racismo e violência, prática de extermínio contra a ... · permitissem compreender as relações...

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9 INTRODUÇÃO As estatísticas fornecidos pelo Ministério da Justiça 1 demonstram que as taxas de encarceramento no Brasil vêm crescendo substancialmente ao longo dos últimos anos. Entre 1995 e 2005, por exemplo, a população carcerária aumentou de 148 mil presos para 361.402, representando um crescimento de 143,91% em uma década. Entre dezembro de 2005 e dezembro de 2009, a população carcerária aumentou de 361.402 para 473.626, representando um crescimento de 31,05%. Neste ritmo de encarceramento, brevemente ultrapassaremos a soma de 500.000 presos. Tais índices colocam o Brasil como tendo uma das maiores populações carcerárias do mundo, constituída majoritariamente de homens jovens e pobres, grande parte dos quais negros e pardos, acusados de furto, roubo ou tráfico de drogas. Mas não apenas isto. Esta população masculina, constituída por jovens pobres, também tem sido morta de forma violenta, conforme as estatísticas apresentadas nas diversas edições do Mapa da Violência. Muitas destas mortes são atribuídas a acertos de contas entre grupos rivais, mas também à ação de grupos de extermínio e à ação violenta de policiais. Estas considerações iniciais não se constituem em novidade, uma vez que dispomos de inúmeras pesquisas, levantamentos e relatórios de entidades de direitos humanos sobre o tema. No entanto, em sua maioria, estes trabalhos se voltam para o estudo dos grandes centros urbanos, esquecendo-se das pequenas e médias cidades do interior, observando-se, assim, uma invisibilidade dos pequenos municípios no cômputo das estatísticas de violência e atuação de grupos de extermínio Pesquisando a violência contra adolescentes e jovens negros e pobres em uma cidade do interior da Bahia - Vitória da Conquista -, constatei, de maneira inesperada, que muitos dos adolescentes e jovens assassinados haviam sido beneficiários de algum programa ou política pública produzido por instâncias de governo nos âmbito municipal, estadual ou federal; ou haviam cumprido medidas sócio-educativas, em decorrência do cometimento de atos infracionais. No entanto, a passagem dos adolescentes e jovens por tais programas e medidas não foi capaz ou suficiente para protegê-los de serem mortos de maneira violenta. 1 Acessíveis pelo site www.mj.gov.br

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  • 9

    INTRODUO

    As estatsticas fornecidos pelo Ministrio da Justia1 demonstram que as taxas de

    encarceramento no Brasil vm crescendo substancialmente ao longo dos ltimos anos. Entre

    1995 e 2005, por exemplo, a populao carcerria aumentou de 148 mil presos para 361.402,

    representando um crescimento de 143,91% em uma dcada. Entre dezembro de 2005 e

    dezembro de 2009, a populao carcerria aumentou de 361.402 para 473.626, representando

    um crescimento de 31,05%. Neste ritmo de encarceramento, brevemente ultrapassaremos a

    soma de 500.000 presos.

    Tais ndices colocam o Brasil como tendo uma das maiores populaes carcerrias do

    mundo, constituda majoritariamente de homens jovens e pobres, grande parte dos quais

    negros e pardos, acusados de furto, roubo ou trfico de drogas. Mas no apenas isto. Esta

    populao masculina, constituda por jovens pobres, tambm tem sido morta de forma

    violenta, conforme as estatsticas apresentadas nas diversas edies do Mapa da Violncia.

    Muitas destas mortes so atribudas a acertos de contas entre grupos rivais, mas tambm

    ao de grupos de extermnio e ao violenta de policiais.

    Estas consideraes iniciais no se constituem em novidade, uma vez que dispomos de

    inmeras pesquisas, levantamentos e relatrios de entidades de direitos humanos sobre o

    tema. No entanto, em sua maioria, estes trabalhos se voltam para o estudo dos grandes centros

    urbanos, esquecendo-se das pequenas e mdias cidades do interior, observando-se, assim, uma

    invisibilidade dos pequenos municpios no cmputo das estatsticas de violncia e atuao de

    grupos de extermnio

    Pesquisando a violncia contra adolescentes e jovens negros e pobres em uma cidade

    do interior da Bahia - Vitria da Conquista -, constatei, de maneira inesperada, que muitos dos

    adolescentes e jovens assassinados haviam sido beneficirios de algum programa ou poltica

    pblica produzido por instncias de governo nos mbito municipal, estadual ou federal; ou

    haviam cumprido medidas scio-educativas, em decorrncia do cometimento de atos

    infracionais. No entanto, a passagem dos adolescentes e jovens por tais programas e medidas

    no foi capaz ou suficiente para proteg-los de serem mortos de maneira violenta.

    1Acessveis pelo site www.mj.gov.br

  • 10

    Diante de tal quadro, busquei levantar elementos tericos e empricos que me

    permitissem compreender as relaes entre racismo, violncia e extermnio da juventude

    negra. Busquei, tambm, fazer um levantamento inicial de tais programas e polticas, para

    futuramente investigar em profundidade porque no foram efetivos em relao ao grupo de

    jovens estudados nesta pesquisa, no sentido de diminuir os riscos a que se encontravam

    expostos. Minha hiptese preliminar de que estes jovens encontravam-se em situao de

    maior vulnerabilidade em relao a seu grupo, necessitando de ateno especial ou programa

    diferenciado.

    Assim, o objetivo maior desta Dissertao foi apresentar elementos - atravs de

    pesquisa participante, do levantamento de dados estatsticos e da leitura de autores que

    abordam temas relacionados ao objeto pesquisado - que me possibilitassem compreender a

    relao entre racismo e morte violenta de jovens negros e pobres de uma cidade do interior da

    Bahia. Para o antroplogo Abdias Nascimento (1982, p. 68-69), a opresso dos negros (...)

    em qualquer lugar do mundo so formas particulares da mesma opresso que atinge

    indistintamente a todos os povos de cor, em qualquer pas de predominncia branca.

    Como tem sido mostrado em diversos estudos e relatrios, o Brasil detm um dos

    maiores ndices de mortes violentas entre a populao jovem, sendo os negros e pardos, as

    principais vtimas (Unesco, 2004). O Mapa da Violncia IV, nos informa que a cada 100 mil

    habitantes, 30,3 brancos morrem por homicdio, enquanto o nmero de negros de 68,5.

    (ibidem, p. 2004). Levando em considerao os nmeros apresentados compreende-se a

    relevncia da pesquisa. pertinente aprofundar a compreenso das relaes entre racismo,

    violncia e as aes de grupos de extermnio contra a juventude negra em Vitria da

    Conquista, uma vez que a violncia cresce de forma assustadora como se poder constatar

    mais adiante, nos grficos que sero apresentados neste estudo. Atravs do exemplo da

    periferia da cidade baiana possvel ao menos constatar que, no Brasil, a violao crnica dos

    Direitos Humanos no se realiza seno com base na extrao de humanidade do grupo social

    negro.

    A brutalidade e a investida de grupos de extermnio sobre a juventude negra, no

    entanto, no ocupa espao nos jornais como deveria. H uma naturalizao dos

    acontecimentos gerando um senso comum de que bandido tem que morrer. Conforme

    observa Vera Malaguti (2003) a mortandade de negros no ocupa nas folhas espao

    significativo, nesse caso, nenhum espao.

    De acordo com a Declarao sobre a raa e os preconceitos raciais, em seu artigo 2,

    item 2 o racismo engloba as ideologias racistas, as atitudes fundadas em discriminaes

  • 11

    raciais, os comportamentos discriminatrios, as disposies estruturais e as prticas

    institucionalizadas que provocam a desigualdade racial, assim como a idia falaz de que as

    relaes discriminatrias entre grupos so moral e cientificamente justificveis; (...) impede o

    desenvolvimento de suas vtimas, perverte aqueles que o pratica, divide as naes em seu

    prprio seio, constitui um obstculo para a cooperao internacional e cria tenses polticas

    entre os povos; contrrio aos princpios fundamentais do direito internacional e, por

    conseguinte, perturba gravemente a paz e a segurana internacionais2.

    Para compreendermos o racismo preciso explicit-lo, desvelar seu carter

    desumanizador e violador de direitos, que impede a efetivao da cidadania e propaga a

    violncia simblica e fsica na vida das vtimas. Fazer a crtica do racismo, enquanto

    ideologia e prtica que tem justificado a violncia contra jovens negros e pobres.

    Para Oracy Nogueira (1998 [1955]; 1985 [1979]; passim), como veremos mais

    adiante, o Brasil apresenta uma modalidade de preconceito contra os negros classificado como

    preconceito racial de marca, diferentemente dos EUA, onde o preconceito contra os negros

    foi classificado como preconceito racial de origem (Paixo, 2005). Assim, no Brasil, as

    caractersticas fenotpicas e culturais que determinariam o grau de discriminao e

    inferiorizao do indivduo. Neste sentido, a aparncia do negro sempre foi um fator de

    discriminao, sendo que os heris e heronas no so identificados com personagens negros.

    Para a elaborao desta Dissertao, dois autores, ainda que com pensamentos

    diferenciados, foram inspiraes fundamentais: Michael Foucault, para quem o poder se

    exerce nas relaes cotidianas e produz modos histricos de subjetivao e Frantz Fanon, que

    v na luta pela descolonizao e no combate ao racismo, a possibilidade do surgimento do

    homem novo (2005, p. 362). Esta proposta de Fanon nos reanima, uma vez que o extermnio

    no pode ser a palavra final para a juventude negra.

    Alm dos autores acima mencionados, alguns outros, filiados chamada criminologia

    crtica, como Eugnico Ral Zaffaroni e Nilo Batista, nos ajudaram a compreender o sistema

    penal brasileiro como instrumento de controle, represso e extermnio de jovens negros e

    pobres.

    O objetivo desta Dissertao identificar o racismo como violncia contra a juventude

    negra, tendo como conseqncia prticas de excluso e de extermnio.

    2 Declarao sobre a raa e os preconceitos raciais. Conferencia da organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura, em 27 de novembro de 1978. Disponvel em htt:/unesdoc.unesco.org/images/0011/001140/114032s.pdf#page=61. Acesso em 30 de outubro de 2010.

  • 12

    Apresentando a questo: a situao de violncia contra jovens negros e pobres.

    A violncia institucional contra determinados grupos da populao brasileira no

    uma situao nova. Contudo, ao invs de se questionar a existncia e os propsitos de toda

    esta violncia, prefere-se afirmar, por exemplo, que o sistema penal brasileiro no funciona, e

    que as prises no ressocializam. Ao nosso ver, o problema justamente o contrrio, pois

    acreditamos que existe uma eficcia deste sistema que manter parcelas da populao

    encarcerada, principalmente os jovens, como estratgia de conteno dos problemas sociais.

    O Brasil possui um dos mais altos ndices de homicdios entre a populao jovem do

    mundo e, em todos os estados da federao, os jovens negros so as principais vtimas

    (Unesco,2004). O Mapa da Violncia IV, indica que a cada 100 mil habitantes, 30,3 brancos

    morrem por homicdios, enquanto o nmero de negros de 68,5 uma diferena de 74% entre

    as raas. (ibidem:2004). Levando em considerao os nmeros apresentados compreende-se a

    relevncia da pesquisa.

