Dario demarcava as novas conquistas. Com as conquistas de Alexandre, a língua grega ficou

dominante, a filosofia e a visão de mundo dos gregos foi penetrando nas outras culturas. Aí

germina o helenismo.

A grande novidade econômica trazida pelos gregos está no comércio de escravos.

Gente é mercadoria (por que matar se posso vender185). Esta é a ação dos generais helênicos

(tanto ptolomeus quanto selêucidas). Estes são os dez chifres do animal.186 No entanto, o sonho

do livro de Daniel quer chegar mais perto dos dias vividos pelos seus contemporâneos; quer

descrever a grande imaginária de violência no cotidiano dos grupos perseguidos e oprimidos ("os

Santos do Altíssimo"187): a imagem do chifre que derruba outros três e que tem olhos e boca e

que fala com arrogância. Este "chifrinho" é Antíoco IV Epífanes, filhote do domínio grego e um

dos grandes expoentes da dominação helênica188.

Sobre este chifrinho, no qual recai o maior interesse do visionário, é importante

assegurar que o animal será morto, seu corpo destruído e queimado no fogo; enquanto que os

outros animais simplesmente perderão o poder. A descrição da morte do tirano era um anseio

presente em alguns textos produzidos e/ou lidos no ambiente da guerra dos macabeus. Nos

Livros dos Macabeus encontramos três narrativas diferentes acerca da morte de Antíoco IV

Epífanes. Em 1 Mc 6,1-17, Antíoco morreu na Pérsia depois de receber notícias da derrota de

seus exércitos na luta contra os judeus. Diante de tais notícias ficou apavorado, atordoado e

triste. Teria morrido de depressão? Em 2 Mc 1,11-17 se diz que ele foi morto a pedradas. Mas 2

185Em 2 Macabeus 8,10 vemos que uma das intenções do general opressor é conseguir judeus para vender e pagar as suas dívidas com os romanos. 186 É comum interpretar estes dez chifres como sendo os reis/generais helênicos que oprimiram o povo. 187Em Daniel há indícios de que os "Santos do Altíssimo" são o povo judeu. "Em Daniel há indicações de que esse povo é formado pelos judeus que seguiram os ensinamentos dos 'sábios', ou seja de visionários tais como o autor do livro de Daniel. Com esses 'sábios', eles terão aprendido a técnica da resistência não-violenta, mantendo-se firmes sob a perseguição, terão passado por uma purificação e um refinamento interiores, de modo a se tornarem 'alvos'. Também terão conhecido a técnica da interpretação escatológica, aprendendo a relacionar tanto a Torá como as experiências visionárias com o 'tempo do fim'." COHN, Norman (1996: 228). 188Detalhes acerca da dominação de Antíoco IV Epífanes e dos conflitos entre Ptolomeus e Selêucidas ver: HERRMANN, Siegfried (1985: 433-466); NOTH, Martin (1966: 321-356) e MESTERS, Carlos (1987: texto manuscrito).

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Mc 9 transforma a morte de Antíoco num acontecimento macabro. O perseguidor não pode ter

morte comum, natural. Precisa ser desconjuntado, ter seu organismo todo desfeito, cheirar mal,

apodrecer ainda vivo. E termina quase dizendo “o feitiço virou-se contra o feiticeiro”: o cruel

Antíoco, “assassino e blasfemo”, morre em meio a dores terríveis: “seu final foi desastroso, da

mesma forma como ele havia tratado a outros”.189

De modo geral, a descrição dos animais em termos de imagens irreais, terríveis e

pavorosas (leão com asas de águia, urso com costelas na boca, leopardo com quatro cabeças e

o animal com dez chifres) quer representar no imaginário popular um olhar sobre a conjuntura

econômica e política e sobre o ambiente de forte violência e opressão. É importante para o (s)

autor (es) deste capítulo central do Apocalipse de Daniel descrever o desejo de um fim a esta

situação vivida e, com isso, projetar a necessidade de reconstrução de uma nova ordem/mundo.

Nesta perspectiva, os vv.9-14 estabelecem uma espécie de tribunal através das visões

do trono, do ancião de dias e o filho do homem. São visões de um julgamento marcado pelo

conflito e oposição entre o poder dos animais (que sobem do mar) e o reino do ancião, que é

entregue a “um como filho do homem”. Vamos nos deter um pouco nesta imagem do “filho do

homem”.

ay"l.yle( ywEz>x,B. ‘tywEh] hzEx' 13 Estava vendo em minhas visões da noite

vn"a/ rb:K. aY"m;v. ynEn"[]-~[i

‘Wra]w:

e eis que numa190 nuvem do céu como filho

homem

‘aY"m;Ay* qyTi[;-d[;w> hw"+h] htea' estava vindo e até ancião de dias

189Ver VASCONCELLOS, Pedro Lima e SILVA, Rafael Rodrigues da (2004). 190O texto grego revisado por Orígenes vai acrescentar e.pi, (sobre, em cima de) e o Códices Venetus traz meta (depois, além... com, no meio de). Walter Baumgartner no aparato crítico da Bíblia Hebraica Stuttgartensia sugere a comparação destas duas versões revisadas do texto no grego com os Evangelhos e Apocalipse. No Evangelho de Mateus vamos encontrar evpi. tw/n nefelw/n tou/ ouvranou/ (sobre as nuvens do céu - Mt 24,30 e 26,64), e no Evangelho de Marcos e no Apocalipse a seguinte expressão: meta. tw/n nefelw/n tou/ ouvranou/ (com as nuvens do céu - Mc 14,62) e meta. tw/n nefelw/n (com as nuvens - Ap 1,7).

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-`yhiWb)r>q.h; yhiAmd'q.W hj'm. veio e diante dele se aproximou.

Wkl.m;W rq"ywI ‘!j'l.v' byhiy> Hlew> 14 E para ele foi dado domínio191 e honra192 e reino

Hleä aY"n:V'liw> aY"m;au aY"m;m.[;(

lkow>

e todos os povos, as nações e línguas para ele

hDe[.y< al'-yDI( ~l;[' !j"l.v' HnEj'l.v'

Wx+l.p.yI

Temerão193 o seu domínio, domínio eterno que não

será tirado

`lB;(x;t.ti al'-yDI HteWkl.m;W e seu reino que não será destruído194

Para Maurice Casey, vn"a/ rb; “filho do homem” é um termo ordinário para ‘homem',

‘ser humano’, de uso inadequado como título cristológico e sem um significado qualificativo.195 E

nesta mesma direção Mark S. Smith, toma Jó 25,6 onde vAna/ (´énôš) e ~d'a (´ädäm) são

termos paralelos e observa o seu uso no ugarítico de “bn adm” com um sentido de “um ser

humano”, conclui que Dn 7,13 aponta para “um ser humano”.196 Para José Roberto Cristofani

esta expressão literalmente significa um homem no sentido de um representante do gênero

humano. Por isso, pode ser traduzida por “filho da humanidade” ou, simplesmente, “um homem”.

Cristofani propõe a seguinte tradução para o v.13: “Vi acontecer na minha visão da noite e eis 191!j'l.v' – aparece três vezes neste versículo e significa: domínio, soberania e em alguns casos reino. É um termo derivado de jlev.: ter poder, dominar. A Bíblia de Jerusalém traduz este termo por “império”. Penso que devemos seguir a sugestão do aramaico e até mesmo da Septuaginta (que traduz por evxousi,a). 192rq'y> - significa honra, estima, dignidade, majestade. Literalmente tem a conotação de “ser precioso/valioso”. Ver HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998:1699). Claus Westermann diz que “da raiz yqr aparecem no aramaico bíblico as formas nominais yaqqīr, “difícil” (Dn 2,11), “estimado” (Esd 4,10), e yeqār, “honra” (Dn 2,6.37; 4,27.33; 5,18.20; 7,14), ambos termos que também aparecem em hebraico – junto a yqr qal, “ser difícil, valioso” (9x), hifil, “ser valioso, raro” (2x), e yāqār, “raro, valioso” (35 x, excluindo Is 28,16) – como arameismos (yaqqīr, Jr 31,20, “caro, valioso”; yeqār 17x; cf. Wagner N. 120a/121).” In: JENNI, Ernst e WESTERMANN, Claus (1985a:1090). 193O verbo significa temer, venerar, servir. 194Alguns propõem antepor Wkl.m;: reino. 195Cf. CASEY, Maurice (2002: 3-32). Nesta mesma direção encontramos a leitura de Charles D. Isbell que aponta para má interpretação deste termo como fonte da designação que Jesus faz de si mesmo, “Filho do Homem”; talvez a interpretação correta e defendida por muitos de que essa expressão de Daniel 7,13 significa simplesmente “homem”, como acontece com ben ’ādām (Ex 2,1; etc.) em hebraico e com benê ’ănāshā’ (Dn 2,38; 5,21) em aramaico. Apud in: HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1673-1674). 196Mark S. Smith. Apud. GRONINGEN, Gerard van (2003:772).

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que junto com as nuvens do céu, um como filho da humanidade veio a ser, e até que diante do

ancião de dias apresentou-se.”197 Norman Cohn aponta duas possibilidades de entendimento :

“ou esse ‘um como Filho do Homem’ é apenas um símbolo para os ‘santos do Altíssimo’, ou é o

representante deles – o anjo Miguel ou talvez o futuro soberano messiânico. Em ambos os casos

ele personifica o sentimento de eleição, a certeza de uma futura redenção e exaltação dos

judeus – isto é, dos judeus aos quais se dirigia o autor do Livro de Daniel”.198

Para Crossan na visão de Daniel 7, “um como filho de homem” não representa um título

e sim uma expressão que é utilizada para opor os três impérios à figura sobrehumana “que é

como um ser humano que vem das alturas do céu”. Juntamente com os “santos do Altíssimo” e o

“povo dos santos do Altíssimo representam três níveis diferentes de uma realidade

multidimensional.199

A interpretação da visão nos vv.15-27, começa enunciando o estado de perturbação do

visionário e a necessidade de um intérprete (da mesma maneira que o rei Nabucodonosor nos

capítulos 2 e 4 necessita de Daniel para interpretar o seu sonho; aqui é Daniel que precisa de

alguém para interpretar o sonho que lhe perturbou o espírito). O anjo é o mediador entre Daniel e

a divindade. A chave de interpretação do sonho aparece no paralelismo ou na correspondência

estabelecida entre as figuras dos animais. A interpretação do sonho intensifica a ridicularização

do poder dos reis. Na explicação do sonho é enxertada, quase de maneira abrupta, a narrativa

da guerra movida pelo chifre pequeno contra os “santos do Altíssimo” e, depois volta a falar do

quarto animal de dez chifres. Nas idas e vindas do texto, transparece o interesse do redator em

fortalecer a vitória dos santos sobre o domínio do quarto animal e, de modo especial, sobre as

ações do pequeno chifre.

197Cf. CRISTOFANI, José Roberto (2000: 35). 198Cf. COHN, Norman (1996: 227). 199 CROSSAN, John Dominic (1994: 276).

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Transparecem nessas imagens dois momentos muito fortes: um, amarrada a uma

história passada no que se refere à trajetória e ação dos quatro animais e, o outro, na descrição

da história presente atrelada às ações do pequeno chifre. Ou seja, os quatro animais representa

o passado: de Nabucodonosor a Alexandre Magno e, o pequeno chifre representa o presente

marcado pela opressão de Antíoco IV Epífanes. Daí apresentar um texto amplamente aberto e

que possibilita múltiplas leituras ao ouvinte e leitor da apocalíptica.

b) Daniel 3 e 6: Atas de martírio: Vitórias dos inocentes contra o poder!

Daniel 3 e 6 fazem parte do gênero literário legendas de mártires e podem ter

existido como narrativas isoladas (independentes). Porém, estão inseridas no contexto das

intrigas palacianas. Aliás, tanto os três companheiros (Dn 3,12) quanto Daniel (Dn 6,3)

ocupam posições políticas de grande importância e prestígio no reinado. Se no capítulo 3, os

companheiros de Daniel vão parar na fornalha de fogo; agora, Daniel é lançado na cova dos

leões. Ser lançado no crematório ou na cova dos leões é sinal de afronta e desobediência

aos decretos reais. Os três amigos serão lançados no fogo porque não se prostraram

perante a imagem de ouro de Nabucodonosor e Daniel será lançado na cova dos leões

porque fizera pedido e orações a outros deuses, pois deveria fazê-los somente ao rei. Nos

dois relatos deparamos com a desobediência aos decretos do rei. Fornalha e cova dos leões

fazem parte das medidas dos governantes frente aos rebeldes.200

É interessante notar uma questão antes de ler e perceber a organização de Dn 3 e

sua relação com o capítulo 6. O herói do livro, Daniel, não é mencionado no texto, pois os

heróis são Sadraque, Mesaque e Abednego. Para o texto Daniel não existe. Aage Bentzen,

como apontamos anteriormente, vê aí uma possibilidade para afirmar o caráter independente

200Ver o meu ensaio sobre a desconstrução das imagens de poder e a construção de um imaginário de esperança no livro de Daniel: SILVA, Rafael Rodrigues da (2001: 82-100).

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das narrativas.201 Será que podemos imaginar que existam outros interesses para o redator

não mencionar ou não adicionar o nome de Daniel à narrativa? Penso que na construção

destes contos, o redator final ou compilador manteve Dn 3 e 6 como textos independentes e

totalmente interligados pela presença-ausência dos protagonistas da desobediência civil e

religiosa (em Dn 3 são os três companheiros e em Dn 6 é Daniel).

Podemos apresentar a seguinte estrutura desta narrativa:

vv.1-7 – Introdução: A construção da estátua e a ordem de adoração

A – Construção da estátua: sua descrição e localização – v.1 B – Convocação dos magistrados para a consagração da estátua - vv.2-3 C – proclamação do mensageiro:

Ordem e decreto do rei - vv.4-5 Ameaça para quem desobedecer – v.6 submissão do povo - v.7

vv.8-12 – Acusação contra os judeus

A – Chegaram alguns homens caldeus – v.8 B – E falaram os caldeus – vv.9-12

1. Saudação – v.9 2. Reafirmação da proclamação do mensageiro – vv.10-11 3. Alegação de que certos judeus não cumprem o decreto – v.12

vv.13-18 – Interrogatório

A – Convocação e apresentação dos acusados – v.13 B – Interrogação feita pelo rei – vv.14-15 C – Resposta dos acusados – vv.16-18

vv.19-23 – Condenação

A – O rei se enche de furor e manda aquecer a fornalha – v.19 B – Os três acusados são atados e lançados ao fogo – vv.20-23

vv.24-25 – Admiração do rei por ver quatro homens soltos e sem lesão vv.26-30 – Livramento, libertação e novo decreto do rei –

201Cf. BENTZEN, Aage (1968b: 221).

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Analisando as grandes partes que compõem este capítulo, Hans de Wit202 aponta para a

fornalha de fogo como o lugar central; bem como, de onde parte toda mudança e transformação

da situação. Ele estrutura o texto de forma concêntrica ou como um quiasmo.

A: v.1 província de Babilônia

B: vv.2-7 o decreto

C: vv.8-12 acusação

D: vv.13-18 cólera, para a fornalha!

E: vv.19-23 A FORNALHA ARDENTE

D’: vv.24-26 pasmo: “vinde e saí para fora!”

C’: v.27 justificação

B’: vv.28-29 (novo) decreto

A’: v.30 província de Babilônia

Este conto da corte tem, por um lado, um caráter hiperbólico, como podemos notar

na descrição da altura da estátua, na menção aos gêneros e instrumentos musicais, entre outros

e, por outro lado, um tom sarcástico e irônico frente ao poder dos reis. De um rei irado e raivoso

para um governante pasmado que chega até a confessar a superioridade do Deus dos judeus.

Muitos comentários exegéticos e hermenêuticos revelam que esta narrativa (também o capítulo

6) tem uma grande afinidade com as legendas de martírio. Basta comparar este nosso texto com

o episódio descrito em 2Mac 7 da mãe e os sete filhos interrogados, torturados e condenados

por Antíoco IV Epífanes (esta é a comparação que encontramos em 4 Mc 16,3).

Outra característica deste conto reside nas histórias sobre conflitos palacianos a

exemplo das histórias de José, Ester e outros. John Joseph Collins a propósito destes relatos,

observa que em grande parte, são construídos e estruturados sob cinco aspectos: (a) os heróis

da narrativa estão numa situação de prosperidade; (b) daí correm perigo por causa das ações

202DE WIT, Hans (1988: 40) e DE WIT, Hans (1990: 134).

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planejadas por seus conspiradores; (c) que resultam na condenação à morte ou prisão; (d)

porém, por várias razões, os acusados são libertos; (e) e, por fim, não só têm a sua sabedoria e

méritos reconhecidos, como são exaltados e adquirem mais honra e poder.203

Não podemos esquecer que esta legenda está carregada de elementos religiosos e

cultuais. De um lado, o tom miraculoso da preservação e libertação dos três judeus do meio da

fornalha e, de outro, a forte conotação cultual da adoração da estátua à conversão do rei e

promulgação de um decreto proibindo qualquer blasfêmia contra o Deus dos judeus (eis os

aspectos cultuais do texto: a estátua de ouro que representa o rei – divinizado – ou alguma

divindade; a adoração à estátua; a música e os instrumentos musicais, a acusação de que os

judeus não servem aos deuses do rei; o desafio do rei; a resposta dos judeus; a conversão do rei

e o decreto contra quem blasfemar contra o Deus dos judeus).

John Joseph Collins apresenta seis aspectos constituintes de Daniel 3: (1) a mensagem

do arauto nos vv.4-5 aparece na forma de uma ordem ou decreto; (2) a acusação a Sadraque,

Mesaque e Abednego, nos vv.9-12 consiste de dois momentos: a lembrança do decreto e a

afirmação de que eles não agem de acordo com a ordem do rei; (3) as interrogações do rei

constituem um elemento típico das narrativas de martírio; (4) a doxologia colocada na boca de

Nabucodonosor representa uma espécie de síntese de um hino de louvor e ação de graças; (5) o

decreto real no v.29 é uma composição que tem semelhança com outros decretos ( Esd 4-7;

Antiguidades Judaicas 12.3.4-4 §§ 129-53) e proximidade com as ameaças do decreto do rei em

Dn 2; (6) finalmente contém listas: dos oficiais (vv.2-3), dos instrumentos musicais (vv.5, 7,10 e

15) e a referência aos povos e gentes de todas as línguas (vv. 4, 7 e 29).204

No conjunto de Daniel 3 percebemos três questões em jogo: 1o) a provação do justo, a

liberdade de adoração e culto e o decreto contra as blasfêmias ao Deus dos judeus. 2o) A não

203Cf. COLLINS, John Joseph (1984: 55). 204 Cf. COLLINS, John Joseph. (1984: 56).

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adoração da estátua é crime contra a majestade e a punição para aqueles que cometem tal

delito é a morte numa fornalha de fogo ardente (crematório). 3o) Na salvação miraculosa dos

judeus que transgrediram o decreto do rei aparece a figura de alguém como um !yhi(l'a/-rb;

“filho de Deuses”205 e o martírio e salvação desses três judeus produz uma grande ironia: da

boca do tirano sai um elogio à desobediência206 e a prática dos desobedientes torna-se

decreto.207

Vale salientar que se tem sugerido que esta legenda é simultaneamente uma espécie de

midrash208 de Is 43,2 onde Javé é o Goel que resgata (liberta) o seu povo das águas e do fogo:

“Quando passares pelas águas estarei contigo, e quando pelos rios, eles não te submergirão;

quando passares pelo fogo não te queimarás, nem a chama arderá em ti”.

A trama da história de Dn 6 – a famosa cena da cova dos leões – é muito similar a Dn 3

e é uma variante da trama folclórica acerca da “desgraça e reabilitação de um ministro”.209 Os

motivos que configuram os conflitos dentro da corte palaciana estão, de um lado, na recusa dos

205Quem é este companheiro dos três amigos que aparece na fornalha ardente? Muitas hipóteses já foram apresentadas para identificar esta quarta pessoa na fornalha: uns interpretam !yhi(l'a/-rb;l. / lübar-´élähîn (filho de deuses) como referência a um anjo ou sendo um termo para se referir ao Cristo pré-encarnado; outros o vêem como uma teofania ou epifania de uma deidade; outros apelam para as inserções apócrifas para dizer que é preciso considerar esta imagem à luz da composição dessas histórias de martírio e, por fim aqueles que concordam com a importância do livramento, porém saber quem é a quarta pessoa é algo irrelevante. Ver GRONINGEN, Gerard van (2003: 766-67). 206“Bendito seja o Deus de Sadraque, Mesaque e Abednego, que enviou o seu anjo, e livrou os seus servos, que confiaram nele, pois não quiseram cumprir a palavra do rei, preferindo entregar os seus corpos, para que não servissem nem adorassem algum outro Deus, senão o seu Deus. Por mim pois é feito um decreto, pelo qual todo o povo, nação e língua que disser blasfêmia contra o Deus de Sadraque, Mesaque e Abednego, seja despedaçado e suas casas sejam feitas um monturo, porquanto não há outro Deus que possa livrar como este”. (vv.29-30) 207DE WIT, Hans (2000: 141). 208 Com relação ao Targum (versão interpretativa do texto hebraico ao aramaico) o midrash é “a ampliação de um texto ou passagem até tornar um novo relato. Um e outro obedecem a normas hermenêuticas, só que o midrash tem mais possibilidade de expandir-se e, portanto, de atualizar um texto.” Cf. CROATTO, José Severino (1986: 32). 209Cf. COLLINS, John Joseph (1984: 71).

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três judeus em adorar a estátua (Dn 3) e, do outro, na destruição dos magistrados que

conspiraram contra Daniel, o justo inocente. Vejamos como se estrutura Dn 6210:

vv.1-4 - Introdução: subida de Daniel ao poder A – E Dario ocupou o reino (ligação com o capítulo anterior)

B - Estrutura administrativa do reino - (vv.2-3),mostra uma visão da estrutura política do reino. Trata-se de uma hierarquia de poderes delegados. C – Daniel se distingue porque havia nele espírito excelente (v.4)

vv.5-11 - Conspiração para condenar Daniel e o decreto do rei

A - Daniel e rivais - (vv. 5-6): a justiça e confiabilidade de Daniel são motivos de ódio. Tinha como alternativas: morrer ou mudar de religião. B - Os rivais e o rei - (vv. 8-10) C – reação de Daniel diante do decreto: desobediência (v.11). A adoração a Javé se torna delito.

vv.12-20 - Condenação A – espionagem e denúncia dos ministros (vv.12-14) B – a impotência do rei diante do decreto assinado e da pressão dos ministros (vv.15-16)

C – Daniel é lançado na cova dos leões (vv.17-18) D – reação do rei: jejum, perda do sono e vai até à cova de madrugada (vv.19-20) vv.21-25 - Libertação e livramento A – Daniel e o rei (vv.21-24): livramento e recompensa do justo inocente B – condenação dos injustos: os rivais são lançados na cova dos leões (v.25) vv.26-28 - Proclamação e decreto do rei A – saudação (v.26) B – decreto e reconhecimento do Deus de Daniel como verdadeiro (v.27a) C – Doxologia (vv.27b-28) v.29 - Conclusão: e Daniel prosperou nos reinados de Dario e Ciro.

É possível perceber algumas costuras na construção desta narrativa. Por isso, alguns

comentadores falam de uma estrutura concêntrica para este capítulo.

210Tomo como notas para esta proposta de estrutura de Dn 6 os comentários de COLLINS, John Joseph (1984: 70-71) e DE WIT, Hans (1990: 157-163).

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A – v.1-4: Daniel se destaca entre príncipes e sátrapas B – v.5-11: inveja dos magistrados, o decreto do rei e a oração de Daniel C – v.12-15: espionagem e denúncia contra Daniel

D – v.16-18: Condenação: Daniel é lançado na cova dos leões

E – v.19-23: o rei triste faz jejum e pergunta se o Deus de Daniel o livrará dos leões, a resposta de Daniel: o meu Deus enviou o seu anjo...

D’ – v.24: Livramento: Daniel é retirado da cova dos leões C’ – v.25: aqueles que acusaram Daniel são lançados à cova dos leões B’ – v.26-28: novo decreto do rei e a oração do rei A’ – v.29: E Daniel prosperou no reinado de Dario e de Ciro.

Esta narrativa evoca a tomada da Babilônia em 539 nos dias de Ciro; porém não

encontramos reminiscência histórica. As informações são aparentemente inexatas, como por

exemplo, se a formação das satrapias no reinado de Dario é consensual entre os

historiadores da antiguidade, no entanto, o número que é apresentado pelo autor de Dn 6 é

um tanto quanto exagerado. As satrapias não ultrapassam o número de 20 e não 120 como

diz o relato. (0 numero segundo o testemunho de Heródoto é de vinte satrapias)211. O autor

escreve a história a partir de sua experiência: o justo que agora sofre inocentemente.

Neste sentido, podemos intuir que uma das metas do autor esteja relacionada com uma

tentativa de explicar e fazer transparente as causas da perseguição do justo inocente.

A narrativa dá detalhes acerca da pressão exercida pelas autoridades a fim de

forçar os judeus (tanto da diáspora quanto da Judéia) a romper com a fidelidade a Javé e

prestar culto ao soberano divinizado. A não obediência a tal decreto resultaria em martírio.

Esta não parece ter sido uma prática corrente nos tempos de domínio persa (tomando

textos de referência sobre as relações entre o “império benevolente” e os judeus).212 Sabe-

211GRELOT, Pierre (1995: 26) e COLLINS, John Joseph (1984: 72). 212Uma das marcas da ação dos persas na Judéia e Samaria está na imagem de um povo “tolerante” com a cultura e as práticas religiosas dos povos dominados. Esta imagem acaba escondendo as ações violentas e opressoras do império. A escassez e a pobreza obrigaram muitos a recorrer à lei do restolho ou à prática de recolhimento do resto da colheita (Rt 2,2), e, uma constante perda da terra (Rt 2,3; 4,3.9). O alvo principal dos persas é a ampliação do seu poder econômico com o auxílio/ajuda e colaboração dos deportados que perderam suas raízes, sua identidade e religião. O Edito de Ciro (Esd 1,2-4; 6, 3-5 e 2 Cr

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se que a partir de 169, o rei Antioco IV Epífanes quis obrigar todos os súditos a participarem

do culto ao deus dinástico Baal Shamêm, identificado com o deus grego Zeus Olimpo, do

qual ele se considerava a manifestação (dado no cognome de "deus manifestado"

Epífanes). Daí entendemos o decreto do rei em Dn 6 de obrigar os seus súditos de

somente rezar para os deuses do rei e ao próprio rei divinizado.

A narrativa redigida na terceira pessoa tem um caráter didático, ou seja, ao contar

o fato tenta ajudar o ouvinte ou leitor a estabelecer uma ponte com o seu tempo. Talvez,

por isso, ocorre profusamente o adjetivo demonstrativo acompanhando um nome próprio:

"estes sátrapas" !yLeai aY"n:P.r>D;v.x;a] (v.3); "aqueles homens" %Leai aY"r;b.GU (vv.6, 12, 16

e 25); estes presidentes e sátrapas" !Leai‘ aY"n:P.r>D;v.x;a]w: aY"k;r>s' (v.7); "esse Daniel"

hn"D> laYEnId'l. (v.4, 6 e 29), etc. No entanto, a imagem da vitória de Daniel sobre os

conspiradores (Daniel sai ileso da cova dos leões enquanto que os conspiradores e seus

familiares são devorados pelos leões) vai servir de força e conforto para outros grupos, que

numa outra conjuntura, estejam enfrentando dura perseguição. A saída de Daniel da cova dos

leões vai ser considerada uma releitura do Salmo 57 (especialmente os vv.4-6213) e esta imagem

36,22-23) que muitas vezes lemos como ato de benevolência dos persas para com o povo, no entanto, faz parte dos projetos econômicos do novo império. Os persas querem controlar a nova rota comercial: do ouro e da prata (rota comercial que liga o comércio da Arábia e o Mar Egeu). A religião do templo está totalmente dominada pela ideologia persa. E este passou a funcionar como local do câmbio. O produto do povo vira moeda. Neemias 5,1-5 apresenta o grande clamor do povo diante da situação em que foram submetidos. É um protesto a partir das marcas e chagas profundas advindas da dívida e do projeto persa. "Subiu um grande clamor dos homens do povo e suas mulheres contra seus irmãos judeus". A cada grito nos deparamos com os agravamentos sociais do processo de dívida. Junto com o aumento gradativo da fome vem a perda da terra e da casa. Outros irão gritar contra a situação de penhora dos campos e de tomar dinheiro emprestado para pagar os tributos do rei. Este texto descreve a crise econômica que fora instaurada no meio do povo pela política econômica dos persas. De um lado, o grande lucro dos chefes e dos nobres que escravizam os filhos e filhas dos camponeses, exploram e vivem das benesses adquiridas através da política de aliança e de “tolerância” imposta pelo império. E, do outro, um grande contingente de empobrecidos esperneando e gritando contra os seus opressores. A dominação helênica (333 – 63) soube aproveitar da organização já instaurada pelos persas. Os generais Lágidas e Selêucidas, entre outras inovações na arte de dominar, criaram o aluguel da cobrança de impostos e deram uma possibilidade para a emancipação da aristocracia local (leiga). 213“Ele dos céus enviará seu auxílio e me salvará do desprezo daquele que procurava devorar-me (Selá. Deus enviará a sua misericórdia e a sua verdade. Minha alma está entre leões, e eu estou entre aqueles que estão abrasados, filhos dos homens, cujos dentes são lanças e frechas, e cuja língua é espada afiada.

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estará presente nos Livros dos Macabeus (1Mac 2,60214 e nos apócrifos 3Mac 6,7215 e 4Mac

16,3.21216); bem como na alusão que é feita em Hb 11,33-34.217

Enfim, estas duas narrativas ao redor do martírio e da vitória do justo inocente que

formam a segunda moldura do livro aramaico de Daniel apresentam, de um lado, a teologia da

ajuda do Deus de Israel no enfrentamento dos conflitos e, do outro, a desobediência e

desmascaramento do tirano.

“Dn 3 e 6, ao invés, apresentam uma situação de real conflito. Em ambos os casos os fiéis adoradores de Javé, Daniel (Dn 6) e os três jovens (Dn 3) encontram-se em perigo de morte mais que iminente. Mas a ajuda do Deus de Israel os salva dos ciúmes de funcionários invejosos. Uma vez mais, não é o sistema em si que leva os quatro israelitas à borda do precipício. Os que provocam sua desventura são indivíduos isolados, e Deus se encarrega de resolvê-la. No final de ambos os casos (Dn 3,95-97: 6,20-29) encontram-se outra vez esplêndidas confissões de fé nos lábios dos reis pagãos, Nabucodonosor e Dario, o babilônico e o medo, dando a entender com a dupla origem política a validade da confissão de fé: os poderes políticos estrangeiros, sejam eles quais forem, reconhecem o Altíssimo”.218

Nestes dois capítulos a desconstrução e a ironia ao poder estão presentes no

enfrentamento e desobediência de Daniel e de seus companheiros. Sofrem condenação, mas

são libertos. Segundo John Dominic Crossan, estes dois relatos fazem parte das narrativas

proféticas de resgate do inocente e têm a seguinte estrutura: 1) a apresentação da situação do

Sê exaltado, ó Deus, sobre os céus: seja a tua glória sobre toda a terra. Armaram uma rede aos meus passos, a minha alma ficou abatida; cavaram uma cova diante de mim, mas foram eles que nela caíram. (Sela)”. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição Revista e Corrigida, 1969. 214“Daniel, por sua retidão foi libertado da boca dos leões”. No versículo 59 encontramos a referência a Dn 3: “Ananias, Azarias e Misael, por terem tido fé, foram salvos das chamas”. (Tradução B.J.) 215

su. to.n diabolai/j fqo,nou le,ousi kata. gh/j rife,nta qhrsi.n bora.n Danihl eivj fw/j avnh,gagej avsinh/ – “Tú , que a Daniel, arrojado bajo tierra a los leones por envidiosas calumnias, como pasto de fieras, lo sacaste ileso a la luz”. Tradução de I. Rodríguez Alfageme. In: DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 500). 2164Mac 16,3: kai. ouvc ou[twj oi` peri. Danihl le,ontej h=san a;grioi ouvde. h` Misahl evkflegome,nh ka,minoj labrota,tw| puri, wj h th/j filotekni,aj perie,kaien evkei,nhn fu,sij orw/san auvth/j ou[twj poiki,lwj basanizome,nouj tou.j epta. ui`ou,j – “Ni la fiereza de los leones de Daniel ni la voracidad del horno de Misael eran tan fuertes como el ardor del amor maternal em aquella mujer al ver a sus siete hijos torturados.” e 16,21: kai. Danihl o di,kaioj eivj le,ontaj evblh,qh kai. Ananiaj kai. Azariaj kai. Misahl eivj ka,minon puro.j avpesfendonh,qhsan kai. upe,meinan dia. to.n qeo,n – “El justo Daniel fue arrojado a los leones; Ananías, azarías y Misael fueron precipitados en un horno de fuego. Y todos lo soportaron por Dios”. Tradução de M. López Salvá. In: DIEZ MACHO, Alejandro (1982: 161-162). 217GRELOT, Pierre (1995: 44). 218Cf. ASURMENDI, Jesús M. (2004: 428).

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inocente diante de um tribunal; 2) é vítima de uma acusação falsa; 3) recebe uma injusta

condenação; e, 4) é libertado e restaurado.219

Em Dn 3, o clímax do drama está na fornalha que produz a inversão de papéis e valores

(vv.19-23), ao passo, que o centro da ironia de Dn 6, está na figura de um rei triste, que faz

penitência e quase tem a certeza de que o Deus vivo de Daniel é capaz de livrá-lo da boca dos

leões. Interessante que em Dn 3, Nabucodonosor lança o desafio de que não há Deus que

possa livrar os três companheiros de Daniel da fornalha e de suas próprias mãos e no final, este

rei é obrigado a reconhecer o Deus deles como o único capaz de tal livramento.

Este é o teor da louvação e declaração epistolar do rei para todos os povos, nações e

línguas que moram em toda a terra. Primeiramente declara a razão do escrito (v.32: “pareceu-me

bem fazer conhecidos os sinais e maravilhas que Deus, o Altíssimo, tem feito para comigo.”) e

depois apresenta a sua louvação (v.33: “Quão grande são os seus sinais, e quão poderosas as

suas maravilhas! O seu reino é um reino sempiterno, e o seu domínio de geração em geração.”).

Podemos conferir a relação destes versículos com o capítulo 6: a saudação do v.31 está em

paralelo com 6,25 e a louvação acerca dos sinais e maravilhas do v.33 tem correlação com 6,27.

Com isso, podemos perceber o quanto estes dois capítulos estão totalmente entrelaçados.

c) Daniel 4 e 5: O juízo sobre os reis: Poder será cortado... dividido!

No capítulo 4 vamos encontrar um relato que faz uma releitura da parábola da árvore

descrita em Ezequiel 31,3-17 e 17,22-24. Aqui temos a forma como os impérios se

apresentavam para os súditos e dominados. Eis uma árvore grande no centro da terra; com suas

folhagens, seus frutos e sombra que ela fornece aos animais e às aves que fazem ali seus

219CROSSAN, John Dominic (1994: 423-24). O autor analisa os modelos de relatos de julgamento que possam estar na origem da narrativa da paixão. O autor apresenta o esquema presente nos relatos de resgate de inocente (situação; acusação; condenação; libertação e restauração) na saga de José em Gn 37-50 e Sl 105,16-22; na saga de Tobias (1,18-22); na narrativa de Daniel na cova dos leões (Dn 6) e de três judeus na fornalha de fogo ardente (Dn 3); na novela de Ester, no caso de Susãna e na narrativa dos judeus egípcios em 3 Macabeus.

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ninhos (vv.11-12). Na interpretação, a árvore que cresceu, que se fez forte (com suas folhas e

frutos abundantes) e que se tornara morada para todos os animais do campo e aves do céu, "és

tu, ó rei, que cresceste, e te fizeste forte; a tua grandeza cresceu e chegou até ao céu, e o teu

domínio até à extremidade da terra" (4,22). Eis um exemplo de como era descrito o grande

poderio de Alexandre.

Olhando o texto em sua forma, podemos de maneira geral dividi-lo em duas partes: dos

vv.1-14: o relato do sonho e, dos vv.15-34: a interpretação de Daniel. Alguns comentários e

traduções inserem neste capítulo a louvação do rei que aparece em 3,31-33, abrindo a narrativa

do sonho e fazendo um paralelo com a conclusão do capítulo (especialmente os vv.31-32), onde

aparece o rei louvando, exaltando e dando graças ao Altíssimo.

Vejamos alguns detalhes do texto:

3,31-33 – O imperador vai narrar os sinais e prodígios e afirma o reinado eterno do Deus Altíssimo A – INTRODUÇÃO: vv.1-5

1. O rei está tranqüilo e o sonho o deixa perturbado – vv.1-2 2. Decreto convocando os magos e adivinhos para interpretar o sonho e estes não deram a conhecer a interpretação – vv.3-4 3. Apresentação de Daniel, o príncipe dos magos, em quem está o espírito dos deuses dos santos – vv.5-6

B – O RELATO DO SONHO: vv. 7-15a

1. Fórmula introdutória: Eram assim as visões da minha cabeça... v.7a 2. Visão da árvore – vv.7b-9

a. Fórmula introdutória: eu estava olhando... v.7b b. Descrição da árvore – vv.7c-9

3. Visão do Vigilante – vv.10-14 a. Fórmula introdutória: Estava vendo... nas visões da minha cabeça... – v.10a b. Aparição do Vigilante – v.10b c. Ordem do Vigilante – vv.11-14

4. Fórmula conclusiva: Isto em sonho eu... vi – v.15a C – A INTERPRETAÇAO DO SONHO: vv.15b-24

1. Convite para interpretar – v.15b 2. Descrição da situação do intérprete – v.16a 3. Introdução do diálogo – v.16b-c 4. A interpretação – vv.17-23 5. Conclusão: Esta é a interpretação e decreto do Altíssimo – v.24

D – RELATO DE EXECUÇÃO DA PROFECIA: vv.25-30

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1. Afirmação da execução – v.25 2. Descrição da execução – vv.26-30

E – CONCLUSÃO DA CARTA – vv.31-34

1. No tempo marcado a razão voltou ao rei e ele bendisse ao Altíssimo – vv.31-32 2. Nesse instante a razão voltou ao rei e ele louvou o Rei do céu – vv.33-34

O intróito da narrativa tem algo em comum com o capítulo 2, por exemplo, o sonho que

deixa o rei perturbado, o decreto e convocação dos magos e de como estes não dão a saber a

interpretação, segue-se, ainda, a apresentação de Daniel e a intervenção divina (no capítulo 2

nos apresenta a pedra sem mão e aqui aparece o vigilante e no final do texto: uma voz que caiu

do céu). No capítulo 2, Daniel se apresenta para interpretar o sonho e é reconhecido como

aquele a quem foi revelado o segredo; aqui neste capítulo, é apresentado como aquele que tem

o “espírito dos Deuses dos santos” e como “chefe dos magos”. Porém, aqui aparece um detalhe

diferente dos outros contos: este é um relato escrito em forma de carta (testamento) ou proclama

do rei220 que trata de sua estranha visão e da perturbação que sentira; além disso, o sonho não

se refere a uma projeção do futuro dos impérios, mas quer tratar do destino do rei, que ficará

louco e viverá como um animal durante sete anos. “O caráter legendário da história é

demonstrado pelas freqüentes intrusões das maravilhas: o sonho, a vos que cai do céu e a

transformação miraculosa do rei. O propósito edificante é sublinhado nas três doxologias”.221

O sonho está descrito nos vv.7-14, já nos vv.7-9 encontramos a visão da grande árvore

no centro da terra e a descrição de suas folhagens, seus frutos e a sombra que fornece aos

animais e aves que fazem ali seus ninhos e que alimenta a todos. Esta visão tem uma forte

relação com Ezequiel 31,3-17. Parece que estes versículos fazem uma releitura apocalíptica de

Ezequiel.222 Os vv.10-14 descrevem a aparição de um vigilante (vigia), um santo que descia do

220Cf. COLLINS, John Joseph (1984: 61). 221 Idem., p.62. 222Cf. FRYE, Northrop (2004: 183): “Seguidamente a Bíblia parodia imagens e motivos de outras mitologias, quando o seu contexto é o de uma paródia demoníaca. Em todos os cantos do mundo mitologias apresentam não só uma árvore da vida ou símbolo de uma fonte de alimentos, mas uma

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céu. No Livro de Henoc encontramos várias referências aos vigilantes, ora indicando “anjos

caídos do céu” ora “os que não dormem”.223 Três aspectos encontramos na fala do vigilante: a

derrubada da grande árvore; ficarão na terra o toco e as raízes com cadeias de ferro e bronze; e,

a mudança de coração de homem para coração de fera (animal).224

O v.16 faz a ponte entre a descrição do sonho e a interpretação apresentada por Daniel.

De um lado, ressalta-se o estado de desconcerto e perturbação de Daniel. E, do outro, uma

palavra enigmática do intérprete: %yIr;['l. Hrev.piW %yIa;n>f'l. am'l.x, – “o sonho para os que

te odeiam e sua interpretação para teus adversários”. Porém, carregada de ironia se tomarmos a

expressão usada por Daniel: yair>m' yair>m' yair>m' yair>m' – “meu senhor!”. Levando em conta que a perturbação do

rei é porque não sabe o significado do sonho e a de Daniel é porque o entende, podemos

suspeitar que esta afirmação-resposta deste último é mero gesto de cortesia.225 No entanto, se

a intenção do relato é a de humilhar o governante (o rei), como aparece explicitada nos v.22s.,

estamos diante de uma narrativa que ridiculariza o grande poder e o desconcerta ao apresentar

o decreto do Altíssimo: fazer do rei um animal para transformá-lo em gente.

‘árvore do mundo’ – algumas vezes identificada com a árvore da vida e às vezes não. (...) No capítulo 31 do Livro de Ezequiel há uma vívida descrição dos poderes da Assíria, associada ao Egito, através da figura de uma tal grande árvore. Mas ela deve ser cortada por um inimigo mais forte, e ‘todas as árvores do Éden (...) deverão ser cortadas nas partes fundas da terra’ (31,16). Uma árvore já tardia no Livro de Daniel, sem dúvida derivada da árvore de Ezequiel, e que alcançava o céu, sendo visível nos confins da terra, é identificada com Nabucodonosor e seu poder de curta vida na Babilônia (Daniel, 4:10 e seguintes).” 223DIEZ MACHO, Alejandro (1984/b: 40). “Vigilantes: se traduce así tradicionalmente el et. teguhan, “constantes (servidores)”, epíteto usual de algunos ángeles. En el AT aparece solamente en Dn 4,10.14.20 (ar.: `îrîn; gr.: egregoroi). Aquí, en 10,9.15; 12,4; 13,10; 14,13; 15,2; 16,1.2; 91,15 (ángeles caídos). Arcángeles, 12,2.3; 20,1; 39,125; 61,12; 71,7 (en estos tres pasajes la expresión literal es “los que no duermen”)”. Ver também GRELOT, Pierre (1995: 40) e B.J, nota i, pp.1690-1691: “Isto é anjo, sempre em vigília para o serviço de Deus. Comparar com as rodas “cheias de olhos (ou de ‘reflexos’) ao redor”, Ez 1,18; e o título de “olhos do Senhor” dado aos anjos em Zc 4,10b. O termo “Vigilante”, exclusivo de Dn na Bíblia, é bastante freqüente nos apócrifos, notadamente no Livro de Henoc, nos Jubileus e nos Testamentos dos Patriarcas, bem como no “Documento de Damasco”: ele designa os arcanjos, e muitas vezes os arcanjos decaídos. Na tradição posterior, os Vigilantes são os anjos da guarda”. 224Cf. FRYE, Northrop (2004: 230): “A estória de Daniel, em que Nabucodonosor se torna uma espécie de Behemot, é um paralelo muito claro com a identificação, em Ezequiel, do Leviatã com o Faraó do Egito”. 225ALONSO SCHÖKEL, Luis e SICRE DIAZ, José Luis (1991: 1297-8).

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Nos vv.17-24 aparecem as várias camadas da interpretação. Primeira camada: o sonho

da árvore e a sua interpretação: os vv.17-18 retomam a descrição da árvore que fora narrada

nos vv.7-9: eis uma árvore grande e vigorosa, com uma altura que chega aos céus e com uma

vista que abrange toda a terra, com bela folhagem e frutos abundantes, alimenta a todos e

acolhe animais e aves; enquanto que o v.19 apresenta a chave interpretativa:

`a['(r>a; @Asl. %n"j'l.v'w> aY"m;v.li tj'm.W tb'r> %t"Wbr>W T.p.qE+t.W tyb;r> yDIî aK'l.m; aWhå hT'n>a;

– “tu, (és) esta [a árvore] ó rei, que te engrandeceste e te tornaste forte e tua grandeza cresceu

e atingiu o céu, e seu domínio para o fim da terra”.

A segunda camada gira em torno da visão do Vigilante, na qual o v.20 retoma a

declaração e ação deste sobre a árvore. O v.21 faz a passagem da segunda para a terceira

camada, na qual interpreta-se a visão através da apresentação de um decreto do Altíssimo nos

vv.22-23 (que a meu ver constituem a terceira camada de interpretação), e, tem por objetivo

anunciar ao rei a sua expulsão e que viverá como animal e não perderá totalmente o seu reino (o

toco e as raízes da árvore que ficarão), porém, a garantia de recuperação do reino só acontecerá

se reconhecer que o poder de tudo é o dos Céus.

O v.24 é a última camada, que compreende o aconselhamento de Daniel ao rei:

%t")w>lev.li hk'r>a; awEh/T, !hE± !yIn"+[] !x:miB. %t"y"w"[]w: qrup. hq"d>ciB. %y"j'x]w: – “e teus

pecados na justiça redime (remova) e tuas iniqüidades (perversidades) na misericórdia aos

pobres eis que vida prolongada para tua prosperidade” .

Os vv.25-27 apresentam a palavra do rei confirmando a sua grandeza, porém, as

palavras ainda estavam na sua boca quando (vv.28-29) cai uma voz do céu, aprovando a

interpretação feita por Daniel no que se refere à fala do Vigilante. O v.30 é o cumprimento da

palavra, enquanto que nos versículos finais (31-34) o rei recupera a razão e a sua ação resulta

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em bênção e louvor. Duas doxologias a confirmam a humilhação do rei e exaltam a figura do

Deus dos judeus. Estas orações de louvor são inspiradas em Is 40,17.22-24; 45,9; Jó 9,12; Ec

8,4; Sl 30,1; 17,28; 117,7 e 118,28.

Qual o grupo que conserva esta tradição de comparar o crescimento do império com

uma árvore grande que chega aos céus? Qual o grupo que conserva a tradição de falar da

mudança do coração do rei em coração de animal? Penso que estamos diante de uma tradição

anterior aos anos do reinado de Antíoco IV Epífanes. Podemos pensar na expansão

empreendida por Antíoco III ( 223 a 187 a.C.)? (pelo menos, no que se refere à árvore que

cresceu e se tornou forte). Pelos louvores e reza no final do capítulo, podemos pensar num

grupo ligado à reza nas sinagogas e que estariam transmitindo esta tradição.

Por fim, este capítulo descreve o que a comunidade pensa concretamente acerca da

conversão: caminhar na justiça e desfazer as iniqüidades usando de !n:x' ((Hanan: misericórdia)

para com os !yIn"+[] (`ánäºyin = pobres, miseráveis). São práticas difíceis de acontecer na vida e

nos projetos dos imperadores e, principalmente, na elite local que se arvora como poderosa.

Neste sentido, a esperança do grupo apocalíptico que está por trás do texto talvez esteja na

ação do vigilante: cortar a árvore!

No capítulo 5, a famosa narrativa da escritura na parede, não quer de maneira precisa

descrever os acontecimentos, mas interpretar a conjuntura daqueles e daquelas que estão

narrando sobre a opressão e os desmandos do poder. Lendo atentamente as notas cronológicas

apresentadas no livro de Daniel, veremos que os autores não tinham como objetivo dar lições e

conhecimentos de história, pois no próprio relato há uma certa confusão ao redor de Baltazar e

Nabonides. O mesmo acontece no capítulo 1, onde o autor simplesmente elaborou uma

compilação dos dados históricos fornecidos por 2 Rs 24 e 2 Cr 36.

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“Historicamente, este capítulo é indefensável: nem Baltazar foi o último rei da dinastia neobabilônica nem Dario foi o conquistador da capital; Baltazar não era filho de Nabucodonosor nem chegou a reinar, Dario não era medo nem chegou a inaugurar a dinastia. O fato é que o autor não pretendeu transmitir-nos feitos salientes de crônica, mas antes criar uma série de relatos exemplares imprimindo-lhes auréola de vagas referências históricas. Algo parecido faz o autor de Judite, inventando história e geografia. O esquema do capítulo pode-se aplicar a Dario, a Alexandre Magno, a Antíoco, a qualquer mudança de guarda no cenário da história”226.

Assim, não podemos ler esta narrativa como se esta fosse uma testemunha ocular da

caída da Babilônia. No entanto, a queda do império é um referencial desta escritura que aparece

na parede e que necessita de interpretação, pois o contexto deste escritor (ou compilador do

texto) demandava histórias que alimentassem a coragem e a resistência do povo.

Esta narrativa está organizada da seguinte maneira:

A – INTRODUÇÃO: v.1-6

1. O banquete de Baltazar e os seus convidados – v.1 2. Descrição do banquete, profanação dos utensílios e idolatria – vv.2-4 3. Os dedos da mão e a escritura – v.5 4. A reação do rei: medo – v.6

B – APELO AOS CALDEUS: vv.7-9

1. Convocação dos sábios e promessas do rei – v.7 2. Os sábios não conseguem ler nem interpretar – v.8 3. Reação do rei: ainda mais perturbado – v.9

C – INTERVENÇÃO DA RAINHA: vv.10-12

1. Saudação ao rei – v.10 2. A rainha fala sobre Daniel – v.11a 3. A rainha se lembra Daniel nos dias de Nabucodonosor – vv.11b-12a 4. A recomendação de se chamar Daniel – v.12b

D – PALAVRA DO REI PARA DANIEL: vv.13-16

1. O que sabe sobre ele – vv.13-14 2. A incapacidade dos sábios – v.15 3. Ouvi dizer que és capaz de interpretar... se... promessa do rei – v.16

E – PALAVRA DE DANIEL PARA O REI: vv.17-28

1. Daniel rejeita a promessa – v.17 2. Daniel relembra o que acontecera a Nabucodonosor – vv.18-21 3. Daniel reprova a ação de Baltazar – vv.22-23 4. Daniel lê e interpreta a escritura – vv.24-28

226Idem., p.1298.

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F – CONCLUSÃO: 5,29 – 6,1

1. Baltazar é assassinado – v.29 2. Dario toma o poder – 6,1

Como podemos ver a narrativa é muito simples: o rei Baltazar oferece um grande

banquete a seus maiorais e em meio ao calor da bebida aparecem dedos de mão de homem que

escrevem na parede do palácio real. Assim, o rei ordena que tragam os astrólogos, os caldeus,

os adivinhos para ler e interpretar o escrito (mene, mene, tequel urparsin). Estes não conseguem

ler e nem interpretar; ao passo que Daniel é apresentado ao rei e consegue decifrar o enigma.

O imaginário apocalíptico está na interpretação da escritura na parede: !ysi(r>p;W lqET.

anEm. anEm. (mene mene Teqel ûparsîn). Estas palavras podem ser lidas como contar, contar,

pesar e dividir. Eis um jogo de palavras cuja interpretação demonstra o fim do império: "Mene:

contou Deus o teu reino e o acabou. Tequel: pesado foste na balança e foste achado em falta.

Peres: dividido foi o teu reino e deu-se aos medos e aos persas" (vv.26-28). Estas palavras

também podem ser lidas como unidades monetárias (mina, siclo e meio-siclo), porém, são

interpretadas por Daniel como verbos "contar", "pesar" e "dividir".227 O rei vê seu reino medido,

reino que caminha para o fim; pesado, e não tem o peso suficiente (ser pesado, segundo a

Justiça procede de uma antiga noção egípcia e se encontra em vários textos do Antigo

Testamento: Jó 31,6; Sl 62,10; Pr 16,11 e outros); reino dividido: dado aos medos e aos persas.

No imaginário desta comunidade, que resiste à opressão está a certeza que o império de

227“O texto aram. repete Mane (contra LXX, Teod., Vulg., Josefo e os vv.26-28 que parecem supor três termos e não quatro) e tem a forma Parsin em vez de Farés. Na forma desses vocábulos misteriosos reencontram-se os nomes de três pesos ou moedas orientais: a mina, o siclo e a meia-mina (parás), e os termos se prestariam à série de trocadilhos dos vv.26-28, mane sugerindo o verbo maná (medir), tecel, o verbo shaqal (pesar), e parás, ao mesmo tempo o verbo paraç (dividir) e o nome dos persas. Não há unanimidade sobre o sentido da seqüência: alusão ao valor decrescente dos três impérios que se sucedem (babilônios, “medos”, persas), ou dos três reis: Nabucodonosor, Evil-Merodac e Baltazar (ou ainda: Nabucodonosor, Baltazar e os reis dos “medos e persas”) ou, enfim, algum provérbio antigo cuja pista se perdeu”. Nota v. da B.J., p.1694. Ver também SCHMIDT, Werner H. (2002: 280).

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Antíoco terá o mesmo fim do império de Baltazar. O império que nos oprime será contado,

pesado e dividido!

2. Fontes e Tradições presentes e manifestas no Livro

Quais as fontes e tradições presentes e manifestas neste livro aramaico de Daniel? Ao

fazermos esta pergunta estamos querendo ampliar a compreensão do livro, numa tentativa de

perceber as influências literárias exercidas sobre o autor, que podem ser tanto bíblicas quanto

extra-bíblicas.228 Comecemos por apontar as aproximações do livro de sonhos de Daniel com

outros livros dentro do cânon hebraico. “O autor usa imagens do AT e de fora dele. Em algumas

expressões, especialmente na parte hebraica, a linguagem é inovadora. Reconhecemos motivos

e tradições usados por outros autores bíblicos (...) imagens narrativas como a da árvore, a

grande estátua de ouro, a fornalha, etc., certamente são parte da imaginação popular e do

folclore de Israel”.229

São patentes na leitura de Daniel as comparações com a tradição de José no

Pentateuco (Gn 37-50). John Collins enumera os seguintes paralelos entre Daniel e José: Dn 1,4

e Gn 39,6; Dn 1,15 e Gn 41,2; Dn 1,3 e Gn 39,1; Dn 1,20 e Gn 41,24; Dn 2,1 e Gn 41,8; Dn 1,20

e Gn 40,6; Dn 5,11.14 e Gn 41,38; Dn 2,28 e Gn 41,25.28; Dn 5,29 e Gn 41,42.230 Há autores

que chegam a considerar o livro de Daniel como um midrash da novela de José.231 Por exemplo,

para Pierre Grelot, no capítulo 2 “a menção aos “mágicos” (hartummim, palavra egípcia) lembra

a história de José (Gn 41,24): é pela decifração dos sonhos do faraó que José adquire reputação

228Esta é uma das perspectivas apontadas por DELCOR, Mathias (1968: 290-312 e 1987:133-99). 229Cf. DE WIT, Hans (2000: 143-44). 230Apud. ASURMENDI, Jesús M. (2004: 419). 231A caracterização de Daniel 1-6 como midrash tem sido utilizado especialmente pela escola francesa (por exemplo, Delcor, Gaide, Lacocque, ver, a propósito, também Hartmann e DiLella). COLLINS, John Joseph (1984: 43).

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de “sabedoria” (Gn 41,39)”.232 Mathias Delcor distingue dois gêneros fundamentais no livro de

Daniel: apocalipse e midrash. Evidentemente, que o autor está caracterizando os capítulos 1-6

como midrash e, conseqüentemente, os capítulos 7-12 como literatura apocalíptica. Devemos ter

presente que não é tão fácil definir o gênero literário midrash, bem como, afirmar que os

capítulos 1-6 de Daniel colocam em prática tal gênero. Em poucas palavras, podemos dizer que

o midrash é a releitura, oral ou escrita, de um texto canônico fixo. Por isso, no midrash

encontramos a citação do texto fixo (aceito canonicamente e com livre circulação) a explicação,

atualização e compreensão de quem está produzindo o midrash.

De modo geral, midrash designa a interpretação dos textos sagrados feita pelos rabinos

e fariseus. Nesta perspectiva, a escritura se caracterizava como o fundamento para um midrash

e é a partir do texto sagrado que se produz a explicação e o discurso rabínico (enquanto

aplicação e prédica). Porém, um midrash é a tentativa de esclarecer o significado do texto

sagrado, de atualizá-lo e, por fim aplicá-lo às situações concretas com o objetivo de solucionar

os problemas (principalmente aqueles que não são mencionados no texto sagrado).233 Um outro

gênero literário ou hermenêutico (como é considerado por muitos) é o pesher, que, de modo

geral, reúne um conjunto de interpretações, de caráter escatológico e enigmático. Por isso, são

considerados textos de interpretação de sonhos. Aliás, rvp (Pshr : escrever ) aparece

abundantemente em Dn 2,1-45; 4,4-27 e 5,5-17 e o seu verbo correlato no hebraico rtP (Ptr :

232GRELOT, Pierre (1995: 34). 233Cf. Renee Bloch. Apud. DOCKERY, David S. (2005: 32). Para Dockery, midrash tem o significado de comentário, com o objetivo de tornar a Escritura contemporânea a fim de aplicá-la ou torná-la significativa para a situação atual do intérprete. Cf. p. 33. José Severino Croatto faz a seguinte distinção: “O targum é a versão do texto hebraico ou aramaico, porém com algumas liberdades hermenêuticas que introduzem naquele atualizações imprescindíveis da mensagem. O pescher é um comentário a um texto bíblico, versículo por versículo ou escolhendo passagens específicas. Cita-se o versículo e o comentário começa dizendo: pesher ou pishrô, ‘explicaçao’ ou ‘sua explicação’ é... Nos rolos do Mar Morto, este gênero literário pareceu como característico. É uma forma de releitura do texto canônico. O midrash, conforme falamos acima, é a ampliação livre de um texto bíblico na forma de uma história nova. O midrash é parte da literatura rabínica que remonta, senão antes, pelo menos à época de Jesus. Existem muitos midrashim. O midrash, porém, além de ser um gênero literário, é um método hermenêutico usado para explorar o sentido profundo de um texto bíblico. Neste nível é denominado de derash”. Cf. CROATTO, José Severino (1986: 44-5).

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interpretar) que aparece várias vezes em Gn 40,5-22 e 41,8-18. Neste sentido, os grandes

intérpretes de sonhos serão José, Daniel e o Mestre da Justiça (Qumran), que alcançavam a

interpretação através da revelação divina. O midrash tem o sentido de atualizar o texto; enquanto

que o pesher visa ter clareza dos cumprimentos das promessas e profecias apocalípticas. Um

exemplo de pesher encontramos na comparação da interpretação do sonho em Dn 2 e a

visão/sonho apocalíptico em 4 Esdras 12.

Porém, com relação à hipótese do livro de Daniel ser um midrash da novela de José em

Gn 37-50, Jesús M. Asurmendi argumenta que “em Daniel não se trata em caso nenhum de

interpretar ou de reescrever a história de José. Trata-se de um herói novo em uma situação

nova. A influência do Gênesis é um dos elementos, entre muitos outros, da formação dos relatos

(de Daniel) (...) O “midraxe” como gênero literário e como procedimento de interpretação não

serve para explicar Dn 1-6”.234

No tocante ao sonho da estátua (Dn 2), Martin Noth parte em busca do material da

tradição que foi essencial para o apocalíptico fazer a sua análise dos impérios. São conhecidas

as referências-fontes que designam as eras mundiais pelos metais ouro, prata, bronze e ferro: de

um lado, Hesíodo e, de outro, a tradição iraniana. Com isso, vemos que o autor apocalíptico

buscou em fontes fora da tradição israelita vetero-testamentária.235 A idéia de impérios mundiais

sucessivos teve suas primeiras formulações no período persa através da obra de Ktesis (médico

do rei Artaxerxes II) sobre a história persa, dividida em três momentos: no primeiro a história do

reino assírio, depois do reino medo e, por último, do reino persa. Esta obra está conservada em

234ASURMENDI, Jesús M. (2004: 419). 235Cf. NOTH, Martin. A concepção de história no apocalipsismo do Antigo Testamento. In: AAVV (1983: 82-83). Ver também HERRMANN, Siegfried (1985: 485-487): “La apocalíptica del libro de Daniel contempla casi exclusivamente la gran historia universal y se introduce simbólicamente en Dan 7 con la imagen de los cuatro animales que surgen del mar caótico y representan los cuatro reinos. Se trata de la reelaboración de un esquema tradicional; originalmente fue la representación de las edades del mundo, que fue asumida por Israel y que descansa probablemente en antiguos modelos griegos (Hesíodo) e indo-iranianos. El mismo esquema subyace en la tradición reelaborada en Dan 2, donde la sucesión de los reinos no se representa con la presencia de diversos animales, sino con los diversos materiales de una estatua (el “coloso de los pies de barro”)”.

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fragmentos e, também, de maneira indireta. Isto leva a supor que o autor apocalíptico e,

posteriormente, os autores romanos, tiveram acesso a esta tradição que tratava da divisão em

três impérios mundiais.236

Um intrigante exemplo do esquema de quatro reinos provém do persa Zand-i Vohuman

Yasn ou Bahman Yasht, que combina seqüência de metais e reinos de uma maneira semelhante

a Daniel 2.237

“O paralelismo é espantoso sobretudo no caso do Livro de Daniel: o simbolismo dos quatro metais, representando as quatro eras do mundo, tem sua contrapartida no apocalipse zoroastriano conhecido como Vahman Yasht, composto na época da conquista macedônia. Até mesmo o curioso detalhe de que a quarta e última época é simbolizada por “ferro e argila juntos” está presente na obra persa – e em nenhuma outra parte: não há nenhuma menção a isto em Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, a fonte grega dessa tradição”.238

Com relação ao outro texto de Daniel (Dn 7) que apresenta uma periodização dos

impérios, desde 1895, Hermann Günkel já apontava para o poema babilônico Enuma Elish

como material fonte para Dn 7,2-14 (Em direção parecida Maurice Casey aposta numa tradição

mitológica como fonte para o texto de Daniel). As teses de Günkel acerca das semelhanças

entre Dn 7 e o Enuma Elish não foram levadas a sério e somente com as descobertas de textos

Ugaríticos é que foram retomadas. Basta olharmos para os comentários de Anne E. Gardner239,

E. C. Lucas240, Mathias Delcor241 e John Joseph Collins que demonstraram as influências

mesopotâmicas e canaanitas em Dn 7, aliás, estes autores serão tomados aqui para a

percepção das fontes e tradições por trás deste importante capítulo de Daniel.

236Cf. NOTH, Martin. A concepção de história no apocalipsismo do Antigo Testamento. In: AAVV (1983: 87). 237Conferir as indicações de COLLINS, John Joseph (1989: 74-78). 238Cf. COHN, Norman. (1996: 288-89). 239GARDNER, Anne E. (2001: 244-252). 240LUCAS, E. C. (2000: 66-80). 241DELCOR, Mathias (1987: 133-160).

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Anne E. Gardner depois de apresentar um quadro sinótico de Dn 7 e Enuma Elish

aponta para as seguintes semelhanças entre os dois textos: (1). em ambos há referência à

agitação do mar pela ação dos quatro ventos; (2) em Daniel 7 os animais que vêm do mar

causam perigo, e, em Enuma Elish os monstros que vêm do mar transtornam Tiamat; (3) a

relação entre Qingu e a quarto animal de Daniel (que não tem caracterização conhecida); (4) o

grande problema que enfrentam é a sobrevivência dos animais (monstruosos); (5) nos dois

textos o último animal é o mais terrível; (6) o último animal que em Daniel é morto pelo fogo é

uma referência à festa do ano Novo Babilônico; e (7) O poder que é passado para o Filho do

Homem em Daniel segue paralelo no poema de Enuma Elish ao poder que é transmitido para

Marduk.242 Há que se considerar que a frase em Dn 7,2 sugere influência direta da Babilônia —

“os quatro ventos do céu”. E numa forma mais curtas “os quatro ventos”, também aparece na

literatura Akadiana e ugarítica. Na Bíblia Hebraica encontramos esta frase somente em Daniel

(7,2; 8,8; 11,4) e em Zc 2,10; uma variante mais curta aparece em Ez 37,9 e Jr 49,36.243

Muitos autores, além de E. C. Lucas e Anne E. Gardner, apontam como fonte para Dn

7 os textos canaanitas, de modo especial, o mito de Baal e Yam. Para John Joseph Collins a

figura de “um como Filho do Homem” que vem nas nuvens é uma imagem que pode estar

associada à imagética teofânica de Baal, principalmente do Baal que nos mitos cananeus é

representado como o “cocheiro das nuvens”. De certa maneira, o autor de Daniel está muito

distante do mito cananeu, mas utiliza-o como instrumental para a leitura dos conflitos entre os

judeus e Antíoco Epífanes, justamente porque o mito gira em torno do conflito entre Baal e Yam.

Ou seja, o conflito entre as divindades caracteriza o confronto identitário, étnico, político-social e

econômico entre judeus e seleucidas.244 Vale salientar, que se entendermos os mitos enquanto

relatos (textos em seus diversos sentidos) que interpretam uma dada situação que o povo estava

242GARDNER, Anne E. (2001: 247-49). 243LUCAS, E. C. (2000: 69-70). 244COLLINS, John Joseph (1989: 81). Ver também GARDNER, Anne E. (2001: 244-246) e DELCOR, Mathias (1968: 290-312).

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vivendo, na qual os seus autores se inserem, podemos dizer que os mais diferentes relatos

míticos têm as marcas de resistência às realidades de opressão. Imaginemos a resistência das

minorias canaanitas presente no mito de Baal ou a resistência de variados grupos nas periferias

do império babilônico produzindo a sua leitura dos mitos criacionais e diluvianos. Por isso,

devemos trabalhar com a hipótese de que, em grande parte, se apresenta nos relatos míticos

uma força e dinâmica de resistência.

Para John Emerton tanto a figura de “um como Filho do Homem” e o “Ancião de dias”

derivam da mitologia canaanita sobre o conflito entre Baal e El. É sintomático que em Dn 1-6,

Daniel seja apresentado como homem sábio, com sua ideologia religiosa superior aos sábios da

Babilônia. Evocam, assim, a superioridade de Daniel e de seu Deus, pois são capazes de revelar

segredos e mistérios.245

Uma outra proposta demonstra a dependência de Dn 7 de um texto akádico (Visão do

Mundo Inferior). H. Kvanvig é quem propõe a relação entre os dois textos, apontando para cinco

características em comum: 1) ação da natureza (os ventos e o mar em Daniel): na Mesopotâmia

o mitológico Apsu, as subterrâneas águas profundas, era visto como a morada de estranhas

criaturas composta de diferentes formas. Esta imagem deve ter influenciado a visão do homem

vindo do mar em 4 Esdras 13 como independente de Dn 7; 2) os monstros: Daniel descreve

quatro animais e estes são análogos aos 15 Deuses da visão descrita no texto akádico; 3) em

ambas as visões, Deus está no trono para julgar; 4) o julgamento é visto como um ato de Deus

como juiz; e 5) o governo ideal é designado como um homem. Em suma, para Kvanvig em

ambas as visões há a aparição de criaturas híbridas, uma figura humana, um Deus em seu trono

e a cena de julgamento.246

245 J. A. Emerton. Apud. COLLINS, John Joseph (1997b: 140). 246 H. Kvanvig. Apud. COLLIS, John Joseph (1997b: 146-150).

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Nas atas de martírio (Dn 3 e 6) percebemos, no tocante a ajuda do Deus de Israel aos

três jovens e a Daniel (adoradores fiéis) que enfrentam o perigo de morte iminente, uma forte

influência da leitura dos profetas que lutaram contra a manipulação da religião e os poderes

estabelecidos. É perceptível as marcas da releitura das profecias de Isaías e de Jeremias.247

Parece-me que Dn 3 está muito influenciado por Is 2,1-5, elaborando uma inversão do relato

profético. Se em Daniel a estátua é colocada no vale; em, Isaías, o templo é colocado sobre os

montes. Lá no vale os povos são convocados e obrigados a adorar a estátua; em Isaías os

povos o fazem voluntariamente. Em Daniel, é patente o instrumento de repressão (fornalha de

fogo para quem não adorar a estátua), ao passo que, na profecia de Isaías as armas (espadas e

lanças) serão transformadas em relhas e podadeiras. Percebemos, que um texto fala da

adoração ao Deus do povo por todos os povos voluntariamente e, o outro texto, fala da adoração

da imagem divinizada do imperador por todos os povos obrigatoriamente.

Também os ambientes da profecia, o capítulo 4 de Daniel representa uma releitura da

imagem da árvore (representando o império) em Ez 31, 3-17 e 17,1-10.22-24; é uma aplicação

da alegoria da árvore em Ezequiel para os novos tempos. Porém, na descrição e ironia do que

irá acontecer com o rei (Nabucodonosor) encontramos forte paralelo na oração de Nabônides,

descoberta na gruta 4 de Qumran. Vejamos este texto e como tem estreita ligação com Daniel

4248:

“Palavras da oração pronunciada por Nabucodonosor, rei do p[aís de babilônia, o grande rei, quando for acometido de perigosa úlcera pela palavra de D[eus e quando permane] ceu em Teim[a: “Eu Nabunai, de perigosa úlcera fui acometido durante sete anos. E de [pois disto] Deus’voltou [ sua face para meu lado e curou-me] e meu pecado foi remido. Um adivinho – e este [era um homem j]udeu de entr[e os membros da deportação – diz: “A teu povo,] declara e escreve que renda glória e gran[deza e honra] ao nome do De[us Altíssimo! E tu, quando] tu

247Luis Alonso Schökel e José Luis Sicre Diaz apontam para as influências da tradição da escola de Isáias, de modo especial, o Deutero Isaías. (1991: 1291-92). 248 O texto aparece fragmentado. Por isso encontramos os sinais de colchetes numa tentativa de reconstrução do texto.

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foste atingido de úlcera peri [gosa e permaneceste em] Teima, [foi sobre a palavra de Deus. E tu,] durante sete anos, tu pedi[as diante de todos os deuses] prata e ouro, [bronze, ferro,] madeira, cerâmica, porque [tu pensavas] que eles [eram] deuses...”249

Um texto, escrito no primeiro século E.C., o capítulo 4 da Vida dos Profetas, vai utilizar

as imagens do capítulo 4 ao falar da vida de Daniel junto à corte de Nabucodonosor; 250 e isto

demonstra o quanto eram conhecidas as imagens e a literatura de Daniel.

Em suma, podemos dizer que o livro aramaico de Daniel tem as suas fontes e tradições

na profecia e sabedoria bíblica, nos textos mesopotâmicos, na literatura mitológica de Canaã e

de Israel e na literatura persa. Porém, temos que ter presente que este livro tem as marcas de

um romanceiro popular, de um livreto de sonhos e de uma coleção de legendas. Justamente,

uma das chaves da literatura apocalíptica é escrever "para que os fatos não se apaguem, para

que a memória não seja varrida pelo vento" frente à desmesurada violência. Assim, esta

249GRELOT, Pierre (1995: 41-42). 250“Era de la tribu de Judá, de una familia que se distinguía por su servicio al rey; pero, siendo aún infante, fue deportado de Judea al país de los caldeos. Había nacido en Bet-Jorón de arriba. Era un hombre en sus cabales hasta el punto de que los judíos creían que era un eunuco. Se lamentó mucho por la ciudad, y en sus ayunos se privó de todo alimento apetecible. Era un hombre de aspecto adusto, pero embellecido por la gracia del Altísimo. Imploró mucho por Nabucodonosor, cuando se convirtió en bestia y en animal, para que no pereciera, pues se lo pidió por favor Baltasar, su hijo. Sus partes delanteras junto con la cabeza eran de buey; y los pies y las partes traseras de león. Al santo (Daniel) le fue revelado, a propósito de este misterio, que se había convertido en animal por su ansia de placer y por su obstinación. Y esto tienen de particular los poderosos, que en su juventud se ponen como el buey bajo el yugo de Beliar y a la postre se convierten en fieras, dan zarpazos, destruyen, matan y golpean. El santo conoció, a través de Dios, que comía hierba como un buey y se le convertía en alimento de naturaleza humana. Por eso también Nabucodonosor después de la digestión, convertido en ser humano, suplicaba al Señor entre sollozos pidiéndole cuarenta veces por día y noche. Entonces le sobrevenía un espíritu animal, y se olvidava de que había sido hombre. Su lengua había perdido la capacidad de hablar. Al darse cuuenta, se echaba a llorar. Sus ojos se ponían al rojo vivo de llorar. Y muchos salieron de la ciudad para contemplar-lo. Sólo Daniel no quiso verlo, porque durante todo el tiempo de su metamorfosis había estado en oración por él. Decía que se convertiría de nuevo en hombre, pero no le creían. Daniel consiguió que los sete años – los “siete tiempos” que había dicho – se convirtieran en siete meses. El secreto de los siete tiempos se cumplió en el rey, porque en siete meses se rehízo y los seis años y seis meses restantes estuvo sujeto al Señor y reconoció su impiedad. Después de perdonarle su iniquidad, le devolvió el reino. Mientras se arrepentía no comió pan ni carne ni bebió vino, porque Daniel le había ordenado aplacar al Señor con legumbres a remojo y verduras. Por eso le llamó Baltasar, porque había querido constituirlo coheredero junto con sus hijos. Pero el santo dijo: “Lejos de mí abandonar la herencia de mis padres y unirme a las herencias de los incircuncisos”. Hizo también muchos milagros para los otros reyes de los persas que no se pusieron por escrito. Murió allí y fue enterrado solo y con todos los honores en la cueva del rey. Hizo también un presagio en las montañas que están encima de Babilonia: “Cuando eche humo la montaña del norte, llegará el fin de babilonia; cuando arda como un fuego, vendrá el final de toda la tierra. Pero si la montaña del sur mana agua, volverá el pueblo a sua tierra; si mana sangure, la matanza de Beliar se extenderá por toda la tierra”. Y el santo se durmió en paz”. Vida dos Profetas 4,1-22. In: DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 517-18).

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literatura figura como resistência (com os seus símbolos e metáforas) que articula a realidade

fazendo audível o inaudito e devolvendo o verdadeiro sentido de textos fechados que serviam

apenas para legitimar a grande resignação251. O livro de Daniel é uma coleção fascinante de

histórias populares sobre a resistência dos judeus numa época de colonização e diáspora252.

3. O Chão no qual surgiu o livro de contos, sonhos e visões de Daniel

É quase consenso entre os comentadores do livro de Daniel que o conjunto aramaico foi

colecionado no período anterior à guerra dos Macabeus. Pelo simples fato desses capítulos não

trazerem nenhuma menção acerca da guerra. Evidentemente alguns estudiosos consideram o

capítulo 7, elaborado posteriormente ao conjunto de legendas, ou seja, foi produzido em meio

aos conflitos armados entre selêucidas e macabeus como uma releitura do capítulo 2. Aliás, joga

toda a sua atenção para pequeno chifre que fez muitos estragos e persegue os “Santos do

Altíssimo”.

Portanto, as narrativas de sonhos, legendas, atas de martírio, ironização e sátira aos

homens do trono, circularam entre o final do período persa e chegada do império grego até os

momentos novos e difíceis dos governos dos generais Ptolomeus e Selêucidas.

Apontaremos alguns aspectos produzidos por este livro de Daniel no imaginário popular.

Para E. C. Lucas as histórias populares (Dn 1-6) que giram em torno da interpretação de

sonhos na corte de Nabucodonosor, refletem o ambiente vital das comunidades da Diáspora

quando do domínio persa; já as visões (Dn 7-12) sugerem o contexto dos conflitos entre os

Macabeus e o poder de Antíoco Epifânes IV.253 Ágabo Borges de Sousa sugere que os

251DE WIT, Hans (1988: 29-47). 252Ver DE WIT, Hans (2000: 136-152). 253Cf. LUCAS, E. C. (2000: 66).

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capítulos 2-6 de Daniel representam uma referência ao período exílico, enquanto “contos de

corte” que foram trazidos pelos que retornavam e serviu como uma espécie de aparato para se

criticar o sistema opressor na época dos Macabeus.254

A língua e a linguagem usadas no livro são de uma época tardia ao período exílico. O

texto aramaico vem de uma língua que só aproximadamente em 400 a.C. começou a surgir e

que no período dos Macabeus era a língua de comunicação comum. Além do aramaico temos no

livro de Daniel um hebraico cujas expressões e estruturas pertencem a um período anterior.

