racismo e direitos humanos - o papel do estado na proteção da dignidade da pessoa humana perante a...

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RACISMO E DIREITOS HUMANOS: O PAPEL DO ESTADO NA PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA PERANTE A SOCIEDADE INTERNACIONAL * Disponível também em livro * CARDOSO, Tatiana de A F R; RODRIGUES, Dulcilene A Mapelli; MELO, Tibério B. Racismo e Direitos Humanos: o Papel do Estado na Proteção da Dignidade da Pessoa Humana perante a Sociedade Internacional. In: MENEZES, Wagner (Org.). Estudos de Direito Internacional. Curitiba: Juruá, 2010, v. XIX, p. 342-355. http://www.jurua.com.br/shop_item.asp?id=21 890

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RACISMO E DIREITOS HUMANOS: O PAPEL DO ESTADO NA PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

PERANTE A SOCIEDADE INTERNACIONAL

* Disponível também em livro *

CARDOSO, Tatiana de A F R; RODRIGUES,

Dulcilene A Mapelli; MELO, Tibério B.

Racismo e Direitos Humanos: o Papel do

Estado na Proteção da Dignidade da Pessoa

Humana perante a Sociedade Internacional.

In: MENEZES, Wagner (Org.). Estudos de

Direito Internacional. Curitiba: Juruá, 2010,

v. XIX, p. 342-355.

http://www.jurua.com.br/shop_item.asp?id=21890

RACISMO E DIREITOS HUMANOS: O PAPEL DO ESTADO NA PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA PERANTE A SOCIEDADE

INTERNACIONAL.

Tatiana de A. F. R. Cardoso* Dulcilene Ap. M. Rodrigues**

Tibério Bassi de Melo*** Resumo O presente trabalho estabelece o papel do Estado na proteção dos direitos fundamentais, observando o disposto em direito internacional e interno, principalmente à luz do julgamento de Sigfried Ellwanger pelo STF, no sentido de restringir o discurso de ódio e repelir os crimes raciais, mesmo que em detrimento da liberdade de expressão, demostrando o compromisso do Estado com a sociedade internacional na garantia dignidade da pessoa humana. Palavras-chave: Racismo, Direitos Humanos, Responsabilidade Internacional dos Estados. 1. Dignidade da Pessoa Humana e o choque entre preceitos fundamentais: Liberdade de

Expressão vs. Igualdade.

A busca pela definição ou alcance do conceito de dignidade da pessoa humana, do

ponto de vista ocidental, vem desde a antiguidade, quando esse preceito manifestava-se como

condição social. Já para Romanos, por outro lado, decorria de virtudes morais do cidadão.

Na visão kantiana, a dignidade é definida como algo sem equivalente,

incomensurável, insubstituível, inalienável, indispensável, que é considerada um fim em si

mesma.1 A dignidade passa a ser decorrente da autonomia da vontade, isto é, da ação

voluntária, responsável e garantida também no outro, que, por isso, não pode ser vista,

independente de sua condição social, econômica e racial, com menos dignidade ou com uma

dignidade, que se diferente, é reduzida, configurando um desrespeito.

Este preceito fundamental consagrou-se no contexto jurídico ocidental como um

direito humano universal, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, sendo,

portanto, reconhecido como inerente a todos os seres humanos, como fundamento da

liberdade, da justiça e da paz no mundo, do qual o Brasil é signatário. Em uma perspectiva

constitucional, a partir da Carta Constitucional de 1988, mais conhecida como a Constituição

Cidadã, a dignidade da pessoa humana ganhou status de direito positivo nacional, como

norma, valor e regra positiva constitucional.

* Especialista em Direito Internacional (UFRGS) e Língua Inglesa (Unilasalle). Mestranda em Direito (Unisinos). Bolsista Capes. Advogada Internacionalista. Filiada a ABDI. ** Especialista em Direito Público (Centro Salesiano - SP). Mestranda em Direito (Unisinos). Servidora Pública do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. *** Especialista em Direito Econômico e Empresarial (FGV) e Direito Ambiental (UFPel). Mestrando em Direito (Unisinos). Advogado Ambientalista e Ex-Procurador Geral do Município de Caçapava do Sul. 1 SARLET. Dignidade da pessoa... p. 32-33 e 68.

No art. 1, inc. III, a dignidade foi inserida na categoria de “Princípio Fundamental da

República Federativa do Brasil”, passando a estar no centro do Estado Democrático de

Direito, cuja maioria dos autores a considera um princípio absoluto, por corresponder

justamente a concepção kantiana de que o homem possui valor em si mesmo. Logo, esse

preceito deve permear não só todas as normas constitucionais, como também a legislação

infraconstitucional, as ações do Poder Executivo e as decisões do Poder Judiciário, haja vista

a obrigatoriedade de tê-la como um objetivo teleológico, exatamente por garantir as

condições mínimas para a existência digna dos seres humanos.

Seguindo essa mesma linha, é mister ressaltar que os direitos fundamentais são,

portanto, normas constitucionais que devem ser interpretadas em consonância com a

dignidade da pessoa humana, uma vez que encontram seu fundamento direto neste princípio;

a qual, por sua vez, radica na base de todos os direitos intrínsecos do homem

constitucionalmente consagrados.