    De acordo com os dados analisados e coletados na Secretaria de Sade de Vitria da

    Conquista, 60% das mortes por causas externas so de pardos, 17% so pretos, 13% ignorados

    e 10% brancos, conforme podemos verificar pelo Grfico Percentual de homicdios de causa

    externa de jovens em Vitria da Conquista/BA, classificado por cor:

    Grfico 1

    Fonte de dados :MS/SVS/DASIS-Sistema de Informaes sobre Mortalidade-SIM

    http/www.datasus.gov.br (adaptado por Suzete de Paiva Lima dados at 2007);

    SESAB/DIS/SIM atualizao de 2008 a 03/09/2010 www.saude.ba.gov.br/dis

    Usamos a categoria do IBGE para utilizar cor.

    Percentual de homicdios de jovens classificado por cor

    60%17%

    10%

    13%

    Parda

    Preta

    Branca

    Ignorada

  • 13

    A criminalizao preferencial dos negros uma das caractersticas do direito penal

    brasileiro e da sociedade. Observa-se a partir dos nmeros acima a conseqncia da

    criminalizao racial e a estigmatizao deste segmento. Esta tem sido uma realidade histrica

    do negro, identificado como personalidade criminoso potencial. Como escravos no Brasil

    imperial ou marginalizados, no Brasil contemporneo, seguem sendo as principais vtimas da

    seletividade penal.

    Controlar os corpos negros, mant-los no seu lugar a qualquer preo, mesmo que custe

    a morte. Racismo, intolerncias e extermnio tm configurado a violncia cotidiana na ao da

    polcia nas periferias de Vitria da Conquista. A anlise pode ser observada de trs aspectos:

    primeiro, o modelo de segurana pblica tem se voltado mais para a defesa do bem estar das

    classes dominantes e de seus patrimnios, sendo que o combate ao racismo no constitui eixo

    privilegiado na elaborao dos programas de governo; segundo, a ao repressiva da polcia

    em relao populao perifrica no considerada violenta, pois os bairros de concentrao

    de negros e pobres so territrios que devem ser vigiados e controlados; e, terceiro, as prises

    e execues naturalizadas e aceitas como necessrias manuteno da ordem pblica e

    defesa da sociedade, combatendo os bandidos, vagabundos, perigosos e deliqentes.

    Em Vigiar e Punir (2007) Michel Foucault analisa a mudana no modelo de punio

    que ocorreu no final do sculo XVIII, e no incio do sculo XIX. Segundo Foucault (2007, p.

    15)

    os rituais modernos da execuo capital do testemunho desse duplo processo-supresso do espetculo, anulao da dor. Um mesmo movimento arrastou, cada qual com seu ritmo prprio, as legislaes europias. Para todos uma mesma morte, sem que ela tenha que ostentar a marca especfica do crime ou o estatuto social do criminoso; morte que dura apenas um instante, e nenhum furor h de multiplic-la antecipadamente ou prolong-la sobre o cadver, uma furor h de multiplic-la antecipadamente ou prolong-la sobre o cadver, uma execuo que atinja a vida mais do que o corpo.

    No caso do Brasil, no entanto, diferentemente da situao analisado por Foucault, os

    pelourinhos de hoje parecem ser as prises superlotadas e violadoras de direitos bsicos, onde

    procedimentos de tortura ainda so freqentes. Conforme diz a psicloga Vanessa Menezes de

    Andrade, a poltica de genocdio e de prisionizao macia dos jovens negros s no triunfa

    inteiramente devido inventividade com que resistimos ao longo da histria (2010, p. 44).

    Neste sentido, a luta das mes negras e pobres, na busca de tentar compreender o que

    aconteceu com os seus filhos, tem sido fundamental. Porque elas sabem sim, o que aconteceu

    com estes jovens que nasceram de suas entranhas, que foram sentenciados para morrer, por

    trazer a marca e a origem da escravido, ao contrrio de certo Governador, que certa vez

    definiu o ventre das mes pobres e moradoras das favelas do Rio de Janeiro como fbrica de

    marginal.

  • 14

    O racismo e a violncia esto incrustados no sistema de segurana pblica no Brasil.

    Atravs do exemplo da cidade baiana, da periferia de Vitria da Conquista, possvel ao

    menos constatar que no Brasil a violao crnica dos Direitos Humanos no se realiza seno

    com base na extrao de humanidade do grupo social negro. Portanto, nossa barbrie

    prossegue, dando continuidade s barbries ocorridas no Brasil Colnia e Imprio.

    Vitria da Conquista est entre os 267 municpios brasileiros com mais de 100 mil

    habitantes. o 114 em ndice de homicdios contra a adolescncia (PRVL 2009, p. 47)3. Nos

    ltimos 15 anos a cidade tem sido administrada por um grupo poltico que se apresenta como

    tendo maior preocupao de cunho social, propondo, inclusive, maior participao popular.

    No entanto, as polticas pblicas desenvolvidas no tm sido suficientes para mudar a

    realidade desses jovens negros e pobres. Isso porque, a meu ver, em vez de haver uma poltica

    de ao afirmativa eficaz, h uma abordagem universalista, que trata todos os jovens por igual

    sem perceber a especificidade desse grupo de negros, rotineiramente massacrado na dinmica

    social da cidade em questo.

    necessrio entender a situao de horror e violncia que se apresenta e acontece no

    interior do Brasil, na periferia dos grandes centros urbanos. A Bahia, estado onde est

    localizada a cidade de Vitria da Conquista, , no imaginrio social, um lugar de promoo da

    igualdade racial, mas, de fato, isso falso. Os negros de Vitria da Conquista esto nos

    guetos, engrossam os ndices de analfabetismo, de mortes por homicdio, de contingente

    prisional, ou mesmo de populao de rua e nas ruas. Nestes ltimos anos, o nmero de

    mortes de jovens negros e pobres tm configurado uma situao de horror: 14 mortes e 3

    desaparecimentos, no dia 28 de janeiro de 2010.

    A chibata estala nos corpos negros, os homens negros tm sido vitimados. Segundo o

    site da pastoral da juventude (2010), entre janeiro e setembro de 2008, 1.450 pessoas foram

    mortas pela polcia baiana; a maioria sendo constituda de jovens e afrodescendentes. Um dos

    jovens, em seu depoimento no Tribunal Popular, realizada no dia 4 julho de 2009, na cidade

    de So Paulo, que tratou da perseguio e do extermnio da juventude negra, deu o seguinte

    depoimento

    que, sob o argumento de disputas entre traficantes, centenas de jovens so executados nas periferias baianas, a maioria com o mesmo perfil: jovens negros, entre 15 e 29 anos, com baixa escolaridade. Para ele, no entanto, o que ocorre um verdadeiro extermnio, posto em prtica por policiais e, de forma crescente, por grupos paramilitares: "Existe uma pena de morte que no est na nossa Constituio, mas que na prtica existe, executada por agentes do Estado". (2009)

    3 Programa de Reduo da Violncia Letal contra Adolescentes e Jovens. ndice de Homicdios na Adolescncia: anlise dos homicdios em 267 municpios brasileiros com mais de 100 mil habitantes. Braslia 2009.

  • 15

    A humilhao e o sofrimento pesam e afetam, prioritariamente, a juventude negra. Em

    Vitria da Conquista, os bairros onde ocorreram s chacinas so apenas mais um nmero na

    estatstica da periferia do pas. Mas, segundo o educador social, o luto deve se transformar

    em luta. A luta daquelas mes deve ser tambm a nossa luta As futuras geraes de jovens

    negros dependero do compromisso pela garantia por direitos humanos. Da nossa indignao

    depende o futuro da juventude negra que tem sido reescrito pela nossa capacidade de luta.

    No h soluo rpida, mas as mes demonstraram fora e seus gritos podem indicar o

    caminho de uma sociedade rumo justia. Os indiciamentos pelo ministrio pblico estadual

    baiano, de 37 policiais, pelas mortes destes jovens, permite uma esperana a essas famlias, de

    que nem tudo est perdido.

    A cada dia cresce o nmero de jovens negros que vm sendo morto pela polcia. A

    maioria destes jovens encontra-se na faixa etria entre 14-29 anos, com baixa escolaridade,

    moradores em bairros pobres e muitos nunca tiveram oportunidade de trabalho. No contexto

    da Bahia, isso contraditrio pois Vitria da Conquista j ganhou os seguintes prmios na

    rea da criana e adolescente: Programa Brasil Criana Cidad (Governo da Bahia: 1998),

    Municpio Amigo da Criana (Unicef:1999), Prefeito Amigo da Criana (Fundao

    Abrinq:1999), Nacional dos Direitos Humanos (Governo Federal:2003), e Prefeito Amigo da

    Criana (Fundao Abrinq:2004). Mas muitos dos beneficiados dos programas oferecidos

    pela administrao local, ao deixarem a proteo desses programas, foram mortos. A polcia

    tem sido acusada como responsvel por muitas destas mortes.

    sabido que o trfico tem aumentado nos ltimos anos e isso tem levado a uma nova

    dinmica para muitas famlias, mas nada justifica a ao violenta na comunidade. O jovem

    negro comumente alvo de abordagem policial, com uma incidncia maior do que jovens

    brancos. A truculncia e o modo como so abordados no deixam dvidas que a cidadania e

    os direitos humanos no foram efetivados, que Vitria da Conquista tem um passado

    marcado pela matana da populao indgenas, que antes era habitado pelos Imbors,

    Tamoios e Pataxos, no sculo XIX. O extermnio tem sido uma marca na histria desta

    cidade, que antes era conhecida, segundo informaes da comunidade, como aougue

    humano.

    O Relatrio Especial de execues extrajudiciais, sumrias ou arbitrrias, da ONU

    (ibidem, p. 2008), ou o Mapa da Violncia (2004-2010), e outros relatrios no explicitam as

    cidades do interior, onde a cada dia aumenta a rota do trfico de drogas, um aumento

    expressivo da criminalidade com envolvimento de policiais, e o extermnio de adolescentes e

    jovens e negros.

  • 16

    Nos ltimos oito anos, de 2003 a 2010, por exemplo, perodo delimitado para esta

    pesquisa, assistimos o espao social e poltico das periferias urbanas sendo constantemente

    objeto de aes policiais repressivas, alegando-se principalmente o combate ao trfico e

    consumo de drogas. No obstantes, a grande maioria dos jovens atingidos por tais aes

    repressivas so adolescentes e jovens em situaes de grande vulnerabilidade social,

    desprovidos do acesso aos bens individuais e coletivos mais bsicos. Este cenrio impede que

    os direitos conquistados na Constituio Cidad de 1988 se efetive para esta populao.