Ágabo Borges de Sousa apresenta alguns aspectos do minucioso trabalho de Rainer Albertz,

que compara o texto da Septuaginta com o texto aramaico, chegando à conclusão de que o texto

aramaico – que é considerado a parte mais antiga do livro – está baseado em uma versão mais

antiga ainda, que originalmente teria sido “contos de corte”. Estes escritos poderiam ser a

fixação de contos originários do período babilônico, oralmente mantidos na tradição do povo. Os

“contos de corte” teriam sido colecionados e passados para o aramaico em um período pós-

exílico, facilitando assim o acesso e a manutenção desta tradição vinda da experiência do

cativeiro babilônico, sendo então retrabalhados em uma redação final mais ou menos no século

II a.C.255

Quando da dominação helênica (332 a.C. a 63 a.C.) o povo da Samaria, da Judéia e da

diáspora viveram o choque de duas idéias-força: de um lado a Promessa, enquanto iniciativa de

Deus e que exigia do povo a fidelidade e a crença e, do outro, a Aliança, na qual o povo colabora

e é livre, porém exige fidelidade e observância.256 Podemos notar este aspecto nas inúmeras

referências aos judeus fiéis e observantes da lei no texto aramaico de Daniel (questões muito

próximas aos livros de Ester e Baruc). Assim sendo, o fracasso das instituições organizativas do 254SOUSA, Ágabo Borges de (1998: 24). 255Idem. pp.24-28. Conferir também: SOUSA, Ágabo Borges de (1997: 72-77). 256 Os paradoxos: gratuidade – exigência; liberdade – fidelidade e observância; graça – lei aparecem com muita força na literatura deuteronômica e na literatura bíblica do pós-exílio. Pode soar estranho você conjugar liberdade com observância ou graça e prática da lei; porém, na cultura de Israel e da Judéia é algo muito comum na dinâmica da observância da Torá e na relação com Javé.

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povo judeu (monarquia, templo, profecia, sacerdócio, jurisprudência) durante o exílio e o

cativeiro, fez surgir um sentimento de que a Aliança fora quebrada, mas a promessa continuava

através da Nova Aliança criada por Deus. A exigência desta Nova Aliança é a prática e

observância da Lei. Com a Lei no coração o povo será fiel!

Olhando para os projetos de reconstrução do povo depois do exílio veremos que isto não

deu certo: com Esdras e Neemias a Aliança foi sufocada pela lei; no período dos generais

Lágidas (do Egito) acreditou-se que aconteceria um processo de abertura, mas nos deparamos

com as fortes influências do helenismo, e, na época dos generais selêucidas, houve muita

resistência e luta (como podemos observar no levante promovido pelos Macabeus).

A dominação helênica tem seus inícios com as façanhas e campanhas do macedônio

Alexandre Magno, que chegou ao poder em 336 a.C., aos vinte anos de idade. Seu governo

terminou em 323 a.C. e foram treze anos que mudaram o Mundo Antigo. Quer dizer que havia

um vazio que devia ser preenchido. E foi com esta perspectiva que os generais de Alexandre

passaram a brigar pelo poder. E foi em vista deste vazio de poder, que os judeus liderados pelos

irmãos Macabeus partem para a luta de independência.

Este poder relâmpago e esta rápida difusão se deve a alguns fatores: o helenismo antes

de chegar pelas armas, veio através do comércio e das idéias, além disso, cooperou o gradativo

cansaço do império Persa (depois de mais de 200 anos de domínio estes se transformaram num

poder intransigente, perseguidor e opressor) e a esperança de libertação, ou seja, recuperar os

rumos da sua própria história foi crescendo no meio dos povos dominados. Porém, o que mais

coopera com o apogeu de Alexandre Magno é a sua organização político-militar eficiente, as

suas boas estratégias e a imagem mítica que foi sendo construída durante o seu reinado.

Podemos conferir de certa maneira a descrição do poderio de Alexandre Magno nas imagens da

grande estátua de Dn 2, nos animais de Dn 7 e na grande árvore que chega aos céus em Dn 4.

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E se atentarmos bem para essas imagens de Daniel, descobre-se que as legendas e narrativas

populares de Daniel querem descrever os impérios em declínio. Há nas entrelinhas uma leitura

da conjuntura de enfraquecimento hegemônico das nações estrangeiras.

A grande mudança na vida do povo foi provocada pela rápida transformação dos

costumes trazida pelo helenismo. Podemos dizer que aconteceu na Judéia uma grande crise de

identidade (tradições, cultura e costumes).

De muitas maneiras a cultura helênica se espalhou pelo mundo daquele tempo. Através

da implantação de um comércio prático, baseado nas trocas no mercado; de uma administração

eficiente e um projeto econômico baseado no desenvolvimento da agricultura, do aumento

gradativo dos tributos. Também esta cultura foi difundida através da criação de novas cidades

helênicas com estádios, teatros, escolas e ginásios e de uma política de favores, onde a

administração era entregue a ex-combatentes e com freqüência a doação de terras para

soldados aposentados. A propósito da organização do império helênico, podemos observar nas

entrelinhas de Dn 2-7 a descrição do grande edifício administrativo (satrapias, príncipes e

ministros), político (generais e militares), religioso (magos, sábios, cantores, instrumentos de

domínio religioso cultural, tais como, as festas e adorações). Tudo isto regado com uma boa

dose de promessas e punições.

As histórias da corte preservadas na Judéia oriundas das cortes babilônica e persa –

demonstram um feitio similar de uma atitude predominantemente positiva a respeito dos

monarcas estrangeiros, nas quais o judeu perseguido e violentado se torna conselheiro de

Nabucodonosor, e, com os seus amigos alcança os altos postos na administração em terras

estrangeiras e é mais sábio do que os habitantes nativos. Eis um quadro positivo do rei bárbaro.

Pode até ser uma medida de comparação com os generais selêucidas e lágidas. Um exemplo

temos na oração de Nabônides, na qual os acontecimentos relatados em Daniel, onde o rei

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posteriormente recebe a cura pelo trabalho milagroso de um judeu – semelhante a

Nabucodonosor em Dn 4 – e se torna um adorador do Deus verdadeiro.257

Este “vento novo” deve ter provocado a simpatia e a esperança daqueles cujos ideais

foram negados e ignorados pela reforma de Neemias. Igualmente trouxe tensões e conflitos

internos, principalmente a partir do ano 323 a.C., depois da morte de Alexandre, pois os seus

generais lutam pelo poder. Os generais que queriam manter a união do império saem perdendo,

enquanto que os generais-governadores das províncias que queriam dividir o bolo, saem

ganhando. Além das lutas pelo trono em Alexandria, cidade nova, a colônia judaica se abre aos

valores do helenismo. E esta tensão toma proporções mais amplas: grupos ligados à diáspora da

Babilônia na defesa de Jerusalém contra a mentalidade da diáspora do Egito, que tem o apoio

dos Ptolomeus (generais da província do Egito). Além disso, cresce a exploração, sobretudo, na

época selêucida (generais da província Síria-Babilônia), pois os reis têm necessidade de dinheiro

e roubam os templos. Isto começa a provocar uma reação progressiva nos camponeses e nas

pessoas que vivem nas regiões afastadas das grandes cidades. No capítulo 5 de Daniel

encontramos uma rápida menção à profanação dos costumes e à cultura religiosa judaica na

crítica que Daniel apresenta às ações do rei Baltazar. Aliás, a crítica do profeta resulta na

interpretação da Escritura na parede e no conseqüente anúncio da morte do rei.

As guerras são constantes entre Síria e Egito, alternadas com tratados de paz e

casamentos. Antes de 301 a.E.C., os Ptolomeus invadiram a Judéia cinco vezes e durante a

dominação exercida por eles houve cinco guerras “Sírias”. A segunda guerra (260 a.C. a 253

a.C.) terminou com um tratado de paz e com um casamento. Talvez aqui esteja a referência à

tentativa de misturar ferro com barro ou na interpretação da visão de que a mistura do ferro com

barro seja uma tentativa fracassada de casamento conforme lemos em Dn 2. Antíoco II repudiou

a própria mulher Laodice e seus dois filhos e se casou com Berenice, filha de Ptolomeu II. Isto foi

257HENGEL, Martin (1974: 29).

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em 253 a.C. Mas o tratado de paz durou pouco tempo. Antíoco II e Ptolomeu II morreram quase

no mesmo tempo. Aí Laodice mandou matar Berenice e a criança e colocou o próprio filho como

rei da Síria, que é Selêuco II. Ptolomeu III declara guerra para vingar a irmã Berenice. Invade a

província (da Síria até à Babilônia) e traz de volta as imagens que foram roubadas. Daí recebe o

nome de Evergetes, que significa “bem-feitor”.

O povo estava vivendo a forte onda da diáspora voluntária e a saída de judeus para

lugares nos quais poderiam viver e observar as próprias tradições, costumes e lei. Podemos

elencar alguns fatores que favoreceram esse movimento de exílio: as constantes guerras desde

Alexandre Magno; as freqüentes passagens de exércitos; as pesadas taxas, os impostos e

tributos; a insegurança generalizada; o ambiente fechado da comunidade de Jerusalém (desde a

época de Esdras e Neemias), que, com a sua atitude intolerante para com os estrangeiros e os

povos da terra os estimulava e os obrigava a partir. A cidade de Jerusalém deixa de ser

referência para os que moram nela.

Além disso, continua o exílio forçado. De um lado, as ações de Ptolomeu I (305 - 285

a.E.C.) e Seleuco I (305 – 280 a.E.C.) que promoveram muitas deportações e, de outro, continua

o constante comércio de escravos e o emprego de judeus como soldados mercenários (cf. 2Mc

8).

Uma questão ainda resta sobre este livro de legendas (Dn 2,4b-7,28): quem são os seus

autores? Qual o ambiente no qual foram produzidas tais palavras e histórias populares? Qual o

grupo político-religioso que elaborou com tamanha precisão um livro de ironias ao poder

estabelecido? Se tomarmos como referência as influências da profecia e da literatura que

circulava na época podemos pensar num grupo que tem amplo conhecimento. Muitos

comentadores do livro de Daniel lançam a hipótese (entre estes destaco a leitura de John

Joseph Collins) do grupo dos maskilim. Quem é este grupo e qual o seu papel e influência junto

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ao povo no IIo século a.E.C.? ~yliyKif.m; – vem da raiz hebraica lkf que significa:

compreender, ver, ter introvisão, perceber; tornar prudente ou ser perspicaz e inteligente; dar

entendimento; ter sucesso; agir com devoção e piedade (mostrar-se devotado).258 Indica

também aqueles que têm discernimento e que agem prudentemente.

No livro de Daniel, de modo especial no capítulo 1, Daniel e seus companheiros são

descritos como hm'k.x'-lk'B. ~yliyKif.m( (maSkilim bekol hokmah) “instruídos em toda

sabedoria”. No capítulo 11, eles aparecem como um grupo que atua na instrução do povo

(população) em meio ao processo de perseguição (cf. vv.33 e 35). A instrução que eles dão é

presumivelmente a visão do mundo revelado nas profecias de Daniel. Isto demonstra que eles

têm um certo engajamento na sociedade. Ao tratarmos deste período de dominação helênica e

os conflitos com a nova cultura e a guerra dos macabeus, não podemos imaginar somente dois

grupos judaicos opostos: de um lado a aristocracia representada pelos sacerdotes e altos oficiais

e, de outro, o grupo liderado por Matatias e pelos irmãos macabeus. São muitos grupos e

tendências.259 Os maskilim são um grupo de elite ou popular? Sua literatura e sabedoria podem

ser descritas como esotérica ou se inclina para uma leitura de classes? Podemos pensar que o

lugar social e a identidade deste grupo têm ligação com as antigas escolas de escribas que

inferem suas idéias, projetos políticos de resistência em Daniel, Henoc e outros heróis

pseudônimos; bem como, há uma mistura nos escritos apocalípticos de uma grande gama de

materiais e tradições antigas, tais como os mitos canaanitas, judaicos, mesopotâmicos e textos

ugaríticos.260

Com certeza, o grupo dos maskilim é totalmente distinto do grupo dos macabeus e

imprime toda a sua tradição nos capítulos 1-6 de Daniel. É um grupo marcado pela fidelidade à

258AAVV. (2000: 238). 259 Ver VASCONCELLOS, Pedro Lima e SILVA, Rafael Rodrigues da (2004). 260 Ver COLLINS, John Joseph ( 1997b: 67-68).

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lei em meio à grande perseguição e pela expectativa escatológica de uma grande reviravolta

social determinada pelo julgamento divino.

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CAPÍTULO 2:

O LIVRO HEBRAICO DE DANIEL

O livro de Daniel como o encontramos na Bíblia Hebraica forma um conjunto de doze

capítulos. Extraindo a versão aramaica deparamo-nos com os textos escritos em hebraico que

compreendem os capítulos 1,1 –2,4a e 8,1 – 12,13. Estes textos têm, por um lado, a finalidade

de continuar os casos narrados junto à corte (Dn 2-6) e, por outro, a partir da visão de Dn 7,1-28

apresentar uma linguagem nova que contempla, em termos escatológicos e apocalípticos, a

reviravolta social e a construção de um novo tempo ou domínio.

1. A introdução narrativa de Dn 1,1 – 2,4a

Esta introdução narrativa de abertura do livro de Daniel é composta por duas partes: 1,1-

21 e 2,1-4a. O capítulo 1 gira em torno da apresentação de Daniel e seus companheiros como

judeus fiéis à tradição e à lei; enquanto que 2,1-4a introduz o relato do sonho que perturbou o

rei. Assim, ao comentarmos o sonho da estátua (Dn 2) necessariamente tivemos que acoplar

estes versículos introdutórios.

Vejamos, então, como está organizado este capítulo de abertura do livro de Daniel:

I – INTRODUÇÃO HISTÓRICA – vv.1-7 1. Cronologia – v.1a 2. Narra o exílio da Babilônia – vv.1b-2 3 Introdução e apresentação dos personagens – vv.3-7 II – REJEIÇÃO DA COMIDA E PROJETO DO REI – vv.8-16 III – CONCLUSÃO – vv.17-21

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No capítulo 1261 encontramos uma imagem que descreve os desmandos, a tirania e a

imposição ideológico-cultural do império ao relatar o recrutamento de jovens pela corte (Dn 1,3-

4) em meio à história de Daniel (Dn 1,8-9.17) e dos quatro jovens (Dn 1,6-7.17.19). Eis um texto

que tenta ler as marcas da opressão no tempo presente fazendo uma incursão no contexto de

dominação do exílio da Babilônia sob o poderio de Nabucodonosor262.

A primeira imagem da opressão consiste precisamente na imposição cultural de outros

costumes e tradições. Esta ação invasora contou como grande instrumento ideológico o

recrutamento de jovens com a finalidade de quebrar com a transmissão das tradições263. Este

recrutamento para servir ao rei no palácio segue alguns critérios: serem formosos na aparência,

instruídos na sabedoria, sábios na ciência, com conhecimento e habilidade para viverem no

palácio e sem defeito físico (1,3-4). Porém, o grande objetivo deste acolhimento é que sejam

"ensinados nas letras e na língua dos caldeus", ou seja, devem apreender uma nova cultura e

tradição. Outra marca da opressão ligada à invasão cultural consiste na mudança dos nomes. Os

seus nomes eram carregados de significado teológico e enraizados na tradição do povo: Daniel

(meu juiz é Deus), Hananias (Iahweh é benevolente), Misael (aquele que é de Deus) e Azarias

(Iahweh ajuda); agora têm outros nomes impostos pelo dominador: Beltessazar (Bel guarda a

sua vida ou Bel-shar-uçur = Bel proteja o rei), Sadraque (de língua hurrita), Mesaque (nome de

261Vamos considerar a leitura deste capítulo dentro do conjunto do livro de Daniel, mesmo sabendo que se trata de um capítulo acrescido posteriormente pelos redatores na compilação e junção dos capítulos 2-7 e 7-12.

262É comum dizer que a primeira parte do livro de Daniel (Dn 1-6) se configura como uma série de releituras desde a época persa e que servem para introduzir a segunda parte (Dn 7-12) que contém visões apocalípticas. Porém "o autor de Daniel re-usa narrativas que na época dos persas tinha uma mensagem transparente para a comunidade em que circulavam. O autor de Daniel redige e escreve sua obra nos últimos anos do rei Antíoco IV (Epífanes), momento em que aparece impossível alterar a ordem reinante, como se vê pelos capítulos 7-12 do mesmo livro". Ver DE WIT, Hans (1988a: 31). As narrativas dos capítulos 1-6 de Daniel quase podem ser lidas como narrativas independentes e revelam grande conhecimento dos costumes mesopotâmicos na época persa. Ademais, encontramos nestes relatos tanto em aramaico quanto em hebraico a formulação de termos próprios do mundo persa, o que nos faz crer que estas narrativas não são anteriores ao amplo domínio persa. Os nomes gregos dos instrumentos musicais no capítulo 3 (vv. 4.7.10 e 15) sugerem um período posterior ao processo de helenização (mesmo que seja ao redor ou um pouco antes do grande poderio de Alexandre Magno). 263Vale salientar que um dos belíssimos textos da sabedoria que apresenta a oposição entre os projetos da casa (clã) e a invasão cultural é Provérbios 1-9.

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um povo localizado na Ásia Menor) e Abednego (servo de Nabu). A mudança dos nomes implica

perda de identidade.

Neste capítulo a ironização ao poder está no fato de Daniel e seus companheiros não se

enquadrarem no projeto do rei, não comerem da porção do manjar do rei e serem dez vezes

mais conhecedores que os astrólogos e magos. Pois, "a estes quatro jovens Deus deu o

conhecimento e a inteligência em todas as letras e a sabedoria e a Daniel o entendimento em

todas as visões e sonhos" (v.17). Permanecem fiéis, não aceitam a submissão e a dominação.

Quando o mundo todo se dobra diante do dominador, Daniel e seus companheiros não aceitam

a dominação. Não se submetem aos desmandos do império264.

Podemos imaginar que este capítulo de abertura do livro de Daniel quer alimentar a força

de resistência do povo judeu frente à dominação dos generais selêucidas e à hegemonia

helênica. Nesta perspectiva, a narrativa de Daniel diante das ordens do rei evoca a resistência

do povo através da arte de driblar as ordens do opressor (Dn 1.12). Cabe neste fortalecimento

da resistência que o texto quer apresentar para o povo a altercação sobre a função social da

religião ou da teologia obstinada do justo fiel. Daniel e seus companheiros representam uma

religião e teologia fundamentadas na lei, na justiça e no direito. E, principalmente na Torá como

caminho e busca da justiça. Nesta perspectiva entendemos o porque os nomes de Daniel e seus

companheiros estão carregados de teologia em seu significado. Por fim, não podemos esquecer

que a resistência do povo, que tem como uma das bandeiras a luta para instaurar a justiça,

apresenta-se interligada com a esperança e a prática da compaixão.

2. O Livro de Visões – Dn 8,1 – 12,13

Este livro das visões265 compreende três partes que estão interligadas e apresentam

264ANDERSON, Ana Flora e GORGULHO, Gilberto (1991: 100-101). 265 As visões não são novidades nos textos da Bíblia Hebraica se compararmos com os textos proféticos (cf. Is 6; Jr 1 e 24; Ez 1-3 e 8-11; Am 7-9; Zc 1-8 entre outros). Porém, aqui no livro de Daniel, além de caracterizar a experiência de um determinado grupo social e comunitário, representa uma forma de

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uma mistura de fontes e de tradições. O capítulo 8 é a descrição de uma visão de Daniel e a

interpretação feita pelo anjo Gabriel; no capítulo 9 encontramos rezas e releituras das palavras

proféticas de Jeremias; e, no final, o grande conjunto de palavras e revelações para Daniel, o

visionário, que se encontra em 10,1 – 12,13. Vejamos estas três partes do livro das visões.

A VISÃO DO CARNEIRO E DO BODE – Dn 8,1-27

A – INTRODUÇÃO – vv.1-2

1. Cronologia: v.1 2. Indicação do lugar da visão: “E vi na visão... eu estava na cidadela de Susã”: v.2 3. Outra indicação de lugar: “vi, pois na visão... eu estava junto ao rio Ulai: v.2

B – RELATO DA VISÃO – vv.3-12

1. Visão do Carneiro: vv.3-4 a. Fórmula introdutória: “E levantei meus olhos, e vi, e eis que”: v.3a b. A aparência do Carneiro - dois chifres: v.3b c. A ação (movimentos) do Carneiro: v.4

2. Visão do Bode: vv.5-12 a. Fórmula introdutória: “E, estando eu considerando, eis que”: v.5a b. A aparência do Bode - um chifre: v.5b c. Sua ação: dirigiu-se ao Carneiro – vv.6-7

se engrandeceu – v.8a grande chifre quebrado – v.8b

d. Descrição do seu crescimento: vv.8c-12 crescimento dos quatro chifres – v.8c crescimento de um chifre pequeno – v.9 sua ação: ataque ao exército dos céus – v.10 engrandeceu até ao príncipe do exército – v.11a rompimento do culto e do santuário – vv.11b-12

C – A ESCUTA DA FALA DE UM SANTO – vv.13-14 D – EPIFANIA DO INTÉRPRETE – vv.15-17

1. Indicação das circunstâncias e o desejo de entender a visão – v.15a 2. Epifania do intérprete – vv.15b-17

a. Introdução – fórmula: “e eis que” – v.15b b. Descrição: “um com semelhança de homem” – v.15c c. Escuta da voz dirigida ao anjo – v.16 d. Descrição da reação do visionário – v.17a e. Exortação do anjo: “entende, filho do homem...” – v.17b

E – INTERPRETAÇAO DA VISÃO – vv.18-26

1. Indicação das circunstâncias – v.18 2. Interpretação – vv.19-25

comunicação com um mundo extra-humano ou divino. Podemos perceber no livro de Daniel três aspectos fundamentais que o diferencia das visões proféticas: primeiro, a presença de um anjo intérprete que apresenta para o vidente a compreensão da visão; segundo, a mensagem da visão vai para além de uma imediaticidade; e, terceiro, uma linguagem carregada de simbolismo e miticismo. Ver ASURMENDI, Jesús M. (2004: 421-22).

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a. Fórmula introdutória: “e disse” – v.19 b. O Carneiro – v.20 c. O Bode – v.21a d. O chifre grande – v.21b e. Os quatro novos chifres – v.22 f. O chifre pequeno – vv.23-25

3. Conclusão do relato do anjo – v.26 F – CONCLUSÃO E REAÇÃO DO VISIONÁRIO – v. 27

Numa leitura rápida podemos ver que este capítulo tem uma estrutura bem simples: uma

introdução para a revelação ( vv.1-2); o conteúdo da revelação (3-14); a interpretação da

revelação (vv.15-26); e a conclusão do relato (v.27). Podemos notar uma mesma base estrutural

para os capítulos 7 e 8, o que demonstra uma visão dependente do capítulo 7.266 A introdução

do relato já aponta para esta relação: “depois daquela que me apareceu no princípio”. Assim, a

visão é descrita dentro de uma progressão. Primeiro a imagem do cordeiro que crescia de

maneira magnífica; depois o bode que também crescia. Na seqüência da visão do bode,

aparecem os chifres e entre estes, o pequeno.

A grande marca deste texto está no v.16 ao utilizar a palavra ha,(r>M; / mar´è para

designar visão e não a palavra usual !Azx' (Dn 8,13.15.17 e 26). Percorrendo a Bíblia Hebraica

encontramos poucas referências que utilizam a palavra ha,(r>M; para descrever visão: Gn 41,4;

Ex 3,3; 1Sm 3,15; Ez 11,24; 41,21; 43,3; Dn 8,16.27 e 10,7.8.

Não podemos afirmar que a visão de Dn 8 seja um sonho, porém pelos seus elementos

simbólicos é preciso considerá-la assim. A presença de Daniel em Susã e o transporte do seu

espírito para junto ao rio Ulai tem um paralelo com as narrativas do livro de Meditação profética

266 Ver REID, Stephen Breck (1989: 93-94). O autor apresenta os seguintes aspectos da estrutura do capítulo: (1) uma introdução para a revelação (v.1-2); (2) uma alegoria em forma de animais (v.3-12); (3) uma audição (v.13-14); (4) uma interpretação da revelação por meio de uma hierofania (v.15-19); (5) uma profecia dinástica (v.20-25); e (6) um pós-escrito (v.27).

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de Ezequiel.267 Para Louis F. Hartman não é seguro que o termo hebreu ´ûbal deva traduzir-se

por “rio”; quiçá deva ler-se ´äbûl e ser traduzido por “porta da cidade” (originário do acádico

abullu). Para o autor a visão de Daniel acontece na porta Ulai de Susã.268

Dos elementos característicos da descrição de um sonho encontramos neste capítulo os

seguintes: a indicação das circunstâncias, a descrição da visão, o desejo de saber a sua

interpretação, a apresentação da interpretação através de um intermediário e uma conclusão.

Podemos perceber também que esta visão do livro de Daniel utiliza material alegórico e mítico.

Um exemplo é a epifania do anjo interpretador, que, aliás, aparece de maneira mais elaborada

no capítulo 10 e em Ezequiel 8.

Outro fator importante na compreensão deste capítulo é perceber os paralelos com

outros textos que estão na dependência ou que influenciam a sua elaboração. Um primeiro texto,

evidentemente é o capítulo 7 de Daniel que, de uma certa maneira, assenta-se na transição do

texto aramaico para o texto hebraico. Outra influência vem do livro de Ezequiel, seja na imagem

da locação do profeta (o v.2 revela uma reminiscência visionária de Ez 1 e 8, ao tratar da

mudança de lugar e a proximidade do rio269) e, também, na aparição de uma figura de

semelhança humana; bem como no termo que é utilizado para se referir à figura do profeta, que

é usada amplamente no livro de Ezequiel: ~d'a'-!B, – “filho do homem”.270 A terceira influência

vem da profecia do “tempo do fim” de Habacuque 2,3. Nesta perspectiva entendemos porque Dn

8,17 e 19 utiliza os termos !Azx'; ha,(r>M; e #q sugerindo que a visão está inserida dentro do

“tempo do fim”.

267 Daniel é transportado em visão para a cidadela de Susã (Shushan), a residência de inverno do rei Dario, no distrito de Elam (cf. Nee 1,1 e Est 1,2). É provável que este transporte ação esteja imitando Ezequiel (Ez 8,3 – 11,24; 40,2s; cfr. Ap 17,3), vale observar ainda que Daniel se encontra junto ao rio Eulaeus [Ulai] (cf. 10,4; 12,5; Ez 1,1; Gn 41,1). Ver a propósito HEATON, E. W. (1956: 192). 268 HARTMAN, Louis F. (1971: 315). 269 ALONSO SCHÖKEL, Luis e SICRE DIAZ, José Luis (1991: 1317). 270 Ver Ez 2,1.3.6.8; 3,1.3.4.10.17.25; 4,1.16; 5,1; 6,2; 7,2; 8,5.6.8.12.15.17; 11,2.4.15; 12,2.3.9.18.22.27; 13,2.17; 14,3.13; 15,2; 16,2; 17,2; 20,3.4.27; 21, 2.7.11.14.17.19.24.33; 22, 2.18.24; 23,2.36; 24, 2.16.25; 25,2; 26,2; 27,2; 28,2.12.21; 29,2.18; 30,2.21; 31,2; 32,2.18; 33,2.7.10.12.24.30; 34,2; 35,2; 36,1.17; 37,3.9.11.16; 38,2.14; 39,1.17; 40,4; 43,7.10.18; 44,5 e 47,6.

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Nos versículos 17-18 podemos perceber a costura de três diferentes tradições: Primeira,

a resposta por meio de uma hierofania do encontro e confrontação entre Daniel e o anjo Gabriel

(há paralelos em Ez 1,28; 2,1; 43,3); segunda, a figura do “filho do homem”, evidentemente,

diferente daquela apresentada em Dn 7 (vn"a/ rb:) representa de certa forma a categoria dos

“Santos do Altíssimo”; enquanto que neste capítulo o “filho do homem” (~d'a'-!B,) é uma

referência ao humano ou à figura do profeta como agente da revelação; e, terceira, a relação

entre o profeta e o anjo através de um toque.271

Nos vv.23-25 temos uma palavra profética sobre o rei:

~y[i_v.Poh; ~teh'K. ~t'Wkl.m; tyrIx]a;b.W¥ 23 E no fim272 seu reinado como terminado273 os

transgressores

`tAd)yxi !ybimeW ~ynIP'-z[; %l,m,î dmo[]y: se levantará rei rosto feroz274 e que distingue os enigmas

Axkob. al{w> ‘AxKo ~c;['w> 24 E fortalecerá seu poder e não no seu poder

x;ylic.hiw> tyxiv.y: tAal'p.nIw> E extraordinariamente destruirá e aumentará

`~yvi(doq.-~[;w> ~ymiÞWc[] tyxiîv.hiw> hf'_['w> E fará e destruirá os fortes e o povo dos santos

Ady"B. ‘hm'r>mi x;ylic.hiw> Alk.fi-l[;w> 25 E sobre sua prudência275 e aumentará engano276 em sua mão

~yBi_r; tyxiv.y:hw"ßl.v;b.W lyDIg>y: Abb'l.biW e no seu coração se engrandecerá e na tranqüilidade277 destruirá muitos

`rbE)V'yI dy"ßsp,a,b.W dmo[]y: ‘~yrIf'-rf;-l[;w> e sobre príncipe dos príncipes se levantará e no fim mão o quebrará278.

A partir dos verbos279 que aparecem nestes três versículos podemos notar o tom irônico

e estilizado empregados para tratar de Antíoco IV Epífanes. A descrição do rei como tendo rosto

271 REID, Stephen Breck (1989: 96-97). 272 tyrIx]a; - fim, resultado. Tem um tom escatológico como “fim dos dias” (cf. Gn 49,1; Nm 24,14; Dt 4,30.31; Is 2,2; Jr 23,20; 30,24; 48,47; 49,39; Ez 38,16; Os 3,5; Mq 4,1; Dn 8,19.23; 10,14; 12,8). Ver KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter (1985: 33). 273 ~mT verbo hiphil infinitivo construto: completar, terminar, acabar (cf. Is 33,1). Idem., p.1032. 274 ~ynIßP'-z[; - 1.rosto forte, poderoso; 2. rosto feroz, violento, furioso, ameaçador, raivoso, insolente, impudente e atrevido. (cf. Dt 28,50 e Dn 8,23). Idem., p.692. 275 lk,f, – Discernimento, compreensão clara e prudência. Idem., p.922. 276

hm'r>mi – engano, fraude, falsidade, dolo, engodo (cf. Gn 27,35; 34,13; Is 53,9; Jr 5,27; 9,7; Os 12,1; Sf 1,9; Sl 5,7; 17,1; 34,14; 36,4; 43,1; 50,19; 55,12.24; 109,2; Pr 12,5.17; Jó 15,35; 31,5; Dn 8,25; 11,23). Idem., p.567. 277 hw"l.v; – bem-estar, tranqüilidade, sossego. Usado também para indicar prosperidade e viver em segurança. 278

rbv verbo niphal: ser quebrado, destruído, feito em pedaços, enfraquecido. Idem., pp.944-945.

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feroz só aparece duas vezes na Bíblia Hebraica (Dn 8 e Dt 28,50), o que sugere que o autor

utilizou a tradição deuteronômica para estilizar o rei Antíoco. Segundo Stephen Breck Reid o

termo ~ynIP'-z[; também descreve uma pessoa (ou pessoas) que é (são) inaceitavelmente

cruel (cruéis). Nesta perspectiva devemos ver os crimes de Antíoco de maneira ampla, pois a

sua insolência é um crime teológico associado à blasfêmia, porém ao estar ligado também à

opressão é um crime sócio-econômico280.

Este apocalipse pode ter existido isoladamente e a sua principal temática é a profanação

do lugar sagrado. O panorama é desolador, pois o tirano tem sucesso e rapidamente o projeto

dos justos desmorona. Mesmo que o tirano tenha cara feroz e seja violento, o apocalipse de Dn

8 retoma a imagem da pedra sem mão que destrói a estátua (Dn 2) para dizer que o tirano

chegará ao fim sem intervenção humana. E a esperança apocalíptica é de que esse tempo não

irá demorar muito para chegar.281

A visão do carneiro (vv.3-4) que tinha dois chifres e dava chifradas para o ocidente e

para o norte e “não havia quem pudesse livrar-se da sua mão”282 é interpretado pelo anjo no

v.20 como representando os reis da Média e da Pérsia. O bode (vv.5-12) com os seus chifres e

que engrandeceu fortemente é interpretado nos vv.21-25 como sendo o poder grego chegando

até o poderio de Antíoco IV Epífanes.

Podemos colocar num quadro paralelo a descrição da visão e a sua interpretação:

Eis que um carneiro estava diante do rio, o qual tinha dois chifres... (v.3-4)

Aquele carneiro que viste com dois chifres são os reis da Média e da Pérsia (v.20)

Eis que um bode vinha do ocidente sobre toda a terra... tinha um chifre notável entre os olhos

O bode peludo é o rei da Grécia; e o chifre grande que tinha entre os olhos é o rei primeiro

279 Levantará (2 vezes), fortalecerá, destruirá (três vezes), aumentará (duas vezes), fará, engrandecerá e quebrará. 280 REID, Stephen Breck (1989: 98-99). 281 Ver DE WIT, Hans (2000: 142). 282 Em Dn 3,15 o rei questiona os três judeus que se recusam a adorar a estátua questionando que não existe Deus que possa livrá-los de sua mão (yd'(y>-!mi !Akßn>biz>yve(y> yDeî Hl'a/ aWhå-!m;W E quem é o Deus que poderá livrá-los de minha mão?) e em Dn 8,4 ninguém conseguia se livrar da mão do carneiro (Ad=Y"mi lyCim; !yaew> - E não existe quem possa livrar-se de suas mãos).

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(v.5) (v.21) Aquele grande chifre foi quebrado e subiram no seu lugar quatro também notáveis, para os quatro ventos do céu (v.8)

O ter sido quebrado, levantando-se quatro em lugar dele, significa que quatro reinos se levantarão da mesma nação, mas não com a força dela (v.22)

E de um deles saiu um chifre muito pequeno, o qual cresceu muito... até ao exército do céu... e se engrandeceu até ao príncipe do exército, e por ele foi tirado o contínuo sacrifício e o lugar do seu santuário foi lançado por terra... (v.9-12)

No fim do seu reinado... se levantará um rei, feroz de cara... e se fortalecerá sua força e destruirá maravilhosamente e prosperará e fará o que lhe aprouver e destruirá os fortes e o povo dos santos... e na tranqüilidade destruirá muitos e sobre príncipe dos príncipes se levantará e no fim mão o quebrará (v.23-25)

Esta visão orienta os leitores e ouvintes para o momento presente ou para a conjuntura

que estavam vivendo. Na descrição do pequeno chifre que se engrandeceu até o príncipe do

exército (ab'C'h;-rf:)) o (s) autor (es) quer com este termo tratar dos confrontos entre os

exércitos de Antíoco IV Epífanes e o dos Macabeus. Aliás, o termo hebreu rf, usado muitas

vezes na Bíblia Hebraica, designa: capitães, chefes (Nm 21,18; 1Sm 22,2), vassalos, nobres e

oficiais do rei com funções de administradores e conselheiros (Gn 12,15; 1Rs 20,14-17),

soberanos e magistrados de alguma região (2Cr 32,31) ou administradores de uma cidade (Jz

9,30; Nee 7,12); comandantes (Gn 21,22.32); chefes (cabeça, líder) de um grupo ou oficiais (Nee

4,10; Sl 68,28; Dn 1,7-11.18) e até mesmo para designar líderes com função religiosa (Esd

8,24.29; Is 43,28) ou pessoas com elevada condição econômico-social (Sl 45,17; Is 23,8). Como

podemos ver, este termo tem um uso muito diversificado. No entanto, em grande parte das

referências bíblicas, sar é preferencialmente aplicado aos comandantes militares. Vale salientar

que na linguagem apocalíptica este termo muitas vezes se refere aos poderes de oposição a

Deus.283

Na descrição do prazo da transgressão assoladora do pequeno chifre (até duas mil e

trezentas tardes e manhãs e o santuário será purificado – v.14), que para muitos intérpretes 283 Ver KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter (1985: 929-930), PLÖEG, J. van der. “Les chefs du peuple dIsraël et leurs titres”. Revue Biblique 57 (1950), p.40 e SHEA, William H. (1983: 225-249). Sobre a constituição dos exércitos em Israel ver o livro de Carlos Artur Dreher. A constituição dos exércitos no Reino de Israel. São Leopoldo/São Paulo: Editora Sinodal/Paulus, 2002.

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pode corresponder ao período de interrupção dos sacrifícios no Templo de Jerusalém (de

setembro de 167 a 14 de dezembro de 164), o que indicaria que a composição deste texto tem

como data a dedicação do altar reconstruído e purificado.284 Assim, o “tempo do fim”, não trata

da descrição de um fim do mundo, mas do fim do tempo de provação à qual o culto dos judeus

fora submetido no governo de Antíoco IV Epífanes.

“Daniel vê como um carneiro com dois chifres, representando o reino medo-persa, é pisoteado e morto por um bode com um chifre só, símbolo de Alexandre Magno. No lugar do chifre único surgem quatro chifres (os reinos dos diádocos?). Nasce um chifre adicional (de novo antíoco IV), que avança não só para o sul e o leste, mas também em direção ao céu, e profana o santuário, de modo que não se podem mais oferecer sacrifícios – mas somente por um prazo limitado, mais ou menos três anos e meio (8.9ss., 23ss.)”.285

A RELEITURA DA PROFECIA DAS SETENTA SEMANAS – Dn 9,1-27

Este capítulo de Daniel tem uma estrutura muito simples:

I - Introdução (vv.1-2) Data: primeiro ano de Dario – v.1 O tema: a leitura da profecia de Jeremias – v.2 II - Oração de Daniel (vv.3-19) Preparação – v.3 Fórmula introdutória: e orei... e confessei... e disse: - v.4a A oração – vv.4b-19 III - Revelação (vv.20-27) Introdução: estando eu ainda falando... – vv.20-21a Epifania do anjo – v.21b A palavra do anjo Gabriel – vv.22-27

Muitos autores consideram a oração (na primeira parte deste capítulo: vv.3-19) como um

acréscimo realizado no período da compilação final do livro, pois demonstra algo fora do

contexto das visões de Daniel, além disso, o início e o final da oração são marcados por

284 GRELOT, Pierre (1995: 51). 285 SCHMIDT, Werner H. ( 2002: 280-1).

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duplicações que emolduram a oração (vv.3-4a e 20-21a).286 Uma outra possibilidade consiste

que o autor quis introduzir a revelação do anjo Gabriel ao lado da oração de Daniel (v.4-19) e da

epifania no sacrifício da tarde (v.21).287

No entanto, esta oração de confissão dos pecados e de súplica é composta pelo

reconhecimento de que Deus é justo e ao suplicante cabe a vergonha. A Justiça de Deus e a

vergonha do povo fazem a costura desta oração de confissão. Lendo atentamente esta oração

percebemos muitas semelhanças com Esd 9; Ne 9, 4Esd 12,7-9 e Br 1,15-3,8. De modo

especial, percebemos um grande paralelo com a oração que aparece no livro de Baruc.288

Colocando as duas orações num quadro comparativo perceberemos que elas têm

muitas semelhanças. Não dá para saber qual oração influenciou a outra. No entanto, o

importante é termos ciência que as orações de súplica tinham grande circulação entre o povo

e, também, perceber que não se trata simplesmente de uma mera cópia. Tudo indica que a

tradição apocalíptica de Daniel e a tradição profética de Baruc beberam de uma mesma fonte.

Estas duas orações têm um nascedouro comum, porém, têm leitores, rezadores e ouvintes em

contextos diferentes. Vejamos alguns exemplos de semelhanças nas duas orações:289

286 HARTMAN, Louis F. (1971: 317). Sugere que os v.3-19 de Dn 9 representam o trabalho de um escriba que encontrou a possibilidade de inserir uma antiga oração, escrita num hebraico muito melhor do que aparece no restante do livro; bem como não é a oração de um indivíduo, mas de toda uma comunidade e, além disso, não contém uma só petição para iluminar a compreensão da profecia de Jeremias, que o tema do capítulo. 287 COLLINS, John Joseph (1984: 90-91). 288 Sobre a oração do livro de Baruc veja SILVA, Rafael Rodrigues da (2003: 45-60). Os dois textos seguem a tradução da Bíblia Edição Pastoral. 289 Idem. pp.46-47.

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Baruc 1,15 – 2,10 Br 1,15-18: Confessamos que o Senhor nosso Deus é justo e a nós cabe hoje a vergonha, a nós, cidadãos de Judá e habitantes de Jerusalém, reis e autoridades nossas, sacerdotes, profetas e antepassados nossos, porque pecamos contra o Senhor, desobedecemos, não ouvimos a voz do Senhor nosso Deus, deixamos de seguir as orientações que ele nos colocou diante dos olhos. Br 2,6: O Senhor, nosso Deus, é justo; a vergonha nos oprime hoje. Br 1,19: Desde o dia em que o Senhor tirou nossos pais do Egito até hoje não fizemos caso do Senhor, nosso Deus, e recusamos obedecer-lhe. Br 1,21: Não obedecemos ao Senhor, nosso Deus, que nos falava por meio de seus enviados, os profetas. Br 2,1-2: Por isso, o Senhor cumpriu as ameaças feitas contra nós e nossos juizes que governavam Israel, nossos reis, nossas autoridades e todos os cidadãos de Israel e Judá. Debaixo do céu, jamais aconteceu coisa igual a tudo o que aconteceu em Jerusalém, conforme está escrito na lei de Moisés. Br 2,7-10: Todas as ameaças que o Senhor havia pronunciado caíram sobre nós; contudo, não aplacamos o Senhor, convertendo-nos de nossa atitude perversa. Por isso o Senhor esteve vigiando para enviar-nos as desgraças ameaçadas. O Senhor foi justo em tudo o que dispôs contra nós, porque nós não lhe obedecemos, ponde em prática o que nos havia ordenado.

Daniel 9,4-19

Dn 9,7-10: Senhor do teu lado está a justiça, e para nós fica a vergonha que hoje estamos passando, tanto o cidadão de Judá como o habitante de Jerusalém, e todo o Israel: tanto os que estão perto, quanto os que estão longe, por todos os países por onde tu os espalhaste, por causa dos crimes que praticaram contra ti. Sim, ó Javé, para nós, para nossos reis, nossas autoridades e nossos pais, só fica a vergonha que estamos passando, pois pecamos contra ti. Dn 9,15: Agora, Senhor nosso Deus, tu que tiraste o teu povo da terra do Egito com mão forte, criando para ti essa fama que dura até hoje, nós pecamos e praticamos a impiedade. Dn 9,6: Não quisemos escutar os profetas, teus servos, que em teu nome falavam aos nossos reis e autoridades, aos nossos pais e a todos os cidadãos. Dn 9,10: Não obedecemos a Javé nosso Deus, para andarmos de acordo com as leis que ele nos deu por meio dos profetas, seus servos. Dn 9,11-14: Todo o Israel desrespeitou a tua lei e se afastou para não te obedecer. Então caíram sobre nós as maldições e ameaças que estão escritas na lei de Moisés, servo de Deus, pois pecamos contra o Senhor. Ele cumpriu as ameaças que tinha feito contra nós e nossos governantes, mandando sobre Jerusalém uma calamidade, como jamais aconteceu debaixo do céu. Toda essa desgraça nos veio tal qual está escrita na lei de Moisés, mas nós não procuramos agradar a Javé nosso Deus, arrependendo-nos de nossos pecados e levando a sério a sua fidelidade. Javé se encarregou dessa desgraça e fez que ela chegasse até nós, pois Javé nosso Deus nos trata com justiça, porque não lhe obedecemos.

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Hans de Wit apresenta o seguinte destaque a propósito desta presença da oração de

Baruc no capítulo 9 de Daniel:

“El texto, en su forma actual, es una especie de liturgia actualizada. Sabemos, por el estilo y lenguaje que usa, que es antiguo. Más de 300 años. El trasfondo histórico original fue la caída de Jerusalén, la cual se atribuye a la desobediencia del pueblo y sus reyes que no escucharon a los profetas... A pesar de que ha cambiado la situación y estamos 300 años después, el tema y contenido de la letanía siguen teniendo su fuerza y vigencia, porque lo que pasó en la época babilónica, pasa ahora con Daniel y su comunidad en Jerusalén... Es lindo ver ese nexo entre liturgia y realidad. Esta antigua letanía tiene un efecto histórico insospechado: nuevamente, aunque sea después de 300 años, ilumina la situación y la experiencia de los habitantes de Jerusalén. Pasado y presente se funden en la relectura que Daniel hace de este trozo litúrgico en estilo deuteronómico. El texto que ahora está escrito en el capítulo 9 del libro de Daniel, seguramente fue parte de una liturgia que las comunidades de perseguidos y futuros mártires celebraban en sus lugares de encuentro...”290

Esta oração (Dn 9,4b-19) tem uma estrutura bem simples que entrelaça a partir de

camadas paralelas a confissão, o reconhecimento do pecado, as ameaças de castigo e a

certeza de que Javé é um Deus justo e misericordioso. É uma oração de súplica e de

confissão que apresenta um reconhecimento dos tropeços na história do povo, usa as

Escrituras para lembrar o passado e insiste para que Deus dê ouvidos ao suplicante e o

perdoe. Assim:

v.4b – Invocação: Ah! Senhor! Guardas a aliança e a misericórdia...

vv.5-11a – Pecamos e cometemos iniqüidade... vv.11b-14 – Descrição da punição de Deus v.15 – Lembrança das ações de Deus vv.16-19 – Súplica: Ouve a oração de teu servo

A invocação dá o tom da oração e exorta com palavras de confiança o reconhecimento

dos erros do povo ao não cumprir os mandamentos e a lei. Assim, temos as lembranças do

passado e o desejo que Deus possa dar ouvidos ao pedido de súplica da comunidade orante.

290 Cf. DE WIT, Hans. (1990:184).

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v. 4b - Ah! Senhor! Deus grande e tremendo... guardas a aliança e a misericórdia para os que te amam e guardam os mandamentos

vv.5-6: pecamos e cometemos iniqüidade, procedemos injustamente... nos afastamos dos teus mandamentos... e não demos ouvidos aos teus servos , os profetas...

vv.7-9a: A ti, ó Senhor, pertence a justiça, mas a nós a confusão de rosto... Ao Senhor, nosso Deus, pertence a misericórdia e o perdão.

vv.9b-10: pois nos rebelamos contra ele e não obedecemos...

vv.11-13: Sim, todo Israel transgrediu a tua lei...

v.14: Por isso o Senhor vigiou sobre o mal; porque justo é o Senhor nosso Deus

v.15: Na verdade, ó Senhor, nosso Deus, que tiraste o teu povo da terra do Egito...

vv.16-19: Ó Senhor, segundo a tua justiça, aparta-se a tua ira e o teu furor da tua cidade Agora pois, ó Deus nosso, ouve a oração do teu servo e as suas súplicas Inclina, ó Deus meu, os teus ouvidos; e ouve Ó Senhor, ouve; ó Senhor, perdoa; ó Senhor, atende-nos...

“Ah,agora! Senhor, ó Deus grande e que inspira temor que cuida a aliança e a

solidariedade para com os que te amam e cuidam os teus mandamentos” (v.4b). Estas palavras

abrem a oração apresentando três imagens teológicas que circulavam na tradição de Israel.

Primeira, o Deus que é lAdG" – grande, em geral utilizado para descrever crescimento físico,

aumento de coisas concretas, quer objetos, sentimentos e autoridade. Associado ao nome de

Deus, quer se referir na maioria das vezes, à grandeza de Deus (veja 2Sm 7,22) e até mesmo

guarda caráter messiânico (podemos conferir em Mq 5,4 a descrição que o messias será grande

até os confins da terra).291 Este é um atributo teológico muito freqüente nos Salmos e Hinos da

Bíblia Hebraica. Segunda imagem teológica: Deus é ar'AN – verbo ary no niphal que atribui à

divindade o caráter de “ser terrível”, “o temido”, “aquele que causa espanto, temor, medo”.

291 HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 247-48).

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Muitas vezes, associado a Javé quer indicar aquele que causa grande surpresa, espanto ou

admiração.292 E, finalmente a terceira, determinada pelo verbo rmEvo – cuidar, guardar,

observar, prestar atenção; 293 o sinônimo mais próximo é rcn: vigiar, guardar, cuidar, esconder

e resguardar294. E dois são os objetos deste cuidar e guardar: a tyrIB. / aliança, pacto e a

ds,x, ( hesed: solidariedade, bondade amorosa, misericórdia). Estes dois substantivos tem o

seu principal uso em Dt 7,9.12 e encontramos os seus ecos em 1Rs 8,23; 2Cr 6,14; Nee 1,5;

9,32 e Dn 9,4 e “caso este par de vocábulos seja traduzido por ‘amor da aliança’ ou ‘aliança e

amor’, deve-se lembrar que o amor está por trás da aliança. Essa idéia é ilustrada por Jeremias

2,2, onde a hesed que Israel demonstrou na sua juventude é comparada ao amor de uma

noiva”.295

Na continuidade da invocação teológica, os vv.7-9a ressaltam que a Javé pertencem três

aspectos fundamentais da ação humana projetados pela comunidade: a hq'd'C. ( justiça); a

~ymix]r; ( compaixão) e a hx'ylis. (piedade, perdão).

A profecia nos período do pré-exílio muito se ocupa da justiça e do direito.296 A profecia

visionária (mágica e curandeira) representada por Elias e Eliseu apresenta a luta por justiça

associada ao enfrentamento ideológico das ações do monarca e busca da shalom (estar

inteiro/paz). Basta acompanharmos nas narrativas de Elias (1Rs 17-21 e 2Rs 1-2) a luta contra

292 Idem. pp.654-57. 293 Idem., pp.1587-88. 294 KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter (1985: 631). 295 HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 499-503). O texto citado é da p.502. 296 A justiça (hqdc [sedaqah]// vem da raiz qdc [sedeq = sdq]) aparece muitas vezes entrelaçada com a prática do direito (jPvm [mishpat]// vem da raiz jPv [shapat]). A mishpat quer exprimir o direito e ao mesmo tempo pode simplesmente designar a prática da justiça. A mishpat muitas vezes aparece relacionada aos julgamentos e às sentenças dos juízes; enquanto que a sedaqah em alguns momentos quer indicar equidade nos julgamentos. Na tentativa de evitar confusões entre estes dois termos caros para a profecia, para a sabedoria e para as leis na Escritura hebraica é que muitos estudiosos buscam definir sedeq como ordem justa e sedaqah como comportamento reto ou retidão. Assim, é preciso desprender o significado de justiça e direito dos conceitos de aliança, fidelidade e salvação para uma compreensão de cunho mais social.

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os profetas de Baal, o conflito com Acab e Jesabel e a sua crítica ao projeto assassino do

palácio diante do projeto clânico de Nabote (cf. 1Rs 21). As narrativas de curas ao redor de

Eliseu apontam para denúncias de dívidas, fome e guerras. São os profetas radicais do oitavo

século em diante que travam uma luta incessante contra os abusos do poder, a degradação

social e as injustiças. Pensemos no profeta Amós que condena a injustiça da justiça e os

mecanismos de opressão no governo de Jeroboão II.297

No entanto, na oração de Dn 9 a justiça não caminha separada da compaixão298

(~ymix]r; raHámîm) que vem da raiz ~xr (raHám e reHem: ventre e útero); indicando,

assim, o “centro das emoções” ou “a expressão de uma profunda emoção”.299 E,

conseqüentemente, é a mola propulsora para as práticas de perdão e piedade (tAx+liS. –

sülìHôt: pronto a perdoar, disposto a perdoar, perdoador, perdão). Eis um dos verbos que na

Bíblia hebraica é utilizado como referência a Deus.300 Do mesmo modo, a compaixão está

relacionada com a figura de um Deus justo, que “['r'h'-l[; ‘hw"hy> dqOv.YIw: / e vigia Javé sobre

(contra) o mal” (v.14). O verbo dqv (šaqad) “possui cognatos tanto em fenício quanto em

siríaco. Às vezes šaqad e šamar, “guardar”, “vigiar”, se sobrepõem, e são usados lado a lado.

Neste último verbo recai sobre a atenção diligente e sobre a ação de preservar, enquanto que

em šaqad a idéia básica é a de estar alerta”.301

Os vv.5-6 e 9b-10 apresentam o contraponto da oração, que é o reconhecimento de que

o povo praticou a iniqüidade, agiu injustamente e se apartou dos mandamentos, ao não dar

ouvidos à palavra dos profetas. A oração chama a atenção para o povo que não andou nas leis

297 Para Sicre Diaz as virtudes exigidas pelos profetas aparecem numa clara contraposição à opressão em defesa das vítimas da injustiça e na denúncia dos responsáveis pela injustiça. SICRE DIAZ, José Luis (1996: 357-380). 298 Conferir a reflexão apresentada por Crossan: “O caráter de seu Deus”. CROSSAN, John Dominic (2004: 605-616). 299 HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1417-20). 300 Idem., pp.1044-45. 301 Idem., pp.1610-11.

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de Javé, ou seja, não se guiou pelos caminhos da Torá. Eis o sentido que a oração quer dar para

a “confusão de rosto” (v.7 e 8). Notemos que no texto de Baruc, aqueles que terão a confusão de

rosto são nomeados como: homens de Judá, habitantes de Jerusalém, e a todo o Israel (os de

perto e os de longe), reis, príncipes e nossos pais (cf. vv.7-8). De certa maneira, neste momento

o povo não conhece mais reis nem príncipes, pois desde o exílio da Babilônia, Judá não existe

como Nação; e, agora, a Judéia não passa de um distrito pertencente a uma das províncias do

império helênico. No entanto, quem está reproduzindo esta oração conhece muito bem as

autoridades locais que estão a serviço dos dominadores sírios (selêucidas) e egípcios

(ptolomeus).

A segunda parte do capítulo (vv.20-27), anuncia o grande tema: a leitura da profecia de

Jeremias (Dn 9,2) e que está presente na palavra do anjo (vv.24-27). Vejamos alguns detalhes

desta releitura.

Daniel 9,24-27 faz parte do conjunto da resposta do anjo Gabriel para Daniel,

evidentemente relacionada com o v.2: “eu, Daniel entendi pelos livros que o número de anos, de

que falou Javé ao profeta Jeremias, em que haviam de acabar as assolações de Jerusalém, era

de setenta anos”. Como vimos, anteriormente, esta palavra do anjo aparece depois de uma

longa oração de penitência e súplica de Daniel (vv.3-19). É interessante notar, a partir deste

versículo, que o autor do livro hebraico de Daniel ou deste capítulo, conhece um conjunto de

livros proféticos ao mencionar que entendeu o número de anos da assolação na profecia de

Jeremias, através da leitura de livros (~yrI+p'S.). Infelizmente o texto não diz quais são os livros

utilizados por Daniel para que possamos entender as palavras (rbd) da profecia de Jeremias.

Outro fator importante, é saber onde estão estas palavras de Jeremias acerca da profecia dos

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setenta anos. Dois textos em Jeremias provavelmente serviram de referência para a releitura

apresentada pelo anjo Gabriel: Jr 25, 11-12 e 29,10.302

Daniel 9,24-27 Jeremias 25,11-12 Jeremias 29,10

%T:x.n< ~y[ib.vi ~y[ibuv' 24 #r,a'h'-lK' ‘ht'y>h")w> 11 hw"hy> rm:a' ‘hko-yKi( 10

Semanas setenta determinadas

E será toda a terra Eis que assim diz Javé

ry[I-l[;w> Ÿ^M.[;-l[;( hM'_v;l. hB'r>x'l. taZOh; Lb,b'l. tal{m. ypil. yKiû sobre teu povo e sobre a cidade

a esta para desolação para espanto303

eis que por minha boca se cumprirá304 para Babel

[v;P,h; aLek;l. ^v,d>q' hL,aeh' ~yIAGh; Wdb.['w> dqOp.a, hn"v' ~y[ib.vi tua santa para destruir a transgressão305

e servirão as nações estas setenta anos visitarei306

' rPEk;l.W tAaJ'x; ~Tox.l;W lb,B' %l,m,-ta, ‘~k,yle[] ytimoqih]w: ~k,_t.a, e para selar307 pecado e para expiar

ao rei de Babel a vocês e levantarei308 sobre vocês

)~ymi_l'[o qd,c,äaybih'l.W !wO[ `hn")v' ~y[ib.vi bAJh; yrIb'D>-ta, iniqüidade e para voltar justiça eterna

setenta anos a minha palavra a boa

aybin"w >!Azx' ‘~Tox.l;w> ~y[ib.vi twal{m.ki hy"h'w> 12

~k,t.a, byvih'l.

e para selar a visão e a profecia

E acontecerá quando se cumprirem setenta

para voltar a vocês

`~yvi(d'q") vd,qOï x;vom.liw> dqOp.a, hn"v' `hZ<)h; ~AqßM'h;-la, e para ungir santo santos anos visitarei ao lugar este.

lKef.t;w> [d;tew> 25 ûlb,B'-%l,m,(-l[;

E saiba e compreende sobre rei de Babel

302 Ver comentário de COLLINS, John Joseph (1984: 89-96) e PIERCE, Ronald W. (1989: 211–222). 303 Algo horrível, algo aterrador, algo apavorante, algo terrível (dito da devastação); pavor,horror, assombro, pasmo, espanto. Cf. AAVV. (2000: 255). Ver também a definição de Hermann J. Austel. In: HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1583): “O livro de Daniel traz quatro passagens que empregam a forma polel do verbo meshomëm e shômëm). Aqui há uma força causativa (ou melhor, factitiva) semelhante ao uso do hifil, com a diferença de que o hifil geralmente envolve uma devastação física, ao passo que o polel aparentemente ressalta o fato de que alguém profanou o santuário ou altar, desse modo deixando-o imprestável para a adoração e o serviço a Deus. Essas passagens são Daniel 8.13; 11.31; 9.27; 12.11”. 304 Estar cheio de; de dias: completar-se, cumprir-se, estar no fim. 305 rebelar-se, transgredir, revoltar-se. 306 Este verbo no qal pode significar: fazer verificar/ chamada, verificar, inspecionar, recrutar, passar em revista, examinar, pesquisar, visitar, procurar, preocupar-se com, castigar, vingar, guardar 307 “Este verbo aparece apenas no grau passivo (nifal) e somente em Daniel 9,24, a famosa passagem das “70 semanas”. Em hebraico rabínico a raiz htk tem o significado básico de “cortar”, daí a tradução “decretar”em várias versões”. Robert L. Alden. In: HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 551). 308 Verbo hifil: erguer, levantar, pôr de pé, colocar, estabelecer; cumprir, executar; mandar ou fazer levantar; sustentar (de pé), manter; comissionar, designar, confiar uma tarefa; providenciar. Cf. AAVV. (2000: 212-13).

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byvih'l. rb'd' ac'mo-!mi aWhôh; yAG“h;-l[;w>

desde a saída da palavra309 para voltar

e sobre a nação esta

‘~Il;v'Wr)y> tAnb.liw> ~n"ßwO[]-ta, hw"±hy>-~aun>

E para construir Jerusalém oráculo de Javé as iniqüidades

dygIn" x;yvim'-d[; ~yDI_f.K; #r,a,ä-l[;w>

até messias príncipe e sobre terra dos caldeus

~y[ibuv'w> h['_b.vi ~y[ibuv' Atßao yTiîm.f;w>

semanas sete e semanas E farei deles

‘bWvT' ~yIn:v.W ~yVivi `~l'(A[ tAmïm.vi(l.

sessenta e duas voltar para desolação eterna.

#Wrx'w> bAxr> ‘ht'n>b.nIw>

e construir praça e trincheira

`~yTi([ih' qAcb.W

e nos tempos de opressão310

~yVivi ~y[ibuV'h; yrex]a;w> 26

E depois das semanas sessenta

!yaew> x;yvim' treK'yI ~yIn:v.W

e duas será eliminado messias e não existirá

vd,Qoh;w> ry[ih'w> Al=

para ele e a cidade e o santo311

‘aB'h; dygIn" ~[;ä tyxiv.y:û

destruirá povo príncipe que virá

#qEå ‘d[;w> @j,V,b; ACqiw>

e seu fim na inundação e até fim

`tAm)mevo tc,r,x/n< hm'x'l.mi

guerra aniquilará desolações ~yBir;l' tyrIB. ryBig>hiw> 27

E estabelecerá aliança para muitos

[;WbV'h; ycix]w: dx'_a, [;Wbv'

309 Palavra; assunto, questão, caso; coisa. AAVV. (2000: 46). Ver também HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 292-6). 310 Opressão, angústia e aflição. 311 “Texto duvidoso, o qual literalmente, e com emendas, poder-se-ia traduzir ‘cidade e templo arrasará um exército de príncipe que virá’: refere-se à invasão militar de Antíoco no retorno do Egito. O final pode referir-se ao invasor ou aos acontecimentos: é uma espécie de dilúvio impetuoso (Is 10,22; Sl 32,6). O final acompanhado de guerra devastadora, é tema que se impõe na literatura apocalíptica, incluindo os evangelhos (Mt 27,7 e par.).” ALONSO SCHÖKEL, Luis e SICRE DIAZ, José Luis (1991: 1328).

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semana uma e meia semana

l[;w hx'n>miW xb;z<å ŸtyBiv.y:

cessará sacrifício e presente312 e sobre

~mevom. ‘~yciWQvi @n:K.

Asa abominações da desolação

hc'r'x/n<w> ‘hl'K'-d[;w>

e até destruição e destruição decidida313

`~me(vo-l[; %T:Ti

será derramado sobre desolador314

Podemos notar neste quadro comparativo que o autor de Dn 9 usa livremente e

criativamente a profecia de Jeremias acerca dos setenta anos de exílio. Na sua releitura busca

elucidar o momento de restauração e purificação do templo de Jerusalém que fora em 167

a.E.C. profanado por Antíoco IV Epífanes. “Através de um cálculo engenhoso (uma espécie de

pésher, que conhecemos tão bem da exegese judia) o autor do cap. 9 chega ao ano 164 aC, o

reinado de Antíoco IV Epífanes da Síria”.315 É provável, também, que na atualização da palavra

profética o autor esteja utilizando um jogo de palavras. Por exemplo, em 9,27: ~me(v (sömëm)

pode estar relacionado com Baal Shamem (“Deus dos céus”, Deus sírio identificado com Zeus)

que foi colocado no altar do templo de Jerusalém. Assim, na opinião de Pierre Grelot, Baal

Shamem se relaciona com ~mevom. ‘~yciWQvi (Siqqûeîm müsömëm)316. Daí, a insistência no

312 Dádiva, presente; respeito, veneração; agradecimento, homenagem; amizade (política); tributo; oferta; sacrifício; oferta de manjares, oferenda. AAVV. (2000: 131). 313 Este verbo no nifal tem o significado de: questão / aniquilação / destruição decidida, fim decidido. AAVV. (2000: 78). 314 Ou desolação. 315 DE WIT, Hans (2000: 143). 316 “Em três lugares, com expressões ligeiramente diferentes, o livro de Daniel refere-se à “abominação da desolação”... instalada pelo rei perseguidor sobre o altar do Templo (Dn 9,27; 11,31; 12,11). O primeiro livro dos Macabeus menciona esta profanação com frase tomadas de Daniel (1Mc 1,54). Mas 2Mc 6,2 precisa que o Templo é assim dedicado a Zeus (Júpiter) Olímpico, cuja estátua é erigida sobre o altar. Zeus Olímpico é identificado ao ídolo siríaco Baal Shamem, “O Baal dos céus”, com um jogo de palavras sobre Baal shamem e shiqquç meshomem (Dn 9,27)...”. GRELOT, Pierre (1995: 55). Schökel e Sicre Diaz vão na mesma linha de interpretação e concluem que este jogo pode ser uma zombaria aguda daquele que se intitulava manifestação de Deus = epiphanes. ALONSO SCHÖKEL, Luis e SICRE DIAZ, José Luis (1991: 1328).

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texto acerca da restauração do Santo dos Santos e o desejo de que aconteça o fim das

iniqüidades e a volta da justiça. Interessante notar que o livro de Henoc (praticamente

contemporâneo ao livro de Daniel) contenha nos capítulos 93 e 91 o Apocalipse das Semanas, e

estes estão emoldurados pelo tema da justiça; por exemplo, no capítulo 91,1-11 + 18-19

apresenta uma fala de Matusalém para os seus filhos sobre a justiça e no capítulo 92,1-5 há

menção ao livro escrito por Henoc e à evocação da imagem de um Justo que se levantará do

sonho e andará por caminhos de justiça e todo o seu andar será na trilha do bem e na clemência

eterna. E, após o Apocalipse das Semanas, o autor apresenta um capítulo de exortações, que

iniciam da seguinte maneira: “Agora, vos digo, filhos meus, amai a justiça e andai por ela, pois os

caminhos da justiça merecem ser tomados, mas os da iniqüidade pronto se destroem e

desaparecem” (94,1).

Finalmente, podemos perceber uma tendência ao ler Daniel 9 que há um trabalho em

forma de midrash ou pesher de Jr 25,11-12 e 29,10; bem como o esquema das setenta semanas

de anos provavelmente é sugerido pelo sistema do ano sabático presente no Levítico 25, que

estipula um ano jubilar depois das sete semanas de anos. Klaus Koch entende que este número

extrapola se levarmos em conta a história de Israel. Por exemplo, se partirmos do êxodo até a

construção do templo teremos uma somatória de mais ou menos 480 anos e, daí até a

destruição do templo e de Jerusalém (no período do exílio), atingimos cerca de 430 anos.

Contudo, o tempo total do êxodo até a restauração do templo e de Jerusalém, tem a soma de

980 anos. Daí as especulações sobre a divisão da história em dois momentos de 490 anos.317

Vale salientar que Daniel converte os setenta anos de Jeremias em setenta semanas de anos,

dando um total de 490 anos, onde cada semana corresponde a um período de sete anos.

Podemos dizer que o autor do capítulo 9 de Daniel atualiza uma antiga profecia e não tem a

317 E. W. Heaton apresenta a seguinte sugestão na contagem dos 490 anos: (1) 7 semanas = 49 anos, de 586 a 538 (v.25); (2) 62 semanas = 434 anos, de 538 a 171 (v.25s); (3) 1 semana = 7 anos, de 170 a 164 (v.27) compreendendo: (a) meia semana = 3 anos e meio, de 170 a 167; (b) meia semana = 3 anos e meio, de 167 a 164”. (1956: 210).

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preocupação com a exatidão de cifras e contas cronológicas, pois trata-se de um simbolismo

criativo capaz de provocar sempre novas leituras.318

Hans de Wit na sugestão que apresenta para a interpretação dos cálculos de Daniel319,

conclui a cronologia relida de Daniel sobre a profecia de Jeremias é complexa e artificial.

Segundo De Wit, Livro de Daniel tem a intenção de dizer para a sua comunidade e os grupos

sociais que leram e receberam este texto (em meio a um período de perseguições) de que o

sofrimento e a tribulação que estavam sofrendo chegaria ao fim.

No entanto, John Collins afirma que este midrash se insere numa periodização sob a

forma de prophetia ex-eventu, onde a história passada e conhecida é anunciada como futura e

que o autor de Daniel desenvolveu independentemente o seu esquema das setenta semanas.320

A intenção do autor consiste em decretar o fim das transgressões e das iniqüidades através do

esquema das setenta semanas. Basta atentarmos para a utilização do termo ~[;Z" (zä’àm :ira,

indignação) no livro hebraico de Daniel: Dn 8,19 e 11,36. Este termo, usado de maneira diferente

em Zc 1,12, é referência para a descrição das ações abomináveis de Antíoco IV Epífanes.

AS PALAVRAS REVELADAS A DANIEL – 10,1 – 12,13 Agora, temos na última parte (seção) do livro hebraico de Daniel uma mescla entre

318 Exemplos de leituras posteriores aparecem na tradição judaica que tenta aproximar as setenta semanas à conjuntura da destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos no ano 70 E.C. Também na tradição cristã, muito se aplicou esta simbologia ao processo da morte de Jesus. 319 Cf. DE WIT, Hans. (1990: 188-89). “1. As primeiras sete semanas (49 anos) abarcam o período 587 a.C. (destruição do templo) até 538/7 a.C. (a chegada a Jerusalém do sumo sacerdote Josué, o “messias, o “ungido” – no texto). Aqui o ponto de partida é o ano 587. 2. As sessenta e duas semanas (434 anos) abarcam o ano 605 a.C. (momento em que Jeremias profetiza sobre os 70 anos) até o ano 171 a.C. (momento do assassinato do sumo sacerdote Onías III, “o ungido inocente” do verso 26). O ano 605 é o segundo ponto de partida. 3. A última semana abarca 171 a.C. – 164 a.C., é a época em que (Antíoco) fará aliança firme com, ou segundo dizem outros comentaristas, contra muitos... Uma semana inteira, 7 anos (171-164) será tempo de cataclismo, guerra e destruição. 4. Na última metade desta semana (168/7 a.C. – 164 a.C., - três anos e meio -, se fará cessar o sacrifício e será posto o ídolo abominável no templo (verso 27). No ano 164 a.C. o templo será purificado e inaugurado”. Ver também COLLINS, John Joseph (1989: 86-87). 320 COLLINS, John Joseph (1984: 91-2).

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palavras de revelação, interpretação e visões.

Este conjunto está estruturado da seguinte maneira:

I – INTRODUÇÃO – 10,1

Cronologia: no terceiro ano de Ciro, rei da Pérsia Tema: foi revelada palavra a Daniel... e teve entendimento da visão II – VISÃO E EPIFANIA DO ANJO – 10,2-9

III – DIÁLOGO COM O ANJO – 10,10 – 11,1

IV – DISCURSO DO ANJO – 11,2 – 12,4

V – CONCLUSÃO: VISÃO SOBRE O TEMPO DO FIM E INSTRUÇÕES PARA O

VISIONÁRIO – 12,5-13

Tomando como base uma proposta de estruturação de Hans de Wit, podemos visualizar

um quiasmo no capítulo 10,1-21321:

A – Palavra verdadeira sobre guerra grande – 10,1

B - Naqueles dias estive triste – 10,2-4 e levantei os olhos e vi homem... – 10,5-6 C – E só eu, Daniel vi aquela visão... os homens fugiram fiquei pois só... não retive força e cai... adormecido (10,7-9) D – E eis que uma mão me tocou... e me disse... (10,10-14)

D’ – E eis... me tocou... e me confortou – (10,16a+18)

C’ – E falando ele comigo... emudeci (10,15) por causa da visão.. não me ficou força alguma...

não resta força em mim e não ficou em mim fôlego (10,16b-17)

B’ – E disse: não temas... e falando ele comigo, esforcei-me (10,19) e disse: Sabes porque eu vim a ti? Eu tornarei a pelejar... (10,20)

A’ – Eu te declararei o que está escrito no livro da verdade... (10,21)

321 DE WIT, Hans (1990: 194-95). O autor utiliza o martírio e as dores/angústias dos que estavam sofrendo perseguições e ultrajes como chave de leitura para o capítulo 10 de Daniel.

A – A PALABRA TERRÍVEL É CERTA (10,1) a: Recepção da palavra (10,2-4) a’: Figura celestial majestosa (10,5-6) b: Daniel fica só, enfermo, em letargia (10,7-9) b’: Figura celestial que o levanta e lhe diz: Eu luto também (10,10-14)

B – c: Daniel (todavia) mudo (10,15) c’: Figura celestial que lhe toca a boca (10,16a) d: Angústia, Daniel está “sem alento”(10,16b-17) d’: Figura celestial que o conforta e lhe diz: “não temas” (10,18) e: Daniel recobra forças (10,19) e’: Figura celestial: Eu luto também (10,20) A’ – A PALAVRA ESTÁ ESCRITA NO LIVRO DA VERDADE (10,21)

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Na introdução o autor situa o leitor na cronologia do livro, ou seja, no terceiro ano do

reinado de Ciro, rei da Pérsia. Na segunda parte deste primeiro versículo, temos o cerne desta

seção: a palavra (rb'D') revelada a Daniel, que é palavra verdadeira sobre uma guerra grande

(lAdg" ab'c'); porém, o entendimento desta palavra se dará mediante uma visão (ha,(r>M;). O

autor parece dizer que a única maneira de compreender a palavra é vendo-a. Ou seja, somente

aqueles que conseguem vê-la entenderão a visão e serão capazes de compreender as palavras

sobre a guerra322, provavelmente, uma alusão às guerras helenísticas que serão o assunto de

Dn 11,5-45. Ou, talvez seja a leitura deste apocalipse em meio aos confrontos militares que

resultou na guerra liderada pelos Macabeus.

Os vv.2-4 descrevem o lugar e o estado em que se encontra Daniel: triste por três

semanas e sem comer (prática de jejum). No dia 24 do primeiro mês, Daniel se encontra à borda

do grande rio Hidequel (Tigre). A data mencionada faz alusão à grande festa da Páscoa e dos

Ázimos, no mês de Nisã. E Daniel, a exemplo do profeta Ezequiel, encontra-se junto ao rio. O

jejum pode ter duas conotações: preparação do vidente para receber a revelação e visão ou

uma alusão à proibição da celebração da festa da Páscoa no templo de Jerusalém provocada

pela profanação praticada por Antíoco IV Epífanes.323

Já os vv.5-6 descrevem a aparição do homem celestial; mais uma narrativa do gênero de

epifania que será acompanhada do discurso do anjo. Este é um homem (dx'a,-vyai) vestido de

linho, tem os lombos cingidos com ouro fino de Ufaz (zp'(Wa)324 e seu corpo era como uma pedra

preciosa (vyvir>t;)): rosto (relâmpago: qr'b'), olhos(tochas de fogo: vaeê ydeyPil;), braços e pés

322 O termo utilizado para indicar uma guerra grande é ab'c': ir à guerra, servir, alistar, lutar, recrutar: serviço militar, exército; tropa; serviço compulsório. AAVV. (2000: 202) e HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1865-68). 323 Ver COLLINS, John Joseph (1984: 96-99) e GRELOT, Pierre (1995: 56) 324 Localização incerta na Arábia. A versão Siríaca e o Targum mudam para Ofir, pois consideram um erro na grafia. RpIAa / zp'(Wa.

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(bronze polido: ll'_q' tv,xon>) e voz (voz barulhenta: !Am)h' lAq325). Com certeza esta visão

epifânica tem influências de Ezequiel 1 e 8-10 e a descrição apresenta certas características das

roupas sacerdotais. No entanto, somente Daniel fora capaz de ver, pois, os seus companheiros

além de não conseguirem, fogem e escondem-se com grande medo e tremor (hl'dog> hd'r'x]).

Podemos ver que os vv.7-9 demonstram de demonstrar as reações diante desta visão. De um

lado, os companheiros que fogem e não conseguem ver e, de outro Daniel, que mesmo

conseguindo ver, fica sem forças, tem o semblante mudado e cai profundamente adormecido

(cai em estado de letargia).

Os versículos centrais (10-14 e 16a +18) giram em torno do toque (h['g>n" – nä’g`â)326:

E eis que uma mão me tocou... (v.10) E eis que uma como semelhança dos filhos dos homens me tocou... (v.16) E uma como semelhança dum homem me tocou outra vez... (v.18)

O primeiro toque faz Daniel mover os joelhos e as palmas das mãos e isto serve para

levantar o visionário que estava adormecido ou em estado de letargia; já o segundo, vem em

resposta ao emudecimento de Daniel (v.15), pois tocou os seus lábios e, o último, produz

conforto e consolo. Entre os dois primeiros toques está a palavra do homem vestido de linho que

fala ao visionário acerca do que há de acontecer ao povo nos últimos dias. Esta palavra que

provoca o emudecimento de Daniel está relacionada com o confronto entre o príncipe do reino

da Pérsia (sr;P' tWkl.m; rf:) e Miguel, primeiro dos príncipes (~yrIF'h; dx;a; laek'ymi)327.

325 !Am)h': agitação, tumulto, animação, ruído, cortejo, pompa, multidão, gasto, riqueza, barulho, rugido, sonido. 326 Este verbo no qal significa: tocar, apalpar; machucar, ferir, lesar; estender-se até, alcançar, atingir. Cf. AAVV. (2000: 150). O sentido básico de näºga` é “tocar”. Pode referir-se a uma coisa tocando (encostando) em outra (Is 6,7; 16,8; Os 4,2), a um homem tendo contato com uma coisa (Ex 19,12) ou entrando numa área (Est 6,14), e a Deus tocando num homem (Dn 8,18) ou numa coisa (Sl 144,5). Cf. HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1293). 327 Esta visão da figura dos anjos como “príncipes do exército de Javé” talvez venha de uma leitura de Js 5,13-15: “E sucedeu que, estando Josué ao pé de Jericó, levantou os seus olhos, e olhou; e eis que se pôs em pé diante dele um homem que tinha na mão uma espada nua: e chegou-se Josué a ele, e disse-lhe: És

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É intrigante observar que aqui temos o confronto entre uma categoria político-militar real, ou

seja, o príncipe do reino da Pérsia, e uma categoria religioso-celestial, o anjo Miguel (Quem

como El). Para manter o confronto na esfera mitológica é que as traduções deste versículo nas

versões gregas traduzem sr;P' tWkl.m; rf como “príncipe dos reis da Pérsia”. Daí a

equiparação deste príncipe com a figura do anjo Miguel. Todavia, aqui podemos perceber o jogo

que o texto apocalíptico faz entre a realidade de confrontos e de guerras que perfazem a

conjuntura dos anos 167-142 a.E.C. com toda a categorização e simbologia de um confronto

celestial.328

Entre o segundo e o terceiro toque aparecem as condições nas quais encontramos o

visionário: com dores (ryci: convulsão, dor), sem forças e sem fôlego de vida (hm'v'n>). Daí que

o terceiro toque tem o objetivo de trazer conforto e consolo.

