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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
QUINCAS BORBA, DO FOLHETIM PARA O LIVRO: A IMAGEM DO LEITOR
Márcia Schild Kieling
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras, área Teoria da Literatura.
Professora Dr. Regina Zilberman
Orientadora
Data da defesa: 09 de janeiro de 2006.
Instituição depositária:
Biblioteca Central Irmão José Otão
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, março de 2006.
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RESUMO
A análise comparativa entre as duas versões de Quincas Borba, no que
concerne ao tratamento dispensado, em ambas, aos leitores textuais, a saber, narratário
e leitor implícito, constitui o foco do presente estudo. Mediante o confronto, comprova-
se a hipótese de que o perfil do leitor real orienta a configuração dos leitores textuais
das narrativas, visto que diferem as estratégias que determinam sua concepção, em
ambas as versões. Inicia-se com as teorias relativas ao papel do leitor, cujos
fundamentos teóricos justificam a relevância desta investigação. Em seguida,
apresentam-se os resultados obtidos por intermédio do levantamento das alterações
verificadas na reescrita do romance, bem como a elucidação do método de análise e de
alguns conceitos dos quais se lança mão ao examinar a imagem do leitor que se
configura em cada texto. Posteriormente, procede-se ao confronto entre determinados
excertos das versões em folhetim e livro de Quincas Borba, através dos quais se
identificam as modificações no tocante ao tratamento dispensado aos leitores textuais.
As alterações são correlacionadas com a imagem do leitor empírico, projetada por
Machado de Assis em cada um dos textos, para demonstrar a acuidade crítica com que o
escritor se reportava a seus leitores. Por último, procura-se ressaltar a relevância da
reescrita de Quincas Borba para o trabalho autocrítico do autor na busca do
aperfeiçoamento de sua obra, postura que caracteriza também a reelaboração de
Memórias Póstumas de Brás Cubas e Iaiá Garcia e que evidencia o desvelo permanente
de Machado de Assis em integrar a revisão dos próprios textos ao processo de criação,
visando ao aprimoramento e à consolidação da própria poética.
ABSTRACT
The comparative analysis of Quincas Borba‘s two versions, regarding the
treatment dispensed, in both, to the textual readers, namely, narratee and implied
reader, is the present study’s focus. The hypothesis stating that the real reader’s profile
determines the textual readers’ configuration is proved, once the strategies that
established their conception are different in both narratives. First, the theories
concerning the reader’s role are presented, since their theoretical basis justify the
investigation’s relevance. Later, the results obtained through the survey of the
modifications verified due to the novel’s rewriting, as well as the elucidation of the
analysis method and the concepts used in the examination of the reader’s image
configured in each text, are exposed. Afterwards, the comparison of some excerpts
extracted from the serial and book versions of Quincas Borba, through which it is
possible to identify the changes regarding the treatment dispensed to the textual
readers, is carried out. The alterations are linked to the empirical reader’s image,
projected by Machado de Assis in each text, in order to reveal the critical insight through
which the writer used to refer to his readers. Finally, the relevance of Quincas Borba‘s
rewriting to the author’s autocritical activity in searching for his work’s improvement is
pointed out, a posture that also characterizes the Memórias Póstumas de Brás Cubas and
Iaiá Garcia’s rewriting and demonstrates Machado de Assis’ permanent concern in
making his own texts’ review a part of the creation process, aiming at his own poetics’
development and consolidation.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................... 6
1 AS TEORIAS DA RECEPÇÃO: O LEITOR COMO PROTAGONISTA ................................ 9
1.1 Sociologia da leitura: Levin Schüking e Robert Escarpit ........................................ 15
1.2 Estética da recepção: Hans Robert Jauss e a nova história da literatura ................ 23
1.3 Estética do Efeito: Wolfgang Iser e os vazios do texto ......................................... 32
2 DEFINIÇÃO DOS CAMINHOS: METODOLOGIA DE ANÁLISE..................................... 41
2.1 Quincas Borba, do folhetim para o livro: a reescrita ............................................. 41
2.1.1 Diferenças estruturais ..................................................................................... 43
2.1.2 Diferenças diegéticas...................................................................................... 48
2.1.3 Diferenças lexicais .......................................................................................... 53
2.1.4 Diferenças enunciativas .................................................................................. 56
2.2 As três faces do leitor: narratário, leitor real e leitor implícito ............................... 61
3 QUINCAS BORBA, DO FOLHETIM PARA O LIVRO: UM NOVO LEITOR....................... 65
5
3.1 Quincas Borba, versão em livro: imagem dos leitores textuais .............................. 73
3.2 Quincas Borba em dupla versão: contraponto entre os leitores textuais ................ 80
3.3 Quincas Borba, do folhetim para o livro: novo suporte material, novo leitor........... 86
4 MACHADO DE ASSIS: REESCRITA E CRIAÇÃO........................................................ 90
4.1 A reescrita tardia de Iaiá Garcia ......................................................................... 92
4.2 As quatro edições de Memórias Póstumas de Brás Cubas ..................................... 94
4.3 O papel da reescrita no processo de (re) criação machadiana............................... 99
CONCLUSÃO......................................................................................................... 104
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 107
ANEXO – CURRICULUM VITAE............................................................................... 112
INTRODUÇÃO
A importância de Machado de Assis no contexto da literatura brasileira é
incontestável. Os inúmeros estudos que têm como objeto a obra do autor demonstram a
genialidade de um escritor que soube ser homem de sua época e, ao mesmo tempo,
projetar-se à frente dela. A qualidade estética da obra machadiana destaca-se
principalmente nos textos pertencentes à chamada fase madura do escritor, que,
inaugurada por Memórias Póstumas de Brás Cubas, consolida um estilo inconfundível,
em que a relação entre narrador e narratário se intensifica e a discussão da poética dos
textos se acentua.
As características supracitadas são identificáveis no romance Quincas Borba,
que teve sua primeira versão lançada em folhetim na revista de modas A Estação, entre
15 de junho de 1886 e 15 de setembro de 1891, e a segunda, em formato de livro, no
final do mês em que se encerrava a publicação em partes. O inusitado em relação aos
dois textos é que um amplo processo de transformação distingue as duas narrativas,
entre as quais se verificam diferenças de caráter estrutural, diegético, lexical e
enunciativo.
A análise comparativa entre as duas versões de Quincas Borba constitui o
foco da presente investigação, no que concerne ao tratamento dispensado, em ambas,
aos leitores textuais, a saber, narratário e leitor implícito. Sustenta-se a hipótese de que
7
o perfil do leitor real exerce influência sobre a configuração dos leitores textuais das
narrativas, visto que o autor altera as estratégias que determinam sua concepção,
quando reescreve a versão do folhetim para dar-lhe o formato de livro.
O presente estudo constitui-se de uma pesquisa de caráter bibliográfico que
visa delimitar conhecimentos de natureza teórica para sustentar a análise crítico-
interpretativa das alterações que reorientam a concepção dos leitores textuais de
Quincas Borba, por ocasião da reescrita da narrativa. Justifica-se por proceder à releitura
do romance através de uma perspectiva que valoriza a percepção crítica de Machado de
Assis e demonstra a importância que o escritor atribuía ao leitor em sua produção.
Insere-se na linha de pesquisa Margens da Literatura – Produção e Recepção, do
Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, e tem por base questões levantadas através dos trabalhos de investigação
realizados por sua proponente como bolsista de Iniciação Científica no projeto
Visualidade e Significação em Quincas Borba, orientado pela professora Juracy Ignez
Assmann Saraiva e realizado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, e como bolsista
Capes do projeto História da Literatura e Profissionalização do Escritor, orientado pela
professora Regina Zilberman, junto ao já referido Programa de Pós-Graduação em Letras
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
A fim de analisar as modificações constatadas no tocante aos leitores textuais
dos romances e relacioná-las com a mudança do leitor real, enquanto público
consumidor, de uma versão para a outra, fez-se necessária uma pesquisa bibliográfica,
cujos resultados constituem o primeiro capítulo da dissertação, em que se procura
investigar as teorias relativas ao papel do leitor que conquistaram lugar de destaque na
crítica literária principalmente com os estudos de Hans Robert Jauss através da chamada
Estética da Recepção.
8
No segundo capítulo, passa-se à apresentação dos resultados obtidos através
do levantamento das alterações verificadas na reescrita do romance, bem como à
delimitação daqueles que sinalizam para a modificação na concepção dos leitores
textuais na passagem do folhetim para o livro. Em seguida, são descritos os métodos de
análise das duas versões, que têm como base os estudos mencionados no parágrafo
anterior. Para tal, procede-se a uma combinação de elementos extraídos das teorias
abordadas no capítulo de abertura, bem como à elucidação de conceitos dos quais se
lança mão ao analisar a imagem do leitor que se configura em cada texto.
O terceiro capítulo apresenta, primeiramente, os estudos que focalizam e
justificam diferentes aspectos do processo ao qual o autor de Quincas Borba submeteu o
romance. Em seguida, procede-se à análise das alterações que interferem na concepção
dos leitores textuais das narrativas, bem como sua relação com a mudança do público
leitor que se verifica de uma versão para a outra.
No quarto e último capítulo, procura-se ressaltar que a reescrita de Quincas
Borba não só revela a preocupação de Machado de Assis em adequar o romance lançado
em folhetim a novo suporte material, como também evidencia o trabalho de autocrítica
do escritor, ao se distanciar do próprio texto e da condição de produtor deste, para
assumir a posição de receptor da criação, lendo a si mesmo, buscando o
aperfeiçoamento de sua obra, postura que caracteriza também a reescrita de Memórias
Póstumas de Brás Cubas e Iaiá Garcia, a que se faz referência no capítulo em questão.