    Os relatos de moradores da periferia de Vitria da Conquista revelam que o extermnio

    est ligado diretamente ao poder pblico, seja pela ao repressiva e violenta de policiais, seja

    pela omisso na identificao e apurao dos crimes. Neste sentido, a populao se ressente

    do pouco interesse do poder constitudo em prevenir ou mesmo apurar as violncias. Os

    jovens so mortos e os fatos no so dados como crime, ao contrrio, eles que so

    chamados de criminosos, mesmo que no estejam armados ou apresentem qualquer fato para

    tal. Muitos da comunidade pensem de fato, que so criminosos.

    s vezes, uma simples apreenso pela polcia, quando adolescentes, os tornam

    "marcados" para morrer. Os novos "condenados da terra", expresso usada por Fanon,

    morrem antes de sair da adolescncia; sem importncia, a vida no tem valor.

    Diante do exposto, algumas questes se apresentam como relevantes: como o racismo

    tem impedido a cidadania dos jovens negros? Como combater a ao perversa dos grupos de

    extermnios? Que tipos de iniciativas devem ser tomada para garantir vida? Que Polticas

    Pblicas ajudaro, de fato, mudar o quadro de violncia no municpio? Que papel a

    administrao pblica deve cumprir para reverter o extermnio deste segmento social?

    Antecedentes da pesquisa: breve relato.

    Ao chegar em Vitria da Conquista fui convidada a trabalhar, em 2003, na Secretaria

    de Educao, atendendo Lei 10.639 - sobre o ensino de Histria da frica nas escolas. Antes

    mesmo da aprovao desta Lei, os Agentes de Pastoral Negros (APNs) desta cidade vinham

    reivindicando a importncia deste ensino nas escolas.

    O projeto que apresentei Secretaria, no entanto, no teve condies de ser executado

    devidamente, uma vez que no houve consenso sobre o tema entre os diversos agentes e

    gestores municipais envolvidos. Fui, ento, trabalhar em uma escola municipal noturna, da

    periferia, que atendia uma populao bastante pauperizada. Nesta ocasio, tive a oportunidade

    de conviver com jovens da escola que se identificavam com a cultura hip hop. A partir desta

  • 17

    relao com a juventude, em 2004, foi formada a ONG GRIOT, que tinha entre seus

    objetivos, trabalhar a auto-estima dos jovens negros na faixa etria entre 13 a 26 anos.

    Paralelamente, comecei a visitar, junto com os APNs, duas comunidades que tinham

    caractersticas quilombolas. Buscamos contato com a Fundao Palmares para dar incio ao

    processo de reconhecimento destas comunidades o que veio a acontecer em 2005.

    O trabalho com os jovens, no entanto, na ONG GRIOT, foi demandando maior

    ateno naquele momento, tendo em vista a situao de grande vulnerabilidade em que se

    encontravam. Cotidianamente, os jovens relatavam situaes de violncia vividas por eles,

    familiares ou pessoas da comunidade onde moravam. Fui ento, sendo apresentada a uma

    situao que envolvia a relao entre juventude, violncia e racismo.

    Neste momento, busquei um Programa de Ps-Graduao onde pudesse pesquisar esta

    temtica de maneira mais consistente, possibilitando juntar teoria e dados empricos. Fui

    agraciada com uma bolsa de estudo da Fundao FORD, que me permitiu condies para a

    realizao do Mestrado no Programa de Ps Graduao em Polticas Pblicas e Formao

    Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH-UERJ).

    Durante este processo, dei-me tarefa de pensar a minha implicao pessoal, tica e

    poltica, com o tema estudado. Sendo eu mesma negra, me vi na responsabilidade no apenas

    de constatar a dureza desta realidade mas, sobretudo, de tentar modific-la.

    Procedimentos Metodolgicos:

    Dei incio ao estudo a partir da metodologia da pesquisa participante, que de acordo

    com Severino (2007) aquela em que o pesquisador, para realizar a observao dos fenmenos,

    compartilha a vivncia dos sujeitos pesquisados (...). O pesquisador coloca-se numa postura de

    identificao com os pesquisados (...), vai registrando descritivamente todos os elementos observados

    bem como as anlises (...) dessa participao. (2007, p. 120).

    Nesta ocasio, tive a oportunidade de apreender o movimento do real em sua prpria

    manifestao, na medida em que 14 jovens pobres e negros, moradores de comunidades

    pobres da periferia de Vitria da Conquista, haviam sido assassinados, tendo como

    consequncia a constituio de uma Fora Tarefa planejada pelo Estado. Em decorrncia

    deste fato, tivemos a oportunidade de estar presente junto aos sujeitos, mes e comunidades,

    com seus posicionamentos em defesa dos filhos e exigindo apurao dos fatos, por um lado e,

    por outro lado, uma manifestao organizada por policiais, em defesa da categoria e contra as

    acusaes de terem sido eles os autores das mortes.

  • 18

    Assim, o caminho da pesquisa foi nascendo a partir das questes apresentadas pelos

    prprios jovens negros e pobre de Vitria da Conquista, oriundos de comunidades perifricas,

    particularmente Pedrinhas, Alto Maron e Aparecida, bairros que apresentavam maior ndices

    de violncia. Alm das situaes e mortes que j vinham sendo relatadas pelos jovens e

    familiares desde 2003, quando iniciei o trabalho com os jovens na ONG GRIOT, somaram-se

    mais os 14 casos do episdio ocorrido em janeiro de 2010. Neste sentido, apresento, nesta

    Dissertao, relatos de casos antigos e mais atuais, como parte de um processo de violncia

    que necessita ter fim.

    Alm dos relatos de jovens e seus familiares, busquei, tambm, outras fontes orais e

    documentais. Participei de discusses com mdicos, gestores pblicos como secretrios

    municipais responsveis pelo Bolsa Famlia, as pastorais sociais como a carcerria e do

    menor, para entender e compreender como estes setores percebiam os conflitos e dificuldades

    vividas pelos jovens. Durante este tempo foi importante participar da I Conferncia

    Municipal de Direitos Humanos (...), I Conferncia Municipal de Igualdade Racial, bem como

    a leitura de jornais, artigos e livros sobre o assunto.

    Nas conversas, os familiares dos jovens e os moradores das comunidades diziam que os

    processos geralmente eram arquivados por falta de prova. Quando policiais eram acusados das

    mortes, sempre se dizia que os jovens estavam armados e que teria havido trocas de tiros.

    Apresentava-se esta justificativa como defesa, ou seja, os auto de resistncia.

    Os depoimentos foram imprescindveis para uma melhor compreenso do lugar

    ocupado por esses jovens e de suas histrias. As mes, mulheres fortes e corajosas, so

    exemplos para o encorajamento dos outros (filhos, irmos). Observei que elas ficam afetadas

    mas retomavam a vida a partir da vida dos outros filhos para no acontecer a mesma coisa.

    Durante o perodo de 2003 a 2008, em que integrei a assessoria da organizao no

    governamental GRIOT4, muitos foram os desafios.

    No incio do trabalho, o que me chamou a ateno para desenvolver a pesquisa era o

    perfil dos depoentes, sempre os mesmos: negros, pobres, moradores em bairros em conflitos,

    baixa escolaridade. O primeiro depoimento se iniciou, atravs de uma conversa com um

    jovem acusado de ter furtado, junto com um amigo, R$ 60,00 para comprar biscoito de

    chocolate. Segundo seu relato, os adolescentes pegaram o dinheiro num assalto e foram, aps

    isso, abordados por policiais, tendo sido levados para um local de desova. Um deles foi

    morto e o outro, o depoente, levou 6 tiros, mas sobreviveu por dois anos aps o incidente. Os

    4 A ONG GRIOT dedica-se a arte-educao de jovens negros e pobres, em periferias de cidades baianas.

  • 19

    depoimentos causavam perplexidade. Busquei uma literatura que pudesse me ajudar a

    compreender situaes como esta. Naquele momento, em Salvador, estava sendo articulada

    uma campanha contra o extermnio de jovens negros e os seus organizadores estiveram em

    Vitria da Conquista para o lanamento da campanha cujo lema era Reaja ou ser morta,

    reaja ou ser morto, divulgada em jornais, livros e relatrios. Poderiam servir como fontes os

    sites da Secretaria de Segurana Pblica e Secretaria Municipal de Sade, Datasus, e um

    dossi criado pela CPI do Nordeste. A Comisso Parlamentar de Inqurito do Nordeste da

    Cmara Federal, atravs de dados apresentados pelo relatrio da CPI do Extermnio no

    Nordeste, trazia dados sobre o Estado da Bahia, que hoje tem 13 milhes de habitantes e o

    maior dentre aqueles da regio.

    Depois, busquei conversar mais com as famlias, com moradores das comunidades,

    visitar as casas dos jovens, onde ficou evidenciado que, em quase todos os finais de semana,

    aconteciam mortes entre as denominadas quadrilhas. Geralmente, os perigosos eram

    adolescentes. Os familiares descreviam como havia acontecido a ao policial na comunidade,

    que levara a morte de conhecidos e familiares.

    Cabe a pergunta: Por que em Vitria da Conquista morrem muitos jovens negros

    executados? Esta tem sido a busca, juntamente com as comunidades, de uma resposta que

    explique a violncia que faz parte do cotidiano desta cidade, e que atinge principalmente os

    mais jovens.

    Procuramos, tambm, levantar as estatsticas existentes sobre mortalidade, dados

    scio-econmicos da populao estudada, bem como dados relativos cidade de Vitria da

    Conquista e das polticas pblicas l desenvolvidas.

    Passo a passo dos captulos a serem estruturados

    A Dissertao foi organizada para oferecer um panorama geral da questo, mas o foco

    foi colocado na cidade de Vitria da Conquista, sudoeste da Bahia.

    No captulo I, busco dar visibilidade histrica problemtica racial a partir da herana

    escravista. Busco apresentar os meios pelos quais o colonialismo e o capitalismo tm

    contribudo para a prtica do racismo; relatar a violncia que mata e legitima a entrada da

    polcia nas casas de moradores de reas depauperadas, a qualquer momento, desumanizando

    e reforando, assim, a violncia contra os jovens.

    Na histria de Vitria da Conquista, sabe-se que o primeiro dos extermnios foi o da

    populao indgena nativa, seguido-se o massacre dos negros trazidos do continente africano.

  • 20

    Ainda hoje o extermnio da juventude negra e o reflexo desta colonizao esto incrustados na

    cultura nacional. O racismo o estruturador da violncia provocando desumanizao na vida

    da juventude negra.

    Aparentemente, o Brasil um pas pacfico na convivncia das raas, mas, na

    realidade, um pas contraditrio, pois, muitas vezes, a fora usada em detrimento do

    dilogo. Neste sentido, quem tem direito fala (e ao uso das armas) o homem branco, o

    Senhor da Casa Grande, a poltica do coronelismo, que, reforam no interior baiano, a

    existncia de duas sociedades em conflito, cavam um abismo entre dois mundos, que esto

    constantemente em disputa.

    O tratamento que dado juventude negra revela o desprezo, a submisso a que ela

    submetida. A conscincia de ser negro um processo em construo, que requer o exerccio

    do protagonismo negro, que torna possvel a criao de homens novos, como proposto por

    Fanon (2006; p. 53). Temos, como exemplo, a resistncia contra o regime de apartheid que

    fez o jovem Steve Biko, assassinado na frica do Sul, proferir estamos por nossa prpria

    conta.