Confortado e consolado, o visionário se esforça e se anima e tem uma reação diferente

das anteriores. Por isso o v.19 se contrapõe ao vv.2-4; agora, cria coragem e ânimo e no início

estava carregado de tristeza. Se nos vv.5-6 lhe aparece de maneira esplendorosa e majestosa a

figura do homem celestial, no final o visionário tem a compreensão da sua vinda e manifestação:

lutar contra o príncipe dos persas e o príncipe da Grécia.

tu dos nossos, ou dos nossos inimigos? E disse ele: Não, mas venho agora como príncipe do exército do Senhor. Então Josué se prostrou sobre seu rosto na terra, e o adorou, e disse-lhe: que diz meu Senhor ao seu servo? Então disse o príncipe do exercito do Senhor a Josué: Descalça os sapatos de teus pés, porque o lugar em que estás é santo. E fez Josué assim” (tradução de João Ferreira de Almeida). 328 Gary G. Cohen ao analisar o substantivo rf: (príncipe, chefe, comandante, governante, governador, encarregado, comandante-em-chefe, mordomo, senhor) afirma que nas tradições antigas de Israel pode denotar líderes e chefes clânicos tanto quanto a idéia de comandante militar ou chefe de exército. Porém, nos trechos hebraicos do livro de Daniel este substantivo aparece nada menos do que 17 vezes: “príncipe dos eunucos” (1,7), do “príncipe do exército”celestial (8,11), “príncipes de Israel” (9,6) e dos príncipes angelicais da Pérsia e da Grécia, que contendem com Miguel, “o grande príncipe” (10,13.20.21; 12,1). In: HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1493-94).

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O capítulo 11 é a palavra/ discurso do anjo para Daniel. Palavra que tem a finalidade de

animar (qzx: animar, tornar forte, firmar) e fortalecer (zA[m': refúgio, segurança, fortaleza = com

o sentido de instrumento e aparato de defesa militar).

Este discurso, que é o centro deste último apocalipse do livro hebraico de Daniel, tenta

descrever a conjuntura em que vive a comunidade que resiste e enfrenta as perseguições e o

martírio. Para o autor ninguém se salva e nenhum imperador é bom, pois todos foram artífices da

maldade e do caos. Vejamos os principais momentos dos confrontos e da guerra descritos pelo

texto:

vv.1-4: descreve a época persa até o domínio de Alexandre Magno – de 539 a 323 a.E.C. Nestes

versículos destaca-se a grande divisão no império.

vv.5-9: do domínio dos ptolomeus até a subida ao poder de Antíoco III – de 323 a 223 a.E.C.

Realça nestes versículos as tentativas de aliança entre ptolomeus e selêucidas.

vv.10-20: de Antíoco III a Seleuco IV – de 223 a 175 a.E.C. Relata como paulatinamente o

território da Judéia passa para as mãos dos selêucidas e chama a aristocracia local de “homens

violentos”.

vv.21-45: o domínio de Antíoco IV Epífanes – de 175 a 164 a.E.C. Descreve os anos turbulentos

e as campanhas militares sangrentas do “pequeno chifre”.

As palavras finais do livro representam uma breve reflexão sobre a ressurreição, como

instrumento evocador de resistência. São as palavras dos sábios para aqueles e aquelas que na

Judéia com coragem e ânimo caminham na esperança de um tempo de livramento para todos

que estiverem escritos no Livro. E “os entendidos pois resplandecerão, como resplendor do

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firmamento; e os que a muitos ensinam a justiça refulgirão como as estrelas sempre e

eternamente”. (Dn 12,3). Porém, o livro convoca os fiéis a esperarem até o fim dos dias.

3. O Livro de Visões de Daniel na Conjuntura da Guerra dos Macabeus

Eis alguns aspectos do difícil e confuso período que levou à guerra civil ou “revolta dos

Macabeus”. Este é um momento obscuro pelo simples fato de não se ter certeza sobre quem é

quem nas tramas da guerra e os interesses sociais e político-econômicos e, sobretudo, quais as

intenções dos diferentes grupos, visto que foram escondidos sob a estampa de um grande

conflito religioso.

“Quais os grupos sociais? Quais são os partidos políticos? Quais os interesses, ideologias, opções e convicções das pessoas? Com certeza são posições variadas e diferentes. Vamos nos deparar com os pró-Selêucidas, pró-Lágidas, judeus do Egito, judeus de Jerusalém, gente que quer se helenizar, gente que se opõe ao helenismo, gente rica e interesseira ligada à família de Tobias, grupos ligados aos vários sumos sacerdotes que brigam entre si, grupos que defendem com unhas e dentes a observância da lei conforme a tradição de Esdras e Neemias, gente desiludida com o projeto de Esdras e Neemias, gente que vê o problema dos pobres e estrangeiros, gente ligada ao movimento apocalíptico, gente que tenta resgatar o profetismo e o messianismo que haviam sido esquecidos por um bom tempo etc. Havia muitos interesses em jogo”329.

É interessante notar que a concepção da Lei apresentada pelos grupos fiéis ao projeto

de Esdras segue o mesmo princípio dos sacerdotes helenizantes. No projeto de Esdras a Lei de

Deus é a lei do rei (“Quem não obedecer à lei do seu Deus, que é a lei do rei, será castigado

rigorosamente, com morte ou exílio, multa ou prisão” Esd 7,26) e no período de Antíoco IV

Epífanes muitos obedecem ao seu decreto, seja por causa do decreto de morte em caso de

desobediência, seja pela convicção de que a lei do rei é lei de Deus (veja 1Mc 1,41-50).

Além disso, podemos perceber, neste momento uma divisão interna entre os grupos,

cada qual buscando os próprios interesses políticos, econômicos e religiosos. Transparece a

329 VASCONCELLOS, Pedro Lima e SILVA, Rafael Rodrigues da (2004: 8).

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fragilidade da luta (também dos interesses, alianças e compromissos políticos e religiosos)

quando grupos e tendências políticas mudam de lado e de atitude constantemente. O jogo de

interesses pode ser percebido, por exemplo, nas lutas pelo poder entre Jasão e seu irmão Onias;

nos confrontos travados até a morte entre Menelau e Jasão; nos conflitos entre os helenizantes

Onias e Tobias que, por interesses econômicos, aliam-se aos generais rivais para conseguirem

mais poder. Onias coloca-se ao lado dos generais egípcios (Lágidas ou Ptolomeus) ao passo

que Tobias fica ao lado dos generais sírios (Selêucidas); nos conflitos acerca da pertença à

linhagem sadocita para se tornar sacerdote, como é o caso de Alcimo que é aceito pelos

Macabeus e os próprios irmãos macabeus que não sendo sadocitas faziam-se sacerdotes; na

separação entre os hassidim (homens piedosos) e os Macabeus devido à condução da luta dada

por Judas e Jônatas (no início dos conflitos unidos a Judas – 1Mc 2,42 e depois separam-se –

1Mc 7,14); e na incoerência dos observantes da lei que lutaram contra os helenizantes e num

dado momento lutam a favor e com apoio do general grego para prender Judas (2Mc 15,2).

Numa leitura das ações dos vários grupos fica claro que cada tendência se guia pela

busca da realização da Aliança através de sua fidelidade. Cada grupo bate no peito e se diz fiel

ao plano de Deus. Nesta perspectiva, a ideologia do zelo pela lei e a atribuição de ser povo eleito

fazem aumentar a separação. É pela lei que se julgam povo separado, puro e escolhido por

Deus.

Contudo, mesmo diante de uma incessante busca de fidelidade e de zelo à lei aparecem

contradições. Sacerdote e escriba são funcionários de um rei de “fora” e este não aceita a

religiosidade e as práticas cultuais do povo. E estes funcionários acabam reconhecendo ao

menos por um determinado tempo, poder divino ao rei. Assim, a situação parece tranqüila

quando o rei legitimava a Lei de Deus do passado (herança de Esdras e Neemias) e a crise

estoura quando alguns querem que a Lei de Deus seja a lei do Rei. Daí em diante, só há tensão

e crise.

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Os fatos que levaram à guerrilha

O Primeiro Livro dos Macabeus cita como primeiro fato a decisão de alguns de quererem

ser como os outros, de acabar com a “separação” (1Mc 1,11) e usar o ginásio (gumna,sion:

ginásio ou praça de esportes330) para isso (1Mc 1,14). Já o Segundo Livro dos Macabeus, após

as introduções e cartas (2Mc 1-2), cita como primeiro fato o desacordo entre Simão e Onias a

respeito das finanças do templo e a incalculável soma de dinheiro aí acumulado (2Mc 3,1-12 –

este fato é repetido em 2Mc 4,1ss, e Onias é obrigado a se explicar junto ao rei: 4,5). O Sumo

Sacerdócio começa a ser leiloado a Jasão (2Mc 4,7-10), depois a Menelau, irmão de Simão

(2Mc 4,23-24).

Flavio Josefo (37 – 110 d.E.C)331, um historiador que escreve a história dos Judeus, diz

que Menelau estava com a família dos Tobias, ao passo que o povo estava mais do lado de

Jasão. Eles procuram uma integração cultural-política que vai culminar em 167 a.E.C. com a

instalação de Zeus Olimpos no Templo. Ou seja, Javé passa a ser chamado com o nome de

Zeus Olimpos, isto é, “Deus dos Céus”.

“Deus dos Céus” é um Deus eqüidistante, indiferente aos grupos rivais em luta. Isto

exigirá a abolição dos costumes próprios que separam o povo fiel dos outros povos. Deus é

neutralizado e apresentam um monoteísmo sem cor, um Deus sem definição frente ao drama da

vida humana. Parece o resultado superficial da crítica de Qohelet (Eclesiastes).

330 “Lit. ‘ginásio’: instituição esportiva e também cultural onde os jovens atletas, chamados ‘efebos’, exibiam-se completamente nus (gr. Gymnós – nu) nos vários exercícios de corrida, luta, lançamento do disco e do dardo. Consistia numa vasta praça rodeada de pórticos, com vários anexos cobertos. Conforme 2Mc 4,12, foi o próprio sumo sacerdote usurpador, Jasão, quem construiu o ‘ginásio’ de Jerusalém”. BJ (1985: 788-9, nota i). 331 “Historiador judeu nascido em Jerusalém em 37 d.C.; morreu em Roma em 110 d.C. De descendência aristocrática e com boa formação, Josefo já tinha visitado Roma na década de 60. Ele participou da revolta contra os romanos na Palestina, mas acabou passando para o lado romano. Depois da guerra, morou em Roma como um homem de letras sob a proteção imperial. Escreveu quatro trabalhos ( em grego): uma autobiografia, uma defesa da religião judaica (Contra Apião), um relato histórico da guerra judaica contra os romanos (Guerra Judaica) e uma história dos judeus na Antiguidade baseada principalmente no Antigo Testamento (Antiguidades Judaicas)”. OTZEN, Benedikt (2003: 299-300).

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Diante disso começa o levante dos Macabeus, que querem que sejam preservadas as

leis dos pais (1Mc 2,19-20) e, por isso, se revoltam abertamente contra o rei (1Mc 2,19-20;

2,34.46; 4,47) enquanto que os “outros” seguem o rei (1Mc 2,19; 6,21-23; 9,23-25; 10,14).

É inegável que existe toda uma motivação religiosa por trás da luta dos Macabeus. Mas

não podemos esquecer que, no fundo, a luta era também econômica e social.

A independência trouxe os seguintes aspectos (1Mc 13,36-42):

1. O povo fica “totalmente isento” de impostos (1Mc 13,37)

2. Essa isenção implica ficar livre (1Mc 10,29-31) do tributo, do imposto do sal, do imposto do ouro da coroa, de entregar a metade da produção da colheita dos cereais e de entregar a metade dos frutos das arvores.

3. O grito de independência: em 142, no decreto de Demétrio II a Simão, o povo é declarado livre de pagar os impostos. Será que o povo, na prática, ficou livre da exploração da aristocracia e os meeiros se tornaram donos da sua produção? (ver 1Mc 13).

Além disso, podemos perceber que a intenção dos gregos não era combater a religião e

cultura judaicas. Os generais gregos queriam a obediência dos súditos, a tranqüilidade do reino,

o pagamento de tributos e o fornecimento de soldados. Mas, no tocante à religião e aos

costumes, cada povo podia viver segundo as suas tradições. O que acontece na Judéia está

relacionado às tensões e lutas ao redor da interpretação da lei e da religião. É o conflito entre os

ortodoxos e os liberais. O general selêucida pressionado por uma crescente dívida com os

romanos e por uma luta para se manter no trono, se vê obrigado a apoiar um grupo contra o

outro para assim ter mais força nas lutas sucessórias e ter acesso às grandes riquezas

armazenadas no Templo. Deste modo, em vez de solucionar, ele acentua o conflito interno entre

os judeus. O general intervém para ajudar o seu grupo aliado, tenta assim tranqüilizar a situação,

ao impor a sua política e daí espera tirar vantagens.

Lísias, general de Antíoco IV Epífanes, tenta transformar Jerusalém numa pólis e

residência para gregos (2Mc 11,2), tributar o Templo (2Mc 11,3) e pôr à venda, ano após ano, a

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função do Sumo Sacerdócio (2Mc 11,3). Tributar o Templo é uma importante fonte de renda e,

além disso, transformar Jerusalém numa cidade grega e com o projeto político de leilão do

sacerdócio, seria um bom instrumento para quebrar a resistência. Antíoco contava com a força

da aristocracia urbana de Jerusalém para saldar os seus problemas de caixa.

Entre os esforços de Lísias (1Mc 3,34-36) para quebrar a resistência dos judeus, vemos

que ele busca extirpar as forças e focos de resistência que ainda restavam em Jerusalém (3,35),

ocupar o território colocando estrangeiros em todas as terras e estabelecendo uma nova divisão

das terras (3,36 e Dn 11,39). É a transformação do território em “terras do rei” e, assim, o

general podia muito bem arrendá-la aos seus amigos e ex-combatentes (3,42-43 e 2Mc 8,9).

Uma outra medida que aparece neste momento, transparece nas intenções de Nicanor e

Górgias, combatentes e chefes militares de Lísias, que convoca os comerciantes para comprar

escravos judeus. Querem levantar a quantia de 2000 talentos através da venda de escravos para

saldar dívida com Roma (2Mc 8,10-11; 1Mc 3,41; 2Mc 8,25-34).

O povo reage contra Nicanor. A reação do povo das aldeias (camponeses) contra o

poder que os veio aniquilar. É o dia da vitória que tem de ser lembrado e comemorado como dia

de festa:

“De todos os povoados da Judéia, que ficavam próximos, o povo saía e os cercava, de modo que uns se voltavam contra os outros. Dessa forma, caíram todos mortos à espada, sem sobrar nenhum. Recolheram os despojos e fizeram o saque. Cortaram a cabeça e a mão direita de Nicanor, que ele tinha levantado com desprezo, e levaram para mostrar ao povo, em Jerusalém. O povo ficou muito alegre e comemorou esse dia como dia de festa. Resolveram celebrar essa data anualmente, no dia treze de Adar. Assim a Judéia ficou tranqüila por algum tempo” (1Mc 7,46-50).

Uma das estratégias de resistência está baseada na solidariedade. Judas se infiltra nas

aldeias e convoca os compatriotas e os que continuam fiéis ao judaísmo. Na ação de Judas e de

seu grupo é invocada e acordada a antiga solidariedade tribal. Neste espírito juntou 6000 para

defender o direito à terra, vida, trabalho e comida (ver 2Mc 8). Na luta aparece a grande

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motivação de pertença ao grupo e defesa de uma causa comum. “Lutem hoje por seus irmãos!”

(1Mc 5,32). “Os inimigos confiam nas armas e nos seus atos de bravura. Nós, porém, confiamos

no Deus Todo-poderoso” (2Mc 8,18).

Resumindo, podemos elencar de um lado o que queriam os generais e, do outro a

resistência dos judeus.332

Os gregos querem: Os judeus resistem:

Transformar a Judéia em “terra do Rei” Motivados pela fé em Deus

Arrecadar dinheiro para pagar a dívida externa Defendendo “a lei, o Templo, a cidade, a pátria, o direito de cidadão” (2Mc 13,14)

Incrementar o comércio lucrativo de escravos Lutando contra a exploração do tributo

Acabar com o Etnos e transformá-la em polis Lutando contra a ameaça de perder a terra

Tributar o Templo Lutando por amor aos irmãos.

Leiloar ano após ano o Sumo Sacerdócio

Quebrar a resistência do povo

Em meio a esta conjuntura conflitante e confusa é que podemos perceber o jogo de

palavras do livro hebraico (ou versão hebraica) de Daniel. Começando pela sugestiva ironia do

capítulo de abertura do livro, que reflete sobre a dominação cultural atrelada à mudança dos

nomes e hábitos alimentares. Em certo sentido, este capítulo quer demonstrar os riscos e as

marcas de um domínio que está levando o povo e, de modo especial, as autoridades a perderem

aos poucos a sua identidade e traços fundamentais da cultura e da tradição.

Ao passo que os capítulos 8-12 em forma de visões tentam descrever as ações dos

generais em meio a esta conjuntura: agem como animais, fazem guerra até os últimos dias (ou o

tempo do fim). No entanto, a riqueza do texto apocalíptico e o testemunho de mártires, deseja

alimentar a resistência do povo e daqueles que participam destas lutas.

332 Cf. VASCONCELLOS, Pedro Lima e SILVA, Rafael Rodrigues da (2004: 20).

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Podemos suspeitar que o livro de Daniel (na sua versão hebraica) é fruto da análise e

participação dos hassidim no levante dos Macabeus? Quais os indícios desta hipótese?

Os hassidim são definidos nos livros dos Macabeus como grupos de judeus piedosos e

fiéis à lei, que “se juntaram aos macabeus como ‘reunião (synagogé) dos piedosos’ e

participaram da revolta como ‘homens valentes (ischyroì dynámei) de Israel’.”333 O termo

~ydsx (hassidim) vem da raiz dsx que significa piedade, bondade. O adjetivo dysx

(HásìD) normalmente traduzido por fiel, piedoso quer indicar aquele que pratica a bondade. Por

exemplo em Jr 3,12 Deus é designado como um HásìD. Neste sentido, este adjetivo acontece

em paralelo com o qydc ‘(caDDìq): o justo. Além disso, é empregado para designar aquele que

tem atitude piedosa e em sua origem é um conceito marcadamente coletivo e nas comunidades

de Israel era um modo de designar aqueles que pertenciam à comunidade de Javé. E quem fazia

parte do grupo dos HasìDìm era consciente de estar relacionado com Javé e que a sua ação é

um princípio que vale para todo o povo. Assim sendo, quem exercia a piedade podia ser um

HasìDìm; porém, isto nos leva a perceber que no contexto pós-exílico (de modo especial no

período ao redor dos conflitos com o helenismo e a guerra dos Macabeus) cada vez mais este

adjetivo quer indicar a organização de um grupo seleto de fiéis que se opõem aos ímpios e por

praticarem a piedade e lutarem para se manter na fidelidade. Daí terão a conotação de grupos

dos “honrados” e dos “devotos”. Por isso no grego serão chamados de Asidaioi (1Mc 2,42;

7,13; 2Mc 14,6). Grupo que une piedade e combatividade.334

Baseando-se em Dn 11,45 ("E armará as tendas do seu palácio entre o mar grande e o

monte santo e glorioso; mas virá ao seu fim, e não haverá quem o socorra”) e 12,3 (“Os

entendidos pois resplandecerão, como o resplandor do firmamento; e os que a muitos ensinam a

justiça refulgirão como as estrelas sempre e eternamente”) muitos comentadores buscam afirmar

333 STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang. (2004:176). 334 Cf. JENNI, Ernst e WESTERMANN, Claus (ed.) (1985a: 832-861)

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uma origem assidéia para os capítulos 7 –12 de Daniel.335 Daniel 11 parece confirmar a

proximidade do autor (autores) do livro ao momento da morte de Antíoco IV Epífanes e Daniel 12

evoca a vitória contra os dominadores através de uma linguagem de fortalecimento daqueles que

caminham na justiça. Os entendidos (os maskilim: ~yliKif.M;) aqui apresentados em paralelo

aos que ensinam a justiça nas entrelinhas transparecem algumas das características dos

hassidim: entender a lei e ensinar a justiça.

Este grupo dos hassidim mais tarde vai se desdobrar em diferentes grupos que tentamm

viver a lei: fariseus, essênios e zelotas. Aliás, estes diferentes grupos vem de uma raiz muito

antiga. Podemos remontá-los desde a época da dominação persa sob a liderança de Esdras e

Nehemias.336

O período após os conflitos que estouraram na guerra dos Macabeus foi um tempo muito

confuso e complexo, onde vai aparecer toda a contradição interna, sem solução, do sistema de

335 Cf. DELCOR, Mathias (1987: 33-38). 336 Cf. DONNER, Herbert (1997: 508): “O partido dos ‘piedosos’ (hasidim), que provavelmente é mais antigo do que o movimento dos macabeus, estava satisfeito com o alcançado e nada mais desejava senao poder praticar sua religião sem estorvos. Dele provieram, mais tarde, os fariseus.”

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Esdras e Neemias e da luta dos Macabeus.337 Configuram-se os grupos e tendências, nascidas

de raiz comum, e opostas entre si: Fariseus, Saduceus, Essênios e os Zelotas (surgiram tempos

depois). Neste período aparece o trágico de uma luta sem solução e alternativa. O que começou

como luta contra a invasão helenista com um levante popular, acaba num conflito de chefes

helenistas, sem participação do povo e contra o povo.

A situação política, econômica e social depois da guerra dos Macabeus até a chegada

dos romanos vai ser marcada por três fortes tendências: no campo político, as constantes brigas

dos grupos ou partidos que brigam para deter o poder; no campo econômico, grande exploração

exercida pelos Hasmoneus e pelos “novos ricos” que controlam o comércio e a produção dos

agricultores; e, no campo religioso, as promessas de restauração de Israel é suplantada pelas

frustrações do abandono à Lei e a quabra da Aliança. Neste período, fala-se de

“independência”, mas não é independência para o povo, o que acontece é a concentração de

todo o poder nas mãos do rei (neste momento não existe mais monarquia e todo o poder político

estava centralizado nos sacerdotes. É o poder político exercido pela religião). A politização do

sacerdócio (cf. 1Mc 14,41) provoca uma ruptura com a tradição, que vai desembocar na

dissidência dos hassidim, essênios e fariseus. Vale lembrar que no período da regência de

Alexandra Salomé (76 – 67 a.E.C.) vai implantar uma separação entre Sacerdócio e governo e

tentou apaziguar os conflitos e as varias tendências políticas.

O afastamento dos grupos de “piedosos” diante das frustrações de uma mudança e da

restauração do país, vai se fortalecer mediante a política dos Hasmoneus que não

representavam a defesa do Templo e da Lei, e, sim, uma política expansionista orientada para a

conquista do poder e acúmulo de riqueza e luxo. Do ponto de vista econômico, o povo do interior

do país não era mais obrigado a pagar tributos a um poder estrangeiro, mas pagam taxas,

337 Ver VASCONCELLOS, Pedro Lima e SILVA, Rafael Rodrigues da (2004: 7-30) e SILVA, Rafael Rodrigues da (2003: 21-26).

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impostos e dízimos aos reis-sacerdotes. Além disso, os Hasmoneus mantiveram o sistema fiscal

montado desde os Lágidas, agora de acordo com os seus interesses. Do ponto de vista

reliigioso, instaura-se uma crise no povo: antes, no exílio, o sofrimento se explicava como castigo

de Deus pela falta de observância. Agora, são perseguidos e sofrem por causa da observância.

No entanto, em meio a essa situação de “fracasso” das promessas aparece e vai

ganhando forças as expectativas messiânicas enquanto esperança de algo melhor. Se no

passado o messianismo esteve ligado ao ungido da dinastia davidica, agora toma formas

variadas. Uma dessas formas encontramos na apocalíptica. Daí, podemos inferir o quanto o

livro de Daniel (nas suas versões aramaica e hebraica) foi lido por esses grupos e, em certo

sentido, animou e fortaleceu as expectativas de uma reviravolta social.

Nesta perspectiva, nos capítulos 7 - 8 e 10 – 12 do livro de Daniel um conjunto de visões

em que os apocalípticos desejam a destruição dos impérios e seus sistemas de controle. Daniel

reconhece que a maldade (iniqüidade) aumentou em toda parte do mundo (12,4.10), mas no

“fim” Javé vai triunfar sobre todas as forças do mal, juntamente com as burocracias do império e

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aqueles que estão a seu serviço.338 Daí a expectativa da destruição do poder hegemônico pelas

mãos de Javé.

338 Cf. BERQUIST, Jon L. (1995: 177-192).

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CAPÍTULO 3:

COSTURAS E ADIÇÕES AO LIVRO DE DANIEL NA SEPTUAGINTA

Diz uma antiga tradição que a Bíblia (Escritura Hebraica) foi traduzida para a língua

grega por setenta e dois sábios (escribas). Daí o nome de Septuaginta339 para a tradução grega

da Bíblia Hebraica. “O nome ‘Setenta’ aplica-se antes de tudo à tradução grega da Lei. Em

seguida veio a ser usado para a tradução grega de todas as sagradas Escrituras”.340 Esta

tradição aparece na carta341 de um tal Aristéias (ou Aristeu) a seu irmão Filócrates, na qual se

relata as circunstâncias e os motivos do rei Ptolomeu II Filadelfo (285 – 246 a.E.C.) em querer

traduzir os textos sagrados dos judeus. O rei pede duas coisas: uma cópia autêntica da Lei

judaica para ser traduzida para o grego e os sábios de Jerusalém que irão executar tal tarefa.

Daí que o sacerdote escolhe setenta e dois deles (escribas ou sábios) que se encarregarão

desta empreitada. Por que setenta e dois? O próprio texto trabalha com a descrição de seis

membros de cada tribo de Israel (seis de cada uma das doze tribos).342 Pelas informações deste

livro, o seu autor provavelmente foi um judeu alexandrino. Trata-se podemos conjecturar que é

judeu visto que dá grande ênfase às práticas cultuais, pela valorização ao sumo sacerdócio e

339 A edição mais conhecida da Septuaginta é a estabelecida por Alfred Rahlfs, Württembergische Bibelanstalt Stuttgart. Esta é a edição que utilizaremos para a análise do livro de Daniel. 340 SIMIAN-YOFRE, Horacio (org.). (2000: 54). 341 Nos textos antigos existem várias maneiras de apresentar a Carta de Aristéias: Por exemplo, Flavio Josefo fala de “livro de Aristéias”, Eusébio, fala de “a tradução da lei dos judeus”. E nos manuscritos mais aintigos simplesmente o texto começa com a epígrafe: “Aristéias a Filócrates”. 342 “47Y son de la primera tribu: José, Exequias, Zacarías, Juan, Exequias y Eliseo. De la segunda: Judas, Simón, Somoel, Adeo, Matatías y Esclemías. De la tercera: Nehemías, José, Teodosio, Baseas, Ornías y Dacis. De la cuarta: Jonatán, Abreo, Eliseo, Ananás, Cabrías... De la quinta: Isaac, Jacob, Jesús, Sabateo, Simón y Leví. De la sexta: Judas, José, Simon, Zacarias, Somoel y Selemías. De la séptima: Sabateo, Sedecías, Jacob, Isaac, Jesías y Nateo. De la octava: Teodosio, Jasón, Jesús, Teódoto, Juan y Jonatán. De la novena: Teófilo, Abrahán, Arsamo, Jasón, Endemías y Daniel. De la décima: Jeremias, Eleazar, Zacarías, Baneas, Eliseo y Dateo. De la undécima: Samuel, José, Judas, Jonates, Caleb y Dositeo. De la duodécima: Israel, Juan, Teodosio, Arsamo, Abietes y Ezequiel. En total setenta y dos. Tal fue la respuesta escrita de parte de Eleazar a la carta del rey”. Cf. DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 27).

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grande admiração pelo templo. É alexandrino por apresentar uma certa familiaridade e

conhecimento com os costumes da corte dos Lágidas.343

É muito comum afirmar que a Septuaginta é uma versão da Bíblia Hebraica que foi

sendo elaborada entre os séculos IIo e Io a.E.C. na Alexandria, Egito, para os judeus que ali

vivam (diáspora) e que já não entendiam suficientemente o hebraico. Para Stephen Pisano “a

diáspora judaica suscitou a necessidade de se ter as sagradas Escrituras em língua

compreensível aos hebreus residentes no Egito, sobretudo em Alexandria, onde havia uma

importante comunidade judaica”.344

A maioria dos comentadores consideram que a Carta de Aristéias seja do IIo. século

a.E.C. e outros preferem estipular o ano 100 como a data provável de sua escrita.345 Também é

um livro que tem problemas de ordem literária, demonstrando que a sua formação se deve a

uma autoria variada. Porém, não deixa de ser um material sugestivo para se pensar a

originalidade e o processo de formação da Septuaginta. Conforme Paul Lamarche é complicado

aceitar a hipótese de que a Carta de Aristéias esteja se referindo à Septuaginta; bem como à

tradução grega do Pentateuco, pois somente no IIo século de nossa era é que aparece dentro da

Sinagoga a leitura continuada do Pentateuco.346 Aliás, o que foi traduzido da Bíblia Hebraica,

que podemos deduzir desta Carta de Aristéias, foi a Torá ou Pentateuco.347

“La finalidad principal de la carta es defender la traducción de los LXX, como fiel reflejo del original hebreo, frente a los ataques de los judíos de Palestina, para quienes sus hermanos de la diáspora utilizan una traducción inexacta. Según parece, nunca se dio verdadera oposición entre la teología judía de la diáspora y la de Palestina. La verdad es que la versión de la ley judía al griego fue el medio

343 Idem. p.12. 344 Cf. SIMIAN-YOFRE, Horacio (org.). (2000: 53-4). 345 Cf. MONDÉSERT, Claude (dir.). (1984:21). 346 Idem., p.23. 347 DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 14): “La carta es un escrito de propaganda que quiere informar sobre la traducción del Pentateuco al griego. Su finalidad es, pues, apologética y probablemente didáctica. Más difícil de precisar es el destinatario principal: los propios judíos (de Palestina o de la diáspora), los griegos (con el fin de hacerles partícipes del pasado glorioso de Israel) o la corte de los Tolomeos.”

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con que el judaísmo alejandrino se defendió del helenismo, del mismo modo que en Palestina se reaccionó mediante la producción de la literatura apocalíptica”.348

No final da Carta é mencionada a volta dos tradutores, a entrega da tradução, a sua

leitura e aprovação por parte da Assembléia.349. Interessante é que nos §§ 308-311 este

documento deixa transparecer que há uma exigência para que se mantenha a tradução intacta e

que esta seja defendida das críticas e correções concorrentes.

“En cuanto la terminaron, Demetrio congregó a la población de los judíos en el lugar en que se había llevado acabo la traducción y se la leyó a todos en presencia de los traductores. Estos tuvieron también una excelente acogida de la población por haber contribuido a un beneficio tan grande. La misma acogida tributaron a Demetrio, invitándole a que entregara a sus jefes una copia de toda la ley. En cuanto se leyeron los rollos, se pusieron en pie los sacerdotes, los ancianos de la delegación de traductores, los representantes de la comunidad y los jefes de la población , y dijeron: ‘Puesto que la traducción es correcta, de una precisión y piedad extraordinarias, justo es que permanezca tal como está y que no se produzca ninguna desviación’. Todos asintieron a estas palabras y ordenaron pronunciar una maldición, como es costumbre entre ellos, en el caso de que alguien se atreviera a revisarla añadiendo, modificando o quitando algo al conjunto del texto. E hicieron bien, para que se mantenga siempre igual e imperecedera”.350

Voltando ao Prólogo do Livro de Jesus Ben Sirac (utilizado na abertura desta primeira

parte da pesquisa351) encontramos uma outra alusão à tradução da Bíblia Hebraica para o grego.

Porém, o texto aponta para uma questão importante ao tratarmos de uma tradução: mesmo

querendo ser o mais fiel ao texto original, algumas expressões são enfraquecidas quando

traduzidas para outra língua. Nos vv. 19-26352 aparecem com clareza questões ao redor da

tradução do texto hebraico para outra língua, nestas o autor deixa entrever a existência de uma

tradução da Lei (hrwt), dos Profetas (~yaybn) e dos Escritos (~ybwtk); porém, apresenta os 348 Idem. p.15. 349 Ver os §§ 301-321. In: DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 59-63). 350 Idem. pp.60-1. 351 Veja o texto na nota n.6. 352 19 evfV oi-j a'n dokw/men 20 tw/n kata. th.n ermhnei,an pefiloponhme,nwn tisi.n tw/n le,xewn avdunamei/n 21 ouv ga.r ivsodunamei 22 auvta. evn eautoi/j Ebrai?sti. lego,mena kai. o[tan metacqh/| eivj ete,ran glw/ssan 23 ouv mo,non de. tau/ta 24 avlla. kai. auvto.j o no,moj kai. ai profhtei/ai 25 kai. ta. loipa. tw/n bibli,wn 26 ouv mikra.n e;cei th.n diafora.n evn eautoi/j lego,Mena.

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limites de uma tradução e utiliza os termos meta,gw e ermhnei,a com a intenção de deixar bem

claro a sua concepção de tradução.

Estes termos entre outros são constantes na Carta de Aristéias. A questão aí presente

gira em torno da tradução de um texto sacro para uma língua diversa (albabeto, gramática e

compreensões diferentes). Na Carta de Aristéias § 30353 temos que a intenção não se reduz

simplesmente a uma tradução da lei, mas fala-se de recopiar e transcrever. A Carta de Aristéias

ao utilizar vários termos para indicar a tradução está pensando em cópia e tradução da lei ou em

cópia e explicação? Em certo sentido uma tradução vem acompanhada de interpretação.354

“O prólogo ao Eclesiástico, escrito ao redor de 130 A.C., nos informa que nesse tempo não só a Lei, mas também os ‘Profetas’ e o ‘resto dos Livros’ estavam traduzidos em grego. Pode-se também provar que ao redor de 157 A.C. o historiador judeu Eupólemo usou uma tradução grega de Crônicas. Um certo aristéia é citado numa obra ‘Sobre os Judeus’ em conexão com a tradução do livro de Jó, no fim do século II A.C. A tradução grega de Ester é ambiguamente datada, mas parece ser conhecida no Egito já em 48 A.C. A citação mais antiga dos Salmos em 1 Macabeus 7.11 (Sl 79.2ss) data de cêrca de 100 A.C. Mas é provável que êsse livro importante, que em algumas passagens representa toda a coleção dos Hagiógrafos, tenha sido traduzido muito antes.”355

Vale lembrar que ao redor do IIo século existiam várias versões do texto grego e ao nos

depararmos com uma tradução do texto hebraico com desigualdades de tradução muitas vezes

no mesmo texto (livro) é reconhecível que se trata de uma tradução realizada a muitas mãos e

durante um longo tempo. Daí não termos uma forma original (formas originais) da Septuaginta.

Para P. Kahle existia um Targum grego que continha várias traduções parciais que eram usadas

353 “Faltan los libros de la ley de los judíos junto con otros pocos. Se leen con caracteres y pronunciación hebreos, pero estan escritos de forma descuidada y no como son en realidad, según aducen los expertos, pues les ha faltado la supervisión real”. Carta de Aristéias § 30. In: DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 24). 354 Cf. STEMBERGER, Günter (2000: 64-80). 355 Cf. BENTZEN, Aage (1968a: 90).

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nas sinagogas helenísticas com finalidades litúrgicas.356 Outros estudiosos (entre eles podemos

citar P. De Lagarte) procuram defender a teoria de um texto único arquétipo.357

A Septuaginta em vários momentos não apresenta simplesmente uma tradução literal

dos termos, mas a sua tradução vem acompanhada de uma transferência de sentido e, com isso

, se processa uma tentativa de explicação e harmonização do texto para os seus destinatários.

Por exemplo, no Primeiro relato da criação (Gn 1,1-2,4a) de acordo com o texto hebraico as

obras são concluídas no sétimo dia enquanto que na Septuaginta lemos que “ao sexto dia Deus

conduziu o término de sua obra”. Outro exemplo encontramos no acréscimo em Cantares 3,1:

evka,lesa auvto,n kai. ouvc uph,kouse,n mou: eu o chamei, mas ele não me respondeu”.358 É a

mesma frase que aparece em 5,6, tanto no texto hebraico quanto no texto grego. Podemos dizer

que a Septuaginta não só fez o acréscimo em 3,1, mas os tradutores procuraram harmonizar e

criar uma coesão no texto (evidentemente que seguindo os seus critérios de leitura e

interpretação).

“Pode-se concluir a variedade de tradutores a partir da diversidade de traduções para as mesmas palavras ou para os mesmos termos. Por exemplo, a palavra qáhál, ‘assembléia’, é traduzida por sunagwgh, em Gn, Ex e Lv e nos profetas, mas por .ekklhsi,a em Dt e nos livros históricos”.359

Iríamos longe em vários exemplos em toda a Bíblia.360 Porém, aqui nos toca ver as

costuras e adições que foram feitas no livro de Daniel.

Mas antes de passarmos para o livro de Daniel, é preciso apontar dois aspectos que

podemos decobrir no processo de tradução realizado pelos autores da Septuaginta: a reescrita e

a transcriação.361

356 Um resumo da teoria de P. Kahle encontramos em BENTZEN, Aage (1968a: 95-100). 357 SIMIAN-YOFRE, Horacio (org.). (2000: 54-5). 358 Ver nota do aparato crítico da BHS, p.1328. 359 SIMIAN-YOFRE, Horacio (org.). (2000: 55-6). 360 Ver outros exemplos de tradução e interpretação em CROATTO, José Severino (1986). 361 Estou utilizando aqui um termo cunhado por Haroldo de Campos.

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Para pensar a tradução da Septuaginta como uma reescrita do texto hebraico é preciso

ter presente que os sábios e escribas em Alexandria tinham uma foma de manipulação dos

textos que oscilava entre uma conotação conservadora e inovadora. Nesta perspectiva,

percebemos em certos livros as marcas de uma reescrita do texto que aponta para aspectos

novos na compreensão do próprio texto e noutros fica patente uma tendência conservadora.362

“A tradução é a forma mais óbvia de formação de uma imagem, de manipulação, que temos [...] Juntamente com a historiografia, as antologias e a crítica literária, ela prepara as obras para serem incluídas no cânone da literatura mundial. Ela introduz inovações em uma literatura. É o principal meio pelo qual uma literatura influencia a outra. Ela pode ser potencialmente subversiva e pode ser potencialmente conservadora. Pode falar-nos da auto-imagem de uma cultura em uma dada época, e as modificações que essa auto-imagem sofre. Pode falar-nos da força de uma poética e/ou ideologia em uma certa época, simplesmente mostrando-nos em que medida elas foram interiorizadas pelas pessoas que escreviam traduções naquele período. [...] A tradução pode falar-nos muito sobre o poder de imagens e as formas com que tais imagens são forjadas, sobre as formas com que a autoridade manipula as imagens e emprega especialistas para sancionar aquela manipulação e para justificar a confiança de uma audiência – é esse o motivo pelo qual o estudo da tradução pode nos ensinar algumas coisas não apenas sobre o mundo da literatura, mas também sobre o mundo em que vivemos”. 363

Evidentemente, em se tratando da tradução de um texto ao qual se atribui sacralidade

devemos imaginar as correlações de poder e os fortes conflitos entre helenistas e não

helenistas, entre judeus arraigados à tradição e judeus abertos para a nova cultura e que até

mesmo desconheciam determinados preceitos e conceitos da cultura judaica. Se nos guiarmos

pela Carta de Aristéias, constataremos que não ocorreram conflitos como estes e nem tampouco

se vislumbra uma correlação de poder. No entanto, entre as contestações à tradução dos

Setenta, está a que diz que é obra projetada por um rei estrangeiro e nunca se menciona a

utilização da parte judaica. Em texto pós-talmúdico é demonstrada a não aceitação da tradução

362 Mais adiante podemos evidenciar estes aspectos na tradução grega do livro de Daniel. 363 A. Lefevere. Apud. LAGES, Susana Kampff (2002: 76).

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grega, pois era considerada uma Torá não válida, pois uma tradução da Torá era impossível e tal

ato é um pecado imperdoável.364

A reescrita do texto hebraico para o grego tende a ser transparente, pois não encobre o

texto original e nem tampouco o tira da luz, como diria Walter Benjamin.365 Se colocarmos sob a

forma de sinopse os textos hebraico e grego iremos perceber o quanto a versão grega em

determinados momentos tentou assemelhar-se ao original e noutros, buscando entender o

sentido do texto, alheio ao seu leitor, para transmiti-lo de acordo com o seu contexto.

Nesta perspectiva se encaixa o aspecto da tradução da Septuaginta como uma

transcriação do texto hebraico que já não era compreensível para as comunidades da diáspora.

Portanto, a versão grega da Bíblia não tem como procupação primeira a de traduzir palavra por

palavra do texto hebraico, mas em grande parte tenta buscar o entendimento para fornecer ao

leitor núcleos de sentido, por isso faz deslocamentos nos textos dentro de um livro e até mesmo

de livros dentro do cânon. Os sábios realizam uma tradução claramente interpretativa. Um

exemplo de mudança de organização de texto na tradução da Septuaginta está em 1Rs 4-5 e

quanto à organização dos livros dentro do cânon verificamos no deslocamento do livro de Rute,

Daniel, Lamentações e Esdras-Neemias e 1 e 2 Crônicas dentre os Escritos para a Obra

Deuteronomista e os Profetas.

“A versão dos LXX tende a ser mais literal em uns livros que em outros. É preciso estudar as características da tradução de cada livro em separado. Há ocasiões em que inclusive as seções diferentes do mesmo livro podem oferecer características diferentes que, se antes se explicavam por atribuições a diferentes tradutores, agora são atribuídas a diversas recensões da versão original.” 366

364 “Setenta anciãos escreveram inteiramente a Torá para o rei Talmai em língua grega, e este dia para o Israel foi nefasto como o dia em que eles construíram o bezerro (de ouro). Porque a Torá não pode ser traduzida inteiramente, como teriam sido necessários. Nisto eles mudaram treze passos...” (Sefer Tora I,6). Cf. STEMBERGER, Günter (2000: 69-70). 365 Walter Benjamim. Apud. LAGES, Susana Kampff (2002: 224). 366 Cf. BARRERA, Julio Trebolle e CARO, José M. Sánchez. O texto da Bíblia. In: AAVV. (1994:463).

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É preciso levar em conta que a versão da Septuaginta representa um esforço enorme de

tomar um conjunto literário hebraico compreensível para o grego. Com isso, podemos dizer que

os sábios e escribas no IIo século a.E.C. em diante produziram um outro livro, com aspecto

teológico diverso e, conseqüentemente, podemos dizer que estabeleceram uma organização

diferente do cânon da Escritura Sagrada.367

Agora, vamos ao trabalho destes sábios e escribas no livro de Daniel. Proponho três

pontos para a nossa análise: 1. As adições e omissões na tradução do texto Hebraico e

Aramaico; 2. as mudanças interpretativas na tradução e 3. os acréscimos de Dn 3,24-90 e 13-

14.

1. Adições e Omissões na tradução do Livro de Daniel

Não é a nossa intenção passar por todos os pormenores e as mínimas diferenças entre o

texto aramaico-hebraico e a tradução grega. Pois, muitos termos já carregam diferenças

fundamentais e conceituais. Por exemplo, se no hebraico existe dois termos para dizer a terra:

#r,a' (terra enquanto país, território, cidade) e hm'(d'a] (terra enquanto espaço agricultável,

roçado), além do termo lWbG. (território, fronteira, limite); a tradução grega simplesmente

traduzirá estes termos por gh/n gh/n gh/n gh/n (terra). No entanto, a Septuaginta também utiliza este termo

367 Não podemos simplesmente dizer como muitos comentadores de que a tradução da Septuaginta é um texto de menor importância, que contém erros de tradução e representa uma interpretação falível. É importante ressaltar que “a versão dos LXX, além de valor intrínseco da tradução, tem outros valores extrínsecos, como são a contribuição que oferece para a análise crítica do texto hebraico e para o estudo histórico da exegese do A.T.” Ver: BARRERA, Julio Trebolle e CARO, José M. Sánchez. O texto da Bíblia. In: AAVV. (1994:463).

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para traduzir [r;a] (terra, mundo, chão) e qr;a]368 (terra: termo variante de [r;a]) do

aramaico.369

No capítulo 1 encontramos pequenas correções. No v.2, omite-se “casa de seus deuses”

(wyh'_l{a/ tyBe) que aparece logo depois da referência a terra de Shinear (r["n>vi-#r,a,(), a qual

é traduzida por Babulw/na. Aqui os tradutores optam pelo nome comum e rejeitam tanto o nome

que era usado para se referir a região (Shinear) e o nome hebraico (Babel) que é uma

associação com o verbo balal (ll;îB': confundir). No livro de Daniel a septuaginta substituiu

Babel por Babilônia.370

No v.3 a mudança do nome do servo do rei: no texto hebraico é zn:P.v.a; (Ashphenaz) e

no texto grego é Abiesdri (Abiesdri) talvez tentando traduzir o nome hebraico (yrI)z>[,h'( ybia] ou

rz<[,ybia] conforme Jz 8,32). Aliás, na Septuaginta este nome só aparece em Dn 1,3.11.16 e Jz

8,32.

No v.15 a Septuaginta acrescenta: “outros” (tw/n a;llwn neani,skwn: os outros jovens),

enfatizando a comparação entre a aparência de Daniel e seus companheiros com relação aos

jovens que comeram a comida do rei.

Em Dn 2,18 a septuaginta traduz o termo z"ßr' (segredo, enigma) que só aparece em

Daniel (2,18.19.27.47) e que está presente nas ações dos sábios e adivinhos, pelo termo

368Cf. HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1669): “[r;a] (´ára`): terra, mundo, chão. Usado de modo semelhante ao cognato hebraico ´ereTs, mas o sentido de ‘país’ não está confirmado. Uma forma alternativa, ´áraq, é empregada em Jeremias 10,11a. Em aramaico o tsadeh hebraico pode ser representado por `ayin ou por qoph”. 369 Um exemplo claro encontramos em Jeremias 10,11: Texto na BHS: `hL,ae( aY"ßm;v. tAxïT.-!miW a['²r>aa['²r>aa['²r>aa['²r>a;me( Wdb;óayE Wdb;_[] al'ä aq"ßr>a;w> aY"ïm;v.-yDI( aY"ëh;l'äa/ ~Ahêl. !Wråm.aTe ‘hn"d>Ki – Texto na LXX: ou[twj evrei/te auvtoi/j qeoi, oi] to.n ouvrano.n kai. th.n gh/ngh/ngh/ngh/n ouvk evpoi,hsan avpole,sqwsan avpo. th/j gh/jgh/jgh/jgh/j kai. upoka,twqen tou/ ouvranou/ tou,tou. 370 Ver: METZGER, Bruce M. & COOGAN, Michael D. (orgs.). (2002: 29): “Babilônia é tradução do acádio Babilum (Babilim), a cidade que por séculos serviu como capital da ‘terra de Babilônia’. Fontes cuneiformes interpretam seu nome como bab-ilim, ‘portão da divindade’. A Bíblia rejeitou essa etimologia popular em favor de uma mais grosseira, que associava o nome à confusão das línguas (hebr. Balal, ‘confundido [por Deus]’), e por isso a cidade é chamada Babel”.

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musthri,ou (mistério), tendo muito mais um aspecto teológico. E no v.34. que narra a pedra sem

mãos que atingiu os pés da estátua, a septuaginta acrescenta evx o;rouj (do monte) fazendo

uma clara ligação deste versículo com a interpretação que é dada por Daniel no v.45.

Dn 3,1 a Septuaginta acrescenta no início do versículo uma informação cronológica:

e;touj ovktwkaideka,tou (no décimo oitano ano) e uma nota sobre o domínio e poder de

Nabucodonosor: dioikw/n po,leij kai. cw,raj kai. pa,ntaj tou.j katoikou/ntaj evpi. th/j gh/j

avpo. Indikh/j e[wj Aivqiopi,aj (controlou cidades e províncias e todos os habitantes da terra, da

Índia até a Etiópia). Esta nota sobre o poder de Nabucodonosor tem paralelo em Est 1,1 e 8,9.

Dn 4,1 (que na Septuaginta é Dn 4,4) traz mais uma referência cronológica do reinado

de Nabucodonosor: e;touj ovktwkaideka,tou th/j basilei,aj Naboucodonosor ei=pen (no

décimo oitavo ano de seu reinado, Nabucodonosor disse). Nos capítulos 4 – 6 de Daniel é que

iremos encontrar muitas variações entre o Texto Massorético e a Septuaginta: vários versículos

ausentes na Septuaginta e acréscimos em relação ao Texto Massorético em alguns versículos.

Além disso, há uma mudança na ordem do material. Por exemplo, no capítulo 5 faltam os

versículos 13b-15, 18-22 e 24-27.

Como já disse anteriormente são muitas as mudanças introduzidas na tradução e na

construção do texto e não é o nosso propósito abarcar toda a série de mudanças do livro de

Daniel. Aliás há estudos e análises que fazem uma sinopse do texto hebraico e grego de

Daniel.371 Com isso, gostaria de passar à questão das mudanças interpretativas na tradução da

Septuaginta.

371 Ver: COLLINS, John Joseph e FLINT, Peter W. (eds.) The Book of Daniel: Part 1: Composition and Reception. Vetus Testamentum Supplements 83, Leiden: Brill, 2001 e The Book of Daniel: Part 2: Compsotion and Reception. Vetus Testamentum Supllements 83.2: Formation and Interpretation of Old Testament Literature, Leiden: Brill, 2001 e KOCH, Klaus e RÖSEL, Martin (eds.). Polyglottensynopse zum Buch Daniel. Neukirchen: Neukirchener Verlag, 2000.

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2. Mudanças Interpretativas na versão grega de Daniel

Como já afirmamos a tradução feita pelos autores da Septuaginta no Livro de Daniel é

uma interpretação e tentativa de compreender o texto. No capítulo 2,11 a septuaginta interpreta

os !yhiêl'a,/]=?/ (deuses) que podem revelar o sonho do rei como sendo anjos ou mensageiros de

Deus (a;ggeloj).

“No sonho da estátua (Dn 2), há igualmente variantes de minúcias que revelam um arranjo do texto primitivo. (...) trata-se de um trabalho de adaptação de que o autor se serviu para passar o livrinho aramaico em língua hebraica, trabalho efetuado entre 164 e 145. É, sem dúvida, ao mesmo autor que devemos a adição da história de Susana em hebraico, em sua antiga recensão, e a do extrato do ‘livro de Habacuc’, contendo as histórias de Bel e o Dragão. Mas a história de Susana foi refeita, ao longo do tempo, para melhor adaptar-se ao livro de Daniel”.372

Um exemplo claro de acréscimo e mudança interpretativa está no texto que a

Septuaginta traz no início do capítulo 5 de Daniel, aí há a intenção de oferecer ao leitor uma

espécie de sinopse do que este capítulo contém. Os cinco versículos que a Septuaginta

acrescenta tira o enlace e expectativa que o texto aramaico de Daniel dá à narrativa no que se

refere à tradução das palavras escritas na parede. Estes versículos na Septuaginta apresentam

de antemão o significado destas palavras, que no texto aramaico só aparece no final. É

interessante observar que os versos correspondentes à interpretação das palavras (vv.25-28)

não existem no final do capítulo na versão da Septuaginta.

ÎBaltasar o basileu.j evpoi,hse doch.n mega,lhn evn hme,ra| evgkainismou/ tw/n basilei,wn auvtou/ kai. avpo. tw/n megista,nwn auvtou/ evka,lesen a;ndraj discili,ouj evn th/| hme,ra| evkei,nh| Baltasar avnuyou,menoj avpo. tou/ oi;nou kai. kaucw,menoj evph,|nese pa,ntaj tou.j qeou.j tw/n evqnw/n tou.j cwneutou.j kai. gluptou.j evn tw/| to,pw| auvtou/ kai. tw/| qew/| tw/| uyi,stw| ouvk e;dwken ai;nesin evn auvth/| th/| nukti. evxh/lqon da,ktuloi wsei. avnqrw,pou kai. evpe,grayan evpi. tou/ toi,cou oi;kou auvtou/ evpi. tou/ konia,matoj kate,nanti tou/ lu,cnouj manh farej qekel e;sti de. h ermhnei,a auvtw/n manh hvri,qmhtai farej evxh/rtai qekel e[stataiÐ

[O rei Baltazar fez um banquete para os magistrados no dia da consagração de sua residência real e convidou os seus nobres, dois mil homens. Naquele dia

372 GRELOT, Pierre (1995: 72).

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Baltazar se exaltou no vinho e se gloriou para louvar os deuses fundidos e esculpidos de todas as raças e nos seus lugares e ao Deus Altíssimo não deu glorificação. Nesta noite saíram dedos como de um homem e escreveu na parede de sua casa, no reboco contra a lâmpada: mane, fares, tekel são. Ou melhor, a sua interpretação: mane: contado; fares: dividido; tekel: estabelecido]

Esta perícope na qualidade resumo do capítulo 5 de Daniel recolhe os elementos que os

tradutores julgaram importante na apresentação da cena. Podemos destacar dois elementos

neste resumo: primeiro, a indicação do banquete e dos convidados do rei juntamente com a

exaltação do vinho e os louvores a outros deuses e, segundo, os dedos e a escritura com a sua

interpretação. No entanto, no texto aramaico não existe nenhuma menção dos objetivos do

grande festim oferecido por Baltazar. Aqui, os tradutores interpretam como sendo a grande festa

de consagração da resistência do rei. Outro fator nesta interpretação, é que transparece uma

carga maior na crítica à idolatria através dos verbos gloriar (kauca,omai) e louvar (evpaine,w), bem

como na afirmação de que Deus não dará glorificação ou exaltação (ai;nesij).

E logo no v.1 nos duas versões percebemos as diferenças: enquanto o texto aramaico

fala do número de magistrados ou nobres (mil), a versão grega não se preocupa com o número e

acrescenta o substantivo plural: companheiros ou amigos.

br;ê ~x,äl. ‘db;[] aK'ªl.m; rC:åav;l.Be Baltasar o basileu.j evpoi,hsen estiatori,an

Baltazar o rei preparou banquete grande Baltazar o rei deu uma grande festa

> @l:+a] yhiAnàb'r>b.r;l. mega,lhn toi/j etai,roij auvtou/ para seus nobres mil seus magistrados, seus companheiros

`hte(v' ar'îm.x; aP'Þl.a lbeîq\l'w; kai. e;pinen oi=non e diante dos mil vinho bebeu e bebeu vinho

No v.2 encontramos uma pequenina diferença no final do versículo como podemos

observar logo abaixo: ar'ªm.x; ~[eäj.Bi Ÿrm:åa] rC;úav;l.Be kai. avnuyw,qh h kardi,a auvtou/

Baltazar falou por ter bebido o vinho E exaltou o seu coração

aP'ês.k;w> ab'äh]D; ‘ynEam'l. ‘hy"t'y>h;l. kai. ei=pen evne,gkai ta. skeu,h ta. crusa/ kai. ta. avrgura/

para trazer os utensílios de ouro e de prata e falou para trazer os utensílios de ouro e de prata

yhiWbêa] rC:ån<d>k;Wbn>‘ qPen>h; yDIÛ tou/ oi;kou tou/ qeou a] h;negke / /

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que tirou Nabucodonosor seu pai da casa de Deus que carregou

~l,_v.Wrybi yDIä al'Þk.yhe-!mi Naboucodonosor o path.r auvtou

do Templo que em Jerusalém Nabucodonosor o seu pai

yhiAnëb'r>b.r;w> ‘aK'l.m; !AhªB. !ATåv.yIw> avpo. Ierousalhm kai. oivnocoh/sai evn auvtoi/j / e beberam neles o rei e seus nobres de Jerusalém e beberam (vinho) nelas

`Hte(n"xel.W HteÞl'g>ve toi/j etai,roij auvtou Suas concubinas e suas concubinas seus companheiros

Mas a diferença maior está no v. 3, onde o tradutor faz os cortes na repetição tão comum

no texto aramaico.

WqPiªn>h; yDIä ab'êh]d; ynEåam' ‘wytiy>h; !yId;ªaBe kai. hvne,cqh Entao trouxeram os utensílios de ouro que tiraram

E os carregaram

~l,_v.Wr¥ybi yDIä ah'Þl'a/ tybeî-yDI( al'²k.yhe(-!mi

do templo da casa de Deus que em Jerusalém

yhiAnëb'r>b.r;w> ‘aK'l.m; !AhªB. wyTiäv.aiw> kai. e;pinon evn auvtoi/j e beberam neles o rei e seus nobres E beberam neles

`Hte(n"xel.W HteÞl'g>ve suas concubinas e suas concubinas

As diferenças vão aumentando a partir do v.4, no qual aparece no texto aramaico uma

crítica às imagens dos deuses (an")b.a;w> a['îa' al'Þz>r>p; av'îx'n> aP'²s.k;w> ab'óh]D;: ouro, prata,

cobre, ferro, madeira e pedra), enquanto que a Septuaginta está mais preocupada com o poder

(evxousi,a) e o espírito (pneu,matoj) desses deuses.

Enfim, dá para perceber que não aparece simplesmente neste livro de Daniel uma

tradução palavra por palavra dos tradutores da Septuaginta, mas ora uma tradução de

aproximação, ora uma completa mudança e interpretação do texto que estão traduzindo. Muitas

correções encontramos nos doze capítulos do livro. De modo especial nos capítulos 4 a 6.

Tomamos estes poucos versículos como exemplo do como a Septuaginta está traduzindo,

reescrevendo e transcriando o texto que receberam.

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3. Os acréscimos de Daniel 3,24-90 e 13-14

A grande marca do livro de Daniel na Septuaginta está nos textos que foram

acrescentados às versões aramaica e hebraica.

1. Os cânticos na fornalha (Dn 3,24-90).

Daniel 3,24-90 pode ser dividido em três partes: O cântico de Azarias nos vv.24-45, o

cântico dos três jovens na Fornalha nos vv.51-90, e, entre os dois cânticos uma narrativa

nos vv.46-50. Os dois cânticos enquanto oração de louvor e bênção evocam a

resistência e a ação da divindade em favor daqueles que se demonstraram fiéis e não

abandonaram a sua tradição.

O cântico de Azarias pode ser visualizado da seguinte maneira:

vv.24-25: – Introdução: Andando entre as chamas e Azarias em pé orava e abriu a boca em meio ao fogo

vv. 26-28a – Bendiz as ações de Deus dos nossos pais:

Justo nas ações e obras Caminhos retos

Julgamentos verdadeiros Decisões conforme a verdade

vv.28b-32: – Nós pecamos e por isso nos sobreveio o mal.

vv.33-45: – Oração pedindo a misericórdia e o livramento

Esta oração recolhe vários elementos que já estão presentes em outros textos da Escritura.

Aliás, o autor desta oração de louvor e bênção, com marcas de penitência e súplica, conhece

muito bem os textos da Bíblia Hebraica (Torá, Profecia e Sabedoria). “Esta oração é um texto

litúrgico composto em língua semita, provavelmente em hebraico. Seu texto primitivo confessava

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as faltas de Israel que causaram a ruína de Jerusalém (3,26-31). Mas a adaptação do texto ao

relato insere uma alusão à perseguição de Antíoco (3,32)”.373

A oração começa empregando uma invocação muito presente nos hinos de louvor

espalhados na Bíblia: euvloghto.j ei= ku,rie o qeo.j tw/n pate,rwn (Bendito és Senhor o Deus

de nossos pais): Gn 9,26; 24,27, 1Sm 25,32; 2Sm 18,28; 1Rs 1,48; 8,15; 1Cr 29,10; 2Cr 2,11;

6,4; Esd 7,27; Tb 3,11; Sl 41,14; 72,18; 106,48; 144,1; Dn 3,52.95. A descrição das obras,

caminhos e julgamentos de Deus como verdadeiros tem paralelos com Nee 9,33; Tb 3,2-6.

Transparece nesta súplica algumas marcas do estilo do deuteronomista. A grande oração de

súplica, na qual pede-se misericórdia, solidariedade e ação libertadora de Deus tenta resgatar as

palavras da profecia, reconhecendo que estão vivendo num tempo sem chefe, sem profeta, sem

príncipe e sem sacrifícios. No entanto, o tipo de profecia marcada pelo resgate da promessa e do

desejo de que aconteça de novo as maravilhas da ação de Deus, é aquela profecia meditativa do

pós-exílio que tem ares de sabedoria. É a profecia na qual Deus chama Abraão de amigo e

resgata a promessa de formar descendência (ser um povo). O texto relê a profecia de Is 41,8 ( E

tu Israel, meu servo, Jacó que te escolhi, semente de Abraão, meu amigo: ybi(h]ao ~h'îr'b.a;

[r;z<ß ^yTi_r>x;B. rv<åa] bqOß[]y: yDIêb.[; laeär'f.yI ‘hT'a;w> ).

No cântico dos três jovens na fornalha (vv.51-90) temos aí uma litania que trabalha com

repetições e refrões. É um canto de invocações de glória e as respostas da comunidade

orante.374 As invocações que marcam as motivações para o louvor se assentam em três

aspectos: os atributos de Deus (teologia do grupo que está por detrás da oração), os elementos

institucionalizados da religião e a teologia da Criação (elementos da natureza).

373 Idem., p.38. 374 É um canto que até hoje tem forte presença nas Liturgias das Horas dos grupos religiosos.

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Os atributos de Deus e a teologia da Criação (ponto forte do canto) vão juntos: no

tocante às características da divindade é ressaltada a imagem do Deus de nossos pais (tradição

dos antepassados), o Deus capaz de maravilhas, aquele que livra (do Abismo, da mão da morte

e da chama da fornalha ardente), age com misericórdia e, por isso, é Deus dos Deuses. Quanto

à teologia da Criação é uma releitura de Gn 1 filtrada pelo Salmo 148. Com relação aos

aspectos da religião, penso que aqui há detalhes da atualidade do grupo ao evocarem o templo,

trono do reino, nome e glória santa, os sacerdotes, os servos e, principalmente, os “santos e

humildes de coração” (o[sioi kai. tapeinoi. kardi,a|). Aqui a designação dos o[sioi é uma

tentativa da Septuaginta traduzir toda a conotação dos grupos que vivem e praticam a dysix' e

os tapeinoi. kardi,a representa uma releitura dos ~ywnI[', enquanto aqueles que pertencem às

camadas mais baixas da sociedade, ou melhor dizendo, os que estão no primeiro nível do

processo de empobrecimento. Por isso tapeinoi. quer indicar o humilde enquanto rebaixado.

Para Pierre Grelot o cântico dos três jovens é:

“um texto litúrgico mais antigo que enumera as obras do Criador, para convidar a louvá-lo todos juntos. Somente o final menciona os ‘filhos dos homens’, o povo de Israel, os sacerdotes do Templo e seus outros servidores cultuais, todos os justos, assim como os ‘santos e humildes de coraçao’ (3,82-87). A conclusão retoma um refrão litúrgico, para universalizar o louvor de Deus (3,89-90). Uma simples inserção aplica o cântico à atualidade, mencionando os três jovens que Deus preservou da morte. A fornalha ardente fornece-lhe uma representação simbólica: não é à toa que se falará das chamas do inferno (cf. Lc 16,23-24; Mt 3,12; 5,22; 13,42.50; 18,8-9; 25,41 etc.). A partir desta observação, podemos dizer que o relato tem alcance simbólico que prefigura a libertação da morte para os mártires da crise macabaica”.375

Entre os dois cânticos os autores do texto apresentam uma narrativa que realça dois

aspectos contrapostos: num extremo a repressão presente no aumento do fogo que se projetou

acima da fornalha em até quarenta e nove côvados (vinte e dois metros e aqui o numero é

375 Cf. GRELOT, Pierre (1995: 39).

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marcado pelo simbolismo de sete vezes sete376) que atingiu a muitos caldeus que estavam perto

da fornalha. Do outro lado, o quadro da resistência pela manifestação miraculosa e revelatória,

no qual Azarias e seus companheiros não se sentem incomodados com o fogo, pois um Anjo do

Senhor que expeliu para fora o fogo e soprou para o interior da fornalha um vento de orvalho

refrescante. Estes elementos simplesmente introduzem na dinâmica do livro grego de Daniel “a

firme convicção de que os males e as perseguições que sofrem, por mais terríveis que sejam,

são passageiros. Ou, melhor falando, que têm um termo decretado por Deus. Por isso é preciso

resistir até o fim. Aquele que agüentar ganhará. Não por cansaço ou aborrecimento do inimigo,

mas porque o poder do inimigo é limitado, restrito pelo Dono e Senhor da História.”377

2. Susana ( Dn 13,1-64).

A história de Susana é um relato edificante378 que conta a vida de uma judia que segue

os valores da cultura e sendo fiel à Lei de Moisés será julgada e enfrentará o poder dos anciãos.

Para Shigeyuki Nakanose e Maria Antônia Marques esta é uma história de origem semítica

popular que posteriormente foi aprofundada nos círculos farisaicos, implicando num protesto e

sátira contra os grupos dominantes no sinédrio.379 Porém, esta história chega até nós em duas

versões da tradição grega: a versão na Septuaginta e a recensão feita por Teodocião380. A

versão de Teodocião vai ressaltar a figura do Deus que protege ao acusado injustamente. O

texto está centralizado na prática de piedade da vítima e na solicitude de Deus. Tendo como

tema o julgamento o texto faz alusão ao significado do nome de Daniel (“Deus julga”).

376 Idem., p.39. 377 ASURMENDI, Jesús M. (2004: 432). 378 Cf. GRELOT, Pierre (1995: 62-65). O autor apresenta um quadro sinótico com as duas versões gregas da narrativa de Susana: o texto da Septuaginta e a recensão de Teodocião. 379 NAKANOSE, Shigeyuki e MARQUES, Maria Antônia (1996: 28). 380 Teodocião é uma figura não muito conhecida e que tem a sua tradição ao redor do IIo século E.C. e que segundo Irineu, era um prosélito judaico de Éfeso e conforme Epifânio, foi um seguidor de Marcião. O fato é que a sua recensão da Septuaginta tem grande prestígio e muitos dos seus manuscritos substituíram a Septuaginta. A história de Susana que temos hoje em nossas traduções segue a versão de Teodocião. Aliás, a Vulgata (tradução de São Jerônimo) vai seguir a recensão que Teodocião apresentou do livro de Daniel. Tornou-se o texto de uso ordinário. E muitas citações do texto grego no Testamento cristão reproduzem o texto de Teodocião. Ver: BARRERA, Julio Trebolle e CARO, José M. Sánchez. O texto da Bíblia. In: AAVV. (1994:461-463).

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Interessante que na versão de Teodocião, a história de Susana é colocada antes do livro de

Daniel, e tem caráter propriamente introdutório para todo o livro e para o grande herói. Portanto,

a versão da Septuaginta vai jogar a atenção do leitor para o comportamento exemplar de Susana

em contraposição ao poder das autoridades e dos anciãos. Não é à toa, que a Septuaginta

termina assim o seu relato:

63 dia. tou/to oi new,teroi avgaphtoi. Iakwb evn th/| aplo,thti auvtw/n kai. hmei/j fulassw,meqa eivj uiou.j dunatou.j newte,rouj euvsebh,sousi ga.r new,teroi kai. e;stai evn auvtoi/j pneu/ma evpisth,mhj kai. sune,sewj eivj aivw/na aivw/noj. Por causa disto os jovens são amados de Jacó na sua sinceridade (simplicidade), também a nós os conservaremos como filhos poderosos jovens piedosos porque jovens e neles existe espírito de ciência (conhecimento/experiência) e entendimento pelos séculos dos séculos.

A narrativa é marcada pela dinâmica do grito ou clamor (boa,w) que aparece diretamente

nos vv. 24, 42, 46 e 60. Conforme a sugestão de Shigeyuki e Maria Antônia este verbo é a

grande chave de leitura do texto. Os autores propõem uma estuturação do capítulo do seguinte

modo: 381

A – vv. 1 – 27: Introdução: o grito de Susana e a Lei de Moisés B – vv. 28 – 41: Julgamento dos anciãos e o grito silenciado do povo C – vv. 42 – 49: O grito de Susana e a resposta de Deus

– grito de Daniel B – vv. 50 – 59: Julgamento de Daniel – o grito contra a injustiça A – vv. 60-64: Conclusão: o grito da Assembléia e a Lei de Moisés O relato é totalmente crítico aos dois anciãos, que são qualificados como autoridades

iníquas, conforme a própria palavra de Deus: “a iniqüidade saiu de Babilônia, dos anciãos, que

só aparentemente guiavam o povo”(v.5). Estes freqüentavam a casa de Joaquim, marido de

Susana. E como ela era muito bonita, era desejada pelos dois homens. Porém, ambos tinham

vergonha de declarar a paixão que sentiam por Susana. Porém, num belo dia eles ficam à

381 Cf. NAKANOSE, Shigeyuki e MARQUES, Maria Antônia (1996: 35).

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espreita e vão espiá-la tomando banho e no momento oportuno eles a assediam e ameaçam

denunciá-la dizendo que estava com outro homem, e por isso, ela tinha despedido as meninas

que a acompanhava. Porém Susana não se entrega à proposta dos dois anciãos e grita em alta

voz. Chegam os empregados e os anciãos apresentam a sua versão dos fatos. Eis o grito de

Susana que não aceita a proposta indecorosa dos anciãos, que usam da autoridade e do falso

testemunho para obter o que desejavam: ter relações sexuais com a bela Susana. Vale lembrar

que o nome Susana (Sousanna), costumeiramente traduzido por açucena ou lírio, vem do

hebraico (hN"v;Av), possivelmente representa uma planta afrodisíaca muito utilizada nos antigos

cultos de fertilidade em Israel.

Nos vv.28-41 vai ser instaurado o julgamento contra Susana. O v.28 já de início

determina a mudança na narrativa: tempo e lugar: “No dia seguinte, ao reunir-se o povo na casa

de Joaquim”. Na cena do julgamento (tribunal) o redator sutilmente lança mais uma ironia contra

as autoridades (os anciãos) dizendo que na apresentação de Susana diante do povo eles

pediram para que fosse levantado o véu, “a fim de poderem fartar-se da sua beleza”. Depois de

apresentarem o testemunho contra Susana, a assembléia creu neles, porque eram juízes

(aqueles que administravam a justiça na porta das cidades e vilas). Assim, Susana foi julgada ré

de morte. Para Shigeyuki e Maria Antônia o choro do povo diante da situação em que estava

Susana representa o grito silenciado do povo que não podia fazer nada para salvá-la.

O v.42 dá o tom da cena seguinte. É o grito em alta voz de Susana que apela a Deus

que sabe que é falso o testemunho levantado contra ela. Este grito e protesto de Susana nos

vv.42-43 é encaminhado para a expectativa da resposta que aparece nos vv.44-49.

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Para Shigeyuki e Maria Antônia, os dois anciãos que levantam o falso testemunho contra

Susana representam o sinédrio, autoridade sustentada pelos hasmoneus e sua política

econômica. Enquanto que o povo e os outros anciãos, reunidos em Assembléia, representam os

piedosos e fiéis à Lei de Moisés. E Daniel é a voz da profecia que está junto com estes anciãos

na resistência contra as autoridades oficiais.382 E Daniel é o jovem que detém o que próprio da

ancianidade. Tanto que nos vv.50-59 Daniel julgará as duas testemunhas e fará com que pela

boca deles seja descoberto o falso testemunho. Daí que o povo reunido em assembléia

(sunagwgh.) vai clamar (gritar) a Deus que poupou sangue inocente (vv.60-64).

Eis uma bela narrativa que segue estão inseridos na mesma dinâmica dos contos de Dn

1-6. aqui fica evidente o caráter sapiencial do profeta, mas principalmente do piedoso fiel em

suas crenças e observante da Lei e da Tradição. Gostaria de concluir esta história de Susana,

antes de passar para a narrativa de Bel e o Dragão, tomando as palavras de Jesús M.

Asurmendi:

382 Idem., p.34.

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“Pela importância do triunfo da justiça e da articulação ‘justiça humana / justiça divina’. O que implica uma boa dose de confiança e de esperança. Mas ao mesmo tempo, com mais ou menos força em cada recensão, a crítica às instituições e a confiança na ação de Deus, por meios não ‘ortodoxos’ (um jovenzinho, figura ‘nao sapiencial’ por excelência), é um chamado à esperança acima da desesperança do cotidiano e visível. Coisa que não é muito sapiencial.”383

Bel e o Dragão (Dn 14,1-42).

Este texto na Septuaginta tem como título: “Da profecia de Habacuc, filho de Josué,

da tribo de Levi”. Não só podemos dizer que o texto tem muita semelhança com o capítulo 6

de Daniel, de modo especial os vv.28-42, bem como, representa uma releitura do texto

aramaico, principalmente quando Daniel se encontra na cova entre os leões. Nas entrelinhas

deste texto conclusivo deseja-se ressaltar que “Deus protege os fiéis que arriscam suas

vidas pela fé”.

O texto ironiza as práticas religiosas e o culto a Bel na Babilônia (cf. vv.3-22). Por

exemplo na descrição das disputas proféticas e sacerdotais ao redor das comprovações da

divindade verdadeira (aqui podemos lembrar da antiga tradição da disputa entre o profeta

Elias e os profetas de Baal narrada em 1Rs 18). No centro da disputa está a teologia

sacrificial, na qual o Deus verdadeiro é aquele que é capaz de consumir as oferendas. Já na

antiga profecia o profeta ironiza porque Baal não conseguiu consumir o holocausto; aqui os

sacerdotes de Bel agem com leviandade, pois “haviam feito uma entrada secreta debaixo da

mesa: por ela introduziam-se diariamente e surrupiavam as coisas” (v.12). Porém, mentira

tem pernas curtas e logo, Daniel e o rei descobriram as pegadas de homens, mulheres e

filhos e, estes foram presos e confessaram que consumiam o que estava sobre a mesa

entrando pelas portas secretas. Termina a narrativa com a morte dos sacerdotes e a

383 ASURMENDI, Jesús M. (2004: 434).

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destruição de Bel e do seu templo. Enfim, o texto ironiza e descreve o fim do culto sacrificial

de Bel e seus oficializadores.

Na seqüência (vv.23-27) Daniel vencerá o dragão e o seu culto através do alimento

que ele prepara para a divindade. “O alimento dos deuses era uma das funções essenciais

nos templos tanto na Mesopotâmia quanto no Egito”.384 Daniel não adora o dragão porque

não o considera um Deus vivo. Prepara, então, um alimento que estoura e comprova para o

rei que ele não é um Deus e, sim, uma farsa.

A parte final do texto gira em torno das ameaças dos babilônios ao rei e sua família

caso não lhes fosse entregue Daniel. Daniel é colocado numa cova de leões. Idêntica à

condenação de Daniel no capítulo 6, porém aqui as motivações para tal condenação são

outras. Em Dn 6 a condenação se dá por Daniel não fazer as orações aos Deuses da

Babilônia, aqui ele é levado para a cova dos leões porque é um empecilho para a

continuação da prática religiosa dos babilônios. A narrativa de Daniel em meio aos leões nos

vv.31-42 se encaixa muito bem como uma duplicata ou desdobramento da legenda de Dn 6.

Isto sugere que já naqueles tempos circulavam diferentes relatos sobre Daniel na cova dos

leões.

O relato de Dn 14, 31-42 trabalha com a mesma intencionalidade, que é a vitória do

justo inocente diante do instrumento de repressão. No entanto, o diferencial neste relato está

na presença do profeta Habacuc que é transportado para a Babilônia onde está Daniel, a

exemplo do que é descrito na profecia de Ezequiel que é transportado por Deus para junto

dos cativos que estavam nas margens do rio Qebar (ou Cobar). O profeta representa as

forças do campo, pois no relato diz que “ele havia acabado de cozinhar um caldo e de dividir

384 Idem., p.434.

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pães em pedaços numa cesta, e se dispunha a ir ao campo a fim de os levar aos ceifeiros”

(v.33). Habacuc leva o alimento para Daniel em meios aos leões.

4. Os acréscimos gregos na conjuntura dos conflitos na dinastia Hasmonéia

Descobrimos na leitura das versões do livro de Daniel385 as suas conexões,

intencionalidades, alguns dos conflitos e os grupos subjacentes às palavras de cada livro. No

texto aramaico é muito forte as marcas que revelam um grupo ligado aos maskilim (sábios), já o

texto hebraico, dada a conjuntura da guerra macabaica, vislumbramos ali algumas questões

voltadas para os interesses e lutas dos grupos dos hassidim (piedosos). E quanto ao texto

grego? Podemos seguir a hipótese de que ao redor do ano 100 a.E.C. em meio aos conflitos de

grupos e partidos com as suas respectivas tendências, (período confuso da dinastia dos

Hasmoneus) surgiram os acréscimos e a organização do livro grego de Daniel. Ao tratar das

questões referentes à lei e a ancianidade, a crítica às práticas idolátricas e a exaltação dos

piedosos e dos justos fiéis às leis e tradições dos pais. São as testemunhas (como encontramos

no Segundo Livro dos Macabeus) capazes de enfrentar o fogo da fornalha com orações e

louvores e as covas de leões. O livro de Daniel na versão grega tem como pano de fundo os

problemas políticos, econômicos, ideológicos e religiosos do Io século.

A dinastia de Aristóbulo (104-103 a.E.C.) e Alexandre Janeo (103-76 a.E.C.) vai ser

marcada por muitos confrontos e disputas por poder. Aristóbulo investe na reconquista da

Galiléia e obriga o povo à circuncisão e quase consegue transformar a Galiléia em um nova

Judéia. E Alexandre Janeo faz um governo longo e agressivo e um de seus maiores conflitos se

dá com os fariseus. É hostilizado pelos fariseus e aumenta a sua força com o apoio dos

sacerdotes (saduceus) e de forças mercenárias. Com essas alianças enfrenta os fariseus, que

385 As três versões de Daniel (que convencionamos chamar de livros de Daniel), a aramaica (Dn 2,4b – 7,28), a hebraica (Dn 1,1-2,4a e 8-12) e a grega (a tradução de Dn 1-12 e os acréscimos de 3,24-90 e 13,1 – 14,42).