Assim, destaca-se o desvelo permanente de Machado de Assis em integrar a revisão dos
próprios textos ao processo de criação, visando ao aprimoramento e à consolidação da
própria poética.
1 AS TEORIAS DA RECEPÇÃO: O LEITOR COMO PROTAGONISTA
Antes de iniciar a abordagem das teorias relativas ao papel do leitor, cumpre
registrar algumas informações acerca da consolidação e da expansão da leitura
enquanto prática social, ocorrida durante o século XIX. Martyn Lyons, em Os novos
leitores no século XIX1, procura demonstrar como tal processo se desenvolveu.
Segundo Lyons, no século XIX, grande parte do público leitor do mundo
ocidental já havia sido alfabetizado. Por volta da última década, a taxa de alfabetização
atingira 90%, abrangendo homens e mulheres. O estudioso garante que, no primeiro
quartel do século supracitado, consolida-se o prestígio do romance, que passa a ser a
expressão literária clássica da sociedade burguesa.
A produção em massa de ficção popular barata integrou novos leitores aos
públicos nacionais consumidores de livros e contribuiu para unificá-los e homogeneizá-
los. Lyons salienta que a publicação seriada de ficção abriu novo mercado e fez a fortuna
de autores como o francês Eugène Sue, e os britânicos William Thackeray e Anthony
Trollope. Uma nova relação estabelece-se entre escritor e público, já que os novos
leitores do século XIX constituíam boa fonte de lucro. Todavia, eles também provocam
inquietação entre as elites sociais, que atribuíram, em parte, as revoluções de 1848 à
1 LYONS, Martyn. Os novos leitores no século XIX: mulheres, crianças, operários. In: CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (orgs). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1999. v.2. p.165-202.
10
disseminação de obras subversivas e socialistas, que alcançavam o trabalhador urbano e
novo público no campo.
Segundo Lyons, as mulheres, tanto das classes mais abastadas quanto das
menos favorecidas, constituíram parte substancial e crescente do novo público leitor de
romances do século XIX. Uma vigorosa indústria se volta para o público feminino, e
entre os gêneros destinados a esse novo mercado de leitoras estão livros de cozinha,
revistas, que traziam receitas, conselhos sobre etiqueta, bem como notícias de moda, e,
sobretudo, o romance popular barato. Lyons ressalta a importância do roman-feuilleton,
ou romance em fascículos, que se converte em assunto do dia-a-dia entre as mulheres
leitoras, muitas das quais recortavam os episódios à medida que eram publicados para
colá-los ou encaderná-los, possibilitando a passagem dos romances por várias mãos
femininas. Apesar de não deixarem de ler, as mulheres da classe operária insistiam em
não dar crédito à sua própria cultura literária, pois condenavam a leitura como
desperdício de tempo, que ofendia uma ética de trabalho exigente. As mulheres da
classe média ou média baixa que não trabalhavam engrossavam a demanda por
romances e leituras recreativas nas bibliotecas circulantes ao final do século XIX.
Lyons enfatiza que, embora não fossem as únicas leitoras de romances, as
mulheres eram consideradas o principal alvo da ficção romântica e popular. O próprio
Stendhal realçava, em sua correspondência, a importância do público feminino para o
romancista. Conforme Lyons, o romance, concebido como antítese da literatura prática e
instrutiva, por exigir pouco do leitor e ter o objetivo de divertir pessoas com tempo de
sobra, era considerado adequado para as mulheres, vistas como criaturas imaginativas,
frívolas e emotivas, com capacidade intelectual limitada. Esse estereótipo que caracteriza
a mulher leitora como consumidora de material leve, trivial e romântico, aparece nas
representações pictóricas do século XIX, como em La lecture de l’Illustré (1879), de
11
Manet. Todavia, muitos acreditavam que o romance representava certo perigo para o
chefe de família, pois poderia excitar as paixões femininas, incentivando expectativas
românticas aparentemente pouco razoáveis, e sugerir idéias eróticas ameaçadoras da
castidade e da boa ordem.
Ainda em relação às mulheres leitoras do século XIX, Lyons afirma que elas
podem ser associadas ao desenvolvimento da leitura individual e silenciosa,
representando, talvez, as pioneiras dos modernos conceitos de privacidade e
intimidade2.
Segundo Lyons, não só o público feminino despertou o interesse do mercado
de livros. Estimulado pela expansão da educação primária na Europa, outro setor
importante do público leitor ganha destaque: as crianças. Em virtude das reformas de
Ferry, nos anos de 1880 na França, e da Lei de Educação de 1870 na Inglaterra e País
de Gales, cujo objetivo era tornar a instrução primária, em algum sentido, universal,
começam a florescer revistas infantis e outros escritos para crianças, voltados para as
preocupações pedagógicas das famílias de boa cultura. Segundo Lyons, a demanda de
textos escolares começou a abranger uma fatia maior do mercado de livros,
enriquecendo editores como Hachette.
Quanto ao ensino da leitura, Lyons registra a insistência na memorização
mecânica de alguns poucos textos, exigindo paciência severa e repetição de exercícios.
2 Cumpre registrar que, segundo Robert Darnton, em A palavra impressa (In: _____. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.109-172.), essa transformação sofrida pela leitura ao longo dos anos, freqüentemente feita em grupo e em voz alta, passando a caracterizar-se, posteriormente, pela individualidade e o silêncio, assume relevância quando se procura reconstruir parte do contexto social da leitura. Estudioso da história dos livros, que procura entender como as idéias eram transmitidas por vias impressas e como o contato com a palavra impressa afetou o pensamento e o comportamento da humanidade nos últimos quinhentos anos, Darnton propõe um modelo geral para analisar como os livros surgem e se difundem entre a sociedade: descrever os ciclos de vida pelos quais passam os livros impressos como um circuito de comunicação que vai do autor ao editor (ou livreiro), ao impressor, ao distribuidor, ao vendedor e chega ao leitor. Através de tal procedimento, Darnton acredita ser possível mostrar que os livros não se limitam a relatar a história, mas a constróem.
12
Além disso, o ensino da leitura para jovens tinha de ser compatível com a ortodoxia
religiosa e o permanente esforço de inculcar a subordinação social. Tal condição explica
o fato de que, em alguns países protestantes, o aprendizado da escrita e da leitura era
feito através da Bíblia. No entanto, o estudioso afirma que havia uma demanda
crescente de bibliografia pedagógica leiga, que os editores se apressaram em satisfazer3.
Robinson Crusoé, por exemplo, gozou de popularidade universal e foi editado em várias
versões adaptadas às necessidades de crianças de diversas idades.
Assim, conforme ressalta Lyons, a emergência de uma indústria da literatura
infantil ajudou na definição da infância e da adolescência como etapas distintas da vida,
com problemas e carências específicas. Todavia, na primeira parte do século XIX, essas
necessidades eram reconhecidas apenas com o objetivo de impor um código moral
estritamente convencional, o que explica o fato de grande parte da literatura infantil ser,
na época, preferencialmente didática. Lyons menciona ainda o surgimento dos contos de
fadas que, estimulando o desejo dos jovens por fantasia e magia, alcançaram
considerável popularidade. Consistiam em histórias folclóricas de origem camponesa do
passado, rebatizadas e infantilizadas pelos românticos do século XIX. Na França,
destacavam-se os contos de Perrault, cujas histórias haviam sido reformuladas para
atender às exigências da polida sociedade do século XVII. Na Alemanha, assumiram
relevância os contos dos irmãos Grimm, que procuravam reforçar a mensagem moral e
os valores da família. Dessa forma, Lyons lembra que a literatura de contos de fada era
3 Conforme Darnton (op.cit), a passagem da leitura intensiva – recorrência a um número reduzido de textos, em especial a Bíblia – para a extensiva – busca por material de qualquer gênero, atrás de entretenimento e não tanto de edificação –, verificada já no final do século XVIII, coincidiu com uma dessacralização da palavra impressa. Segundo o teórico, esse conceito de uma revolução na leitura, embora contestado por alguns estudiosos, assume relevância por ter contribuído para aproximar a pesquisa sobre a leitura de algumas questões gerais da história social e cultural.
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um corpo de textos dinâmico, sempre aberto a assimilações e contaminações em função
de novos editores, de novas modas e das necessidades percebidas nos novos públicos.
Lyons destaca também que, entre os novos leitores do século XIX, estavam
artesãos ambiciosos e funcionários de escritório que engrossavam em toda parte a
clientela das bibliotecas circulantes, órgãos instituídos especialmente na Inglaterra e cujo
rápido desenvolvimento resultou de uma densa urbanização e de um grau de
descentralização administrativa ímpar no continente europeu. Segundo Lyons, essas
bibliotecas consistiam em instrumento de controle social, concebidas para incorporar
uma elite operária bem comportada ao sistema de valores das classes governantes. O
estudioso menciona que a redução gradual da jornada de trabalho permitiu maiores
oportunidades para a leitura nas classes operárias, fazendo com que o ritmo de trabalho
diário ditasse os hábitos de leitura e a freqüência dos empréstimos junto às bibliotecas.
Dessa forma, empregadores e reformadores de bibliotecas esperavam que,
ao oferecer uma literatura adequada e ao encorajar o hábito de leitura, estariam
amenizando as tensões sociais. Havia, conforme Lyons, a esperança de que seria
possível afastar os membros da classe trabalhadora da bebida e da literatura perigosa
associada ao socialismo, à superstição excessiva ou à obscenidade. Todavia, tanto na
Inglaterra quanto na Alemanha e na França, os leitores resistiam aos livros úteis e
moralizantes, dando preferência a romances, como os de Alexandre Dumas e Victor
Hugo.