    No Captulo II, apresento a questo da vida e da morte da juventude negra. Para tanto,

    fao um mapeamento das polticas pblicas e polticas afirmativas que pretendem fomentar

    a construo da auto-estima dessa juventude, uma vez que as polticas atuais tm sido

    ineficientes e o racismo estruturador da violncia contra a vida vigorante.

    importante, tambm, ressaltar que essa anttese entre a vida e a morte est centrada

    no corao da segurana pblica, pois os prprios policiais que deveriam proteger a

    populao esto envolvidos em muitas das prticas de extermnio. Neste sentido, pretendo

    fazer no s uma breve anlise da situao do jovem negro bem como de suas perspectivas

    em termos de superao, com nfase na construo de polticas afirmativas e garantia da

    cidadania. Procuro, deste modo, apresentar que, em uma cidade, h duas sociedades. Tal

    demonstrao se dar por meio de um breve panorama histrico do povoamento de Vitria da

    Conquista por bandeirantes e negros, levando em conta o fato de os negros terem, pelo uso de

    sua fora como mo de obra escrava, trabalhado no desenvolvimento do local, lutado contra

    os colonizadores e sido, paulatinamente, massacrados neste processo.

    luz dessa realidade, questiono ainda quais os impactos da violncia na comunidade e

    na vida dos jovens que sobreviveram aos efeitos das mortes dos seus familiares e amigos.

    Como contribuir para superar e enfrentar as desigualdades raciais respeitando as diferenas na

    construo da justia social? Alguns tericos que tm se debruado sobre temas correlatos

    sero apresentados com a finalidade de ajudar na compreenso sobre o racismo como uma

  • 21

    ao de violncia que contribui para a prtica do extermnio e est relacionado com a questo

    histrica, poltica e econmica.

    No Captulo III, destacarei a poltica de segurana pblica como fator de legitimao

    da prtica do extermnio no contexto enfocado. Diante do modelo injusto desta poltica, as

    diversas audincias pblicas, denncias e pesquisas no conseguem fazer diminuir o quadro

    de mortes envolvendo policiais nas aes violentas e vitimando um nmero significativo de

    jovens negros. O sistema de segurana pblica o aparato ideolgico necessrio para punir os

    corpos negros, pois, segundo o discurso implcito na prtica policial, preciso abat-los. Os

    jovens negros na Bahia, em sua maioria, tm sido fruto de um sistema de militarizao e

    criminalizao racial. As mortes de jovens em janeiro de 2010, em Vitria da Conquista,

    foram confirmadas pelo Ministrio Pblico como tendo o envolvimento dos policiais

    militares, civis e outros. Pela primeira vez a sociedade conquistense admitiu a existncia de

    grupos de extermnio na cidade. Em termos das polticas de Segurana Pblica, contudo, o

    que se tem de concreto na cidade a construo de um presdio. Por fim, ser assinalado o

    papel de uma mdia que se apresenta articulada ao sistema e que veicula uma imagem do

    jovem negro seguindo um padro estigmatizado e estigmatizante. So tratados como

    perigosos, vagabundos, bandido, ladres, traficantes e assaltantes. Enfim,

    carregam sobre si uma figura negativa da qual muitos vo querer estar distantes. preciso

    lembrar que estes, que so os criminalizados pelo sistema, nunca estiveram nele includos.

    So, por isso, punidos por serem praticantes de capoeira, adeptos do funk, do hip hop e do

    samba.

    Pretendo trazer algumas reflexes a partir da anlise dos depoimentos de familiares,

    especialistas e jovens da comunidade onde foi observado e construdo o trabalho de pesquisa.

    No uma pesquisa quantitativa, mas os grficos por si s revelam o nmero desta violncia.

    Escutaremos os diversos discursos produzidos pelos atores envolvidos, analisando

    pesquisadores, produes intelectuais, jornais, conferncias e seminrios, debates,

    acompanhando jovens nos seus questionamentos sobre racismo, violncia, extermnio e o que

    fazer? Por que o dio e o medo de ns negros? Por que exterminar um mano que roubou um

    tnis? Para mim, foi necessria muita pacincia em meio a tanta dor e tristeza, mas eram

    igualmente necessrias a pesquisa e a contribuio de profissionais comprometidos com os

    direitos humanos, acreditando que esse poderia ser um trabalho significativo durante os cinco

    anos que estive trabalhando com a juventude negra e pobre para que os mesmos tivessem um

    outro caminho a seguir na tomada da conscincia que Fanon prope, na luta pela

    descolonizao do racismo, na garantia das polticas afirmativas para educao e outras reas.

  • 22

    Esta uma pequena luz que pode acender e aquecer outros e outras, possibilitando o

    aprofundamento de temas que indicam um caminho onde a resposta pode surgir, ou seja, um

    caminho que aponte para dentro da comunidade em que iniciamos o desafio de trabalharmos

    juntos e juntas.

    A partir do desenvolvido nestes captulos podemos tecer algumas consideraes sobre

    a dialtica senhor-escravo, que at hoje perpassa as relaes da sociedade brasileira. Esta

    herana perversa tem prevalecido. No por acaso que a maioria dos jovens no sistema penal

    e os jovens executados so negros. A face cruel do racismo so os presdios superlotas de

    encarcerados que nunca tiveram cidadania. So diversas as intolerncias raciais no Brasil,

    como, por exemplo: atear fogo no ndio, agresso s religies de matrizes africanas, aes de

    policiais que participam de grupos de extermnio e verbalizam pela madrugada todo o dio

    racial quando depara com um jovem negro, a tortura nas prises sem qualquer condio de

    reabilitao, escolas sem recursos para atender os desafios de implementar programas para

    uma educao que leva em consideraes a diversidade curricular e as demandas para a

    comunidade ter uma escola pblica de boa qualidade

    A concluso mais importante foi durante as entrevistas com os familiares,

    principalmente com as mes; elas sabem como o sistema tem sido cruel com seus filhos, o

    cotidiano de uma vida dura em Vitria da Conquista, no permite a elas ignorar os

    acontecimentos apesar do sofrimento, elas esto vivas.

    A linha de pesquisa formao humana e cidadania me permitiu, atravs da

    interdisciplinaridade, perceber que as aes para efetividade dos direitos deste segmento da

    sociedade deve ser pensada dentro de um contexto maior, no somente o da segurana

    pblica, que no poder dar respostas fragmentada ou militarizada, mas deve ser um conjunto

    de polticas que integram os jovens negros na sociedade brasileira, e o combate ao racismo

    a possibilidade para que acontea a cidadania. Acredito que no um problema especfico

    de uma regio geogrfica apenas, mas um problema de todo um pas. Ou seja, a seletividade

    do sistema penal passa pela raa, ainda que seu discurso seja outro, ainda que suas leis

    escritas estejam fundamentadas no princpio da igualdade. A educao, tambm, tem sido um

    brao ideolgico na consolidao de prticas perversa de excluso deste segmento negro. O

    aspecto mais triste a naturalizao de um ambiente que j o destina ao caminho da

    marginalizao, uma vez que as polticas pblicas no atendem as suas necessidades e suas

    especificidades. Os jovens que conseguem terminar o ensino mdio trilham o caminho da

    polcia militar. Temo, ento, jovens negros mortos e policial negro executando. Ressalto que

  • 23

    o modelo de segurana pblica vigente no d conta de uma sociedade extremamente

    desigual, talvez ela apenas assegure a vida da elite brasileira.

    Percebo que a juventude negra e pobre deve ser o centro, na formulao de polticas

    pblicas que responda s reais necessidades deste segmento social. Lamento no ter sido

    possvel dar nfase s experincias positivas que surgiram a partir da resistncia comunitria e

    de especialistas comprometidos com o tema , visto ultrapassar os limites de nosso objetivo

    central nessa Dissertao mas, mesmo assim, posso sugerir que h um campo de estudos e

    desafios enormes na construo da cidadania e auto-estima do jovem negro.

  • 24

    1 CAPITALISMO E VIOLNCIA NO BRASIL

    1.1 Descolonizao do racismo segundo Fanon

    Neste captulo o objetivo fazer uma breve introduo a questo colonial no Brasil. Repensar a colonizao americana, a partir da conquista europia do sculo XVI, um

    imperativo tnico para a compreenso do sculo XXI. Age como se estivesse estabelecendo

    uma mxima tnica diferencial para uma comunidade de respeito diversidade sciocultural,

    eis a nossa nova regra de ao. No mais o cidado abstrato, mas o cidado que traz seu

    legado cultural, sua histria de vida, que expressa no seu rosto as marcas de sua origem social.

    Dessa forma, pensar no com a idia de falta, e sim com a de abundncia, por sermos

    diversos.

    As descobertas de ouro e de prata na Amrica, o extermnio, a escravido das

    populaes indgenas, foradas a trabalhar no interior das minas, o incio da conquista e

    pilhagem das ndias Orientais e a transformao da frica num vasto campo de caada

    lucrativa so os acontecimentos que marcaram os albores da era da produo capitalista. (cf.

    Marx, 1987, p. 868).

    As barbaridades e as implacveis atrocidades praticadas pelas chamadas naes crists, em

    todas as regies do mundo e contra todos os povos que elas conseguem submeter, no encontram paralelo

    em nenhum perodo da histria universal, em nenhuma raa, por mais feroz, ignorante, cruel e cnica que

    se tenha revelado (Howit apud Marx, 1987, p. 69).

    A memria da explorao do solo brasileiro nos desafia redescobrir crimes na histria

    de homens e mulheres explorados pelo capital mercantilista. A colnia brasileira explorou

    mais de 8 milhes de escravos negros, porm ricos de valores culturais vindos do continente

    africano.

    O modo brbaro de fazer comrcio de negros, aprend-los e ca-los em frica, de acomod-los a bordo dos navios como verdadeira carga, aglomerados e em nmero espantoso em cada navio, o tratamento desumano havido para com eles, quase nus, mortos fome e de molstias, e at por batizar, o fato ainda mais desumano e revoltante de serem lanados ao mar ou alijados em ocasio de perigo da navegao ou quando perseguidos os negreiros pelos cruzeiros, as guerras na frica por causa do trfico no intuito de fazer escravo, e outros fatos de igual categoria, indispuserem afinal os espritos por tal forma, que o trfico tornou-se objeto repulsivo; a opinio decidiu-se contra ele. (apud Malheiro, 1976, p. 54)

    Este trfico como objeto repulsivo, conforme relatado por Malheiro, repercutiu,

    quando de seu fim, na economia brasileira. A extino deveria levar a outra forma de

  • 25

    organizao econmica, social, poltica e cultural. O capitalismo, a sociedade burguesa, o

    liberalismo, a insero cultural do Brasil no mundo civilizado eram os alvos indiretos do

    fim do trfico e diretos da abolio que, supostamente, se seguiria a este. No entanto, a

    Abolio e a Repblica, marcos iniciais da histria brasileira contempornea, no passariam

    de farsa posterior tragdia genocida dos negros no Brasil. Mesmo antes da abolio, a

    maioria dos negros j havia conseguido sua liberdade. Por outro lado, polticas de insero

    dos negros na sociedade brasileira, que eram exigveis e exequveis aps decretao em 1888,

    no foram realizadas ou mesmo cogitadas. A Repblica proclamada em 1889 negava o seu

    prprio nome. O fato de ter sido um golpe militar, sem participao do povo, e se

    transformar num governo oligrquico cafeeiro e coronelista, demonstram isso. A abolio no

    conseguiu promover e proteger a vida dos negros brasileiros, estes no foram introduzidos na

    Repblica. No existiu preocupao do Estado ou das elites de criar condies de trabalho,

    moradia, educao, sade para os novos libertos. Restou-lhes o seu prprio esforo, a

    concretizao do ideal liberal de livre iniciativa, nem sequer imaginado pelas nossas elites

    patrimonialistas, sempre usufruindo do Estado e administrando clientelisticamente o

    patrimnio pblico em nome de seu interesse e necessidade de apoios sociais .