Nesse sentido, como Görg Haverkate adverte, é inegável que os direitos

fundamentais são “o ponto de Arquimedes do estado constitucional”. 2 Entretanto, a

dignidade da pessoa humana é que “confere uma unidade de sentido ao sistema de direitos

fundamentais, fazendo da pessoa humana fundamento da Sociedade e do Estado”, no

ensinamento de Jorge Miranda, a qual representa a doutrina constitucional contemporânea, a

despeito de seu caráter compromissário com a eficácia dos direitos fundamentais.3

Assim, a cada direito fundamental, se faz presente um conteúdo da dignidade da

pessoa humana, na condição de valor e princípio fundamental, que atrai o conteúdo de todos

os direitos fundamentais, como uma garantia do desenvolvimento da personalidade humana,

o que determina, de forma reflexa ou colateral, que a violação da dignidade ocorra em

decorrência da violação dos direitos fundamentais em todas as suas dimensões.

Acerca do preceito fundamental da dignidade da pessoa humana, portanto, não há

dúvida de que é absoluto, sendo que a relativização ou restrição, encontra espaço ante os

direitos fundamentais, para os quais a dignidade da pessoa humana atua como limite dos

limites. Em outras palavras, quer isto dizer que existem determinadas limitações à atividade

restritiva no âmbito dos direitos fundamentais, justamente, com o objetivo de coibir eventual

abuso que pudesse levar ao seu esvaziamento ou até mesmo à sua supressão.

Nesse passo, à medida que surgissem casos concretos que restassem insolúveis por

estarem sobre a balança dois direitos fundamentais, deveríamos restringir um destes direitos

2 HAVERKATE. Verfassungaslehere... Apud. SARLET, Ingo W. (2006). Op cit, p. 115. 3 MIRANDA. Manual de... p.128.

básicos, utilizando-se da ponderação para analisar os bens juridicamente protegidos em

questão, fazendo com que não haja o esvaziamento dos direitos fundamentais em confronto.

Isso pois, não há nenhum direito fundamental com efeitos absolutos, como ocorre com a

dignidade da pessoa humana.

Necessária, a partir de então, a conceituação e valoração dos direitos fundamentais.

Neste sentido, Robert Alexy4 aduz que quando um princípio é considerado absoluto, o direito

nele fundamentado também o será, havendo, assim, a impossibilidade de tal existência

absoluta. Cuida-se de um paradoxo, todavia, pois sendo todo indivíduo titular de um direito

absoluto, como o da dignidade da pessoa humana, como poderia ocorrer a relação de cada

indivíduo com os demais, também detentores desse mesmo direito absoluto? Não poderiam

todos ceder ao direito uns dos outros, visto que a dignidade constante em cada um é absoluta,

sendo impassível de proporcionalidade.

Tomando-se por base esta concepção, os direitos garantidos mediante norma

constitucional são necessariamente restringíveis, porque seu grau de aplicabilidade depende

das condições fáticas e jurídicas que se apresentam no caso concreto, em consonância com os

aspectos jurídicos atinentes a este. Assim, o relativismo e a ponderação são as medidas

necessárias para que todos possam exercer seus direitos enquanto pessoas humanas.

Um exemplo claro é exatamente a questão do Racismo em face da Liberdade de

Expressão, haja vista que ambos decorrem de direitos fundamentais constitucionalmente

garantidos. Por um lado, conforme aborda Samantha R. Meyer-Pflug, vislumbramos a

liberdade de expressão, que “compartilha com o direito à vida a natureza de direitos

pressupostos para o exercício dos demais direitos”.5

De outro, percebemos a isonomia, que manifesta a idéia de que todos os seres

humanos por serem iguais, merecem um tratamento igualitário e equitativo, em que pese

todos os indivíduos pertencerem a mesma família humana e deterem os mesmos direitos de

não serem “humilhados ou perseguidos” em virtude de sua raça e/ou etnia.6

Nesse diapasão, resta evidente que o princípio da igualdade, em sua dimensão de

equidade, o qual é considerado uma “condição necessária ao pleno desenvolvimento da

natureza humana” é basilar e guarda íntima e fundamental ligação com a dignidade da pessoa

humana.7 Portanto, a relação que se faz entre o crime de racismo e os direitos fundamentais

é exatamente que o ato discriminatório (realizado por intermédio de suposta liberdade de

4 ALEXY. Teoría de los… p. 557. 5 MEYER-PFLUG. Liberdade de... p. 126. 6 Idem. Ibidem. 7 TEIXEIRA. Curso de Direito... p. 668.

expressão) viola a os direitos intrínsecos dos indivíduos e, consequentemente, a própria

dignidade da pessoa humana.

Portanto, pelas razões explanadas é que se deve impor uma restrição à liberdade de

expressão em face ao direito fundamental de tratamento isonômico (princípio da igualdade),

uma vez que o crime de racismo é considerado um delito contra a humanidade no âmbito

externo e também é previsto no ordenamento jurídico brasileiro. Afinal, a escolha por um em

detrimento do outro decorre exatamente de uma relativização e ponderação

constitucionalmente aceita.