Cumpre registrar que, segundo Lyons, há uma grande quantidade de
autobiografias de operários do século XIX, que fornecem uma indicação clara da
crescente autoconsciência e do ascendente domínio da palavra impressa entre indivíduos
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que haviam recebido pouca instrução formal4. Assim, uma elite intelectual operária
autodidata que reconhecia a importância da palavra escrita foi emergindo. A esse grupo,
conforme Lyons, coube a tarefa de elaborar e disseminar uma ideologia política da classe
trabalhadora. Esses autodidatas, entre os quais figurava o russo Maxim Gorky,
enfrentavam a pobreza, a falta de tempo, de privacidade e até de luz, o que demonstra
o esforço sério e a abnegação com que tratavam a leitura, que representava instrumento
necessário para a educação e o domínio de si mesmos. Tinham como hábito a leitura em
voz alta, que se convertera em parte importante da politização e auto-educação da
classe operária. Assim, Lyons afirma que esses autodidatas adotaram um estilo de leitura
próprio de seu tempo e de suas necessidades, que refletia a seriedade de seus objetivos
e sua determinação de vencer, apesar dos parcos recursos.
Em suma, através das informações apresentadas anteriormente, é possível
constatar que, como afirmam Marisa Lajolo e Regina Zilberman em O leitor, esse
desconhecido5, tal entidade começou a se constituir em meados do século XIX, com a
expansão da imprensa, desenvolvendo-se graças à ampliação do mercado do livro, à
difusão da escola, à alfabetização em massa das populações urbanas, à valorização da
família e da privacidade doméstica e à emergência da idéia de lazer. Segundo as
autoras, ser leitor é uma função social para a qual se canalizam ações individuais,
esforços coletivos e necessidades econômicas. Portanto, só existem o leitor, enquanto
papel de materialidade histórica, e a leitura, enquanto prática coletiva, em sociedades de
4 Segundo Darnton (op.cit), a investigação de relatos autobiográficos auxilia os historiadores a conhecerem o significado que a leitura tinha pelo menos para os poucos leitores que deixaram registro a respeito. O estudioso afirma que a leitura tem uma história que não foi sempre a mesma em todos os lugares e períodos, e que, portanto, os esquemas interpretativos fazem parte de configurações culturais que variam em função do tempo e do espaço. Dessa forma, acredita que, ao compreender como o homem lia, seria possível compreender melhor como ele entendia a vida e, por essa via histórica, talvez se chegasse a satisfazer uma parte do próprio anseio humano e universal pelo sentido.
5 LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996.
15
recorte burguês, em que se verifica, no todo ou em parte, uma economia capitalista.
Essa condição explica o fato de os estudos que se voltam para a instância leitora só
terem se disseminado na segunda metade do século XX, principalmente através da
Sociologia da Leitura, da Estética da Recepção e da Estética do Efeito.
1.1 Sociologia da leitura: Levin Schücking e Robert Escarpit
Segundo Regina Zilberman, em Estética da recepção e história da literatura6,
a sociologia da leitura teria sido iniciada através de Levin Schücking, tendo por objetivo
estudar o público enquanto fator ativo do processo literário. Assim, considera que as
mudanças de gosto e preferências interferem não apenas na circulação e, portanto, na
fama dos textos, mas também em sua produção.
Quando se propõe a estabelecer uma sociologia da formação do gosto literário,
Schücking7 procura demonstrar como este se institui, de que forma se transforma, quais
as forças que o influenciam e determinam. Uma vez que, segundo o teórico, até então, a
história da literatura focalizava quase exclusivamente a obra de arte e o artista, é seu
objetivo investigar a recepção das obras através de um ponto de vista histórico-
sociológico que dê conta dos processos que envolvem a aceitação delas pelo público.
Ao abordar o gosto e o espírito de uma época, Schücking salienta,
primeiramente, que a popularidade de uma obra apresenta altos e baixos que variam em
cada momento histórico. Isso significa que o que é admirado em uma obra hoje, muitas
vezes, não o era quando ela foi lançada. Embora seja possível associar tal ocorrência às
demais manifestações espirituais vigentes, para o teórico, essa atitude não passa de
6 ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989. 7 SCHÜCKING, Levin L. El Gusto Literario. México: Fondo de Cultura Económica, 1950.
16
uma maneira simplista de ver as coisas. Segundo Schücking, uma vez que os diversos
ambientes sociais dão lugar a distintos ideais, torna-se difícil estabelecer qual deles
expressa diretamente uma época. Por isso, quando, atualmente, se considera como
espírito de uma época as idéias oriundas de certo grupo cultural dirigente, de cuja
vontade e meios depende o andamento da vida social, acaba-se excluindo, muitas vezes,
aquelas que representam a arte e a ciência. Assim, conforme o teórico, não existe um
único espírito de época, mas sim uma série deles.
Quanto à relação entre artista e público, Schücking lembra que, durante muito
tempo, os príncipes e aristocratas sustentavam os poetas, que, em troca, dedicavam
suas criações a seus protetores, a quem louvavam, na condição de porta-vozes de seus
feitos. Somente com o desaparecimento gradual da aristocracia na vida social e política e
a crescente importância econômica e social da burguesia é que surge um novo público
cujas circunstâncias se aproximam dos nossos dias. E é a esse público, bem mais vasto e
com preferências bastante distintas, que o artista tende, ainda que inconscientemente, a
fazer concessões. Todavia, conforme Schücking, isso não significa que deva renunciar à
sua personalidade, responsável pelas qualidades do grande artista e por conservar certa
medida de independência não sujeita a influências.
Schücking ressalta que a criação artística é conseqüência da cristalização de uma
experiência dos sentidos que depende de condições exteriores. A estima dá asas ao
talento dos artistas, ao passo que a indiferença e o desconhecimento impedem, muitas
vezes, um vôo elevado. Para muitos, a condição prévia para acreditar em si mesmos
está na confiança dos demais. Nesse sentido, o teórico menciona a formação de grupos
e escolas literárias, em que os artistas se apóiam mutuamente. Para o artista, assume
importância o incentivo que recebe de quem também tem talento, e o espetáculo da
criação alheia impulsiona a sua própria competência.
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Quando trata dos meios de seleção pelos quais as obras passam antes de caírem
no gosto do público, Schücking aponta a contribuição significativa das editoras. Segundo
ele, após o surgimento e o estabelecimento desses órgãos, ocorreu um fenômeno
curioso: aquelas que, com o passar dos anos, foram adquirindo prestígio devido à
aceitação das obras por elas publicadas, acabaram se tornando garantia de sucesso para
os livros ainda por lançar. Dá-se certa inversão: o sucesso da obra passa a depender não
tanto dos próprios méritos, mas sim do prestígio da editora, que funciona como uma
espécie de selo de qualidade. Em função disso, alguns escritores novos procuram se
aproximar de autores de renome que podem lhes abrir caminho junto a essas grandes
distribuidoras.
Outra forma de influir no gosto literário do público, conforme Schücking, é a
propaganda. Até Cervantes, temendo que a primeira parte de seu Dom Quixote não
obtivesse a aceitação que lhe cabia, escreveu um folheto, de pretensão crítica, em que
afirmava que o livro continha perigosas sátiras de personagens renomados. Dessa
forma, o autor conseguiu o que queria: várias críticas e réplicas ao seu livro. Nos dias de
hoje, não é novidade que a propaganda é utilizada com maior freqüência e com recursos
bastante avançados, obtendo grande eficácia e sendo apontada, em vários estudos,
como influência poderosa na maneira de pensar da massa consumidora. Segundo
Schücking, a propaganda pode contribuir de maneira decisiva para a criação de espaço e
interesse para o desenvolvimento de certas tendências de gosto, elevando sua
significação diante dos olhos daqueles que carecem de opinião própria e obstruindo o
caminho de outros ao impedir que se expressem a seu modo e ao obrigá-los a seguir
determinada tendência.
Ainda no que tange à constituição do gosto dos leitores, Schücking menciona o
papel do crítico literário. Para o teórico, aquele que mais influência exerce é o que
18
escreve regularmente em certo periódico ou revista e que consegue conquistar a
confiança e o respeito dos leitores. A influência mais significativa para a evolução do
gosto literário ocorre, conforme Schücking, quando o crítico não só resenha um livro,
como também cita exemplos dele, fazendo as vezes de editor. Assim, o teórico alemão
atribui ao crítico o papel de mediador que procura superar as possíveis dificuldades de
compreensão que uma obra possa oferecer ao leitor.
No tocante aos motivos de aceitação de uma obra por parte do público,
Schücking cita o interesse que o novo desperta: acolhe-se uma obra apenas porque ela
apresenta alguma novidade em função da qual é comentada e lida por várias pessoas,
caracterizando uma espécie de modismo, em que o que hoje é atual amanhã já pode
estar ultrapassado. Em função disso, Schücking lembra ainda que o gosto não se
transforma por si mesmo: os homens que o julgam é que são outros. Podem ser de uma
nova geração ou pertencer a grupo social distinto daquele cujo gosto predominava
anteriormente, o que justifica uma mudança mais significativa na aceitação de uma obra
que não se encaixe nos padrões até então vigentes.
Entre as forças que determinam o gosto literário, Schücking destaca a escola e a
universidade. Segundo o teórico, tais instituições tendem, na maioria das vezes, a
valorizar obras já conhecidas, transformando-se em guardiãs da tradição. O estudioso
menciona ainda o fato de que muitos professores não são preparados de forma
adequada para reconhecer os valores artísticos de uma obra, dificultando sua
compreensão. Além disso, para ele, falta atitude que incentive a atividade criadora dos
jovens ao estudarem as obras. Dessa forma, não vê na escola grandes impulsos que
levem à transformação do gosto literário.