    O processo de independncia brasileira no significou o final da colonizao, nem mesmo o

    processo de abolio, no trouxe estruturao para os afro-brasileiro, mas foi o primeiro ato

    de resistncia da luta anti-racismo. A situao do jovem negro nas cidades uma exigncia na

    agenda na luta por descolonizao. Pode-se dizer, de certa forma, que estamos vivendo uma

    fase neocolonial diferente. Neste sentido Fanon, um militante da rea da psiquiatria, engajado

    na guerra da Arglia, buscava expressar na luta pela descolonizao um projeto de uma

    sociedade mais justa e igualitria. Aps quase 50 anos do grito deste jovem, ainda hoje

    presenciamos a violncia entre dois mundo que esto em confrontos, os ricos e pobres,

    brancos e no-brancos, a busca por Fanon dos desafios da luta por descolonizao ainda faz

    parte da sociedade atual. As estatsticas brasileiras apresenta um quadro, onde h dois mundos

    em conflitos.

    O autor permite uma revisitar a partir da chamada a luta por descolonizao um ato de

    liberdade.

    Pensar a descolonizao do racismo pensar o fim da dominao da vida. O conceito

    de descolonizao de Franz Fanon, reflete sobre este processo que deve produzir mudanas,

    com vista ao nascimento de uma nova sociedade, construda a partir da alteridade. Na

    concepo do autor, descolonizar renovar, buscar uma nova esperana, a utopia de um

    novo ser. Segundo Fanon a descolonizao o encontro de duas foras congenitamente

  • 26

    antagonistas, que tm precisamente a sua origem nessa espcie de substantificao que a

    situao colonial excreta e alimenta. (Fanon 2008, p. 52).

    Fanon, no tinha dvida da importncia da descolonizao africana, e de como seus

    efeitos trariam impacto para a dispora africana. O desequilbrio da descolonizao racial

    produz novos pensamentos, nova ao, tira os efeitos da secular submisso. Toda ao

    descolonizadora traz novas perspectivas.

    Portanto, para descolonizar o racismo necessrio um movimento que descolonize o

    pensamento colonizado, sua prtica, sua pedagogia de reproduo, seus mtodos de opresso.

    uma orientao para um novo caminho, de afirmao da diferena, que trar uma nova

    forma de pensar. Descolonizao do racismo a luta de emancipao e da cidadania plena. O

    colonizado descobre que sua vida, sua respirao, os batimentos do seu corao so os

    mesmos que os do colono. Descobre que uma pele de colono no vale mais do que uma pele

    de indgena. Isso significa que essa descoberta introduz um abalo essencial no mundo. Toda

    a segurana nova e revolucionria do colonizado decorre da. Descolonizar de encontrar o

    que no estava revelado. O racismo traz doenas; uma estrutura de dominao baseada no

    pressuposto ideolgico da existncia de uma hierarquia entre as raas humanas.

    No Brasil, o racismo prende-se s caractersticas fenotpicas, como cor da pele e

    textura de cabelo. uma espcie do racismo de marca, e no de origem. Em funo disso, o

    racismo brasileiro manifesta-se em gradao, atingido mais as pessoas com um fentipo mais

    prximo da ancestralidade africana e matizando as discriminaes conforme a aparncia se

    aproxime do fentipo branco. (Relatrio do desenvolvimento humano 2005/Brasil p. 13).

    O jovem negro descolonizado sabe o que a violncia racial; no pode ser mais um

    na periferia, mas como est em processo de descolonizao, seu questionamento o torna

    militante, ele sabe que sua responsabilidade grande. Os conflitos no deixam de existir, mas

    ele se recusa a ser aniquilado. A luta contra o racismo torna-se uma bandeira inseparvel da

    luta contra a pobreza e contra a violncia, pois o racismo j um ato de violncia, e a luta

    antirracismo j um ato de recuperao. Portanto, a descolonizao, em Fanon, a exigncia

    de questionamento da situao colonial, demandando uma tomada de posio em relao aos

    que sofrem as violncias. Os negros e os indgenas tm sido violados nos seus direitos

    bsicos. O racismo engendrado na sociedade brasileira os impede de serem sujeitos

    O racismo constitui, hoje, uma resposta engendrada a servio das modernas ideologias de dominao e excluso, no interior do sistema capitalista de produo e seus desdobramentos, todas em continuidade aos caminhos historicamente reconhecidos, desde as leis abolicionistas, forma como se realizou o processo de abolio da escravido nas Amricas, o colonialismo, escravismo, monarquia, repblica, economia exportadora, acentuando-se as dimenses constituintes de um mesmo propsito: excluir como

  • 27

    agentes do processo de construo do sistema produtivo e sistema poltico, segmentos da sociedade, historicamente considerados perifricos a esse processo e a essa sociedade, gerada e desenvolvida no bojo das contradies. (423, Ministrio da Justia, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. Seminrios regionais preparatrios para conferncia mundial Contra racismo, discriminao racial, xenofobia e intolerncia correlata Braslia 2001)

    Compreender o mecanismo de funcionamento do racismo essencial para entender

    historicamente a criminalizao racial. Como afirma Nilo Batista,

    O exerccio do poder repressivo nos pases colonizados permaneceu sem grandes alternativas at muitas dcadas depois da independncia, ao amparo de repblicas oligrquicas que mantiveram as maiorias em condies anlogas a servido. A independncia significou muitas vezes apenas a ascenso da limitada classe dos brancos descendentes dos colonizadores. (O inimigo no direito penal, Ral Zaffaroni, 2007, p. 47-48).

    Os problemas enfrentados pela juventude negra em nosso pas so os mesmos que so

    enfrentados em qualquer periferia da dispora africana. Em 2005, na Frana, assistimos a

    imploso da periferia por imigrantes africanos e rabes, que so as vtimas do racismo. Fanon

    compreendia que o racismo colonial no se diferencia de outro. O racismo desde sempre deve

    ser banido e aniquilado da sociedade. A criminalizao da juventude negra no tem sido por

    acaso, as drogas tem sido o discurso para justificar a invaso nas comunidades negras e

    pobres.

    1.2 Racismo, tortura e morte violenta do jovem negro

    O discurso que se produziu no Brasil sobre democracia racial e sobre relaes

    raciais serviu para encobrir o modo como o Brasil tem-se constitudo em relao ao racismo.

    De acordo com Flauzina (2008, p.50),

    interessante observar como o padro de silenciamento que preside a discusso sobre relaes raciais no Brasil no foi capaz de alcanar, em sua radicalidade, o campo penal. Na terra da harmonia das raas, do senso comum ao formalismo acadmico, circula, h muito, a percepo de que o sistema se dirige preferencialmente ao segmento negro da populao. Parece que foi mesmo impossvel sufocar a voz e abalar os sentidos quando as massas encarceradas e os corpos cados estampavam monotonamente o mesmo tom.

    Segundo o antroplogo Kabengele Munanga, o racismo essa tendncia a ligar dadas

    caractersticas intelectuais e morais de um grupo a suas caractersticas fsicas ou biolgicas,

    como sendo suas conseqncias diretas. Munanga nos lembra que a primeira origem do

    racismo deriva do mito bblico de No do qual resulta a primeira classificao religiosa da

    diversidade humana entre os trs filhos de No, ancestrais das trs raas: Jaf (ancestral da

    raa branca), Sem (ancestral da raa amarela) e Cam (ancestral da raa negra) (ver Gnesis,

    9). Esta seria a primeira origem do racismo.

  • 28

    A segunda origem do racismo, para o autor, seria a classificao emprica da natureza

    empreendida nos tempos modernos relacionada da observao dos caracteres fsicos (cor da

    pele, traos morfolgicos). O racismo nasce quando se faz intervir caracteres biolgicos

    como justificativa de tal ou tal comportamentos. justamente, o estabelecimento da relao

    intrnseca entre caracteres biolgicos e qualidades morais, psicolgicas, intelectuais e

    culturais que desemboca na hierarquizao das raas em superiores e inferiores.

    Para Oracy Nogueira (1998 [1955]; 1985 [1979]; passim), os dois principais pases do

    Hemisfrio Americano Brasil e Estados Unidos guardariam modalidades especficas, tipo-

    ideal, de relacionamentos entre negros e brancos, como j mencionamos anteriormente. O

    Brasil portaria uma modalidade de preconceito contra os negros, classificado como

    preconceito racial de marca. Esta modalidade seria diferente do que ocorreria nos EUA, onde

    o preconceito contra os negros foi classificado como preconceito racial de origem. (PAIXO,

    2005). No Brasil, a aparncia do negro sempre foi um fator de discriminao, os heris e

    heronas no so identificados com personagens negros, isso se reflete muito na criana negra

    que, ao observar tais heris, nunca se identifica com estes personagens.

    A prtica das execues de jovens negros comprova o quanto o pas no capaz de

    assegurar o mnimo para um existncia digna, compondo eles tambm a maioria dos

    analfabetos, dos sem tetos, dos que so considerados violentos. Este o racismo

    institucional, que confirma um Estado despreparado para tratar os diferentes, pois como

    podemos ver no Relatrio da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade

    Racial,

    O Racismo Institucional o fracasso da instituio e das organizaes em prover um servio profissional e adequado s pessoas devido a sua cor, cultura, origem racial ou tnica. Ele se manifesta em normas, prticas e comportamentos discriminatrios adotados no cotidiano de trabalho, os quais so resultantes da ignorncia, da falta de ateno, do preconceito ou esteretipos racistas. Em qualquer caso , o racismo instituctional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou tnicos discriminados em situao de desvantagem no acesso a benefcios gerados pelo Estado e demais instituies e organizaes (DFID/SEPPIR/PNUD, 2007, p .3).

    O racismo institucional tem sido a prtica pela qual o Estado criminaliza a juventude

    negra. No basta somente legislao para modificar tais prticas. Apresentado por organismo

    internacional, O Brasil possui um dos mais altos ndices de homicdios entre a populao

    jovem do mundo e, em todos os estados da federao, os jovens negros so as principais

    vtimas (Unesco, 2004). No possvel que diante de uma taxa de homicdio to alta no

    haja sensibilidade por parte dos rgos pblicos. Principais vtimas da violncia urbana, os

    jovens negros so objeto de uma poltica de extermnio. A sensao que se vive em dois

  • 29

    pases, mesmo no tendo aqui havido a segregao racial apoiada pelo Estado como nos

    E.U.A e na frica do Sul.