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contavam com o apoio do povo. Os grandes massacres provocaram uma grande ruptura

irreparável entre Fariseus e Hasmoneus. É interessante observar que no final de sua vida,

Alexandre Janeo tinha consciência que se os sucessores quissessem conservar o poder teriam

que fazer a paz com os fariseus. É o que faz Alexandra Salomé (76 – 67 a.E.C.) ao implementar

uma política de separação entre governo e sumo-sacerdócio e pede que os fariseus ajudem a

organizar o país conforme a Lei, mas ao mesmo tempo, entrega aos saduceus e aos

mercenários o controle das fortalezas. Ou seja, os grupos que no governo de Alexandre Janeo

representavam forças opostas, agora estão no governo com poderes diferenciados.

Com isso, os fariseus passam a fazer parte do Sinédrio386 e começam a influir nos

costumes do povo. São contrários à violência e acreditam que a instauração do reino virá pela

observância da lei. Alexandra, a rainha-mãe, não resolveu o poblemas, simplesmente adiou, pois

no governo de Aristóbulo II (67 – 63 a.E.C.) acontece o ressurgimento dos confrontos. Este

monarca apoiado por saduceus e mercenários, passa por cima da lei ao se proclamar rei e

sacerdote. Ele negou as medidas políticas estabelecidas por sua mãe.

Podemos resumir este ambiente de conflitos ao redor do poder, no esquema logo

abaixo, perguntando sobretudo, pelas reações populares e/ou de grupos afinados com as

expectativas de mudanças junto ao povo.

386 O sinédrio (“sentar juntos”) provavelmente tem suas origens na época persa e representa uma grande assembléia de anciãos e que foi instituída como poder no governo de João Hircano (134 – 104 a.E.C.) seguindo o modelo de governo das cidades gregas. A sua função consistia em força de apoio e assistência ao Sumo Sacerdotes, o qual era o seu presidente. Contava com a participação de 71 membros: anciãos, sacerdotes, Sumo sacerdotes, saduceus e, desde Alexandra Salomé, os fariseus e escribas. No período da dominação romana funcionavam como uma espécie de Suprema corte de Justiça que tinha o papel de julgar os crimes contra a lei e fixar a doutrina. Só não detinham o poder de executar sentença de morte.

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Quais as evidências no livro que nos leva a dizer que as palavras refletem este contexto

de confrontos entre os mais variados grupos e tendências políticas? Vou ressaltar três aspectos:

1. Cresce a radicalidade de pequenos grupos espalhados seja nas cidades ou

distantes das cidades que diante das frustrações dos rumos políticos instaurados pelo governo

hasmoneu irão buscar a solução no deserto e nas montanhas. Cresce aí a tendência dos

“separados” que projetam como único caminho de solução viver a Lei de Móisés. Conhecemos

através da historiografia de Flávio Josefo e de algumas menções nos escritos do Testamento

Cristão apenas alguns desses grupos, tais como, os essênios e os fariseus. Podemos encontrar

algumas impressões desses grupos no livro grego de Daniel, seja na tradução do texto que

ressalta por exemplo, uma teologia do Deus que vem proteger o justo. É notória nesta

perspectiva a vitória de Azarias e seus companheiros diante da fornalha, o heroísmo de Daniel e

a concepção de que aqueles que serão “salvos” constituem o “povo santo do Altíssimo” (cf. Dn

7).

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2. O fracasso e a crise no período pós guerra macabaica e a exploração no

governo dos Hasmoneus aumentou na região a desigualdade social. De um lado, os sacerdotes

e chefes cresceram economicamente se adonando de mais terras e do controle da produção e,

do outro, o aumento do contingente de pequenos camponeses que buscam diferentes saídas

para a fome: migrar para as cidades que fazem parte do eixo comercial, viver de salários pagos

pelos grandes donos de terra, alugar a própria força para servir em tropas mercenárias ou ainda,

e seguir grupos que apontam esperançosos para expectativas messiânicas e apocalípticas. No

texto grego de Daniel aparece, mesmo que rapidamente, os grupos de pobres que buscam o

caminho de solução na pobreza. Os o[sioi kai. tapeinoi. kardi,a| (”santos e humildes de

coração”) são os ~ywIßn"[] ((pobres) que devem buscar a qd,c (justiça), a hw"ën"[] (pobreza) e a

hw"hy (Javé) conforme Sf 2,3.387 Há um crescente movimento de camponeses empobrecidos

que perderam suas terras e que irão caminhar rumo a um profetismo ambulante, na busca de

uma reviravolta social a partir das expectativas apocalípticas e na esperança da promessa de um

messias.

3. Finalmente, perpassa nas entrelinhas dos dois últimos capítulos do livro de

Daniel não só a figura dos judeus fiéis à Lei e a tradição, mas aqueles que organizam o povo e

que exercem liderança na função de juízes (administradores da justiça e do julgamento) e

anciãos que praticam e exercem a ancianidade (ensino da Lei, da justiça e da sabedoria,

julgamento e decisão das questões junto a comunidade, conservação das tradições e costumes

são práticas anciãs que podemos conferir no livro de Provérbios). Estes são os ~yjiêp.vo

(sophetim). o

387 Sobre a esperança dos pobres na profecia de Sofonias Ver: SILVA, Rafael Rodrigues da Silva. A crítica aos opressores em Sofonias 1,7-2,3. São Bernardo do Campo: UMESP (Tese de Mestrado), 1996 e “Resta esperança para o resto de Israel. Projetos de esperança em Sofonias”. Estudos Bíblicos. n.62, Petrópolis: Editora Vozes, São Leopoldo: Editora Sinodal, 1999, pp.16-30.

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SEGUNDA PARTE:

TRÂNSITO E CIRCULAÇÃO DO LIVRO DE DANIEL NA TRADIÇÃO

CRISTÃ

Pensar na circulação do Livro de Daniel para além de seu círculo e em outros tempos é,

no mínimo, imaginar a transmissão oral das narrativas ao redor do “profeta Daniel” e a

construção de um imaginário388 de resistência. Ao nos aproximarmos dos textos que são

enquanto construção de um projeto político (da produção dos textos à interpretação e leitura de

uma dada realidade)389; manifestação das lutas sociais e do jogo de poder390; e, como uma

maneira de perceber a sociedade391, veremos que os fatos históricos (enquanto fatos passados)

foram transmitidos e circularam pela boca e pelos ouvidos e junto aos pequenos grupos e

comunidades. Nem de longe pensar que cada grupo teria ou deveria ter em mãos um livro de

388“O imaginário é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo de espelhos onde o ‘verdadeiro’ e o aparente se mesclam, estranha composição onde a metade visível evoca qualquer coisa de ausente e difícil de perceber. Persegui-lo como objeto de estudo é desvendar um segredo, é buscar um significado oculto, encontrar a chave para desfazer a representação do ser e parecer”. Cf. PESAVENTO, Sandra Jatahy (1995: 24). Nesta perspectiva, o imaginário nada mais é do que um conjunto de imagens e de suas relações que compõem um sistema de idéias que revela uma visão de mundo. O ser humano transmite a sua visão de mundo e a sua vida através de símbolos, ritos, crenças, representações alegóricas, discursos e imagens figurativas. Cf. DURAND, Gilbert (2002). Falar em imaginário de resistência é concebê-lo como a projeção de uma sociedade totalmente outra. A apocalíptica é impulsionadora de uma esperança que joga os seus membros para a busca de um mundo em tudo melhor do que o mundo real. Ver também LE GOFF, Jacques (1994); PATLAGEAN, Evelyne. A história do imaginário. In: LE GOFF, Jacques (org) (1998: 291-318) e CASTORIADIS, Cornelius (2000). 389 Jorge Pixley no seu artigo: "O aspecto político da hermenêutica". In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana n.32 (1999: 85-100) nos apresenta a política tanto na produção dos textos quanto na sua leitura e apropriação dentro da própria Bíblia, no interior das igrejas e na prática pastoral de interpretação bíblica na América Latina. 390 Numa leitura de Pierre Bourdieu descobriremos que as representações são manifestações de lutas sociais e jogo de poder e todo discurso contém estratégias de interesses determinados, pois a autoridade e a eficácia simbólica de um discurso consiste no poder concentrado do grupo que o enuncia e na pretensão de agir sobre a realidade (O poder simbólico, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988). 391 CHARTIER, Roger (1990: 17 e 19): “As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, a suas escolhas e condutas... Pode-se pensar uma história cultural do social que tome por objeto e compreensão das formas e dos motivos - ou, por outras palavras, das representações do mundo social, que, à revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse”.

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Daniel. O livro circula na oralidade. Esta faz com que o livro seja cada vez mais nômade. Usando

uma imagem de Paul Zumthor, podemos dizer que a circulação do livro de Daniel seria uma

“Escritura em nomadismo”.392

Quase podemos seguir as trilhas da leitura que Soren Kierkegaard fez sobre a imagem

do espelho em Tiago 1,22-24393, o qual apresenta uma reflexão acerca da Palavra de Deus

alertando o leitor para que o seu olhar ultrapasse o mero examinar o espelho sem, contudo,

olhar-se no espelho. para a perspectiva que existe algo no texto que reflete uma realidade

independentemente da atividade interpretativa do leitor ou que o texto apenas reflete a realidade

do leitor.

“Aquele que ouve a Palavra de Deus e a segue é como uma pessoa que se olha no espelho e passa a se lembrar do que vê dali em diante. Que tipo de olhar sobre si mesmo no espelho da Palavra de Deus, pergunta ele, é necessário a fim de que se receba uma bênção verdadeira? Ele responde que só se beneficia do olhar em direção à Palavra aquele que vai além de observar apenas o espelho para ver a si próprio. Assim, a parábola de Tiago ‘alerta contra o erro de se passar a examinar o espelho, em vez de olhar-se no espelho’.” 394

Nesta perspectiva vamos descobrir que dentro dos cristianismos originários395 não só

circulou o livro de Daniel, bem como, foi propulsor de novas leituras diante das situações de crise

e perseguição. É importante observar que o livro de Daniel com as suas imagens, simbolismo,

criticidade aos impérios e criatividade frente às desesperanças é espelho, no qual os novos

leitores são capazes de olhar no espelho e perceber estruturas e instrumentos semelhantes de

opressão, mas, ao mesmo tempo, conseguem olhar no espelho, e construir um imaginário de

resistência. Pensar a força dos movimentos apocalípticos no período de dominação romana para

392 Zumthor, Paul. 2005. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios. São Paulo: Ateliê Editorial. 393 “E sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos com falsos discursos. Porque, se alguém é ouvinte da palavra, e não cumpridor, é semelhante ao varão que contempla ao espelho o seu rosto natural; porque se contempla a si mesmo, e foi-se, e logo se esqueceu de que tal era”. (Tg 1,22-24). 394 VANHOOZER, Kevin (2005: 18-19). 395 Conceituação defendida por biblistas, exegetas e escritores que se reúnem anualmente nos encontros de biblistas, nos quais definem a produção do Comentário Bíblico Latino-Americano e da Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Sob o tema dos Cristianismos Originários produziram duas revistas: número 22 em 1995 que abordou a história dos anos 30 a 70 E.C. e a de número 29 em 1998 que analisou os cristianismos extrapalestinos nos anos 35 a 138 E.C.

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daí projetarmos as hipóteses da circulação de um livro como o de Daniel, faz-se necessário levar

em conta a visão de mundo em que estão assentadas as expectativas dos grupos e/ou

comunidades em situações de conflito e crise com o império. Daí a constatação de que os

grupos e movimentos apocalípticos representam uma reação aos profundos ataques à

integridade cultural, às constantes ameaças dos grupos dominantes à ordem sócio-econômica e

político-religiosa.

“O perigo pode ser real ou imaginário: o que conta é a maneira como ele é percebido... Ele pode ser interno ou externo: pode implicar na reação de um grupo que já ocupou uma posição de poder e status, mas que agora está marginalizado e desprivilegiado; ou pode ser a reação de toda uma sociedade colonizada dentro de um contexto imperialista”.396

Isto tudo nos leva a crer que o livro de Daniel constitui nestes ambientes como um texto

aberto.

396 CROSSAN, John Dominic (1994: 139-140).

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CAPÍTULO 4:

O LIVRO DE DANIEL E OS CRISTIANISMOS ORIGINÁRIOS

Não pretendemos aqui entrar na discussão teológica acerca da formação de um

cristianismo ou a existência de vários cristianismos originários. Eis uma discussão sem fim se

nos conduzirmos pelas trilhas da doutrina eclesiástica. O que nos interessa neste capítulo é

apontar a presença do livro de Daniel na literatura e no ambiente cristão. Suas proximidades e

suas marcas na construção das imagens de um Jesus apocalíptico elaboradas por comunidades

apocalípticas e/ou que são receptivas a este tipo de linguagem e de textos.

1. A proximidade do Livro de Daniel com outros livros judaicos

Uma primeira constatação da circulação e utilização do livro (ou dos livros) de Daniel

está num contexto bem próximo, ou seja, o da escrita da obra dos Macabeus. De um lado está

toda a leitura da guerra e do pós guerra nestes livros que tem vários jeitos de contar a história.

Do outro, um livro apocalíptico que anima a resistência do povo e projeta tempos de mudança.

No entanto, no livro historiográfico iremos deparar com a citação de uma imagem própria do livro

de Daniel. É a imagem da “abominação da desolação” (Dn 11,31; 12,11 e 9,27) que aparece em

1Mc 1,54. Também o Segundo Livro dos Macabeus na sua contraposição a esta abominação,

vai contar histórias de coragem a exemplo dos jovens que enfrentam a fornalha e Daniel na cova

dos leões.

Em 3 Macabeus encontramos algumas alusões relacionadas às imagens e à apocalíptica

de Daniel. Por exemplo em 2, 25-33 na descrição das ações do monarca blasfemo e a

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resistência do povo percebemos uma forte presença do livro de Daniel seja na descrição do

dominador enquanto bestas (Dn 7), ou o monarca que se transforma em animal como vimos em

Dn 4 ou ainda, os testemunhos de resistência do livro de Daniel ajudando presentes na

exaltação que o texto de 3Mc faz aos que se mantiveram fiéis à sua piedade:

“25 De volta ao Egito, deu alimento a sua maldade com a ajuda dos referidos amigos e camaradas, homens distantes de toda a justiça. Não contente 26 com seus inumeráveis vícios, chegou a tal grau de ousadia que inventava palavras de mal presságio nos lugares de sacrifício, e muitos de seus amigos, atentos à intenção do rei, o seguiam em seus desejos. 27 Se propôs como fim extender uma pública maledicência contra a raça judía. Fez erigir com esta finalidade uma estela na torre que dá ao pátio, na qual inscreveu: 28 ‘Nenhum dos que não sacrifiquem entre aos templos e que todos os judeus sejam censados e reduzidos à condição servil. Contra os que se opõem empregue a violência até a perda da vida, 29 e os registrados sejam também marcados a fogo no corpo com o selo, na forma de folha de hera, de Dionisios, ficando assim reduzidos à condição acima proclamada’. 30 porém para que não resulte manifesto que lhes odiava a todos, fiz inscrever debaixo: ‘se alguns, dentre eles preferirem unir-se aos iniciados segundo os ritos, tenham os mesmos direitos de cidadania que os alexandrinos’. 31 Alguns, que aborrecíam evidentemente os fundamentos da piedade do povo, se entregaram facilmente, com a idéia de que iam participar de grande fama graças à sua futura associação com o rei. 32 Porém a maioria resistiu com nobre ânimo e não abandonou sua piedade. Propuseram, dando seu dinheiro em troca da vida, livrar-se dos censos; 33 mantinham por sua vez a esperança de lograr ajuda, faziam objeto de opróbrio aos que se tinham separado deles, lhes julgavam inimigos da raça e lhes privavam de seu favor e trato comum”. (3 Macabeus 2,25-33)397

Na oração de Eleazar aparece claramente a memória (lembrança) da resistência dos

três jovens na fornalha e a de Daniel na cova dos leões (3Mc 6,6-7):

397. “25 De regreso a Egito, dio pábulo a su maldad con la ayuda de los antedichos amigos y camaradas, hombres alejados de toda a justicia. No contento 26 con sus innumerables vicios, llegó a tal grado de osadía que inventaba palabras de mal agüero en los lugares de sacrificio, y muchos de sus amigos, atentos a la intención del rey, lo seguían en sus deseos. 27 Se propuso como fin extender una pública maledicencia contra la raza judía. Hizo erigir a este fin una estela en la torre que da al patio, en la que inscribió: 28 ‘Nadie de los que no sacrifiquen entre a los templos y que todos los judíos sean censados y reducidos a condición servil. Contra los que se opongan empléese la violencia hasta la pérdida de la vida, 29 y los registrados sean también marcados a fuego en el cuerpo con el sello, en forma de hoja de hiedra, de Diónisos, quedando así reducidos a la condición arriba proclamada’. 30 pero para que no resultara manifiesto que les odiaba a todos, hizo inscribir debajo: ‘si algunos, de entre ellos prefirieran unirse a los iniciados según los ritos, tengan los mismos derechos de ciudadanía que los alejandrinos’. 31 Algunos, que aborrecían evidentemente los fundamentos de la piedad del pueblo, se entregaron fácilmente, con la idea de que iban a participar de gran fama gracias a su futura asociación con el rey. 32 Pero la mayoría resistió con noble ánimo y no desertó de su piedad. Intentaron, dando su dinero a cambio de la vida, librarse de los censos; 33 mantenían a la vez la esperanza de lograr ayuja, hacían objecto de oprobio a los que se habían separado de ellos, les juzgaban enemigos de la raza y les privaban de su favor y común trato”. (3 Macabeus 2,25-33). In: DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 491).

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“Tu, que aos três amigos que voluntariamente entregaram a vida ao fogo por não servir aos falsos deuses, esfriaste o forno ardente, livrastes os inocentes até o último cabelo e enviastes uma labareda a todos seus inimigos. Tu, que a Daniel, arrojado sob a terra aos leões por invejosas calúnias, como pasto de feras, o tirastes ileso à luz”.398

Em 4 Macabeus, obra de caráter apologético, encontramos uma grande reflexão sobre o

martírio, na qual é evocada a resistência de Eleazar, dos sete irmãos Macabeus e da mãe

(claramente os autores elaboram uma releitura reflexiva de 2 Mc). O texto traz a lembrança da

ação dos mártires e depois apresenta um grande elogio. Justamente no elogio aos irmãos

Macabeus (capítulo 13) os autores colocam no momento em que os irmãos estavam sendo

torturados a lembrança dos três jovens da fornalha de Daniel 3:

“Eles, formando um coro santo de piedade, se animavam dizendo: - Irmãos, morramos fraternalmente pela lei! Imitemos aos três jovens da Síria, que rejeitaram um forno semelhante! Não sejamos covardes ante a prova de nossa piedade!”399

Na descrição do martírio e no elogio da resistência da mãe dos sete filhos, os autores

apresentam-na como “mãe do povo, defensora da piedade, aquela que ampara a lei e vencedora

da batalha interior”. E na seqüência faz algumas comparações para mostrar a força e nobreza

desta mulher. Na primeira comparação estão os três jovens e Daniel: “Ni la fiereza de los leones

de Daniel ni la voracidad del horno de Misael eran tan fuertes como el ardor del amor maternal

en aquella mujer al ver a sus siete hijos torturados” (4Mc 16,3)400. Mais adiante, os autores

colocam nas palavras de ânimo desta mãe para os filhos a lembrança de Daniel na cova dos

leões e dos três na fornalha como testemunho de que suportaram tudo por Deus (cf. 4Mc

16,21401). Também na conclusão do livro há nova alusão a Dn 3 e 6: “Nos hablaba del celoso

398 “6Tú, que a los tres amigos que voluntariamente entregaron la vida al fuego por no servir a falsos dioses, enfriaste el horno ardiente, los libraste indemnes hasta el último cabello y enviaste una llamarada a todos sus enemigos. 7 Tú, que a Daniel, arrojado bajo tierra a los leones por envidiosas calumnias, como pasto de fieras, lo sacaste ileso a la luz”. 3Mc 6,6-7. In: DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 500). 399 “8Ellos, formando un coro santo de piedad, se animaban diciendo: 9 – ¡Hermanos, muramos fraternalmente por la ley! ¡Imitemos a los tres jóvenes de Siria, que despreciaron un horno semejante! 10 ¡No seamos cobardes ante la prueba de nuestra piedad!” 4 Macabeus 13, 8-10. In: DIEZ MACHO, Alejandro (1982: 157). 400 Idem., p.161. 401 “El justo Daniel fue arrojado a los leones; Ananías, Azarías y Misael fueron precipitados en un horno de fuego. Y todos lo soportaron por Dios”. Idem., p.162.

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Pinjás; os enseñaba la historia de Ananías, Azarias y Misael en el fuego. Alababa a Daniel,

arrojado al foso de los leones, y lo declaraba bienaventurado”. (4Mc 18,12-13)402

Notemos que o livro de Daniel circulou também como material que animou e fortaleceu a

resistência de muitos judeus no período pós-guerrilha dos Macabeus se estendendo a toda

dinâmica martiriológica dos cristianismos originários. As imagens apocalípticas da destruição e

da expectativa de um novo mundo alimentou as promessas de reviravolta social, no entanto, os

casos de vitória sobre os instrumentos de repressão (os três judeus lançados na fornalha e

Daniel na cova dos leões) fortaleceu uma mística e/ou espiritualidade de resistência através do

martírio. Evidentemente que a memória dos atos heróicos dos fiéis judeus (protagonistas) do

livro de Daniel

2. O livro de Daniel entre bandidos e messias

As lideranças populares que ao redor de 47 a.E.C. começaram a enfrentar o domínio

romano na Galiléia, justamente depois que passaram cinco anos da chegada dos romanos, que

vieram para “pacificar” a região diante das dificuldades do governo dos Hasmoneus. Mas em

poucos anos, o povo que vivia no interior começou a experimentar a política romana, ou seja, o

controle das terras e do comércio e altos tributos, surgiram assim, grupos de camponeses

empobrecidos que viviam escondidos nas montanhas e atacavam e saqueavam as caravanas

nas estradas comerciais, bem como as grandes propriedades. O grande líder dessa época era

Ezequias, chamado por Flávio Josefo como o “salteador-chefe”. Aliás, as lideranças camponesas

da Galiléia e da Judéia serão classificadas pela linguagem de Flávio Josefo como “bandidos” (é

o banditismo social) 403.

402 Idem., p.165. 403 Termo que é utilizado por Flavio Josefo para descrever os revoltosos. Uma boa análise deste termo e a tentativa de uma reconstrução dos movimentos populares no tempo de Jesus é o livro de HORSLEY, Richard A. e HANSON, John S. Bandidos, Profetas e Messias: Movimentos populares no tempo de Jesus. .

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Será que as imagens do livro de Daniel animaram o povo a resistir, defendendo as suas

tradições e enfrentando o domínio romano? É curioso e previsível que Flávio Josefo (historiador

judeu404) não faça nenhuma associação do “banditismo” da Galiléia e da Judéia com os

discursos anti-gregos e anti-romanos; bem como uma repulsa pela apocalíptica e pela profecia

radical.405 Não podemos simplesmente supor que Josefo desconhecia os livros e textos de teor

profético-apocalíptico406. Com certeza de longa data os livros proféticos e apocalípticos

circulavam em meio aos resistentes, seja na ação daqueles que levam muitos a se armarem

contra os romanos ou naqueles que fazem pregações fomentando esperanças e expectativas de

mudança (grupos que caminham para o deserto na busca de viver conforme a Lei de Moisés).

404 Eis uma breve apresentação sobre Flávio Josefo feita por Crossan: “Josefo, historiador judeu, nasceu em 37 E.C. e era membro da aristocracia sacerdotal de Jerusalém. Em 64 E.C., esteve na presença de Nero para defender alguns sacerdotes colegas seus e ao voltar tornou-se ‘general’ da revolta judia na Galiléia, mas acabou se rendendo a Vespasiano em 67 E.C.[...] Ele provavelmente morreu no final do século I. Assim, pelo menos na primeira guerra romano-judaica, ele foi um participante ativo e uma testemunha dos dois lados. [...] A primeira obra de Josefo foi a ‘A guerra dos judeus’, cujas primeiras seções foram apresentadas a Vespasiano já entre 75 e 79 E.C. Os seis primeiros volumes foram publicados no governo de Tito, entre 79 e 81 E.C., e o sétimo acrescentado durante o reinado de Domiciano, provavelmente ainda no início da década de 80 E.C. Depois veio ‘Antiguidades judaicas, obra em 20 volumes, bem mais longa do que a ‘A guerra dos judeus’, mas não tão bem escrita, cuja primeira edição completa foi publicada entre 93 e 94 E.C. A ‘Autobiografia’, inserida nesta obra na forma de um breve apêndice autobiográfico, pode ter sido parte da primeira edição, ou ter sido acrescentada numa versão revisada, provavelmente antes de 96 E.C. Por fim, os dois volumes de ‘Contra Ápion’, ou “Sobre a antiguidade dos judeus’, foram escritos depois das ‘Antiguidades, provavelmente já durante o governo do imperador Nerva, entre 96 e 98 E.C.” Cf. CROSSAN, John Dominic (1994: 128-9). 405 Eis uma palavra de Josefo, no seu livro Guerra dos Judeus sobre os “bandidos”, a oposição ao Império e a pregação de salvação de alguns grupos: “uma nova espécie de bandidos estava surgindo em Jerusalém, os chamados sicarii, que cometiam assassinatos à luz do dia, dentro da cidade e, tendo cometido seus crimes com adagas curtas que traziam escondidas, juntavam-se ao choro e indignação gerais, nunca sendo descobertos [...] E além desses havia outro grupo de malfeitores, de mãos mais puras e intenções mais ímpias, que contribuíram tanto quanto os assassinos para o fim da paz na cidade. Mentirosos e impostores, fingiam inspiração divina ao pretenderem mudanças revolucionárias, e persuadiram a multidão a agir de modo insensato, guiando-a ao deserto sob a crença de que lá Deus mostraria os sinais da salvação. Félix, considerando isso o prenúncio de uma insurreição, enviou contra eles cavalaria e infantes pesadamente armados, e matou muitos”. (II, 254-260). Apud. DOBRORUKA, Vicente (2004: 163-4). 406 Em Antiguidades Judaicas X, Flavio Josefo interpreta e diz algo sobre Dn 2 e 7 sobre a descrição dos impérios. Na interpretação da pedra que atinge a estátua, ele vai dizer o seguinte: “E Daniel também revelou ao rei o sentido da pedra, mas não achei apropriado relatar isso, posto que esperam que eu escreva do que é passado e está feito e não do que virá”. Apud. FLUSSER, David (2001/2: 106).

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Com certeza, é um longo caminho a ser trilhado na pesquisa sobre os grupos populares, suas

expectativas e o messianismo. Alguns autores já se debruçaram nesta tarefa.407

No meu trabalho gostaria de ressaltar que em meio às ações desses grupos messiânico-

populares, provavelmente, deve ter circulado o livro de Daniel e /ou algumas de suas narrativas

e visões. Penso que o livro de Daniel circulou em meio ao milenarismo literário que produziu este

texto e em meio ao milenarismo popular que resultou em “ações”.408 Infelizmente não temos

nenhum registro dos discursos, das falas desses líderes populares, tais como Ezequias, Simão,

Judas, Atronge e o profeta egípcio entre outros. A memória desses líderes nos chega

fragmentada e filtrada pelo registro dos homens da elite e segundo o ponto de vista dos ricos e

poderosos, dos letrados e intelectuais. Muitos desses líderes são lembrados em menções na

história dos judeus escrita por Flávio Josefo. Podemos dizer que temos através do texto Flávio

Josefo uma memória filtrada das ações desses líderes. No caso, é preciso também fazer uma

leitura pelo avesso do que aponta Josefo, pois sua pregação é de que os judeus foram

derrotados pelos romanos devido a um pequeno grupo de baderneiros e quase classifica todos

estes grupos como sendo da linha dos Zelotas e Sicários. À luz da análise de Horsley e Hanson,

devemos classificar os líderes populares da Galiléia e da Judéia em três tipos: os bandidos

(assaltantes que agem em bandos e saqueiam os mercados e que desempenham papel político

na guerra contra Roma), os profetas (que pregavam tempos de mudança de cunho político-

religioso) e os messias (que querem restabelecer a dinastia de Davi).409

Eis um dos textos de Flávio Josefo que mistura estes três grupos:

407 Uma boa análise panorâmica dos grupos revoltosos e uma de reconstrução dos movimentos populares no tempo de Jesus é o livro de HORSLEY, Richard A. e HANSON, John S. (1995). Uma leitura destes grupos conectada com dinâmica religiosa e messiânica temos o livro de SCARDELAI, Donizete. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus. Jesus e os outros messias. São Paulo: Paulus, 1998. Um resumo das intuições de Richard Horsley e John Hanson está no artigo de MESTERS, Carlos (1988: 72-80). Uma leitura fantástica situando Jesus em meio à essas lideranças e ressaltando a sua vida com relação à vida dos camponeses é o livro de CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. A vida de um camponês judeu do Mediterrâneo. 408 Esta conceituação de milenarismo literário e milenarismo popular estou tomando de John Dominic Crossan. 409 Cf. HORSLEY, Richard A. e HANSON, John S. (1995).

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“Nem a nação samaritana estava livre de distúrbios. Pois um homem que não tinha escrúpulos em praticar fraudes e livremente lançava mão delas para agitar a multidão ordenou que essa subisse com ele, em grupo, o monte Garizim, que para eles é a montanha mais sagrada. Prometeu mostrar-lhes, quando lá chegassem, os vasos sagrados enterrados no lugar em que Moisés os colocara. Aqueles que acharam o seu discurso convincente vieram com armas e estacionaram numa aldeia chamada Tiratana. Ali chegaram os retardatários para subirem a montanha numa grande aglomeração. Mas, Pilatos agiu rapidamente, impedindo sua subida, com um contingente de cavalaria e infantaria armada. Atacaram os que se haviam reunido antes na aldeia, mataram alguns, dispersaram outros e prenderam muitos como escravos. Deste grupo Pilatos mandou executar as cabeças e os mais hábeis entre os fugitivos” (Antigüidades Judaicas 18.85-87).410

Gostaria de citar como ele descreve Simão e o profeta egípcio:

“O território de Arquelau estava agora reduzido a uma província, e Copônio, romano da ordem dos cavaleiros, fora enviado como procurador, com amplos poderes a mando de Augusto, incluindo a punição da pena capital. Sob sua administração, um Galileu, de nome Judas, incitou seus compatriotas à rebelião, educando-os com instruções de que seriam covardes pelo consentimento do pagamento do tributo aos romanos e pela tolerância de aceitar mortais como mestres, depois de ter Deus por Senhor. Este homem era sofista que fundou seu próprio secto, e que não partilhava nada em comum com os outros” (Guerra dos Judeus II, 118/8.1). “... Este Judas, filho do salteador-chefe Ezequias (que tinha sido homem de grande poder e só com muita dificuldade fora capturado por Herodes), depois que organizara em Séforis, na Galiléia, um grande número de homens desesperados, atacou o palácio. Tomando todas as armas que lá estavam guardadas, armou todos os seus sequazes e partiu com todos os bens que tinham sido pilhados. Atemorizava a todos, saqueando a quem encontrava, na sua ambição de mais poder e na sua ardente busca da posição real. Não esperava para obter esse prêmio pela virtude, mas pela vantagem de sua força” (Antigüidades Judaicas XVII, 271-2).411

“O falso profeta egípcio trouxe desgraças ainda maiores para os judeus. Tratava-se de um charlatão que tinha ganho fama de profeta. Ele apareceu no país um dia, conseguiu reunir cerca de 30 mil seguidores incautos e conduziu-os até o monte das Oliveiras através de um caminho tortuoso pelo deserto. A sua intenção era entrar em Jerusalém à força, subjugar a guarnição romana e declarar-se tirano do povo, empregando aqueles que o acompanhavam como sua guarda pessoal. Félix antecipou o seu ataque e enviou um grande contingente da infantaria romana contra ele. A população inteira participou da defesa da cidade. O resultado da batalha que se seguiu foi a fuga do egípcio com alguns de seus seguidores, enquanto a maioria de suas forças foi morta ou apriosionada. O restante se dispersou e voltou escondido para casa.” (Guerra dos Judeus 2.261-263).412

410 Flavio Josefo. Apud. HORSLEY, Richard A. e HANSON, John S. (1995: 147). 411 Flávio Josefo. Apud. SCARDELAI, Donizete (1998: 130). 412 Flávio Josejo. Apud. CROSSAN, John Dominic (1994: 200).

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Entre os profetas populares413, destaca-se João Batista que aparece por volta de 20 E.C.

Um texto sintomático na linha da resistência que aborda a morte e martírio de João Batista

conectados com a dominação romana, via Herodes Antipas é o de Mc 6,17-18. Neste texto é

relatada a causa da morte de João: as duras críticas ao relacionamento ilícito entre Herodes e

Herodíades. Na versão de Flávio Josefo para este episódio, João Batista é descrito como um

homem que em suas pregações fala da prática da justiça e da piedade em relação a Deus e, por

sinal, atraía muita gente. E este é um dos motivos para o seu assassinato, pois Herodes temia

que os seguidores organizassem um motim contra o Império Romano. Nesta perspectiva,

aparece mais tarde o profeta Teudas (Atos 5,35-37) que organiza um movimento de voltar para o

deserto e que aos olhos do imperialismo representava uma ameaça política. Ele foi capturado,

decapitado e sua cabeça levada para Jerusalém. Outros profetas que seguem na mesma direção:

Judas, o Galileu (At 5,37), o egípcio (At 21,38), os sicários de mãos mais limpas (50 E.C.) e Jesus

, filho de Ananias (62-69 E.C.).414

Para Crossan, a ida ao deserto pode tomar a forma de uma invasão militar ou a espera

de uma intervenção divina, mas de qualquer maneira esta ação implicaria num projeto de

mudanças sociais e que também pode ser tomado como de cunho popular. Daí as reações

brutais e sangrentas das autoridades.415 Porém, Josefo está preocupado em descrever os

acontecimentos a partir de uma posição pró-romana e, evidentemente, não cabe em suas

intenções recolher as palavras e os discursos desses profetas, revoltosos e reis messiânicos.

Numa leitura contraposta ao que nos apresenta Flávio Josefo poderíamos dizer que textos com

413 Ver: CROSSAN, John Dominic (1994: 203-241). 414 Jesus, filho de Ananias é um camponês que segundo Flávio Josefo começou a gritar em pé em frente ao Templo a frase: “Uma voz do leste, do oeste, dos quatro ventos; contra Jerusalém e o santuário, contra o noivo e a noiva, contra todas as pessoas”. Dia e noite berrava as mesmas palavras, numa atitude que irritou os cidadãos mais ilustres, que mandaram o prender e castigar. Nunca falou uma palavra em sua defesa ou para os que o feriram, apenas continuando com os mesmos gritos a cada chibatada: “Desgraça para Jerusalém”. Albino, o governo, o soltou após concluir que tratava-se de um maníaco. Esta situação continuou por longos 7 anos e meio, sem que sua voz se enfraquecesse nem sua força exaurisse, até que morreu por uma pedrada, durante sua ronda costumeira. Flávio Josefo. In: CROSSAN, John Dominic (1995: 75-77). 415 CROSSAN, John Dominic (1994: 197).

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forte teor profético, escatológico, apocalíptico e sapiencial tenham circulado em meio a esses

grupos. Vale, mais uma vez, acentuar que a circulação desses textos é marcada por uma forte

tradição oral. E o texto que é transmitido é na realidade o oral. Por isso, a citação de um outro

texto acontece pelas aproximações do conteúdo, do simbolismo, das imagens e de alguns termos

chaves, e nunca ipsissima verba.

É muito comum supormos que a Judéia e a Galiléia daqueles tempos era altamente

alfabetizada, simplesmente pelo fato do judaísmo e do cristianismo serem religiões centradas em

torno das escrituras. No entanto, são poucas as evidências de que os camponeses e as camadas

desfavorecidas detinham a escrita. Pode-se até argumentar que pelo uso de textos da Mishná os

freqüentadores das sinagogas sabiam ler; mas devemos contra-argumentar que uma das muitas

habilidades relacionadas com a memória é justamente a recitação de cor de textos como o da

Mishná. E uma das funções primordiais dos pais na educação dos filhos consistia na recitação de

cor das tradições das escrituras. E esta máxima valia até mesmo para os letrados.416 Vale

lembrar que nas culturas antigas as diferenças entre oralidade e literariedade eram bem

pequenas. Nesta direção, compreenderemos que os Evangelhos pertencem ao campo da

oralidade, pois o seu surgimento é devido à riqueza da tradição oral e a sua comunicação à

dinâmica da transmissão oral.

Os textos de cunho apocalíptico e milenarista circularam, ao meu ver, sob dois

movimentos. De um lado, as imagens e as concepções de reviravolta social vieram ao encontro

das expectativas de grupos que pertenciam às classes subalternas, arrendatárias e

empobrecidas. E, de outro lado, a crise dos discursos milenaristas diante do crescimento e

aumento do poderio romano provocou a busca de novos anseios e novos “textos” (mesmo

batendo na mesma tecla dos textos antigos). Um exemplo disto é o das benções messiânicas do

livro dos Jubileus que proclama um tempo em que a geração dos que praticam a justiça alcançará

416 Ver: HORSLEY, Richard A. (2000: 140-142).

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mil anos e não haverá nenhum mal e nem demônio; no entanto, este tempo não chegou a ser

alcançado porque o mal destruidor e o demônio não foram aniquilados. Nem tampouco, os

“santos do Altíssimo” receberam o reino que não tem fim descrito na visão de Dn 7.

“26Nesses dias os meninos começarão a examinar as leis e a estudar os mandamentos, voltando ao caminho da justiça. 27 Multiplicarão e crescerão as vidas desses homens, gerações após gerações e dia após dia, até que se cheguem suas vidas aos mil anos e a muitos anos de muitos dias. 28 Não haverá ancião nem quem se canse de viver, pois todos serão meninos e crianças; 29 passarão todos seus dias com saúde e gozo, e viverão sem que haja nenhum demônio nem nenhum mal destruidor, pois todos seus dias serão de bênção e saúde. 30 Então curará o Senhor a seus servos, que se levantaram e verão grande paz. Dispersaram-se seus inimigos, e os justos verão e darão graças, regozijando-se pelos séculos dos séculos vendo no inimigo todo seu castigo e maldição. 31 Seus ossos descansarão na terra, seu espírito se alegrará sobremaneira, e saberão que existe um Senhor que cumpre sentença e outorga clemência às centenas e miríades que o amam. 32 E tu, Moisés, escreve estas palavras, pois assim está escrito e registrado nas tábuas celestiais como testemunho de perpétuas gerações.” Jubileus 23, 26-32.417

Contudo, a confusão política e econômica desde a dinastia dos Hasmoneus levou muitos

grupos a reler e a criar novos textos apocalípticos e messiânicos. Como vimos no final da primeira

parte, é neste período que se dá a tradução (ou traduções) do livro de Daniel e o surgimento de

outros textos pseudonímicos como os Salmos de Salomão, escrito por escribas e com forte teor

didático. O livro de I Enoque (Primeiro Livro de Enoque ou Livro das Parábolas ou Similitudes de

Enoque),418 escrito entre os anos 20 a.E.C. e 20 E.C., produz uma releitura da imagem do Filho

do Homem que vem de Dn 7.419 Este Filho do Homem é descrito da seguinte maneira:

417 “26En esos días, los niños comenzarán a examinar las leyes y a estudiar los mandamientos, volviendo al camino de la justicia. 27 Irán multiplicándose y creciendo las vidas de esos hombres, generación tras generación y día tras día, hasta que se acerquen sus vidas a los mil años y a muchos años de muchos días. 28 No habrá anciano ni quien se canse de vivir, pues todos serán niños e infantes; 29 pasarán todos sus días en salud y gozo, y vivirán sin que haya ningún demonio ni ningún mal destructor, pues todos sus días serán de bendición y salud. 30 Entonces curará el Señor a sus siervos, que se alzarán y verán gran paz. Se dispersarán sus enemigos, y los justos verán y darán gracias, regocijándose por los siclos de los siclos vioendo en el enemigo todo su castigo y maldición. 31 Sus huesos descansarán en la tierra, su espíritu se alegrará sobremanera, y sabrán que existe un Señor que cumple sentencia y otorga clemencia a los centenares y miríadas que lo aman. 32 Y tú, Moisés, escribe estas palabras, pues así está escrito y registrado en las tablas celestiales como testimonio de perpetuas generaciones.” Jubileus 23, 26-32. In: DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 137-8). 418 “Embora o I Enoque não faça parte da Bíblia, nem mesmo dos Apócrifos, nos séculos imediatamente anteriores e posteriores a Jesus esse texto era amplamente conhecido e desfrutava de imenso prestígio. Nos séculos II e I a.C., nada menos que onze manuscritos dele foram produzidos somente pela

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“Este é o Filho do Homem, de quem era a justiça e a justiça vivia com ele. Ele revelará todos os tesouros do oculto, pois o Senhor dos espíritos o escolheu, e é aquele cuja sorte é superior a todos eternamente pela sua retidão diante do Senhor dos espíritos. Este Filho do Homem que você viu levantará os reis e poderosos de seus leitos e aos fortes de seus assentos, soltará as orlas dos poderosos e destruirá os dentes dos pecadores. Lançará aos reis de seus tronos e reinos, porque eles não o exaltam e nem louvam, nem dão graças por se lhes deu o reino. Humilhará o rosto dos poderosos e os encherá de vergonha: a escuridão será sua habitação; gusanos, seu leito: e não terão esperança de levantar-se dele, porque eles não exaltam o nome do Senhor dos espíritos. Estes são os que erigem como árbitros dos astros do céu, levantam a mão contra o Altíssimo, pisoteiam a terra e vivem nela mostrando iniqüidade em todas as suas obras. Sua força está em sua riqueza, e sua fé, nos deuses que forjaram com suas mãos negando o nome do Senhor dos espíritos, perseguindo suas casas de reunião e aos crentes que se apegam ao nome do Senhor dos espíritos”.420

Com isso, podemos dizer que o livro de Daniel com o seu imaginário circulou entre as

ações de “bandidos e messias”, tornando-se um apocalipse militante entre o milenarismo popular;

bem como, está presente em outras obras apocalípticas do milenarismo literário. Para Norman

Cohn o livro de Daniel “não é um manifesto macabeu. Não tem como objetivo recrutar tropas,

mas encorajar a população civil – ou melhor, uma elite pertencente a esta população – a suportar

comunidade de Qumran, e com certeza era conhecido em círculos muito mais amplos: os autores de apocalipses posteriores, do final do século I d.C., ainda estavam familiarizados com o texto. [...] Os fragmentos de Qumran sugerem que quase todo I Enoque foi composto em aramaico, embora parte dele possa ter sido escrita em hebraico. Nossa principal fonte , contudo, é uma tradução etíope feita entre os séculos IV e VI para a Igreja cristã da Etiópia. Esta versão baseia-se sobretudo em uma tradução grega, da qual sobreviveram fragmentos. Independentemente do idioma, a obra é conhecida como I Enoque, para distingui-la de um texto muito diverso conhecido pelos títulos de II Enoque, Os Segredos de Enoque ou Enoque eslavônico”. Cf. COHN, Norman (1996: 231-2). 419 Muitos comentadores estabelecem uma relação entre o Livro de Daniel e o Livro de Enoque, entre os quais estão: John Collins, Stephen Breck Reid, Michael E. Stone e George Nickelsburg. 420 “Este es el Hijo del hombre, de quien era la justicia y la justicia moraba con él. El revelará todos los tesoros de lo oculto, pues el Señor de los espíritus lo ha elegido, y es aquel cuya suerte es superior a todos eternamente por su rectitud ante el Señor de los espíritus. Este Hijo del hombre que has visto levantará a los reyes y poderosos de sua lechos y a los fuertes de sus asientos, aflojará las bridas de los poderosos y destrozará los dientes de los pecadores. Echará a los reyes de sus tronos y reinos, porque no lo exaltan ni alaban, ni dan gracias porque se les ha dado el reino. Humillará el rostro de los poderosos y los llenará de vergüenza: la tiniebla será su morada; gusanos, su lecho; y no tendrán esperanza de levantarse de él, porque no exaltan el nombre del Señor de los espíritus. Estos son los que erigen como árbitros a los astros del cielo, levantan la mano contra el Altísimo, pisotean la tierra y moran en ella mostrando iniquidad en todas sus obras. Su fuerza está en su riqueza, y su fe, en los dioses que forjaron con sus manos negando el nombre del Señor de los espíritus, persiguiendo sus casas de reunión y a los creyentes que se apegan al nombre del Señor de los espíritus”. Livro I de Enoque 46, 3-8. In: DIEZ MACHO, Alejandro (1984b: 71-2).

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com firmeza a perseguição”.421 Tudo bem que o livro de Daniel não é manifesto de luta e que tem

por objetivo o encorajamento do povo a manter-se fiel às leis e tradições; porém, uma questão

discutível está na afirmação de que o livro prestou este serviço a uma elite. Quem é esta elite?

São os macabeus? São os hasmoneus? Norman Cohn não chega a definir quem faz parte desta

elite. Penso que não podemos simplesmente dizer que este livro circulava nas mãos daqueles

que detinham o poder econômico (o controle das terras, do templo e dos palácios). Sendo assim,

teríamos que dizer que o livro de Daniel foi transmitido pelos Hasmoneus e sadocitas. Acho que

não é isto que Norman Cohn esteja querendo dizer. Porém, devemos pensar aqui numa elite

cultural (escribas que foram juntando as mais variadas tradições). Provavelmente uma elite

letrada que foi colecionando e compilando as tradições que vinham das gentes iletradas.

Sobre esta discussão não resolvida acerca da apocalíptica enquanto produção dos

letrados ou iletrados, Martinus de Boer tece alguns comentários tomando como referência a

opinião de Richard Horsley de que a literatura apocalíptica foi produzida por literatos (uma elite

cultural e não econômica) ao passo que o movimento de Jesus pertencia ao dos camponeses

iletrados que cultivavam suas próprias tradições israelitas e comunidades aldeãs. Ele toma Q

10,21-24, no qual “Jesus dá graças ao Pai que ‘revelou’ (apekalypsas) todas estas coisas às

‘crianças’, ou seja, ao povo simples, e de fato as escondeu da elite sapiencial, a elite de escribas

e sábios profissionais que cultivavam e recebiam ‘revelações’.” Este texto nos leva a supor que o

Evangelho das Sentenças Q é fruto de um movimento popular oposto à elite política e cultural

de governantes e seus representantes, os escribas422:

“O Evangelho das Sentenças Q: agora está inserido nos Evangelhos de Mateus e Lucas. Uma coleção das sentenças de Jesus que apresenta uma organização composicional mais elaborada que o Evangelho de Tomé. Composto na década de 50 E.C., provavelmente em Tiberíades, na Galiléia, não possui nenhuma narrativa da paixão ou da ressurreição, mas está calcado no mesmo mito em torno da Sabedoria proposto pelo Evangelho de Tomé e o Evangelho dos hebreus. É possível que três camadas sucessivas tenham surgirdo ao longo de

421 COHN, Norman (1996: 226). 422 Richard Horsley apud. DE BOER, Martinus (2000: 21-22).

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seu desenvolvimento: uma camada sapiencial ( 1Q), uma camada apocaliptica (2Q) e uma camada introdutória (3Q). Ele é citado de acordo com estas três rubricas”. 423

No entanto, não podemos simplesmente reduzir o documento Q como uma mera fonte

para os evangelhos de Mateus e Lucas:

“Antes, porém, de ser fonte para os evangelhos segundo Mateus e Lucas, o escrito Q foi um texto autônomo, um ‘evangelho, que fundamentalmente conservava palavras de Jesus. Não está interessado em relatar suas atitudes, gestos ou milagres. Nenhuma menção à morte e ressurreição é nele encontrada. Ele se importa em relatar parábolas, sentenças, afirmações do Mestre Galileu. Foi escrito entre os anos 40 e 50, em alguma região da Galiléia”424

Daí podemos concordar com a afirmação de Martinus de Boer:

“a adoção de uma escatologia apocalíptica como uma perspectiva da realidade, não é limitada a grupos em crise, nem necessita emergir destes grupos. Deixando Q de lado, os evangelhos sinóticos, em sua forma atual, mostram que temas e tradições apocalípticas podem ser adotados e usados por gente de diversos contextos e em diversos contextos sociais. A pressuposição é que todos os que adotam esta perspectiva sobre a realidade, é de que esta perspectiva não tem origem humana (seja de indivíduos ou de grupos), mas de que ela é dada por Deus, em outras palavras, é uma revelação de Deus. Esta é também a pressuposição básica da fé cristã: ela não tem a ver com invenções humanas, planos ou programas, mas com as que se referem a Deus.”425

Portanto, podemos supor que o livro de Daniel circulou entre os camponeses iletrados

(milenarismo popular) e os escribas e a elite cultural (milenarismo literário). Para Richard Horsley

a literariedade estava concentrada na elite político-cultural e entre os que formavam o estrato

letrado estavam os fariseus, os escribas, os funcionários da administração herodiana. Na Galiléia

a literariedade estava com a administração urbana. Por isso, conclui que “é pouco provável que

houvesse muitos camponeses letrados”.426

423 CROSSAN, John Dominic (1994: 467) Na última camada do documento Q é que se postula a imagem de um Jesus defensor da estrita observância da Torá. 424 ANDERSON, Ana Flora, GORGULHO, Gilberto, SILVA, Rafael Rodrigues da e VASCONCELLOS, Pedro Lima (2005: 54-55). 425 DE BOER, Martinus (2000: 23-24). 426 HORSLEY, Richard A. (2000: 142).

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3. O livro de Daniel e a construção da imagem do Jesus apocalíptico

Não é nossa intenção entrar nas discussões acerca do Jesus histórico427, no entanto é

preciso ter presente que os Evangelhos não devem ser lidos como biografia de Jesus428, pois

representam muito mais uma releitura da história de Jesus a partir dos caminhos e da vida das

comunidades. Gerd Theissen entende que os Evangelhos de cada comunidade pretende

apresentar uma imagem de Jesus, a partir dos dados que foram recolhidos pela memória e

atualizados pelos contextos nos quais foram produzidos. Os Evangelhos têm a intenção de

oferecer indicações para o agir da comunidade frente ao mundo social, político e cultural que a

rodeia.429 A tradição e a transmissão oral acerca da vida e ação de Jesus de Nazaré reflete o

olhar das comunidades cristãs que buscavam responder às suas necessidades. Com isso não

temos muita certeza sobre a origem das tradições orais no contexto da vida de Jesus, pois os

evangelhos não são biografias, mas testemunho da fé e da constante busca das comunidades em

responder aos problemas cotidianos. Também devemos ter presente que o texto não é a

composição feita por uma pessoa, mas são compilações coletivas de pequenas unidades

literárias que foram compiladas e organizadas nos evangelhos. Vale lembrar que tudo o que

sabemos sobre Jesus é mediado pela ótica das comunidades. E boa parte dos Cristianismos

427 Diferentes perspectivas e maneiras de estudar o Jesus da história. Vejamos alguns exemplos: Rudolf Bultmann aborda muito mais um Jesus da fé e que os Evangelhos representam a identidade de Jesus transmitida teologicamente pelos cristãos. Gerd Theissen, na linha de um estudo da sociologia das comunidades cristãs busca reconstruir o Jesus histórico desde o ponto de vista da construção social das comunidades itinerantes. Quase nessa direção temos a leitura de Richard Horsley, John Hanson, Seán Freyne e Wayne A. Meeks. Helmut Koester se aproxima das discussões sobre o Jesus Histórico num trabalho de reconstrução da história e desenvolvimento da literatura cristã do Io século. Numa perspectiva antropológica e cultural desponta o comentário de Bruce J. Malina. A visão de um Jesus sábio radical relacionado com a vida dos camponeses no mediterrâneo é apresentada por John Dominic Crossan. Na tentativa de aproximar o Jesus histórico das tradições judaicas temos os trabalhos de Marcos Borg e David Flusser. E numa exegese mais tradicional temos o trabalho de John Meier. E poderíamos continuar numa longa lista de trabalhos e perspectivas na busca do Jesus Histórico. Uma visão geral sobre as discussões acerca do Jesus Histórico Ver: BARTOLOMÉ, Juan J. (2001: 179-242). 428 Cf. VASCONCELLOS, Pedro Lima. A boa notícia segundo a comunidade de Lucas. São Leopoldo: CEBI, 1988. “A questão é que justamente os evangelhos não são uma “biografia”, uma “reportagem” a respeito de Jesus, uma “gravação” de suas palavras. No evangelho Jesus fala, sim, mas principalmente é uma comunidade que fala sobre Jesus! Cada um dos evangelhos apresenta Jesus a partir de uma determinada realidade. Melhor dizendo, cada evangelho apresenta Jesus partindo da vida e dos desafios de uma certa comunidade.” 429 Notas retiradas de ANDERSON, Ana Flora, GORGULHO, Gilberto, SILVA, Rafael Rodrigues da e VASCONCELLOS, Pedro Lima (2005: 53).

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Originários ao afirmarem a crença de que Jesus de Nazaré era o Messias, interpretaram sua

vida, suas palavras, suas ações e sua morte; bem como, as esperanças que depositavam em seu

regresso (parusia), e fizeram isto à luz da apocalíptica.430 Os mais antigos testemunhos

(documentos fontes que vem da oralidade) sobre Jesus estão situados num contexto apocalíptico.

Por exemplo, na camada apocalíptica do Evangelho das Sentenças Q, Jesus é o juiz justiceiro

que desce das nuvens para julgar os vivos e os mortos.

Nas discussões sobre a possível composição dos escritos que circularam e foram

produzidos por cristãos seguidores de Jesus na Galiléia é que se lança com força a hipótese de

Q, não só como uma fonte utilizada pelos Evangelhos de Mateus e Lucas (além da fonte comum

que era Marcos), mas como um evangelho com seu dinamismo e intencionalidades. Pena que

não podemos avançar e se esquivar dos evangelhos de Mateus e Lucas para buscar uma

aproximação e ir descobrindo detalhes deste evangelho quase perdido.431 No entanto, não

iremos entrar no mérito das discussões acerca das descobertas e debates entre os especialistas

acerca da composição e formação desta fonte. Tomaremos as opiniões comumente aceitas de

que este evangelho provém da Galiléia (ao redor do lago de Genesaré na opinião de Leif E.

Vaage, enquanto uma tentativa de responder à realidade local desta região, ou seja, uma

espécie de proposta para levar uma vida melhor neste lugar432).

Nosso interesse consiste em perceber a utilização das imagens apocalípticas neste

evangelho, de modo especial, a figura do “filho do homem”.

Um aspecto interessante a ser levado em conta consiste na situação sócio-histórica da

Galiléia na metade do primeiro século que deu origem a este evangelho radical. Aqui se encaixa

430 Talvez seja nesta perspectiva que Ernst Käsemann tenha afirmado que a apocalíptica é a mãe de toda a teologia cristã. 431 Ver estudo de MACK, Burton L. 1994. O Evangelho perdido. O livro de Q e as origens cristãs. Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA. 432 VAAGE, Leif E. (1995: 84-108).

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a tese do radicalismo itinerante de Gerd Theissen433 que tenta demonstrar a existência de

pessoas radicais itinerantes entre os seguidores de Jesus e que foram transmissoras de um

radicalismo ético presente na tradição das palavras de Jesus, que se evidencia num discurso de

renúncia à moradia, família e propriedade:

“As palavras de Jesus representam uma ética da pessoa sem pátria, sem querência. O chamado do seguimento significa: renúncia à stabilitas loci (i.e., posição estável). Os chamados abandonam barco, roças, posto alfandegário, casa. Um seguidor recebe de Jesus o seguinte aviso: ‘... As raposas têm seus covis e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça’ (Mt 8,20). Essa existência apátrida não era vivida somente durante o tempo de vida de Jesus. A Didaqué, por exemplo, sabe da existência de carismáticos cristãos itinerantes. Acerca deles, fala que praticavam o tropous kyriou, o modo de viver do Senhor (Didaqué 11.8)”.434

O radicalismo das palavras de Jesus também expressa uma crítica à riqueza e à

propriedade como podemos ler em Mt 6,25-34 e Lc 12,22-31. À luz dessas palavras, Theissen

formula a sua tese:

"O radicalismo ético da tradição das palavras de Jesus é um radicalismo itinerante. Ele somente pode ser praticado e transmitido sob condições extremas de vida: somente quem está desligado das relações do mundo, somente quem abandonou casa, mulher e filhos, quem deixou aos mortos o enterrar os seus mortos e toma os pássaros e os lírios como exemplo pode renunciar à moradia, à família, à propriedade, ao direito e à defesa. Somente em tais circunstâncias podem ser transmitidas semelhantes orientações sem que caiam no descrédito. Essa ética tem chance somente na margem da sociedade, somente aí ela tem um Sitz im Lebenz, ou, para ser mais exato: ela tem um Sitz im Leben. Deve, isso sim, a partir de um ponto de vista externo, levar uma vida questionável à margem da vida normal. Somente aqui as palavras de Jesus estavam protegidas contra alegorizações, modificações, minimizações e supressões pela simples razão de que aí eram levadas a sério e praticadas. Somente carismáticos apátridas podiam fazê-lo”.435

Para Richard Horsley no Documento Q aparece uma oposição aos governantes e seus

partidários (ver os ais contra os fariseus em Q 11,39-52 e o lamento sobre Jerusalém em Q

13,34-35) e os textos que buscam medidas para resolver conflitos entre os habitantes rurais,

433 THEISSEN, Gerd (1985:13-40; 1987: 36-55). 434 THEISSEN, Gerd (1987:39). 435 Idem., p.41.

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como podemos conferir nos discursos que pregam a generosidade (Q 6,29-30), a anulação das

dívidas (11,2-4); amor aos inimigos (6,27-28)436, perdão (17,3-4) e acordo sobre as disputas

(12,58-59).437

No tocante às expectativas apocalípticas de uma mudança brusca e iminente da vida

social, o documento Q apresenta no conjunto dos ditos de Jesus a categoria de juízo e

julgamento através da figura de “o que vem” (o evrco,menoj) em 3,16 (“Eu vos batizo com água,

mas o que vem atrás de mim é mais poderoso que eu, de quem não sou capaz de desatar as

correias de suas sandálias; este vos batizará com Espírito Santo e fogo”); 7,19 (“... por seus

discípulos... enviou... disse-lhes: És tu o que vem ou esperamos outro?”) e 13,35 (“Eis aqui,

vossa casa está abandonada. Digo-vos: não me vereis até que digais: ‘Bendito o que vem no

nome do Senhor’”). Evidentemente que esta frase não pode ser entendida ou reduzida a um

título messiânico, mas vai na esteira das correntes cristãs que viviam a expectativa da vinda

gloriosa de Jesus (parusia).

Em paralelo a este horizonte de juízo e julgamento aparece a figura do “filho do homem”,

trabalhada nos textos de Daniel 7 e 1Enoque. Eis os ditos do Evangelho Q que se refere à figura

do “filho do homem”:

6, 22-23 Bem-aventurados sois quando os homens vos odiarem e quando vos expulsarem e da sua companhia, vos injuriarem e rejeitarem vosso nome como mau por causa do filho do homem. Regozijai-vos naquele dia e exultai, porque grande é o vosso galardão no céu; pois dessa forma procederam seus pais com os profetas.

7,33-34 Veio pois João Batista não comendo pão nem bebendo vinho, e dizeis: demônio tem. Veio o filho do homem comendo e bebendo, e dizeis: eis um homem comilão e beberrão, amigo de cobradores de impostos e de pecadores.

9,57-58 E indo eles no caminho disse alguém para ele: seguirei a ti aonde fores. E disse a ele Jesus: as raposas covas têm e as aves do céu ninhos, mas o filho do homem não tem onde a cabeça recline.

436 Ver: VAAGE, Leif E. (1991: 71-84) 437 HORSLEY, Richard. Sociology and the Jesus Movement. Apud. VAAGE, Leif E. (1995: 100).

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11,30 Como pois se tornou Jonas aos ninivitas um sinal, assim será também o filho do homem à geração esta.

12,8-9 Digo a vós: todo o que se declarar por mim diante das pessoas, também o filho do homem se declarará por ele diante dos anjos de Deus, mas o que tiver negado a mim diante das pessoas será negado diante dos anjos de Deus.

12,10 E todo o que disser palavra contra o filho do homem será perdoado, mas ao que contra o Santo Espírito tiver blasfemado não será perdoado.

12,39-40 Isto porém conhecei que se soubesse o dono da casa em que hora o ladrão vem, não permitiria ser arrombada a casa dele. Também vós estai preparados, porque em que hora não supondes o filho do homem vem.

17,23-24 E dirão a vós: eis ali, ou eis aqui, não saiais nem sigais. Pois como o relâmpago relampejando de um lado sob o céu a outro lado sob o céu brilha, assim será o filho do homem no dia dele.

17,26-28 E como aconteceu nos dias de Noé, assim será nos dias do filho do homem. Comiam, bebiam, casavam, eram dadas em casamento, até o dia em que entrou Noé na arca e veio o dilúvio e destruiu a todos. Semelhantemente como aconteceu nos dias de Ló: comiam, bebiam, compravam, vendiam, plantavam, construíam.

Para Leif E. Vaage mesmo o documento Q passando por várias edições,

“ainda deixa ver a história de sua composição literária, marcada por uma visão ‘quase’ apocalíptica, que esperava a chegada de um filho do homem também conhecido como “o que vem”, que reflete a experiência de alguns conflitos sociais, os quais aparentemente não podia resolver, com um grupo de pessoas que chama de ‘esta geração’, contra a qual polemiza e ameaça com um juízo divino iminente”.438

Nesta perspectiva, os oponentes e inimigos seriam obrigados automaticamente a

reconhecer a intervenção divina tão esperada pelos apocalípticos e aceitar a conversão ou

admitir a derrocada final.439

Há de se perguntar se no ambiente dos cristianismos originários (onde está inserido uma

grande tradição oral e um complexo literário dos ditos de Jesus, tal como a Fonte Q)

simplesmente tomaram conhecimento da figura do “filho do homem” advinda da visão de Dn 7 ou

438 VAAGE, Leif E. (1995: 107). 439 Cf. CROSSAN, John Dominic (1994: 274).

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tomaram conhecimento do Livro das Similitudes em 1 Enoque ou do apocalipse de 4 Esdras.

Evidentemente que esta questão nos leva a pressupor que nos ambientes cristãos estes textos e

outros devem ter tido uma ampla circulação e provocado uma dinâmica de releitura das imagens

apocalípticas440; pois, muitos grupos, comunidades ou seitas vão caminhar na expectativa de

uma salvação coletiva (beneficiando o grupo de fiéis), terrestre (realizada neste mundo),

iminente (surgirá em pouco tempo), total (transformará totalmente a vida na terra e criará uma

nova ordem) e realizada por agentes conscientemente encarados como sendo de origem

sobrenatural.441 Vale lembrar que as promessas de uma reviravolta social (questão de tamanha

importância para grupos apocalípticos) estão presentes nas variadas formas de resistência que

encontramos naqueles tempos: a passiva (o sonho e projeto de um retorno à tradição e às

lendas arcaicas do povo), a militante (que parte para uma luta santa contra os invasores), a

messiânica (prega uma total intervenção divina que irá expulsar os invasores e restaurar o país e

sua independência) e a proselitista (busca a conversão dos infiéis). Assim, na Galiléia que

resiste ao imperialismo romano circulam motivações e tentativas de retomar o poder com o

objetivo de por fim à exploração econômica e aos distúrbios sociais, bem como, proteger a lei, a

religião e as tradições.442

Uma das imagens que aparece nos Evangelhos é a do Jesus apocalíptico, relacionada

em grande parte com os discursos escatológicos, a pregação sobre o Reino de Deus e a figura de

Jesus como o “Filho do Homem”. Para Charles H. Dodd a profecia do Filho do Homem de Dn

7,13 não aparece explicitamente, porém está presente em Mc 13,26 e 14,62 (cf. também Ap 1,7).

A vinda de Jesus “sobre as nuvens” aparece implicitamente em At 1,9-11.

440 Neste aspecto temos de convir que os movimentos apocalípticos do Oriente Médio e do Mediterrâneo prefiguram como os mais elaborados em termos literários e que representam, em certo sentido, um movimento de reação às ameaças a integridade cultural e a ordem político-religiosa e sócio-econômica. 441 CROSSAN, John Dominic (1994: 140). 442 Uma reflexão sobre a apocalíptica como resistência ou passividade encontramos em: ELLIOTT, Neil. The “Patience of the Jews”: Sapiential and Apocalyptic Strategies of Resistance and Accommodation to Imperial Cultures. In: ANDERSON, Janice Capel; SELLEW, Philip H. e SETZER, Claudia J. (ed.). Pauline conversations in context – Essays in Honor of Calvin J. Roetzel. Journal for the Study of the New Testament – Supplement series 221. London: Sheffield Academic Press, 2002, pp.32-41.

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“Conforme a interpretação do próprio Daniel, a vinda do Filho do Homem significa que Deus ‘concedeu o julgamento aos santos do Altíssimo’ (Dn 7,22); tal texto é o fundamento escriturístico implícito da doutrina paulina: ‘os santos julgarão o mundo’ (1Cor 6,2)”. 443

Em Apocalipse 1.13 e 14,14 (uso explícito de Dn 7,13) também encontramos referência a

Jesus como “um como Filho do Homem”.

São várias as imagens de Jesus que estão presentes nos Evangelhos. Do Jesus profeta

ao Jesus milagreiro, do Filho de Deus a um dos antigos profetas. Algumas dessas imagens estão

presentes no famoso texto de Mt 16, 17-19, no qual Jesus pergunta para os discípulos o que

andam dizendo sobre ele. Uma das fortes questões apocalípticas na vida das comunidades era a

expectativa da vinda de um grande profeta. Não é à-toa que Jesus aparece associado ao Profeta

Elias que subiu ao céu num “carro de fogo”. Esta profecia popular de Elias evoca a espera dos

tempos messiânicos: João Batista é apresentado como aquele profeta que “caminhará à sua

frente, com o espírito e o poder de Elias, a fim de converter os corações dos pais aos filhos e os

rebeldes à prudência dos justos, para preparar ao Senhor um povo bem disposto” (Lc 1,17).

Bultmann e Martin Hengel apontam a conotação de que a vida de Jesus era “não –

messiânica”, através da constatação de que Jesus nunca utilizou para si próprio o título de

Messias e sempre fala do “Filho do Homem” em terceira pessoa, como se não estivesse falando

dele.444 Ao passo que para David Flusser, o título Filho do Homem é utilizado por Jesus com três

significados:

“O terceiro tipo era por ele utilizado, como no discurso hebraico atual, simplesmente como um termo para ‘homem’. No segundo tipo, ele evidentemente referia-se a si próprio como o “filho do homem’ enquanto circunlóquio eufemístico. Temos ainda que considerar o primeiro significado da expressão, no qual ele anunciou o vindouro Filho do Homem como uma figura escatológica”.445

443 DODD, Charles H. (1986: 65-66). 444 Apud. FLUSSER, David (2002: 98-99). 445 Idem., p.100.

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Se as visões de Daniel tinham uma intenção clara de fortalecer e reconfortar os judeus

fiéis que estavam sendo perseguidos, faz-se necessário que tenhamos presente que o grande

desejo das visões de Daniel é que o império seja julgado e destruído. E o “Filho do Homem“

expressa a força de enfrentamento aos animais terríveis (cf. Dn 7). Crossan vai dizer que a

expressão “Filho do Homem” seria “um circunlóquio para o ‘eu’ no aramaico da época de Jesus.

Seria uma maneira oblíqua de se referir à própria pessoa do falante. Quando Jesus dizia ‘filho do

homem’, então, todos saberiam que ele estava se referindo a si mesmo”.446

Em 1Ts 4,13-18 não aparece o título ou expressão “Filho do Homem”, porém lendo

atentamente a narrativa há uma evocação para a consumação apocalíptica através da ordem de

Jesus, a voz do arcanjo e a trombeta de Deus. A relação com Dn 7 está presente ao dizer que os

vivos serão resgatados com os mortos e Jesus que está “nas nuvens”. Porém, quase que somos

levados pelas redundâncias do texto a ignorar a expressão “nas nuvens”. Provavelmente,

conforme a opinião de Crossan, Paulo em 50 E.C. via a volta de Jesus como a realização da

profecia de “um como Filho do Homem”.447 O que leva a dizer que o texto de Paulo não está

simplesmente utilizando mais um título para Jesus, mas construindo uma expectativa apocalíptica

numa comunidade altamente marcada pela perseguição romana.

As origens desta expressão “Filho do Homem” nos ensinamentos de Jesus são muito

debatidas entre os comentadores dos textos neotestamentários. Há pelo menos a concordância

de que esta expressão é utilizada de diferentes formas. No entanto, surge a pergunta: o Jesus

histórico realmente utilizou todas estas formas? De acordo com Bart D. Ehrman para

446 CROSSAN, John Dominic (1994: 277-8). 447 Idem., p.280. O autor apresenta quatro divisões do Inventário das Sentenças sobre o Filho do Homem: Sentenças sobre o Filho do Homem Apocalíptico; Sentenças sobre o Filho do Homem Terreno; Sentenças sobre a Ascensão do Filho do Homem Sofredor e Sentenças de João sobre o Filho do Homem. Idem., pp.490-492 (Apêndice 4). A sua opinião é de que as tradições antigas também incluíam textos em que Jesus empregava a expressão “filho do homem” em sentido genérico ou indefinido e a que a presença desses textos facilitou a transição de Jesus como juiz apocalíptico de Daniel 7,13 para Jesus enquanto Filho do Homem de Daniel 7,13. Cf. pp. 274-301.

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entendermos essa expressão em suas diferentes formas nos ensinamentos de Jesus faz-se

necessário levar em conta outros dois textos apocalípticos do Io século:

“Tiveram [os membros do povo de Deus] grande alegria, bendisseram, louvaram e exaltaram [a Deus], porque lhes tinha sido revelado o nome desse Filho do homem. E sentou-se sobre seu trono de glória e foi dada a primazia do juízo ao Filho do homem, que removerá e aniquilará aos pecadores da face da terra e aos que corromperam o mundo. Com cadeias serão atados, serão aprisionados conjuntamente num lugar de perdição, e toda sua obra desaparecerá da face da terra. E já não haverá nada que seja corrompido, pois esse Filho do homem apareceu e está sentado no trono de sua glória. Todo o mal partirá e desaparecerá diante dele, e as palavras desse Filho do homem serão firmes diante do Senhor dos espíritos” (1 Enoque 69,26-29).

“Enquanto eu seguia olhando, o vento trouxe algo parecido à figura de um Filho do homem que saía do coração do mar. E vi que este homem voava com as nuvens do céu; e de onde quer que gire seu rosto para olhar, tudo que havia sob sua vista tremia [...] Quando viu a investida da multidão que se acercava, nem levantou sua mão nem empunhou uma lança nem uma arma de guerra; o único que vi como lançava de sua boca como um rio de fogo e de seus lábios um alento flamígero [... que] caiu sobre a multidão que estava preparada para lutar e os queimou a todos, de forma que de repente não sobrou nada da inumerável multidão e só se via o pó das cinzas e só se percebia o cheiro da fumaça”. (IV Esdras 13,1-11). 448

Bart D. Ehrman conclui que

“Parece que Jesus compartilhou esta visão apocalíptica fundamental e chamou a este juiz que vem de o ‘Filho do Homem’. Segundo sua visão, no juízo que este trará, os que na atualidade são oprimidos serão reabilitados e os que exercem o poder serão derrubados. De fato, este é um tema geral do ensinamento apocalíptico de Jesus: quando o Reino chegar terá lugar uma mudança radical de sortes. Os que agora sofrem serão recompensados; os que agora exercem o poder serão derrocados. E esta mudança radical que vem deveria afetar a forma em que a gente vive e quer viver, no presente”.449

448 “Tuvieron [ los miembros del pueblo de Dios] gran alegría, bendijeron, alabaron y exaltaron [ a Dios], pues les había sido revelado el nombre de ese Hijo del hombre. Y se sentó sobre su trono de gloria y fue dada la primacía del juicio al Hijo del hombre, que quitará y aniquilará a los pecadores de la faz de la tierra y a los que corrompieron el mundo. Con cadenas serán atados, serán encerrados conjuntamente en un lugar de perdición, y toda su obra desaparecerá de la faz de la tierra. Y ya no habrá nada que se corrompa, pues ese Hijo del hombre ha aparecido y se ha sentado en el trono de su gloria. Todo mal se irá y desaparecerá ante él, y las palabras de ese Hijo del hombre serán firmes ante el Señor de los espíritus”. (1 Enoque 69,26-29). “Mientras yo seguía mirando, el viento trazó algo parecido a la figura de un Hijo del hombre que salía del corazón del mar. Y vi que este hombre volaba con las nubes del cielo; y donde quiera que giraba su rostro para mirar, todo lo que había bajo su mirada temblaba [...] Cuando vio la embestida de la multitud que se acercaba, ni levantó su mano ni empuñó una lanza ni un arma de guerra; lo único que vi fue cómo lanzaba de su boca como un río de fuego y de sus labios un aliento flamígero [... que] cayó sobre la multitud que estaba preparada para luchar y los quemó a todos, de forma que de repente no quedó nada de la innumerable multitud y sólo se veía el polvo de las cenizas y sólo se percibía el olor del humo” (IV Esdras 13,1-11). In: EHRMAN, Bart D. (2001:186). 449 “Parece que Jesús compartió esta visión apocalíptica fundamental y llamó a este juez venidero el ‘Hijo del hombre’. Según su visión, en el juicio que éste traerá, los que en la actualidade son oprimidos

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Dentro desta perspectiva a tradição cultural israelita a partir da Bíblia Hebraica a busca

de libertação e restauração do povo acompanhada do julgamento por parte de Deus dos

governantes estrangeiros ou domésticos, e, a conseqüente derrocada do poder hegemônico (da

tradição do êxodo à literatura produzida pelos círculos farisaicos). Aí se insere em grande medida

a literatura apocalíptica. O “Filho do Homem” em Daniel vai sentar no tribunal, julgar e instaurar o

reino que não terá fim (Dn 7). Textos paralelos circularam e foram utilizados pelas comunidades

cristãs (ou pelos cristianismos originários). O julgamento está presente no Apocalipse das

Semanas e no Apocalipse dos Animais no livro de 1 Enoque. No Testamento de Moisés é tratada

a vinda de Deus como sinal da vingança dos que foram martirizados e nos Salmos de Salomão o

ungido filho de Davi reunirá o povo santo e o conduzirá com justiça.450 Conectado com o desejo

do fim dos malvados fala-se de tempo de bênçãos, a volta ao Paraíso, como encontramos no

Apocalipse Siríaco de Baruc e no Testamento de Levi:

“(...) depois começará a revelar-se o messias... e a terra produzirá dez mil vezes mais seus frutos; numa vide haverá mil cachos de uva, um cacho de uva terá mil grãos e um grão mil sementes. Que produzirão quantidade de vinho. Os que têm fome se saciarão em abundância; e todos os dias verão prodígios. De mim sairão ventos para transportar todos os dias o perfume dos frutos aromáticos e ao final do dia nuvens que farão destilar o rocio fecundante. Em todo momento cairão do alto as provisões de maná; e eles se alimentarão

serán rehabilitados y los que ejercen el poder serán derribados. De hecho, éste es un tema general de la enseñanza apocalíptica de Jesús: cuando el Reino llegue tendrá lugar un cambio de suertes radical. Los que ahora sufren serán recompensados; los que ahora ejercen el poder serán derrocados. Y este cambio radical venidero debería afectar a la forma en que la gente vive y quiere vivir, en el presente”. Idem., pp.186-7. Nas páginas seguintes o autor apresenta o apelo de mudança radical nos discursos de Jesus e nos milagres. 450 “Olhai-os, Senhor, e suscitai-lhes um rei, um filho de Davi, no momento em que tu escolhas. Ó Deus, para que reine em Israel teu servo. Rodeai-lhe de força, para quebrantar aos príncipes injustos, para purificar a Jerusalém dos gentios que a pisoteiam, destruindo-a, para expulsar tua herança com tua justa sabedoria aos pecadores, para quebrar o orgulho do pecador como vaso de oleiro, para triturar com vara de ferro todo o seu ser, para aniquilar as nações ímpias com a palavra de sua boca, para ante sua ameaça fujam os gentios de sua presença e para deixar convictos aos pecadores com o testemunho de seus corações. Reunirá [ o Rei] um povo santo ao que conduzirá com justiça; governará as tribos do povo santificado pelo Senhor seu Deus. Não permitirá em diante que a injustiça se assente entre eles, nem que habite ali homem algum que cometa maldade, porque saberá que todos são filhos de Deus. Os dividirá em suas tribos sobre a terra; o migrante e o estrangeiro não habitará mais entre eles; julgará aos povos e as nações com justa sabedoria”. Salmos de Salomão 17,21-29. In: DIEZ MACHO, Alejandro. (1982: 52-3).

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naqueles anos, pois tem conhecido o final dos tempos”(Apocalipse Siríaco de Baruc 29)451

“Ele abrirá as portas do paraíso, afastará a espada que ameaça a Adão, e dará de comer aos santos da árvore da vida” (Testamento de Levi 18).452

Também no diálogo entre Esaú e Jacó no Livro dos Jubileus encontramos uma boa

quantidade de promessas e de esperanças:

“Se os lobos fazem a paz com os cordeiros e já não os devoram, não lhe fazem nenhum dano e seus corações querem fazer-lhes só o bem, então também haverá em meu coração paz contigo. Se o leão se faz amigo do touro e se deixa cangar com ele a um só jugo, então também eu farei a paz contigo” (Jubileus 31,21-22).