A dignidade da pessoa humana, dessa forma, é de importância imensurável, pois é ela

que impede que o exercício de um direito fundamental seja abusivo, por não poder ser, de

forma alguma, esvaziada ou desconsiderada. Assim, é pertinente a analise da positivação do

Racismo como violação de direitos humanos, sob o prisma do sistema jurídico nacional e

internacional, justamente por esse ato criminoso configurar um desrespeito frontal a

dignidade existente em todos os seres humanos.

2. Crimes Raciais e Violações de Direitos Fundamentais: uma relação.

Hodiernamente, como já acervado, “o desprezo a um determinado grupo social se

apresenta [...] incompletamente incompatível com o respeito à dignidade da pessoa humana”.

Porém, isso ocorre, exatamente porque essa violação vai de encontro ao cerne dos direitos

intrínsecos dos seres humanos, quais sejam os direitos humanos, que nada mais são do que

um conjunto de direitos tão essenciais, os quais asseguram uma vida digna e a sobrevivência

dos indivíduos.8

Tais direitos, numa perspectiva histórica, foram assegurados ao longo de inúmeras

revoluções no direito comparado, obtendo a sua internacionalzação ao final da Segunda

Guerra Mundial, no momento em os Estados “passaram a pautar sua ação externa pelo

imperativo da paz e pela proteção dos direitos humanos”, haja vista as inúmeras atrocidades e

barbáries cometidas na constância desse conflito internacional.9

Assim, na Resolução de número 217 A (III)10, a Assembléia Geral da ONU adota a

Declaração Universal dos Direitos Humanos, a fim de tornar mais palpável a ideia de o

indivíduo ser protegido internacionalmente.11 Neste documento, restaram assentados os

8 MEYER-PFLUG. Op cit., p.99; RAMOS. Direitos Humanos. In: DIMOULIS. Dicionário Brasileiro... p. 128-129. 9 LUCAS. Os Direitos Humanos... In: MENEZES. Estudos de Direito... p. 457-470. 10 NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1945. 11 PIOVESAN. Temas de Direitos... p. 52.

anseios e as esperanças de toda a população mundial por mudanças referentes a proteção

internacional destes direitos inerentes a pessoa humana.12

No art.1, ao prescrever que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e

direitos”, sendo “dotados de razão e consciência” e que “devem agir em relação uns aos

outros com espírito de fraternidade”, exprimem características inalienáveis dos seres

humanos, as quais, por óbvio, não podemos separar, muito menos transgredir. Em uma linha

contínua, o art. 2 desta Declaração, aborda o princípio da não discriminação, afirmando que

os homens detêm “a capacidade para gozar os direitos e as liberdades [...] sem distinção de

qualquer espécie”.13

Como é possível observar, portanto, é disciplinado na esfera internacional um esboço

quanto à proibição de discriminar qualquer indivíduo em virtude de sua raça. Por outro lado,

na esfera nacional também temos a previsão deste delito, a qual é fruto de uma longa

construção nacional ante a igualdade.

Nossa primeira Constituição, a de 1824, já abordava essa temática quando o art. 179,

inc. XIII afirmava que a lei será igual para todos, apesar de ainda termos o ser humano de

origem africana como sendo uma mercadoria, desprovido de direitos e garantias básicas

(inclusive a ter direito a dignidade).14 A Constituição de 1891, promulgada após a Lei Áurea

de 188815, já afirmada diretamente que todos são iguais perante a lei, no art. 72, § 2.16

Entretanto, foi apenas em 1934 que a questão racial foi vislumbrada pela primeira vez

no contexto constitucional. O art. 113, inc. primeiro afirma claramente que todos são iguais

perante a lei e que não deve haver privilégios, nem distinções, por motivos de raça, como

uma das opções elencadas.17 A Carta Maior de 1946, como as outras, reafirmava a igualdade

de todos ante a lei, no art. 141, § 1. E, embora o direito à liberdade de expressão também ter

sido tutelado, já havia nessa Carta Maior, uma restrição a esse direito fundamental.18

Nesse sentido, observa-se a primeira ponderação entre princípios fundamentais no

ordenamento jurídico nacional, sendo a discriminação considerada um bem jurídico maior

que devesse ser tutelado a frente dos demais, ainda na década de 1940. Como uma constante

sempre em movimento, a Constituição de 1967 também inova, no sentido que, além de

12 BONAVIDES. Curso de Direito... p. 574-575. 13 NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Op cit., Artigo 1 e 2. 14 BRASIL. Constituição Politica do Império do Brazil. 1824. Artigo 172, XIII. 15 Cf. BRASIL. Lei Federal 3.353/1888. Declara extinta a escravidão no Brasil. 16 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. 1891. Artigo 2, par.2. 17 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. 1934. Artigo 113, I. 18 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. 1946. Artigo 141, par. 1 e 5.

acervar a isonomia de todos, sem distinção de raça, trazia em seu art. 150, § 1, a punição por

lei pelo preconceito de raça.19

Desta feita, colaborando para a sua efetivação no plano interno, após as inúmeras

alterações constitucionais, a Carta Política de 1988 consagrou em seu art. 3, a promoção do

bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas

de discriminação.20

Por sua vez, o art. 5, em seus inc.s XLI e XLII, apresentam grande relevância, pois

são neles que a lei expressamente menciona a punição de qualquer discriminação atentatória

dos direitos e liberdades fundamentais, bem como tipifica como crime de racismo,

acrescentando o caráter imprescritível e inafiançável a tal delito, garantindo, ainda que

transversalmente, ou a contrário sensu, da eficácia do princípio da igualdade.