    Na Constituio Federal, o Art. 5 dos direitos fundamentais e princpios apresenta

    que: Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos

    brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida.

    liberdade, igualdade, segurana e propriedade. Este artigo da nossa legislao assegura

    a todos o direito vida, igualdade e segurana. Os relatrios de direitos humanos, porm,

    mostram uma realidade diferente:

    O Brasil tem um dos mais elevados ndices de homicdios do mundo, com mais de 48.000 pessoas mortas a cada ano. Os assassinatos cometidos por faces, internos, policiais, esquadres da morte e assassinos contratados so, regularmente, manchetes no Brasil e no mundo. As execues extrajudiciais e a justia dos vigilantes contam com o apoio de uma parte significativa da populao que teme as elevadas taxas de criminalidade, e percebe que o sistema da justia criminal demasiado lento ao processar os criminosos. Muitos polticos, vidos por agradar um eleitorado amedrontado, falham ao demonstrar a vontade poltica necessria para refrear as execues praticadas pela polcia. (Philip Alston da ONU, 2008)

    O nmero dos mortos ultrapassa a quantidade de vrios pases que esto em guerra. A

    maioria dessas mortes acontece em comunidades de periferia, este cenrio vem migrando para

    o interior do pas com uma intensidade muitas vezes maior que nas cidades com maior

    concentrao populacional. Isso denota uma proporo maior de morte nos pequenos

    municpios se comparados s grandes metrpoles.

    No caso de Vitria da Conquista, desde do final da dcada de 70, um nmero grande

    da populao da zona rural migra para as periferias urbanas, uma vez que a prpria cidade no

    oferece infra-estrutura para receblos. Tal fenmeno cria um vazio demogrfico no campo e

    aumenta superlotao urbana e, conseqentemente, a desigualdade, a falta de oportunidade,

    gerando conflitos sociais e regionais. O artigo 3 da Constituio traz como objetivos

    fundamentais da Repblica, em seu item III, a erradicao da pobreza e da marginalizao, a

    reduo das desigualdades sociais e regionais. Esses deveres do Estado tm sido violados

    constantemente, isso impedindo a efetivao da cidadania.

    No que se refere juventude negra em Vitria da Conquista, as polticas pblicas que

    deveriam suprir as necessidades destes jovens negros no so eficientes e suficientes, e nem

    planejadas para o atendimento a responder s necessidades deste setor da populao. H

    grupos que so mais fragilizados que outros, o jovem negro e pobre est sendo o alvo de um

    estado negligente que abandona a sua prpria responsabilidade.

    Racismo, tortura e extermnio so as conseqncias desse abandono que resulta no no

    comprimento da lei, sem que se promova o bem de todos no que diz respeito a origem, raa,

  • 30

    sexo, cor e idade. (art. 3 item IV). O estado brasileiro at pouco tempo negava a

    discriminao racial.

    Sobre as mortes relatadas dos jovens negros e pobres em Vitria da Conquista, em

    janeiro de 2010, h fortes indcios e mesmo comprovao de que haviam policias militares e

    civis envolvidos. Em reportagem de jornal estadual, o chefe do Ministrio Pblico perguntava

    quem tinha dado a ordem e liberado as viaturas (Jornal A Tarde 19/02/2010), admitindo que

    havia sido uma operao desastrosa. Os PM usando fardas e viaturas da corporao,

    invadiram casas, e executaram pessoas. O Estado, na figura do chefe do Ministrio Pblico

    estaria assumindo com sua pergunta que a ao havia sido realmente desastrosa, pois estava

    negando a orientao de proteger a populao, visto que no tem apresentado outra poltica

    alternativa.

    Segundo a sociloga Vilma Reis, o racismo delegou ao povo negro tambm o papel de

    sujar as mos de sangue pelo que os brancos tinham vontade e coragem de fazer (...):

    mais fcil dizer: por que vocs esto reclamando se a polcia da Bahia negra? S que estes so os subalternos. Eles cumprem ordem de superiores brancos em sua maioria. Se est havendo racismo institucional, a mquina que freia o racismo institucional tem chefe, e o chefe no negro.(Jornal A Tarde 2007, p. 5)

    Justificar que o racista o prprio negro, mas esquecer que h uma mquina

    ideolgica contra a populao negra em pleno funcionamento na contemporaneidade

    reforar ainda mais o racismo.

    Por um lado, h uma presena ostensiva da polcia nas comunidades perifricas

    justificada como ao de guerra contra o trfico de drogas. Quase todos os dias a grande mdia

    anuncia a ao da polcia entrando nas comunidades com armas pesadas e prendendo e

    matando um nmero significativo de jovens.

    Embora nosso estudo no seja sobre tortura, importante fazermos algumas

    observaes a este respeito. Os relatrios apresentados pela Anistia Internacional,

    Organizao das Naes Unidas e as Comisses Parlamentares de Inquritos tm verificado e

    ao mesmo tempo repudiado tais prticas, lembrando a prpria Declarao dos Direitos

    Humanos, em seu artigo 5:Ningum ser submetido tortura ou qualquer tipo de

    tratamento ou punio cruel, desumano ou degradante.

    Retomando o processo histrico, no caso da populao negra, foi a escravido que

    legitimou o castigo nos corpos negros nas casas grandes e senzalas. O Brasil, por quase quatro

    sculos, utilizou a chibata como mtodo de disciplinamento e castigo. Segundo Nilo Batista,

  • 31

    para os negros escravos, no houve qualquer regra, e os castigos mais cruis

    requintadamente cruis, eram aplicados no mbito da disciplina privada. (1990, p. 11)

    A tortura abominvel e fere a dignidade da pessoa humana, embora prtica cruel e

    desumana, est presente em vrios crimes, mesmo que haja contra ela um repdio nos tratados

    internacionais e nacionais.

    O Brasil ratificou e aderiu ao protocolo facultativo da Conveno contra a Tortura em

    2003. A definio de tortura segundo o direito internacional a mais aceita no Artigo 1 dessa

    Conveno:

    O termo tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, fsicos ou mentais, so infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informaes ou confisses; de castig-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido Ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminao de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimento so infligidos por um funcionrio pblico ou outra pessoa no exerccio de funes pblicas, ou por sua instigao, ou com o seu consentimento ou aquiescncia. (2004, p. 23)

    Esta definio considera trs elementos fundamentais para se definir o que seja

    tortura: 1) a ocorrncia de dores ou sofrimento agudos, fsicos ou psicolgicos; 2) a existncia

    de uma inteno deliberada; 3) o fato de tais dores ou sofrimento serem infligidos por

    funcionrio pblico ou pessoa no exerccio de funo pblica, ou por sua instigao ou com

    seu consentimento ou aquiescncia.

    Os jovens negros, em Vitria da Conquista, muitas vezes relatavam a tortura e

    humilhao ao serem abordados por policiais; grupos de extermnio, e ou at mesmo quando

    so forados a assinarem algum documento para serem criminalizados.

    No relato de um jovem de uma comunidade de Vitria da Conquista que foi baleado

    com 6 tiros pela polcia, no primeiro tiro ele caiu, ento um dos policiais pisou no seu p e ao

    ver que ele no morrera, deu o segundo, o terceiro e o quarto tiro. Ele fingira-se de morto e

    foi colocado dentro de uma viatura e levado para o hospital com outro jovem que morrera

    com um nico tiro. O carro policial, segundo ele, ia bem devagar para o servio de sade para

    que chegasse morto ao hospital. Ele relata que, ao perceberem que ele estava vivo, levou mais

    um tiro dentro da viatura, e outros tiros algumas horas depois. Ao chegar ao hospital, ao ver o

    mdico, o jovem comeou a gritar pedindo socorro, acusando os policiais de quererem mat-

    lo. Ento, pelo seu relato, os soldados assustaram-se porque, por mais tentativa de mat-lo, ele

    conseguiu sobreviver. Ao relatar a tortura que ele sofrera seus olhos apresentavam-se cheios

    de lgrima. No final, ele revelou todo o seu dio polcia. Em 2008, dois anos depois do

    episdio, o jovem veio a falecer assassinado.

  • 32

    Um outro jovem relata que teve medo de morrer ao ser abordado por policiais, em um

    final de semana. Ele foi parar no hospital por causa do espancamento de que fora vtima. Seu

    relato afirma que, nas proximidades de sua residncia, ele e seus amigos foram abordados por

    policiais, que mandaram todos ficarem de joelhos. Dois soldados da CAESG perguntavam

    insistentemente onde estava a arma, porm eles respondiam que no entendiam do que eles

    estavam falando, ento o jovem e seus amigos foram agredidos pelos policiais, enquanto

    outros homens da corporao ficavam olhando e rindo. Um dos soldados, pelo relato da

    vtima, bateu com o cabo da arma na cabea de um dos jovens, vindo a sangrar. Aps vrios

    minutos de espancamento eles os colocaram na carroceria de uma camionete levando-os a

    uma festa, na qual os policiais perguntaram ao dono do evento se eram aqueles jovens. O

    organizador respondeu que no. Aps este momento foram liberados por volta de 03:30 horas

    da madrugada sem saber do que haviam sido acusados. Os pais os levaram para o Servio de

    Atendimento Mvel de Urgncia SAMUR, devido aos ferimentos, fraturas nos braos e

    sangramentos. Este documento foi registrado pelo jovem e sua famlia e encaminhado ao MP,

    em 2007.

    Os encaminhamentos de denncias pelas vtimas e familiares, muitas vezes ficam

    arquivadas, pela falta de provas e testemunhas e, principalmente, pelo medo de perseguio,

    quando os casos tm policiais envolvidos.

    A Conveno contra a Tortura tem alertado para o uso e abuso cometidos em centros

    correcionais, quanto mais abertas e transparentes quaisquer detenes melhor se evitar a

    tortura ou qualquer ao desumana. No Brasil, os assassinatos, as chacinas, o extermnio, os

    seqestros, o crime organizado, o trfico de drogas e as mortes nos trnsito no podem ser

    consideradas normais, especialmente em um Estado e em uma sociedade que se desejam

    modernos e democrticos (SNDH/Braslia, 1998, p. 61).

    Tortura seguida de morte faz parte dos relatos de familiares de vtimas de extermnios,

    perseguio policial ou da divulgao da imagem de um sujeito perigoso. De acordo com o

    relato de um jovem negro conquistense, ao andar na rua ele percebe que as pessoas tm medo,

    o vem como algum que vai roubar. Isso no simples porque temos um sistema que nos

    brutaliza: As pessoas aqui tem medo da nossa cor; andava na calada e vinha dois jovens

    brancos em minha direo, eles estavam com um violo na mo, mais ao me olhar eu senti

    que eles ficaram com medo, atravessaram a rua e entram em uma rua, eu entrei na mesma rua,

    eles saram correndo quando eu olhei, eles estavam longe, eu percebi que o medo era da

    minha imagem .