Schücking também atribui grande importância às sociedades literárias, que fazem
com que o público conheça pessoalmente os poetas, ao lerem seus textos em troca de
19
determinada soma. Juntamente com tais grupos estão, conforme o teórico, as
bibliotecas circulantes, que substituíram as leituras em família, responsáveis pela difusão
do gosto literário principalmente no século XIX.
Ao concluir seu estudo, Schücking enfatiza que, em virtude de a arte não possuir
um valor absoluto, sua aceitação depender do caráter de quem a recebe e a imposição
de um determinado gosto associar-se a poderes sociológicos nem sempre puramente
espirituais, o único critério de valorização que consegue se impor é o da duração de seu
efeito. Ao obter êxito em oferecer algo a grupos de estrutura psíquica tão diversa como
são os que se sucedem na manutenção do gosto com o passar dos séculos, a obra
mostra que possui valores de caráter amplamente humano, capazes de ultrapassar uma
época determinada, possibilitando troca significativa de qualquer leitor com o texto.
Também preocupado com questões relativas ao caráter social da leitura, Robert
Escarpit, em Sociologia da literatura8, afirma que todo o fato literário supõe escritores,
livros e leitores, ou, dito de forma mais geral, criadores, obras e público. Ao contrário do
que vinha fazendo a história da literatura durante séculos, isto é, estudar exclusivamente
os autores e suas obras, o teórico considera, portanto, a recepção como parte essencial
da concretização do fenômeno literário, que só se dá através da leitura.
Dessa forma, Escarpit vê a figura do escritor sempre em relação a de seus
leitores, já que, para ele, quem escreve não pode se definir como escritor até que um
observador situado na condição de público seja capaz de o perceber como tal. Portanto,
“só se é escritor em relação a alguém, aos olhos de alguém”9. Em conseqüência de tal
concepção, o estudioso postula que a compreensão do fato literário deve considerar a
8 ESCARPIT, Robert. Sociología de la literatura. Barcelona: Edima, 1968. 9 ESCARPIT, op.cit, p.35-36. Tradução nossa. As demais citações terão apenas a página da qual foram extraídas indicada no corpo do texto.
20
convergência ou compatibilidade de intenções entre leitor e autor. Essa compatibilidade
existe porque “o público é também um meio social ao qual pertence o escritor e lhe
impõe um certo número de determinações” (p.105). O escritor é influenciado ao mesmo
tempo que influencia os leitores. Produz sob a égide da ideologia de seu público, da qual
é impossível escapar, o que, todavia, não significa que a aceite: sua postura pode
transparecer a tentativa de modificá-la ou até recusá-la total ou parcialmente.
Em virtude de tal ocorrência, Escarpit assegura que “o gênio criador de um
escritor pode transgredir, mas não ignorar as exigências do gosto ambiental” (p.109).
Isso se deve não só pela compatibilidade de intenções entre autor e leitor, anteriormente
referida, como também pelo compromisso que o escritor assume com seu editor,
visando atingir o maior número de exemplares vendidos. Cumpre registrar que essa
relação entre autor e editor em que se funda a indústria do livro como a conhecemos
hoje surgiu com o advento da burguesia, em que a literatura deixou de ser privilégio dos
letrados, passando a atingir um público vasto e com preferências que incluíam
basicamente romances realistas, sentimentais ou de aventuras, poemas pré-românticos
e românticos. É nesse momento que a literatura passa a ser explorada enquanto
mercadoria e, conseqüentemente, o escritor transforma-se em um trabalhador
assalariado, produzindo, em grande parte, para atender às necessidades econômicas de
seu editor. É por isso que o teórico ressalta o fato de que escrever é, nos dias de hoje,
“uma profissão – ou pelo menos uma atividade lucrativa – exercida no marco de
sistemas econômicos cuja influência sobre a criação é indiscutível” (p.10).
Embora reconheça que o escritor tende a absorver as necessidades do público,
sob cuja influência ideológica produz, Escarpit afirma também que o autor procura
contemplar uma coletividade de leitores possível mais ou menos ampla e estendida no
tempo e no espaço. Em virtude dessa espécie de projeção, alguns escritores chegam a
21
atingir uma espécie de “universalidade” e “eternidade”, pois conseguem conquistar não
só seus contemporâneos como também as gerações que o sucedem, convertendo-se nos
chamados “clássicos”. O êxito de suas criações se dá, conforme Escarpit, em virtude de
serem capazes de expressar o que um grupo esperava, revelando-o a si mesmo. A
possibilidade de os leitores se reconhecerem, de alguma forma, em uma obra literária,
seja ela deste ou daquele período histórico, é o que a torna significativa e garante a sua
sobrevivência através dos tempos.
Entretanto, na concepção do teórico, da mesma forma que, para ser literária,
uma obra não deve ser útil, mas ter um fim em si mesma, só é literária a leitura não
funcional, que não visa, portanto, à satisfação de necessidade cultural ou utilitária.
Assim, as motivações propriamente literárias são as que respeitam o “gratuito” da obra e
não fazem dela um meio, mas sim um fim. Esse tipo de leitura, segundo Escarpit, supõe
a solidão, ao mesmo tempo que a exclui, tornando-se uma atividade anti-social e social
de uma só vez: ler um livro como criação original e não como algo útil para a satisfação
funcional de uma necessidade (como ocupar o pensamento ou distraí-lo de uma
angústia) supõe que se vá ao outro, que se recorra ao outro e, portanto, que se saia de
si mesmo.
Outra questão importante sobre a qual o estudioso se debruça diz respeito ao
gênero literário. Para Escarpit, este não é resultado de uma invenção, mas de uma
adaptação a novas exigências do grupo social do qual é oriundo. Assim, acredita que os
gêneros evoluem à medida que a sociedade evolui, idéia que fora desenvolvida por
Geórg Lukács em Teoria do romance, estudo que procura estabelecer a equivalência
entre as formas literárias e as civilizações no seio das quais elas se desenvolvem,
centrando-se principalmente no desaparecimento da epopéia, representativa do mundo
grego, e no surgimento do gênero que veio substituí-la no mundo moderno: o romance.
22
Todavia, o fato de um gênero literário proceder de determinada sociedade não
significa que não possa ser lido e apreciado por outro grupo distante no tempo e/ou no
espaço, como já se comentou a respeito das obras consideradas clássicas. Dessa forma,
Escarpit destaca uma ocorrência bastante curiosa: o equívoco em relação ao autêntico
significado das obras no qual podem incorrer os públicos eventuais que se encontram
em uma posição exterior ao sistema que as deu origem. Como exemplo, o teórico
menciona As viagens de Gulliver e Robinson Crusoé, que − consistindo, primariamente,
aquela em sátira de uma filosofia pessimista e esta em prática para louvar o colonialismo
nascente − se transformaram em êxitos da literatura infantil devido às aventuras
maravilhosas e exóticas que apresentam. Tal mudança em relação à recepção das obras
é denominada por Escarpit de “traição criadora”. Trata-se de uma traição porque “situa a
obra em um sistema de referências para o qual ela não havia sido concebida” e é
criadora porque “proporciona uma nova realidade à obra, oferecendo-lhe a possibilidade
de um novo câmbio literário com um público mais amplo”, enriquecendo “não
unicamente uma sobrevivência, mas também uma segunda existência” (p.115).
Esse fenômeno não é considerado nocivo por Escarpit, pois o estudioso acredita
que “a verdadeira face das obras literárias é revelada, modelada, deformada pelos
diversos usos que fazem delas os públicos que as utilizam. Saber o que é um livro é, em
primeiro lugar, saber como ele vem sendo lido” (p.117). Ao enfatizar, portanto, a
importância de recuperar as formas como as obras são recebidas através dos anos,
Escarpit antecipa o que Jauss, com sua estética da recepção, postula: a reconstrução do
horizonte de expectativa perante o qual a obra foi criada e recebida, bem como a busca
das atualizações que dela fazem os leitores com o passar do tempo. Seria, portanto,
através de um caráter dialógico entre passado e presente, isto é, da fusão de horizontes,
que se tornaria possível chegar à compreensão de uma obra.
23
1.2 Estética da recepção: Hans Robert Jauss e a nova história da literatura
Segundo Regina Zilberman (op. cit.), Hans Robert Jauss, através de uma
exposição durante o congresso bienal dos romanistas alemães em 1975, na Universidade
de Constança, teria situado a estética da recepção no quadro dos acontecimentos
políticos e intelectuais da década de 60. O teórico denunciaria a fossilização da história
da literatura, cuja metodologia adotava os padrões herdados do idealismo ou do
positivismo do século XIX. Considerava que a estética se concentrava no papel de
apresentação da arte, cuja história era compreendida como história das obras e de seus
autores. “Das funções vitais (lebensweltlich) da arte, passou-se a considerar apenas o
lado produtivo da experiência estética, raramente o receptivo e quase nunca o
comunicativo”10.
Assim, para o estudioso, somente pela superação dessas orientações seria
possível promover uma nova teoria da literatura, baseada no reconhecimento da
historicidade da arte, elemento fundamental para a compreensão de seu significado no
conjunto da vida social. Regina Zilberman salienta que, assim como seu ex-professor,
Hans Georg Gadamer, em cuja obra Verdade e método (1961), ao atribuir à
hermenêutica o papel de intérprete da história, procura infundir-lhe nova direção, Jauss
recupera a história como base do conhecimento do texto e pesquisa seu caminho por
uma via que permite trazer de volta o intérprete ou o leitor. Nas palavras dele, era
necessário construir “uma teoria da história que desse conta do processo dinâmico de
produção e recepção e da relação dinâmica entre autor, obra e público” (Ibidem, p.48).