Entretanto, o tema não é somente previsto em matéria constitucional. Há também a

disciplina efetiva em nosso ordenamento jurídico interno, qual seja a Lei Federal 7.716 de 05

de janeiro de 1989, com atual redação dada pela Lei 9.459 de 15 de maio de 1997, a qual

prevê a prática do racismo como crime.21

Consoante o art. 20 desta lei, vislumbra-se que o tipo penal é de crime de mera

conduta, logo, independendo de resultado material para ocorrer. A conduta, por sua vez,

abrange tanto o preconceito de marca (qual seja a aparência, a cor, etc.), quanto o

preconceito de origem (representado pelo fato de a pessoa proceder de um grupo religioso,

étnico ou nacional).22

Encontra-se no direito interno, agora tipificada no Código Penal, o crime contra a

honra na forma de injúria, a qual é punível com pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e

multa.23 Essa ofensa à dignidade ou ao decoro consistente na utilização de elementos

referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de

deficiência.

Note-se, seguindo essa esteira, que constitui o crime previsto na Lei 7.716/89, o

racismo praticado na forma delineada em lei, ou seja, praticar qualquer ato que implique

preconceito ou discriminação ou ainda incitar e fazer apologia como forma de distinção ou de

menosprezo de alguém. Ao passo que configurará o crime de injúria na forma capitulada no §

3o, art. 140, do Código Penal, somente no caso de ofensa à dignidade ou o decoro de alguém,

19 BRASIL. Constituição Da República Federativa do Brasil. 1967. Artigo 150, par. 1. 20 BRASIL. Constituição Da República Federativa do Brasil. 1988. Artigos 3, 5, 60. 21 BRASIL. Lei Federal 7.716/89. Artigo 20. 22 LAFER. A Internacionalização dos... p. 95. 23 BRASIL. Decreto-lei 2.848/40. Código Penal. Artigo 140.

“ofendendo-se, assim, a dignidade ou o decoro da pessoa” com a utilização de elementos

referentes à raça, cor, religião origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de

deficiência.

O racismo é, pois, grave e frontal violador dos direitos humanos defendidos pela

comunidade internacional, à medida que se trata de um “comportamento hostil, relativamente

a grupos humanos, a pessoas, em razão, por exemplo, da cor de sua pele ou de sua religião”,

atribuindo valor negativo a determinado grupo ou pessoa, dispensando-lhe tratamento

desigual.24

Devido as abrangentes previsões legislativas, tem-se a delimitação do tema, desde o

âmbito constitucional, que reporta ao direito internacional, como forma de garantir em

consonância com a comunidade mundial a proteção aos direitos humanos, tencionando, à

medida que trata cada legislação, a assegurar o pleno desenvolvimento dos direitos humanos

de seus cidadãos, com o intuito de que todos sejam tratados igualmente, sem quaisquer

distinções por sua crença, cor da pele, sexo, idade ou condição física.

De se considerar, assim, que os direitos humanos são, pois, o substrato dos direitos

fundamentais (direitos humanos positivados em uma ordem constitucional específica). Então,

partindo-se do pressuposto que a ordem internacional e a nossa ordem constitucional

específica consagram o direito a não discriminação, a pergunta que resta é se os seres

humanos podem afirmar que são naturalmente iguais. Ou ainda, se todos os indivíduos

nascem livres e iguais, haja vista que as violações decorrentes da etnia são extremamente

recorrentes mundo afora. Nesse sentido, questiona-se também se a igualdade seria um direito

a priori ou um mito.

Na busca pela resposta a tais colocações, tem-se que a igualdade é uma construção,

ou seja, uma ficção jurídica, porque os homens não são iguais em nada, possuindo

características e particularidades próprias e inigualáveis. Entretanto, essa igualdade

arquitetada decorre principalmente da necessidade de uma igualdade de tratamento jurídico,

visto que os homens não são iguais, estando intimamente relacionada ao princípio da justiça.

Afinal, a justiça é buscada desde os primórdios legislativos, com a finalidade de

assegurar a real e efetiva segurança dos direitos básicos das pessoas humanas. Por esse

motivo, a lei positiva, seja no âmbito internacional, seja no âmbito interno, em especial,

pelos fundamentos e pelos objetivos do ordenamento jurídico nacional, inclusive pelos

princípios que regem a República, precisa vedar a discriminação, o preconceito e a prática do

24 BRASIL. STF. HC 82.424/RS. Rel.: Min. Maurício Corrêa. Julgado em 17 set., 2003. DJ, Brasília, 19 mar., 2004. Voto do Min.Carlos Velloso.

racismo, o que de fato, já vem sendo positivado pela legislação internacional e pela

legislação nacional.

Neste sentido, a afirmação jurídica da igualdade perante a lei e do princípio da não

discriminação iniciam na era dos direitos humanos internacionais como sendo bens jurídicos

inderrogáveis, estando exatamente relacionados ao Estado Democrático de Direito, por

conterem a dignidade da pessoa humana presente em suas fundamentações. Isso pois, este

sim é preceito essencial para vida e realização dos indivíduos como seres humanos.