  • 33

    Um outro jovem relata que um dia, s duas horas da tarde, a viatura da polcia o parou

    com um amigo e os fizeram colocar a mo para cima e comearam a revist-los, a questo

    no era a revista, mas a forma e a brutalidade com que eles os interpelavam, Eu me senti

    humilhado como se fosse bandido, ser que se fosse um jovem branco ele faria isso? nossa

    auto-estima fica prejudicada. A comunidade aplaude a ao policial, a gente se sente

    sozinho, finaliza o relato.

    Na escola, isso produzido de outra forma, as professoras tm medo da gente, elas

    pensam que por que moramos em uma comunidade pobre e de maioria negra somos

    bandido. Assim vo sendo as histrias narradas por jovens negros. A definio de

    extermnio no somente a execuo sumria, mas tambm um processo de morte que vai

    gerando um estado de rejeio. O preconceito vivido pelos jovens que cantam rap e

    participam do movimento hip hop foi sendo naturalizado, somando-se aos outros preconceitos

    a esses culturais. No imaginrio coletivo da populao, o jovem negro representa o estereotipo

    do bandido.

    Para Vera Malaguti,

    a difuso de imagens do terror produz polticas violentas de controle social. As estruturas jurdico-policiais fundadas no nosso processo civilizatrio nunca se desestruturam, nem se atenuam (...) como se a memria do medo milimetricamente trabalhada, construsse uma arquitetura penal genocida cuja clientela-alvo se fosse metamorfoseando infinitamente entre ndios, pretos, pobres e insurgentes. como torturadores estivessem sempre a postos, prontos para entrar em cena e limpar o jardim. (2003, p. 105)

    Neste contexto, vai se consolidando a cultura do extermnio, que no uma prtica

    nova, quanto existncia de policiais militares e civis envolvidos na execuo sumria de

    jovens negros e pobres, e o que assusta o silncio das autoridades governantes que no

    admite que por traz desta ao o racismo est incrustado na ao institucional dos envolvidos

    e em sua formao de que h um sujeito perigoso a ser abatido.

    A CPI do Extermnio no Nordeste (2005) relata que a execuo sumria a prtica

    utilizada por grupos de extermnio formados por agentes pblicos e privados. Um dado

    preocupante apontado pela CPI revela que no Brasil 80% dos crimes promovidos pelos grupos

    de extermnio tm a participao de policiais ou ex-policiais.5

    Percebe-se que a migrao da violncia para as pequenas cidades tem contribudo para

    o aumento da ao destes grupos nas ltimas dcadas. A impunidade e a conivncia de setores

    da sociedade que legitimam a atuao de organizaes de combate ao crime e que limpam a

    5http://www2.camara.gov.br/comissoes/temporarias/cpi/encerradas.html/cpiexterminio/relatoriofinalaprovado.html

  • 34

    sociedade matando aqueles que so considerados perigosos, outra causa relacionada com

    este aumento. Os grupos de extermnios no esto sozinhos, muitas vezes esto ligados aos

    comerciantes que contratam seus servios com a finalidade de proteger seus negcios. O

    extermnio virou uma indstria rendosa, mas os jovens esto dizendo que no d mais para

    continuar morrendo.

    1.3 A seletividade do sistema punitivo e do sistema educacional.

    Segundo Darcy Ribeiro:

    o Brasil, no seu fazimento, gastou cerca de 12 milhes de negros, desgastados como a principal fora de trabalho de tudo o que se produziu aqui e de tudo que aqui se edificou. Ao fim do perodo colonial, constitua uma das maiores massas negras do mundo moderno, sua abolio, a mais tardia da histria, foi a causa principal da queda do Imprio e da proclamao da Repblica. Mas a classes dominantes reestruturaram eficazmente seu sistema de recrutamento da fora de trabalho, substituindo a mo-de-obra escrava por imigrantes importados da Europa, cuja populao se tornara excedente e exportvel a baixo preo.(2000, p. 220-221).

    As mudanas ocorridas no perodo ps-abolio mais uma vez no aconteceram na

    vida dos negros. Ribeiro sintetiza: a nao brasileira, comandada por gente dessa

    mentalidade, nunca fez nada pela massa negra que a construa. Negou-lhe a posse de qualquer

    pedao de terra para viver e cultivar, de escolas em que pudesse educar seus filhos, e de

    qualquer ordem de assistncia (2000; p.222). Ou seja, nenhuma ao ou poltica pblica foi

    feita para organizar e promover a cidadania dos ex-escravos

    Logo no incio do Imprio, o Cdigo Criminal de 1830, apesar de ser considerado

    avanado para a sua poca, por prever garantias legais, tais garantias, no entanto, se

    referem basicamente populao livre. Para os cativos, ser um instrumento legal para a

    prtica de penas e tratamentos cruis. Conforme os artigos 14 e 60:

    Art. 14, 6. justificvel o mal cometido no castigo moderado aplicado pelo senhor ao escravo, ou o que dele resultar. Art. 60. Se o ru for escravo, e incorrer em pena que no seja capital ou de gals, ser condenado na de aoites e, depois de os sofrer, ser entregue ao seu senhor, que se obrigar a traz-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar.

    Este cenrio comea a se modificar somente a partir de meados do Imprio, quando a

    Inglaterra aumenta a presso sobre o Brasil para proibir o trfico martimo de escravos.

    neste contexto que Dieter afirma,

    Mesmo diante de toda a presso internacional e da Bill Aberdeen, o desembarque de escravos persistiu at 1850, ano da promulgao da lei Eusbio de Queirs6, que liquidou definitivamente com o trfico

    6Apesar do tratado com a Inglaterra em 1826, somente em 7 de novembro de 1831 foi promulgada lei que previa a criminalizao do trfico de escravos. No entanto, diante da inoperncia do governo brasileiro e face a urgncia inglesa, o

  • 35

    Como as ameaas inglesas no cessaram, o parlamento imperial, temendo ver os portos brasileiros fechados em retaliao ao no cumprimento do acordo de 1826 e ciente de que a frota naval inglesa estava autorizada, pelo Bill Aberden, a prender os navios negreiros portugueses e, caso houvesse resistncia, a bombarde-los e naufrag-los, votou, em setembro de 1850, a Lei Eusbio de Queirs, que proibia e reprimia o trfico de cativos. Em 1871 foi proclamada a Lei do Ventre Livre ou Rio Branco, declarando livres os filhos de mulher escrava que nascessem a partir daquela data e oficializando a compra da alforria pelo escravo. (2007; p.5-6)

    A lei Saraiva-Cotegipe, mais conhecida como Lei dos Sexagenrios, de 1885,

    concedeu liberdade aos escravos acima de sessenta e cinco anos. Esta lei quase no tinha

    efeitos porque poucos negros chegavam idade de 65 anos e os que chegavam no

    conseguiam trabalho, acabando por tornar-se mendigos. Foi a partir deste contexto que foi

    montado o arcabouo para a assinatura da lei de 13 de maio de 1888 que resultou na abolio

    da escravatura e o advento da Repblica.

    Considerando-se o perodo ps-abolio, o contexto republicano e suas diversas

    legislaes penais, observamos a persistncia de um modelo de punibilidade e criminalizao

    no sistema jurdico brasileiro que, no obstante as alteraes e as reformas, no sofreram

    modificaes estruturais significativas. Segundo o jurista Ral Zaffaroni:

    Todas as sociedades contemporneas que institucionalizam ou formalizam o poder (Estado) selecionam um reduzido nmero de pessoas que submetem sua coao com o fim de impor-lhes uma pena. Esta seleo penalizante se chama criminalizao e no se leva a cabo por acaso, mas como resultado da gesto de um conjunto de agncias que formam o chamado sistema penal.(2006, p. 43)

    Partindo desta premissa, a engrenagem do poder penal brasileiro tem sido objeto da

    crtica quando seleciona um grupo especfico a ser penalizado. Muitos estudiosos do direito

    crtico sustentam a posio de que no h estados de direito reais (histricos) perfeitos, mas

    apenas estados de direito que contm (mais ou menos eficientemente) os estados de polcia

    Idem).

    Esta seletividade permite que os grupos mais vulnerveis da sociedade sejam mais

    penalizados Segundo Flauzina, A resposta s prticas criminais no est vinculada

    danosidade do ato, mas qualidade dos indivduos que cometem os delitos (2008, p. 31).

    Em Vitria da Conquista, sobre os jovens pobres e negros que se exerce a punio

    concreta que, conforme Zaffaroni consolidaria a criminalizao secundria:

    A criminalizao secundria a ao punitiva (...) que acontece quando as agncias policiais detectam uma pessoa que supe-se tenha praticado certo ato criminalizado

    Abeerden Act concede jurisdio aos tribunais do Almirantado da Inglaterra para punir os navios negreiros, sejam eles capturados em guas internacionais ou territoriais brasileiras. Somente com a lei Eusbio de Queiroz, de 1850, encerra-se o perodo do trfico.

  • 36

    primariamente7, a investigam, em alguns casos privam-na de sua liberdade de ir e vir, (...); no processo, discute-se publicamente se esse acusado praticou aquela ao e, em caso afirmativo, autoriza-se a imposio de uma pena de certa magnitude que, no caso de privao da liberdade de ir e vir da pessoa, ser executada por uma agncia penitenciria (prisionizao).

    As situaes as mais banais tem possibilitado a criminalizao dos jovens. De simples

    suspeito de praticar determinados delitos ou, mesmo sendo afirmativo, o acusado recebe uma

    pena que o mantm em privao da liberdade de ir e vir. Muitos ficam, inclusive, detidos,

    espera de julgamento.

    Segundo Flauzina, os cdigos sociais mais elementares na estigmatizao dos

    indivduos - dos excessos caricatos da Polcia austeridade do Ministrio Pblico e do

    Judicirio -, a clientela do sistema penal vai sendo regulamente construda de maneira to

    homognea e harmnica que de nada poderamos suspeitar. Sempre os mesmos pelos mesmos

    motivos, os ciminalizados parecem representar a parcela da humanidade que no cabe no

    mundo.(2008,p. 33). Para Foucault, A punio vai-se tornando, pois, a parte mais velada do

    processo penal, provocando vrias conseqncias: deixa o campo da percepo quase diria e

    entra no da conscincia abstrata; sua eficcia atribuda sua fatalidade no a sua intensidade

    visvel; a certeza de ser punido que deve desviar o homem do crime e no mais o

    abominvel teatro; a mecnica exemplar da punio muda as engrenagens. Por essa razo, a

    justia no mais assume publicamente a parte de violncia que est ligada a seu exerccio. O

    fato de ela matar ou ferir j no mais a glorificao de sua fora, mas um elemento

    intrnseco a ela que ela obrigada a tolerar e muito lhe custa ter que impor.(2007, p. 13).