Neste sentido, a pregação do Reino de Deus presente na memória que comunidades

fazem de Jesus colide com o imperialismo e a sua desordem mundial.453 A pregação do reino

pode ter diferentes facetas: pode ser entendido por alguns como a expectativa de mudança da

vida religiosa, através da realização de um novo tempo (novos céus e nova terra), pode ter um

cunho político-social e econômico, enquanto projeto de transformação das desigualdades

sociais.454

No Evangelho segundo Marcos tanto Jesus como João Batista são apresentados como

profetas apocalípticos. O início da atividade pública de Jesus envolve um conflito com Satan (Mc

1,21-28), no qual o exorcismo praticado por Jesus causa o embate acerca do ensinamento e

autoridade de Jesus. Outro texto é a controvérsia sobre Belzebu (Mc 3,22-30) e a resposta de

Jesus que trata do simbolismo do reino de Satan. No capítulo 4, quando os discípulos querem

451 “... después comenzará a revelarse el mesías... y la tierra producirá diez mil veces más sus frutos; en una vid habrá mil racimos, un racimo tendrá mil granos y un grano tendrá mil pepitas, que producirán cantidad de vino. Los que tienen hambre se saciarán en abundancia; y todos los días verán prodigios. De mí saldrán vientos para transportar todos los días el perfume de los frutos aromáticos y al final del día nubes que harán destilar el rocío fecundante. En todo momento caerán de lo alto las provisiones de maná; y ellos se alimentarán en aquellos años, pues han conocido el final de los tiempos”. Apud. SCHMITHALS, Walter (1994:150). 452 “El abrirá las puertas del paraíso, alejará la espada que amenazaba a Adán, y dará de comer a los santos del árbol de la vida”. Idem., p.150. 453 Ver: HORSLEY, Richard A. (2004). 454 Henri Desroches vai apontar três aspectos importantes na constituição de um movimento messiânico: a escolha de um personagem ou líder, a esperança de um reino e a definição de um tempo de mudança. Cf. DESROCHES, Henri (1985).

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saber sobre as parábolas, Jesus diz: “a vós foi dado o mistério do Reino de Deus”. O termo

“musth,rion“ (mistério) aparece em Dn 2, 19.27. 28. 29. 30. 47 traduzindo o termo hz"r'

(segredo, enigma). Para Horsley, a fator preponderante para designar o evangelho de Marcos

como sendo apocalíptico é a concentraçao de motivos apocalípticos em Mc 13 (o famoso

discurso escatológico de Jesus que tem paralelos em Lc e Mt) e que tem como pano de fundo o

livro de Daniel. As alusões apocalípticas aí presentes visa através da pregação e prática de

Jesus a restauração de Israel.455 E o livro de Daniel através da figura do “Filho do Homem” que

irá instaurar um novo império é sinal de esperança para as comunidades que esperam a parusia

do Filho do Homem para realizar o julgamento e fazer justiça.

4. O livro de Daniel e sua circulação nos Cristianismos

A apocalíptica traduziria um posicionamento alienado em relação à história é uma

opinião comumente difundida já faz algum tempo. Porém, a descoberta de textos que ficaram por

longo tempo soterrados e silenciados, juntamente com as tentativas de compreender a vida do

povo nos inícios das comunidades cristãs e nos ambientes em que foram escritos os

evangelhos, permitiram aos poucos perceber o quanto as expressões apocalípticas estão

intimamente relacionadas com as circunstâncias históricas nas quais se produziram parte do

grande acervo da literatura cristã. Evidentemente, não estamos querendo afirmar que os textos

da tradição cristã são apocalípticos, mas que em meio à crise e perseguição imperial, muitos

textos receberam uma coloração apocalíptica e escatológica.

A situação de crise presente nos cristianismos originários representou um campo fértil

para a circulação e divulgação de um grande conjunto de símbolos e imagens apocalípticas que

surgiram em ambientes similares. Nesta direção é perceptível a existência de um caráter colonial

da literatura apocalíptica, pelo simples fato de ela ser produto e se endereçar a situações e

455 HORSLEY, Richard A. The Kingdom of God and the Renewal of Israel. In: COLLINS, John Joseph (1998: 1, 304-307).

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crises provenientes do domínio de sucessivos impérios, particularmente o helenístico e o romano

sobre Judá. De certa maneira é neste contexto que se assentam as revelações apocalípticas do

livro de Daniel, bem como, algumas partes do 1 Enoque.

Nestas revelações a vitória sobre o domínio e/ou solução para a crise histórica se dará

através da intervenção divina que irá julgar o poder imperial e os dirigentes indignos e, com isso,

restaurar a vida do povo fiel. Também acontecerá a vingança daqueles que foram martirizados

pelo esforço em manter as antigas tradições. Três elementos vêm com força para os ambientes

cristãos (que estão presentes em Dn 10-12): derrota do poder opressor, restauração do povo e

vingança dos mártires. Vale salientar que o grau de iminência destas expectativas, obviamente,

vai variar de texto para texto, de comunidade para comunidade. A idéia do “Filho do Homem” e a

visão do trono presente no livro do Apocalipse tem suas raízes no livro das similitudes de 1

Enoque? Ou vem do sentido que é apresentado pelos evangelhos sinóticos? Ou de uma releitura

de Dn 7,13? Ou ainda, da figura humana que constitui na figura da glória de Deus na merkabah

da visão de Ez 1?

Comumente é sugerido que o atributo angélico do o[moion uio.n avnqrw,pou está

baseado no vn"a/ rb:ï de Dn 7,13. No entanto, é preciso considerar que esta imagem circulante

na conjuntura de crise e perseguição que as comunidades cristãs estavam enfrentando provém

de diferentes materiais e não só do livro de Daniel (mesmo que este livro tenha exercido uma

forte influência). Para Maurice Casey Apocalipse 14,14 não depende do livro de Daniel e que

“um como Filho do Homem” é uma figura Angélica.456 Talvez seja a intenção do autor (ou

autores) do livro do Apocalipse de descrever o Filho do Homem como uma representação de

Deus e não propriamente uma identificação com ele, na execução do seu julgamento. Com isso

a figura do Trono de Glória no qual será executado o julgamento tenha influências de 1 Enoque

62,2-16. Contudo, podemos dizer que a passagem do Filho do Homem no Apocalipse provém

456 Cf. CASEY, Maurice (1979: 148-149).

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inicialmente da concepção de que Jesus era amado e representado pelas comunidades cristãs

como sendo o Filho do Homem da tradição de Daniel. Ou seja, as diversas comunidades cristãs

produziram a sua releitura e/ou interpretação do texto de Daniel.

Mas ao transitar nos ambientes da tradição cristã somos levados a levar em conta uma

questão de fundo presente nas discussões histórico-exegéticas acerca da relação entre a

Tradição de Jesus e a tradição apocalíptica. A saber, a concepção de que a literatura

apocalíptica é obra de círculos letrados enquanto que Jesus e seus companheiros são parte do

campesinato analfabeto. Há quem aposte nas tentativas dos escribas (grupo letrado e elitista

produtores de uma tradição escrita) de fazerem aceitas nos grupos de camponeses as suas

tradições, visão de mundo, etc. Há também, quem aposte que aconteceu uma aproximação

provocada pela crise entre estes dois grupos.

O ambiente das comunidades cristãs é marcado por uma dinâmica escatológica na

ressurreição de Jesus e a sua vinda gloriosa (parusia), no entanto, como algo presente, se

configurando numa “escatologia antecipada”. A linguagem apocalíptica presente nos discursos

de Jesus (elaborado pelos evangelhos) utiliza as categorias de Reino de Deus em oposição ao

“reino de Satanás” e o “juízo divino” conectado com a “ressurreição dos mortos”. É preciso,

também, levar em conta que a visão de mundo subjacente nesta antecipação escatológica que

no mundo existem males e que, por isso, contradizem com o projeto do Reino. Tomando as

ações profético-curandeiras de Jesus nos evangelhos iremos perceber que neste contexto os

males estão associados às enfermidades, fome, pobreza, morte e outros problemas enfrentados

pelo povo e pelas comunidades cristãs. As perspectivas de uma possível saída da situação de

crise estão presentes nas ações de cura, bem como, nas atitudes acolhedoras, solidárias e de

abertura de Jesus e seus seguidores. Nesta perspectiva o juiz escatológico se faz presente no

próximo necessitado como podemos ler em Mt 25,31-46. Neste sentido encontramos dois

entendimentos da parusia que se confluem: a expectativa da vinda do Reino e a espera da volta

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vitoriosa de Jesus. Estes entendimentos, em determinado aspecto apontam para uma

desestabilização do poder do império, pois coloca a fragilidade em evidência. Desestabiliza os

interesses dos poderosos ao afirmar que “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os

últimos” (Mt 20,16).

Beltrán Villegas argumenta que “é possível que a atribuição a Jesus de ditos

escatológicos sobre o “Filho do homem” e a sua vinda tenha sido uma forma arcaica de

interpretar com categorias apocalípticas a dimensão escatológica da pessoa de Jesus”.457

Porém, é preciso levar em conta que por trás do discurso escatológico elaborado criativamente

pelas comunidades reside o desencantamento das tribulações, como um dos aspectos da

apocalíptica presente nos evangelhos e nos demais textos da Escritura Cristã (podemos conferir

nas palavras de alento na Carta de Paulo aos Tessalonicenses).

“Como é bem sabido, a apocalíptica foi uma literatura de crise, que surgiu de uma situação em que o povo de Deus carecia de todo poder político ou mundano e se via acossado pelos possuidores de tal poder, capazes de despregar contra si inclusive a violência física. Era tradicional desde os tempos arcaicos de Israel descrever as conjunturas críticas ou perigosas como um eventual regresso do caos primordial com perturbações de caráter cósmico, e, por conseguinte, atribuir-lhe a ação salvífica de Deus repercussões no céu e na terra; isto não está presente somente no relato do dilúvio, senão também nas tradições épicas sobre a batalha de Gabaón (Js 10, 12-14), no cântico de Débora (Jz 5,4-5; e ver Sl 68 (67), 7-8), e inclusive na ação de graças de um rei guerreiro (Sl 18 (17), 5-17) ou na súplica de um enfermo (Sl 69 (68), 2-3.15-16). Na literatura apocalíptica acontecem duas coisas importantes em torno a descrição com imaginação cósmica das tribulações do povo de Deus: por um lado, há uma evidente "desmesura" imaginativa (já anunciada por Ezequiel e que contém certos tópicos recorrentes), que, no NT, se pode ver no "Apocalipse sinóptico" (Mc 13 e paralelos), numa carta de Paulo (1 Tes 4, 15-17), na 2 Tes (2, 1-12), e principalmente no Apocalipse de João (passim); por outro lado – e isso é mais importante–, o desencadeamento das "tribulações" passa a ter o caráter de uma espécie de "elemento constitutivo" do advento escatológico. E este é o papel que desempenham tais "tribulações" nos textos do NT. As palavras que o autor dos Atos dos Apóstolos põe na boca de Barnabé e Paulo, resumem exatamente o pensamento dominante do NT: "Por

457 VILLEGAS M., Beltrán. 2000. El fin del mundo en el Nuevo Testamento. Teología y vida. Chile: Facultad de Teología: Pontificia Univesidad Católica de Chile, vol.41 n.1.

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muitas tribulações teremos que passar para entrar no Reino de Deus" (At 14, 22)”.458

Júlio Zabatiero e Josué Adam Lazier apresentam o eixo fé, esperança e caridade como

chave de leitura da mística apocalíptica que animava a comunidade de Tessalônica.459

Muitos lugares do Testamento cristão aparecem as marcas da linguagem apocalíptica,

de modo especial, no tocante às visões e revelações. Na narrativa do batismo de Jesus e na

conversão de Paulo, por exemplo, encontramos o aspecto visionário: em Marcos 1,9-11 nos

deparamos com a descrição do céu se abrindo e em Gálatas 1,12-16 Paulo utiliza uma imagem

típica dos círculos proféticos para descrever a sua experiência (cf. Jr 1,5 e Is 49,1).

Evidentemente que é necessário ter presente que os textos (enquanto memórias das

experiências) estão carregados de interpretações. Na dinâmica dos textos apocalípticos faz

sentir o jogo de interpretações tanto do autor quanto do leitor. Este aspecto coloca o visionário

em um lugar semelhante ao do receptor do texto. Assim, ambos se apresentam na posição de

intérpretes.

O livro do Apocalipse é um dos exemplos na literatura cristã primitiva que recolhe em

seu texto muitas das idéias e textos da apocalíptica judaica. A referência aos anjos, as vozes

458 “Como es bien sabido, la apocalíptica fue una literatura de crisis, surgida de una situación en que el pueblo de Dios carecía de todo poder político o mundano y se veía acosado por los poseedores de tal poder, capaces de desplegar en su contra incluso la violencia física. Era tradicional desde los tiempos arcaicos de Israel describir las coyunturas críticas o peligrosas como un eventual regreso del caos primordial con perturbaciones de carácter cósmico, y, por consiguiente, atribuirle a la acción salvífica de Dios repercusiones en el cielo y en la tierra; esto no está presente solo en el relato del diluvio, sino también en las tradiciones épicas sobre la batalla de Gabaón (Jos 10, 12-14), en el cántico de Débora (Jue 5,4-5; y ver S 68 <67>, 7-8), e incluso en la acción de gracias de un rey guerrero (S 18 <17>, 5-17) o en la súplica de un enfermo (S 69 <68>, 2-3.15-16). En la literatura apocalíptica suceden dos cosas importantes en torno a la descripción con imaginería cósmica de las tribulaciones del pueblo de Dios: por una parte, hay una evidente "desmesura" imaginativa (ya preludiada por Ezequiel y que contenía ciertos tópicos recurrentes), que, en el NT, se echa de ver en el "Apocalipsis sinóptico" (Mc 13 y paralelos), en una carta de Pablo (1 Tes 4, 15-17), en la 2 Tes (2, 1-12), y máximamente en el Apocalipsis joánico (passim); por otra parte –y eso es más importante–, el desencadenamiento de las "tribulaciones" pasa a tener el carácter de una especie de "elemento constitutivo" del advenimiento escatológico. Y este es el papel que desempeñan tales "tribulaciones" en los textos del NT. Las palabras que el autor de los Hechos de los Apóstoles pone en boca de Bernabé y Pablo, resumen exactamente el pensamiento dominante del NT: "Por muchas tribulaciones tenemos que pasar para entrar en el Reino de Dios" (Hch 14, 22)”. Idem. 459 ZABATIERO, Júlio Paulo Tavares e LAZIER, Josué Adam (1989: 3-10).

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divinas, a preocupação com a revelação das coisas ocultas. Podemos perguntar de que modo

e em que circunstâncias o livro de Daniel foi apropriado pela apocalíptica das comunidades

cristãs. O livro do Apocalipse é devedor do livro de Daniel seja na visão de “um como Filho do

Homem” (Ap 1) ou na visão na qual o império é descrito como besta (descrição dos impérios

como animais), além de todo o caráter de uma profecia do futuro ou descrição das coisas que

irão acontecer. Ou ainda na periodização da história e na pseudonímia.

“Es algo profundamente arraigado en los textos primeros del cristianismo, pues en los evangelios se muestra a Jesús identificando su triunfo último con el eterno imperio del celestial Hijo del Hombre, que ha de ocurrir tras la destrucción de la Bestia, que acaso represente el poder del Estado. El propio libro del Apocalipsis aborda el tema de la Bestia de Daniel y considera una instancia de la acción de ésta el ejercicio del poder por Roma en su propia época; el tiempo del vidente es considerado como momento crítico en la vida de la humanidad.”460

Porém, existem também diferenças: em Daniel temos o formato da descrição do

sonho-visão acompanhada da interpretação de um anjo, enquanto que no Apocalipse quase

que falta completamente, a não ser no capítulo 17, ao narrar que um dos anjos acompanha o

visionário e explica a visão da Babilônia. A mais sutil semelhança entre Dn 7 e Apoc 13 talvez

provém de uma releitura de Ez 1. Um aspecto relevante para se pensar a circulação do livro de

Daniel em meio às comunidades apocalípticas nos Cristianismos originários, está nos contos

irônicos e satíricos de Dn 1-6. Histórias de resistência do justo fiel que não se dobra aos

interesses e à sedução do império. No livro do Apocalipse se faz presente uma atitude de

enfrentamento e leitura critica quanto aos efeitos das ações do império. Aparece uma completa

rejeição ao poder e os efeitos da ação do império e, ao mesmo tempo, uma total confiança no

triunfo (vitória) de Deus e das suas testemunhas fiéis. Da mesma maneira que percebemos

uma dependência de Ap 13 e Dn 7 do texto de Ez 1, nos deparamos com 4 Esdras 11-13 e

Apocalipse que estão de acordo com as duas partes de Daniel 7 (os animais que sobem do

460 ROWLAND, Christopher. “Los que hemos llegado a los fines de los tiempos”: lo apocalíptico y la interpretación del Nuevo Testamento. In: BULL, Malcolm (org.). (2000: 54).

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mar) e a visão messiânica do Filho do Homem. A águia de 4Esd 12,11 tem correspondência

com o quarto animal de Daniel, ao passo que no Apocalipse a besta que surge do mar

incorpora todas as características dos animais de Daniel e 4 Esdras.

Considerando que a águia em 4 Ezra 12:11 corresponde ao quarto animal do livro de

Daniel, no livro do Apocalipse a besta que surge do mar (Ap 13) incorpora as características de

todos os animais descritos em Dn 7. As imagens de 4 Ezra 11-12 são mais complicadas.

Podemos quem sabe perceber alguma semelhança com Ap 17 no que se refere às expectativas

escatológicas e a espera de um reinado messiânico seguido por um novo tempo histórico (cf. 4

Esd 5,45 e 7,28-32). Também podemos perceber em Ap 20 a expectativa de um reinado

messiânico que irá preceder a visão de um novo céu e uma nova terra (Ap 21).

Numa leitura atenta do livro do Apocalipse logo nos daremos conta que estamos diante

de uma tradição visionária que recebe influências da profecia meditativa do livro de Ezequiel e

das narrativas de sonhos e visões do livro de Daniel. Isto demonstra o quanto as comunidades

produtoras e receptoras do livro do Apocalipse utilizaram as idéias apocalípticas e místicas da

tradição judaica. Olhando rapidamente o livro do Apocalipse não podemos negar o uso que se

faz de certos aspectos da profecia e de um conjunto de textos apocalípticos que circulavam em

meio às suas comunidades.

Conforme John Joseph Collins a visão da história presente nos textos apocalípticos, de

modo especial no livro de Daniel, gira em torno de uma total reviravolta social através da

apresentação de uma seqüência de quatro impérios mundiais que são suplantados por um reino

definitivo e duradouro de Deus. Estamos nos referindo a Dn 2 e 7. No sonho-visão de

Nabucodonosor de uma grande estátua representada pelos metais que serão destruídos por

uma “pedra sem mãos” que se transformará numa grande montanha. O texto nos informa que

esta montanha “representa um reino estabelecido por Deus que nunca será destruído ou deixado

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para outro povo”.461 Em Dn 7 estes reinos (Babilônia, Média, Pérsia e Grécia) representados por

animais são sujeitos ao julgamento divino do Filho do Homem e dos Santos do Altíssimo, que os

atira ao fogo.462 Para Collins este esquema analítico dos impérios mundiais é “revolucionário”.

O discurso de fim do mundo entre os cristianismos é marcado por duas vertentes: uma

que tenta expressar as expectativas de uma antecipação escatológica do reino e outra que

ressalta o caráter cristológico no movimento das comunidades cristãs.463 No tocante a uma

cristologia de exaltação da vitória de Jesus sobre as forças malignas, Luigi Schiavo apresenta a

narrativa da tentação de Jesus (Q 4,1-13) como um rico material que contém convergências,

concordâncias e dependências com a literatura apocalíptica canônica e apócrifa do Io século da

E.C.464 Em se tratando de um texto de batalha escatológica dentro do imaginário das primeiras

comunidades cristãs, pode-se intuir a partir de suas imagens e linguagem simbólica uma

proximidade com os movimentos apocalípticos judaicos do Io século, bem como, a compreensão

de muitos comentadores que o consideram uma espécie de midrash das narrativas de provações

do povo de Israel no deserto ou uma síntese das expectativas messiânicas do tempo de Jesus

assentadas na concepção de um combate divino. Há que ressaltar a figura do arcanjo Miguel

(“Quem como Deus”) definido como chefe militar que trará a libertação e salvação no tempo do

fim465. Além disso, os maskilim (sábios e fiéis piedosos) “resplandecerão, com o resplendor do

firmamento; e os que ensinam a muitos a justiça, hão de ser como as estrelas, por toda a

eternidade” (12,3). Este grupo representa os justos que foram perseguidos e mortos pelos

461 Cf. COLLINS, John Joseph. Temporalidade e política na literatura apocalíptica judaica. In: Oracula. v.1, n.2, São Bernardo do Campo: UMESP, 2005, pp.7-8. 462 Visão similar de um julgamento aos impérios encontra-se no Quarto Livro de Esdras. Porém, interpreta e dá ênfase no quarto animal como sendo o império romano. Conferir o trabalho de David Flusser sobre o esquema dos quatro impérios nos Oráculos Sibilinos. 463 Ver: VILLEGAS, Beltrán M. (2000). El fin del Mundo en el Nuevo Testamento. Teología y Vida. Vol. 41, n.1, Santiago, pp. 464 SCHIAVO, Luigi. A Apocalíptica Judaica e o Surgimento da Cristologia de Exaltação na Narrativa da Tentação de Jesus (Q 4,1-13). Oracula, v.1, n.1, São Bernardo do Campo: Umesp, 2005: 1-51. 465 “Nesse tempo, levantar-se-á Miguel, o grande Príncipe, que se conserva junto dos filhos do teu povo. Será um tempo de tal angústia que jamais terá havido até aquele tempo, desde que as nações existem. Mas nesse tempo o teu povo escapará, isto é, todos os que se encontrarem inscritos no livro” – Dn 12,1

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poderes estabelecidos, e que se transformarão em anjos e trarão o julgamento divino sobre os

dominadores.

Um aspecto importante que está presente na literatura apocalíptica cristã e que advém

da mitologia antiga reside no mito de combate. Varias relatos míticos de combate466

encontramos na religião e literatura dos povos antigos. No Livro de Daniel, em meio aos conflitos

com o domínio selêucida, vamos nos deparar com os confrontos entre o Filho do Homem e as

feras e, de modo especial, o anjo Miguel, que além de ter funções especiais é o protetor de

Israel, aquele que vigia o povo e o representa na assembléia dos céus (Cf. Dn 10-12). Anjo

guerreiro (recebe o qualificativo de um chefe de exército: ab'C'h; rf:) que lidera os anjos na

batalha em defesa do povo de Israel. Interessante que em 1 Enoque 89-90 aparece a figura de

um anjo protetor e defensor do povo que vai interceder em favor do povo perseguido, pedindo a

Deus justiça. No entanto, o livro de Enoque ressalta como função do Anjo Miguel como aquele

que vai restabelecer a justiça, a retidão e a moralidade, através do julgamento e destruição da

violência e da maldade e o zelo para com os justos (cf. 1 Enoque 10-11).

Porém, convém lembrar que a recepção de textos apocalípticos não é tão simples, pois

estamos num período em que aparece com força o conflito entre comunidades cristãs e o

judaísmo formativo ao redor dos anos 80 e, internamente, o choque entre dois modelos de

comunidades cristãs (simplificando evidentemente os conflitos entre as várias tendências

cristãs): um grupo representado pelas comunidades hierárquicas e que defendem a ortodoxia e

um outro por comunidades anti-hierárquicas e livres da prisão da ortodoxia. Podemos dizer que

estamos num ambiente marcado pelos conflitos entre heresias.467 Mesmo, o livro do Apocalipse

sendo reconhecido como um livro que alimenta a resistência e que exerceu influências nas

memórias de mártires nos cristianismos primitivos, recebeu forte oposição das comunidades

466 Por exemplo os combates entre Marduk e Tiamat (Mesopotâmia); Ahura Mazda e Angra Mainyu (Zoroastrismo); Indra e Vidra (Índia); Baal, Yam e Mot (Canaã); Javé, Leviatã e Raab (Israel/Judá). 467 Cf. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza (1992b: 35-46; 1994: 29-37)

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hierarquizadas. E, de modo especial, por ter livre circulação entre as comunidades gnósticas468,

resultou não só numa longa rejeição, mas foi considerado um livro suspeito. Imaginemos que

junto com o livro do Apocalipse tenha circulado os livros de Daniel, Enoque, Oráculos Sibilinos,

Testamento dos Doze Patriarcas, Apocalipse de Moisés e tantos outros que foram carimbados

como apócrifos (ou pior como deuterocanônicos) e que foram perseguidos como heresia.469 E

de certa maneira muitos textos que circulavam entre comunidades que sofriam oposição de

dentro470 ou foram totalmente rechaçados ou receberam uma acolhida pouco simpática da

“Grande Igreja”.471

Contudo, a literatura apocalíptica circulante no final do Io século E.C. canônica ou não

canônica vai exercer influências na dinâmica de movimentos milenaristas e nas concepções de

mundo, reinado de Deus, profecia ex-eventu, ressurreição, restauração, juízo final, entre outros

presentes nas comunidades cristãs primitivas. Muitas das idéias apocalípticas abordadas num

texto ou outro demonstram uma circulação e divulgação de temas comuns nas mais variadas

correntes do cristianismo. A Grande Igreja não passa de uma heresia que saiu vitoriosa frente às

outras heresias472.

468 Muitos definem o gnosticismo presente no interior das comunidades cristãs a partir de seu caráter doutrinal e filosófico. Por exemplo, eis a definição de Cláudio Moreschini e Enrico Morelli: “o gnosticismo insere a primitiva reflexão cristã numa estrutura de pensamento sistemático cujas linhas mestras provêm largamente de tradições intelectuais e religiosas anteriores e estranhas ao próprio cristianismo... O aspecto característico da gnose é o interesse por uma salvação do ser humano que é posta em dependência de um conhecimento reservado a poucos eleitos” (1996: 243-244). 469 Para Elaine Pagels os conflitos entre os grupos cristãos no IIo século era menos por doutrina que por poder, pois ortodoxia e heresia foram se definindo no jogo de forças tal como ele se foi dando com o passar do tempo. In: Os evangelhos gnósticos. Um exemplo aparece na trajetória cheia de percalços do evangelho das comunidades joaninas. Ver: VASCONCELLOS, Pedro Lima (2002: 121-144). 470Termo utilizado na leitura sociológica de Hans-Josef Klauck sobre os conflitos nas comunidades joaninas: “Opositores de dentro: tratamento dos separatistas na primeira epístola de João”. Concilium. no 220, Petrópolis: Editora Vozes, 1988, pp.54-63. 471 Este é um conceito associado às pesquisas sobre o cristianismo desenvolvidas desde o século XIX. Para alguns simplesmente é uma expressão que dá conta de ler o processo de formação das estruturas das igrejas apostólicas. Paulo Nogueira vai dizer que esta expressão indica o “processo de uniformização teológica, de uma opção por uma ética e uma práxis política mais harmônica com a sociedade e da exclusão da autoridade carismática e feminina em favor de cargos hierárquicos” que foram sendo travados no seio do cristianismo no final do primeiro século. NOGUEIRA, Paulo augusto de Souza (1992b:36). 472 NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza, OTTERMANN, Monika e FILHO, José Adriano (2002: 178): “Se tivéssemos apenas os paralelos do Apocalipse de João, poderíamos dar menos valor para as

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Movimentos considerados heréticos no IIo século, como o valentiano e o montanismo,

irão representar uma outra prática cristã no seio dos cristianismos em conflito com o cristianismo

hegemônico (a “Grande Igreja”)473. Montano que dá inicio a um movimento junto com duas

profetisas, Priscila e Maximila, provocou a ira dos defensores da ortodoxia ao apresentar uma

leitura do evangelho de João e por fazer circular idéias apocalípticas (entre as quais podemos

destacar o milenarismo). Nestes ambientes a leitura do Apocalipse e as releituras do livro de

Daniel representam o perfil daquelas comunidades cristãs que acabavam “remando contra a

maré” ou caminhando na contramão dos interesses da hierarquia.474 O montanismo representou

um espinho para o poder eclesiástico e conduziu a um crescimento das suspeitas da Igreja

contra os textos apocalípticos e contra o evangelho da comunidade joanina. Assim, o livro de

Daniel com a sua leitura contra os impérios (projeta a queda da estátua e a morte dos animais e

proclama o surgimento de um monte e de um reino que não terá fim) não deve ter sido livro

daquelas comunidades que se inseriam no mundo da época através de uma posição

acomodada. Por certo o livro de Daniel e outros tantos textos apocalípticos não fizeram parte do

acervo de comunidades que desenvolveram um modelo de cristianismo socialmente aceitável e

politicamente viável para o império romano.

Contudo, é preciso ressaltar que em meio a um cristianismo adverso ao império foi

sendo produzida uma hermenêutica dos textos visando a construção de uma base ética e

eclesial para a complicada conjuntura das comunidades cristãs, principalmente aquelas que

afirmações na VisIs, considerando este tipo de leitura marginal, quase ‘herética’, e considerar a entrada do Apocalipse de João no cânon como um gesto de boa vontade dirigido àqueles círculos ‘exóticos’ de cristãos que insistiram em expressar a sua fé através destes tipos de manifestações. Mas as experiências místicas da viagem ao céu e uma boa parte dos ensinamentos apresentados nela proliferam também nas experiências e nos ensinamentos do próprio apóstolo Paulo, bem como nas cartas dêutero-paulinas (escritas por discípulos dele), nas Cartas de Pedro e na Carta aos Hebreus, além do Evangelho de João”. 473 Cf. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza (1992b: 35-46). 474 “No Apocalipse o império é visto como o mal maior, como o espaço de atuação de satanás por excelencia. Roma é a soma das bestas de Daniel (13,1-2), é a grande prostituta que se alia com os reis da terra e que se embebeda com o sangue dos mártires (17 e 18). Para João a chegada do reino de Deus é celebrada quando Roma/Babilônia for aniquilada, ela é o grande empecilho para que Deus estabeleça a sua justiça no mundo (19,1-2). A política de enfrentamento do Apocalipse não permite qualquer planejamento da vida dos seus leitores na sociedade”. Cf. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza (1994: 34).

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estavam na “periferia do mundo”, ou melhor dizendo, aquelas que sofriam perseguição e

exclusão do poder político, econômico e eclesial. Imaginemos o quanto estas comunidades não

produziram uma leitura na qual se opõe: a estátua e a pedra que se transforma num monte, os

animais e o Filho do Homem, a grande prostituta e a Jerusalém celeste. Com certeza, muitas

leituras foram produzidas por várias comunidades e movimentos de resistência, que ficaram por

anos escondidas (como por exemplo o rico material encontrado em Nag Hammadi) ou que

desapareceram e deixaram apenas alguns vestígios.

No processo de enfrentamento às comunidades que interpretavam livremente os textos

bíblicos e produziam aos olhos da hierarquia leituras suspeitas e heréticas, é que aos poucos a

Grande Igreja busca evitar as múltiplas interpretações impondo a leitura dos textos bíblicos

acompanhada com a leitura da tradição e do magistério. É o que percebemos nas controvérsias

da interpretação da Bíblia em Santo Agostinho, São Jerônimo e tantos que transmitiram os

interesses da Grande Igreja.

Na tentativa de reconstruir a trajetória do livro de Daniel ou do Apocalipse (entre os

textos canônicos) e tantos apocalipses rejeitados pelo cânon torna-se difícil e, ao mesmo tempo,

hipotética. Assim sendo, do IIIo século vamos encontrar aqui e acolá a presença e a influência da

literatura apocalíptica na construção de idéias milenaristas e messiânicas no contexto de uma

Igreja dividida. A espera da ressurreição e do milênio sob o reinado de Cristo é a base

importante da escatologia neste período. A formação de comunidades apocalípticas se insere

num grande fenômeno religioso e enquanto tal vai ser fortemente rebatido pela Grande Igreja,

nos tempos áureos da paz constantiniana.

Eusébio de Cesaréia na sua História Eclesiástica ao tratar das heresias vai dizer o

seguinte acerca da interpretação de Cerinto, que se tornou chefe de outra heresia:

“Assegurava que após a ressurreição o reino de Cristo será terrestre e que a carne, vivendo novamente em Jerusalém será escrava das paixões e dos prazeres. E como era inimigo das Escrituras de Deus, afirmava no intuito de

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enganar, que haverá mil anos de festa nupcial... E como ele era sensual e completamente carnal, sonhava que este reino consistiria no que ele ambicionava: satisfação do ventre e da parte inferior, isto é, alimento, bebida, prazer carnal e também realidades que dariam aspecto mais honroso a estes prazeres: festas sacrifícios, imolação de vítimas” (Livro III, 28).475

Irineu de Lião no seu livro Contra as Heresias vai afirmar que:

“alguns se deixaram induzir ao erro por causa de discurso herético e ignoram as disposições de Deus e o mistério da ressurreição dos justos e do reino que será o prelúdio da incorruptibilidade – reino pelo qual os que serão julgados dignos se acostumarão paulatinamente a possuir Deus – , é necessário dizer sobre isso que os justos, ressuscitando, à aparição de Deus, nesta criação renovada, primeiramente receberão a herança que Deus prometeu aos pais e reinarão nela, e somente depois se realizará o juízo de todos os homens” (Livro V, 32,1).476

Irineu reúne um conjunto de textos com um forte cunho de promessas para sustentar os

seus ataques àqueles que eram condenados por suas heresias. Na sua polêmica contra os

gnósticos vai girar em torno da “ressurreição dos justos” que foi colocada em dúvida pelas

interpretações alegóricas e espiritualizantes dos textos de promessas. Por isso, conclui dizendo:

“E tudo isto não pode ser interpretado alegoricamente, mas se deve crer tudo verdadeiro, certo e

real, realizado por Deus para a alegria dos homens justos”.477

Porém, as idéias escatológicas e os discursos apocalípticos de muitas comunidades

encontrarão uma forte contraposição da escola exegética Alexandrina (Clemente, Orígenes,

Dionísio, Dídimo), a qual tem uma forte tendência apologética. Porém, as idéias escatológicas e

os discursos apocalípticos de muitas comunidades encontrarão uma forte contraposição da

escola exegética Alexandrina (Clemente, Orígenes, Dionísio, Dídimo) com sua tendência

apologética. Nesta perspectiva busca-se convencer os oponentes a abandonarem (renunciar) as

suas idéias. Orígenes com seu método exegético vai buscar na Bíblia o seu sentido espiritual ou

alegórico, reconhecendo que nem todo texto tem um significado literal. 475 EUSÉBIO, Bispo de Cesaréia. 2000. História Eclesiástica. São Paulo: Paulus (Coleção Patrística), p.152. 476 Irineu de Lião. 1995. Contra as heresias. Denúncia e refutação da falsa gnose. São Paulo: Paulus, p.603. 477 Idem., p.616.

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Daí até chegarmos em Agostinho que foi chamado de “liquidificador do milenarismo

cristão primitivo”478 Por exemplo, a sua interpretação de Mt 24-25 vai de cheio rebater a

contagem cronológica apocalíptica e milenarista. Santo Agostinho representa a dinâmica de um

certo esfriamento e congelamento das idéias apocalípticas e milenaristas. As esperanças

escatológico-apocalípticas tiveram, por sua vez, maior divulgação no Império romano-cristão do

Oriente, enquanto que no Ocidente cristão bárbaro vai circular o mito do Último Imperador do

Mundo, no qual coincide o final da história do mundo com a figura messiânica de um imperador

que reina sobre o mundo e sobre a Igreja.479 A tradição escatológica e apocalíptica presente em

texto conhecidos como “sibilinas cristãs” demonstra que uma boa parte dos apocalipses

continuaram sobrevivendo até o século X de maneira marginal. Conforme Delemeau a mais

antiga dessas sibilinas foi a Tiburtina, redigida no século IV.480

“A tradição sibilina ajudou assim a fixar nos espíritos a figura do Anticristo. Esta amalgamou elementos vindos essencialmente de três fontes: a) o livro de Daniel: ‘Ele proferirá insultos contra o Altíssimo’ (7,25); ‘Ele [o rei mau] se exaltará e se elevará acima de todo Deus, e contra o Deus dos deuses dirá coisas espantosas. Será bem-sucedido até consumir-se a cólera’ (11,36); b) a segunda epístola aos tessalonicenses: ‘Primeiro deve vir a apostasia e manifestar-se o Homem da impiedade, o Filho da perdição, aquele que se levanta contra tudo que chamam Deus ou adoram, a ponto de sentar-se em pessoa no templo de Deus e de proclamar que é Deus’ (2,3-4); c) o Apocalipse, no qual o nome do Anticristo não aparece mas onde se lê: ‘foi lhe dado fazer guerra aos santos e vence-los, e foi-lhe dado o poder sobre toda tribo, povo, língua e naçao’ (13,7). O Anticristo, gigante do mal, é assim descrito como o bode de dois chifres do livro de Daniel que ‘faz cair por terra [...] uma parte das estrelas’ que ele espezinha (8,10), e como o Dragão ‘vermelho-fogo’ do Apocalipse ‘que sobe do abismo’ (11,7) e que varrerá ‘um terço das estrelas do céu’ e as precipitará na terra (12,4)”.481

Tudo indica que as profecias sibilinas ao redor do mito do imperador dos últimos dias

tenham inspirado as diferentes cruzadas dos pobres, tanto no seguimento a Pedro, o Eremita e a

outros que guiavam o povo pobre a uma volta às origens. Estamos no momento áureo dos

478 H. Desroche. Apud. DELEMEAU, Jean (1997: 32). 479 Cf. RUSCONI, Roberto. 2003. La historia del fin: cristianismo y milenarismo. Teología y Vida, Vol. XLIV, pp. 209-220. 480 DELEMEAU, Jean (1997: 32). 481 Idem., pp.35-36.

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movimentos que partem rumo à Terra Santa (Jerusalém) na expectativa de estabelecer o

reinado de Cristo na terra.

Joaquim de Fiore, nos seus dois comentários do livro do Apocalipse482, se projetou em

muitas das aspirações da humanidade ao longo dos séculos. Suas convicções religiosas e

teológicas mesmo sofrendo deturpações se fazem presente no imaginário de movimentos

cristãos. A sua leitura da Escritura tem ecos na América colonizada através da teologia e do

imaginário milenarista de Manuel Lacunza, Antônio Vieira, entre outros .

Na circulação das leituras apocalípticas desde a construção de uma imagem de Jesus

nos inícios dos Cristianismos às leituras dos representantes na construção de um imaginário

apocalíptico, escatológico e milenarista a chegar no Novo Mundo.483

482 “Joaquín de Fiore comenzó, hacia 1181-1183, cuando se retiró a la abadía de Casamavi, dos comentarios al Apocalipsis, que no estarían terminados hasta 1199. Su meditación sobre el Apocalipsis fue, pues, un trabajo lento y muy laborioso, al que dedicó casi un tercio de su vida. Ambos comentarios (uno corto y otro largo) fueron editados conjuntamente por las Juntas de Venecia, en 1527, con el título único de Expositio in Apocalypsim, figurando el comentario corto como introducción al comentario más extenso. En esa edición veneciana, el corto se titula: Praephatio sive liber introductorius in expositionem Apocalipsis [sic]. El segundo: In expositione Apocalipsis [sic].” SARANYANA, Josep Ignasi (2003: 225). 483 Ver: PROSPERI, Adriano (2003: 196-208)

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TERCEIRA PARTE:

RECEPÇÃO DO LIVRO DE DANIEL NA AMÉRICA COLONIZADA.

EVOCAÇÃO DE HERESIAS

A Bíblia chega à América com os colonizadores espanhóis e portugueses de várias

maneiras e por diferentes caminhos. Evidentemente que a Bíblia é um livro enorme e é

transmitido segundo a dinâmica do catolicismo colonial ou da cristandade por um viés

sacramental e litúrgico. Na sombra da espada vem a teologia da cruz e a evangelização e no

lançar dos chicotes e açoites, a teologia da servidão484. Nesta direção a Bíblia consolida-se

como livro da moralidade e da submissão social.

No entanto, “a Bíblia pode significar coisas diferentes para pessoas diferentes em

diferentes épocas e circunstancias”.485 Porém, uma coisa é a Bíblia ser traduzida a partir de uma

língua que apenas alguns conseguiam ler e entender, outra é ser entendida e lida por fiéis

alfabetizados e outra ainda, ser entendida pela boca e leitura do pregador. Assim, a Bíblia na

América por muito tempo foi instrumento dos detentores do poder religioso e da palavra de Deus,

que só chegava aos fiéis pelo filtro sacramental e homilético. Mas, como ela pode significar

coisas diferentes para pessoas diferentes em variados lugares sociais, não podemos esquecer

da tradição, leitura e transmissão da Bíblia pelo viés das heresias. A Bíblia latina era, por assim

dizer, propriedade exclusiva dos círculos eruditos; enquanto que as histórias da Bíblia e as

explicações e interpretações não autorizadas circulavam e eram transmitidas ao povo. No

484 Ver RAMOS, Antônio Dari (2001: 92): “A cruz era um símbolo cristão da vitória de Deus sobre os ‘infiéis’. É por esse motivo que foi posta como um signo de identidade dos cristãos. Ela acompanhava o missionário desde o momento da implantação da redução”. 485 Cf. HILL, Christopher (2003: 26).

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conflito entre ortodoxia e heresia transparece o conflito entre os pregadores oficiais e os

ouvintes.

Os colonizadores quando chegaram ao Novo Mundo, se defrontam com uma realidade

que os enchia de admiração e descreviam o que viam usando imagens da Bíblia:

“Porque vestidos, sobejam-lhes os de Adão e Eva; os campos, os bosques, os rios, lhes dão de graça o comer e beber [...] Onde lhes anoitece, ali têm facilmente casa certa, fogo e cama; porque se a noite é chuvosa, fincam na terra quatro paus, e nestes armam outros por teto, com um modo de vime, a que chamam cipós, e cobrem-no de folhas, ou palmas; de leito servem suas redes, que armam ou de tronco a tronco, ou de pau a pau (os que as têm). O fogo tiram de certos paus, um mole, e outro duro que roçam a força um com o outro, e com o movimento concebem o calor, e com o calor fogo; e feito isto comem, bebem e dormem contentes”.486

Em termos teológicos e eclesiásticos, o período colonial ou da cristandade colonial (de

modo especial no Brasil), é marcado por três fatores: primeiro o interesse lusitano é estritamente

econômico (mercantilismo, sistema latifundiário escravista e organização de uma sociedade de

senhores e escravos); segundo o modelo eclesiástico era preciso estabelecer uma nação

católica487 ( a Terra de Santa Cruz devia constituir-se como uma Cristandade católica); e,

terceiro, todo o poder e controle religioso passava pelas mãos do rei (escolha de bispos,

determinação de dioceses e paróquias, construção de conventos, estabelecimento do número de

religiosos e a constituição de um ministério do Culto)488.

Nesta direção, aparecem três teologias distintas: a teologia da Cristandade, a teologia

do desterro e a teologia da paixão. Perpassa nestas teologias o princípio de que fora da Igreja

não existe salvação e conseqüentemente o único caminho de salvação está na Cristandade

luso-brasileira. A igreja passa a ser o povo escolhido por Deus e, por isso, é preciso sujeitar os

pagãos (índios que não têm fé nem alma).

486 VASCONCELOS, Simão de. Apud. AZZI, Riolando (2001: 17). 487 Cf. PRIEN, Hans-Jüergen (1985: 248). A América Latina constituía neste momento um terreno mais propicio para o modelo de Igreja tridentino: “Con la recepción de las disposiciones tridentinas por medio de las monarquias ibéricas, surgió en América latina una sociedad religiosament más uniforme que la que había existido en la Europa medieval. Con la ausencia de herejías, se formó un catolicismo cultural, al que bastava el mantimiento de las formas exteriores de religiosidad.” 488 Cf. AZZI. Riolando. La teología en el Brasil. Consideraciones históricas. In: AAVV (1981: 41-79).

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“Dentro de ese contexto, los indios eran considerados moros o gentiles, enemigos de la fe y los franceses y holandeses como herejes luteranos o calvinistas. Vencerlos y expulsarlos era para los portugueses una misión política y religiosa a la vez”.489

No contexto de uma teologia e leitura da Bíblia dos dominadores para os dominados

aparecem algumas vozes dissonantes (pelo menos em certos aspectos) com relação à

Cristandade e seus pregadores e, de modo especial, estarão afinados com uma dimensão

milenarista e messiânica. Do milenarismo português (marcado pelas correntes vindas do

Pseudo-Metódio490, do Joaquimismo491 e as convicções de que o fim do mundo não estava

489 Idem., p.45. 490 Cf. BESSELAAR, José van den (2002: 348-354): São Metódio, bispo de Olimpo e de uma cidade vizinha chamada Pátara (na Lícia) e morreu mártir na cidade de Cálcide da Celessíria sob o poder de Diocleciano (311/312). Escrever tratados dogmáticos e ascéticos em forma de diálogos. A sua obra mais famosa foi Simpósio. É um autor equilibrado que se empenhou em manter o meio-termo entre história e alegoria. No final do Séc VII aparece uma história apocalíptica atribuída a São Metódio, que vai da criação de Adão e Eva até o fim do mundo. O que destaca-se desta história é a sua descrição dos Impérios de que fala Daniel e que teriam suas raízes históricas nos quatro filhos de Noé. E o mais famoso destes imperadores foi Alexandre Magno, fundador do Império Romano. O seu texto que foi objeto de inúmeras revisões e redações. No texto Esperanças de Portugal, Vieira faz menção de ter consultado na Biblioteca Antiga dos Santos Padres a obra de São Metódio e, que, aliás, era também uma referência para os sebastianistas. Um das frases do texto de Pseudo-Metódio que se refere ao “despertar de um Rei com grande furor, como de vinho, a quem os homens tinham por morto. Este irá sobre os filhos de Ismael do Mar de Etiópia” é utilizada por Manuel Bocarro, pelos sebastianistas e por Antônio Vieira. Além disso, vale lembrar que Vieira faz várias menções a São Metódio (Defesa perante o Tribunal do Santo Oficio (Tomo I, pp.205-206, 218, 324 e Tomo II, p.16; Defesa do Quinto Império, Cartas), principalmente porque suas palavras tornaram-se viciadas nos cartapácios dos sebastianistas. Tudo indica que Vieira estava por dentro das controvérsias ao redor do texto de São Metódio. Eis como aparece a leitura, correção e interpretação de Vieira na Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício (In: CIDADE, Hernani. 1957: 206): “Ouve quem reparou na palavra quasi, dizendo que se não podia entender delRey Dom João, pois não he quasi morto senão verdadeiramente morto. Assy interpretão as couzas os que as tomão mais pello sonido que pello sentido. Quasi alli quer dizer utpote, assy como no texto – vidimus gloriam ejus quasi Unigeniti a Patre, onde o quasi não quer dizer, quasi Unigenito, senão cono verdadeiro Unigenito. De maneira que vem a ser o sentido de S. Methodio: que era reputado como verdadeiramente morto, & por isso estimado como inútil, assy como o são os mortos, que não prestão nem servem para cousa alguma, quanto mais para huma empreza tam grande. E daqui mesmo se confirma a verdade deste sentido; porque do quasi mortuum não se segue bem o inutilem esse, pois sabemos que muitos depois de quasi mortos forão muito uteis & prestarão para muito. Exemplo seja o mesmo Rey Dom João, que antes de sua restituição esteve quasi morto de huma febre malina & depois de recebidos os sacramentos, disse a Deos: Si populo tuo sum necessarius non recusolaborem. E este quasi morto foy o libertador do Reyno. Ezechias, depois de quasi morto, fez grandes acçoens, & Alexandre, depois de quasi morto, acquirio o nome de Magno & sogeitou o Mundo. Assy que ElRey Dom João hoje está morto na realidade, & como morto na opinião , porque cuidão os homens delle o mesmo que dos outros mortos, isto he, que não pode ser de utilidade nem de proveito. E este he o sentido das palavras de S. Methodio, posto que não seja elle o sogeito de quem o santo falle. Quem quiser mais prova deste veja os comentários de Ribera sobre aquellas palavras do Apocalypse – Agnum statem quasi occisum”. 491 Veja as notas sobre Joaquim de Fiori em: DELUMEAU, Jean (1997: 40-49) e BESSELAAR, José van den (2002: 429-446). Vieira tinha uma grande veneração pelos textos de Joaquim de Fiori e em cartas a Dom Rodrigo de Meneses, pede que sejam enviadas as profecias de Joaquim, pois as considerava úteis para a elaboração da História do Futuro. Numa das cartas diz assium: “Beijo a mão a V.S.a pelos

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distante492) ao milenarismo da América Ibérica na qual podemos ressaltar os sonhos do rei

Manuel, o Venturoso; as profecias de Bandarra e o rei Encoberto; do Sebastianismo ao

milenarismo de Antônio Vieira; a escatologia de Cristóvão Colombo e Arnauld de Villeneuve; e

ainda, Frei Juan de Guadalupe; Frei Toribio Motolinia; Frei Jerônimo de Mendieta493 e Francisco

de la Cruz entre muitos que transmitiram esperanças escatológicas de mudança e leram a partir

dos pontos de vista e posições políticas os textos apocalípticos.

Vamos nos ater à leitura e exegese que o Padre Antônio Vieira, da Companhia de

Jesus, produziu sobre o livro de Daniel.

fragmentos de Santo Isidoro. Também me chegou, quase no mesmo tempo, o livro do Abade Joaquim, que estimei quanto não sei escrever a V. S .a, porque vêm no mesmo livro obras várias de outros autores daquele tempo, que eu tinha curiosidade de ver, e por não me parecer que se podiam achar, deixava de fazer diligências por elas.” 492 Cf. DELUMEAU, Jean (1997: 176-215) 493 Eis um dos textos críticos de Mendieta: “Si los españoles cuando conquistaron á los índios pretendian dejar-los en su infidelidad y idolatria en que los hallaron envueltos, bien caía el intitularse cristianos para diferenciarse de los que no lo habían de ser. Pero si era su intento traer á los índios al conocimiento y confesión de la fe de nuestro Señor Jesucristo, y á que fuesen cristianos, como ahora lo son, no debieran entrar con este renombre, sino con el de su nación de españoles, y no afrentarse sino antes gloriarse de él, y juntamente pudieran añadir que eran mensajeros de un solo y poderosísimo Dios, que á todos nos crió, y venian á dárselo á conocer, pues no lo conocian, como yo he aconsejado lo hagan los que ahora van al descubrimiento que llaman del Nuevo México.[...] Quién dubda sino que haciendo visto y viendo los indios (como ven cada día) muchos españoles de muy mala vida y costumbres, y que sin respeto de alguna caridad ó projimidad, sin propósito alguno los aperrean y maltratan, y les toman sus hijas y mujeres, y por fuerza les quitan lo que tienen y hacen otros semejantes insultos, y ven que á estos tales los llaman cristianos, dirá el indio con mucha ocasión y razón: "Si á estos llamais cristianos, viviendo como viven y haciendo lo que hacen, yo me quiero ser indio como me llamais, y no quiero ser cristiano.”

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CAPÍTULO 5:

A LEITURA E EXEGESE DE ANTÔNIO VIEIRA

Padre Antônio Vieira (1608-1697)494 nasceu em Lisboa no dia 06 de fevereiro e cedo

veio para o Brasil (Bahia, 1614)495. Parece que seu pai foi trabalhar como escrivão. Estudou em

colégio jesuíta (fundado em 1590) que zelava pelo princípio da Ratio Studiorum, isto é, tinha

como pilares o estudo da História, da Retórica, da Poética e da Filosofia. E aos 15 anos ingressa

na Companhia de Jesus. Segundo Hermisten Maia Pereira da Costa, Vieira foge de casa e é

acolhido na Companhia de Jesus pelo padre-reitor Fernão Cardim (que convivera com José de

Anchieta).496 Contradizendo-o, Aníbal Pinto de Castro diz que Vieira ingressa na milícia inaciana

depois de ser observado, avaliado e atraído pelos seus professores:

“(...) desde cedo, a agudíssima inteligência do jovem Vieira, a sua insaciável curiosidade, a sua extraordinária memória, a sua vertiginosa capacidade de raciocínio e de construção lógica, a facilidade e elegância da sua expressão e a sua piedade se impuseram de tal maneira à observação dos professores que logo lhes sorriu o projecto de o atraírem aos ideais da milícia inaciana”.497

Da experiência de noviciado junto à Companhia de Jesus (Jesuítas), Aníbal Pinto de

Castro faz a seguinte anotação:

“(...) pela primeira vez, de maneira completa e integrada, o cenário e a matéria, onde a sua vontade, a sua imaginação, a sua sensibilidade e o seu gosto pela acção encontravam vasto e fértil campo de exercício, modelando assim as

494 Encontramos muitas biografias sobre o Padre Antônio Vieira: vale citar, entre outros, João Lúcio de Azevedo. Historia de Antonio Vieira. Com factos e documentos novos. 2 Tomos (1918 e 1921) e Luís Gómez Palacín. Vieira: Entre o Reino Imperfeito e o Reino Consumado. São Paulo: Edições Loyola, 1998. 495 “Do Reino saíra este, para a Bahia, aos seis anos de idade, e entre nós permaneceu até aos 33, quando tornou a Portugal, já amadurecido na idade e no engenho. De modo que aqui transcorreu o período agudo e verdadeiramente decisivo de sua formação espiritual”. HOLANDA, Sérgio Buarque de (1996: 323). 496 COSTA, Hermisten Maia Pereira da (1997: 1). 497 CASTRO, Aníbal Pinto de. António Vieira – uma síntese do Barroco Luso-Brasileiro. Apud. PIRES, Alves (1998: 265).

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linhas essenciais da sua personalidade, ao mesmo tempo que o estudo e a meditação lhe davam uma consciência mais perfeita das verdades da Fé, e a prática quotidiana dos preceitos da Regra Inaciana lhe afinava o sentido da disciplina, lhe aperfeiçoava o culto da obediência e lhe forjava a capacidade de conciliar os ditames dessas exigências básicas do comportamento do jesuíta com energias por vezes tão difíceis de dominar, do seu temperamento”.498

Vieira, mestre incontestável na arte da palavra, pelo ritmo, cadência, ajustamento das

expressões e pela ordenação do pensamento, ainda hoje desperta entusiasmo em muitos, a

ponto de ser considerado o maior pregador do século dezessete e patrimônio de dois mundos.

No entanto, as suas pregações são vistas sob dois enfoques: de um lado, está o combate aos

erros e desatinos e o estímulo à virtude cristã e, do outro, representa as ações de um velho

retórico que queria inculcar idéias obsoletas e convocar a um moralismo peremptório.499

No entanto, a sua figura histórica sempre foi controvertida. André de Barros (1746) o

descreve como jesuíta modelo, santo e dedicado; em contrapartida, Francisco Alexandre Lobo

(1826), o descreve como um homem vaidoso e ambicioso.500

Para Luís Verney:

“Em português, as Cartas do P. Vieira, tirando algumas que degeneram em sermão, podem-se ler para o estilo simples. E estas são as melhores obras do dito Religioso (...) O P. Vieira teve mui bom talento, grande facilidade para se explicar, falou mui bem a sua língua, e nas suas cartas é autor que se pode ler com gosto e utilidade. Quanto aos sermões e orações, deixou-se arrebatar do estilo do seu tempo (…) Nos seus sermões não achará V. P. artifício algum retórico, nem uma eloquência que persuada. (…) São daquelas teias de aranha, bonitas para se observarem, mas que não prendem ninguém.”501

Tomando, História do Futuro, Verney vai dizer o seguinte: “ainda que fosse verdade que

as conquistas feitas estivessem tão distintamente profetizadas na Sagrada Escritura, e depois do

498 Idem., p.266. 499 Ver MELO, Gladstone Chaves de (1997: 267). 500 Cf. Eduardo Hoornaert. Teología y acción pastoral en Antonio Vieira SJ: 1652-1661. In: RICHARD, Pablo (1981: 165). 501 Luís Verney. Apud. LOURENÇO, Helena. A negação da Retórica do P. António Vieira no Verdadeiro Método de Estudar de Luís Verney – contributos para uma (re) leitura da VI Carta. Retirado na Internet no dia 29/04/2005, do site: http://www.fl.ul.pt/eventos/congresso_retorica/papers_aceites.htm

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sucesso se entendessem, fica em pé a dificuldade de tirar da Escritura as conquistas futuras

deste novo Imperador.”502 A maior alfinetada de Verney contra Vieira é a seguinte:

“O pior é que, pela maior parte, funda-se em palavrinhas da Vulgata. E este é mui mau modo de interpretar, porque, não tendo Deus falado em Latim, mas em Hebraico, Caldaico e alguma cousa em grego, é necessário saber estas línguas para alcançar a verdadeira inteligência do original. Sem estas preparações, nenhum intérprete se mete a dizer cousas novas, mostrando a experiência que comummente se enganam e só podem dizer subtilezas pouco sofríveis”.503

Para outros, Antônio Vieira foi um político (Hernani Cidade: 1955), missionário (Maxime

Haubert: 1964), pregador (Luis Gonzaga Cabral: 1901) e teólogo (Raymond Cantel: 1960). E

Para José van den Besselaar, Vieira foi um grande praticante da Palavra do Evangelho; porém,

não como um ermitão, mas, como alguém que saia a pregar e transmitir a palavra. Seja nos seus

discursos, seja por meio da sua pena:

“Era um autor activo e militante que pegava na pena para fazer propaganda das suas idéias, para interferir no mundo e para combater as opiniões que considerava nefastas à sociedade em que vivia. A palavra e a escrita eram para ele, uma poderosa alavanca para levantar as massas inertes, mostrando-lhes o caminho para um futuro menos rotineiro e mais humano”.504

Na opinião de Jacqueline Hermann, Vieira e os seus escritos são de suma

importância para entender o sebastianismo:

“Jesuíta ilustre, exemplo da mais fina oratória barroca, conhecedor dos sertões brasileiros, dos palácios e dos cárceres da Inquisição, Vieira formulou nada menos que um sistema profético que predizia a fundação do Quinto Império do Mundo liderado por d. João IV. Leitor e defensor de Bandarra como profeta português, a formulação de Antônio Vieira fez do herdeiro dos Bragança o Encoberto esperado, operando a transfiguração sebastianista já iniciada por Manuel Bocarro”.505

502 Idem. 503 Luís Verney. Apud. BESSELAAR, José van den (1981: 88) 504 Cf. BESSELAAR, José van den (1981: 9). 505Cf. HERMANN, Jacqueline (1998: 21).

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Antônio Vieira de grande apologista506 da vocação messiânica de Portugal, ou seja,

Deus elegerá, segundo o jesuíta a Lusitânia para ser o “novo Israel”, passou, a partir, de 1653,

em sua ação missionária no Maranhão, a denunciar com veemência a escravidão indígena.507

Destes esforços, conseguiu da Coroa leis favoráveis aos índios o que provocou sérias reações

de repúdio dos colonos que sentiam-se prejudicados com a ação dos jesuítas.

Podemos dizer que em Antônio Vieira nos deparamos com diversos aspectos: arte da

oratória e epistolar, passando pelo exercício da diplomacia e da geopolítica às atividades

intrínsecas à organização religiosa da Companhia de Jesus, à sua teologia e missão. Porém, é

fundamental na arte engenhosa de Antônio Vieira, a descoberta de um passado vibrante e a

fiança de uma história futura. “Ao revelar esse futuro e torná-lo presente em sua própria

perfeição, tal arte antecipadamente participa de sua existência e assegura a sua vinda”.508

No entanto, na sua defesa à causa indígena, Vieira pode ser visto como um missionário

inspirado pela mensagem de Jesus e sensibilizado pelo sofrimento dos pequenos e humildes,

mas nem por isso é capaz de salvar a honra da Igreja.509

O pensamento de Vieira carrega como traço distintivo o recurso às imagens simbólicas e

as correspondências alegóricas. O que, de certa maneira, representa um dos aspectos do

período barroco510, é resultado de uma forma de pensar e de interpretar o passado e a vida

506 Serafim Leite na sua História da Companhia de Jesus no Brasil apresenta o Padre Vieira como um grande apologético. 507 Eis um trecho de uma das cartas de Vieira: “Ah, fazendas do Maranhão, que se esses mantos e estas capas se torcessem, haveriam de lançar sangue. El-Rei poderá mandar que os cativos sejam livres e que os livres sejam cativos. Mas não chega lá sua jurisdição. Se tal proposta fosse ao Reino, as pedras da rua se haveriam de levantar contra os homens do Maranhão”. Apud. MATOS, Henrique Cristiano José (2001: 152). 508 Cf. PÉCORA, Alcir (2001: 139). 509 Cf. HOONAERT, Eduardo (1992: 127; 1991: 27). 510 “O barroco inaciano brasileiro é missionário, lição vívida dos mistérios da fé, tornada atraente pelo impacto estético maior, no espírito mesmo do barroco da Contra-Reforma. Barroco na arquitetura dos templos, na escultura mais que na pintura de imagens, barroco também nos métodos de pensamento, todos, juntos, fundamentais para o começo da mentalidade brasileira”. Ver: Vamireh Chacon. O plano Jesuíta para o Brasil. In: KONINGS, Johan (2001: 46). Ver também MELO, José Raimundo (1997: 310). O barroco “não representou tanto uma inculturação da liturgia em si, porque estamos em plena época de

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presente, fundamentada num jeito de se achegar às Escrituras e às palavras dos Padres da

Igreja advindas da Patrística: a leitura simbólica e literal.511 Sérgio Buarque de Holanda aponta

os seguintes exemplos nos sermões de Vieira:

“Um exemplo significativo de Vieira, invocado pelo sr. Antônio Sérgio, é aquele onde, a propósito do cerco da Bahia pelos holandeses, lembra o de Jerusalém por Senaqueribe. O episódio bíblico anunciava o contemporâneo, assim como o papel de Davi, na Palestina, prefiguraria o de Santo Antônio na Bahia. Com efeito, se o Senhor prometera salvar Jerusalém, com igual motivos salvaria a Bahia, que de seu nome próprio já é a cidade do Salvador. E a correspondência entre Davi e Santo Antônio explicável quando se considerasse que ao saial corresponde a samarra, à corda a funda, à voz ‘formidável do demônio, a harpa, etc”.512

No entanto, conforme Antônio Sérgio o método parenético de Vieira pouco deve à

Escolástica ou ao uso do silogismo, pois o que encontramos é uma correspondência alegórica.

“Poderia acrescentar que o ‘conceito predicável’ se acomoda antes ao velho platonismo cristão do que ao aristotelismo escolástico, já que suas origens remontariam a Clemente de Alexandria e aos primeiros Padres da Igreja. E ainda, que o apego a premissas arbitrariamente postas faz pensar nas formas de raciocínio silogístico defeituoso, tão freqüentemente abordadas pela lógica da Escola, uma das quais recebera, já na Idade Média, o nome de ‘baroco’.”513 No tocante, ao uso da Bíblia nos sermões é preciso ter presente que a pregação

sagrada tem a grande característica de parafrasear o Evangelho e até mesmo permitir que ele

seja representado nos altares ou nos átrios das igrejas. E nos ambientes conventuais a

influxo tridentino, com uma liturgia oficial estruturada, protegida pela lei, imóvel, intocável, um verdadeiro ‘monumento’. Apesar de todo este imobilismo litúrgico, o Barroco mostra a sua influência, se não na liturgia mesmo, onde encontramos o padre celebrando cada vez mais solitário, pelo menos em elementos mais periféricos, como os cantos, procissões, peregrinações, dramatizações, etc.”. 511 HOLANDA, Sérgio Buarque de (1996: 325). Ver também: RICHÉ, Pierre e LOBRICHON, Guy (1984: 160): É difícil perceber o sentido histórico num livro de interpretação espiritual, quando este é ignorado. Pois a história é o fundamento de toda a interpretação e é isto que se faz necessário em primeiro lugar; sem isto não se pode legitimamente passar a uma outra interpretação. O segundo sentido é o alegórico ou da tipologia que Orígenes tem particularmente ensinado. A interpretação espiritual e figurada das narrativas bíblicas permite uma identificação de fé revelada. O terceiro sentido, moral ou tropológico conduz à mudança de atitudes, no qual a Escritura é um espelho pelo qual cada um tem que olhar para dirigir a sua conduta. A exegese monástica especialmente privilegiou este terceiro sentido. Enfim o sentido anagógico conduz o cristão das coisas visíveis às coisas invisíveis, para a esperança da Jerusalém celestial. Toda a leitura da Escritura tem o seu coroamento dentro da contemplação mística. 512 Idem., p.325. 513 Idem., p.326.

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interpretação das Escrituras segue quatro níveis (ou sentidos): o sentido literal ou histórico, o

alegórico, o tropológico ou moral e o místico ou anagógico.

Se no Primeiro Século da Era Comum era forte a leitura das Escrituras através do

midrash, que era como já vimos “uma coletânea de comentário rabínico sobre as escrituras

hebraicas”.514 Da compreensão das Escrituras na tradição cristã primitiva, se destacam três

abordagens diferentes: primeiramente, uma eisegese515, na qual o leitor insere no texto o seu

entendimento de alguma questão, símbolo ou imagem; uma segunda, consiste num método

descritivo e, uma terceira, busca entender os caminhos e princípios adotados para interpretar a

Escritura. Valendo-se dessas abordagens da interpretação das Escrituras nos ambientes

patristicos, necessariamente teremos de perguntar pelo caminho (método) e princípios

aplicados na leitura que o Padre Antônio Vieira e outros imprimiram ao texto de Daniel.

Desde os ambientes judaico-cristãos do Io. século se têm presente que os textos

sagrados eram um rico depósito de significados, e para entendê-los era preciso levar em conta

o significado literal das palavras. Isto resultava em traduzir para vida, o que ao menos,

acreditavam e consideravam como palavras de Deus. Nesta perspectiva se encaixam diferentes

abordagens: midrash, pesher, leitura literal, alegórica e a tipológica.516

No tocante à leitura literal, ela consiste numa simples e aplicação conatural do texto à

vida das pessoas. Esta abordagem está muito presente na leitura dos textos legislativos, tais

como as leis deuteronômicas. Muitas vezes, as leituras dessas leis vêm acompanhadas de uma

aplicação moral. É quase o uso de excertos do texto para justificar uma questão da atualidade

do leitor e intérprete.

514 Cf. Virginia Stem Owens. Apud. DOCKERY, David S. (2005: 19). 515 Cf. CROATTO, José Severino (1986: 59-73). “A entrada no texto a partir do horizonte de compreensão do leitor. Não se opõe à exegese, mas sim, é a explicitação de um aspecto desta”. 516 Vale salientar que uma categorização da leitura judaico-cristã pode ultrapassar a essas abordagens, bem como, se limitar a uma ou outra abordagem.

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“Por conseguinte, todos os significados ‘crescem’ no decorrer do desenvolvimento histórico e o ‘verdadeiro’ sentido de um pronunciamento não depende apenas da compreensão limitada pelo ‘horizonte restrito do autor, mas igualmente das experiências do intérprete e do horizonte que estas lhe abrem. Há entre os dois toda uma evolução histórica que os respectivos significados percorreram”.517

Nesta perspectiva, podemos dizer que por mais que o intérprete ou leitor do texto faça

uma utilização literal, ele insere em seu conjunto o seu “horizonte” e/ou o seu contexto de leitor.

Para Lowy, a interpretação direta ou uso literal das leis era nos ambientes saduceus uma forma

de ensinar e transmitir às novas gerações as leis, normas e regras.518 De certa maneira, a leitura

literal dos textos da Escritura (de modo especial das leis) era filtrada pela halakhá519 de cada

grupo social. Por exemplo, tanto fariseus, saduceus, essênios, quanto zelotas tinham a sua

halakhá. Também estava presente nas tradições desses grupos a hd’g’h;: haGäDâ uma espécie

de explicação das narrativas bíblicas com propósitos edificantes. Estes grupos utilizavam de

maneira abundante as narrativas da Torá (Pentateuco).

Quanto ao midrash, gostaria de acrescentar as características apontadas por Renee

Bloch520: 1) fundamenta-se nas Escrituras; 2) tem cunho homilético; 3) é uma tentativa de

esclarecer os significados do texto; 4) é uma constante atualização do texto; e 5) descoberta de

princípios não contemplados nas seções legislativas para a solução de problemas que não

aparecem nas Escrituras. Já o pesher, como método de interpretação das Escrituras, muito se

aproxima do midrash.521

517 Idem. p.125. 518 S. Lowy. Apud. DOCKERY, David S. (2005: 32). 519 Halahá (hklh]), que consistia na interpretação das regras, das leis e normas contidas nos textos bíblicos e que regulamentavam todos os aspectos da vida religiosa judaica . 520 Renee Bloch. Apud. DOCKERY, David S. (2005: 32). 521 “O pesher é geralmente descrito como um método exegético ou uma antologia de interpretações (pesharim) que sugere que os escritos proféticos contêm uma significância escatológica oculta ou mistério divino que podem ser revelados ‘apenas por uma interpretação forçada e até mesmo anormal do texto bíblico’. (...) O pesher, portanto, era uma forma de interpretação cuja solução só poderia ser alcançada por meio da revelação divina. Podemos distinguir o pesher do midrash entendendo o midrash

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Além disso, a prática de leitura, escrita e interpretação de textos tanto nos mosteiros,

conventos e nos colégios da Companhia de Jesus herdou uma forte tradição da Antigüidade:

“uma tradição de leitura que abarcava as quatro funções dos estudos gramaticais (grammaticae officia): lectio, emendatio, enarratio e judicium. Lectio era o processo pelo qual o leitor tinha que decifrar o texto (discretio), buscando identificar os seus elementos , isto é, letras sílabas, palavras e frases, antes de lê-lo em voz alta (pronuntiatio), respeitando a pontuação exigida pelo sentido. Emendatio, prática requerida pelas realidades da transmissão de manuscritos, exigia que o leitor (ou seu professor) corrigissem o texto contido no seu exemplar, atividade que, por vezes trazia a tentação de melhorá-lo. Enarratio consistia na tarefa de reconhecer (ou comentar) as características do vocabulário, das figuras retóricas e literárias e, sobretudo, de interpretar o conteúdo do texto (explanatio. Enfim, o judicium correspondia ao exercício de avaliar as qualidades estéticas ou o valor moral e filosófico do texto (bene dictorum comprobatio).”522

E o que se pode perceber é que houve uma aplicação desta tradição na leitura e

interpretação dos textos bíblicos, pois não se tolerava que alguém que aspirasse o título de

monge continuasse na ignorância da leitura; além disse passa-se a conceber que através dos

livros também se conhece a Deus. O livro dos Salmos era utilizado como cartilha para aprender

a ler e a escrever. E gradativamente vão passando para a leitura de outros textos, tais como

vida de santos até chegarem às obras de teologia. Um bom leitor e conhecedor dos textos

torna-se um bom intérprete das Escrituras. Além disso, era muito presente no ato de ler a

aplicação da leitura silenciosa, a meditatio, que representava na arte da oratória um estudo

premilinar do texto para bem entendê-lo.523 Se observarmos as Regras Monásticas iremo-nos

como um tratamento da Escritura para torná-la contemporânea, a fim de tornar a Palavra de Deus relevante para as circunstâncias presentes e para as situações atuais, ao passo que o pesher considerava o material bíblico da perspectiva do cumprimento apocalíptico iminente. Podemos descrever o midrash como ‘isto tem relevância para isto’, enquanto o pesher é ‘isto é aquilo’.” In: DOCKERY, David S. (2005: 33-4). 522 PARKES, Malcolm. Ler escrever, interpretar o texto: práticas monásticas na Alta Idade Média. In: CAVALLO, Guglielmo e CHARTIER, ROGER (orgs). (2002: 103). 523 Isidoro de Sevilha vai dizer o seguinte àqueles que aspiram ao cargo de ledor na Igreja: “aquele que vier a ocupar tal cargo deve conhecer muito bem a doutrina e os livros e dominar completamente o sentido íntimo das palavras, para que, na análise das sententiae, ele possa compreender onde ocorrem as delimitações gramaticais: onde a voz deve continuar, onde a frase deve terminar. Deste modo, ele controlará sem esforço a técnica de expressão oral (vim pronuntiationis), sem defeitos na articulação, de modo que possa mover na direçao da compreensão a inteligência e as emoções (sensus) de todos, distinguindo os diversos tipos de tons e expressando os sentimentos (affectus) contidos na sententia: ora

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deparar com uma cláusulas que falava da leitura assídua da Escritura; por exemplo, o capítulo

central da Regra da Ordem dos Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo

diz o seguinte: “cada um permaneça em sua cela ou perto dela, meditando dia e noite na Lei do

Senhor e mantendo o espírito alerta por meio de orações, a não ser que esteja ocupado em

outros justos afazeres” (Capitulo VII)524

Com isso a interpretação e exegese do texto têm como passo inicial a compreensão

através da leitura. Da mesma maneira que não conhecemos uma pessoa simplesmente

olhando para o seu rosto o mesmo se processa com relação ao texto da Escritura. É preciso

dialogar com o texto. O tratado Adversus Eliprandum de Beatus vai comparar o conjunto da

gramática ao corpo humano: “um homem é composto de corpo, alma e espírito, o livro também

tem de ser entendido do ponto de vista histórico, moral e místico”.525 Daí a grande influência da

exegese de Santo Agostinho no seu tratado De doctrina christiana que estimulava a busca da

compreensão do significado de um texto, e na qual enfatiza-se a concepção de que qualquer

texto que não tenha relação com as regras da moral e a verdade da fé, devem ser interpretados

no sentido figurado.526

“Agostinho recomendou o método de se interpretarem passagens obscuras à luz das passagens já entendidas, e, como era de se esperar, esse era o método preferido antes da interpretação pela razão. Além disso, ele enfatizou o espírito do texto mais do que a precisão verbal ou a perspicácia crítica. Até mesmo os erros de um exegeta, dispostos de maneira adequada, segundo Agostinho, podem confirmar a fé religiosa e determinar o caráter. [...] Agostinho

no tom de quem explica, ora na maneira de quem esteja sofrendo, ora com os modos de quem está repreendendo, ora com o jeito de exortar, ou com as emoções adequadas para a récita em questão.” (Isidoro de Sevilha, De ecclesiasticis officiis II, 11,2, PL, LXXXIII, 791). Apud. PARKES, Malcolm. Ler escrever, interpretar o texto: práticas monásticas na Alta Idade Média. In: CAVALLO, Guglielmo e CHARTIER, ROGER (orgs). (2002: 103). 524 Cf. WILDERINK, D. Frei Vital e MESTERS, Frei Carlos. Tradição: “Continuísmo” ou Dinamismo? São Paulo, s/d, pp.58-59 e suplemento. Ver também: MESTERS, Carlos. A Regra do Carmo. Sua origem, seu sentido, sua atualidade. Rio de Janeiro: Província Carmelitana de Santo Elias, 1985. 525 Apud. PARKES, Malcolm. Ler escrever, interpretar o texto: práticas monásticas na Alta Idade Média. In: CAVALLO, Guglielmo e CHARTIER, ROGER (orgs). (2002: 113). 526 Ver: AGOSTINHO, Santo. A Doutrina Cristã. Manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Paulus, 2002 (Coleção Patrística).

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não sugeria um sentido duplo para a Escritura, mas um sentido quádrupo, que mais tarde seria adotado pelos teólogos medievais. Esses quatro sentidos eram: 1) o literal 2) o alegórico 3) o tropológico ou moral e 4) o anagógico. [...] Em suma, Agostinho enfatizava a prioridade da fé para a compreensão da Bíblia. Ele achava que boa parte da Bíblia deveria ser entendida tanto de maneira literal quanto alegórica, embora o viés histórico nunca fosse descartado”.527

A leitura alegórica das Escrituras tem em Fílon de Alexandria o seu mais proeminente

praticante. Para ele a Escritura devia ser encarada sob dois níveis de significado: o literal e o

significado subjacente. É no significado subjacente que se insere a leitura ou exegese alegórica.

Trata-se de uma interpretação do texto na qual busca-se sempre o entendimento de alguma

coisa para além do texto.528

Já a exegese tipológica é um instrumento que busca descobrir correspondências entre

pessoas e acontecimentos do passado e do presente ou do futuro. Como é um método que tem

proximidade com a leitura alegórica, foi muitas vezes confundido e não é levado em conta como

recurso nas abordagens exegéticas. Este método se enquadra na busca de uma

correspondência do acontecimento histórico por detrás do texto. Diferencia-se de uma

interpretação profética enquanto predição de futuro e de uma leitura alegórica que busca os

significados escondidos do texto. Sua preocupação é com o caráter histórico do texto. O

significado histórico do texto é o seu ponto de partida. Outro aspecto importante é que a

exegese tipológica relaciona acontecimentos do passado (no caso da história de Israel e do

Cristianismo primitivo) que prefiguram uma época futura que estão inseridos numa dinâmica de

revelação dos propósitos de Deus. Por exemplo D. S. Russell apresenta alguns exemplos de

acontecimentos tipológicos no âmbito da Bíblia Hebraica e que têm correspondência no

Testamento Cristão: Is 11.6-8; Is 43.16-21; Is 11.1 e Dt 18.15-18.529

527 Cf. DOCKERY, David S. (2005: 138-139.140). 528 Vale salientar que é preciso que não se confunda a alegorização como um método e a presença de elementos alegóricos num determinado texto bíblico. Aliás, nos Evangelhos encontramos vários exemplos. 529 Cf. RUSSELL, D. S. (1964: 283-4). Ver também Desvelamento Divino. Uma introdução à apocalíptica judaica. 1997.

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Na Epístola de Barnabé, provavelmente escrita em Alexandria por volta do ano 135 E.C.

lemos o seguinte: “os profetas, depois de obterem a graça dele (Jesus Cristo), fizeram suas

profecias relacionadas a ele” (5,1). E na Homilia Pascal de Melitão, escrita ao redor de 170 E.C.

ao afirmar Jesus como o verdadeiro cordeiro pascal isto significa tipologicamente que ele é o

cordeiro pascal em Ex 12.