10 JAUSS, Hans Robert. A estética da recepção: colocações gerais. In: COSTA LIMA, Luiz (org). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p.44.
24
Em A história da literatura como provocação à teoria literária11, versão
ampliada da aula inaugural pública ministrada em 13 de abril de 1967 na Universidade
de Constança, Jauss apresenta sete teses, através das quais procura delimitar o que
seria, na sua concepção, o papel da história da literatura. Todavia, antes, o teórico
aponta as falhas de duas escolas que procuraram mudar o rumo dos estudos literários,
isto é, superar o empirismo positivista que viria a ser denunciado por ele em sua já
mencionada conferência de 1975: o marxismo e o formalismo.
Segundo Jauss, a teoria literária marxista se encarregou de demonstrar o
nexo da literatura em seu espelhamento da realidade. Com isso, acabou se restringindo
a medir o grau de importância de uma obra literária em função de sua força testemunhal
no tocante ao processo social. Em virtude de tal postura, foi incapaz de extrair daí
quaisquer categorias estéticas próprias, permanecendo, de um modo geral, presa a uma
estética classicista. Jauss garante ainda que a escola marxista trata o leitor do mesmo
modo com que trata o autor: busca-lhe a posição social ou procura reconhecê-lo na
estratificação de uma dada sociedade.
A teoria do método formalista, contrariamente ao marxismo, conforme Jauss,
alçou outra vez a literatura à condição de objeto autônomo de investigação, ao
desvincular a obra literária de todas as condicionantes históricas. Assim, para o
formalismo, o leitor resume-se a sujeito da percepção, que, seguindo as indicações do
texto, deve distinguir-lhe a forma ou desvendar-lhe o procedimento.
Embora aponte as incoerências dos estudos das escolas marxista e
formalista, o teórico reconhece a validade de tais estudos, tanto que procura acolher
“criticamente ambos os pontos de vista, tentando vencer o abismo entre a contemplação
11 JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994.
25
histórica (cega para a forma) e a contemplação estética (cega para a história) da
literatura" (JAUSS, 1994. p.74). Portanto, como já se afirmou ulteriormente, o teórico
trata a história da literatura como “um processo de recepção e produção estética que se
realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor,
que se faz novamente produtor, e do crítico, que sobre eles reflete" (Ibidem, p.25). Por
meio de suas teses, explica que ela deve reconstruir o horizonte de expectativa perante
o qual a obra foi criada e recebida, bem como percorrer as atualizações que desta fazem
os leitores com o passar do tempo. Assim, deve prescindir de um caráter dialógico entre
passado e presente, o que caracteriza a fusão de horizontes, responsável pela
compreensão da obra.
Levando em consideração as formulações acima, em A Ifigênia de Goethe e a de
Racine12, Jauss procura descobrir por que um clássico da literatura universal como a
Ifigênia do escritor alemão, depois de exercer, por longo tempo, poderosa influência,
perde a aura de perfeição que a cercava. Dessa forma, o teórico aponta para a
necessidade de buscar as condições históricas e estéticas que, no decorrer da recepção
da obra e de sua influência, deram lugar a sua atual compreensão ou incompreensão,
bem como saber se o sentido original do texto, manifestado em sua aparição ou
percebido por seus contemporâneos, pode ainda significar algo nos dias de hoje. Para
tal, Jauss se propõe a reconstituir, a partir das concretizações sucessivas de Ifigênia, o
horizonte da pergunta e da resposta que determinou, desde a recepção, as mudanças
ocorridas em sua compreensão e provocou, desde a produção, a substituição de uma
imagem insatisfatória por uma nova “resposta”.
12 JAUSS, Hans Robert. La Ifigenia de Goethe y la de Racine. In: WARNING, Rainer (org.). Estética de la recepción. Madrid: Visor, 1989. p.217-250.
26
Após a análise das duas Ifigênias, Jauss apresenta um epílogo, no qual procura,
primeiramente, elucidar o caráter parcial do método na estética da recepção, propondo-
se a esclarecer o que esta pode oferecer à arte, seu percurso, a relação que estabelece
com a história em geral e o que isoladamente não é capaz de fazer. Assim, afirma a
necessidade de submeter novamente a arte cuja autonomia se petrificou em um cânone
institucional às leis da compreensão histórica, devolvendo, assim, à experiência estética
a função social e comunicativa perdida. Para tal, segundo o teórico, as tarefas de uma
nova teoria e uma nova história da arte podem contar com a contribuição da estética da
recepção, capaz de romper com as convenções científicas dominantes, sem, todavia,
reivindicar o status de um paradigma metodológico autônomo. Jauss afirma, portanto,
que a estética da recepção consiste em uma reflexão metodológica parcial, associada a
outras e suscetível de ser complementada em seus resultados. Acrescenta ainda que
uma história da literatura com base nela pode contribuir para a compreensão da
interação, no processo global da práxis histórica, entre produção, consumo e
comunicação. Assim, o estudioso ressalta que essa nova teoria conduz à recepção de
uma obra, à formação de um cânone artístico, à atualização, à totalização, e, finalmente,
à imanência da experiência estética e à práxis do mundo da vida humana.
Quando procura diferenciar efeito e recepção, Jauss postula que o primeiro
consiste no elemento determinado pelo texto, enquanto a segunda constitui o elemento
determinado pelo destinatário na concretização ou formação da tradição. O teórico
afirma a importância de saber como se relacionam os dois processos, levando em conta
a obra de arte como testemunho do passado e a compreensão que a atualiza, uma vez
que o efeito e a recepção se articulam entre um discurso passado e um sujeito presente.
Em função disso, Jauss ressalta a importância da reflexão hermenêutica, que parte da
questão levantada pela resposta da interpretação tradicional para remontar à questão
27
inicial reconstruída hipoteticamente, através das mudanças de horizontes
correspondentes às concretizações sucessivas. Por isso, para Jauss, quando se propõe a
produção como fator predominante do processo social, só é possível conhecer o papel
desempenhado pela obra de arte ao se estudar a recepção, o que conduzirá aos
verdadeiros sujeitos, aos vetores da evolução.
Ao se referir à tradição e à seleção das obras literárias, Jauss afirma que a
estética da recepção supõe que a compreensão atual da arte evolui no interior de certos
limites que podem ser conhecidos, sob a condição de esclarecer primeiro a pré-
compreensão que se tem dela. Essa pré-compreensão está condicionada, muitas vezes,
por cânones estéticos cuja formação a história registra e pelos de institucionalização
latente, pela tradição eleita e pela inconsciente. Assim, conforme Jauss, as obras de arte
convertidas em modelos ou clássicos escolares pelo consenso do público literário podem
incorporar-se inconscientemente como normas a uma tradição que determinará as
expectativas prévias e a atitude estética de gerações posteriores. Dessa forma, Jauss
aponta para o fato de que a tradição implica uma seleção através da qual os efeitos da
arte passada são reconhecíveis na recepção presente.
O teórico ressalta que, quando as normas do passado são transmitidas até o
presente pelo jogo de um automatismo natural, respeitam um princípio de economia
característica da formação de um cânone: a abreviação, simplificação e eliminação de
elementos heterogêneos. Tal princípio é aplicável também, conforme Jauss, à mudança
operada pela consciência no horizonte da experiência estética, capaz de inverter cânones
do passado, modificar a hierarquia das autoridades e auxiliar na recuperação de uma
herança esquecida, começando, geralmente, pela recusa da tradição dominante.
Ao tratar do horizonte de expectativas e da função da comunicação, Jauss afirma
que, através da leitura, o leitor participa de um processo de comunicação no qual as
28
ficções da arte intervêm efetivamente na gênese, na transmissão e na motivação do
comportamento social. Tal função de criação social que a arte assume, para o teórico,
deve ser estudada e formulada pela estética da recepção em um sistema de normas e
horizontes de expectativa, a fim de investigar como a experiência estética pode se
transformar em modelo de conduta comunicativa, articulando-se em três dimensões:
transmissão, criação e reformulação de normas. Em suma, Jauss propõe uma postura
metódica que, graças a seu caráter parcial, seja capaz de promover um diálogo sobre a
possibilidade e a forma de a arte recuperar a função comunicativa quase perdida.
Também em seu artigo La douceur du foyer13, Jauss procura aplicar suas teorias,
tendo como objeto a lírica. Começa afirmando que o gênero eleito para o estudo da
relação mimética entre a forma ou a representação e a realidade tem sido, quase
sempre, o romance, uma vez que a poesia lírica parece subtrair-se por natureza mais
que as demais formas literárias à mímese ou “ilusão referencial”. Assim, numa tentativa
de unir os métodos da estilística estrutural, desenvolvidos por Michael Riffaterre ao
abordar a relação entre texto e leitor, e os da estética da recepção, Jauss se propõe a
investigar se e como é possível descobrir aspectos comunicativos na função de
representação da lírica.
Dessa forma, Jauss busca descrever o papel que a experiência estética
desempenha na constituição da realidade social, a partir de um exemplo tomado da
história, isto é, o mundo burguês por volta de 1857, e obter, assim, uma ponte entre a
teoria literária da estética da recepção e a teoria do “mundo da vida” desenvolvida pela
sociologia do saber. O teórico se propõe a verificar que informações a lírica oferece,
enquanto veículo de modelos significativos, sobre os universos particulares e sua
13 JAUSS, Hans Robert. La douceur du foyer: la lírica en 1857 como ejemplo de transmisión de normas sociales. In: WARNING, Rainer (org.). Estética de la recepción. Madrid: Visor, 1989. p.251-275.