Não obstante tamanho reconhecimento, é uma realidade inegável hodiernamente a

prática do discurso do ódio (também conhecido como hate speech), que nada mais é do que a

manifestação de idéias que incitam a discriminação racial, social ou religiosa em relação a

determinados grupos25. Tal discurso vitima as pessoas, impossibilitando-as de participarem

da vida em sociedade, tolhendo seus direitos básicos, diminuindo sua autoestima, sua

dignidade em vista da disseminação e prática de racismo e discriminação, fato que nos leva

ao questionamento dos limites da liberdade de expressão no mundo atual, frente a esse

direito básico e indisponível que a igualdade.

Ronald Dworking manifesta-se em relação à garantia à liberdade de expressão como

fato de alto teor de relevância, na medida em que os indivíduos são tidos como responsáveis

por si mesmos, dotados de autodeterminação.26 Entretanto, é inegável que o discurso do ódio

possui condão preconceituoso, discriminatório, atentatório, inclusive à dignidade da pessoa

humana.

Por isso, verifica-se a imposição de limitações lógicas, tais como os direitos de

personalidade, os direitos à imagem, à intimidade e à honra, ao direito de liberdade de

expressão, que não podem, pois, possuir conteúdo imoral e caracterizado como um crime, eis

que necessária a salvaguarda do Estado Democrático de Direito tradutor de uma sociedade e

plural, e consequentemente da própria dignidade da pessoa humana.

A partir daí, como apontamos anteriormente, emerge o conflito entre os princípios

constitucionais da liberdade de expressão e do direito de igualdade. Porém, o que se discute

nesse momento é exatamente se a liberdade de expressão, em termos de hate speech,

configuraria o crime de racismo, para, então, adentrar na esfera de ponderação entre

princípios. Com esse objetivo, portanto, haja vista o tratamento dos crimes raciais nosso

ordenamento jurídico nacional, é possível afirmar que o discurso do ódio incita sim as

25 MEYER-PFLUG. Op cit., p.97. 26 DWORKING. O Direito da... p. 319.

práticas discriminatórias que podem lesar o individuo de forma implícita e explícita, por

exatamente violar aquilo que o identifica como cidadão e, mais ainda, como pessoa humana.

Nesse sentido, vale lembrar que pelo fato de o Brasil ter ratificado a tratados

internacionais e também por conter a previsão jurídico-constitucional interna de punir tais

condutas racistas e discriminatórias, ele detém de uma responsabilidade internacional de

perseguir e assegurar a inviolabilidade dos direitos intrínsecos do homem (como, por

exemplo, a dignidade da pessoa humana), o que poderia levar a sua punição em âmbito

externo caso haja a violação de tal tratativa.

3. Responsabilidade Internacional do Estado pela prática de Racismo no Ordenamento

Jurídico Interno.

A proteção dos seres humanos e de seus direitos básicos, como o de não ser

discriminado em virtude de sua raça, também possuem um viés internacional como outrora

acervado. Ocorre que essa vinculação existente com o plano internacional, acaba engajando o

Estado a plena garantia dos tratados internacionais por ele ratificados e dos costumes

internacionais.

Em 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial, o direito internacional passou por

grandes mudanças, principalmente em virtude das inúmeras violações de direitos humanos

ocorridas na constância deste conflito armado. Isso pois, a partir deste momento, tentava-se

impor limites as ações dos Estados, com intuito de frear essas cruéis e desumanas

derrogações de direitos humanos, especialmente com o intuito de dizimar uma população

devido a sua etnia.

Para tanto, a comunidade internacional criou a ONU, um foro internacional onde

todas as nações adentram em intensas negociações e discussões acerca dos mais essenciais

direitos dos indivíduos, buscando incansavelmente a sua tutela. Por óbvio, a discriminação e

os crimes raciais não foram olvidados, contando com a sua primeira menção no plano

internacional, ainda na carta constitutiva desta organização.

Afinal, um dos propósitos para a criação da ONU é a própria “cooperação

internacional [...] no desenvolvimento e estímulo do respeito aos direitos humanos e às

liberdades fundamentais de todos, sem fazer distinção por motivos de raça [...]”.27 Deste

modo, resta claro que todos aqueles que integram a comunidade internacional devem

procurar agir de maneira que não discriminem os seres humanos, pois, ao contrário, estariam

atuando desfavoravelmente a uma prerrogativa internacional.

27 NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas. 1945. Artigo 1, III.

Ocorre que, para o desenvolvimento das relações internacionais e da própria proteção

dos direitos fundamentais dos seres humanos, é necessário que os Estados ajam em harmonia

e que realmente cumpram com os preceitos que haviam se comprometido ao adentrar na

ONU. Para que isso realmente ocorra, portanto, são firmados tratados internacionais, que tem

como único objetivo regulamentar certas condutas, obrigando os Estados à sua observância.

Todos os acordos escritos concluídos no âmbito externo, firmados por mais de uma

nação, conforme as regras do direito internacional, são considerados tratados

internacionais.28 Tais exigem um cumprimento rigoroso; do contrário violam diretamente as

normas internacionais, podendo gerar, inclusive, uma responsabilização internacional por

inadimplemento de regra obrigatória.