    A violncia invisvel do Estado, construdo na harmonia das raas, impe vendas

    nos olhos, no pas do carnaval, mas o sistema penal sabe quem deve selecionar para ser

    punido. Em uma experincia, na escola pblica de Vitria da Conquista, os alunos usam

    fardas para ter acesso as dependncias da escola, um grupo resolveu no vestir o

    fardamento e foi impedido de entrar na escola pela coordenao noturna. Os alunos

    resolveram apedrejar a escola por causa do impedimento da entrada dos mesmos no espao

    escolar, mas a questo ficou mais grave quando a coordenao resolveu chamar a polcia. Um

    aluno, ao ver os policiais, fez o seguinte comentrio: no fcil, porque eles vo marcar

    nosso rosto e noite vo comunidade e nos espancam, mesmo quem no fez nada. Esto

    esperando uma oportunidade para fazer isso. Eles esto de mos atadas.

    7 Pela ao do Legislativo, que faz as leis.

  • 37

    Segundo Flauzina, os sistemas escolar e penal operam com metodologia muito

    prxima, cumprindo ambos a funo precpua de garantir as assimetrias sociais. A exemplo o

    que ocorre no mbito do controle penal, o espao da escola tambm tende a criar padres

    hierarquizados, distribuindo prestgio (reconhecimento intelectual, acesso aos crculos

    acadmicos) aos indivduos das classes dominantes (operadores do direito) e sanes

    (reprovaes, insero em escolas de baixa qualidade) aos segmentos vulnerveis. Sendo,

    portanto, um espao fundamental para marginalizao social. (2008, p. 125). Foucault

    apresenta a vigilncia hierrquica como exerccio da disciplina, ao afirmar a essncia de

    todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal(2007, p. 149).

    Retornando ao acontecimento na escola noturna de Vitria da Conquista, no ano

    seguinte ao acontecimento, a escola foi fechada, sendo uma das alegaes a violncia. O que

    se percebia, naquele perodo, foi o medo espalhado entre os profissionais da educao em

    relao aos alunos mas, tambm, a estrutura fsica escolar foi considerada inadequada, para

    uma escola que com mais de 1.000 alunos, de acordo com o relato da diretora em 2003.

    Segundo informaes da escola, a maioria dos alunos deste estabelecimento era oriundo do

    bairro considerado o mais violento, onde teria se iniciado a primeira gangue da cidade.

    No por acaso a ocorrncia de um nmero significativo de evaso escolar neste

    grupo de jovens. Os jovens que freqentam as escolas de periferia so tambm o grupo de

    jovens onde ocorre o maior nmero de homicdio. Como podemos demonstrar no grfico

    abaixo:

  • 38

    Nmero de homicdios por ano de escolaridade

    0 2 4 6 8 10 12 14 16 18

    2003

    2004

    2005

    2006

    2007

    2008

    Nmero de mortos

    12 anos e mais

    8 a 11 anos

    4 a 7 anos

    1 a 3 anos

    Grfico 2 - Nmero de homicdios por causa externa de jovens em Vitria da Conquista/BA por ano de escolaridade. Fonte de dados: SESAB/DIS/SIM atualizao 03/09/2010 www.saude.ba.gov.br/dis (adaptado por Suzete de Paiva Lima)

    Observas-se que em cada ano houve um aumento dos homicdios de 2003-2007, e que

    as vtimas destes homicdios alcana no mnimo 7 anos de escolaridade em escola pblica,

    que apresenta dificuldades tanto em sua estrutura fsica como humana, com professores mal

    remunerados e pouco preparados para receberem alunos com problemas de indisciplinas,

    falta de interesse pelos contedos adotados, trazendo problemticas as mais variadas

    possveis. Assim, o grau de escolaridade est ligada situao social do jovem. Um aluno que

    freqenta a escola durante 7 anos, em mdia, no terminou o ensino fundamental. Isso inside

    tambm na ocupao que podem vir ocupar no mercado do trabalho. De acordo com o IBGE,

    em 2009, trabalhadores pretos e pardos ganhavam, em mdia, 40% menos que trabalhadores

    de cor branca, mesmo tendo o mesmo nvel de escolaridade. Em todas as faixas de

    escolaridade, a renda por hora de pretos e pardos pelo menos 20% inferior dos brancos. De

    acordo com os dados, os pretos e pardos so minoria entre a parcela mais rica da populao.

    Em 2009, essas famlias compunham 16% entre 1% mais ricos. Em 1999, essa fatia era ainda

    menor, de 9,1%.

    Diante de tais constataes necessrio repensar como em Vitria da Conquista, tem

    se constitudo a relao dos rgos operadores do sistema penal com a juventude negra e

    pobre. O que tem sido feito para enfrentar a triste realidade dos homicdios e reverter a ao

  • 39

    violenta do aparelho repressivo. Como a escola poderia contribuir para reveter a triste

    realidade na taxa de homicdio, elevando a escolaridade dos alunos?

    Os efeitos do sistema penal tm desdobramento no somente no jovem negro mas em

    toda a comunidade e familiares, que so vitimas brutalizadas pelo sistema penal. A

    metodologia em larga escala que mata o jovem negro hoje a mesma que operou na

    sociedade escravista. De acordo com Flauzina, uma criminologia que no d conta de nossas

    relaes raciais no est minimamente municiada para compreender o sistema penal. Segundo

    ela o racismo lente privilegiada para se enxergar os nossos sistemas penais ao longo de todo

    o processo histrico.(2008)

    1.4. A conscincia de ser negro: estamos por nossa prpria conta.

    A histria do jovem negro no est dissociada do seu passado, no est dissociado da

    escravido negra, no est dissociada das injustias cometidas com milhes de africanos que

    aqui foram explorados e subjugados, reduzidos a coisas.

    Na condio de coisas, os negros eram as grandes vtimas do sistema escravagista.

    Eles eram comercializados como se no tivessem valor algum, privado de direitos. O escravo

    no era pessoa, no era concebido como um ser racional. Ele no se pertencia. No Brasil, o

    pensamento de Nina Rodrigues foi dominante no ps-abolio, no final do sculo XIX e

    incio do XX. No pensamento de Nina Rodrigues, o germe da criminalidade era fecundado

    pela tendncia degenerativa do mestiamento e pela impulsividade dominante das raas

    inferiores.

    De acordo com Darcy Ribeiro (2000, p. 113), os negros do Brasil foram trazidos

    principalmente da costa ocidental africana (...), distingue, quanto aos tipos culturais, trs

    grandes grupos. O primeiro, das culturas sudanesas, representado, principalmente, pelos

    grupos Yoruba O segundo grupo trouxe ao Brasil culturas africanas islamizadas, os Peuhl,

    os Mandinga e os Haussa do norte da Nigria, identificados na Bahia como negros mals e no

    Rio de Janeiro como negros aluf e o terceiro grupo eram integrados por tribos Bantu, do

    grupo congo-angols, proveniente da rea hoje compreendida pela Angola e a contra Costa,

    hoje territrio de Moambique.

    Nesta Dissertao, estou me perguntando qual o motivo da escolha do tema em pauta.

    No me coloco e nem devo pensar que este no um problema meu, no! No! Esta histria

    eu assumo, desde a minha militncia: falar de um lugar, onde nasci e estou mo a mo com a

    juventude negra que tem sido vtima de inmeras violncias e execues sumrias. Sei que

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    muitos neste pas esto, neste momento, dizendo: Pare de matar nossos filhos, irmos e

    companheiros!

    Estamos por nossa prpria conta, assim continua a histria da juventude negra, nos

    rinces deste pas. Vamos, juventude negra, temos trabalho demais para no morrer, para lutar

    e dizer que a vida deve ser preservada. O Brasil, hoje, esta diante de uma questo: tentar

    resolver os problemas para os quais ainda no deu soluo.

    A provocao de dois jovens negros Fanon e Steve Biko, que morreram tambm na

    luta, porque entendia a urgncia histrica do combate ao racismo, os fizeram smbolos da

    esperana para as geraes jovens. Nos comprometemos, na Organizao No

    Governamental Griot, superao atravs da Educao. Isso nos fez mobilizar jovens na

    efetivao dos direitos cidadania. A mudana iniciou-se com arte-educao, para a

    construo de auto-estima. A leitura, como busca de informao e a cultura, como resistncia

    motivadora para falar de ns mesmos.

    2 VIDA E MORTE DA JUVENTUDE NEGRA 2.1 Vitria da Conquista, 29 de janeiro de 2010: Um episdio de violncia e racismo e a foras das mulheres.

    Durante a elaborao desta Dissertao, 14 jovens foram executados 3 foram dados

    como desaparecidos, na cidade baiana de Vitria da Conquista. Essas mortes ocorreram nos

    dias 29 a 30 de janeiro de 2010, confirmando, infelizmente, a situao que tnhamos nos

    proposto a estudar. Na madrugada de 29 de janeiro de 2010, diversas casas do bairro Alto

    Maron, Alto da Colina, Pedrinhas de Vitria da Conquista teriam sido invadidas por policiais

    militares e civis. Jovens foram espancados e mortos sob os olhos perplexos de familiares e

    vizinhos, dentre os quais se encontravam crianas, que ali ficaram marejadas de lgrimas e

    assustadas. Entre as vtimas, adolescentes na idade entre 14 e 17 anos. A verso de policiais

    que se tratava de bandidos perigosos. Ao longo do dia, as informaes eram davam conta de

    mortos em vrios lugares da cidade. Viaturas da polcia passaram o dia fazendo investidas nas

    casas das vtimas, segundo relatos de moradores. A brutalidade com a qual a polcia teria

    invadido as casas foi o que mais chocou a cidade, conforme notcia: em busca de vingana,

    PMs invadem casas em vrios bairros da periferia. Doze pessoas foram mortas e trs esto

    desaparecidas (Jornal A tarde:2010).

    Nos dias seguintes, a imprensa no noticiou mais nada a respeito dessas mortes. Os

    familiares estavam enlutados e, em vrios lugares, circulavam rumores da existncia de

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    mais um morto. O ocorrido no podia ser explicado. Familiares das vtimas procuravam

    seus filhos no IML, Distrito Integrado de Segurana Pblica - Disepe e presdio, juntamente

    com amigos. Os prprios membros das famlias e amigos iniciaram uma busca nos matagais,

    pelas pessoas cujas casas haviam sido invadidas pela polcia. Outros, iam aos hospitais da

    cidade. As horas iam passando e nenhuma notcia. Aps o enterro de um, notcias de que

    outros jovens haviam sido assassinados. Somente no domingo, dia 31 de janeiro, foi

    confirmado como sendo 14 o nmero de mortos.

    Muitas mes foram at o Ministrio Pblico, na segunda-feira, para denunciar o que

    havia se passado naquele final de semana, nos bairros perifricos. Essas mulheres corajosas,

    mesmo enlutadas e tomadas pela dor, foram exigir os corpos de seus filhos e iniciaram uma

    srie de relatos dizendo que policiais civis e militares, encapuzados, haviam invadido

    diversas residncias e apanhado seus filhos. Muitos j estavam deitados(nas casas onde

    dormiam os adolescente e sua famlia). A peregrinao dos pais parentes dos desaparecidos

    extrapola os limites geogrficos de Conquista (...) os pais acusam homens com farda da

    Polcia Militar pela invaso das casas e seqestros dos jovens(Jornal A Tarde 10/02/010).

    Nos relatos, uma das mes dizia que o filho foi executado no colo del