29
delimitação na realidade cotidiana do mundo burguês do século XIX. Através da análise
de alguns poemas lançados em 1857, Jauss constata que a doçura do lar, unindo em
uma associação intraduzível de palavras uma imagem ideal de sociedade, introduz a
origem sagrada e a poesia do cotidiano em todos os níveis da lírica como tema
autônomo, citado ou implícito.
Cumpre registrar ainda que, segundo Zilberman (op. cit.), Jauss sofrera evidente
influência do chamado estruturalismo tcheco, relacionado ao Círculo Lingüístico de
Praga, fundado em 1926 e integrado por estudiosos como Roman Jakobson, Jan
Mukarovsky e Felix Vodicka. Este, assim como Jauss, propõe a elaboração de uma nova
história da literatura, apoiada na noção de repercussão ou recepção.
Em A estética da recepção das obras literárias14, Vodicka propõe o estudo da obra
enquanto objeto e valor estético, visando a identificar traços que possuam caráter de
generalidade, numa tentativa de reconstituição da norma literária ao longo da história a
fim de descobrir as relações existentes entre essa evolução e o desenvolvimento das
estruturas literárias. Para tal, o teórico lembra que a existência de um complexo de
normas em uma época determina o modo pelo qual uma obra se incorpora à literatura.
A relação da norma estética com as obras novas se caracteriza por uma tensão dinâmica
segundo a qual um texto tem a capacidade de imprimir à norma uma direção nova que
se desvia da anterior. Por conseguinte, a vitalidade das obras literárias provém
precisamente da tensão dinâmica entre texto e norma. Vodicka ressalta ainda que é
preciso levar em conta que a percepção estética não só é determinada por convenções
tradicionais como também pela busca de novas obras concretas que puderam
14 VODICKA, Felix. La estética de la recepción de las obras literarias. In: WARNING, Rainer (org.). Estética de la Recepción. Madrid: Visor, 1989. p.55-62.
30
corresponder a representações indeterminadas de uma beleza literária, todavia não
realizada, sentidas anteriormente como internamente formuláveis.
Vodicka crê que a tarefa principal da história da literatura consiste na descrição
evolutiva da dinâmica determinada pela polaridade entre obra e público leitor. Assim,
garante ser possível dividi-la da seguinte forma: a) reconstrução da norma literária e do
complexo dos postulados literários de uma época; b) reconstrução da literatura de uma
época, que abrange tanto o conjunto de obras que são objeto de valorização direta
quanto a descrição da hierarquia dos valores literários de uma época; c) estudo das
concretizações das obras literárias; d) estudo do campo de influência de uma obra nos
domínios literários e extra-literários.
Conforme Vodicka, os pontos acima relacionados constituem o questionamento
das tendências básicas do processo evolutivo, em que se deve observar que, no
organismo social ao qual pertencem os receptores dos produtos literários, existem
diferentes extratos que se orientam por meio de normas distintas, tanto por diferenças
relativas a gerações ou por uma divisão vertical do público literário. Para o teórico, a
consciência da existência da articulação de tais extratos é capaz de impulsionar o estudo
das modificações do gosto literário das camadas sociais de leitores.
Quando trata da reconstrução da norma literária, Vodicka aponta as fontes para
investigá-la: a própria literatura, as poéticas normativas ou teorias literárias e as
avaliações críticas da literatura (seus pontos de vista e métodos), bem como as
exigências críticas que pesam sobre a criação literária. O teórico afirma que o dever do
crítico é manifestar-se em relação à obra enquanto objeto estético, fixar sua
concretização e falar da sua importância no sistema dos valores literários admitidos,
determinando em que medida a obra cumpre as exigências do desenvolvimento literário.
31
Vodicka lembra ainda que há épocas em que a crítica ajuda o público a modificar o
gosto, bem como outras em que procura conservar os valores tradicionais.
No tocante à recepção das obras literárias e suas concretizações, Vodicka afirma
que, por não haver norma estética correta e única, tampouco avaliação única, uma obra
pode ser objeto de uma valoração múltipla, pois sua forma se modifica incessantemente
na consciência do receptor (concretização). O estudioso menciona até mesmo a
ocorrência de possíveis problemas metodológicos quando se estuda a recepção de uma
obra em um meio estranho, pois o eco que ela encontra nos leitores e críticos desse
outro meio difere daquele que ela provoca em seu meio natural, pois a norma é
diferente. É o caso da tradução, que é, de certa forma, uma concretização do tradutor,
como explica Escarpit, através da expressão “traição criadora”, referida anteriormente.
Assim, segundo o teórico, cabe à história da literatura investigar as variações da
concretização na recepção das obras literárias e as relações entre a estrutura da obra e
a norma literária cambiante, pois, desse modo, seria possível abordar a função estética
da obra e sua dimensão social.
Em A concretização da obra literária15, Vodicka ressalta que, ao investigar as
concretizações de uma obra literária, tanto o valor artístico quanto a intenção do autor
devem ser levados em conta. Para ele, a obra literária se alinha no conjunto das normas
e valores estéticos vigentes, uma vez que sua concretização está calcada nas linhas
principais da tradição literária. Assim, uma obra existe com uma nova forma somente
quando se registra e se torna pública uma nova concretização, e, na medida em que
consegue certa acolhida, ingressa no sistema dos valores literários de uma época.
Portanto, Vodicka crê que uma nova concretização significa o renascimento de uma
15 VODICKA, Felix. La concreción de la obra literaria. In: WARNING, Rainer (org.). Estética de la Recepción. Madrid: Visor, 1989. p.63-80.
32
obra, pois ela é recebida novamente de forma viva na literatura. Da mesma forma, o
estudioso lembra que o nascimento literário de uma nova geração vem ligado, muitas
vezes, à reabilitação de um autor anterior, concretizado de maneira inovadora. Em
contrapartida, garante que a repetição de uma antiga concretização sem que surja outra
é prova de que a obra deixou de ser parte viva da literatura.
Vodicka reafirma a importância de a história da literatura investigar a obra
como objeto estético, incorporando-a ao sistema dos valores literários atuais, explicando
o contexto que, despojado de elementos subjetivos unilaterais, dá testemunho de sua
consideração atualizada. Deve, enfim, estudar as propriedades que, em um determinado
desenvolvimento histórico, possibilitam a capacidade de vida da obra, bem como a
relação entre o seu valor evolutivo e as posteriores concretizações que recebe.
1.3 Estética do Efeito: Wolfgang Iser e os vazios do texto
Wolfgang Iser procura demonstrar, através de uma estética do efeito, que o
texto literário consiste em uma estrutura lacunar que estimula a resposta estética e faz
com que a indeterminação seja a pré-condição para a participação do leitor. Reformula
algumas noções desenvolvidas por Roman Ingarden16, que postula que a obra literária
apresenta uma estrutura essencial, em que se distinguem duas dimensões: uma em que
se estendem simultaneamente quatro estratos – o sonoro, o das unidades semânticas, o
dos aspectos esquemáticos e o das objetividades representadas – e outra em que as
partes se sucedem umas às outras, constituída pelas frases e os possíveis agrupamentos
nos quais elas se ordenam.
16 INGARDEN, Roman. Concreción y reconstrucción. In: WARNING, Rainer (org.). Estética de la recepción. Madrid: Visor, 1989. p.35-53.
33
Segundo Ingarden, a multiplicidade dos estratos revela especial polifonia de
qualidades estéticas que determinam a qualidade do valor que se constitui na obra. O
teórico aponta para a distinção existente entre a obra e suas concretizações, resultantes
de leituras individuais, o que se deve em virtude do caráter esquemático que ela
apresenta, constituído de “lugares de indeterminação”, eliminados parcialmente nas
concretizações, que, de certa forma, também são esquemáticas. Ingarden enfatiza que a
obra literária é acessível intersubjetivamente e reproduzível, convertendo-se em objeto
intencional intersubjetivo relativo a uma comunidade de leitores. Trata-se, portanto,
para o teórico, de um fenômeno psicológico, pois transcende todas as experiências de
consciência, tanto do autor como do leitor.
Ao tratar da concretização das objetividades representadas, Ingarden afirma que
o estrato por elas constituído contém vários “lugares de indeterminação”, que seriam os
aspectos ou partes de um objeto que não são especificamente determinados pelo texto e
cuja presença é necessária em toda obra literária de arte, uma vez que se torna
impossível estabelecer a multiplicidade de determinações dos objetos individuais
representados. Além disso, o teórico garante que a eleição de lugares de indeterminação
varia de uma a outra obra e pode constituir seu caráter específico, bem como o estilo
literário ou o estilo artístico em geral.
O teórico explica que, quando o leitor complementa os diversos aspectos das
objetividades representadas, não determinados no texto, está realizando uma atividade
de co-criação. Segundo Ingarden, a eleição de elementos para preencher os lugares de
indeterminação não resulta de uma intenção consciente por parte do leitor, mas sim da
liberdade que ele concede à sua fantasia. Assim, podem haver diferenças acentuadas
entre as concretizações de uma mesma obra, ainda que realizadas por um único leitor
em diferentes momentos, o que, conforme o teórico, acarreta dificuldades para uma
correta compreensão da obra literária, bem como para uma apreensão estética fiel dela.