Outros documentos foram criados no âmbito da ONU com essa mesma finalidade,

qual seja a de proteger os direitos humanos e privar os indivíduos de discriminações com

base em sua raça, garantindo a todos da comunidade internacional direitos iguais, os quais

são intransponíveis e inderrogáveis. Pode-se afirmar que os acordos começam a emergir

ainda na década de 1940 com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como já

mencionado.

Entretanto, na década de 1960, surgem outros acordos que também geram uma

vinculação do Estado em proteger os seres humanos de discriminações raciais, quais sejam: a

Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (CEFDR) de

1965, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional

dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), ambos de 1966.

Esse primeiro documento é considerado de altíssima importância, uma vez que fora o

primeiro acordo na história do direito internacional em determinar de maneira central o que

viria a ser discriminação racial e objetivar a sua prevenção nos Estados que o ratificaram.

Conforme abordagem de Flávia Piovesan, esta Convenção conceitua discriminação racial

como “uma distinção, baseada na raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que

implica na restrição ou exclusão do exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais,

nas mais diversas áreas”.29

Por conseguinte, é possível afirmar que quando uma distinção deste tipo ocorra, um

valor fundamental da sociedade é violado, na medida em que um direito intrínseco do ser

humano fora transpassado. Nessa banda, o papel do Estado está exatamente em punir os

28 Cf. BRASIL. Decreto 7.030/09. Artigo 2. 29 PIOVESAN; GUIMARÃES. Convenção Sobre a... In: Direitos Humanos... p. 368.

transgressores e coibir que essa atitude torne a ocorrer, haja vista a sua obrigação

internacional em prevenir e repudiar tais atos.

O segundo tratado elencado, por sua vez, menciona três vezes no corpo do texto o

repúdio a distinção com base na raça. A primeira referência ocorre já no art. 2 em que os

Estados-parte comprometem-se a garantir aos seus indivíduos os direitos constantes no pacto

sem qualquer discriminação racial.

A segunda menção está no art. 4, a qual permite às Nações que se encontrarem em

situações emergenciais a tomar todas as medidas cabíveis para contornar a atual conjuntura,

incluindo certas derrogações de direitos, porém, nunca agindo de forma discriminatória. Já a

terceira citação é a mais explícita: o art. 26 proíbe inteiramente “qualquer forma de

discriminação” e garante “a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer

discriminação por motivo de raça”, compondo o núcleo essencial dos direitos básicos dos

seres humanos, o que é fundamental para a convivência entre os indivíduos dentro dos

Estados.

Logo, por força deste Pacto, vislumbra-se o aditamento da conjuntura internacional,

no sentido que esta agora também proíbe o Estado de cometer o ilícito internacional de

discriminação por etnia, tendo o mesmo o dever de observar as suas próprias condutas para

que não interfira no direito intrínseco de igualdade de seus cidadãos.

Por fim, é mister mencionar o último Pacto aludido, pois traz a baila o tema da

discriminação racial ainda em seu art. 2, afirmando que os Estados-parte de tal acordo devem

comprometer-se em exercer os direitos nele enunciados sem discriminação alguma por

motivo de raça, denotando a grande preocupação da sociedade internacional em assegurar o

direito de igualdade entre os homens e reprimir o tratamento diverso dado a pessoas de raças

diferentes.

Deste modo, é possível dizer que no plano internacional o direito a não ser

discriminado por motivos raciais é garantido, da mesma forma que aquele que trata os iguais

diferentemente comete um delito internacional. Entretanto, para que esses imperativos

criados na órbita internacional por meio de tratados se tornem aplicáveis (e, desta forma,

tornem-se eficazes, garantindo a dignidade da pessoa humana) no âmbito interno dos países,

se faz necessária a sua internalização.

Quer isto dizer, que os Estados devem adaptar as suas legislações internas a fim de

que esses direitos sejam reconhecidos dentro de suas soberanias estatais da mesma forma que

são no direito internacional, levando a aplicação plena deste padrão mínimo externo a todos

os participantes da sociedade global. Nesse sentido, vale ressaltar que o Brasil ratificou, sem

reservas, o CEFDR em sete de março de1968, o PIDCP em doze de dezembro de 1991 e o

PIDESC em 24 de janeiro de 1992, tornando-se responsável pela implementação e proteção

dos direitos fundamentais previstos nestes tratados internacionais em âmbito interno.

Entretanto, caso os Estados-parte de um determinado acordo internacional não

venham a internalizar essas normas até mesmo após terem se comprometido no plano

externo, ou mesmo que já tenham adaptado a sua legislação interna e vierem a descumprir

com o acordado, é possível falar em responsabilização internacional. Isso pois, haveria uma

violação grave de preceito internacional, devendo o Estado ser punido por tal ato infrator.

A responsabilidade internacional dos Estados por violação de um compromisso surge

na esfera do direito internacional a partir do momento em que os direitos humanos se tornam

universais e que emanam um dever de observância à todas as nações, o qual não é executado.