Da exegese dos Padres da Igreja em diante vamos nos deparar com uma leitura das

Escrituras de caráter funcionalista. Ou seja, não existe a preocupação com o contexto histórico

do texto e este é utilizado com forte teor moral. Seria a aplicação do texto no contexto do leitor

sem nenhuma preocupação com o seu contexto original.

Vejamos, como exemplo a leitura de Irineu de Lião sobre Daniel 2:

“O próprio Daniel identifica exatamente o fim do quarto reino nos dedos dos pés da estátua vista por Nabucudonosor, com os quais se chocou a pedra que se desprendeu sem intervenção de mão humana. Ele diz assim: ‘Os pés eram parte de ferro e parte de argila, quando uma pedra, sem intervenção de mão humana, destacou-se e veio bater na estátua, nos pés de ferro e de argila e os triturou completamente’. Mais adiante, na explicação, diz: ‘Os pés e os dedos que viste, parte de argila e parte de ferro, designam um reino que será dividido; haverá nele a estabilidade do ferro, como viste o ferro misturado à argila. E os dedos dos pés eram parte de ferro e parte de argila’. Os dez dedos dos pés significam os dez reis entre os quais será dividido o reino; alguns deles serão fortes, hábeis e poderosos e outros serão fracos e ociosos e contrários, como diz Daniel: ‘Uma parte do reino será forte e será quebrada pela outra parte. O fato de teres visto ferro misturado à argila, indica que se misturarão por casamentos, mas não se fundirão um com o outro, da mesma forma que o ferro não se funde com a argila’. E sobre o que acontecerá no fim, diz: ‘No tempo desses reis o Deus do céu suscitará um reino que jamais será destruído, um reino que jamais passará a outro povo. Esmagará e aniquilará todos os outros reinos, enquanto ele mesmo subsistirá para sempre. Foi o que pudeste ver na pedra que se destacou da montanha, sem que mão alguma a tivesse tocado e reduziu a pó o ferro, o bronze, a argila e a prata. O grande Deus manifestou ao rei o que deve acontecer disto. O sonho é verdadeiramente este, e digna de fé é a sua interpretação’. Se, portanto, o grande Deus deu a conhecer o futuro por meio de Daniel e o confirmou por meio de seu Filho; se o Cristo é a pedra que se desprendeu sem intervenção de mão alguma, aquele que deve aniquilar os reinos temporais e introduzir o reino eterno, isto é, a ressurreição dos justos – “o Deus do céu, diz suscitará um reino que nunca mais será destruído” – dêem-se por vencidos e se emendem os que, rejeitando o Criador, não admitem que os profetas foram enviados pelo mesmo Pai que também enviou o Senhor, mas dizem que as profecias derivam de Potências diferentes. Com efeito, o que o Criador predisse de forma idêntica por meio de todos os profetas foi o que o

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Cristo cumpriu, no fim, obedecendo à vontade do Pai e realizando a sua economia do gênero humano”.530

Vejamos que depois de apresentar o texto há a sua aplicação sem maiores

preocupações com o contexto histórico em que o texto se insere, mas com a sua conotação

cristã. Na sua interpretação Jesus é a pedra que se desprendeu e atingiu os pés da estátua ou

seja, aniquilará os reinos temporais, que ao tempo de Irineu de Lião significava a defesa da

ortodoxia contra as chamadas “heresias”. Aliás, neste período ser clérigo era ser inquisidor, pois

o que importa é combater as heresias.

Nesta utilização funcional das Escrituras podemos dizer, noutras palavras, que a Bíblia

ficou prisioneira da explicação e o seu uso no culto litúrgico. Na liturgia da palavra a Escritura é

utilizada em dois momentos: na leitura do texto e na sua explicação através do sermão. A

escola Alexandrina é uma das fortes correntes de leitura bíblica nos tempos dos padres da Igreja

e teve fortes influências na leitura medieval cristã.

Esta escola, marcada pela leitura alegórica da Bíblia, tem no seu quadro grandes

expoentes, tais como, Orígenes, Tertuliano, Clemente de Alexandria e outros. Em grande

medida, considera as Escrituras divinamente inspiradas e infalíveis e que o mais importante é

descobrir os significados do texto. Por exemplo, Fílon ao interpretar os relatos míticos do

Gênesis (Gn 1-3) vai dizer que os quatro rios do Éden significam a prudência, a temperança, a

coragem e a justiça (justamente as virtudes platônicas). Com isso, a escola Alexandrina entende

o texto bíblico como possuidor de uma multiplicidade de significados. Assim, cada expressão,

cada palavra, cada letra pode conter um significado. Aplicavam o sentido literal em

determinadas passagens para tratar de questões morais e uma leitura tipológica, com ênfase

530 Irineu de Lião. Contra as heresias. Denúncia e refutação da falsa gnose. São Paulo: Paulus, 1995, pp.585-586.

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cristológica, para fundamentar as correspondências que queriam estabelecer entre o Testamento

judaico, o Testamento cristão e a Igreja.

Para Clemente de Alexandria “encontrar o significado mais profundo é, assim, o

processo por meio do qual Deus, por meio de parábolas e metáforas, gradualmente conduz

aqueles a quem Deus iria se revelar do mundo sensível ao inteligível”.531 Assim, o “sentido literal

indicava o que havia sido feito ou dito, enquanto o alegórico mostrava aquilo em que se deveria

acreditar. A abordagem alegórica, então, era adotada para fins apologéticos e teológicos”.532

Outro fator importante: a interpretação de um texto deve ser feita à luz de toda a Escritura.

Deseja-se que o intérprete tenha conhecimento não só do texto, mas também do conjunto para

que busque as semelhanças seja através de idéias, termos, palavras, nomes, números, etc.533

A interpretação de Clemente dos textos bíblicos pode ser visualizada em cinco aspectos:

histórica, doutrinária, profética, filosófica e mística. Os aspectos históricos e doutrinários seguem

uma linha literal, o profético é estritamente tipológico e os aspectos filosóficos e místicos seguem

uma leitura alegórica da Bíblia.534

Para Orígenes cada palavra da Escritura é inspirada. No seu famoso texto, Contra

Celso, vai dizer que o criador do mundo deu poder às palavras para dominar os homens em

todos os lugares (1,18). Orígenes toma como uma de suas grandes tarefas a de restaurar o texto

bíblico original e interpretá-lo. Evidentemente, que no seu trabalho de tradução, deixou

impressas as marcas de sua interpretação.535

531Clemente de Alexandria. Miscellanies, 6.15.126. Apud. DOCKERY, David S. (2005: 79). 532 Idem. 533Cf. DOCKERY, David S. (2005: 81). 534 Idem., p.83. 535 Idem. pp.205-6: “Os pais primitivos leram o AT não em hebraico, mas na tradução grega que era produto da obra de estudiosos judaicos de Alexandria, conhecida como Septuaginta (LXX). Orígenes parece ter aprendido o suficiente de hebraico a ponto de capacitá-lo a apreciar as diferenças consideráveis que existiam em alguns pontos entre a Bíblia hebraica e a Septuaginta que harmonizavam-se da maneira mais próxima possível, mas sem abalar a autoridade que a Septuaginta havia passado a ter para a igreja.Orígenes, quando estava em Cesaréia, compilou sua obra Hexapla. Essa obra monumental, que teria 6 500 páginas em seis colunas paralelas, o texto em hebraico, uma transliteração

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Para Orígenes a Bíblia tinha três significados diferentes: o literal, o moral e o

alegórico.536 Pois todo texto é cheio de mistério e cada texto deve ser lido de acordo com toda a

Escritura. A sua leitura literal sempre começa pela citação do texto, pois ele considera que a

Bíblia contém história importante e verdadeira (Contra Celso 3,43), edificante (Contra Celso 1,17;

18,27) e apologética (Contra Celso 7,60). O sentido espiritual do texto para Orígenes tem de

estar totalmente conectado com a leitura literal. Por exemplo ao interpretar Jr 1,10, ele vai dizer

que Jeremias “recebeu a palavra de Deus a fim de despedaçar e destruir nações e reinos”.537

Outro exemplo está na sua interpretação de Jr 1,1-3:

“Deus julgou Jerusalém por seus pecados e sentenciou-a ao cativeiro, e quando se fez necessário, Deus, que amava os seres humanos como antes, enviou seu profeta no terceiro reinado antes do cativeiro, para que aqueles que desejassem reconsiderar pudessem se arrepender por meio do ministério da palavra profética”.538

Outro ponto importante na interpretação de Orígenes está na scriptura scripturam

interpretatur, ou seja, alguns textos que são obscuros necessitam de outros textos mais claros,

do hebraico para o grego, a tradução de Áquila e Símaco, a Septuaginta e a tradução de Teodocião. Em algumas partes o número de colunas foi reduzido a cinco, em outras foi aumentado para sete ou oito, e, quando isso aconteceu, Orígenes usou traduções que havia descoberto em suas viagens, incluindo uma descoberta perto de Jericó e possivelmente oculta em uma jarra de vinho. Uma obra chamada Tetrapla, contendo quatro colunas das quatro principais versões para o grego foi compilada antes ou depois da Hexapla. Nas partes em que a Septuaginta continha material que não estava no texto hebraico, ou que deixava de ter conteúdos do texto em hebraico, a quinta coluna trazia sinais de crítica textual oriundos da prática alexandrina”. 536 Cf. RICHÉ, Pierre, CHÂTILLON, Jean e VERGER, Jacques. (1989: 36-37). “Il primo senso è quello della storia, preferito da Cristiano di Stavelot; ‘Mi sono sforzato di seguire il senso storico più del senso spirituale, perché mi sembra irrazionale cercare in un libro l’interpretazione storica. La storia è il fondamento di ogni interpretazione e deve essere còlta per prima; senza di essa non è possibile legittimamente passare a un’altra interpretazione’. Il secondo senso è quello allegorico o tipologico, sul quale aveva particolarmente insistito Origene. L’interpretazione spirituale e figurata dei racconti biblici permette l’identificazione della fede rivelata nel Nuovo Testamento. Il terzo senso, morale o tropologico, di cui Gregorio Magno aveva offerto una magnifica illustrazione nei Moralia in Iob, porta alla conversione dei costumi. La Scrittura è uno specchio nel quale ognuno deve guardarsi per poter controllare il proprio comportamento. L’esegesi monastica ha privilegiato soprattutto questo terzo senso, perché – dice Smaragdo di Saint-Mihiel nel Diadema dei monaci –: ‘Se il monaco cerca regole per vivere bene e impara come disporre i passi delle opere buone lungo il cammino della vita spiritualem trova nel testo sacro tanto più profitto quanto più progredisce’.” 537Orígenes. Homily on Jeremiah, 1.7. Apud. 538Ibidem.

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para que sejam utilizados nas comparações e na busca de semelhanças.539 Assim, para

Orígenes a interpretação alegórica demonstra ser uma fonte para as exemplificações inspiradas

na doutrina e que cada parte da Escritura, mesmo aquelas mais irrelevantes, comunicam um

sentido no presente e tem algo a ensinar para a Igreja. (Contra Celso 4,13; 6,16; 6,4 e 6,58).

É interessante notar que na exegese judaica medieval a obra Pardes (Paraíso) de

Moshe de Leon, dedicado à formulação de quatro níveis de significado da Torá, vai no fundo

apontar para quatro sentidos da Escritura: Pesat ( o significado simples e literal), remez

(“alusão”: alegoria filosófica), deras (“ricerca”, a interpretação rabínico-homilética) e sod

(“mistério” – a interpretação mística).540 Estes sentidos ou níveis da leitura têm uma forte relação

com a teologia de Joaquim de Fiori e com muitos cristãos do período medieval.

A leitura ou hermenêutica da Bíblia desde a teologia medieval e, aqui na perspectiva do

contexto das pregações de Antônio Vieira, tem as marcas da adoção de um sistema de busca ou

procura do sentido oculto ou verdade moral que perpassa pelo texto. Evidentemente, que em

grande medida estamos diante de uma leitura que visa o sentido literal do texto, sem considerar

os seus aspectos históricos, ou melhor dizendo, os aspectos contextuais daqueles que

produziram o texto.541

“É interessante constatar que não foram poucas as necessidades de reinterpretação importantes da Bíblia. A primeira delas, no contexto da dispersão dos judeus pelo mundo greco-romano, a chamada Diáspora, tem em Philon, contemporâneo de Cristo e de São Paulo, seu principal exemplo. Representante do chamado pensamento judeu-alexandrino, Philon assumiu a

539 Ver LOPES, Augustus Nicodemus (2004: 146): “Uma outra característica da interpretação dos Pais Latinos era a observância da regra que passagens mais obscuras devem ser interpretadas à luz das mais claras. Para muitos intérpretes nessa época, a solução para resolver contradições entre passagens das Escrituras era alegorizar as que fossem mais obscuras. Os Pais Latinos, ao contrário, adotam outra solução. Procuravam interpretar uma passagem obscura e difícil à luz de outras que tratem do mesmo assunto e que sejam mais claras. Era essa a regra que procuravam seguir. O que estava por detrás dessa regra era a crença na unidade da Escritura, ponto que Agostinho faz explicitamente em seu comentário em Gênesis 22”. 540 Cf. STEMBERGER, Günter. (2000: 195). 541 Ver: ALBERTI, Verena (1996: 1-23) e LIMA, Luiz Costa (1989), SOARES, Luiz Eduardo (1988: 100-142) e LIMA, Luiz Costa (2002: 63-95). No campo da hermenêutica bíblica destacamos CROATTO, José Severino (1986).

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tarefa de adaptar o texto sagrado a uma situação sem terra (a Palestina) e sem templo (de Jerusalém), recorrendo ao método alegórico para explicar episódios e personagens do Velho Testamento: o sentido literal tornava-se símbolo de verdades metafísicas ou morais.”542

No entanto, estes diferentes níveis de interpretação das Escrituras receberam dois

choques muito fortes. De um lado, a renovação das pregações com o surgimento das Ordens

mendicantes (Carmelitas, Franscicanos, Servitas, Dominicanos) no século XIII e, de outro, a

forte influência da Escolástica que transformava a homilia em sermões carregados de teses. E

no século XVI já é patente as influências renascentistas e a Reforma já faz ouvir os seus ecos

em favor das Escrituras e contra a Instituição (tem mais valor a palavra revelada do que os

sacramentos outorgados pela igreja).

Para Jorge R. Seibold, o século de Vieira viu surgir as escolas “vulgar” e “cultista”543:

“A primeira segue os limites que lhe haviam traçado os pregadores ibéricos do século XVI, ainda que às vezes incorreram em excessos por versões extras às vezes grotescas de seus métodos persuasivos. A escola ‘cultista’ adota por sua vez duas formas ligadas entre si como são o ‘culteranismo’ centrado no uso retórico ornamental de hipérboles, imagens, mitos e outros procedimentos para realçar o tema. A outra forma é o ‘conceptismo’ que estimula o engenho e a cratividade conceitual a fim de recriar uma frase lapidária ou uma sentença para expressar a novidade do tratado”.544

542 Cf. ALBERTI, Verena (1996: 4). 543 No § V do Sermão da Sexagésima Vieira faz a seguinte afirmação acerca dos cultistas: “Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no mundo. E qual foi ele? O mais antigo pregador que houve no mundo foi o Céu. (...) o estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. É possível que somos Portugueses, e havemos de ouvir um pregador em Portuges, e não havemos de entender o que diz? Assim como há Lexicon para o Grego e Calepino para o Latim, assim é necessário haver um vocabulário do púlpito”. VIEIRA, Antônio (2001a: 39-40). 544 “La primera segue los lineamientos que le habían trazado los grandes predicadores ibéricos del siglo XVI, aunque a veces incurrió en excesos por una extraversión a veces grotesca de sus métodos persuasivos. La escuela ‘cultista’ adopta a sua vez dos formas ligadas entre si como son el ‘culteranismo’ centrado en el uso retórico ornamental de hipérboles, imágenes, mitos y otros procedimientos para realzar el tema. La otra forma es el ‘conceptismo’ que estimula el ingenio y la creatividad conceptual a fin de recrear una frase lapidaria o una sentencia para expresar la novedad de lo tratado”. In: SEIBOLD, Jorge R. La Sagrada Escritura em la evangelización del Brasíl. In: KONINGS, Johan (2001: 124).

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A oratória para Vieira representava nada mais que o exercício do ministério da Palavra.

Isto percebemos no seu Sermão da Sexagésima de 1655545, no qual fala sobre a Palavra de

Deus, fazendo um jogo sobre a concepção da palavra e com certeza convertendo o ouvinte para

a palavra de Deus e transparece a sua crítica aos pregadores do seu tempo, mas, ao mesmo

tempo, apresenta o que considera como os fundamentos da palavra. No terceiro parágrafo,

Vieira diz que para converter o ouvinte à palavra é preciso três concursos: do pregador, do

ouvinte e de Deus:

“Fazer pouco fruto a palavra de Deus no mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há de haver três concursos: há de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho, e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho, e tem olhos, e se é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo há mister luz, há mister espelho, e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora, suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador, e do ouvinte, por qual deles havemos de entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?”546

Porém, uma das críticas de Vieira aos pregadores está nos sermões. Para ele os sermos

de seus contemporâneos eram palavras sem obras e eram palavras difíceis num discurso prolixo

e confuso:

“As palavras que tomei por Tema o dizem: Semen est Verbum Dei. Sabeis, (Cristãos) a causa por que se faz, hoje, tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como dizia) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavra de Deus, que muito que não tenham a eficácia e os efeitos de palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent (Os. 8,7), diz o Espírito Santo: Quem semeia ventos, colhe tempestades. Se os pregadores semeiam vento, se o que

545 Para a leitura dos Sermões de Vieira tomo a obra editada por Alcir Pécora. Sermões: Padre Antônio Vieira. São Paulo: Hedra, 2 Tomos, 2001. 546 Idem., p.33.

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se prega é vaidade, se não se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de correr tormenta em vez de colher fruto? Mas, dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus. Qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere, disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demônio. Tentou o demônio a Cristo a que fizesse das pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore Dei. Esta sentença era tirada do capítulo oitavo do Deuteronômio. Vendo o Demônio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do Salmo noventa, diz-lhe desta maneira: Mitte de deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis (SI. 90,11): Deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomarão nos braços, para que te não faças mal. De sorte que Cristo defendeu-se do diabo com a Escritura, e o diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são palavra de Deus; pois se Cristo toma a Escritura para se defender do diabo, como toma o diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido: e as mesmas palavras que, tomadas em verdadeiro sentido, são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras, que tomadas no sentido em que Deus as disse são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do Templo. O pináculo do Templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no Templo; no deserto tentou-o com a gula, no monte tentou-o com a ambição, no Templo tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem derrubado dela, senão a Cristo, a sua fé.”547

Neste 9o. § do sermão percebemos toda a sutileza do discurso e do estilo de Vieira no

uso das Escrituras, aqui ele apresenta a partir de um trocadilho que vai do plural ao singular

(palavras de Deus – palavra de Deus), elaborando um processo de repetição sucessiva da

mesma idéia, e, acrescentando a cada nova repetição, elemento que melhor a defina ou mais

completamente a determine. É uma idéia que vai lentamente avançando em sucessivas

repetições e acréscimos.548

547 Idem., pp.36, 39 e 46-47. 548 Cf. DURÃO, Paulo (1951: 662-668).

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No sermão de Santo Antônio, pregado em Maranhão em 1654, tomando o texto “vós sois

o sal da terra”, observa o orador que o efeito do sal é preservar da corrupção. Sendo assim, e

vendo-se por outro lado aquela terra tão corrupta, pergunta qual será a causa de semelhante

estado de coisas. E apresenta a seguinte argumentação:

“Ou é porque o sal não salga: ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga: e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar; e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, não a querem receber. Ou é porque o sal não salga; e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar; e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga; e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar; e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem os seus apetites.”

Aqui vemos nitidamente o estilo repetido, centralizado e que reforça uma só idéia ou uma

só temática. “Como se vê, no trecho citado vão se repetindo periodicamente duas idéias e, a

cada nova repetição, vai-se indicando uma forma nova de entender e interpretar a metáfora do

Evangelho”.549 Podemos representar da seguinte maneira a estrutura destas palavras de Vieira:

A – Ou é porque o sal não salga: B – ou porque a terra se não deixa salgar.

A - Ou é porque o sal não salga: C – e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina;

B – ou porque a terra se não deixa salgar; D – e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes

dão, não a querem receber. A – Ou é porque o sal não salga;

C – e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; B – ou porque a terra se não deixa salgar;

D – e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem que fazer o que dizem.

A – Ou é porque o sal não salga; C – e os pregadores se pregam a si e não a Cristo;

B – ou porque a terra se não deixa salgar; D – e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem os

seus apetites.

549 Idem., p.663.

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Uma característica visível nos sermões de Vieira é o uso da retórica. Porém, vemos que

a maneira como utiliza as Escrituras não é a de um teólogo, muito menos a de um exegeta. A

sua riqueza está em retirar do próprio texto a imagem com a qual construirá o seu argumento.

No sermão no qual falou sobre a Palavra de Deus e a prática dos pregadores todo o seu

pensamento foi construído sobre a simbologia alegórica da Parábola do semeador.550 Neste

trecho do sermão de Santo Antônio, a sua argumentação gira em torno da imagem do sal, tirada

do próprio Evangelho. Também, a utilização que faz dessas imagens se acentua sua leitura

tropológica ou moral da Escritura, pois a imagem ou metáfora que emprega visa fornecer

elementos para se criticar ou apontar caminhos para uma determinada ação na sociedade e na

vida cotidiana. Se a semente do Evangelho está destinada a frutificar, então, a finalidade do seu

sermão é:

“Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender dos nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições, e enfim todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de nós. Si hominibus placerem, Christi servus non essem (Gal. 1, 10), dizia o maior de todos os pregadores, S. Paulo: Se eu contentara aos homens, não seria servo de Deus. - Oh! contentemos a Deus, e acabemos de não fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma igreja há tribunas mais altas que as que vemos: Spetaculum facti suminus Deo, angelis et hominibus551. Acima das tribunas dos reis, estão as tribunas dos anjos, está a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos há de julgar. Que conta há de dar a Deus um pregador no dia do juízo? O ouvinte dirá: não mo disseram; mas o pregador? Vae mihi, quia tacui (Is. 6,5): Ai de mim que não disse o que convinha! - Não seja mais assim por amor de Deus e de nós. Estamos às portas da quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades. Veja o céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de

550 Numa exegese da Parábola do semeador logo se distingue a Parábola, propriamente dita, que trata sobre o semeador e a semente da sua alegoria que transforma o semeador em Deus ou Jesus e a semente na Palavra de Deus. 551 Porque somos feitos espetáculo ao mundo, e aos anjos, e aos homens (1 Cor. 4,9). A Vulgata traz mundo, e não Deo.

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Deus, e saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum”.

Outra marca importante que aparece nos sermões de Vieira é a sua unidade teológica,

retórica e política552. Pode-se falar de uma matriz sacramental, entendida como uma boa técnica

de produção discursiva, 553 com analogias que partem da liturgia católica: as comemorações do

ano eclesiástico ou litúrgico; as passagens escriturais do Evangelho do dia e as circunstâncias

presentes na enunciação do sermão.

No tocante ao ano litúrgico ou eclesiástico (Do Primeiro Domingo do Advento à última

semana depois de Pentecostes) o sermão deve se ajustar à doutrina e ortodoxia da Igreja. O

mistério da Encarnação e Pentecostes são temas que perpassam os sermões dos pregadores.

Quanto ao Evangelho do dia, o autor tomou como exemplo o Sermão da Primeira Dominga do

Advento que Vieira refere ter pregado na Capela Real de Lisboa, no ano de 1650. Os sermões

de Advento, de modo geral, tratam de temas como a promessa do Messias, a Encarnação, o

nascimento de Jesus, sua juventude e ministério e o Juízo Final. O Evangelho do dia foi o de

Lucas 21,25-33 que visava mover o auditório à penitência e à emenda dos costumes. Além deste

caráter parenético, este tema suscita através da teologia bíblica uma análise que contemple: a

articulação semântica entre “julgar” e “reinar”554; o alerta contra os abusos praticados pelos

552 Alcir Pécora busca um eixo teológico-retórico-político nos sermões de Vieira, tomando como ponto de partida a organização dos sermões através do calendário litúrgico. A leitura da Bíblia em Antônio Vieira caminha nas sombras da liturgia, seguindo uma matriz sacramental que utiliza analogias entre três linhas semânticas: as comemorações do ano eclesiástico ou litúrgico (do Advento à Septuagésima, da Septuagésima à Ascensão e da Ascensão a Pentecostes), as passagens escriturais do Evangelho do dia e as circunstâncias presentes na enunciação do sermão. In: Para ler Vieira: As 3 pontas das analogias nos sermões (http://www.georgetown.edu/sfs/programs/clas/Brazil/Alcirpecora.pdf - retirado no dia 24/01/2004). 553

Idem.: “A técnica de produção discursiva supõe ser uma ocasião favorável à manifestação da presença divina, cuja latência nas palavras do pregador considera-se decisiva para mover o auditório. Movê-lo, aqui, significa basicamente, em termos individuais, reorientá-lo na direção das finalidades cristãs inscritas na natureza divinamente criada; em termos de ação coletiva e institucional, implica dizer que o sermão deve estar apto a formular hipóteses para uma política pragmática e legítima a ser conduzida pelos Estados católicos na história”. 554 Tais termos, aparentemente distantes numa gramática contemporânea, aparecem estreitamente ligados na Bíblia (por exemplo, em Jz 16, 17: Então o Senhor fazia surgir juízes que os libertavam dos assaltantes.) Essa articulação está patente também no livro dos Juízes, cujo esquema geral, segundo Pesch, é basicamente quaternário: Israel peca/ Deus pune/ Israel se arrepende e suplica/ Deus salva por

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Juízes; a implicação de castigo e salvação, na ocasião do Juízo; o anúncio da proximidade do

Juízo e, por último, a salvação é para todos os que confessam na fé.

Porém, a hipótese de Alcir Pécora levanta uma questão acerca das circunstâncias da

enunciação do discurso ou pregação: é possível falar de circunstâncias “diretas” da pregação,

que levam em conta o lugar e a data em que foi proferida oralmente? É possível falar de

circunstâncias “indiretas” no momento da reescrita do sermão? Pois a escritura do sermão está

distante muitos anos do suposto ato original da pregação, com alterações enormes na situação

de sua produção. Basta considerar o deslocamento: da Capela do Paço Real da Ribeira, em

Lisboa, ao Colégio da Companhia de Jesus, na cidade da Bahia, Província do Brasil. O ambiente

em que se situa o sermão é o do empenho na “reforma dos estilos” da Inquisição a fim de trazer

de volta os cristãos-novos a Portugal; já o tempo da escrita é marcado pelas questões

hermenêuticas em meio às disputas internas e externas da Ordem em relação aos negócios

indígenas e nas violentas desavenças na cidade da Bahia entre as famílias Vieira Ravasco e os

Sousa e Meneses.

Neste Sermão do Advento (1650), Vieira começa por uma ponderação misteriosa,

recurso usual nos engenhosos sermões seiscentistas. Assim, Vieira pergunta pela razão oculta

sob o mistério de caberem todos os homens de todas as épocas no mesmo Vale de Josafá

(compara ironicamente o Vale do Juízo com a praça do Paço da Ribeira). Propõe como resposta

para este mistério que seus ouvintes imaginem a composição de lugar da cena do Juízo, de

modo que as autoridades ali presentes se imaginem como “réus” na expectativa do julgamento

final diante da encenação do momento dramático da separação entre os bons e os maus. Vieira

aponta três aspectos decisivos do Juízo: (1) a ressurreição na fé significará uma reparação; (2)

não haverá privilégio de “estado”, seja de nobreza, realeza ou eclesiástico e (3) reis e cortes

meio de um juiz (que pode ser “maior”, isto é, carismático, inspirado; ou “menor”, tratando-se tão somente de ocupar o posto de líder ou governante)

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serão objeto de juízo rigoroso por incorrerem em dois pecados: omissão (deixar de fazer o que o

cargo que ocupam obriga) e o pecado de conseqüência, isto é quando a corrupção do voto ou de

um ato inicial traz sucessivos desmazelos (governantes e ministros deverão pagar com a própria

condenação eterna os desastres em cascata causados pelas ações necessárias e justas que

deixam de fazer na hora certa e pelas errôneas e injustas que fazem quando não deviam).

A sua ironia reside na imaginária presença de todos no Vale de Josafá: os poderosos,

que se sentiam imortais e inchados de vaidade e soberba, no lugar do juízo encolherão e

mirrarão de tanto medo (“mirrar de pavor”) da sentença que se abaterá sobre eles. Assim

caberão todos.

Podemos perceber nos sermões duas grandes linhas: de um lado, sermões estritamente

religiosos e, de outro, aqueles relacionados com algum determinado assunto político e social, no

entanto, os sermões têm como ponto de partida um texto bíblico extraído das festas litúrgicas.

Os sermões de cunho religiosos, muitas vezes, tinham um caráter moralista e buscavam

promover uma mudança da mentalidade e da atitude ética.555 Já os discursos inseridos nas

problemáticas político-sociais de seu tempo, produziam uma inter-relação entre o púlpito e a

tribuna, na qual os textos bíblicos eram habilmente interpretados enquanto fontes que

forneceriam propostas de saídas para esta situação, em prol dos desprotegidos.556 Assim, o

púlpito não só era uma tribuna, como um verdadeiro teatro ou uma comédia (nas próprias

palavras de Vieira: “os ouvintes vêm à pregação como à comédia”). Vieira ironiza o papel dos

pregadores que transformaram o púlpito em palco e muitas comédias do passado transmitiam

questões mais sólidas em termos morais do que o que se ouve nos pulpitos557.

555 BESSELAAR, J. van den (1981: 68). 556 Idem., p.69. 557 “Os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente, era acabarem-se as comédias em Portugal, mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareça em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Sêneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos

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Há nos sermões de Vieira um universo de formulações literárias de cunho irônico e

satírico. Aliás, no berço da literatura portuguesa nos deparamos com Gil Vicente, Francisco

Manuel de Melo, Bocage, Eça de Queiroz558 e tantos outros. É possível perceber a ironização

nos sermões de Vieira a partir das fundamentações de seus temas, seja na Bíblia, na tradição

religiosa, na hagiografia e na história; bem como no lugar social de seus sermões, no púlpito,

enquanto lugar sacro e pouco propício a discursos rebuscados; e por fim, a função parenética

dos sermões, que na maioria das vezes, objetivava a criar convicções e a direcionar as ações

dos ouvintes. Isto nos leva a crer que a função do sermão caminha na contramão da ironia e do

humor.559 Portanto,

“pode-se satirizar sem ironizar, e se pela ironia sempre se satiriza, ela pode incidir não tanto na condenação das atitudes como em novas formas de observar e ver a realidade e a sua multiplicidade, ou as intenções verazes ou pretendidas. A ironia supõe sempre visões diversificadas, e geralmente engenhosas, e de extremo engenho, quer do mundo quer das pessoas, e todas terão a sua quota parte de verdade. Ao ironizar, aquele que introduz a ironia coloca-se a si mesmo em causa e aceita implicitamente que a sua visão seja também objecto de crítica.” 560

Muitos estudos já tentaram aproximar os sermões de Vieira à arte do engenho e aos

processos retóricos, ao uso de alegorias e o púlpito como lugar de tribuna política e censura aos

vícios dos poderosos.561 No entanto, no conjunto dos sermões encontraremos através do jogo

de palavras a construção de ironias sutis. Tomemos como exemplo ainda o sermão da

Sexagésima, em 1655:

desenganos da vida e vaidade do mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros e muito mais sólidos do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria, por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano e gentio que nas pregações dum orador cristão e, muitas vezes, sobre cristão, religioso!” Sermão da Sexagésima, pregado na capela real (1655), VIEIRA, Antônio (2001a: 49). 558 Vale salientar, que a obra de Eça de Queiroz fora comentada por Mario Sacramento como uma estética da ironia. 559 Cf. FERNANDES, M. Correia. (1998: 282). 560 Idem. pp.282-3. 561 Idem. pp.283-284.

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“E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o Pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe. Ecce exijt, qui seminat, seminare. Diz Cristo, que saiu o Pregador Evangélico a semear a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas faz também caso do sair: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura, e hão-nos de contar os passos. O mundo, aos quais lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dependeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão: os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura: aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura, e hão-lhes de contar os passos. Ah dia do Juízo! Ah Pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais Paço; os de lá, com mais passos: Exijt seminare.”562

No jogo de palavras, o mais comum é o emprego do singular e plural da mesma palavra

ou a repetição de nomes com sentidos diversos. Vejamos duas expressões mencionadas por

Correia Fernandes: “Ainda não o comeu a terra, e já o tem comido toda a terra” e “Alguns

ministros de sua Majestade não vêm cá buscar o nosso bem, vêm cá buscar os nossos bens”. A

denúncia irônica de Vieira transparece no confronto metonímico de bem/bens e na polissemia do

verbo buscar: no primeiro inciso traduz “promover, trabalhar por” e no segundo implica “tentar

encontrar” ou no fim de contas “roubar”563. No Sermão da Visitação de Nossa Senhora aparece

o uso polissêmico do verbo tomar, onde “tomar Pernambuco” significa conquistar ou ocupar

militarmente e no outro sentido de “apoderar-se de”; além da metáfora da doença e os seus

sintomas.564

562 Cf. VIEIRA, Antônio (2001a: 29). 563 Idem.p.285. 564 “El-Rei manda-os a tomar Pernambuco, e eles contentam-se com o tomar. Se um só homem que tomou, perdeu o Mundo, tantos homens a tomar, como não hão-de perder um Estado? Este tomar o alheio, ou seja o do Rei ou o dos povos, é a origem da doença; e as várias artes e modos e instrumentos do tomar são os sintomas, que, sendo de sua natureza muito perigosa, a fazem por momentos mais mortal. E senão, pergunto para que as coisas dos sintomas se conheçam melhor: – Toma nesta terra o Ministro da justiça? – Sim, toma. – Toma o Ministro da fazenda? – Sim, toma. – Toma o Ministro da república? – Sim, toma. – Toma o Ministro da milícia? – Sim, toma. – Toma o Ministro de Estado? – Sim, toma. E como tantos sintomas lhe sobrevêm ao pobre enfermo, e todos acometem à cabeça e ao coração, que são as partes mais vitais, e todos são atractivos e contractivos do dinheiro, que é o nervo dos exércitos e das repúblicas, fica tomado todo o corpo, e tolhido de pés e mãos, sem haver mão

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Dentro das ironias sutis de Vieira nos sermões, encontramos a metáfora das abelhas

para criticar o ataque dos holandeses à Bahia e a criação de uma simbiose entre o

natural/humano com uma imagem complexa das reações pessoais e coletivas.

“Desta proliferação de interpretações metafóricas e acomodatícias a cada passo utilizadas por Vieira, tanto as dos textos bíblicos ou outros, quanto sobretudo as das imagens que busca na natureza, na história, nas fábulas e na correnteza da vida documentam essa espécie de visão fantasmagórica como argumento do real que caracteriza a prosa de Vieira.”565

A leitura da Bíblia nos dois sermões de Vieira em vista da comemoração da libertação

da cidade de Salvador da Bahia, até então cercada pelos holandeses, traz as marcas mais vivas

das intensas batalhas. O sermão de Santo Antônio apresenta ousadas analogias entre o tempo

presente (a libertação da cidade) e os tempos de libertação narrados na Bíblia. “Os destinos de

Israel repetem-se nos de Portugal, até nos pormenores”. Era comum na época este tipo de

leitura da Bíblia, que procurava acomodar o texto bíblico à atualidade sem uma preocupação

com o sentido histórico do texto (“sentido acomodatício”).566

No Sermão do Bom Ladrão encontramos a seguinte estrutura: tema, exórdio, narração,

confirmação, confutação peroração. Não só o tema como toda a argumentação se funda na

Escritura, nos Santos Padres, nos teólogos, nos exegetas e nos filósofos, capazes de conduzir o

raciocínio com lógica.

Este sermão teve lugar na Igreja da Misericórdia de Lisboa e o texto da liturgia é a

palavra de Jesus ao Bom ladrão: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43). O argumento de

Vieira nesta primeira parte é que os reis não podem ir ao Paraíso sem os ladrões e, por outra, os

ladrões não podem ir ao inferno sem levar consigo os reis. Utiliza os dois ladrões, Dimas e

Zaqueu, para argumentar que sem a restituição do roubado não pode haver perdão. Ele busca esquerda que castigue e mão direita que premeie; faltando a justiça punitiva para expelir os humores nocivos e a distributiva para alentar e alimentar o sujeito, sangrando-o por outra parte os tributos em todas as veias, milagre é que não tenha expirado”. Apud. FERNANDES, M. Correia. (1998: 286). 565 Idem. p.288. 566 BESSELAAR, J. van den. (1981: 13).

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em santo Agostinho e São Tomás de Aquino a confirmação de que não apenas os súditos, mas

também os reis estão obrigados à restituição. Apresenta em seguida duas parábolas como

modelos exortativos: a parábola do administrador (Lc 16) e do rei que viaja e entrega a

administração aos empregados (Lc 19). E termina o seu sermão com uma invocação final:

“Rei dos Reis, e Senhor dos Senhores, que morrestes entre ladrões para pagar o furto do primeiro ladrão, e o primeiro a quem prometestes o Paraíso foi outro ladrão; para que os ladrões e os Reis se salvem, ensinai com vosso exemplo e inspirai com vossa graça a todos os Reis, que não elegendo, nem dissimulando, nem consentindo, nem aumentando ladrões, de tal maneira impidam os furtos futuros, e façam restituir os passados, que em lugar de os ladrões os levarem consigo, como levam, ao inferno, levem eles consigo os ladrões ao Paraíso, como vós fizestes hoje: Hodie mecum eris in Paradiso.”567

Um aspecto relevante ao tempo de Antônio Vieira é que em Portugal e sua colônia – o

Brasil - no século XVII (1580-1750) existia uma opção católica absolutista pela “transmissão oral

da traditio canônica, a concepção substancialista ou participativa do signo modelado segundo as

três analogias escolásticas, a possibilidade retórica de imitar uma tópica qualquer, numa

substância plástica ou numa substância verbal intercambiáveis, a forma aristotélica do

pensamento por imagens, a difusão dos padrões cortesãos da agudeza e da discrição, a

interpretação alegórica e providencialista dos eventos históricos e das coisas da natureza

etc.”.568

A opção pela traditio se deve em grande parte à contraposição que se estabelecera às

teses de Martinho Lutero de que para o fiel basta ter um Bíblia e lê-la individualmente,

estabelecendo no silêncio o seu contado com Deus. É a tese da sola scriptura. O que descarta a

figura mediadora do clero, dos ritos da Igreja. No Concílio de Trento, Jesuítas e Dominicanos,

representaram as grandes vozes de condenação a esta tese como sendo herética. Neste

contexto é que instituíram a traditio (tradição) que delimita nos textos que são aceitos e

567 Cf. VIEIRA, Antônio (2001b: 413). 568 Cf. HANSEN, João Adolfo (2002: 169-170).

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autorizados pela Igreja a verdade revelada. Assim, fica proibido o acesso à Bíblia (juntamente

com a leitura individual) e em contrapartida os fiéis devem participar dos ritos e sacramentos e

principalmente são obrigados à audição coletiva da pregação. A Bíblia vem pela boca do orador.

Daí se entende que dentre as ações da Companhia de Jesus na América (especialmente no

Brasil) esteja a espetacularização dos sacramentos, a teatralização catequética e a

hermenêutica teológica transmitida do púlpito. Uma das responsabilidades dos jesuítas em

Portugal e no Brasil consiste no ensino da eloqüência sacra nos seus colégios. Além disso, o

púlpito se torna um forte instrumento para a afirmação da devotio moderna (teoria e prática), na

qual o aspecto principal está na pregação que tem como objetivo intervir efetivamente na vida

dos fiéis.569

O sermão sacro jesuítico (“fala dramatizada pelo pregador para a audição e visão de um

público que deve ser persuadido da verdade e validade universal da doutrina católica”) era

composto de seis partes: exórdio, narração, divisão, confirmação, peroração e epílogo. Enquanto

gênero, os sermões de Vieira seguem a retórica aristotélica (deliberativos, judiciais e epidíticos).

No entanto, a palavra de Vieira desde o púlpito comove e impressiona570. Estamos falando do

púlpito, que neste momento, era um dos espaços privilegiados da oratória e da poesia satírica

com fins utilitários e polêmicos.

“A forma da linguagem organiza o pensamento de Vieira. Seu texto produz, constantemente, uma multiplicidade de sentidos capaz de esvaziar explicações tirânicas e conclusivas. Ou seja, a composição dos paradoxos impede que a Verdade se constitua em um só plano. A palavra, dentro de sua estrutura retórica, deve desencadear um processo de reflexão, solapando a forte tendência do pensamento cristão, definidor constante de uma versão unívoca da narrativa. A diversidade de encaminhamentos sugeridos pelo texto torna mais difíceis as justificações ingênuas em favor da escravidão, destruição ou morte. O discurso de Vieira, nesse sentido, desorganiza uma percepção simplificadora da fé. Esse é o elemento que institui a beleza e a liberdade de seu pensamento. Criava-se um grande desafio, ao qual a linguagem deveria responder,

569 Cf. HANSEN, João Adolfo (1999: 26) 570 Idem. pp.26-27.

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mantendo, ao mesmo tempo, sucessivas indagações ao sentido dos textos sagrados” 571.

Noutras palavras, podemos dizer que o discurso de Vieira é didático, teológico572 e

político, pois se adapta ao seu auditório e é capaz de ensinar, comover e envolver os ouvintes e,

além disso, transmitir questões altamente dogmáticas de maneira compreensível e clara. E

através do consilium seus sermões conduzem o tema bíblico para as questões econômicas e

políticas do momento presente.

Vieira representa no mundo sacro colonial a transmissão religiosa da traditio através de

uma cultura letrada que tornava a palavra compreensível para os olhos e ouvidos analfabetos.

Isto se processava, segundo o estilo barroco, numa linguagem em que se valorizavam as

metáforas e as alegorias. É preciso perceber que a leitura do texto, não é propriamente uma

apropriação leitora, mas aural, feitas pelo ouvido, pois, o saber ler e escrever se restringia aos

letrados que ocupavam lugares institucionais na hierarquia e nos aparelhos administrativos,

burocráticos e clericais.573

A leitura da Bíblia em Antônio Vieira é prisioneira do tempo, que por sua vez, “subordina

a natureza e a história como figuras ou alegorias factuais do divino”574. Na concepção teológica

de que o tempo é emanação de Deus, Vieira interpreta os acontecimentos do Império Português

como reais e o passado dos grandes personagens da Bíblia são exemplos a serem imitados pois

corroboram para o aperfeiçoamento do corpo místico do Império português. O discurso religioso

enfronhado pelo discurso político, é o que percebemos nas concordâncias que a palavra do

571 SILVA, Janice Theodoro da (2004: http://www.fflch.usp.br/dh/ceveh/public_html/biblioteca/livros/ab/) 572 Teológico por seguir os temas impostos pelo calendário litúrgico 573 Cf. HANSEN, João Adolfo (2002: 172). 574 HANSEN, João Adolfo (2003: 95).

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pregador estabelece “entre os homens e os eventos bíblicos e os homens e os eventos da

história de sua pátria, Portugal”.575

Vieira nos seus sermões “recicla conceitos predicáveis das Escrituras, citando-os

sempre em latim, com o que compõe um destinatário letrado em Cícero ou Virgílio, conhecedor

da Bíblia, de teologia etc. Simultaneamente, sempre traduz a citação latina em português,

redefinindo o que diz para tipos não-letrados e populares, adaptando a tradução às

circunstâncias em que prega o sermão.”576

Evidentemente que estamos lidando com algumas das categorias que vêm dos modelos

neo-escolásticos de interpretação:

“As categorias aplicadas fornecem os critérios da inteligibilidade dos sermões, constituindo normativamente a recepção, como uma pedagogia que, em cada ato da enunciação, ativa no destinatário a memória de tópicas retóricas relacionadas à técnica neo-escolástica da interpretação do verbo interior da Palavra de Deus. (...) Podia-se mesmo falar de uma leitura feita pela audição, ou seja, do reconhecimento das tópicas letradas imitadas no discurso independentemente de o destinatário saber ler”.577

Por isso muitos dos sermões são entremeados com a enunciação do texto e as

considerações hermenêuticas do pregador. Neste sentido, a exegese bíblica de Vieira funciona

muito mais como uma hermenêutica político-religiosa e moral dos textos, seguindo o esquema

patrístico-escolástico da alegoria factual. Como exemplo basta olharmos o Sermão da

sexagésima (Lc 8,11: a semente é a palavra de Deus).

Vieira, uma crítica ao sistema colonial?

Vieira, “jesuíta, conselheiro de reis, confessor de rainhas, preceptor de príncipes,

diplomata em cortes européias, defensor de cristãos novos e com igual zelo missionário no

575 Idem. p.97. 576 Cf. HANSEN, João Adolfo (2002: 178). 577 Idem. p.179.

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Maranhão e no Pará”.578 Também foi apresentado pelo biógrafo João Lúcio de Azevedo como “o

político” e num texto não datado, o descreve como “sogeito engenhoso, de juizo sutil, e agudo

sobremodo, suposto que tem tanto quanto de doudo, muito presumido e não pouco teimoso”. 579

A imagem de Vieira política está calcada na sua apaixonada defesa dos interesses do

sistema português. No entanto, Luís Gómez Palacín nos leva a perceber que nesta defesa

apaixonada perpassa uma crítica e uma negação ao Sistema Colonial, sob dois aspectos: a) a

impossibilidade de um governo colonial bom e justo; b) o sistema colonial é exploratório.580

Em termos de política econômica portuguesa, Vieira pode ser um representante do

mercantilismo em seus inícios, como afirma Luis Palacín ou um político tolerante que busca a

mais completa saúde financeira do reino português na opinião de Alessandro Manduco

Coelho.581

A crença na impossibilidade de um governo colonial bom e justo encontra-se aqui e

acolá nas entrelinhas de seus sermões e cartas. Esta impossibilidade é apresentada através de

suas críticas aos roubos e injustiças praticadas pelas autoridades. Por exemplo, como já vimos

anteriormente, no sermão de recepção ao novo governador da Bahia, utiliza a ironia do

bem/bens e a polissemia do verbo tomar. Outro exemplo de crítica ao sistema está no sermão do

bom ladrão, pregado em Lisboa em 1655, no qual Vieira analisa o verbo rápio para criticar os

roubos praticados pelos funcionários coloniais.582 A tese de Vieira é que o Sistema Colonial

578 Cf. BOSI, Alfredo. (2000: 119). 579 João Lúcio Azevedo. Apud. FONSECA, Fernando Taveira da (1997: 310). 580 Cf. PALACÍN, Luís Gómez. (1978: 31-54). 581Cf. COELHO, Alessandro Manduco (2003: 116). 582 “Está é a lembrança que devem ter todos os Reis, e a que eu quisera lhes persuadissem os que são ouvidos de mais perto. Que se lembrem não só de levar os ladrões ao Paraíso, senão de os levar consigo: Mecum. Nem os Reis podem ir ao Paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao Inferno sem levar consigo os Reis. Isso é o que hei de pregar. Ave Maria. (...) Quer dizer: a rapina, ou roubo, é tomar o alheio violentamente contra vontade do seu dono: os Príncipes tomam muitas coisas a seus vassalos violentamente, e contra sua vontade; logo parece que o roubo é lícito em alguns casos, porque se dissermos, que os Príncipes pecam nisto, todos eles, ou quase todos se condenariam: fere omnes Príncipes damnarentur: Oh que terrível e temerosa conseqüência; e quão digna de que a considerem profundamente os Príncipes, e os que têm parte em suas resoluções e conselhos! (...)

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corrompe necessariamente os governantes, como podemos ver no sermão pregado no

Maranhão que usa a imagem de César:

“todos os que governam são imagens de seus príncipes, porque os representam na pessoa e no exercício dos poderosos”. Para Vieira e para os escolásticos de seu tempo a sociedade é uma instituição natural, cuja finalidade é a procura do bem comum. A procura do bem comum é, pois, a única razão do ser da sociedade civil. A autoridade, porém, é um meio necessário para dar forma à sociedade, e conduzi-la nesta procura do bem comum”.583

No sermão da Terceira Dominga da Quaresma (na Capela Real, ano de 1655) Vieira

lança uma crítica aos ministros que acumulam cargos sem a capacidade de ocupá-los e que se

elegem não por mérito, mas por relações de amizade. Roubo, falsificação de decretos, utilização

Respondo (diz S.Tomás) que se os Príncipes tiram dos súditos o que segundo justiça lhes é devido para conservação do bem comum, ainda que o executem com violência, não é rapina, ou roubo. Porém se os Príncipes tomarem por violência o que se lhes não deve, é rapina e latrocínio. Donde se segue, que estão obrigados à restituição como os ladrões; e que pecam tanto mais gravemente que os mesmos ladrões, quanto é mais perigoso e mais comum o dano, com que ofendem a justiça pública, de que eles estão postos por defensores. (...) O ladrão que furta para comer não vai nem leva ao Inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são os ladrões de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento distingue muito bem S. Basílio Magno... Não são só ladrões, diz o Santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título, são aqueles a quem os Reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governa das Províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam Cidades e Reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo: os outros se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e Ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. Ditosa Grécia, que tinha tal Pregador! E mais ditosa as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas. Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um Cônsul, ou Ditador por ter roubado uma província! E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? (...) Encomendou el-rei D. João o Terceiro a S. Francisco Xavier o informasse do Estado da Índia, por via de seu companheiro, que era Mestre do Príncipe; e o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios nem pessoas, foi que o verbo rapio na Índia se conjugava por todos os modos. A frase parece jocosa em negócio tão sério, mas falou o servo de Deus como fala Deus, que em uma palavra diz tudo. Nicolau de Lira, sobre aquelas palavras de Daniel: Nabucodonosor rex misit ad congregandos satrapas, magistratus et judices, declarando a etimologia de sátrapas, que eram os governadores das províncias, diz que este nome foi composto de sat e de rapio: Dicuntur satrapae quasi satis rapientes, quia solent bona inferiorum rapere: Chamam-se sátrapas, porque costumam roubar assaz. E este assaz é o que especificou melhor S. Francisco Xavier, dizendo que conjugam o verbo rapio por todos os modos. O que eu posso acrescentar, pela experiência que tenho, é que não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também das partes daquém, se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo rapio, porque furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos e esquisitos, que não conheceu Donato nem Despautério.” VIEIRA, Antônio (2001b: 387-400). 583 Cf. PALACÍN, Luís Gómez (1978: 40).

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de artifícios para favorecimento próprio são os pecados das lideranças. Nesta perspectiva,

exorta-os em seu sermão a confessarem os seus pecados e crimes.

A visão do sistema colonial como exploração das colônias perpassa pela política

econômica concebida por Vieira, a qual era decididamente mercantilista (numa primeira fase). O

comércio constitui uma verdadeira variável independente na criação da riqueza das nações:

“A razão de as nações sobreditas – Inglaterra, França e Holanda – se empregarem com tanto cabedal no poder marítimo é principalmente a utilidade dos comércios, tendo conhecido todas as coroas e republicas, por experiência, que só comerciando se podem fazer opulentas, e que os frutos das terras próprias apenas bastam ao sustento dos naturais. O imperador e todos os príncipes da Itália interior são pobríssimos; e as riquezas de Veneza, Gênova e Florença, todas lhes vêm dos seus portos e comércios...”584

Herman Vos585 nos apresenta o seguinte cenário para compreender a relação entre

Vieira e os interesses político-econômicos de Portugal. O “milagre europeu” resultou de um

processo histórico que combinou economias de mercado, pluralismo político-militar e liberdade

intelectual, na opinião de Paul Kennedy.586 De um lado, o comércio e os comerciantes atuavam

como fatores dinâmicos na transformação da sociedade, na criação de novas atividades

econômicas e na configuração do espaço mundial em complexos interligados e, de outro,

aparece paulatinamente uma pluralidade de centros de poder. No entanto, não podemos

esquecer que grande parte do século XVII Portugal será marcado por um “mal-estar” econômico;

em contrapartida vai se dar o fenômeno do crescimento econômico das Províncias Unidas, no

qual Amsterdã se firma como capital financeira por suas atividades produtivas e comerciais.

Assim, os holandeses dominam o comércio norte-sul na Europa e estabelecem-se com

habilidade nos circuitos comerciais do Extremo-Oriente, em detrimento dos portugueses.

584 VIEIRA, Antônio. Cartas. Apud. PALACÍN, Luís Gómez (1978: 42). 585 Cf. VOS, Herman. (1993: 568-595). 586 Paul Kennedy. Apud. Herman Vos (1993: 569).

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As mudanças econômicas foram incentivadas pelas transformações na produção rural

com o uso de novas técnicas, que culminaram no aumento do plantio de culturas mais nobres e

de alto valor agregado. Podemos dizer que o sistema econômico holandês no século XVII se

caracteriza “por uma comercialização rural avançada e uma integração marcante entre a

agropecuária e a indústria rural”.587 Outro fator preponderante é a formação de rotas comerciais

que marcarão as facetas de um mercantilismo como força unificadora e fortalecimento do

Estado. Daí o caráter belicista e militar do comércio internacional, que transmitia uma visão

mercantil da sociedade.

“... O comércio tem se tornado agora a dama que atualmente está sendo mais cotejada e celebrada que em qualquer época anterior, por todos os príncipes e potentados do mundo, e isto com razão: porque ela não conquista seu domínio pela face hórrida e triste da guerra, cujas pegadas sempre deixam para trás marcas profundas de miséria, devastação e pobreza; mas com o aspecto agradável de riqueza e opulência de todas as coisas que levam ao benefício da vida humana e da sociedade...”588.

Vieira numa carta ao Rei D. Afonso VI (20 de abril de 1657) diz:

“E porque à nossa noticia tem chegado que, contra os missionários que neste Estado servimos a Deus e a V.M., e contra o governo da dita missão, se têm presentado a V.M. algumas queixas, pedimos humildemente a V.M. seja V.M. servido mandar-nos dar vista de todas, ainda que sejam das que tocarem ao Estado, porque a todas esperamos satisfazer de maneira, que fique conhecido com grande clareza quão úteis são os missionários da Companhia, não só ao melhoramento espiritual dos portugueses e índios, senão ainda ao temporal de todos”.589

Vieira se empenha na formação da Companhia Geral do Comércio do Brasil (proposta

que aparece em várias de suas cartas), porém, na carta ao Marquês de Niza aponta os

interesses portugueses:

“(...) 1o enfraquecermos o poder de Holanda que sempre nos deve ter em receio, como de inimigo tão vizinho em toda a parte; 2o crescer o reino a grande

587 VOS, Herman (1993: 572). 588 Roger Coke. Apud. VOS, Herman (1993: 581). 589 Cartas do Padre Antônio Vieira. Apud. VOS, Herman (1993: 583).

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opulência e ficar desembaraçado da assistência das conquistas, que tanta gente e dinheiro nos divertem...”590

Noutra carta apresenta a sua visão sobre o comércio de longo curso:

“A razão de as nações sobreditas (Inglaterra, França e Holanda) se empregarem com tanto cabedal no poder marítimo é principalmente a utilidade dos comércios, tendo conhecido todas as coroas e republicas, por experiência, que só comerciando se podem fazer opulentas, e que os frutos das terras próprias apenas bastam ao sustento dos naturais. O Imperador e todos os príncipes da Itália interior são pobríssimos; e as riquezas de Veneza, Gênova e Florença, todas lhe vêm dos seus portos e comércios, sobre os quais cuidam e vigiam com tal gelosia, e especulam com tal atenção, agudeza e minudencia, que puderam parecer nimiedade e ainda vileza, se não foram as conseqüências de tanta importância”.591

Evidentemente, em Vieira estão em conflito o pensador, o mercantilista e o moralista. De

um lado, defende o mercantilismo e colonialismo português, até mesmo reconhecendo aspectos

que são condenáveis, como podemos perceber na leitura de Luís Palacín. E, de outro, deseja

propagar e implantar o Reino de Deus. Daí encontrarmos em seus sermões uma crítica à

desigualdade de relações entre Portugal e Brasil e a violência praticada contra os índios.

Vejamos as palavras de Vieira a Duarte Ribeiro:

“Porque, sendo o intento de Santo Inácio, nos mesmos Exercícios, propor a todos os meios eficazes de compor e moderar as paixões que nos desviam do último fim, eu, considerando nas minhas, e na predominante contra a qual deve ser o maior combate, achei que era o afecto português e imoderado amor e zelo da pátria; e contra este tão forte inimigo me tinha armado, convencendo-me com tantas razões quantas em mim concorrem mais que em outros”.592

Os interesses de Antônio Vieira eram acima de tudo político-estratégicos. Em suas

cartas, com certa freqüência, deixa transparecer o objetivo de fortalecer o império português,

sobretudo contra a Holanda. Este fortalecimento passa pela constituição de Companhias de

Comércio em Portugal, para tanto seria necessário aproveitar o capital dos judeus de Portugal e

590 Cartas de Padre Antônio Vieira. Apud. VOS, Herman (1993: 584) 591 Idem., p.585. 592 Idem., p.594.

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cuidar do plantio das drogas da Índia no Brasil. A política de Vieira insere-se numa tradição

mercantilista na qual a atividade econômica tem de estar a serviço da política. Também,

podemos perceber nas suas cartas a visão do comércio de longo curso como fonte de riqueza e

poder das nações juntamente com a visão monetária do mercantilismo que via no dinheiro o

motor do progresso econômico.593

“Vieira não estava de acordo com a força da nobreza que impunha a permanência de velhos privilégios e uma injusta política tributária, isto é, rigor excessivo com o estamento povo e isenção tributária para a nobreza. O lucro obtido com a atividade mercantil era investido em atividades não produtivas: no luxo e na suntuosidade dos templos e palácios. Discorda da destinação das riquezas no âmbito da nação; critica a linha voraz mercantilista que explora a colônia de forma predatória; suga as classes subalternas; depreda a natureza de forma inconseqüente; leva a riqueza à custa de sacrifícios dos homens pobres, à custa da escravização de indígenas e de maus tratos aos negros.”594

Alfredo Bosi elenca nove características de base na formação econômico-social do

Brasil-Colônia: 1) a predominância de uma camada de latifundiários ligados a grupos mercantis

europeus; 2) a força de trabalho que se constituía basicamente de escravos; 3) a vida em

quilombos era a alternativa vislumbrada pelo escravo numa sociedade marcada pela lei, trabalho

e opressão; 4) os proprietários, chamados de homens bons do povo, exerciam o poder político

nas administrações locais. O poder mais amplo estava nas mãos dos governadores que eram

nomeados pelo rei; 5) o exercício da cidadania é duplamente limitado (pelo Estado e pela

correlação de forças); 6) o clero no sistema do padroado é dependente econômica e

juridicamente dos senhores da terra e agem, assim como seus funcionários, só mais tarde

aparecerão as figuras dos ditos padres liberais e radicais; 7) as ordens religiosas cumprem a

missão junto aos índios (projeto de expansão portuguesa); 8) a cultura letrada é rigorosamente

593 Cf. VOS, Herman (1993: 594-5). 594 Cf. MOURA, Antônio de Paiva (2003: 69).

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estamental e o domínio do alfabeto é reservado a poucos, e 9) a criação popular foi produzida

em espaços isolados ou na fronteira entre códigos eruditos ou semi-eruditos.595

No tocante à insistência de Vieira na aceitação dos judeus e da mudança no estilo da

Inquisição transparece uma intencionalidade de ordem econômica. Mas, não somente.

Encontramos aí também os interesses atrelados à coroa (monarquia portuguesa).596 Neste

sentido, aparece no Sermão de Santo Antônio (pregado na Igreja das Chagas em Lisboa, no ano

de 1642) um forte apelo à unidade do reino português aliado às questões tributárias. Vieira

propõe uma reforma tributária que provoca a reação dos agentes que eram beneficiados pelo

Antigo Regime (a nobreza e o poder eclesiástico). Por isso, utiliza no seu sermão a simbologia

do remédio para exemplificar a sua proposta de reforma e mudança estrutural. “O sal é o

remédio da corrupção, mas remédio preservativo: não remedeia o que se perdeu: mas conserva

o que se pudera perder, que é o que temos necessidade”.597 Noutras palavras, Vieira propõe

uma distribuição eqüitativa e igualitária dos tributos e, com isso, mexe com aqueles que vivem

das benesses e que só fazem lamentar diante de sua proposta. Com muita sabedoria,

correlaciona os três Estados do Reino (Eclesiástico, a Nobreza e o Povo) com os três elementos

componentes do sal (fogo, água e ar).598

No sermão do Santíssimo Sacramento, Vieira faz uma pregação sobre a união, na qual

propõe o entendimento do sacramento não somente como união com Cristo, mas como união

595 Cf. BOSI, Alfredo (2000: 23-25). 596Cf. COELHO, Alessandro Manduco (2003: 116-117). 597 Cf. VIEIRA, Antônio (2001b: 319). 598“Assim como o sal é uma junta de três elementos, fogo, ar e água, assim a República é uma união de três estados, eclesiástico, nobreza e povo. O elemento do fogo representa o estado eclesiástico, elemento mais levantado que todos, mais chegado ao céu e apartado da terra; elemento a quem todos os outros sustentam, isento ele de sustentar ninguém. O elemento do ar representa o estado da nobreza, não por ser a esfera da vaidade, mas por ser o elemento da respiração, porque os fidalgos de Portugal foram o instrumento felicíssimo por que respiramos, devendo este reino eternamente à resolução de sua nobreza os alentos com que vive, os espíritos com que se sustenta. Finalmente, o elemento da água representa o estado do povo: Aquae sunt populi – diz um texto do Apocalipse – e não como dizem os críticos, por ser elemento inquieto e indômito, que à variedade de qualquer vento se muda, mas por servir o mar de muitos e mui proveitosos usos à terra, conservando os comércios, enriquecendo as cidades, sendo o melhor vizinho que a natureza deu às que amou mais”. Idem., p.326

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entre os homens. Admoesta neste caso, sobretudo, os portugueses. Utiliza em vários momentos

a leitura de Daniel 2-3 acerca da imagem da estátua.599 A partir disto, João Adolfo Hansen

observa que:

“os temas entrelaçados da unidade, do bem comum e da amizade das partes do corpo político são centrais na sátira barroca seiscentista, aliás, que os dispõe como oposição de mundo das relações pessoais virtuosas e, também, da ordem definida pelas relações econômicas impessoais e viciosas, que tiram de si mesmas sua justificação, traduzindo como ‘amor falso’, ‘moral ódio’.”600

No sermão de Quarta feira de Cinza, em Roma, na Igreja de S. Antônio dos

Portugueses, ano de 1672, Vieira toma como referência Jó 10,9. Ao falar de pó levantado e pó

caído retoma a narrativa do sonho da estátua de Nabucodonosor (Dn 2):

“Pó levantado, lembra-te outra vez, que hás de ser pó caído, e que tudo há de cair, e ser pó contigo. Estátua de Nabuco: ouro, prata, bronze, ferro, lustre,

599“A estátua de Nabucodonosor de pés à cabeça era composta daquela variedade de metais que todos sabemos. A cabeça de ouro, o peito de prata, o ventre de bronze, do ventre aos pés de ferro, os pés de ferro e de barro. E nota o texto sagrado, que o ferro e o barro dos pés não estavam unidos: Sicuti ferrum misceri non potest testae, etc. De maneira que o ouro estava unido com a prata, e a prata estava unida com o bronze, mas o barro dos pés não estava unido com o ferro. Olhai por onde rendeu a estátua, olhai onde estava a desunião; nos pés e no barro. A parte mais baixa da estátua eram os pés, a matéria mais vil dos metais era o ferro e o barro; e onde estava a maior baixeza, e a maior vileza, ali se achou a desunião. Pelo contrário, o mais alto da estátua era a cabeça e o peito: o mais ilustre dos metais era o ouro e a prata, e o que na estátua era o mais alto e o mais ilustre, isso era o que estava unido. À cabeça e ao peito, ao ouro e à prata não lhes faltavam seus altibaixos em que poder tropeçar a desunião. A prata pudera dizer que era mais branca que o ouro; o ouro pudera dizer que tinha mais quilates que a prata; a cabeça pudera dizer que tinha mais juízo que o peito; o peito pudera dizer que tinha mais coração que a cabeça. Mas como a cabeça e o peito, como o ouro e a prata eram o mais alto e o mais ilustre, todos se compunham entre si, todos estavam unidos. Quis Nabuco emendar o erro, ou melhorar a fortuna da estátua que vira, e mandou fazer outra estátua, dos pés até a cabeça toda de ouro. Fecit statuam auream. E esta estátua toda de ouro tinha alguma desunião? Nenhuma. Como tudo era ilustre, tudo estava unido. Tão própria qualidade, e tão próprio atributo é da nobreza a união! Mas se esta estátua toda de ouro (vede o que agora digo), se esta estátua toda de ouro tivera alguma desunião, ainda que a desunião fora na cabeça, também havia de ter pés de barro. Pés de barro? Pois como assim, se da cabeça até os pés toda a estátua era de ouro, e se a desunião, como supomos, não estava nos pés, senão na cabeça? Por isso mesmo. Porque ouro sem união é barro; e cabeça sem união é pés. Não havemos de ir longe buscar a prova. Quando esta mesma estátua de Nabuco se desfez em pó e foi levada dos ventos por esses ares, diz Daniel (que é o Autor desta prodigiosa história) que se desfez o ouro, a prata, o bronze e todos os outros metais e que todos se converteram em pó da terra: Quase in favillam aestivae areae. Aqui é o meu reparo e grande reparo. Que os pés de barro se convertessem em pó da terra, bem está; mas o ferro parece que se havia de converter em pó de ferro, e o bronze em pó de bronze, e a prata em pó de prata, e o ouro em pó de ouro, ou em ouro em pó. Mas não foi assim o caso. Pois por que razão o ouro da cabeça, e os metais dos outros membros se converteram em pó da terra como o barro dos pés? Porque andando se desfez a estátua desuniram-se todos os membros, e desuniram-se todos os metais; e como houve desunião, o ouro e todos os outros metais logo foram barro; a cabeça e todos os outros membros logo foram pés...”. VIEIRA, Antônio (2001b: 165-166). 600 João Adolfo Hansen. Apud. COELHO, Alessandro Manduco (2003: 123).

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riqueza, fama, poder; lembra-te que tudo há de cair de um golpe, e que então de verá o que agora não queremos ver, que tudo é pó, e pó de terra. Eu não me admiro, senhores, que aquela Estátua em um momento se convertesse toda em pó; era imagem de homem, isso bastava. O que me admira, e admirou sempre, é que se convertesse, como diz o Texto, em pó de terra: In favillam aestivae areae. A cabeça da Estátua não era de ouro? Pois por que se não converte o ouro em pó de ouro? O peito e os braços não eram de prata? Por que se não converte a prata em pó de prata? O ventre não era de bronze,e o demais de ferro. Por que se não converte o bronze em pó de bronze, e o ferro em pó de ferro? Mas o ouro, a prata, o bronze, o ferro, tudo em pó de terra? Sim. Tudo em pó de terra. Cuida o Ilustre desvanecido que é de ouro, e todo esse resplandor em caindo, há de ser pó, e pó de terra. Cuida o Rico inchado que é de prata, e toda essa riqueza em caindo, há de ser pó, e pó de terra. Cuida o Robusto o que é de bronze, cuida o Valente que é de ferro, um confiado, outro arrogante; e toda essa fortaleza, e toda essa valentia em caindo, há de ser pó,e pó de terra: In favillam aestivae areae... Nabuco depois de ver a estátua convertida em pó edificou outra estátua. Louco, que é o que te disse o Profeta? Tu rex es caput: Tu, rei, és a cabeça da Estátua. Pois se tu és a cabeça e estás vivo; olhe a cabeça viva para a cabeça defunta: olhe a cabeça levantada para a cabeça caída: olhe a cabeça para a caveira. Oh se Roma fizesse o que não soube fazer Nabuco! Oh se a cabeça do mundo olhasse para a caveira do mundo! A caveira é maior que a cabeça: para que tenha menos lugar a vaidade e maior matéria o desengano...”601

Assim, no nível da alegoria, tanto o cotidiano dos grupos sociais como os seus desejos e

conflitos, ou são degradados ao nível do bestial ou são sublimados pelo mecanismo ideológico

de dizer uma coisa para fazer entender outra.602 Muitas vezes o discurso alegórico transmitia

através de suas imagens um juízo radical do poder e, noutras, exerce um grande poder de

persuasão que faz dele instrumento de aculturação. Para Bosi, a alegoria foi o primeiro

instrumento de uma arte para massas criada pelos intelectuais orgânicos da aculturação.603

Vale salientar que a exegese dos oradores sacros transporta para as suas

interpretações o caráter de “inspiração” que acompanham os textos da Escritura

Sagrada604, associando assim a interpretação alegórica das Escrituras à retórica antiga.605

601 VIEIRA, Antônio (2001a: 62 e 64). 602 Cf. BOSI, Alfredo (2000: 80). 603 Idem., p.81. 604Cf. VIEIRA, Antônio (2001a: 11): “A leitura dos acontecimentos históricos e suas redes de causas exigem ser interpretados como articulações de um relato tão inspirado quanto o das Escrituras”. 605 Idem., pp.12-13. “No signo-coisa da Bíblia ou na coisa-signo da história, os objetos que se apresentam ao intérprete têm o mesmo estatuto de figuras que precisam ser lidas como fatos históricos, mas também como mensagem providencial. (...) Os acontecimentos são factualmente, em seu próprio

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Assim, a leitura que apresentam do texto não passa de uma versão mais atualizada deste,

e que só pode ser descoberta gradualmente no discurso do tempo. Isto se processa no

sermão enquanto “ação verbal de descoberta e atualização dos sinais divinos ocultos na

ação do mundo”.606

“(...) os sentidos das Escrituras respondem à urgência dos acontecimentos. A exegese não trata apenas de, por assim dizer, espiritualizar os fatos narrados nas Escrituras, mas de guardar o seu sentido literal de ato – não para recusar obviamente a dimensão figural das Escrituras, mas para evitar a resolução dos seus sentidos pertinentes numa dimensão a-histórica. Não é apenas do sentido espiritual dos relatos bíblicos que caberia esperar a eficácia atual na conversão dos homens, mas de sua conciliação com as ocasiões em que se efetiva a história”.607

Os sermões de Vieira, bem ao gosto barroco, são construídos a partir de um

virtuosismo lingüístico e arranjo hiperbólico tortuoso nos quais efeitos retóricos são

necessários para o convencimento do auditório. Por isso, a construção de imagens e

símbolos produz impactos ornamentais, carregados de interesses políticos e justificativas

de hermenêutica teológica.

Alcir Pécora termina a sua apresentação da edição dos Sermões de Vieira, dizendo que:

“neste modelo da oratória sacra, compreende-se que teologia, retórica e política constituam uma indissolúvel unidade semântica, a operar uma economia de salvação. Ao pregador ‘digno do nome’ cabe necessariamente examinar os signos divinos nas coisas, ordená-los como provas discursivas capazes de mover vontade e razão dos fieis e, enfim, sistematizá-los como política voltada para o triunfo histórico do corpo místico”.608

processo de ocorrência a significação da verdade de que participam. Apenas por existir enquanto movimento e ato, podem sinalizar o Ser. Os fatos históricos, desse ponto de vista, não são símbolos de Deus: são o lugar especifico da presença que Deus lhes comunica”. 606 Idem. 607 Idem., p.14. 608 Idem., p.25.

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1. Milenarismo, Messianismo e Quinto Império em Vieira

A obra História de Portugal escrita por Fernando Oliveira (ou Fernão Oliveira)609, no

contexto da crise sucessória de 1580, foi aquela que pela primeira vez traçou alguns aspectos

acerca do mito das origens do reino de Portugal. Aliás, enquanto quinhentista, humanista e

historiador de uma corrente européia fascinada pelas origens, Fernando Oliveira tenta elaborar

uma historiografia mítico-política.610 A sua leitura sobre as origens do reino português tem, de

um lado, um caráter mítico-teológico e “messiânico” que se funda na genealogia mítica pós-

diluviana que encontramos em Gênesis 10 (o reino de Portugal tem Tubal como o seu grande

patriarca611) e, de outro, no seu conflito com o seu mestre André de Resende sobre a

antiguidade da cidade de Évora em contraposição à Roma (conflito marcado talvez pelo papel

desempenhado por André no processo de condenação inquisitorial a Fernando Oliveira). Neste

aspecto, Vieira utiliza a leitura de Daniel 2 para condenar a visão de uma supremacia de Roma

como cidade antiqüíssima.612

609 Fernão Oliveira (ou numa tradução moderna: Fernando Oliveira) viveu de 1507 a 1582, escritor humanista português se formou na cidade de Évora, no convento dos Dominicanos. Sua primeira obra intelectual foi a Gramática da Língua Portuguesa (1536) e se debruça no período do pleito sucessório de 1580 no seu projeto historiográfico de uma história global do reino de Portugal. Este livro foi editado por FRANCO, José Eduardo (2000). 610 Ver FRANCO, José Eduardo. Fernando Oliveira, o construtor do mito de Portugal. O mito de Portugal no contexto dos mitos das origens das nacionalidades européias na modernidade. Cadernos do ISTA (Instituto S. Tomás de Aquino). 611 “Pegando no legado cultural do imaginário oferecido pelos modelos de construção judeo-cristã da história, em que a Bíblia emerge como a fonte angular, o historiador constrói uma autêntica teologia da história do reino de Portugal, num diâmetro cultural miticamente retrotraído até à segunda idade do mundo. Em Tubal é constituída ontologicamente a nação com um território, um povo, uma organização política de tipo monárquico, um nome e uma missão histórica intrínseca. Reino que vai ser alvo, na sua evolução também ela mítica, de todas as tentativas de espoliação por diversos povos estrangeiros, mas cuja herança será salvaguardada, essencialmente, num resto de território e de povo, herdeiro biológico, cultural e político do progenitor bíblico.” José Eduardo Franco. Fernando Oliveira, o construtor do mito de Portugal. O mito de Portugal no contexto dos mitos das origens das nacionalidades européias na modernidade. 612“Évora cidade também bem antiga. De cuja antiguidade em nossos dias escreveu mestre André de Resende, natural dela e homem havido por mui lido e amigo de antiguidades e curioso de ler pedras romanas. Porém, porque tinha o entendimento duro como as mesmas pedras, não se sabia desapegar delas e cuidara que em Roma se compreendiam todas as antiguidades. Mas Roma não foi a mais antiga do mundo, nem o seu reino o melhor, como sabemos pela profecia de Daniel profeta, e contando-se o tempo de Évora pelo de Roma não pode ser muito antiga. Mas a mim me parece que é mais antiga e parece-me que é do tempo daquele Hércules Líbio que acima fica dito; porque Beroso diz que as suas gentes, depois que ele morreu, povoaram, na Hespanha, certas cidades e uma delas chamaram Libora. Esta põe Ptolemeu, na sua Geografia, junto do rio Tejo da parte sul, na comarca onde está Évora. E

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Outro aspecto da historiografia de Fernando Oliveira relevante a ser tratado, aqui são os

paralelos entre a noção de povo eleito (Israel) com a construção do reino de Portugal; nos dois

casos, age a providência e eleição divina. Neste sentido, a eleição de Israel torna-se a

prefiguração da escolha e predileção da nação portuguesa. Daí constrói-se a imagem de D.

Afonso Henriques de Borgonha (também de outros monarcas portugueses) como rei messiânico,

restaurador e salvador da nação decaída.613 Evidentemente, que esta idéia, numa linha utópica,

liga-se às elaborações do mito do Quinto Império (ou Quinta Monarquia), como encontramos em

Antônio Vieira e Frei Sebastião de Paiva.614

O messianismo português apresenta-se influenciado pelo milenarismo de origem

Joaquimista, ou seja, uma corrente milenarista que tem as suas origens nos escritos de Joaquim

di Fiori (1145-1202) e na apocalíptica judaico-cristã (especialmente o livro de Daniel e o livro do

Apocalipse).615

Conforme Jean Delumeau, o Joaquimismo fortaleceu os grandes temas apocalípticos,

isto é, alimentou a idéia de uma Igreja dos contemplativos e não dos clérigos e o sonho de que

porquanto naquele sítio, nem em toda a Hespanha não há outra cidade, cujo nome se pareça com Libora tanto como Évora, não me parece inconveniente dizer que é a mesma e que é mais antiga do que a faz mestre André; e mais, que não mudou muito daquele nome Libora. Se me disserem que naquele sítio há um castelo que se chama Évora Monte e que esse deve ser o antigo, direi que por ter sobrenome parece mais novo, porque lho puseram para distinção destoutra que já estava povoada primeiro. E mais, em Évora cidade sabemos que se acolheu o capitão Sertório e não em Évora Monte, nem de Alcobaça. E disto de Sertório se toma um bom argumento para provar a antiguidade desta cidade, porque Sertório foi antes dos Césares, e achou já Évora povoada e forte; e, por isso, se acolheu nela, porquanto ele não tinha possibilidade nem vagar para a povoar e fortificar, como lhe cumpria para se defender do poder dos Romanos”. Fernando Oliveira. Apud. FRANCO, José Eduardo (2000). 613 FRANCO, José Eduardo. Fernando Oliveira, o construtor do mito de Portugal. O mito de Portugal no contexto dos mitos das origens das nacionalidades européias na modernidade. 614 Antônio Vieira. História do Futuro e Clavis Prophetarum.(Talvez uma das mais célebres obras do Padre Vieira, que trata de maneira mais alongada os vários temas dos seus sermões. O seu sub-título, "De Regno Christi in Terris Consumato", sugere a visão missionária e evangelizadora do sermonista) e Frei Sebastião de Paiva. Tratado da Quinta Monarquia e felicidades de Portugal profetizadas. 615 “Independentemente do messianismo que cimenta e unifica a construção especulativa de permanente solicitação, em pluridimensionamento e amplificação próprios, Vieira participa da concretude de uma multividência do barroco, época que acentua até ao excesso confrontos e tensões. A predisposição solar de consumação de um poder universal, optimista, de matriz cristã, em que um rei português seria investido, não pode deixar de ser referenciada, todavia, pelo contraste das idéias tematizadas no seu tempo, nomeadamente de uma idade de ouro versus idade de ferro, ou sublinhada, de um modo mais pungente , quando denuncia um ‘tempo de fezes’.” Ver: José Esteves Pereira. O Sol e a Lua: desígnios políticos de Vieira. Brotéria – Cristianismo e Cultura, vol.160, n.5/6, 2005, p.491.