34
Dessa forma, para Ingarden, as diferentes concretizações não são de igual valor, já que
maneiras distintas de preencher os lugares de indeterminação podem introduzir novas
qualidades de valor estético no estrato do mundo representado. Tal ocorrência faz com
que a configuração estética final da obra sofra modificações significativas, vantajosas ou
prejudiciais para o seu valor global. Ingarden lembra que o leitor tende a completar os
aspectos esquemáticos gerais com detalhes que correspondem à sua sensibilidade,
hábitos de percepção e preferência por certas qualidades e relações qualitativas, o que
tornaria a atualização e a concretização dos aspectos o componente da obra menos
desenvolvido relativamente, resultado dos maiores desvios com relação ao conteúdo do
texto.
Em A interação do texto com o leitor 17, Iser reconhece o mérito de Ingarden
de ter rompido com a visão tradicional da arte como mera representação. Entretanto,
aponta, em relação ao seu conceito de concretização, duas desvantagens: a
incapacidade de “aceitar a possibilidade de a obra ser concretizada de maneiras
diferentes, igualmente válidas” (ISER, 1979, p.102), e a crença na concretização das
obras de acordo com as normas da estética clássica, o que faria com que a recepção de
muitas delas ficasse simplesmente estanque. Dessa forma, o que Iser desaprova é o fato
de Ingarden considerar que “os pontos de indeterminação levam apenas a uma sugestão
de uma complementação não dinâmica, não sendo pensados como a condição para o
processo dinâmico em que o leitor muda de uma perspectiva textual para outra”
(Ibidem, p.103). Conforme Iser, “são os vazios, a assimetria fundamental entre texto e
leitor, que originam a comunicação no processo da leitura” (Ibidem, p.88). Para o
17 ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. In: LIMA, Luiz Costa (org). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
35
teórico, portanto, o vazio não condiciona a atividade do leitor, mas sim a induz e guia,
fazendo dele sujeito ativo e essencial no processo de compreensão do texto.
Dessa forma, em O processo de leitura18, Iser procura demonstrar que a obra
literária possui dois pólos: o artístico, que consiste no texto criado pelo autor, e o
estético, que se trata da concretização realizada pelo leitor. Assim, a obra de arte
constitui-se da convergência de texto e leitor, assumindo caráter virtual, uma vez que
não se reduz nem à realidade do texto nem às disposições do receptor. Isso significa,
segundo o teórico, que o texto se atualiza mediante a atividade de uma consciência que
o recebe, de forma que a obra adquire seu autêntico caráter processual somente através
da leitura. A obra de arte é, portanto, a constituição do texto na consciência do leitor.
A fim de descrever o processo de leitura, Iser opta inicialmente pelo esquema da
redução fenomenológica, recorrendo a algumas noções desenvolvidas por Edmund
Husserl e Roman Ingarden. Assim, procura definir a estrutura hermenêutica profunda da
leitura, em que, em virtude de seus elementos de indeterminação, cada correlato de um
enunciado prefigura a correlação seguinte, mas, em função de seus elementos
determinados e satisfeitos, constitui o horizonte do enunciado anterior. Isso significa que
cada instante da leitura se caracteriza por uma dialética de projeções e retenções, entre
um horizonte futuro e vazio que deve ser preenchido e um horizonte estabelecido que se
desvanece continuamente, a ponto de ambos os horizontes internos ao texto acabarem
se fundindo. É nessa dialética que, conforme Iser, se atualiza o potencial implícito no
texto.
O teórico afirma que a interrupção do fluxo de enunciados ou a aparição de
vazios na organização do texto faz com que as conexões se produzam de forma mais
18 ISER, Wolfgang. El proceso de lectura. In: WARNING, Rainer (org.). Estética de la recepción. Madrid: Visor, 1989. p.149-164.
36
matizada ou até heterogênea. É por essa razão que, segundo Iser, o texto se expande
em muitas possibilidades potenciais de realização e as eventuais leituras nunca as
esgotarão por completo. Tais possibilidades aumentam com as conexões não formuladas
da seqüência de frases ou com os vazios no entrelaçamento dos correlatos intencionais.
Assim, para Iser, a forma de leitura dos textos literários discorre como um contínuo
processo de opções mediante as quais se realizam seletivamente as possibilidades de
conexão. A leitura, portanto, manifesta a inesgotabilidade do texto, que se converte em
condição de tais escolhas, a fim de tornar possível a constituição do objeto literário.
Dessa forma, segundo Iser, o potencial do texto ultrapassa toda a realização individual
na leitura.
O estudioso salienta que o processo acima referido assume relevo
especialmente através da segunda leitura de um texto, uma vez que esta não produz a
mesma impressão formada na primeira leitura, fazendo emergir elementos não
percebidos previamente. Assim, para Iser, a releitura de um texto é capaz de produzir
inovações que, por mínimas que sejam, demonstram que a configuração de cada
processo de leitura é estruturalmente irrepetível.
No que concerne à circulação de imagens que a leitura proporciona à
consciência, Iser explica que, ao ler um texto literário, o indivíduo deve formar imagens
mentais ou representações, uma vez que os aspectos esquematizados do texto se
limitam a indicar em que condições o objeto imaginário deve ser constituído. São,
segundo o teórico, as implicações não manifestas lingüisticamente no texto, bem como
suas indeterminações e vazios, que estimulam a imaginação a produzir o objeto virtual
como correlato da consciência representativa.
Em virtude de tais fatores, Iser garante que, na leitura, surge uma forma de
participação que introduz o leitor no texto, produzindo o sentimento de que não há
37
distância entre ele e o narrado. Valendo-se de algumas considerações de G. Poulet, o
teórico afirma que, em decorrência de tal processo, o leitor acaba se convertendo em
sujeito das idéias do autor, fazendo com que se desvaneça a cisão entre sujeito e
objeto, inerente a todo processo de conhecimento e percepção. Assim, o leitor abandona
temporariamente suas disposições individuais, o que gera em si próprio uma divisão
artificial por converter em tema algo que não é seu.
Por fim, o teórico conclui que a constituição de sentido que ocorre na leitura
de um texto literário significa não só que se descobre o não formulado no texto para
ocupá-lo com os atos representativos do leitor, como também que, na formulação do
não formulado, radica igualmente a possibilidade de o leitor formular a si mesmo,
descobrindo o que até então parecia subtrair-se de sua consciência. Assim, para Iser, a
literatura oferece a oportunidade de o leitor formular a si mesmo mediante a formulação
do não formulado.
Em A indeterminação e a resposta do leitor na prosa de ficção19, Iser também
salienta que o texto literário não permite referência a qualquer situação idêntica da vida
real, o que demonstra o caráter de indeterminação que lhe é peculiar. Em virtude de tal
característica, o texto literário difere de outras formas de escrita porque, além de não
versar sobre objetos reais nem os constituir, diverge das experiências reais do leitor, na
medida em que oferece enfoques e abre perspectivas nas quais o mundo empiricamente
conhecido de nossa experiência pessoal aparece mudado.
Em função de tal ocorrência, é possível identificar, conforme Iser, o status do
texto literário, cuja principal característica é a posição intermediária entre o mundo dos
objetos reais e o próprio mundo do leitor. Dessa forma, o ato de ler é, para o teórico,
19 ISER, Wolfgang. A indeterminação e a resposta do leitor na prosa de ficção. Porto Alegre: Centro de Pesquisas Literárias do Curso de Pós-Graduação em Letras da PUCRS,1999.
38
um processo de tentativa de vincular a estrutura oscilante do texto a algum sentido
específico.
Procurando identificar as condições formais que favorecem a indeterminação,
Iser destaca a vida que o objeto literário adquire através do desdobramento de uma
variedade de pontos de vista que o constituem em estágios e, ao mesmo tempo,
fornecem uma forma concreta para o leitor contemplá-lo. São os “aspectos
esquematizados”, conforme termo cunhado pelo já referido Roman Ingarden, já que
cada um deles começa a apresentar o objeto de uma maneira representativa. É por essa
razão que um objeto literário nunca chega ao final de sua determinação multifacetada,
isto é, nunca se pode dar uma definição final a um texto literário.
Dessa forma, Iser identifica, entre os “aspectos esquematizados”, o que
chama de uma “terra-de-ninguém” de indeterminação que resulta precisamente da
determinação da seqüência de cada perspectiva individual. São lacunas que oferecem ao
leitor a oportunidade de construir suas próprias relações, através da associação dos
diferentes aspectos do objeto que até aquele ponto lhe foram revelados. Assim, Iser
afirma que as lacunas dos textos literários são um elemento básico para a resposta
estética e, conseqüentemente, a indeterminação é a pré-condição para a participação do
leitor.
Para ilustrar o referido acima, o teórico alemão menciona o romance-folhetim
do século XIX, que, em função da leitura em prestações, fazia com que os leitores o
preferissem ao texto idêntico em forma de livro. Isso se deve porque o romance em
folhetim introduz lacunas adicionais, ou alternativamente, acentua lacunas existentes,
por meio de uma pausa, até o próximo fascículo. O conjunto dessas pausas é
responsável pela revelação de um tipo diferente de concretização, na qual o leitor é
compelido a assumir um papel mais ativo, pois precisa preencher as lacunas adicionais.
39
Ao examinar as formas pelas quais a resposta de um leitor pode ser
direcionada, Iser faz referência aos comentários de natureza avaliativa, em que o próprio
autor conta ao leitor como sua história deve ser entendida, removendo as lacunas, o que
pode resultar na diminuição da participação do leitor na execução da intenção
subjacente da narrativa. Por outro lado, esses comentários também podem oferecer uma
avaliação que contém diferentes possibilidades abertas à escolha do leitor, instaurando
um certo jogo livre para a avaliação e permitindo o aparecimento de novas lacunas no
texto. Trata-se, portanto, de uma estrutura que envolve o leitor no processo de
avaliação, mas, ao mesmo tempo, o controla.