Nesse sentido, como corrobora Alfred Verdross, “um sujeito de Direito Internacional [...]

está obrigado a reparar o dano causado”, exatamente por ter cometido “um ato

internacionalmente ilícito”. 30

Em outras palavras, a Responsabilidade Internacional dos Estados está fundamentada

no direito que todo ser humano, participante de uma coletividade chamada Estado, possui em

ser reparado por qualquer dano que lhe fora causado injustamente por outrem, seja este um

indivíduo ou o próprio Estado por intermédio de seus órgãos e agentes, uma vez que há uma

necessidade, no campo do direito internacional, de se recompor o equilíbrio social, outrora

abalado pela violação de seu direito fundamental.31

Assim, a responsabilização internacional há de ser encarada, nas palavras de Guido F.

Silva Soares32, “como um sistema que tem por finalidade conferir uma sanção à norma

internacional”, sendo importantíssimo no direito externo, pois “enfatiza a necessidade do

Estado em respeitar seus engajamentos internacionais”, como aponta André de Carvalho

Ramos33.

Deste modo, a Responsabilidade Internacional dos Estados tem ganhado grande

amplitude no direito internacional, uma vez que as violações de direitos humanos são

extremamente recorrentes e esta seria um meio efetivo de garantir a obrigatoriedade das

normas de direitos humanos no plano internacional, acarretando em uma reflexão acerca da

30 VERDROSS.Derecho Internacional… p. 319. 31 MELLO. Responsabilidade Internacional... p. 06. 32 SOARES. Curso de Direito... p. 184. 33 RAMOS. Responsabilidade Internacional... p. 14

necessidade de respeito por parte dos Estados a estas normativas as quais anteriormente se

engajaram em proteger.34

E uma das mais graves violações de direitos fundamentais é, indubitavelmente, o

racismo. Para corroborar ainda mais com essa visão, conforme apontaram Manoela Roland e

Maurício Santoro, restou “assinalado na Conferência Mundial contra o Racismo, a

Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, realizada em

Durban, África do Sul, em 2001” que o racismo é “um problema constante e comum a todas

as sociedades”.35 Afinal, ele é encontrado em inúmeros pontos históricos de nossa sociedade

global.

Como por exemplo, podemos citar o “antissemitismo eliminacionista” alemão do

Terceiro Reich, o qual desencadeou a Segunda Guerra Mundial e as inúmeras barbáries

perpetradas nos campos de concentração espalhados por toda a Europa na metade do século

XX.36 Também podemos relembrar o apartheid, que fora caraterizado como o máximo da

exclusão e da segregação racial institucionalizada, que perdurou por quase meio século na

África do Sul. Ou ainda os problemas da Ex-Iugoslávia e de Ruanda, na década de 1990, que

fizeram ressurgir a política de limpeza étnica e o crime de genocídio em suas regiões,

dizimando cerca de 500.000 e 1.000.000 pessoas respectivamente.

Portanto, o combate ao racismo é sem sombra de dúvidas “uma das lutas mais árduas

a serem travadas [...] no mundo”.37 E exatamente por esta dificuldade que se vislumbra

hodiernamente em coibir a sua ocorrência no âmbito interno de cada Estado é que se deve

falar em responsabilização internacional das nações quando estas não conseguem frear tais

derrogações de direitos humanos, mesmo após terem se prontificado internacionalmente em

evitá-las. Nunca, todavia, um Estado foi julgado em âmbito internacional, pela Corte

Internacional de Justiça, por descumprimento de tratados internacionais vinculados a crimes

raciais, apesar da sua real ocorrência.

Nesse sentido, cabe frisar o grande avanço da proteção dos direitos humanos na seara

nacional, devido primordialmente ao julgamento do HC 82.424/RS pela Corte Suprema

Brasileira, pois evidencia a mobilização do Estado em prol da proteção e da prevalência da

dignidade da pessoa humana no direito interno, quanto ao tema de Racismo. Isso pois, caso o

Brasil não viesse a coibir a prática de discriminação por etnia, como também restringir o

34 MELLO. Op. cit., p. 155. 35 ROLAND; SANTORO. Racismo, Direito... In: Democracia Viva. n.34, jan/mar, 2007. p. 71-74. 36 VILLA.Diccionario Espasa... p. 365-368. 37 ROLAND; SANTORO. Op. cit., p. 73.

discurso do ódio, acabaria por descumprir normativas internacionais, o que poderia ensejar

uma responsabilização internacional.

4. Caso Ellwanger e o correta ponderação de princípios pelo Ordenamento Jurídico

Brasileiro face a normativa corrente: considerações finais.

O HC 82.424/RS, jugado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 17 de setembro

de 2003 ganhou grande relevo, exatamente por abordar a questão do choque entre dois

princípios constitucionais, quais sejam da liberdade de expressão e do de não discriminação.

O caso Ellwanger, como é conhecido esse julgamento, nas palavras de Celso Lafer “é um

marco na jurisprudência dos direitos humanos, cuja prevalência na Constituição de 1988 é

uma das notas identificadoras do Estado democrático de Direito”.38

Sigfried Ellwanger é um autor, editor e distribuidor de livros, que fora denunciado em

14 de novembro de 1991 pelo crime de racismo contra o povo judeu. Apesar de ter sido

absolvido em primeira instância, fora posteriormente condenado pelo Tribunal de Justiça do

Rio Grande do Sul por disseminação de idéias discriminatórias contra a comunidade judaica.