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os menos favorecidos reinariam no mundo. Estes elementos foram muito difundidos pelos

franciscanos na Idade Média que esperavam a ressurreição de São Francisco.616

A hermenêutica de Antônio Vieira presente em seus sermões tem um forte cunho

milenarista e escatológico, de modo especial, ao tratar das relações entre o homem, o tempo e a

história. O Livro Anteprimeiro da História do Futuro, escrito em meio à volta de Vieira a Portugal

depois de nove anos vividos no Maranhão, aborda a concepção política do “Quinto Império” a se

instaurar na terra. No entanto, numa primeira leitura dos Sermões de Vieira, descobriremos que

a sua pregação não é propriamente milenarista, no que se refere à crença de um futuro reinado

de Cristo sobre a terra por mil anos.617

Para Pedro Lima Vasconcellos a

“leitura de um texto como o de Jean Delumeau faz desconfiar que as implicações utópicas e políticas de um texto como Ap 20 nunca passaram despercebidas. Afinal de contas, falar de um fim imediato incomoda. Fragiliza certezas firmadas. Incentiva revisões e novas escolhas. Desestabiliza, de toda forma.”618

Serafim Leite ao comentar o livro de Raymond Cantel (Prophétisme et messianisme

dans l’oeuvre d’Antonio Vieira) diz que para compreendermos o profetismo e o messianismo de

Vieira é preciso estudá-lo em bloco “não apenas na História do Futuro, na Clavis Prophetarum,

na Defesa do Quinto Império, nas Esperanças de Portugal, na Carta Apologética, mas também

616 Cf. DELUMEAU, Jean (1999) e COELHO, Alessandro Manduco (2003: 125, n.28). 617“No cristianismo deve chamar-se de milenarismo a crença num reino terrestre vindouro de Cristo e de seus eleitos – reino este que deve durar mil anos, entendidos seja literalmente, seja simbolicamente. O advento do milênio foi concebido como devendo situar-se entre uma primeira ressurreição – a dos eleitos já mortos – e uma segunda – a de todos os outros homens na hora de seu julgamento. O milênio deve, portanto, intercalar-se entre o tempo da história e a descida da Jerusalém celeste. Dois períodos de provações irão enquadrá-lo. O primeiro verá o reino do Anticristo e as tribulações dos fiéis de Jesus que, com este, triunfarão das forças do mal e estabelecerão o reino de paz e de felicidade. O segundo, mais breve, verá uma nova libertação das potências demoníacas, que serão vencidas num último combate.” Jean Delumeau (1997: 18-19). Sobre a interpretação dos “mil anos” ver: AAVV. Apocalipse de João e a mística do Milênio. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n.34, 1999 e Richard Heinberg. Memórias e visões do paraíso. 1991, pp.150-151. 618Cf. VASCONCELLOS, Pedro Lima. A vitória da vida: Milênio e reinado em Apocalipse 20,1-10. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n0. 34, 1999, pp.79-80.

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nos seus numerosos volumes de Sermões e Cartas, e, além disto, nos escritos dos seus

contemporâneos, sobretudo nas fontes portuguesas do sebastianismo e profetismo”.619

Vieira, demonstra em seus sermões uma soberana independência do vocabulário e a

originalidade de suas imagens tiradas, freqüentemente, da tradição literária e da Bíblia. O seu

grande mérito está no modo como explora as imagens e lhes dá novidade pelo sortilégio do seu

visionarismo, como afirma Raymond Cantel.620 Para João Mendes, Vieira tem a tendência de

transformar a imagem em alegoria: “prolonga a imagem ou comparação, num ritmo expansivo...

esquadrinhando sentidos, fazendo incidir o seu visionarismo radical, na descoberta de novas

relações entre os termos associados na figura de estilo”. E daí que “a alegoria se presta

maravilhosamente a combinar-se com a ironia”, pois “esta consiste em significar o contrário do

que as palavras dizem no seu sentido imediato”.621

Vieira utiliza dois termos com forte teor apocalíptico: “maravilha” e “mudança”. Assim,

“com esta tendência para o maravilhoso, não admira que haja certas passagens da Bíblia que

exerçam sobre o Orador um acentuado fascínio. Uma delas é o episódio da estátua de

Nabucodonosor. O que é natural já que este era um dos textos em que mais se fundamentava a

profecia do Quinto Império”.622

João Mendes623 conclui dizendo:

“A profecia levou-o a acção e esta à profecia, tudo concorrendo para uma vida intensíssima de ‘fuga’, de arrojo e de temeridade. E essa fuga realiza-se pela alegoria profética que é domínio do tempo. O cosmos, a grande cúpula, é a Bíblia que fecha, e ao mesmo tempo abre para o Infinito. Essa a grande hipérbole vieirense que não é cultista ao modo de Gôngora; é religiosa,

619 Cf. LEITE, Serafim. Profetismo e Messianismo na Obra de António Vieira. Brotéria. Revista Contemporânea de Cultura. Vol 72, n.1, Lisboa, 1961, pp.56-59. 620 Raymond Cantel. Apud. João Mendes. Vieira, Homem fantástico. Brotéria. Cultura e Informação. Vol. 92, n.1, 1971, pp.16-43. (p.19). 621 Cf. MENDES, João (1971:21). 622 Idem., p.27. 623 Ver também MENDES, João. Vieira, homem vertiginoso. Brotéria. Cultura e Informação. Vol. 91, n.10, 1970, pp.267-279 e Vieira e a estética do espelho. Brotéria. Cultura e Informação. Vol. 91, n.11, 1970, pp.431-444.

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profética, de reflexos e ecos apocalípticos. Este sempre eminente a grande peripécia do grande ‘teatro’, e o profeta sempre à espreita e à espera dela. E tudo ressoa e estremece no estilo do pregador.”624

Nos sermões de Vieira sobre Juízo Final e fim de mundo, ressaltamos o Sermão da

Primeira Dominga do Advento625, pregado em 1650 na capela real, tendo como referência Lucas

21 (E, então, verão vir o Filho do Homem numa nuvem, com poder e grande glória). Este sermão

condena reis e ministros no Juízo Final por crimes de omissão,626 e conseqüentemente, serão

consumidos pela violência do fogo tudo que os homens edificaram na terra e sobrarão umas

poucas cinzas, relíquias de sua grandeza.

O messianismo de Vieira é de forte coloração nacionalista, como diz Jean Delumeau.

Sendo partidário da independência de Portugal, conselheiro e diplomata de D. João IV na

política de restauração do Reino e, também, na busca da simpatia dos judeus e na utilização

dos discursos proféticos de Bandarra. Este messianismo nacionalista atraiu a ira da

Inquisição.627

Homem capaz de diagnosticar os males da sociedade; bem como, de receitar remédios,

que considerava apropriados, para solucionar os problemas. Homem sonhador e entusiasta

interpretador das profecias do Quinto Império. De um lado, o jesuíta realista que mexia nas

feridas e provocava polêmicas e, de outro, o visionário que sustentava e aplicava teses

consideradas, muitas vezes, extravagantes (como as teses de Gonçalo Annes Bandarra).628

624 Cf. MENDES, João (1971:42). 625 Cf. VIEIRA, Antônio (2001a: 365-385). O sermão da Primeira Dominga do Advento. 626 Idem, p.366. Pécora apresenta a seguinte nota introdutória: “O sermão admoesta as autoridades temporais e espirituais portuguesas, imaginadas como ‘réus’ no dia do Juízo. Supondo o momento dramático da separação entre os bons e os maus, o sermão afirma que: 1. A ressurreição significará uma reparação, com arbítrio, da fortuna do nascimento; 2. Não haverá privilégio de ‘estado’, seja o da nobreza, da realeza ou do eclesiástico: a investidura não determinará a salvação ou a condenação, mas apenas as obras da vida; 3. Reis e cortes serão objeto de juízo especialmente rigoroso, por incorrerem em dois pecados principais: o ‘pecado da omissão’, quando se deixa de fazer o que o cargo obriga e onde a ocasião exige ação decidida, e o ‘pecado de conseqüência’, quando a corrupção do ‘voto’ ou de um ato inicial traz sucessivos desmazelos”. 627 DELUMEAU, Jean (1997: 187). 628 Ver BESSELAAR, José van den (2002: 33).

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“A possibilidade de enraizar no passado a experiência atual de um grupo se perfaz pelas mediações simbólicas. É o gesto, o canto, a dança, o rito, a oração, a fala que evoca, a fala que invoca. No mundo arcaico tudo isto é fundamentalmente religião, vínculo do presente com o outrora-tornado-agora, laço da comunidade com as forças que criaram em outro tempo e que sustêm a sua identidade.”629

Uma leitura do processo inquisitorial do padre Antônio Vieira terá necessariamente que

tomar como leitura os trabalhos de Adma Fadul Muhana630 e Luiz Felipe Baêta Neves631 entre

outros. A condenação de Vieira como herege pelos inquisidores, reside na leitura que fez dos

textos de Bandarra632 e, na apresentação de uma hermenêutica dos textos da Escritura

Sagrada.633 O que chamaríamos de conflitos de interpretação. A grande controvérsia paira sobre

a compreensão e análise dos textos proféticos. Assim, Vieira é acusado pelos inquisidores de

fazer profecias à luz de Bandarra. De um lado, a Inquisição apontava os aspectos heréticos na

leitura de Vieira e, de outro, a defesa inconteste do padre Vieira que aponta as dificuldades de se

interpretar os anúncios proféticos.

Um dos entraves de Vieira com o Santo Ofício está na utilização das trovas de Bandarra

que pertencem a um ambiente marcado por expectativas messiânicas. Em Portugal, um judeu,

Isaac Abravanel, anuncia para o ano 1503 a chegada do Messias e daí passam a circular vários

anúncios sobre a vinda iminente de um Messias. Na Espanha, ao redor de 1520 é publicada

uma versão popular das profecias atribuídas a Santo Isidoro que anunciava a destruição do 629 Cf. BOSI, Alfredo (2000: 15). 630 Cf. MUHANA, Adma Fadul. Os autos do Processo de Vieira na Inquisição. São Paulo, 1995. 631 Luiz Felipe Baêta Neves. Profetas, intérpretes e autoridades no processo inquisitorial do Padre Antônio Vieira. 632 Vejamos na Introdução de Hernani Cidade ao texto de defesa de Vieira diante do Santo Ofício: “Às profecias de Bandarra, juntavam-se, entre outras nacionais, a, do Beato Amadeu e de S. Fr. Gil de Santarém; mas não faltavam profetas estrangeiros a fortalecer-lhe a convicção sobre a futura realidade do Quinto Império: Santo Isidoro de Sevilha, Santa Brígida, Santo Ângelo Carmelita, Mártir, Fr, Bartolomeu de Salucio e ainda astrólogos e visionários ou fantasistas como Tycho-Brahe, Kepler, JustoLipsio, Jerônimo Vechietto, de todos os quais recolhe dados que, em sua pureza e acrescidos do sentido que lhes empresta, adapta como esteios à sua atrevida arquitectura ideológica”. Antônio Vieira. Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício. Introdução e notas do Prof. Hernani Cidade. Salvador: Livraria Progresso Editora, Tomo I, 1957, p.XXVI. 633 Para Hernani Cidade a conjuntura ao redor da condenação do Santo Ofício a Antônio Vieira e as trovas de Bandarra está marcada pelas influências da cabala: “Estava em voga a cabala, perante cuja interpretação alegórica da Bíblia, a vida de Cristo era tomada como uma alegoria da história futura da sua Igreja”. Idem., p.XVIII.

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Império de Carlos V por obra de um infante de Portugal. Esta publicação é intitulada como

Coplas de frei Pedro de Frias.634

No entanto, um dos textos que teve ampla repercussão, pelo seu caráter profético-

político e pelo modo como continuou a ser difundido apesar da proibição e condenação do Santo

Ofício, são as Trovas de Bandarra. A instrução de Roma de 06 de agosto de 1661, no início do

processo inquisitorial do Padre Antonio Vieira, condenava veemente as trovas do Bandarra como

tendo odor de judaísmo e declarava o escrito de Vieira repleto de falsidades e abusivo no

tocante às Sagradas Escrituras. Esta instrução determinava que Vieira fosse interrogado sobre a

parte que incorria em suspeita de heresia e se o autor persistisse em suas afirmações seria

instaurado um processo. Por fim a resolução do documento é a imposição de uma proibição de

que o assunto não fosse mais tratado nem por escrito, nem oralmente.

Como Vieira tomou conhecimento do texto, em Portugal ou na Bahia? Há menção da

circulação de manuscritos das Trovas de Bandarra, na Bahia desde 1591. “Levados por cristãos

novos fugidos de Portugal, foram localizados pela primeira visitação do Santo Ofício, traduzidos

para o castelhano e intitulados Trovas do Sapateiro de Trancoso que chamavam Bandarra”635

Porém, percebemos em seus textos profético-messiânicos uma familiaridade com as Trovas do

sapateiro de Trancoso e, por certo, com as suas mais variadas versões que estavam em

circulação.

Gonçalo Eanes Bandarra, sapateiro636, nasceu em Trancoso (pequena cidade comercial

da região das Beiras) no início do século XVI. Um grande leitor das Escrituras Sagradas, que

“conhecia de cor numerosas passagens da Bíblia, inspirava-se em Daniel, Isaías e Jeremias,

mas também no ciclo arturiano e nas profecias de Jean de Roquetaillade”. Era um grande 634 Cf. Jorge R. Seibold. La Sagrada Escritura em la evangelización del Brasíl. In: KONINGS, Johan (2001: 132). 635 Cf. HERMANN, Jacq ueline (1998: 227). 636 Existem alguns estereótipos criados em torno dos sapateiros desde o II século, tais como, “sapateiro filosofo” e “remendões de heresias”, conforme Peter Burke. Três são mencionados por Burke: Gonçalo Annes Bandarra, Luís Dias, de Setúbal, e Simão Gomes, o “santo sapateiro”. Cf. BURKE, Peter (1988: 63s) e HERMANN, Jacqueline (1998: 47-48).

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intérprete da Bíblia para os cristãos novos637 e era conhecido como sendo uma espécie de “rabi”

local. As suas trovas, carregadas de profetismo, inquietaram a Inquisição, “que as condenou e

impediu sua impressão, mas não deteve sua divulgação oral”.638 Suas trovas versam sobre a

volta do Encoberto – rei português que guiaria todos os povos em direção a uma única fé. Estas

trovas ganharam grande repercussão com o desaparecimento de D. Sebastião na batalha de

Alcácer-Quibir.

“Bandarra lera a Bíblia por ‘oito ou nove anos’, num exemplar que não era seu, mas tinha ‘grande memória’, característica essencial de uma cultura marcada pela oralidade, e com o que conseguiu guardar vivendo em meio a uma comunidade cristã-nova; escreveu suas famosas trovas. No caso do prestígio que conheceu o texto atribuído ao nosso sapateiro, Zumthor aponta outro aspecto que em Bandarra parece se confirmar. Observa o autor que, quando um poeta ou seu intérprete canta ou recita, sua voz ‘por si só lhe confere autoridade’. Mas se o poeta ou intérprete, ao contrário, lê num livro o que os ouvintes escutam, ‘a autoridade provém do livro’. No caso de Bandarra e de suas Trovas, o autor e seu texto tornaram-se fonte de autoridade para o conhecimento e interpretação do maior livro sagrado, talvez tanto cristão, a Bíblia, como judaico, o Talmud. Ao aliar sua competência ‘em escrever trovas’ a uma bastante desenvolvida capacidade de ‘memorização’, típica de uma cultura não definida pelo texto escrito, a memória de Bandarra reuniria elementos das religiosidades cristã e judaica e aspectos do maravilhoso medieval num texto exemplar e paradigmático da ‘cultura artesã apocalíptica’ de seu tempo”.639

Esperanças de Portugal é o texto no qual Vieira se debruça sobre as Trovas de

Bandarra. Foi escrito com a finalidade de consolar a rainha de Portugal depois da morte de João

IV. Ali, Vieira trata do tema da ressurreição do rei e marca uma nova fase do sebastianismo. O

título da obra, que aparece em caracteres floridos é: “Esperanças de Portugal. Quinto Império do

Mundo. Primeira e Segunda vida Del Rey Dom Joam o Quarto, escritas por Gonçalleanes

Bandarra”.640 Este texto escrito em forma de carta teve a sua primeira versão concluída por

Vieira em 29 de Abril de 1659, quando estava em missão pela Amazônia. Ela foi entregue a

637 “Las ‘trovas’ de Bandarra, profetizaron acerca de un rey que dominaría el mundo entero y bajo su imperio el único Dios verdadero sería adorado. Los judíos vieron en este rey a su Mesías, y los cristianos la realización del reino de Dios. Este mesianismo fue tan poderosamente propagado que ni siiquiera la Inquisición logró reprimirlo.” Cf. HOORNAERT, Eduardo (1981:167). 638 Ver: DELUMEAU, Jean (1997: 182-188) e HERMANN, Jacqueline (1998: 23-72). 639 Cf. HERMANN, Jacqueline (1998: 50-51). 640 Ver o texto organizado por José van den Besselaar (2002: 41-108).

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Paulo Martins Garro, que a copiou (ou mandou copiá-la), colocando capa com caracteres floridos

e enviando-a para Lisboa. Não se sabe se este irmão leigo fez outras cópias da carta e se, em

caso afirmativo, as enviou para pessoas interessadas no assunto.641 Esta carta que tem,

sobretudo, um teor de tratado doutrinário marca os inícios da polêmica de Vieira com o Santo

Ofício. Eis um dos trechos do depoimento de Vieira:

“(...) foi [o papel] escrito em forma de uma missiva e secreta, e pelos meios do maior segredo que podia ser, remetendo-se por mãos do confessor da Rainha nossa Senhora, para que não saísse delas; e se saiu e se divulgou, não foi culpa sua [sc de Vieira]. Nem basta, para sua culpa, haver escrito e comunicado o dito papel na sobredita forma, ainda que fora em ordem à impressa, porque assi o fazem todos os que escrevem vidas de santos e varões ilustres ou crônicas de religiões...”642

Numa terceira carta escrita em castelhano ao padre Squarçafigo, Vieira diz o seguinte:

“No ano de 1654 veio o P. Vieira de suas missões do Maranhão a Portugal [...] E como o Rei não se falasse na Corte, chamado por uma carta sua, houve de ir a Salvaterra, aonde lhe falou desavisado dos médicos. Asistia-lhe a Rainha, a qual consolou o Padre, dizendo-lhe que Sua Majestade não havia de morrer daquela enfermidade, porque lhe restavam ainda muitas coisas que fazer neste mundo, e que em cosa morresse, havia de ressuscitar, porque não as podia fazer senão vivo. Cobrou então, saúde o Rei. Porém dali a três anos veio a morrer, estando o Padre Vieira outra vez no Maranhão, de onde lhe escreveu o confessor da Rainha se quisesse enviar desde ali algum papel de consolação, e assim o fez. Continuando o mesmo que havia dito da ressurreição do Rei. Este papel era uma carta particular escrita ao confessor, O Padre Andrés Fernández, da Companhia, bispo eleito do Japão, com advertência de que não passasse de suas mãos, exceto aos olhos da Rainha, a qual explicaria o que necessitasse de maior declaração”.643

641 Idem., p.33-34. 642 Cartas de Antônio Vieira. Apud. BESSELAAR, José van den (2002: 35) 643 “En el año de 1654 vino el P. Vieira de sus misiones de Marañón a Portugal [...]; y como el Rey no se hallase en la Corte, llamado por una carta suya, huvo de ir a Salvatierra, adonde le halló desaviciado de los médicos. Asistiale la Reyna, a la cual consoló el Padre, diciéndole que Su Majestad no había de morir de aquella enfermidad, porque le restaban aun muchas cosas que hazer en este mundo, y que en caso moriese, había de resucitar; porque no las podía obrar sino vivo. Cobró entonces, salud el Rey. Pero de alli a tres años vino a morir, estando el Padre Vieira otra vez en el Marañón, adonde le escribió el confesor de la Reyna, le quisiese enviar desde allá algun papel de consolación, y asi lo hizo, continuando lo mismo que había dicho de la resurrección del Rey. Este papel era una carta particular escrita al confesor, el Padre Andrés Fernández, de la Compañía, obispo electo del Japón, con advertencia de que no pasase de sus manos, más que a los ojos de la Reyna, a la cual explicaría lo que necesitase de mayor declaración.” Idem., p.36.

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Afora as declarações de Vieira e as reações do Santo Ofício e de alguns sebastianistas

ortodoxos, o fato é que o seu texto correu de mão em mão. Diante das incertezas e a não

existência de uma correspondência entre Vieira e Paulo Martins Garro, é que Besselaar inclina-

se a pensar que o próprio Vieira tenha dado autorização de divulgação do seu texto, pois “não

fugia à publicidade, pois gostava de fazer propaganda de suas idéias. Previa o escândalo que

provocaria a tese da ressurreição, mas não tinha medo de sustentá-la”.644

Este texto (que tem como núcleo as profecias de Bandarra) está organizado em sete

partes645 e busca fundamentar (argumentar) o seguinte silogismo:

“O Bandarra é verdadeiro profeta; O Bandarra profetizou que el-Rei D. João o 4.o há-de obrar muitas cousas que ainda não obrou, nem pode obrar senão ressuscitando; Logo, el-Rei D. João o 4.o há-de ressuscitar.”646

Neste silogismo, a primeira proposição é base para todo o resto e seguindo o critério

descrito em Dt 18,21-22 não se pode negar que Bandarra seja um profeta, pois, “profetizou e

escreveu tantos anos antes tantas cousas, tão exactas, tão meúdas e tão particulares, que vimos

todas compridas com nossos olhos, das quais apontarei aqui brevemente as que bastem,

sucedidas todas na mesma forma e com a mesma ordem como foram escritas”.647

644 Idem., p.37. Ver o que diz João Lúcio de Azevedo: “Mandara Antonio Vieira o escripto, em forma de carta ao Bispo do Japão, datada de Camutá, de abril de 1659, copia do original, como de costume muito emendado, pelo capital Paulo Martins Garro, um dos seus affeiçoados e irmão secular da Companhia. Este, subrepticiamente ou com auctorização de Vieira – ambas as presumpções são aceitáveis – tirou mais de uma cópia; e, já porque elle mandasse alguma para o reino; já porque o Bispo peccasse de inconfidente, passando a outras mãos o papel destinado a ficar entre elle e a Rainha; já, o que também é plausível, supposto o amor de Vieira pela publicidade, com seu consentimento facultasse o confessor a outros a obra de que, pelo assumpto e pelo auctor, a noticia despertaria sôfrega curiosidade; o caso é que dentro em pouco, por toda a parte em Lisboa, o tratado das Esperanças de Portugal se commentava e discutia. Os sebastianistas apossavam-se d’elle para o contestar; os incrédulos zombavam do novo desvario, que se enxertava na seita; os inimigos do auctor farejavam a heresia, e inculcavam na fé prestada ao Bandarra suspeições de judaísmo”. In: AZEVEDO, João Lúcio de (1921: 6-7). 645 Exórdio: Introdução e o célebre silogismo de Vieira; II – Conseqüência do silogismo; III – Prova-se a maior: “Bandarra é verdadeiro profeta”; IV – Prova-se a menor: Façanhas que o rei prometido há de fazer; V – Resposta a algumas objeções; VI - O tempo em que se iniciará a transfiguração do mundo e VII – Epílogo e recomendações. Idem., pp.44-45. 646 Idem., p.49. 647 Idem., p.51.

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Daí, Vieira passa a explicar verso por verso as trovas de Bandarra. De acordo com

Aníbal Pinto de Castro, a utilização e defesa que Vieira faz das profecias de Bandarra representa

a utilização de uma profecia milenarista como “fundamento de uma nova concepção do

sebastianismo, segundo a qual o regresso do Encoberto não traria já D. Sebastião, mas

significava o advento de D. João IV e fazendo delas, por conseguinte, a base essencial da sua

crença no Quinto Império e na inevitabilidade da ressurreição do Rei”.648

O outro livro que apresenta as suas concepções milenaristas e messiânicas e

fundamentado no livro de Daniel, é História do Futuro,649 tendo o início da sua escrita no ano de

1649.

Porém, antes de falarmos de História do Futuro é preciso ter presente um fator muito

importante, levantado por César Braga-Pinto sobre os textos (narrativas de viagem, poesia

mística, autos religiosos, tratados) dos séculos XVI e XVII, que são construídos como discursos

proféticos e freqüentemente reeditados enquanto promessas da história e promessas de história.

Daí para o autor

“atribuir a origem, permanência ou recorrência de discursos messiânicos na história luso-brasileira a um único evento ou crença, tal como o sebastianismo, por exemplo, não é o suficiente para explicar as circunstâncias históricas que exigiam não o retorno do rei que se acreditava misteriosamente desaparecido, mas o retorno de um mito de retorno. Pois o sebastianismo é apenas um dos casos em que o estranhamento diante do presente pede uma ‘ilusão compensadora’ na forma de um discurso baseado nas noções de retorno e restauração . de fato, é possível demonstrar que o sebastianismo existia antes mesmo do desaparecimento de dom Sebastião, ou que o sebastianismo só pôde se tornar um mito messiânico tão poderoso porque os discursos messiânicos já existiam”.650

648 Aníbal Pinto de Castro. Apud. HANSEN, João Adolfo (2003: 98). 649 Para Serafim Leite a História do Futuro é uma obra organizada “com aplicação de textos sacros e interpretações e exegese política... tem além da beleza da linguagem, o assunto à roda de Portugal, sem esquecer o Brasil, muitas vêzes invocado, e com trechos de antologia”. LEITE, Serafim (1944: 258). 650 Cf. BRAGA-PINTO, César (2003: 14).

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Tanto na obra de José de Anchieta quanto na de Antônio Vieira nos deparamos com as

representações de uma imagem do Novo Mundo, o uso dos Exercícios Espirituais de Inácio de

Loyola e a conexão entre história e memória. 651

Na obra de Antônio Vieira nos deparamos com uma tentativa de conciliação entre a

promessa de um conhecimento racional e os discursos religiosos e messiânicos. O seu livro

História do Futuro tenta realizar o que muitos buscam: saber acerca do futuro. Por isso, ele faz

coincidir o futuro da humanidade com o futuro de Portugal. Se foi descoberto um Novo Mundo,

faz-se necessário descobrir uma “nova História” e comunicar os novos significados para toda a

humanidade.

História do Futuro é um livro que apresenta as concepções milenaristas e messiânicas

de Antônio Vieira, fundamentadas no livro de Daniel e na profecia de Zacarias. É uma obra

inacabada ou inconclusa.652 Teve o início de sua escrita no ano de 1649 (momento em que o

651 Na obra do Padre José de Anchieta, de modo especial, nas suas peças (encenações) existe uma busca das representações da imagem para o Novo Mundo. E nos seus discursos perpassa uma tentativa de assimilação das culturas nativas baseada na mística da relação entre o eu e o outro (tão fortes na mística inaciana e no misticismo que circulava no século XVI). Nesta perspectiva, encontramos em José de Anchieta uma transposição dos métodos de conversão individual dos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola para um método e estratégia para conversão coletiva de uma comunidade heterogênea. “Enquanto os Exercícios de Loyola pediam que cada indivíduo visualizasse a luta entre o Bem e o Mal, as partes dramáticas da peça de Anchieta procuram representar a própria imagem dessa luta para uma grande audiência reunida em torno da cena, de modo que a conversão coletiva se realize”. A história e a memória aparecem conectadas nas obras dos missionários jesuítas enquanto narrativas do passado e definição das ações futuras. Assim, “era importante para os nativos aprender, antes de mais nada, como não esquecer: seus próprios nomes, seu hábitos passados, seus inimigos, sua própria história e a história escatológica que não era a deles próprios, mas imposta a eles por meio de um jogo de promessas e ameaças. Em outras palavras, somente se os membros da recém-constituída comunidade se lembrassem de seu passado doloroso (verdadeiro ou construído), poderiam manter suas próprias promessas e, mais importante, desejar aquilo que havia sido prometido a eles. Em vez do passado factual, é antes a projeção temporal coletiva, no futuro, dessas promessas que constitui uma cultura comum, ainda que essas narrativas sobre o futuro emerjam de uma memória heterogênea de fatos passados”. Cf. BRAGA-PINTO, César (2003: 71, 93 e 114). Das muitas citações bíblicas nos sermões de José de Anchieta, vale salientar, que em grande medida, elas vem acompanhadas com paráfrases que se caracterizam como verdadeiros comentários dos textos, além disso, utiliza com freqüência citações dos padres da Igreja, retirados de suas leituras do Breviário e de alguns livros. Cf. SEIBOLD, Jorge R. La Sagrada Escritura em la evangelización del Brasíl. In: KONINGS, Johan (2001: 115-118). 652 “A obra profética de Vieira vai confirmando e ampliando a destinação de seus sucessos: nas esperanças o autor pretende falar à rainha; na História do Futuro a Portugal e, na Clavis, ao mundo. Projetada para ser exposta em sete livros, a História do Futuro teve, além da publicação do livro Anteprimeiro, apenas a edição dos livros Primeiro e Segundo, e, fundamentalmente, deu uma feição mais elaborada e cuidada para as proposições expostas nas Esperanças. Nela Vieira levou às últimas

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império português já estava em declínio pelo menos por meio século). É uma obra que tem um

plano grandioso e foi pensada como um tratado em sete livros com 59 questões. Não conseguiu

dar conta de finalizar esta grande obra. Detido em 1663 pela Inquisição, quando deveria

preparar uma apologia para a sua defesa, acaba se dedicando à redação desta obra. Parece

que neste momento, Vieira passa a considerar o que tinha redigido até o momento como uma

grande introdução ao tema da História do Futuro. Esta introdução recebeu o nome de Livro

Anteprimeiro da História do Futuro.653 O que vai escrever na continuação deste livro, será

apenas os dois únicos capítulos do seu tratado e somente três do total de 59 questões.

“A História do Futuro tinha por fim provar que há de haver no mundo um novo Império bíblico universal, o Quinto, sob a hegemonia de Portugal e que a hora de sua realização chegara ou estava prestes a chegar. As épocas mais freqüentes de miséria e catástrofes sempre inspiraram os autores de apocalipse, e as velhas teorias da retribuição temporal da virtude, segundo a qual as nações mais fiéis deveriam ser as mais benditas por Deus.”654

“O livro não promete nada além do conhecimento de acontecimentos futuros”,655

inseridos na salutar tensão entre história e profecia, descoberta e expectativas, promessas

passadas e narrativas do futuro.

“O Livro Anteprimeiro não se apresenta como obra homogênea, pois o teor dos vários conjuntos de capítulos, quer pelo tom, quer pelo modo discursivo, quer ainda pelo próprio conteúdo, varia como variaram certamente os destinatários. Até o capítulo VI, Vieira dirige-se à corte portuguesa e a Afonso VI; nos capítulos VII e VIII, à Espanha e a Filipe IV; nos restantes quatro capítulos passa a ser mais expositivo que oratório e parece eleger como interlocutores, agora implícitos, teólogos e exegetas. Daí a distribuição irregular e a função variável do tema dos descobrimentos portugueses: relacionados com a exegese dos profetas bíblicos, nos últimos capítulos; usados sobretudo como tópico retórico e como concepto barroco, nos capítulos iniciais.”656

conseqüências o seu projeto messiânico para o comandante do império de Cristo na terra, d. João IV ressuscitado, para dar bom termo à profecia de Bandarra.” Cf. HERMANN, Jacqueline (1998: 244). 653 Ver: MENDES, Margarida Vieira (2005: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/2sem_08.html): “Esse “retalho” introdutório contém uma parte de proposição, dedicatórias e de elogio do futuro livro (capítulos I a VIII), e uma outra, inacabada, de validação e autorização do método que nesse livro o pregador vai adotar: a exposição fundada não nos Padres antigos mas sim nos modernos exegetas, entre os quais Vieira se coloca (capítulos IX a XII). 654 RODRIGUES, José Honório (1958: 328-329). 655Idem., p.162. 656 MENDES, Margarida Vieira (2005: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/2sem_08.html).

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Nos três primeiros capítulos explica o porque do seu título: História do Futuro,

Esperanças de Portugal e Quinto Império do Mundo. Primeira parte de título: História do futuro

do mundo; segunda parte: os portugueses e terceira parte a divisão de toda a história. Assim

começa o livro:

“Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista história. As outras histórias contam as cousas passadas, esta promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos que não chega a penetrar o entendimento. Levanta-se este assunto sobre toda a esfera da capacidade humana, porque Deus, que é a fonte de toda a sabedoria, posto que repartiu os tesouros dela tão liberalmente com os homens, e muito mais com o primeiro, sempre reservou para si a ciência dos futuros, como regalia própria da divindade. Como Deus por natureza seja eterno, é excelência gloriosa, não tanto de sua sabedoria, quanto de sua eternidade, que todos os futuros lhe sejam presentes; o homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada.”657

A primeira menção a Daniel neste livro está no capítulo 2 ao refletir sobre a profecia da

consulta, na qual Saul vai consultar Samuel, pois não tem a resposta de Deus nem por urim,

nem por profetas e nem por sonhos (1Sm 28). E compara o texto da consulta de Saul à do rei

Baltazar a Daniel (Dn 5)658, concluindo que Saul achou a Samuel morto e Baltazar a Daniel vivo

e daí “se me não contas com Daniel entre os vivos, eu me conto com Samuel entre os mortos;

se nas letras que interpreto achara desgraças (bem poderá ser que as tenhas), eu te dissera a

má fortuna sem receio, assim como te digo a boa sem lisonja”. 657 VIEIRA, Antônio. História do Futuro. Texto organizado por BUESCU, Maria Leonor Carvalhão (1992: 47). Nas próximas citações apenas indicarei: HISTÓRIA DO FUTURO, ano e página. 658“O maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei, é revelar-lhe os futuros; e se não há entre nós os vivos quem faça estas revelações, busque-se entre os sepultados, e achar-se-á. Saul achou a Samuel morto e Baltasar a Daniel vivo, porque um matava os profetas, outro premiava as profecias. Declarou Daniel a Baltasar a escritura fatal da parede, anunciou-lhe intrepidamente que naquela mesma noite havia de perder a vida e o império. E que lhe importou a Daniel esta tão triste interpretação? No mesmo ponto - diz o texto- mandou Baltasar que o vestissem de púrpura e que lhe dessem o anel real, e que fosse reconhecido por Tetrarca de todo o império dos Assírios, que era faze-lo um dos quatro supremos ministros ou governadores da monarquia. Só isto fez Baltasar nos instantes que lhe restaram de vida; e premiado assim o profeta, cumpriu-se a profecia e foi morto o rei, digno só por esta ação (se não foram as suas culpas sacrilégios) de que Deus lhe perdoara a vida”. HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 55-56).

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No capitulo 3, ao tratar da terceira parte do título, Vieira apresenta a divisão da História

do Futuro em sete partes ou livros:

“no primeiro se mostra que há-de haver no Mundo um novo império; no segundo, que império há-de ser; no terceiro, suas grandezas e felicidades; no quarto, os meios por que se há-de introduzir; no quinto, em que terra; no sexto, em que tempo; no sétimo, em que pessoa. Estas sete cousas são as que há-de examinar, resolver e provar a nova História que escrevemos do Quinto Império do Mundo”.659

Dos capítulos 4 a 8 vai explicar as utilidades do livro, entre as quais destacamos, a que

busca fortalecer o ânimo dos portugueses diante das horas difíceis que estavam se

aproximando: “é a paciência, constância e consolação nos trabalhos, perigos e calamidades com

que há-de ser afligido e purificado o Mundo, antes que chegue a esperada felicidade.”660 É

sugestivo que Vieira busque como lição na história, a luta dos Macabeus. Evidentemente, a sua

tese sobre o Quinto Império, está num contexto de guerras661, calamidades e conquistas, e por

isto, dirá que a História do Futuro, livro santo surge como luz que se oferece ao mundo, “no qual

acharão os aflitos alívio, os tristes consolação, os atribulados esperança, paciência, constância e

fortaleza, tudo por meio da lição e fé das divinas promessas e consolação dos felicíssimos fins a

que todos estes trabalhos e tribulações pela providência do Altíssimo são ordenadas.”662

No entanto, para Antônio Vieira a ação de Deus é comparada a de um lavrador:

“Quando o lavrador quer plantar de novo em mata brava, mete primeiro o machado, corta, derriba, queima, arranca, alimpa, cava, e depois planta e semeia. Quando o arquiteto quer fabricar de novo sobre edifício velho e arruinado, também começa derribando, desfazendo, arrasando e arrancando até os fundamentos, e depois sobre o novo alicerce levanta nova traça e novo

659 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 63). 660 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 81).. 661 O contexto da guerra contra os holandeses no Brasil, tempo dos primeiros sermões de Vieira, vamos nos deparar com o Sermão da Quarta Dominga da Quaresma (1633) que se apresenta carregado de elementos bélicos; o Sermão de Santo Antônio (1638) e o famoso Sermão pelas armas de Portugal. Cf. PALACÍN, Luís Gómez (1998: 107-108). 662 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 83).

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edifício. Assim o faz e fez sempre o supremo Criador e Artífice do Mundo, quando quis plantar e edificar de novo. Assim o disse e mandou notificar a todo o Mundo pelo profeta Jeremias: Ecce constitui te hodie super gentes et super regna, ut evellas, et destruas, et disperdas, et dissites, et aedifices, et plantes.”663

As utilidades do Livro têm como objetivo o de preparar os portugueses para os tempos

difíceis, de crise, calamidades e guerras até a chegada da instauração do Reino de Cristo

consumado na terra. É nesta perspectiva que dos capítulos 9 a 12 Vieira aborda o tema da

profecia. Ela é apresentada nos capítulos 9-10 como peça-chave para tratar das verdades

contidas em seu livro. Também encontramos nestes dois capítulos aspectos importantes do seu

método de interpretação das Sagradas Escrituras. Já os capítulos 11 e 12 são dedicados às

novidades da sua História do Futuro.

Vamos tomar os capítulos 9 e 10 como amostra da exegese bíblica feita pelo Padre

Antônio Vieira. No capitulo 9, ele apresenta a sua interpretação de 2Pd 1,19 e 21. Podemos

perceber a seguinte estrutura do seu texto:

663 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 81).

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A – texto de 2Pd 1,19 B – Interpretação

A – texto de 2 Pd 1,21 B – Interpretação

C – Fundamentos para a História do Futuro D – Conclusão

E – Novas reflexões sobre a profecia

A – Texto bíblico:

2Pd 1,19 – “Temos, também, por mais firme a palavra dos profetas, à qual fazeis bem em recorrer como a uma luz que brilha em lugar escuro, até que raie o dia e surja a estrela d’alva em nossos corações”.664

B – Interpretação: Lugar escuro é o Futuro, a lâmpada é a profecia e o raiar do sol é o seu cumprimento.665 Por isso, os profetas são chamados de videntes, porque:

“com o lume da profecia entravam nos lugares escuríssimos e secretíssimos dos futuros e viam neles claramente aquelas cousas para que todos os outros homens são cegos, e ninguém as pode ver senão alumiado da mesma luz.”666

A – Texto bíblico:

2 Pd 1,21: “pois que a profecia jamais veio por vontade humana, mas os homens, impelidos pelo Espírito Santo, falaram da parte de Deus”.

B – Interpretação:

“Mas ainda que a candeia esteja na mão de outrem, também se podem aproveitar da sua luz os que se chegarem a ela e a forem seguindo. (...) De maneira que pôs Deus a profecia como candeia na mão dos profetas, para que, alumiados e guiados da mesma luz os que não somos profetas, possamos entrar com eles no lugar escuro e caliginoso dos futuros e ver e conhecer com a

luz não nossa, o que eles viram e conheceram com a sua.”667 664 Texto retirado da Bíblia de Jerusalém. 665 “as profecias e palavras certíssimas dos profetas, as quais devemos observar e atender, usando delas como de candeia luzente em lugar escuro e caliginoso, até que amanheça o dia. Lugar escuro e caliginoso é o futuro; a candeia que alumeia são as profecias; o sol que há-de amanhecer é o cumprimento delas. E enquanto este sol, que será muito formoso e alegre, não aparece, não coroa os nossos montes, o que só agora podemos e devemos fazer é levar a candeia das profecias diante, e com a sua luz (ainda que luz pequena) entraremos no lugar caliginoso e escuríssimo dos futuros, e veremos o que neles se passa”. HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 144). 666 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 144). 667 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 144-5).

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C – Os Fundamentos para a História do Futuro:

Vieira percorre as profecias668 que fundamentarão a sua História do Futuro (exceto o

livro de Jonas) e menciona todos os Livros das Escrituras como referência para a descrição dos

tempos futuros.669

D – Conclusão:

“Assim que podemos dizer em uma palavra que a primeira e principal fonte e os primeiros e principais fundamentos de toda esta nossa História é a Escritura Sagrada; com que vem a ser um só livro e um só Autor o que nela principalmente seguiremos: o livro, a Escritura; o Autor, Deus. Sobre estes fundamentos da primeira e suma Verdade entrará o discurso como arquitecto de toda esta grande fábrica, dispondo, ordenando, ajustando, combinando, inferindo e acrescentando tudo aquilo que por conseqüência e razão natural se segue e infere dos mesmos princípios, no qual modo de fábrica se não perde a primeira verdade dos fundamentos, mas vai crescendo, dilatando-se e

668 No Capítulo V, Vieira vai falar o seguinte acerca dos profetas: “É coisa muito digna de notar, que nunca ao povo de Israel concorreram tantos Profetas juntos como antes do cativeiro de Babilónia e no mesmo cativeiro. Antes do cativeiro profetizaram por sua ordem Oseas, Isaías, Joel e Amós; no cativeiro profetizou Miqueas, Habacuc, Jeremias, Ezequiel, Daniel e Sofonias. De maneira que, sendo só doze os Profetas canónicos, os dez deles tiveram por assunto e matéria muito principal de todas suas profecias o cativeiro de Babilônia. Os quatro primeiros, que escreveram mais de seis anos antes daquele tempo, profetizaram que o povo por seus pecados havia de ir cativo, mas que por misericórdia de Deus seria depois restituído à sua pátria. Os outros seis, que profetizaram no tempo do cativeiro, insistiram constantemente em que ele havia de ter fim, determinando sinaladamente o ano da liberdade. A razão deste concurso tão extraordinário de Profetas e profecias (nunca antes, nem depois visto) foi porque nunca o povo e reino de Judá padeceu tão grande trabalho e calamidade como o cativeiro ou transmigração de Babilônia, sendo cativos, presos e. despojados de seus bens, arrancados da pátria e levados a terras de bárbaros, e lá oprimidos e tratados como escravos em duríssima servidão. Ordenou pois a providência e misericórdia divina, que naquele tempo e estado tão calamitoso, houvesse muitos Profetas e muitas profecias, uns que as tivessem escrito no tempo passado, e outros que as pregassem no presente, para que o povo não desmaiasse com o peso da aflição, e animado com a esperança da liberdade, pudesse com o trabalho do cativeiro. O cativeiro e o tirano os oprimiam; os Profetas e as profecias os alentavam. Cantavam-se as profecias ao som das cadeias, e com a brandura deste som os ferros se tornavam menos duros e os corações mais fortes.” HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 83-4). 669 “Assim como os que escrevem anais ou histórias passadas e antiquíssimas, recorrem aos autores mais antigos, e estes são os que têm maior crédito e autoridade nas cousas daqueles tempos, assim nós que escrevemos do futuro, devemos recorrer e buscar a verdade e notícias da nossa História nos autores dos tempos futuros, que são somente os Profetas, pois só eles os conheceram. E porque entre os outros Livros Sagrados, também canônicos, há alguns que totalmente são proféticos, como os Salmos, os Cantares e o Apocalipse, e todos os outros, assim do Velho como do Novo Testamento, contêm ou muitas ou algumas cousas proféticas, ainda que sejam meramente históricos, como o Gênesis, Josué, Josias, Reis, Paralipamenon, Esdras e Macabeus; ou meramente doutrinais, como Provérbios, Sabedoria, Eclesiastes, Eclesiástico e as Epístolas dos Apóstolos; ou juntamente doutrinais e históricos, como o Levítico, Números, Deuteronómio, Job e os Evangelhos, de todos estes nos ajudaremos também, quando servirem ou puderem servir (que não será pouco) ao conhecimento e inteligência dos tempos futuros.” HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 145).

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frutificando, não em diversos, senão no mesmo corpo, como a árvore em suas

raízes.”670

E – Novas reflexões: Palavra e tempo, as duas lâmpadas e as profecias:

Para Vieira faz-se necessário refletir acerca do tempo de cumprimento das profecias e de

novo retoma o símbolo da lâmpada ou candeia. Este simbolismo estará atrelado ao seu discurso

sobre palavra e tempo671 e sobre os efeitos da luz da profecia: as duas lâmpadas para iluminar a

profecia.672 Aqui, vale dizer que Vieira busca referências não só na profecia bíblica e canônica,

mas também no que considera profecia nos Santos Padres e na profecia apócrifa (não

canônica).673

670 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 145-6). 671 “De sorte que, ajuntando o lume natural do discurso ao lume sobrenatural da profecia, com o cuidado, estudo e indústria própria, lendo, disputando e meditando, vinham a estender e adiantar muito as mesmas profecias, conhecendo delas e por elas muitas cousas que nelas imediatamente não estavam reveladas. Bem assim como o sol ou candeia (que era a nossa comparação) não só alumeia com a luz que está ao lume ou fogo que nela se sustenta, senão também, e muito mais, com a luz que dela se vai produzindo, multiplicando e difundindo por todas as partes vizinhas e ainda distantes, conforme a sua menor ou maior esfera, assim o lume natural do discurso, se vai propagando, difundindo e estendendo a muitas cousas, tempos, sucessos e circunstâncias que nelas estavam ocultas e pela conferência e conseqüência do mesmo discurso se vão entendendo e descobrindo de novo. Isso quer dizer: In quod vel quale tempus. A palavra, em que tempo, significa a determinação do tempo certo em que as cousas hão-de suceder; e a palavra no qual tempo significa as qualidades e circunstancias do mesmo tempo, isto é, o estado dos reinos, das repúblicas, das nações, e os acontecimentos particulares da paz, da guerra, do cativeiro, da liberdade e outros semelhantes que no mesmo tempo, ou mais vizinho ou mais distante, se hão-de ver e suceder no Mundo.” HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 147). 672 “E pois os Profetas profetizavam para nós e as cousas nossas, razão é que nós como nossas as entendamos. Mas porque as profecias por sua natural escuridade não sao fáceis de entender, e assim como se há mister necessariamente a sua luz para conhecer os futuros, é também necessária outra Segunda e nova luz para as entender a elas. Esta segunda luz serão aqueles a quem Cristo chamou luz do Mundo: Vox estis lux Mundi, e, por outras palavras, candeia acesa: Neque enim accendunt lucernam et ponunt eum sub modio, que são em primeiro lugar os Apóstolos sagrados, e em segundo os Padres Doutores da Igreja e expositores das Escrituras divinas, os quais seguiremos e alegaremos em tudo o que dissermos com estas duas luzes ou candeias: uma dos Doutores sagrados, com que alumiaremos as profecias, e outra as mesmas profecias, com que alumiaremos e descobriremos os futuros; poderemos entrar neste labirinto com todo o aparato e prevenção de instrumentos com que se entrava seguramente no de Creta. Era aquele labirinto por uma parte muito escuro e por outra mui intricado; e para vencer e facilitar estas duas dificuldades se inventou entrar nele, não só com tocha, mas também com fio: as tochas para ver o escuro dos caminhos e o fio para entrar e sair pelo intricado deles. Por este modo entraremos também nós pelo escuro e intricado labirinto dos futuros. As profecias e os Doutores nos servirão de tochas; o entendimento e o discurso de fio. Isto é quanto às profecias e Profetas canônicos.” HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 148-9). 673 (...) De tudo o que fica dito ou prometido se colhe facilmente quanta será a verdade desta História; porque as cousas que expressa e imediatamente se predizem nas profecias canônicas, de cuja inteligência por sua clareza se não pode duvidar, ou por estarem explicadas por escritores também canônicos por concílios, por tradições, ou pelo consenso comum dos Padres, é certo que têm toda aquela certeza infalível e de fé, que as outras verdades sagradas que se contêm nas Escrituras. As outras cousas, que destas verdades assim profetizadas e conhecidas, por natural conseqüência, se deduzirem, ainda que

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No capítulo 10 Vieira apresentará outros tantos exemplos tirados da Escritura, entre

eles, João Batista, Zaqueu, Daniel com o seu não entendimento das visões e parábolas de

Jesus: o tesouro e as coisas escondidas e a mulher e a dracma perdida. Neste capítulo, reflete

sobre o que há de obscuro e claro nas profecias, e emprega as imagens do homem que cava

em busca dos tesouros escondidos e da mulher que varre a casa na procura da moeda

perdida:

Reflexão sobre Mt 20:

“Os que estudamos e trabalhamos na inteligência da Sagrada Escritura, mais ou menos todos cavamos e, pode suceder que os que vêm na última hora por felicidade da mesma hora acabem, descubram com poucas enxadas o que muitos em muito tempo e com muito trabalho, cavando muito mais, não descobriram. Aquele tesouro escondido de que falou Cristo no cap. XIII de S. Mateus, diz Ruperto Tertuliano, S. João Crisóstomo, que é a Escritura Sagrada, e S. Jerônimo com mais estrita propriedade o entende particularmente das escrituras proféticas Quantas vezes os que trabalham no descobrimento de algum tesouro, cavam por muitos dias, meses e anos sem acharem o que buscam, e depois de estes cansados e desesperados, sucede vir um mais venturoso que, descendo sem trabalho ao profundo da mesma cova, e cavando alguma cousa de novo descobre a poucas enxadadas e tesouro, e logra é fruto dos trabalhos e suores dos primeiros? Assim aconteceu no tesouro das profecias: cavaram uns e cavaram outros, e cansaram todos e no cabo descobre o tesouro quais sem trabalho aquele ultimo para quem estava

guardada tamanha ventura, a qual sempre é do último.”674 Reflexão sobre Lc 15:

“Tirem o véu de sobre os olhos, e verão a luz das profecias: ainda que a profecia seja candeia acesa, como se há-de ver com os olhos cobertos? Tire-se o impedimento à luz, e logo se verão a candeia e mais o que ela alumeia. A mulher que buscava a dracma perdida não só acendeu a candeia, mas varreu a casa:...accendit lucernam, et (...) everrit domum. A candeia está acesa e muito clara, mas a casa não está varrida; varra-se e alimpe-se a casa, tirem-se os

intervenha no discurso algum meio ou proposição científica, são verdades segundas que participam a mesma certeza também infalível, qual é a das conclusões teológicas que, não sendo totalmente fé, nem somente ciência, por esta parte têm evidência, e por ambas tal certeza, que não é sujeita a erro ou falsidade, nem perigo de poderem não ser. As profecias não canônicas podem ser tão evidentemente provadas por seus efeitos, como veremos que tenham toda a certeza moral, que é a que depois a fé e da ciência têm no juízo humano o maior assento; e a mesma participarão, na forma que pouco antes dissemos, todas as outras conclusões que por natural e evidente conseqüência delas se deduzirem, pois são filhas e herdeiras da mesma Verdade de que tiveram seu nascimento.” HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 149-151). 674 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 157-8).

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estorvos e impedimentos à luz, e logo verão os olhos o que há nela, e se achará

o que se busca; mas nem se busca, nem se quer achar.675

Conclusão:

De maneira que, resumindo toda a resposta da objecção, digo que descobrimos hoje mais, porque olhamos de mais alto; e que distinguimos melhor porque vemos mais perto; e que trabalhamos menos porque achamos os impedimentos tirados. Olhamos de mais alto, porque vemos sobre os passados; vemos de mais perto, porque estamos mais chegados aos futuros; e achamos os impedimentos tirados, porque todos os que cavaram neste tesouro e varreram esta casa, foram tirando impedimentos à vista, e tudo isto por beneficio do

tempo, ou, para o dizer melhor, por providência do Senhor dos tempos.”676

Nestes dois capítulos Vieira deixa transparecer o seu método de leitura das Escrituras.

Primeiro, aparece nas entrelinhas do seu texto o que advém das chamadas antigas escolas de

estudo bíblico do século XII677, nestas há um tríplice caminho de aproximação ao texto bíblico: a

explicação da Escritura que corresponde à Lectio e o estudo da sua teologia na disputatio e na

praedicatio. Não é por menos que ao falar da leitura e interpretação das Escrituras, Vieira

mencione as discussões entre Jerônimo e Agostinho e apresente suas observações sobre a

leitura alegórica nos Padres da Igreja.678

675 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 165-6). 676 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 166). 677 Um dos grandes expoentes do estudo e interpretação dos textos bíblicos neste período foi Hugo de São Vitor que percebe na Escritura três sentidos: o histórico, o alegórico e o tropológico. No entanto, o seu método tem em si uma finalidade contemplativa que implica na disciplina da leitura (lectio), no ensinamento (disciplina), que conduz à meditação (meditatio), a meditação à oração (oratio), a oração à ação (operatio) e a ação à contemplação (contemplatio). Sobre o estudo da Bíblia e a exegese neste período, ver RICHÉ, Pierre e LOBRICHON, Guy (1984:141-298). 678 “E como isto é o que só buscavam para escrever, isto é o que só achavam ou o que só escreviam, seguindo os sentidos alegóricos e místicos e deixando ou insistindo menos nos literais, como se vê ordinariamente em todas as exposições dos Padres, que todas se empregam na alegoria, tocando muitas vezes só leve e superficialmente a letra, e talvez não sem alguma impropriedade e violência. Assim o notaram entre os mesmos Padres alguns mais modernos que antigos e outros menos antigos que antiquíssimos: dos primeiros, é Ricardo de São Vitor, contemporâneo de S. Bernardo, no Prólogo sobre o Profeta Ezequiel, onde confessa que se aparta de São Gregório, por se não chegar ao sentido literal do texto; dos segundos, é o mesmo São Gregório, Padre do sexto século depois de Cristo, no Proémio sobre o Livro dos Reis, onde diz que lhe foi necessário em algumas partes não seguir os Padres mais antigos, por não faltar ao fio conseqüência e verdadeira interpretação da história. (...) Quer dizer que os Padres antigos, por aplicarem toda a sua industria e engenho no sentido alegórico das Escrituras, ou passaram totalmente em silêncio, ou trataram menos diligentemente alguns lugares mais escuros delas, sendo certo, segundo eram dotados de altíssimos engenhos e enriquecidos de muita ciência e erudição, que, se

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“A exegese de Vieira integra-se numa corrente que tentava ler, ver ou descobrir, prefigurada em passos proféticos do Antigo Testamento, a nova geografia do mundo, neste caso com sentido português e, mais especificamente ainda, com sentido brasileiro, pois o Amazonas ou Maranhão — lugar apaixonadamente presente para o missionário Vieira — torna-se o protagonista das suas elucubrações interpretativas. Pretendia justificar pela expansão da fé junto dos índios a aventura americana dos portugueses, nomeadamente a sua, pessoal, e a dos seus companheiros jesuítas. No capítulo XII do Livro Anteprimeiro, Vieira procede como exegeta, mas o assunto e a intenção são iguais aos que presidiram a sermões como o da Epifania (1662) ou parte do da Sexagésima (1655)”.679

Porém, nas suas indagações acerca do Quinto Império é que aparecerá com força a sua

leitura do Livro de Daniel.

A primeira interpretação aparece no capítulo 6, no qual faz uma leitura dos capítulos 2, 7

e 8 do livro de Daniel, permeada pela leitura de Flávio Josefo. Assim começa a análise de Vieira:

Apresentação do conteúdo de Dn 8 (com referência a Flávio Josefo – Antiguidades Judaicas Livro XI)

Interpretação de Vieira

“No mesmo templo de Jerusalém, refere também Josefo que foram mostradas a Alexandre as profecias de Daniel, particularmente aquela do cap. VIII. Conta ali o profeta que viu dois animais do campo: um, o maioral das ovelhas, com dois cornos muito fortes; outro, o maioral das cabras, com um só corno entre os olhos (o qual depois de quebrado se dividiu em quatro), e que este segundo animal, correndo da parte do Ocidente contra o primeiro, sem pôr os pés na terra, o investira e derribara e metera debaixo dos pés.”680

“Nestas duas figuras é certo que estava profetizado, na primeira, o império dos Persas e Medos (como explicou o anjo a Daniel), por isso tinha a testa dividida em dois cornos; na segunda, o império dos Gregos, que no princípio esteve unido em uma só pessoa, que foi Alexandre, e depois de sua morte se dividiu em quatro, que foram os quatro reinos em que ele o repartiu entre seus capitães. Saiu pois Alexandre da parte ocidental, que é a Macedônia, e sem pôr os pés na terra, pela velocidade com que vencia e sujeitava tudo, investiu, derribou e meteu debaixo dos pés o império dos Persas e Medos, acabando de se cumprir a profecia na última batalha do Tigranes, em que venceu e desbaratou de todo

insistissem no sentido genuino e literal do texto, o poderiam conseguir mais perfeitamente que qualquer dos modernos. (...) Os Padres antigos, que buscavam só nas Escrituras a Cristo e nesta preciosíssima margarita empregavam todo o cabedal do seu estudo, os modernos, que se não determinam no tesouro das Escrituras a um só gênero de riquezas, acham, além da mesma margarita, muitas outras pedras também preciosas, e tiram daquele tesouro (como dizia Cristo) nova et vetera, riquezas novas e velhas: as velhas, que são as notícias das verdades já passadas; as novas, que são o conhecimento das outras futuras”.Cf. HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 168 e 187). 679 Cf. MENDES, Margarida Vieira (2005: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/2sem_08.html). 680 Cf. HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 192).

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Menção a Dn 7,6 e Dn 2,39

os exércitos de Dario e tomou ou se deixou saudar com o nome de Imperador da Ásia.” “Não parou aqui Alexandre; porque não pararam aqui as profecias de Daniel na visão dos quatro animais referidos no cap. VII. O terceiro era Alexandre, significado no leopardo com quatro asas. Na visão da estátua de Nabuco, referida no cap. II, o terceiro dos metais, que era o bronze, significava também o império de Alexandre; e diz ali o Profeta que reinaria e se faria obedecer de todo o Mundo: Et regnum tertium aliud aereum, quod imperabit universae terrae.”681

Acompanhando a interpretação é clara a designação dos dois animais: O primeiro, com

os seus dois chifres é o império dos Medos e Persas; já o segundo animal com um só chifre

entre os olhos e que se dividiu em quatro, representa o poder de Alexandre Magno. No entanto,

a interpretação de Vieira, de certa maneira marcada pela leitura de Flávio Josefo e

principalmente pelo comentário de São Jerônimo, enfoca o domínio de Alexandre Magno não

como o quarto animal ou o quarto metal da estátua. Alexandre passa a representar o terceiro

animal (Leopardo) e o terceiro metal (bronze).

Em termos hermenêuticos, podemos dizer que neste livro introdutório ou Anteprimeiro

da História do Futuro, transparece uma tentativa de articulação entre as práticas hermenêuticas

do escritor e a história. Ou melhor, dizendo, há uma historiografia que conecta leitura e

interpretação, texto do passado e leitura do presente enquanto definidores do futuro. Neste

sentido, o objetivo de Antônio Vieira é “fazer com que a representação histórica da nação

portuguesa reflita o desenvolvimento histórico que o presente parece contradizer”.682 Daí a constante

mistura entre texto e atualidade na linguagem de Vieira como atesta António José Saraiva:

“Ora um texto é interpretado como coisa, ora a coisa como texto, ora um é o prolongamento da outra, ora se confundem. De um texto extrai-se uma coisa; de uma coisa uma palavra [...] O conjunto constituído pelo texto sagrado, pelos textos

681 Idem. p.192. 682 Cf. BRAGA-PINTO, César (2003: 170).

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profanos nos quais se exprime também, de alguma maneira, a palavra de Jesus, e pela Natureza que, conjuntamente com a história, e uma figura eloqüente da verdade divina, forma um contexto único, cujos termos - as coisas, as imagens das coisas e as palavras - se explicam uns pelos outros”.683

Os dois livros da História do Futuro que Vieira conseguiu escrever (depois dos 12

capítulos do Livro Anteprimeiro) giram em torno das leituras da profecia e suas interpretações,

com grande destaque para o livro de Daniel.

Vejamos como o livro de Daniel é lido e interpretado por Vieira em seus dois livros da

História do Futuro.

2. O Livro de Daniel nos Livros Primeiro e Segundo da História do Futuro Os dois capítulos de apresentação colocam as balizas da sua leitura do livro de Daniel e

da profecia de Zacarias. Simplesmente é preciso responder a uma única questão: Quem é o

Quinto Império? Por que recebe o número “Quinto” se existiram tantos impérios?

“Entrando a tratar do Quinto Império do Mundo (grande assunto deste nosso pequeno trabalho) para que procedamos com a distinção e clareza tão necessária em toda a história e muito mais neste gênero, a primeira cousa que se oferece para averiguar e saber é que impérios tenham sido ou hajam de ser os outros quatro, em respeito ou suposição dos quais este novo de que falamos se chama Quinto.

(...) Havendo pois ainda nesta nossa idade tantos impérios, e sendo tantos mais os de nações bárbaras e políticas que em diversos tempos do Mundo se têm levantado e caído, com razão se deve duvidar e desejar saber a causa pôr que este nosso Império que prometemos recebe o numero de Quinto, e quais sejam em ordem os outros quatro que lhe deram este lugar ou este nome. Ao que respondemos breve e facilmente que este modo de contar não é nosso nem de algum outro historiador ou autor humano, senão fundado e tirado das Escrituras divinas, cuja história profética, sem fazer caso de muitos e grandes impérios que floresceram e haviam de florescer em vários tempos e lugares do Mundo, só trata do primeiro que se começou e levantou nele, e dos que em continuada sucessão se lhe foram seguindo até o tempo presente, os quais em espaço quase de quatro mil anos têm sido com este quatro. Esta sucessão e seu princípio foi desta maneira.”684

683 António José Saraiva. Apud. BRAGA-PINTO, César (2003: 170). 684 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 243-4).

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Vieira, no segundo capítulo traça, em linhas gerais, a constituição dos quatro impérios

mundiais. Segue uma descrição dos impérios (primeiro, os assírios e babilônicos, seguido pelos

persas, depois os gregos e chegando no império romano) à luz do que foi a interpretação feita

pelos Padres da Igreja.

“Ao império dos Assírios sucedeu o dos Persas pelos anos da criação 3444. Começou em Ciro, acabou em Dario; contou por todos catorze imperadores. Não durou, conforme Eusébio, mais que duzentos e trinta anos. O terceiro Império, que foi o dos Gregos, ainda durou menos, se o considerarmos como monarquia. Alexandre o começou e acabou em Alexandre, para que vejam e conheçam as coroas quanto é grande a sua mortalidade, pois pode ser mais breve a vida de um império que a de um, homem. Começou este Império dos Gregos depois pelos anos do Mundo 3672, conservou-se unido somente oito, e, antes deles acabados, se dividiu em três reinos: o da Ásia, o da Macedônia, o do Egito; e este (que foi o que mais permaneceu) continuou com desigual fortuna trezentos anos, até que, governado e não defendido pela celebrada Cleópatra, o ajuntou Marco Antônio à grandeza romana.”685 A menção a uma divisão do Império Romano em Oriental e Ocidental está mais para uma

leitura a partir da atualidade do que propriamente uma referência aos tempos antigos. Jorge R.

Seibold observa que noutros momentos do texto serão apresentados nomes atuais para se referir

à divisão deste império.686

Nos capítulos 1 e 2, que servem como introdução para os dois livros sobre o Quinto

Império (aliás, no plano de sua obra, o Livro I trata do nome, verdade e fundamento do Quinto

Império e o Livro II irá definir e declarar que Império é este), Vieira vai determinar os seguintes

pontos:

1. Uma questão tem de ser logo averiguada: “que impérios tenham sido ou hajam de ser os

outros quatro, em respeito ou suposição dos quais este novo de que falamos se chama

Quinto. Porque sem recorrer à memória dos tempos passados, e pondo somente os

olhos no mundo presente, conhecemos hoje nele muito maior número de impérios”.687

685 Idem. Pp.245-6. 686 Cf. SEIBOLD, Jorge R. In: KONINGS, Johan (2001:142-3). 687 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 243).

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2. Acompanhando as Escrituras irá responder porque este Império recebe o nome de

Quinto se existiram tantos impérios e a ordem estabelecida para os outros quatro.

Determinadas estas duas questões preliminares a serem respondidas, Vieira passa no

capítulo 2 a tentar mostrar uma contagem comprobatória para a sucessão de cinco impérios

mundiais. Começando por apontar os antecedentes do imperialismo assírio-babilônico. Neste

aspecto, busca-se como referência a narrativa mítica da Cidade e a Torre de Babel em Gn 11 e

a descrição mítica da origem dos poderosos associada à figura dos gigantes, tal como aparece

na genealogia das nações em Gn 10 (as gerações de Ninrode, do qual se diz que “começou a

ser poderoso na terra”).

“Belo, filho do gigante Nembrot (posto que não faltam graves autores que fazem destes dois nomes o mesmo homem), reduzindo a sujeição e obediência política a liberdade natural com que todos até aquele tempo nasciam, foi o primeiro que ensinou ao Mundo e introduziu nele a tirania, a que depois com nome menos odioso chamaram Império. Tantos anos tardou a ambição em romper o respeito àquela lei com que nos fez iguais a todas a natureza. Foi este império de Belo o dos Assírios ou Babilônios; durou, segundo Justiço, perto de mil e trezentos anos; teve, entrando neste número Semearmos, 37 imperadores, de que foi o último Sardanapalo.”688

Os assírios são sucedidos pelos Persas através das ações de Ciro e tem o seu fim

com o governo de Dario. O terceiro império, o dos gregos, teve como grande agente, o

imperador Alexandre (de vida breve). Ressalta Vieira nesta sua montagem cronológica a

pequena duração de Alexandre e de seu império, e a rapidez com que passou o império grego

é determinada pela divisão do império em três reinos: Ásia, Macedônia e Egito este último o de

maior duração.

O quarto império, o de Roma, que teve um total de 35 imperadores no processo de

sucessão, chegando até Constantino, que dividiu o império em Império Oriental e Império

Ocidental.

688 Idem. p.245.

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Depois de descrever estes quatro impérios é preciso apontar as primeiras notas sobre o

Quinto Império.

“Em respeito pois e suposição destes quatro impérios, chamamos Império Quinto ao novo e futuro que mostrará o discurso desta nossa História; o qual se há-de seguir ao Império Romano na mesma forma de sucessão em que o Romano se seguiu ao Grego, o Grego ao Persa e o Persa ao Assírio. E assim como o Império dos Persas se chama o segundo Império, porque sucedeu ao dos Assírios, que foi o primeiro do Mundo, e o das Gregos se chama o terceiro, porque sucedeu ao dos Assírios e dos Persas, e o dos Romanos se chama o quarto, porque sucedeu ao dos Assírios, ao dos Persas e ao dos Gregos, assim este nosso Império, porque há-de suceder ao dos Assírios, Persas, Gregos e Romanos (como logo veremos) se deve chamar com a mesma razão e propriedade o Quinto Império do Mundo; e porque todos os outros Impérios, passados e presentes, por grandes e poderosos que fossem, ficaram fora da ordem desta sucessão, que começou no primeiro e há-de acabar no Quinto (que será também o último), por isso as Escrituras Sagradas não fazem menção nem memória alguma deles, como também nós a não fazemos. Nem eles, por muitos que hajam sido, ficando fora da mesma ordem, podem acrescentar número ou lagar ao novo Império com que mude ou exceda o que lhe damos de Quinto.”689

No capítulo 1 do Primeiro Livro, o qual tem o seguinte título: “Mostra-se a Quinta

Monarquia com a 1a. profecia de Daniel”, Vieira apresenta uma interpretação de Dn 2,1-49,

considerando esta profecia “a primeira pedra deste edifício” e Daniel vem em primeiro lugar,

simplesmente, não pelo espírito de profecia que ele carrega, mas “porque o fez Deus particular

profeta dos reinos e das monarquias”.

Depois das justificativas para iniciar a sua descrição sobre o Quinto Império com o livro

de Daniel, Vieira descreve de forma resumida a narrativa do capítulo 2 de Daniel, dando realce a

alguns aspectos, mesmo considerando que não era tão necessária esta explicação, resolveu

resumir brevemente a fim de dar “crédito” à profecia. Eis alguns desses aspectos que são

realçados por Vieira:

1. A resposta dos sábios para Nabucodonosor que lhe ordena declarar o

sonho e a interpretação é a fala daqueles que são gentios.

689 Idem. p.247.

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2. O rei considera os magos enganadores e indignos de crédito porque

“se não podiam saber o sonho, que era coisa passada, como haviam de conhecer a significação dos futuros, e somente lhes haviam de dar crédito no segundo e mais dificultoso, se no primeiro e mais fácil eles mesmos confessavam sua ignorância? Que se resolvessem a dizer logo uma e outra cousa, senão que ele e sus famílias morreriam todas. E como os tristes sábios respondessem outra vez que não sabiam nem podiam satisfazer ao rei no que deles queria, irado grandemente Nabuco, mandou que os levassem de sua presença e que neles e em todos os professores das mesmas artes se executasse logo a sentença de morte. Tão violentos são os apetites do poder supremo, e tão arriscado não satisfazer aos reis até no impossível!”690

3. O relato do sonho por parte de Daniel a Nabucodonosor que ia ouvindo e

reconhecendo o que sonhara faz parte do resgate da memória.

Depois de recontar o texto, Vieira passa a interpretar as palavras de Daniel explicando o

significado de cada uma das partes do sonho. A chave está na palavra de Daniel sobre as

diferentes partes da estátua: “Disse pois Daniel que aquela grande estátua significava a

sucessão do Império do Mundo, e os diferentes metais de que era composta as mudanças que o

mesmo Império havia de ter em diferentes tempos e para diferentes nações.”

Daniel 2,37 – 43 Interpretação de Antônio Vieira 37. Tu, ó rei, rei de reis, porque o Deus do céu a realeza (reino), o poder e a força e a honra deu para ti. 38. E em tudo que habitam os filhos dos homens, bestas do campo e aves do céu deu em tuas mãos e te fez dominar sobre tudo. Tu és a cabeça de ouro.

A cabeça de ouro significava o Império dos Assírios, em que Nabucodonosor naquele tempo reinava; e porque este Império, como deixamos notado, foi o primeiro e o princípio de todos os Impérios, por isso estava representado na cabeça, que é o princípio do corpo, e no ouro, que é o primeiro entre todos os metais.

39. E depois de ti se levantará reino outro na terra de ti

A prata, que é o segundo metal, significava o Império dos Persas, que foi o segundo depois dos Assírios, e que se seguiu a eles, assim como o peito e braços se seguem à cabeça.

e reino o terceiro outro de bronze que dominará em toda a terra.

O bronze, que é o terceiro metal, significava o Império dos Gregos, que foi o terceiro depois dos Persas e se seguiu depois deles, assim como o ventre se segue depois do peito.

40. E o reino quarto será forte como o ferro tudo conforme o ferro de esmigalhar e esmigalha tudo e como o ferro que esmaga (despedaça) todos estes esmigalhará e esmigalhará.

O ferro finalmente, que é o quarto metal, significava o Império dos Romanos, que foi e é o quarto Império, que sucedeu aos três primeiros;

690 idem. p.250.

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41. E o que vistes, os pés e os dedos em parte de barro de oleiro e em parte de ferro: o reino se tornará dividido e a força do ferro será para ele tudo por causa do que viste, o ferro misturado com barro, o barro cozido. 42. E os dedos dos pés em parte de ferro e em parte de barro: o fim do reino acontecerá e por este motivo acontecerá sua quebra. 43. Quanto ao que viste: o ferro misturado com barro, o barro cozido. São misturados com semente de homem e não se tornam apegados (se mantém juntos) um com um. Eis como que ferro não se mistura com o barro.

e assim como as pemas e pés são a última parte do corpo humano, assim este é e há-de ser o último Império dos que naquela estátua se representavam.691

Depois de apresentar a interpretação de cada um das partes da estátua, seguindo uma

cronologia dos Impérios, Vieira aponta uma justificativa e fundamentação de sua leitura do texto

de Daniel. Primeiramente diz que o que está dizendo é dito de fé, pois Daniel na sua explicação

do sonho não nomeia as nações, simplesmente alude que os três metais significavam três

reinos. Em seguida, vem da historiografia (experiência e testemunho histórico) que os reinos e

impérios que sucederam aos Assírios, foram os Persas, os Gregos e os Romanos:

“o mesmo Império que primeiro foi dos Assírios, vencidos estes por Ciro, passou aos Persas, e o mesmo Império dos Persas, vencidos estes por Alexandre, passou aos Gregos, e o mesmo Império dos Gregos, vencidos estes por vários capitães de Roma, passou e se incorporou no Império Romano. E este é o verdadeiro, certo e indubitável sentido de interpretação de Daniel, recebido, aprovado e seguido por todos os Padres e expositores deste lugar, em que não há discrepância nem dúvida alguma.”692

Na seqüência, Vieira joga a atenção do leitor para a interpretação dos pés e dedos de

ferro e de barro da estátua. Mais uma vez seu argumento está voltado para a divisão do Império

romano em dois: o Oriente e o Ocidente. E deixa transparecer na sua leitura o seu tempo, não só

apontando para uma concepção de como o mundo conhecido estava dividido na Antigüidade

691 Idem. pp.252-3. 692 Idem. p.253.

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(África, Europa e Ásia), bem como, lançando luzes para a visão do Novo Mundo e a restauração

de Portugal conectada com o seu mito de origem.693

Jorge R. Seibold vai dizer que Vieira não pode aproveitar o princípio epistemológico do

tempo para interpretar corretamente as profecias, já que não contou com uma correta cronologia

histórica.

“Isto leva-o a interpretar erroneamente os dados que proporciona Daniel na interpretação de sua profecia. As duas pernas de ferro não simbolizam a divisão do Império Romano em dois Impérios, um do Ocidente e noutro do Oriente, como tampouco os 10 dedos significam os 10 reinos nos quais iria se dividir emn sua decadência a grandeza do Império Romano. Vieira, inclusive, chega a identificar esses dez reinos com nomes atuais de seu tempo”.694

No que se refere à interpretação dos dedos da estátua como sendo a divisão do Império

Romano em dez reinos, Vieira vai dizer que esta interpretação não é nova e que se fundamenta

nos escritores eclesiásticos, de modo especial, na leitura de São Jerônimo695:

693 Cf. BRAGA-PINTO, César (2003: 188, n.42): “O nascimento da nação portuguesa está tradicionalmente relacionado com a lenda segundo a qual Cristo apareceu para dom Afonso Henriques durante a Batalha de Ourique, em 1139, dirigindo-se a ele com as seguintes palavras: ‘Ego aedificator et dissipator imperiorum sum. Volo enim in et in semine tuo imperium mihi stabilire’. A lenda popularizou-se no século XV com o Frei Bernardo de Britto. (...) Vieira faz diversas referências à lenda como prova da escolha dos portugueses.(...)”. Ver também COELHO, Alessandro Manduco (2003: 126): “É a partir do ‘milagre de Ourique’ que se firma em definitivo a aliança entre Deus e a nação portuguesa. Momento primeiro da história de Portugal, no qual o próprio Cristo aparece para D. Afonso Henriques e, ao proferir as palavras de alento e estímulo, diante a batalha em jogo, sinaliza a particularidade do Reino que daquele instante para frente viu marcar em sua identidade a intervenção sagrada”. (...) Para Hermann a batalha de Ourique, símbolo do futuro grandioso de Portugal, foi exatamente no século XV que “ganhou contornos milagrosos, tendo sido até então observado apenas em sua dimensão militar. Como traço fundador de uma história especial e sagrada do reino português, sua força encontraria substância nas conquistas quase inexplicáveis empreendidas por um país tão pequeno e um povo tão reduzido. Este feito poderia indicar a confirmação da vontade de Deus de fazer de Portugal um país independente e preparado para levar a verdadeira fé aos quatro cantos do mundo.” Cf. HERMANN, Jacqueline (1998: 24). 694 “Esto lo lleva a interpretar erróneamente los datos que proporciona Daniel en la interpretación de sua profecía. Los dos piernas de hierro no simbolizan la división del Imperio Romano en dos Imperios, uno de Occidente y en otro de Oriente, como tampoco los 10 dedos significan los 10 reinos en los que se iría a dividir en su decadencia la grandeza del Imperio Romano. Vieira, incluso, llega a identificar essos diez reinos con nombres actuales de su tiempo”. SEIBOLD, Jorge R. In: KONINGS. Johan (2001: 142-3). 695 Vejamos uma explicação apresentada por Louis F. Hartmann: “Antes se creía que los cuatro reinos o imperios de Dn eran el babilonio, el medo-persa, el greco-seléucida y el romano. Si bien esta teoría, defendida por san Jerónimo, fue considerada en otro tiempo como la interpretación católica ‘tradicional’(relacionada con el intento de explicar las ‘setenta semanas de años’ de 9,24-27 como un plazo que culmina en la muerte de Cristo), hoy se encontrarían pocos exegetas católicos dispouestos a sustentarla”. Cf. HARTMANN, Louis F. (1971: 300).