Portanto, fora sentenciado em 10 de outubro de 1996, pela prática do crime de racismo, com

força no art. 20, da Lei Federal 7.716/89. Sua pena culminou em dois anos de reclusão,

adquirindo o benefício de sursis e 1 ano de prestação de serviços à comunidade.

Em novembro de 2000, entretanto, impetrou Habeas Corpus no Superior Tribunal de

Justiça, o qual foi denegado, com fundamento central de que o crime praticado por Ellwanger

é o de incitamento contra os judeus e não de prática de racismo, pois judeus não seriam raça.

Com base nesta decisão, impetrou Habeas Corpus junto ao STF alegando, em síntese, que

praticou a edição e venda de livros que fazem menções preconceituosas contra judeus, o que

configuraria o incitamento contra o judaísmo e não racismo, eis que judeus não são raça,

razão pela qual o crime praticado não poderia ter praticado o crime tipificado no art. 20 da

Lei 7.716/89, cuja característica de imprescritibilidade é manifesta.

Considerou, então, o Supremo, na ocasião, que as obras de sua autoria continham

realmente mensagens antissemitas, racistas e discriminatórias. Nesse diapasão, a ordem foi

denegada em 17 de setembro 2003. O decisum abarcou dois grandes temas: o antissemitismo

como sendo racismo e a ponderação, mediante os preceitos da adequação, necessidade e

38 LAFER. O STF e o racismo... In: Folha de São Paulo. 30 mar., 2004. Tendências/Debates, p. A3.

proporcionalidade em sentido estrito acerca dos princípios constitucionais da liberdade de

expressão em contraposição a prática de discriminação racial. 39

A condenação, portanto, asseverava que a livre manifestação do pensamento não

deveria se sobrepor a prática de racismo, mesmo que assegurado internacionalmente e até

mesmo no âmbito interno como um direto fundamental dos homens, haja vista que esta

exteriorização afeta diretamente o princípio internacionalmente reconhecido como bem

maior e considerado a base do sistema constitucional brasileiro que é a dignidade da pessoa

humana.40

Destarte, a decisão assegurava a restrição da liberdade de expressão em casos

excepcionais como este, pois evidente foi o abuso deste direito, o qual invadiu

indubitavelmente a órbita basilar do ser humano (a dignidade da pessoa humana), no sentido

que o livro de Ellwanger seria um meio instrumental da prática de racismo contra o povo

judeu.41

Desta feita, restou claro que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal foi

adequada e correta perante aquilo que defende a sociedade internacional, inclusive a

brasileira. Isso pois, o conteúdo jurídico do art. 5, inc.s XLI e XLII, da Carta Constitucional

da nação e sua correspondente legislação tanto internacional quanto infraconstitucional,

exigem do Estado a busca incessante pela paz, igualdade, dignidade, enfim, pela realização

incondicional dos direitos humanos.

Afinal, por tais serem o norte deste Estado Democrático de Direito, é imprescindível

que a nação defenda a sua proteção, mesmo que isso acabe por balizar outros direitos

necessários para que um indivíduo se afirme como ser humano.

Conclui-se, pois, que a prática da liberdade de expressão incitando o cometimento de

discriminação e difundindo o ódio racial sem limites, de modo que atinja outros direitos

intrínsecos e fundamentais da pessoa, como a igualdade e a dignidade, implicam

indiscutivelmente no cometimento do crime de racismo, o qual deve ser mundialmente

39 O julgamento foi decidido pelo Plenário do STF por maioria de oito votos a favor da denegação da ordem de Habeas Corpus a três contrários, restando vencidos os Ministros Moreira Alves, Marco Aurélio e Carlos Ayres Britto. Os dois primeiros consideraram prescrita a conduta. Além disso, determinaram que judeus não seriam uma raça (Moreira Alves) e que não haveria que se falar em incitação ao racismo no caso em tela (Marco Aurélio). Ayres Britto, por sua vez, concedia o recurso de ofício para absolver o livreiro por falta de provas e pela atipicidade do delito à época do fato. Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424/RS. Op cit. 40 O Ministro Celso de Mello afirmou que: "aquele que ofende a dignidade de qualquer ser humano, especialmente quando movido por razões de cunho racista, ofende a dignidade de todos e de cada um". BRASIL. STF. HC 82.424/RS. Op cit. 41 Cf. BRASIL. STF. HC 82.424/RS. Op cit.Voto do Ministro Sepúlveda Pertence.

rechaçado. Caso contrário, verificou-se que o próprio Estado pode ser responsabilizado

internacionalmente por tal afronta direta aos direitos humanos, ao passo que teria

descumprido com a sua função de grande protetor dos direitos básicos do ser humano dentro

de sua soberania territorial.

Por isso, afirma-se que agiu corretamente o STF em sua decisão. A divulgação de

idéias antissemitas e discriminatórias, como aquelas praticadas por Siegfried Ellwanger em

seu livro, caso não fossem prontamente repelidas, poderiam levar o Estado brasileiro a

praticar um delito internacional, qual seja de não observar as normativas internacionais de

garantia plena da dignidade da pessoa humana, que é parte essencial do indivíduo e compõe

basilarmente os direitos humanos.

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