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“E é tão verdadeira e tão antiga esta interpretação dos dez dedos da estátua, que já antes dos tempos de S. Jerónimo em que o Império Romano estava íntegro e potentíssimo, sem ter perdido cousa alguma sua grandeza, era opinião comum (como diz o mesmo santo) de todos os escritores eclesiásticos que o Império se havia de dividir em dez reinos.”696

Mais adiante faz duas aplicações hermenêuticas acerca dos pés de ferro e barro da

estátua, relacionadas com a luta da Cristandade contra as heresias. De um lado, vai dizer que

numa leitura literal que indicar o contexto de guerras e batalhas, demonstrando tanto a firmeza

do império (ferro) quanto a sua fraqueza (barro).697 E, de outro, as tentativas de alianças

(casamentos e pactos entre imperadores e reis da Cristandade) têm suas marcas nos conflitos

entre Espanha e Portugal.698

696 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 254). 697 Idem. p.256: “ao pé da letra, o que se tem visto e experimentado no Império Romano, desde o tempo de sua maior declinação a esta parte, em tantas ocasiões de guerras e batalhas contra Turcos, contra hereges e contra alguns príncipes cristãos, nas quais em defesa da própria e da Igreja têm pelejado os exércitos imperiais com grande valor, disciplina e constância, e alcançado de seus inimigos gloriosas vitórias. E a mesma oposição tão bizarra com que as armas do Império nas fronteiras de Alemanha e Hungria, e o mesmo Imperador em pessoa estão hoje resistindo às invasões do Turco e poder otomano, que outra cousa são ainda, senão partes e partes muito sólidas daquele mesmo ferro?” 698Idem. pp. 257-8: “Quantas vezes se intentou na Europa que entre os imperadores e reis da Cristandade se estabelecesse uma liga firme, interpondo-se para isso a autoridade dos Sumos Pontífices, e quantas vezes se liaram os mesmos príncipes entre si por meio de recíprocos casamentos, sem jamais se conseguir a união desejada! Que imperador ou que rei houve na Cristandade há muitos anos que, se gota por gota lhe distinguirem o sangue, não tenha cada um dos outros príncipes quase iguais partes nele? E que guerras vimos ou sabemos entre estas coroas, em que o sangue que de uma e outra parte se defende, e ainda o que se derrama, não seja o mesmo? Tão misturado anda o sangue nestas últimas relíquias do Império Romano, mas tão resumido sempre, e por isso o mesmo império tão enfraquecido! Nasceu juntamente com Roma esta fatal desunião contra o respeito do sangue em Rômulo e Remo; viu-se no casamento de Pompeu com Júlia, filha de Júlio César, e no de Marco Antônio com Octávia, filha de Octávio, quão facilmente se desatam, antes, se amarram contra si, as ,mesmas mãos que- pelo matrimônio se uniram. Mas não são estes exemplos tão antigos os de que fala a profecia de Daniel, porque não são os dos pés da estátua ou os dos dedos dos pés. Significam os dedos dos pés da estátua as últimas extremidades do Império Romano e a sua duração, e, se eu me não engano, no mesmo dia em que isto estou escrevendo se está cumprindo esta profecia. Que casa real há no Mundo mais ligada com a do Império, que ramo há que seja mais próprio daquele tronco, e que sangue mais repetidamente unido por multiplicados casamentos que o de Áustria e Castela? E que pessoa real há também em que mais apertadamente estejam atados estes vínculos e mais dobrados todos estes respeitos que na de El-Rei Filipe IV, primo do Imperador, cunhado do Imperador, genro do Imperador? Considere agora o Mundo o estado em que o mesmo Imperador se achou no ano passado e em que se acha no presente, com os poderosos exércitos do Turco metidos dentro na Áustria, e quase, batendo às portas de Praga, corte do Império, os campos talados, as cidades destruídas, os homens barbaramente mortos a sangue-frio, as mulheres e meninos cativos e transmigrados para a Turquia, os templos e pessoas dedicadas ao templo em abomináveis sacrilégios profanados, e, depois de profanados, abrasados e feitos em cinzas; e neste mesmo tempo em que o ferro de Espanha se havia de unir todo ao ferro do Império, vemo-lo todo infelizmente convertido contra Portugal, mas por isso mesmo infelizmente! Se este ferro se unira ao Império contra o Turco, fora ferro, mas, porque se desune dele em tal ocasião e se converte contra Portugal, é barro. Barro e barro quebradiço, foi o ano passado e, por mais que se mostre ou ameace ferro, barro há-de ser também no presente. Quanto melhor e mais católica ação fora, e quanto de maior

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“Por um lado existem reinos que se comportam como ferro, quer dizer, com firmeza e valor para defender os interesses da cristandade ou do império ante os turcos, os hereges ou ante outros príncipes cristãos. Tais são, por exemplo, as que mostram os exércitos imperiais que nas fronteiras da Alemanha e Hungria se opõem às invasões dos Turcos e dos Otomanos. Outros reinos só podem considerar-se de barro”.699

Porém, ainda falta a interpretação sobre a pedra “sem mãos” que atinge os pés

da estátua. Para Vieira, esta pedra significa o Quinto Império:

Daniel 2, 44-45 Interpretação de Antônio Vieira “E nos seus dias que reis estes levantará Deus céu reino que para sempre não será destruído e este reino para povo outro não será deixado Triturará e destruirá todos estes reinos e ele levantado para sempre.

“Quer dizer: aquela pedra, ó Rei, que viste arrancar e descer do monte, que derrubou a estátua e desfez em pó e cinza todo o preço e dureza de seus metais, significa um novo e quinto Império que o Deus do Céu há-de levantar no Mundo nos últimos dias dos outros quatro. Este Império os há-de desfazer e aniquilar a todos, e ele só há-de permanecer para sempre, sem haver de vir jamais por acontecimento algum a domínio ou poder estranho, nem haver de ser conquistado, dissipado ou destruído, como sucedeu ou há-de suceder aos demais.

Em conformidade do que viste que do monte foi cortada pedra sem mão e triturou o ferro, o cobre, a prata, o barro e o ouro Deus grande faz saber para o rei o que acontecerá depois disto e seguro o sonho e digna de confiança sua interpretação”.

Estas são as cousas futuras que Deus te quis mostrar, ó Rei, e este é o sonho que tiveste e esta a verdade de sua interpretação -- et verum est somnium et fidelis interpretatio ejus.”700

Aqui, Vieira simplesmente parece repetir o texto de Daniel sem avançar muito na sua

interpretação do que significa esta pedra que fora lançada contra a estátua. Aliás, ele termina

este capítulo apontando que a sua interpretação aparecerá mais adiante. Ou seja, ele vai falar

exemplo para todos os príncipes católicos e de menor escândalo para os hereges e para os mesmos Turcos se o sangue espanhol, e tão valoroso, que de uma é outra parte se desperdiça, com lástima e lágrimas da Igreja, no campo de Portugal e Castela, se empregara com glória imortal de ambas as coroas em defesa da Fé, da Cristandade, da Religião, e da mesma cabeça dela, a quem tão de perto ameaça este golpe! Mas quando todo o poder de Espanha se havia de achar unido contra o Turco em socorro de Alemanha e Itália, despovoam-se os presídios de Itália, levantam-se os de Alemanha e chamam-se todos a Castela contra Portugal, para que triunfem nas bandeiras otomanas as luas de Mafoma, e se conquistem e sejam vencidas nas portuguesas - as chagas de Cristo!” 699 ”Por un lado hay reinos que se han comportado como hierro, es decir, con firmeza y valor para defender los intereses de la cristiandad o del imperio ante los turcos, los herejes o ante otros príncipes cristianos. Tales son, por ejemplo, las que muestran los ejércitos imperiales que en las fronteras de Alemania y Hungría se oponen a las invasiones de los Turcos y de los Otomanos. Otros reinos solo pueden considerarse de barro”. SEIBOLD, Jorge R. In: KONINGS. Johan (2001: 143). 700 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 259).

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do significado da pedra depois da leitura de Daniel 7. No primeiro capítulo do Livro II, é que

Vieira apresenta a seguinte leitura e interpretação sobre esta pedra que atingiu os pés da

estátua:

“Primeiramente aquela pedra que derrubou a estátua e desfez as quatro monarquias figuradas nos quatro metais, e depois cresceu e a sua grandeza ocupou e encheu toda a Terra, é Cristo, o qual em outros muitos lugares da Sagrada Escritura se chama Pedra. Ele foi a pedra que no deserto matou a sede aos filhos de Israel e os acompanhou até a terra da Promissão. Ele foi a pedra com que David derrubou ao gigante, em significação de que por meio e virtude de Cristo havemos de vencer o Mundo e o Demônio. Ele foi a pedra que viu Zacarias, e sobre ela sete olhos, super lapidem unum septem oculi, que são os sete dons do Espírito Santo, o qual infundiu todo e descansou sobre Cristo. Ele foi a pedra sobre que adormeceu Jacob, quando se lhe abriu o Céu e viu a escada; ele a pedra sobre que sustentou os braços levantados de Moisés, quando venceu os exércitos de Amalec; ele finalmente a pedra angular, a que uniu os dois povos gentílicos e judaico, e a pedra fundamental e provada sobre que se fundaram na Lei antiga a Igreja de Sion e na nova a do mesmo Cristo. Esta pedra pois foi a que, arrancada do monte, derrubou a estátua e desfez os quatro impérios dos Assírios, Persas, Gregos e Romanos, para fundar e levantar o seu sobre todos eles. Assim o dizem conformemente neste lugar não só todos os Padres e expositores católicos, senão também os hereges e até mesmo Rabinos, os quais acertam em dizer que nesta pedra está profetizado o Reino do Messias, e erram somente em não crerem que o Messias é Cristo. Diz Daniel que esta pedra caiu de um alto monte, arrancada dele sem mãos. E este monte ou é o Céu e o seio do Eterno Padre, donde desceu Cristo quanto a divindade, como interpreta S. Ambrósio; ou é a nação hebraica, levantada naquele tempo como monte entre todas as outras nações do Mundo, da qual o Verbo se dignou tomar e unir a si a humanidade, como explica S. Agostinho; ou finalmente é a Virgem Maria, Senhora Nossa, sublimada como monte altíssimo sobre todas as criaturas, como a mais perfeita e excelente de todas. Esta é a sentença comum e mais recebida dos Padres e expositores deste lugar, com a qual concorda admiravelmente a advertência de Daniel, que a pedra foi arrancada ou cortada do monte sem mãos: Lapis abscissus de monte sine manibus; porque na geração temporal de Cristo, sendo verdadeiro homem, não tiveram parte mãos de homem, toda foi obra sobrenatural e divina, suprindo o Espírito Santo e a virtude do Altíssimo o que nela faltou de concurso humano. Assim o notou o mesmo S. Agostinho, S. Jerónimo, S. Ireneu, S. Júlio, S.

Epilanio, Teodoreto, Ruperto e muitos outros Padres.” 701 Notemos, que Vieira faz uma incursão sobre a Escritura na busca de referências à

pedra: Ex 17, 1-7 e Nm 20,1-13 (água da rocha no deserto de Sin); 1Sm 17,40-54 (Davi que

vence Golias com uma pedra); Zc 3,9 (a pedra de sete olhos na visão de Zacarias); Gn 28, 10s

701 Idem. pp.277-8.

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(a pedra onde adormeceu Jacó e teve o sonho da escada); Ex 17,8-16 (a pedra que sustenta os

braços de Moisés na batalha contra os amalecitas) e Sl 118,22-23 (a pedra angular). Porém,

nestas referências da Bíblia Hebraica Vieira quer aplicar o mesmo significado que dá à pedra

que atinge os pés da estátua: para ele a pedra em várias passagens da Escritura é Cristo. Aqui

nos deparamos com a leitura cristológica ou cristocêntrica de Vieira.

Vale salientar, que no final do capítulo 1 do Livro I, Vieira ao falar da reação de

Nabucodonosor ao fato de Daniel ter revelado e interpretado o seu sonho (Dn 2,46-49), dará

uma alfinetada naqueles que não aceitavam ou reprovavam a sua leitura e interpretação e,

inevitavelmente a sua postura política702.

“Depois de contar Daniel toda esta prodigiosa história, acrescenta imediatamente o que Nabucodonosor lhe fez e o que lhe disse. O que lhe disse foi: Vere Deus vester Deus deorum est, et Dominus regnum, et revelans mysteria, quoniam tu potuisti aperire hoc sacramentum. ‘Verdadeiramente o Deus que adoras, ó Daniel, é o Deus dos deuses e a Senhor dos reis, e o que só conhece e revela as mistérios escondidos aos homens, pois tu, alumiado por ele, pudeste declarar este grande segredo e sacramento’. O que fez Nabuco no mesmo tempo, e ainda antes de dizer estas palavras, refere o mesmo texto em as seguintes: Tunc rex Nabuchodonosor cecidit in faciem suam, et Danielem adoravit, et hostias et incensum præcepit ut sacrificarent ei. ‘Tanto que o rei acabou de ouvir a Daniel, prostrou-se diante dele e adorou-o com o rosto em terra, e mando que lhe oferecessem incenso e sacrifício.’ Se isto fez Nabucodonosor a Daniel, quando lhe disse que seu império se havia de acabar e passar outros quatro, que faria se lhe dissesse ser e1e o senhor do quinto? Naquele tempo pagava-se a interpretação de uma profecia infeliz com adorações e sacrifícios hoje pagam-se as interpretações felicíssimas com opróbrios e calúnias.” 703

A segunda profecia de Daniel, que Vieira vai utilizar para fundamentar a sua tese sobre

o Quinto Império é a visão dos quatro animais e o Filho do Homem em Dn 7,1-28. Em primeiro

lugar, ele vai introduzir a sua interpretação, relacionando a figura de Daniel com José, vendido

pelos irmãos como escravo e que se torna ministro do Faraó. Tanto José quanto Daniel

conhecem a arte de interpretar sonhos.

702 Podemos conferir as oposições a Vieira no Tratado Ante-Vieira de um Anônimo Curioso (1661). Ver BESSELAAR, José van den (2002: 139-220). 703 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 259-260).

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Nesta visão dos quatro animais que vêm do mar, Vieira considera o mar como o cenário

teatral “em que haviam de sair a representar quatro figuras horrendas, a que o profeta chama

bestas grandes”. Percebemos dois momentos na interpretação de Vieira: no primeiro, é uma

grande apresentação do texto (uma espécie de resumo breve ou apontamento das partes

importantes da visão de Daniel) e, no segundo, a sua interpretação guiada pelo próprio texto e

pela leitura de Dn 2. (Numa leitura rápida destes dois livros da História do Futuro podemos ver

que Vieira dá mais ênfase ao sonho da estátua – Dn 2 do que a visão dos quatro animais704),

porém, muitas das questões relacionadas às ações da quarta besta e o pequeno chifre e a

imagem do Filho do Homem são objeto dos outros livros da História do Futuro que não foram

produzidos ou dos quais não temos conhecimento.

Apresentação de Dn 7:

1. Introdução sobre o sonho/visão de Daniel:

“Passados 47 anos depois daquela visão (que foi o ano 54 do último cativeiro de Babilónia), reinando já nela Baltasar, que sucedeu a Nabuco no Império dos Assírios ou Caldeus, viu o Profeta Daniel em uma visão de noite, (ou fosse dormindo e em sonhos, como tem a opinião mais comum dos Doutores, ou fosse, como outros suspeitam, acordado, velando) viu, digo, que os quatro ventos principais se davam batalha no meio do mar e levantavam uma horrível e furiosa tempestade; mas o mar assim perturbado e temeroso não era mais que o teatro em que haviam de sair a representar quatro figuras horrendas, a que o, profeta chama Bestas grandes: Ecce quatuor venti coeli pugnabant in mari magno, et quator bestiæ grandes ascendebant de mari diversæ inter se.”705

2. A descrição das quatro bestas

“’Saiu a primeira besta semelhante a uma leoa com asas de águia; pôs o Profeta nela os olhos, e não levou assim muito tempo, até que lhe foram tiradas ao arrancadas as asas. E logo levantou as mãos da terra e se pôs em pé e ficou

704 Aliás, o próprio Vieira no início da sua interpretação de Dn 7 diz o seguinte: “até aqui o mesmo Profeta, o qual, porém, referindo a dita interpretação, passa em silêncio algumas circunstâncias dela, sem dúvida para não exceder a brevidade que no princípio deste capítulo tinha prometido. Daniel somnium vidit, et somninm scribens brevi sermone comprehendit; summatimque perstringens ait. E a razão de passar por aquelas circunstâncias tão brevemente ou foi porque as supôs bastantemente declaradas na visão do segundo capítulo ou sonho de Nabucodonosor que acabamos de explicar, ou certamente porque as julgou de menos importância ao seu interesse principal, que e a demonstração do Quinto Império, exprimindo com grande particularidade e miudeza tudo o que pertence a ele, como agora veremos.” 705 Idem. pp.261-2.

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em figura de homem.’ Vejam lá os leões se lhes tira Deus as asas para que sejam homens! Prima [bestia] quasi leæna et alas habebat aquilæ; aspiciebam donec evulsæ sunt ale ejus, et sublata est de terra, et super pedes quasi homo stetit, et cor hominis datum est ei. ‘Saiu a segunda besta semelhante a um urso, firmou-se sobre os pés e parou; tinha três ordens de dentes, entre os quais trazia três bocados, e diziam-lhe que comesse e se fartasse de carne’ Et ecce bestia alia similis urso in parte stetit; et tres ordines erant in ore ejus, et in dentibus ejus, et sic dicebant ei: Surge, comede carnes plurimas. ‘Depois desta saiu a terceira besta semelhante a leopardo, e tinha quatro asas como ave e quatro cabeças; e foi-lhe dado grande poder.’ Post hæc aspiciebam, et ecc alia quasi pardus, et alas habebat quasi avis, quatuor super se et quator capita erant in bestia et potestas data est ei. Durava ainda a noite, diz o Profeta e por fim de todas entrou ‘a quarta besta, horrível, espantosa e muito forte. Tinha os dentes de ferro grandes com que comia e despedaçava tudo, e o que lhe caía da boca ou não queria comer pisava com os pés. Era mui diferente de todas as outras bestas, e tinha na testa dez pontas’. Post hæc aspiciebam in visione noctis, et ecce bestia Quarta terribilis atque mirabilis, et fortis nimis, dentes ferreos habebat magnos, comedens atque comminuens, et reliqua pedibus suis conculcans: dissimilis autem erat ceteris bestiis, quas videram ante eam, et cornua decem.”706

3. Os chifres e o pequeno chifre

“Enquanto tudo isto notava, Daniel via que de entre as dez pontas da quarta besta saía uma ponta menor que as outras, a qual obrou grandes estragos e outras cousas prodigiosas, cuja narração e mistérios pertencem ao Livro V desta nossa História, para onde o reservamos, como também outras circunstâncias desta mesma visão que expenderemos em seus lugares.”707

4. O Tribunal de julgamento

“E continuando o que pertence a este, «levantou Daniel os olhos ao céu e viu que se armava um tribunal de juízo, cheio com grande aparato de horror, grandeza e majestade. Trouxeram-se cadeiras e assentou-se em um alto trono um velho de venerável ancianidade, a quem o Profeta chama Antigo dos dias, cujo cabelo era todo branco, e brancas as roupas de que estava vestido, aquele como arminhos, estas como neve; a matéria do trono era fogo, umas rodas sobre que o trono estava levantado também fogo, e de fogo também um rio arrebentado que da boca lhe saía. Os ministros que lhe assistiam de uma e outra parte eram milhares de milhares; assentaram-se os conselheiros ou juizes assessores; vieram os livros e abriram-se». Este é o aparato daquele tribunal e juízo, descrito ou construído ao pé da letra, como fazemos, para maior crédito da verdade em tudo o mais que imos referindo, e por isso repetimos as palavras do texto: Aspiciebam donec throni positi sunt, et Antiquus dierum sedit: vestimentum ejus candidum quasi nix, et capili capitis ejus quasi lana munda. Thronus ejus flammæ ignis: rotæ ejus ignis accensus. Fluvius igneus,

706 Idem. p.262. 707 Idem pp.262-3.

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rapidusque egrediebatur a facie ejus. Millia millium ministrabant ei, et decies millies centena millia assistebant ei: judicium sedit, et libri aperti sunt. A primeira sentença ou execução que saiu deste juízo foi que à primeira, segunda e terceira besta se tirasse todo o poder, limitando-se a cada uma o tempo determinado de sua duração, o qual acabado, acabaram. Acabou também a quarta besta. porque «viu o Profeta que fora morta violentamente, e que todo aquele grande corpo perecera, e que fora entregue ao fogo para ser queimado», não ficando de tanta grandeza e bravosidade mais cinzas. Et vidi quoniam interfecta esset bestia, et perisset cortus ejus, et traditum esse ad comburendum igni; aliarum quoque bestiarum ablata esset potestas, et tempora vitæ constituta essent eis usque ad tempus et tempus.“708

5. O Filho do Homem

“Torna a dizer o Profeta que «ainda durava a noite e viu vir rodeado de nuvens do céu um como filho do homem, o qual chegou ao trono do Antigo de Dias e o ofereceram em sua presença. E ele lhe deu o poder, a honra e reino de todo o Mundo, para que todos os povos e todos os tribos, e todas as línguas o obedeçam e sirvam. Este seu poder será eterno, eterno também o reino, porque nunca jamais lhe será tirado» Aspiciebam ergo in visione noctis, et ecce cum nubibus coeli quasi filius hominis veniebat, et usque ad Antiquum dierum pervenit; et in conspectu ejus obtulerunt eum. Et dedit ei potestatem et honorem et regnum; et omnes populi, tribus et linguæ itsi servient: potestas ejus, potestas æterna quæ non auferetur; et regnum ejus, quod non cortumpetur.“709

6. Conclusão

“Esta é pontualmente a relação de todo o sonho ou história enigmática, representada nele. «Com a qual (diz Daniel) ficou o meu espírito assombrado e cheio de horror. E volvendo eu no pensamento que significariam aquelas cousas, cheguei-me a um dos ministros que ali assistiam, pedindo-lhe me quisesse declarar o verdadeiro sentido delas. E ele o fez assim e me ensinou a interpretação e mistérios de tudo o que tinha visto». Até aqui o mesmo Profeta, o qual, porém, referindo a dita interpretação, passa em silêncio algumas circunstâncias dela, sem dúvida para não exceder a brevidade que no princípio deste capítulo tinha prometido. Daniel somnium vidit, et somninm scribens brevi sermone comprehendit; summatimque perstringens ait. E a razão de passar por aquelas circunstâncias tão brevemente ou foi porque as supôs bastantemente declaradas na visão do segundo capítulo ou sonho de Nabucodonosor que acabamos de explicar, ou certamente porque as julgou de menos importância ao seu interesse principal, que e a demonstração do Quinto Império, exprimindo com grande particularidade e miudeza tudo o que pertence a ele, como agora veremos.”710

708 Idem. pp.263-4. 709 Idem. p.264. 710 Idem. p.264.

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Interpretação de Daniel 7:

Daniel 7,17-18 Apresentação do texto por Antônio Vieira

17 Estes grandes animais que são quatro, são os quatro reinos que se levantaram da terra.

18 E receberão o reino os Santos do Altíssimo e tomarão posse do reino para toda eternidade.

Primeiramente diz Daniel (ou disse a Daniel o seu intérprete) que «aquelas quatro bestas grandes significavam quatro reinos ou quatro impérios, que sucessivamente se haviam de levantar no Mundo, depois dos quais se havia se seguir outro quinto Reino ou Império, que o mesmo intérprete chama Reino dos Santos do Altíssimo, o qual não há de ter mudança nem variedade, nem outro reino algum ou império que lhe suceda, porque há-de durar para sempre.711

A Interpretação de Vieira à luz de Dn 2

Esta é a interpretação em comum que deu o intérprete do Céu a toda a visão, sobre a qual nos explicaremos mais particularmente, declarando todas as figuras dela pela mesma ordem com que foram saindo, advertindo o que o Profeta e seu intérprete exprimiram, e suprindo com a exposição dos Doutores o que eles calaram, coligido porém tudo imediatamente do mesmo que dizem. Não declara Daniel que ventos fossem aqueles, nem que tempestades se levantaram no mar antes de sair nele as quatro bestas, mas todos os expositores concordam em que o mar significava o Mundo, e os ventos e tempestades que o alteram as alterações, movimentos, guerras e perturbações que se costumam experimentar no mesmo Mundo, quando nele se levantam novos impérios. Mas, antes que passemos adiante, satisfaremos um argumento que nos fica no texto de Daniel, porque não deixemos o inimigo nas costas. Diz o texto que levantará Deus esta nova Monarquia in diebus Regnorum illorum, nos dias daqueles impérios. Logo, esta Monarquia não é futura se não passada, porque dos quatro Impérios já passaram totalmente os três, que são o dos Assírios, o dos Persas e o dos Gregos, e o quarto, que é o Romano, também está na última declinação. Respondo que o Profeta na sua interpretação se acomodou com grande propriedade à figura do enigma que declarava. Porque Deus, no sonho de Nabucodonosor, representou todos os quatro impérios, não como quatro corpos ou quatro indivíduos, senão como um só corpo ou um só indivíduo. Por isso viu o Rei não quatro estátuas senão uma só estátua; e assim como dos quatro corpos dos quatro Impérios se formou um só corpo, assim das quatro durações dos quatro impérios se há-de compor uma só duração, donde segue que com toda a verdade se pode afirmar que sucederá nos dias daqueles Reinos o que suceder nos dias de qualquer deles. Exemplo: a vida de um homem compõe-se de muitas idades, e o que acontece em qualquer destas idades se diz com toda a propriedade e verdade que acontece nos dias daquele homem. Da mesma maneira a duração da estátua dos impérios era composta de diferentes idades. A sua primeira idade, que é o tempo dos Assírios foi idade de ouro, a segunda, que é o tempo dos Persas, foi idade de prata, a terceira, que é o tempo dos Gregos, foi idade de bronze, a quarta, que é o primeiro Império dos Romanos, foi idade de ferro, a quinta, que é este último tempo dos mesmos Romanos, é idade de ferro e barro. E basta que nesta última idade, como decrépita, daquela estátua ou daqueles reinos se haja de levantar o Quinto Império, para que com toda a verdade e com toda a propriedade se verifique havê-lo Deus de levantar nos dias daqueles reinos; in diebus Regnorum illorum. Assim que o Império que promete Daniel não é império já passado, senão que ainda está por vir.712

711 Idem. p.265. 712 Idem. pp.265-6.

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Três detalhes estão presentes nesta interpretação de Vieira. Primeiro, o significado do

cenário: o vento que agita o mar e os quatro animais que daí se levantam; mar aqui simboliza o

mundo; o vento e a tempestade, querem demonstrar os contextos de guerras, perturbações e

alterações nos movimentos; e, finalmente, os animais são os novos impérios que se levantam

em decorrência das agitações. O segundo detalhe, consiste na descrição dos animais que

representam a sucessão de impérios (Assírios, Persas, Gregos e Romanos) e o terceiro, reside

na concepção que o Quinto Império não é império que já passou, mas que ainda está por vir. É

promessa do futuro.

No final do segundo Livro, apresenta uma nota sobre o Reino Universal juntando as três

profecias que ele trabalhos na História do Futuro: O sonho de Nabucodonosor (Dn 2), a visão de

Daniel (Dn 7) e a visão de Zacarias (Zc 3)713:

“Este é o Reino universal que Daniel veio dar ao Filho do Homem (que é Cristo), e este o Reino que Nabucodonosor também tinha visto encher o Mundo, posto que não viu nem lhe foi mostrado a quem se havia de dar. Este é o que viu mais distintamente que todos Zacarias na sua terceira visão; porque Nabucodonosor viu sòmente o Reino e sua grandeza, Daniel viu o Reino e a pessoa que o havia de dominar, e Zacarias viu o Reino e a pessoa, e o número e distinção das coroas.”714

Outro texto exegético de grande importância de Vieira sobre o livro de Daniel é a sua

Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício715 (na segunda representação). Vale lembrar que a

713 “Na História do Futuro, entre as fontes que Vieira utilizou para justificar a esperança do Quintio Império a presença do onírico era evidente. Das três profecias bíblicas (do livro de Daniel, capítulos 2 e 7; e do profeta Zacarias, capítulo 6) nas quais Vieira encontra a descrição e sucessão dos quatro impérios (Caldeu, Persa, Grego e Romano), duas foram reveladas em sonhos: o sonho da estátua de Nabucodonosor, talvez a visao mais importante para o Quinto Império Vieirense, e o sonho dos quatro ventos de Daniel. Outra fonte na qual Vieira bebeu grandemente, as Trovas de Bandarra, estava organizada em três sonhos. Mais do que isso, como vimos, em Portugal, Vieira conhecia uma produção ligada aos sonhos proféticos e aos mitos fundadores lusitanos”. LIMA, Luís Filipe Silvério (2000: 44). 714 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 363). 715 Cf. CIDADE, Hernani (1957). Uma edição composta em dois Tomos que contém: 1) Representação primeira – dos fundamentos e Motivos que tive para me parecer provável o que escrevi acerca do spirito profetico de Bandarra, e do mais que se inferia das suas predicçoes; 2) Representação segunda – dos fundamentos e motivos que tive para me parecer provável o que tratava de escrever acerca do quinto império ou reyno consumado de Christo; 3) Alguns exames feitos a Vieira na Mesa do Santo Ofício.

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presença de Vieira diante do Tribunal não se deve simplesmente pela sua exegese das Trovas

de Bandarra, pois desde 1649 ele vinha sendo denunciado ao Tribunal por fazer comentários de

livros proibidos, pelos seus embates contra o rei e a corte no que se refere à escravidão, e

injúrias contra as ordens religiosas. Alem disso, concorre para o seu conflito com o Santo Ofício,

as intenções de Vieira junto a d. João IV para restringir drasticamente a ação do Santo Ofício,

em particular, a extinção do confisco de bens dos cristãos-novos processados e a obrigação de

se apresentar aberta e publicamente as denúncias (“declaração do crime e dos acusadores”).716

A proposta de Vieira do Quinto Império do mundo é, por um lado, complexa e

exorbitante ao denunciar: a plena riqueza e exploração na colônia e a metrópole periférica que é

incapaz de romper com a distância que a separa da colônia, e que no fundo vai gradativamente

revelando o declínio do império português e da cristandade européia. E, por outro lado,

representa a síntese do ideal do expansionismo imperial e das crenças sebastianistas, na qual

se harmonizariam as crenças religiosas e as heresias sob uma mesma égide (a fé católica) num

período de mil anos.717

Na resposta à primeira questão, Vieira deixa claro que os seus fundamentos não estão

simplesmente na profecia bíblico-canônica, encontra-se também na profecia não-canônica,

naqueles que tem o espírito de profecia, nos Padres e Santos antigos e nos teólogos e autores

modernos.

Na terceira questão (“se está revellado ou profetizado na Sagrada Escritura algum

Reyno. Monarchia ou Imperio que se deva chamar o Quinto?”) Vieira vai apontar as três

profecias que expressam a concepção do Quinto império: Dn 2; Dn 7 e Zc.

716 Cf. PÉCORA, Alcir (2004:178-195). Ver também CIDADE, Hernani (1957: I, VII-XL). 717 Cf. HERMANN, Jacqueline (1998: 244).

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No que se refere a Dn 2 (o sonho da estátua de Nabucodonosor), Vieira vai dizer que

Daniel não declarou quais os impérios representados nos metais (partes) da estátua, porém,

disse que o primeiro representado na cabeça de ouro era o de Nabucodonosor (os assírios).

Quanto aos outros impérios, ele vai dizer o seguinte:

“Mas o tempo, que he o melhor interprete das profecias, pella mesma ordem com que os impérios se seguirão foy declarando tambem que o segundo imperio era o dos Persas, o terceyro o dos Gregos & o quarto o dos Romanos, que por seu grande valor & potencia nas armas foy representado no ferro. A este imperio, que era o ultimo da estatua, chama o texto & o Profeta expressamente quarto: Et rewgnum quartum erit velut ferrum; segue se logo que o imperio, que avia de vir depois, significado na pedra, he o quinto, & este he o que eu chamo ou chamava Quinto Imperio. Tudo o que fica dito he exposição literal de todos os Padres & comentadores deste lugar, como se pode ver nelles.”718

Do capítulo 7 de Daniel, Vieira dirá que a identificaçao das quatro feras com os quatro

impérios é uma “sentença comum de todos os Padres, sem discrepancia, que significão

literalmente os mesmos quatro imperios dos Assyrios, Persas, Gregos & Romanos que

significavão na estatua os quatro metaes”.719

Nas busca de comprovações sobre a quarta fera e o quarto metal representará o

Império romano, Vieira argumenta a partir da descrição do pequeno chifre em Dn 7 como sendo

a imagem do Anti-Cristo (que vai aparecer no fim do mundo), como referência do Império

romano em 2 Ts 2 e na autoridade de muitos Padres.720

718 CIDADE, Hernani (1957: I, 236). 719 Idem., p.237. 720 Nas páginas 240-246 são apresentados os argumentos de Vieira.

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3. O Livro de Daniel na Defesa de Vieira perante o Santo Ofício

Na Mesa do Santo Ofício pesa sobre Vieira um grande número de denúncias721, porém o

pretexto que foi apresentado consiste na Carta “Esperanças de Portugal, Quinto Império do

Mundo” (1659), centrada no silogismo722 que argumenta sobre a profecia de Bandarra e a

ressurreição de D. João IV. Fato é que o conjunto de obras de Vieira que interpreta o Quinto

Império (História do Futuro, Apologia das coisas profetizadas e Clavis Prophetarum) será

marcado pelo processo inquisitorial, pois estes livros incompletos estão estruturados como

resposta às objeções do Santo Ofício. Estas obras se configuram numa grande defesa do Padre

Vieira. Neste sentido, podemos entender a certa confusão ao nos depararmos com os títulos

dessas obras, por exemplo, em História do Futuro Vieira finaliza com as seguintes palavras:

“Estes são os livros e questões de que consta o livro intitulado Clavis Prophetarum”.

Adma Fadul Muhana vai dizer o seguinte:

“Para Vieira, contudo, essas obras são a própria legitimação de sua vida — de cortesão, orador, teólogo, profeta, e missionário. Defendê-las é defender-se, redigindo para si uma narrativa de vida outra que não a dos inquisidores. O que Vieira denuncia é que a Inquisição conspira contra suas sentenças neste momento e nesses anos porque, apesar da meticulosidade com que registram-nas impessoalmente, censuram a ele, e não a outrem, por tê-las proferido: ‘De

721 Adma Fadul Muhana enumera as denúncias contra Vieira: “Entretanto, muito antes do recebimento da tal Carta, o Santo Ofício já possuía uma série de denúncias contra Vieira que, mais tarde, são incorporadas a seu processo, e, note-se, não no momento das denúncias, quando Vieira ainda era protegido por D. João iv. Desde 1649, por exemplo, denunciam Vieira: Martim Leitão, Antônio de Serpa, Pedro Álvares, Lopo Sardinha, João Pizarro, Manuel Caldeira e Francisco de Andrade; em 1650, Francisco de Santa Maria, Pedro de Almeida e o mesmo Martim Leitão; em 1651, Lourenço de Castro; em 1652, Manuel Álvares Carrilho e D. Joseph de Ethi etc. Além dessas, qualificações censurando sermões seus datam de 1651. O número e o conteúdo dessas denúncias mostram, portanto, que, quando de sua partida para Belém, em 1652, Vieira já tinha conhecimento do cerco que a Inquisição lhe fazia. Quando, dez anos depois, chega a Portugal expulso do Pará, a situação logo se torna favorável para a Inquisição. A rainha regente D. Luiza, sua aliada, é obrigada a ceder o trono para o insensato D. Afonso vi, e Vieira é afastado da corte (isso em 1662). Mandam-no para o Porto e, em seguida, para Coimbra, em cujo Colégio da Companhia permanece como bibliotecário até ser chamado, em julho de 1663, para o primeiro exame inquisitorial.” Cf. MUHANA, Adma Fadul (2005: http://www..letras.puc-rio.br/catedra/revista/2sem_04.html). 722 “O Bandarra é verdadeiro profeta; o Bandarra profetizou que El-Rei D. João o quarto há de obrar muitas cousas que ainda não obrou, nem pode obrar senão ressuscitando: logo, El-Rei D. João o quarto há-de ressuscitar.”

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duas cousas me vi principalmente arguir [sic] nos exames: A primeira é de suspeito na Fé, a segunda de presumido no engenho’.”723

O embate entre Vieira e a Mesa do Santo Ofício e seus oponentes é demarcada pelo

conflito de interpretações da profecia. Se os acusadores consideram-no herege, Vieira

simplesmente quer saber onde está a heresia. E a resposta que obtém e que a ameaça à fé em

Vieira reside num livro que não escreveu. Por isso, passa a escrever o livro para que possa

saber onde estão os seus erros que são considerados perigosos para a Igreja.

Para Luiz Felipe Baêta Neves no processo inquisitorial de Vieira e na sua defesa

transparecem o embate entre autor e leitor, no qual:

“O estilo argumentativo da mesa inquisitorial é essencialmente afirmativo, ‘proposicional’; zela pela tradição ao falar em seu (dela) nome e ao asseverar e re-asseverar sua vigência. O estilo de Vieira é também afirmativo, mas com uma discrepância grave em relação àquele dos inquisidores: afirma a existência de um universo de ‘proposições interrogativas’, em que o caráter de certeza das proposições, da tradição, se alia à indagação de novas respostas.”724

Enfim, na Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício não iremos nos deparar com a mais

fina interpretação que Vieira imprimia aos textos da Escritura. Encontramos ali a sua palavra

composta de paradoxos que destitui as verdades estabelecidas de um catolicismo fechado e

unívoco. As várias imagens ou figuras de linguagem utilizadas pelo pregador é uma forma de

mimese da própria forma de narração, “capaz de identificar, transformar e multiplicar as

significações da proposição”.725 Daí, percebermos a sua capacidade de sub-verter as ordens e,

assim, podemos inferir que Vieira em momento algum se dobra ao Tribunal, pois não muda o

723 Cf. Cf. MUHANA, Adma Fadul (2005: http://www..letras.puc-rio.br/catedra/revista/2sem_04.html). 724 NEVES, Luiz Felipe Baeta (2005: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/2sem_03.html). 725 Cf. THEODORO, Janice (2005: http://www.fflch.usp.br/dh/ceveh/public_html/biblioteca/livro/ab/ - retirado em 23/junho). Ver sobre a retórica e os elementos barroco e clássico na composição dos Sermões de Vieira in: HADDAD, Jamil Almansur (s/d: 7-70).

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seu pensamento e nem retrata-o publicamente dizendo que errou e se confessa pecador.726 Ao

contrário, argumenta e discute a sua teoria, as suas idéias e crenças. Nesta perspectiva,

podemos entender que um dos pedidos de Vieira diante do Tribunal seja o de lhe concederem

tempo necessário para “dispor um papel em que dê a razão de todas as sobreditas coisas” e,

noutro momento (uma semana depois), redige uma petição alegando que o Advogado que lhe

fora designado não conhecia teologia e que fora obrigado (por força) a assinar o documento de

compromisso de entrega da sua defesa até a Páscoa. Nesta petição ainda aconselha que seja

realizado um Concílio e pede que entre os seus qualificadores não sejam designados os

carmelitas, os dominicanos e nem os ministros romanos.727 A resposta desastrosa vem a

galope, como afirma Alcir Pécora, pois o Santo Ofício manda recolher o réu num dos cárceres

de custódia de Coimbra e é acusado de “presunção de judaísmo”, ou seja, a sua pregação do

Quinto Império e de um Príncipe português está acobertando expectativas messiânicas e

justificando os erros judaicos.728 Portanto, não só a utopia de Vieira suscitou a ira dos seus

algozes, pois concorre contra Vieira o anti-semitismo do Santo Ofício, que “de velas enfunadas

no século XVII, vislumbrou, com a perspicácia feroz dos perseguidores, traços judaizantes

naquelas elucubrações proféticas”.729

No entanto, podemos tirar duas conclusões da vitória de Vieira perante o Tribunal do

Santo Ofício. Primeiro que na argumentação clara, precisa e de estilo clássico e barroco, ele

tenha vencido os inquisidores e, segundo, neste momento o governo de Afonso VI está em

726 Cf. PÉCORA, Alcir (2004: 184). Vejamos o início do 10o. Exame feito a Vieira na Mesa do Santo Ofício: “Aos dous dias do mez de Outubro de mil & seiscentos & sessenta & seis annos em Coimbra, na caza do Oratório da Santa Inquisição, estando ahy em audiencia da manhãa o senhor Inquisidor Alexandre da Sylva, mandou vir perante sy ao Padre Antonio Vieyra, reo contheudo nestes autos. E sendo presente, lhe foy dado juramento dos Santos Evangelhos, em que pôs sua mão, sob cargo do qual lhe foy mandado dizer verdade& ter segredo, o que elle prometeo cumprir. Perguntado se cuydou em suas culpas, como nesta Mesa lhe foy mandado, & as quer acabar de confessar & declarar a verdadeyra tenção que teve em cometter as que já confessou para descargo de sua consciencia & bom despacho de sua causa, disse que não tinha culpas que confessar, nem mais que declarar a respeito da tenção das que lhe foram imputadas, como já explicou.” Cf. CIDADE, Hernani (1957: II, 299). 727 Cf. MUHANA, Adma Fadul (ed.). (1995: 106; 112 e 400-401). Ver também: PÉCORA, Alcir (2004: 180-3). 728 PÉCORA, Alcir (2004: 183). 729 Cf. BOSI, Alfredo (2002: 55).

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derrocada (d. Maria Francisca de Sabóia alia-se ao cunhado mais novo, d. Pedro, que assume

em novembro a Regência) e muitos dos aliados e amigos de Vieira são reconduzidos ao poder.

Talvez por estes dois fatores, o Tribunal do Santo Ofício não tem mais o mínimo interesse em

condenar Antônio Vieira.

Eis alguns aspectos importantes a considerar na utopia do Quinto Império na História do

Futuro de Vieira:

1. O discurso de Vieira sobre o futuro da humanidade coincide com o futuro de

Portugal e a descoberta de um Novo Mundo correlaciona-se com uma “nova história” de

Portugal. É a promessa de futuro que se insere na tensão entre acontecimento histórico e

profecias. Vale lembrar que os projetos de conquistas eram em grande medida justificados com

narrativas históricas e as profecias iam a reboque dos projetos expansionistas.

2. A História do Futuro situa-se num contexto de declínio do poderio português730,

conflitos entre as missões jesuíticas e os colonizadores locais com relação aos indígenas.

3. As idéias messiânicas de Vieira se fundamentam na forte presença de judeus e

cristãos mal convertidos em Portugal; no crescimento das correntes Joaquimitas e Joanitas; as

profecias populares, a exemplo das trovas Bandarra, que tinham ampla circulação apesar das

censuras; o mito do retorno iminente de d. Sebastião (mito da criação de Portugal). Transparece

que em meio a esta efervescência messiânica e milenarista, Vieira representa uma síntese e a

elaboração de um discurso profético tendo como arcabouço uma teoria política, na qual se

assenta um “messianismo letrado”731 como propagador e divulgador de visionários, videntes e

sonhadores que dão sentido ao presente.

730 “o cofre real vazio; o comércio do açúcar brasileiro a baixar de modo inquietante; o tráfico de escravos para o Brasil nas mãos dos holandeses, senhores de Angola; o Oriente quase em ruínas, o exército inexistente, etc. – e em breve a ofensiva geral dos espanhóis”. Cf. António José Saraiva. Apud. BRAGA-PINTO, César (2003: 164). 731 Cf. HERMANN, Jacqueline (1998: 219-248) que fala de um “sebastianismo letrado” em Vieira.

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4. A História do Futuro projeta uma mensagem profética que busca garantir a

soberania de Portugal para além dos interesses eufóricos e justificadores das conquistas.

5. Para Vieira as narrativas do futuro têm como alvo primeiro uma tentativa de

explicação do não cumprimento das promessas do passado. E, com isso, “compreender o

presente significaria redescobrir o passado e, além disso, inaugurar o futuro”.732

6. A História do Futuro representa uma tentativa de Vieira de responder às acusações

de messianismo judaico feitas pelo Santo Ofício e, em certo sentido, é o livro das profecias de

Antônio Vieira.

“Se já no Mundo houve um profeta do passado, porque não haverá um historiador do futuro? Os profetas não chamaram história às suas profecias, porque não guardam nelas estilo nem leis de histórias: não distinguem os tempos, não assinalam os lugares, não individuam as pessoas, não seguem a ordem dos casos e dos sucessos, e quando tudo isto viram e tudo disseram, é envolto em metáforas, disfarçado em figuras, escurecido com enigmas e contado ou cantado em frases próprias do espírito e estilo profético, mais acomodadas à majestade e admiração dos mistérios, que à notícia e inteligência deles. Do profeta Isaías, que falou com maior ordem e maior clareza, disseram São Jerónimo e Santo Agostinho que mais escrevera história que profecia. A sua profecia é o Evangelho fechado; o Evangelho é a sua profecia aberta. E porque nós, em tudo o que escrevemos, determinamos observar religiosa e pontualmente todas as leis da história, seguindo em estilo claro e que todos possam perceber, a ordem e sucessão das coisas, não nua e secamente, senão vestidas e acompanhadas das suas circunstancias; e porque havemos de distinguir tempos e anos, sinalar províncias e cidades, nomear nações e ainda pessoas, (quando o sofrer a matéria), por isso, sem ambição nem injúria de ambos os nomes, chamamos a esta narração História e História do Futuro.733

7. No tocante, ao trabalho exegético, Vieira não se esquiva de buscar um maior número

de narrativas do futuro. Ele busca não só as que estão inseridas no cânon fechado das

Sagradas Escrituras, mas, sobretudo, vai beber naquelas que eram consideradas sem valor e

sem consistência. Das meras previsões populares aos textos que sobreviviam nos subterrâneos

732 BRAGA-PINTO, César (2003: 166). 733 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 53).

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da ortodoxia. Conhecedor da leitura que os Padres da Igreja imprimiram aos textos bíblicos e ao

mesmo tempo que bebe nas fontes de uma leitura dos textos bíblicos que vem,por um lado, das

escolas de exegese do século XII e, por outro, da famosa tradição monásticas.734 No entanto, a

sua exegese caminha na contramão da Patrística, das escolas de leitura bíblica ao propor de

maneira diferenciada uma leitura literal das profecias. Sua proposta vem da percepção de que

muitas das leituras patrísticas não correspondiam ao sentido verdadeiro do texto.735 Vejamos o

que Vieira diz acerca da leitura dos Padres:

“Da parte dos mesmos Padres se deve igualmente considerar, que deixaram de especular e dizer muitas cousas de grande importância que depois se souberam e escreveram, porque se acomodaram à necessidade dos tempos em que viviam. Todo o intento dos Padres antigos era provar a verdade da encarnação do Filho de Deus e o mistério de sua cruz, a qual, na cegueira dos Judeus (como diz São Paulo) se reputava por escândalo e, na ignorância dos gentios, por estultícia. E como esta era a guerra e a conquista daqueles tempos, todas armas da Sagrada Escritura se forjavam e acostavam contra esta resistência. E por isso os primeiros Padres e seus sucessores nenhuma cousa buscavam nos Livros Sagrados, não só proféticos, senão ainda nos históricos, mais que os mistérios de Cristo. É bom testemunho desta verdade o que diz Ruperto a Frederico, arcebispo coloniense, do prólogo dos seus Comentários sobre os Profetas menores: Scito me, Pater mi, sicut in caeteris Scripturis, ita et in volumine duodecim Prophetarum operam dedisse, ad quaerendum Christum. E como isto é o que só buscavam para escrever, isto é o que só achavam ou o que só escreviam, seguindo os sentidos alegóricos e místicos e deixando ou insistindo menos nos literais, como se vê ordinariamente em todas as exposições dos Padres, que todas se empregam na alegoria, tocando muitas vezes só leve e superficialmente a letra, e talvez não sem alguma impropriedade e violência.”736

Para Vieira, a leitura literal das profecias tem função de revelar a história, pois o “literal”

quer implicar na busca de um fundo histórico, ou seja, o texto tem um contexto específico. Pode-

se dizer que a exegese de Vieira vem de uma prática que remonta desde os primórdios do

Cristianismo, que no seu caráter apologético tenta demonstrar continuidade entre as Escrituras

hebraicas e a história cristã. Pois a interpretação de Vieira oscila entre o literal e o alegórico. Por 734 Não quero transformar Vieira num monge e, de modo especial, num Mendicante. Pois a sua leitura vai mais na direção da escola Alexandrina e da escolástica do que na direção da escada dos Monges ou os degraus da Lectio Divina. 735 BRAGA-PINTO, César (2003: 176). 736 HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 186-7).

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isso, Vieira ao insistir na historicização das profecias quer dizer que faz-se necessário ler a

profecia em novos contextos.737

“Seu método de ler o mundo e o futuro deveria facilitar o trabalho da memória coletiva, criando assim o espaço para a revelação de algo que, embora previamente conhecido, ficara oculto: ‘É uma História nova sem nenhuma novidadem, e uma perpétua novidade, sem nenhuma cousa de novo [...] Muitas novidades se verão nessa nossa História, não novas por novas, senão novas por antiqüíssimas’. ”738

Exemplo claro desta leitura e interpretação que Vieira faz da profecia, é a sua leitura

literal e alegórica de Is 18,1-2, na qual sugere que o sentido de “gente conculcatam” (gente

pisada dos pés) é uma referência ao Brasil.739. Este tipo de interpretação transformou a profecia

numa descrição objetiva da realidade presente e o texto profético simplesmente transformado

num referencial.740

A História do Futuro tenta persuadir o povo português a aceitar o monarca como sendo

aquele escolhido por Deus para realizar os destinos de Portugal. Seu discurso, de um lado,

apela para uma crença e esperança no futuro, mesmo reconhecendo os limites e falhas do

737 Idem. p.51: “Para satisfazer, pois, à maior ânsia deste apetite e para correr a cortina aos maiores e mais ocultos segredos deste mistério, pomos hoje no teatro do Mundo esta nossa História, por isso chamada do Futuro. Não escrevemos com Beroso as antig üidades dos Assírios, nem com Xenofonte a dos Persas, nem com Heródoto as dos Egípcios, nem com Josefo a dos Hebreus, nem com Cúrcio a dos Macedónios, nem, com Tucídides, a dos Gregos, nem, com Lívio, a dos Romanos, nem com os escritores portugueses as nossas; mas escrevemos sem autor o que nenhum deles escreveu nem pôde escrever. Eles escreveram histórias do passado para os futuros, nós escrevamos a do futuro para os presentes. Impossível pintura parece antes dos originais retratar as cópias, mas isto é o que fará o pincel da nossa História. Assim foram retratos de Cristo Abel, Isaac, José, David, antes do Verbo ser homem. O que ignorou o mundo antigo, o que não conheceu o moderno e o que não alcança o presente, é o que se verá com admiração neste prodigioso mapa descrito: coisas e casos que ainda 1hes falta muito para terem ser quanto mais antigüidade. A história mais antiga começa no princípio do Mundo; a mais estendida e continuada acaba nos tempos em que foi escrita. Esta nossa começa no tempo em que se escreve, continua por toda a duração do Mundo e acaba com o fim dele. Mede os tempos vindouros antes de virem, conta os sucessos futuros antes de sucederem, e descreve feitos heróicos e famosos, antes de a fama os publicar e de serem feitos.” 738 Cf. BRAGA-PINTO, César (2003: 185-6). 739 Ver: HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 215-17). 740 Cf. BRAGA-PINTO, César (2003: 191-2).

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passado e, do outro, a realização das profecias no presente “não deve ser definitiva, mas deve

permanecer como uma relação com o tempo”.741

741 Idem., pp.206-207.

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CONCLUSÃO

O LIVRO DE DANIEL: ENTRE LEITURAS E OLHARES.

Chegando ao final destas páginas temos a sensação que estamos diante de um livro que

fez uma longa história. E que o nosso conhecimento histórico-literário não é capaz de abarcar

toda a sua leitura desde os primeiros séculos a.E.C. Eis um livro que circulou entre sábios,

escribas, mestres da Lei, piedosos, rebeldes, profetas, messias e o povo que buscava ser fiel e

desejava o fim da situação de sofrimento.

Descobrimos neste livro carregado de contos e legendas populares que a oralidade

aguçou o imaginário de crianças, adultos e velhos.

Livro de visões extraordinárias que a princípio enchem de medo o ouvinte e leitor, mas,

ao entrar na dinâmica dessas visões, o resultado é totalmente outro: enche de coragem e

teimosia o povo que espera o tempo do fim.

Livro de orações que evoca a prática penitente como um dos caminhos para enfrentar os

tribunais e as execuções de morte. No processo de martírio, anima a resistir contra as fornalhas,

as covas de leões, as cruzes e espadas.

Livro que é escrito com o corpo742, mediação das imagens e da análise do presente. O

texto é corpo e o corpo é texto743: jovens judeus que protegem seus corpos da comida do rei (Dn

1); o poder representado no corpo de uma estátua que tem pés de ferro e pés de barro (Dn 2);

corpos condenados ao fogo que saem vitoriosos (Dn 3); o poder do império é um corpo

desfigurado: é um animal! é um rei louco! (Dn 4); é o corpo (dedos da mão) que escreve na

742 Ver: CERTEAU, Michel de (2000: 221-273). 743 TAMEZ, Elsa. In: AAVV. (1998/3: 74).

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parede o destino do império (Dn 5); é o corpo do piedoso condenado por seguir as suas rezas e

sai livre da boca dos leões (Dn 6). São os impérios representados nos corpos de animais

estranhos (leão com asas de águia, urso com costela na boca, leopardo de quatro cabeças e o

animal de dentes de ferro e que tem dez chifres) e que serão derrotados pelo “Filho do Homem” e

pelos “santos do Altíssimo” (Dn 7); o anjo Gabriel toca no corpo de Daniel consolando-o e

fortalecendo-o para entender a visão do carneiro e do bode (Dn 8); o corpo de Daniel em oração

que pede piedade e compaixão (Dn 9); a visão de um homem com o corpo vestido de linho que

decreta o tempo do fim dos perseguidores (Dn 10-12); os corpos que gritam por justiça e o grande

grito de Susana (Dn 13), e, as marcas dos pés no chão denunciando os falsificadores da religião

de Bel, Daniel que explode o dragão dando-lhe um bolo para comer; e, Daniel é lançado na cova

dos leões e liberto por Deus, mas antes é alimentado pelo profeta Habacuc (Dn 14). E o livro

termina usando mais uma vez a ironia da conversão do rei.

Livro que ajudou muitas comunidades cristãs a enfrentarem crises, fornecendo luzes para

que pudessem criar a imagem do Jesus apocalíptico no enfrentamento aos impérios, ao

proporem na radicalidade deste projeto do Reino e a esperança de sua volta. Livro que animou

comunidades apocalípticas espalhadas no período de dominação romana e inspirou essas

comunidades a serem ousadas. Na ousadia recriaram a leitura e a interpretação dos impérios.

Transformaram os animais estranhos (Dn 7) em duas bestas terríveis (Ap 13). Mas também,

animou as comunidades dos cristianismos originários na esperança da “vinda majestosa e

gloriosa de Jesus”744: Livro de expectativas e de julgamento. Livro da parusia.

Nas sendas do Cristianismo encontramos muitas leituras deste livro enigmático.

Leituras que mantiveram o livro aberto e outras leituras que fecharam o livro segundo os

interesses da ortodoxia. Mas é livro irreverente e que dá longos passos na direção das

correntes milenaristas.

744 Estou usando o título do livro de Manuel Lacunza.

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Livro que chegou à América pelas mãos dos colonizadores, mas que fez brotar no Novo

Mundo as visões do Paraíso e a busca de tempos melhores. Das caravelas à circulação na Terra

de Vera Cruz. Encontrou eco nas profecias de Bandarra que também aqui circulavam e fez

revoada na leitura milenarista de Vieira. E outros leitores, cassados e queimados como hereges,

lançaram seus olhares sobre este livro tendo nas mãos a História do Futuro. Outros leitores

produzindo sempre novas interpretações. Assim, o livro de Daniel da pena e boca de Pedro de

Rates Henequim745 até às suas primeiras palavras sofreu proibições. Livro, em determinado

sentido, arrumado para entrar no cânon; do livro ampliado (versão grega dos capítulos 3 e 13-14),

que teve as partes acrescentadas proibidas porque foram consideradas “fora da régua” ao livro

que chega em nossas mãos através das histórias sagradas. Eis um livro proibido que sofreu

percalços. No cânon cristão ou na cristandade sofreu tempos de silêncio, pois foi considerado

livro muito judaico, e para tirá-lo das penumbras foi necessário produzir leituras alegóricas,

literais, tropológicas e anagógicas. De livro apocalíptico transformou-se num livro moralizante.

Na América foi tirado do baú e, aos poucos, provocou impacto ao ser pano de fundo das

profecias populares. Foi proibido por tabela junto à censura das leituras das trovas de Bandarra.

Mais uma vez o livro sofre o peso da censura. No passado, de escribas; agora, dos clérigos

inquisidores. No passado, circulou usando o recurso da pseudonímia e caminhou avante

independente dos escribas e “letrados”; aqui na América colonizada volta à baila através da

oratória e da escritura de Vieira.

Livro nômade que provocou novas leituras antigas, ou seja, leituras sempre novas na

reapropriação de um livro antigo. O que diz o texto continua fixado nas palavras desde os tempos

dos maskilim, dos hassidim, dos essênios, dos fariseus, dos cristãos, dos revolucionários e dos 745 Cf. ROMEIRO, Adriana. À roda da Clavis Prophetarum: a trajetória de dois leitores de Vieira. In: ABREU, Márcia (org.). (2002: 265-6): “Pedro de Rates Henequim, português instalado nas Minas desde 1702, que , adepto da cabala, apresentou-se em Lisboa como profeta iluminado, o eleito de Deus para penetrar no verdadeiro sentido das Escrituras. Preso pela Inquisição, permaneceu quase quatro anos nos cárceres, submetido a longas sessões de exame e interrogatório, ao fim das quais o Conselho Geral o declarou heresiarca – como Lutero e Calvino, o propugnador de uma nova seita”.

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que resistem às dominações. Assim, é o livro que provocou a nova leitura de sempre. Pode ser

paradoxal. Mas quero dizer que este livro produziu novas leituras retiradas do antigo baú da

história. Usando uma linguagem própria da profecia poética do exílio da Babilônia,746 eu diria que

os autores do livro de Daniel tiraram sempre coisas novas do baú da história e talvez seja por isso

que o livro em suas origens tenha oscilado entre a profecia e a sabedoria.

Livro interessante! Que nos desafia a ter novos olhares para a vida. É o desafio do livro

que exige novas leituras e novos olhos. Para responder a tais desafios aponto algumas

considerações:

1. Haveria que considerar o livro de Daniel nas armadilhas do tempo. O livro de Daniel

nos leva a percorrer a riqueza de experiências em tempos diferentes. Impregnado na conjuntura

da dominação dos generais gregos, os autores deste livro evocam o seu tempo para que os

leitores passem a recompor os seus olhares sobre as suas situações concretas. Nesta

perspectiva, tanto autor quanto leitor são intérpretes por excelência. Os autores apresentam as

suas interpretações e provocam os leitores (melhor dizendo os ouvintes) a interpretar o seu

cotidiano. Portanto, para ler o livro de Daniel faz-se mister perceber os seus tempos. Do tempo do

livro aramaico (período da dominação dos generais) ao tempo dos seus leitores. Do tempo do

livro hebraico (período da guerra dos macabeus), que relê o livro aramaico, ao tempo de seus

leitores. Do tempo do livro grego (o período hasmoneu ou pós-guerra) ao tempo de seus leitores.

O tempo dos leitores se encaixa no tempo da escrita dos novos livros. Leitores que se

transformam em novos autores.

No ambiente cristão, os autores dos Evangelhos e do Apocalipse, em tempos de

perseguição, leram o livro de Daniel, aplicando a análise do passado para o tempo que estavam

746 “Não fiqueis a lembrar coisas passadas, não vos preocupeis com acontecimentos antigos. Eis que vou fazer uma coisa nova, ela já vem despontando: não a percebeis? Com efeito, estabelecerei um caminho no deserto, e rios em lugares ermos”. (Is 43,18-19).

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vivendo. Na América da cristandade o livro Daniel foi lido nas profecias populares e na

interpretação de Vieira, que teve os seus manuscritos difundidos e relidos. E os propagadores da

Clavis Prophetarum, como o padre Manuel Lopes de Carvalho que, em 1723, é encarcerado pelo

Santo Ofício sob suspeita de heresia.747 Mais ou menos vinte anos depois da execução do Padre

Lopes de Carvalho, outro leitor de Vieira foi para na fogueira: Pedro de Rates Henequim.

“Dos escritos vieirianos, é a História do Futuro, publicada em Lisboa no ano de 1718, aquele que exerceu influência mais avassaladora sobre Henequim. Suas afinidades ultrapassam muitas vezes o campo das idéias para se revelarem sob a forma de uma transcriação quase literal”.748

Henequim diz o seguinte sobre o Quinto Império:

“Que a Lingoa portuguesa correcta, e pura como elle a ensina, e falla há de ser a que se há de falar 5o. Imperio dos Portugeuses, que está proximo, e há de ser nos Brasis no lugar do Paraiso Terreal, e que há de ser de Judeos. Que Adão deixara escritas em Portugues a seus descendentes em folhas de certas Palmeiras, que há no Brasil todos os documentos, que lhes erão necessarios. Que as palavras de Christo: Regnun meum non est de hoc mundo; e as palavras do Apocalypse: Vidi caelum novum, et terram novam, se entendem do 5o. Imperio. Que o Paraiso Terreal, em que Adão foi creado, está na America debaixo da Linha Equinocial, e perpendicular ao lugar em q’ Deos tem o seu Trono no Ceo; e o prova de nesta nova terra se achar tudo o que a Scriptura diz delle; porque nella se acha o fruto da Arvore da Vida, que são as Bananas compridas, e o da Sciencia, que são as Bananas curtas, e, frutas, rios, e delicias; e de Adão se chamar vermelho como se chamão os filhos do Brasil.”749

747 “A aventura da Clavis Prophetarum estava apenas começando na América portuguesa. Fiel ao desejo de Vieira de vê-la divulgada verbalmente, ela principiava uma carreira em cópias manuscritas, espalhadas por Jesuítas seguidores do Quinto Império, interessados em romper o circulo estreito da Companhia. Assim, uma cópia da Clavis começa a circular em Minas, pelas mãos do jesuíta Antônio Correia, que ali chega em missão por volta de 1715. Foi o que revelou o padre baiano Manuel Lopes de Carvalho à Inquisição de Lisboa pouco depois, quando indagado a respeito da origem de suas idéias sobre a reunião das tribos de Israel, a destruição de Roma e o esplendor de Lisboa como cabeça da Igreja. Preso nos cárceres do Santo Ofício em 1723, suspeito de ser um heresiarca a arrebanhar adeptos com uma nova seita, confessou ao inquisidor que vira aquelas proposições ‘em algumas questões’ da Clavis Prophetarum do padre Antônio Vieira, que viu nas Minas, em um papel que tinha o padre Antônio Correia da Companhia de Jesus e também pelo que ouviu falar de um livro que compusera o padre Mateus Faletti”. ROMEIRO, Adriana. À roda da Clavis Prophetarum: a trajetória de dois leitores de Vieira. In: ABREU, Márcia (org.). (2002: 260). 748 Idem., pp.266-7. 749 Henequim Teses II: 4-7. In: GOMES, Plínio Freire (1997: 166).

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Ele associa o Quinto Império à sua visão do Paraíso, localizado no Brasil. Com isso, o

Quinto Império há de ser “nos Brasis”. Aqui aparece a sua releitura que redimensiona as noções

apresentadas por Vieira. No entanto, as suas palavras brotam da sua experiência nos trópicos,

pois este seu conhecimento os seus qualificadores não possuíam; bem como do seu estudo

assíduo das Escrituras.750 Daí, podemos dizer que tanto o padre Lopes de Carvalho quanto

Henequim não só leram a Clavis Prophetarum como devem ter tomado conhecimento da História

do Futuro, mas, sobretudo, leram o livro de Daniel.

Como afirma Adriana Romeiro, o Livro Clavis Prophetarum condenado antes de existir,

“tornou-se uma espécie de legenda, enriquecida pelas aventuras de seu autor, e instalou-se no

imaginário colonial como o paradigma do letrado injustamente perseguido, a desafiar os poderes

inquisitoriais e a ampliar os limites da ortodoxia”.751 Neste sentido, a obra de Vieira que projetou

novas interpretações sobre o Quinto Império, impulsionou ao livro de Daniel novas leituras e

novos olhares.

2. Haveria que considerar uma leitura milenarista do livro de Daniel e sua trajetória na

Companhia de Jesus. Por exemplo o Jesuíta Valentim Estancel, convidado por Vieira para

terminar o livro da Clavis Prophetarum, escreveu aos oitenta anos um comentário do livro de

Daniel (Commentarium in Danielem). Pensemos também na leitura do livro de Daniel feita por um

dos discípulos de Vieira, o jesuíta italiano Mateus Faletto que terá influenciado outro jesuíta que

viria a ser acusado de praticar heresia, o padre Manuel Lopes de Carvalho.

Muitos jesuítas a exemplo de Vieira enfrentaram o Santo Ofício e sofreram punições por

suas idéias e escritos serem considerados heréticos. Uns sofreram com o interrogatório da Mesa

do Santo Ofício outros foram queimados. Uma obra de grande importância e que se transformou

750 ROMEIRO, Adriana. À roda da Clavis Prophetarum: a trajetória de dois leitores de Vieira. In: ABREU, Márcia (org.). (2002: 268). 751 Idem., p.249.

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num livro pouco conhecido é o que foi escrito pelo jesuíta chileno Manuel Lacunza (1731-1801):

La Venida del Mesias en Gloria y Magestad. É interessante observar que a autoria do livro é de

um suposto judeu convertido ao cristianismo, cujo nome que aparece na capa do livro é: Juan

Josafat Ben-Ezra. O livro traz na abertura uma carta do padre frei Pablo de la Concepción,

Carmelita Descalço dando aprovação de publicação do livro.752 Apesar da aprovação, esta obra

de exegese (com bastante cuidado com as citações bíblicas e concordância do sentido de cada

passagem) e profecia foi parar no índice dos livros proibidos em 1824. Vale lembrar que a obra

foi publicada muito tempo depois da sua morte.

Lacunza faz aí duras críticas a Roma, e à hierarquia eclesiástica, e, na sua interpretação

dos impérios, a partir da leitura do livro de Daniel, concentra a sua crítica contra a cristandade753.

A sua leitura das profecias de Daniel se inserem num discurso que decreta o fim da história pela

soberania de Deus, o qual cumprirá suas promessas. E à luz da profecia e da apocalíptica

752 Assim diz o início da carta: “Pocas cosas se han encomendado a mi cuidado que hayan puesto mi ánimo en tanta perplejidad y angustia como la censura que Vuestra Señoría me manda dar sobre la obra intitulada: La venida del Mesías en gloria y majestad, compuesta según aparece por Juan Josafat Ben-Ezra, que se supone judío convertido a nuestra religión cristiana, católica, apostólica, romana. La causa de mi angustia, señor, es la misma grandeza de la obra, y el conocerme, como en realidad me reconozco, incapaz de dar sobre ella un dictamen firme y seguro, que deje tranquila mi conciencia, y la descargue de la responsabilidad que se teme, ora la condene, ora la apruebe. Habrá ya como veinte años que leí por la primera vez dicha obra manuscrita con todo el interés y atención de que soy capaz. Desde entonces se excitó en mí un vivo deseo de adquirirla a cualquiera costa, para leerla muchas veces, estudiarla, y meditarla con todo el empeño que ella se merece y que yo pudiese aplicar. Logré mi deseo en efecto, y ya hay algunos años que tengo a mi uso una copia, que he releído cuantas veces me lo han permitido las demás ocupaciones anexas al santo ministerio sacerdotal, y a los deberes de mi profesión. Todas las veces que la he leído, se ha redoblado mi admiración al ver el profundo estudio que tenía su autor de las Santas Escrituras, el método, orden, exactitud que adornan su obra, y sobre todo la luz que arroja sobre los más oscuros misterios y pasajes de los libros santos.” (pp.XVII-XVIII). In: LACUNZA, Manuel. La Venida del Mesias en Gloria y Magestad. Tomo I, Mexico: R Ackerman, Strand, 1826. Cópia da Biblioteca Nacional do Chile: http://www.cervantesvirtual.com/ (retirado da Internet 11/Março/2005). 753 Eis um resumo apresentado por Juan Bulnes Aldunate: “O primeiro daqueles império, simbolizado pela cabeça de ouro da estátua, foi o babilônio, como o afirma a profecia. Este império estendeu-se sob as dinastias medas e persa. O segundo destrói o primeiro e é formado por Alexandre Magno, simbolizado pelo peitos e braços de prata. O terceiro, que acaba com o anterior, foi o romano, representado pelo ventre, que se divide em dois músculos e é todo de bronze. O quarto império, simbolizado pelas pernas de ferro, com os pés e os dedos, parte de ferro e parte de barro cozido, correspondia ao conjunto de nações que formam o que hoje chamamos “mundo ocidental cristal. Como diz a profecia, os dedos não conseguem unir-se entre si, como o demonstra a dissemelhança de materiais. Mantêm-se unidos porque obedecem aos mesmos interesses e mantêm ideologia comum, apesar das dissenções e guerras que se sucedem entre as nações européias que aí estão representadas”. ALDUNATE, Juan Bulnes. Manuel Lacunza: conteúdos teológicos e filosóficos de sua interpretação profética. In: RICHARD, Pablo (org.). (1988: 158).

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apresenta um milenarismo transgressor.754 Talvez por isso, sua leitura da Bíblia (nesta única

obra proibida) tenha influenciado tantos discursos revolucionários. No prefácio, Lacunza

apresenta alguns dos seus objetivos, entre os quais destacamos o convite para que os

sacerdotes tirem o pó das Bíblias e combatam a ignorâncias das Escrituras.755

3. Haveria que considerar o livro de Daniel na dinâmica da releitura teológico-política. É

preciso perceber que o livro de Daniel seja na sua concepção, seja na dinâmica de releitura. Nos

relatos aramaicos a vida de fé dos judeus fiéis à tradição busca uma integração social e ao

mesmo tempo elabora uma crítica ao poder político através da ridicularização aos reis e

governantes. No livro das visões aponta para os leitores que é preciso discernir as ações políticas

e buscar a resistência como uma resposta urgente. No texto grego , o grito dos torturados, de

Susana e do povo chega aos ouvidos de Deus que escuta e age em favor dos fiéis e piedosos.

754 PARRA C., Fredy. (2000: ): “El milenarismo de Lacunza, no obstante sus limitaciones, afirma de un modo negativo que la historia, a pesar de todo, tendrá un fin positivo. A diferencia de otros sistemas que igualmente subrayaban la decadencia de la historia sin alternativas, el lacunzismo permite percibir en el horizonte un largo período de paz y felicidad antes del término definitivo de la historia. No evita representar lo irrepresentable, objetiva aquello que quizá escapa a toda objetivación, exponiéndose con ello a la inconsistencia de su sistema. Con todo, afirma que para superar la tragedia de un tiempo irredento la historia tiene que transfigurarse. Y esta transfiguración es un drama que compromete al mismo Dios; por ello es, finalmente, un acontecimiento de Gracia. La voluntad de Dios es el poder determinante de la historia, ya que El es el único Creador, origen de la vida y de la historia, y El mismo es el poder consumador que llevará la historia a su plenitud dando cumplimiento a sus promesas. Es evidente la relación con el profetismo y la apocalíptica, por un lado, y con el pensamiento utópico, por otro. Esta doble y crítica relación genera otra crucial ambigüedad en su interpretación. Considerado desde el profetismo bíblico, el milenarismo lacunziano podrá ser visto como transgresión ilícita por su fuerte componente apocalíptico. Asimismo, analizado desde el racionalismo utópico moderno podrá ser identificado como una forma "primitiva y mítica", donde la libertad lúdica y la fantasía del pensamiento utópico aún no han conquistado su plena emancipación.” 755 “Deseo y pretendo en primer lugar, despertar por este medio, y aun obligar a los sacerdotes a sacudir el polvo de las Biblias, convidándolos a un nuevo estudio, a un examen nuevo, y a nueva y más atenta consideración de este libro divino, el cual siendo libro propio del sacerdocio, como lo son respecto de cualquier artífice los instrumentos de su facultad, en estos tiempos, respecto de no pocos, parece ya el más inútil de todos los libros. ¡Qué bienes no debieramos esperar de este nuevo estudio, si fuese posible restablecerlo entre los sacerdotes hábiles, y constituidos en la Iglesia por maestros y doctores del pueblo Cristiano! Deseo y pretendo lo segundo, detener a muchos, y si fuese posible, a todos los que veo con sumo dolor y compasión correr precipitadamente por la puerta ancha y espacioso camino hacia el abismo horrible de la incredulidad; lo cual no tiene ciertamente otro origen sino la falta de conocimiento de vuestra divina persona: y esto por verdadera ignorancia de las Escrituras Sagradas, que son las que dan testimonio de Vuestra Merced. Deseo y pretendo, lo tercero, dar alguna mayor luz, o algún otro remedio más pronto y eficaz a mis propios hermanos los judíos, cuyos padres son los mismos de quienes desciende Cristo segun la carne.” (pp.XXXIV-XXXV). In: LACUNZA, Manuel. La Venida del Mesias en Gloria y Magestad. Tomo I, Mexico: R Ackerman, Strand, 1826. Cópia em pdf. retirada da Biblioteca Nacional do Chile pela Internet: http://www.cervantesvirtual.com/ no dia 11/Março/2005.

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No ambiente cristão é ferramenta imprescindível para a construção da imagem apocalíptica de

Jesus e o fortalecimento da espera da Vinda do “Filho do Homem” nas nuvens.

Ler o texto bíblico politicamente é ter presente que a comunidade é o lugar privilegiado

para a leitura e que existe nas entrelinhas do texto um projeto que alimentas as esperanças de

mundo melhor. Finalmente é preciso respeitar o texto.756

4. Haveria que considerar a sua presença no imaginário popular. Que o livro de Daniel

carrega as marcas de um mundo letrado não é difícil de perceber. Porém, o desafio que persiste

que o livro é um manuscrito cheio de resíduos de oralidade.

“(...) informação e tradições culturais eram transmitidas por contadores de histórias iletrados. Quatro tipos de contadores de histórias eram comuns na Antiguidade: atores de rua de ambos os sexos que levavam uma existência bastante marginal; um grupo de pessoas de status um pouco mais elevado que contavam histórias religiosas e seculares fora dos templos e sinagogas, entretanto ensinando e procurando atrair as pessoas para dentro do centro de culto; contadores de histórias de ambos os sexos que não viviam disso mas tinham fama local e regional como bons contadores de histórias; e, finalmente, mulheres, mães ou amas-secas, que contavam histórias para educar, divertir ou amedrontar as crianças”.757

Nesta perspectiva, o livro de Daniel tem grande assento no meio popular. Alguns anos

atrás, fui convidado para fazer um encontro bíblico com os sofredores da rua, organizado pelo

grupo Fraternidade Povo de Rua (que trabalha com sofredores de rua portadores do vírus HIV),

num salão comunitário do Brás e o tema do encontro era “Prisão na Bíblia”, por causa da

Campanha da Fraternidade daquele ano. Comecei o encontro contando alguns casos da Bíblia e

para o meu espanto os sofredores que ali estavam sabiam contar as narrativas de José vendido

pelos seus irmãos no Egito (Gn 37ss) e de Daniel na cova dos leões (Dn 6). Por este dado

podemos imaginar o quanto nos meios populares letrados ou iletrados conhecem o texto que

756 PIXLEY, Jorge (1999: 100): “Se conseguirmos reconhecer o aspecto político na construçao de livros como, digamos, Amós ou Lucas, estaremos em melhor situação para ler estes textos como Palavra de Deus, sem deixar que isso nos torne impositivos em relação aos que não participam de nossos projetos. Toda leitura bíblica tem um aspecto político, assim como todo texto tem um projeeto político que afetou a sua produção”. 757 DEWEY. Joanna. (1998/3: 28-9).

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lhes foi transmitido de algum jeito. Neste encontro não dava para ficar lendo o texto bíblico, mas

sim contando o texto como contavam os nossos pais e avós. Eis um elemento que ainda temos

de perseguir na leitura do livro de Daniel em nosso contexto cultural. É preciso buscar a presença

do livro de Daniel nos folhetos populares, na literatura de cordel e nas histórias orais espalhadas

pelo Brasil.

Assim, termino esta pesquisa com a sensação de que há muito ainda pela frente. Muitas

leituras e outros olhares a serem considerados e analisados. Principalmente a leitura e o olhar do

povo sofrido.

“Diante da vida do povo sofrido, a gente não fala, só sabe calar; esquece as idéias do povo sabido e fica humilde, começa a pensar...”

(Carlos Mesters)

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