Assim, Iser procura demonstrar que os elementos indeterminados da prosa
literária representam o elo mais importante entre o texto e o leitor. Embora reconheça
que o sentido seja condicionado pelo próprio texto, o teórico entende que cabe ao
próprio leitor trazê-lo à luz. Conclui afirmando que os textos literários são construídos de
forma a não confirmar nenhum dos significados que lhe são atribuídos pelos leitores,
embora, por meio de sua estrutura, continuamente suscitem tais projeções20.
* * *
Por intermédio das teorias acima apresentadas, é possível perceber que todas
delegam considerável importância ao papel do leitor, seja enquanto entidade sociológica,
histórica ou textual. Portanto, cada uma se ocupa de uma determinada faceta do
processo de recepção do texto literário. Todavia, isso não significa que, em virtude de
suas diferenças, seja impraticável uni-las em um mesmo estudo, a fim de que se
20 Outra importante contribuição dos estudos de Wolfgang Iser, decorrente da concepção de que o texto literário constitui-se de vazios que estimulam a resposta estética e tornam a indeterminação pré-condição para a participação do receptor, é o conceito de leitor implícito, referido no capítulo seguinte.
40
complementem umas às outras e se convertam em alternativas que se abrem para
distintas formas de estudar e compreender o leitor em toda sua complexidade.
É em função disso que Robert Darnton (op.cit) defende a combinação da
análise textual com a pesquisa empírica, pois acredita que, ao comparar os leitores
implícitos dos textos e os leitores efetivos do passado, seja possível desenvolver uma
história e uma teoria da reação do leitor. Com esse objetivo, na presente investigação,
partir-se-á da análise dos leitores textuais das duas versões do romance Quincas Borba,
tanto do narratário quanto do leitor implícito, para, através deles, chegar ao leitor real
na condição de público consumidor.
2 DEFINIÇÃO DOS CAMINHOS: METODOLOGIA DE ANÁLISE
Expostas as teorias relativas ao papel do leitor, cumpre apresentar os dados
obtidos através do cotejo entre as duas versões, em folhetim e em livro, do romance
Quincas Borba, bem como elucidar os conceitos que embasarão a análise da imagem do
leitor de cada narrativa.
2.1 Quincas Borba, do folhetim para o livro: a reescrita
Quincas Borba teve sua primeira versão lançada em folhetim entre 15 de
junho de 1886 e 15 de setembro de 1891, em uma revista intitulada A Estação,
destinada ao público feminino e que atribuía destaque à moda e a técnicas de
manufatura, como bordados e rendas. No final do mês em que se encerrava a
publicação em partes, a segunda versão do romance é editada em formato de livro. As
inúmeras alterações que distinguem as duas narrativas foram identificadas pelo
pesquisador Antônio José Chediak, em estudo realizado, em 1959, junto à Comissão de
Machado de Assis, instituída no ano anterior pela portaria nº 483 do Ministério da
Educação e Cultura e cuja finalidade consistia em elaborar o texto definitivo das Obras
de Machado de Assis. Dessa forma, através do trabalho de Chediak, a Comissão,
integrada por estudiosos como Antônio Houaiss, Celso Ferreira da Cunha e José Galante
42
de Sousa, reimprimiu, em Quincas Borba: apêndice, o texto de A Estação, grifando os
trechos que permaneceram inalterados quando da reescrita do romance21.
Através do material elaborado pela Comissão, foi possível realizar um
levantamento22 em que se procurou apontar e classificar as modificações que Machado
de Assis imprimiu ao romance. Apesar de certa dificuldade em definir a natureza das
alterações, já que parte delas comportam mais de uma classificação, é possível dividi-las
em quatro grupos: as estruturais, que interferem na configuração global do romance,
pois acarretam mudanças na ordenação e no tamanho dos capítulos; as diegéticas, que
introduzem diferenças nas ações e na caracterização das personagens que compõem a
história; as lexicais, resultantes de substituições vocabulares; e as enunciativas,
ocasionadas por modificações no discurso do narrador. Todavia, antes de passar à
exemplificação de tais alterações, cumpre proceder a um breve resumo da história
protagonizada por Rubião, cujas linhas gerais não se modificaram em função da reescrita
do romance.
Em ambas as narrativas, Rubião é um ex-professor de Barbacena que recebe
uma herança do amigo, o filósofo Quincas Borba, sob a condição de cuidar de seu cão,
cujo nome é o mesmo do dono. De posse do legado, decide transferir-se para a Corte,
instalando-se em um luxuoso palacete na praia de Botafogo e assumindo a condição de
capitalista.
Deslumbrado com a nova vida, o mineiro é envolvido por pessoas
interesseiras, como Cristiano Palha, que, juntamente com a esposa, Sofia, por quem
21 Cumpre registrar que os estudiosos não conseguiram localizar os seguintes capítulos da versão em folhetim: XLIII, XLIV, XLV, XLVI, XLVII, LVIII, LIX, LX e LXI. Além disso, a contagem dos capítulos da narrativa seriada se encontra em desordem, havendo mais de um com o mesmo número.
22 Esta atividade foi desenvolvida pela proponente da presente investigação por ocasião de sua inserção, como bolsista de Iniciação Científica, no projeto Visualidade e Significação em Quincas Borba, orientado pela professora Juracy Ignez Assmann Saraiva, e realizado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
43
Rubião se apaixona, se vale do dinheiro do ex-professor, tornando-se sócio e depositário
de seus bens. Cercado por um ambiente de ociosidade e desperdício, Rubião perde sua
fortuna e enlouquece, assumindo doravante a identidade de Napoleão III, imperador da
França.
Após fugir de uma clínica onde fora internado, o herdeiro de Quincas Borba
volta a Barbacena, acompanhado do cão. Depois de vagar sem rumo pelas ruas, morre
em pleno delírio, na casa de uma ex-vizinha, cingindo uma coroa que somente ele
enxerga.
2.1.1 Diferenças estruturais
As duas versões de Quincas Borba diferem quanto à estrutura em virtude de
modificações que podem ser classificadas como:
♦ transposição, em que se verifica o deslocamento de capítulos;
♦ condensação ou resumo, em que um capítulo da primeira versão é
sintetizado na segunda;
♦ aglutinação, em que a junção de dois ou mais capítulos da primeira
versão dá origem a um capítulo da segunda;
♦ desmembramento, em que um capítulo da primeira versão é dividido em
dois ou mais capítulos na segunda;
♦ supressão, em que um capítulo da primeira versão é eliminado da
segunda;
44
♦ acréscimo, em que um capítulo que não constava na primeira versão
passa a integrar a segunda23.
A seguir, são apresentados exemplos que elucidam cada um dos processos
acima mencionados.
O caso mais significativo de transposição ocorre no deslocamento dos
capítulos XX e XXI do folhetim para I e II do livro. Se, na primeira versão, a narrativa
inicia com o filósofo Quincas Borba doente, recebendo os cuidados de Rubião em
Barbacena, na segunda, Rubião aparece sozinho, já estabelecido em seu palacete no Rio
de Janeiro, a cotejar o passado humilde com o presente próspero, resultante da herança
que recebera do amigo. Tal modificação indica a condição de protagonista que o ex-
professor de Barbacena assume na história, além de situá-lo na Corte, onde a maior
parte das ações ocorrerá. Nas primeiras cenas da versão em folhetim, em que
predomina a figura de Quincas Borba, Rubião desempenha um papel secundário, o que
leva a crer que seria o filósofo a personagem central da narrativa, como o título do
romance parece indicar. O engano só é desfeito mais adiante, em um comentário do
narrador, que explicita a pouca importância adquirida por Quincas Borba no decorrer da
história.
É interessante notar que o deslocamento acima referido resulta na mudança
da função dos capítulos XIX da primeira versão e XX da segunda, que, a princípio,
apresentam certa correspondência, uma vez que ambos mencionam, ainda que de
maneira distinta, o momento em que Rubião toma posse dos bens de Quincas Borba. O
primeiro consiste na seguinte frase: “Passemos o inventário, passemos a estrada de
23 Tal categorização é sugerida por Juracy Saraiva em estudo a que se fará menção no capítulo seguinte.
45
ferro, passemos alguns meses”24. O segundo apresenta parte da informação sonegada
na primeira versão: “Regulados os preliminares para a liquidação da herança, Rubião
tratou de vir ao Rio de Janeiro, onde se fixaria, logo que tudo estivesse acabado. Havia
que fazer em ambas as cidades; mas as coisas prometiam correr depressa”25. Na
narrativa seriada, o capítulo XIX consiste em uma elipse que prepara o leitor para o
avanço no espaço e no tempo instaurado no capítulo seguinte, já que, no capítulo XVIII,
Rubião ainda está em Barbacena, sem a posse da herança, e no capítulo XX já se
encontra instalado em Botafogo. Tal função elíptica não é necessária na versão em livro,
uma vez que o capítulo XX do folhetim corresponde ao primeiro desta.
Também os capítulos XXVII das duas versões assumem função diversa na
estrutura de cada narrativa em decorrência da transposição previamente referida. A
diferença reside na amplitude de ambos. Na versão em livro, é retomada uma analepse
que inicia no quarto capítulo do romance, quando o narrador passa a apresentar eventos
do passado ao longo de 23 capítulos. Na versão em folhetim, o recuo no tempo dura
apenas 3 capítulos (XXIV a XXVI), uma vez que o narrador havia seguido a ordem
cronológica dos acontecimentos até o capítulo XVIII. Portanto, quando, no capítulo
XXVII, o narrador afirma que “Tudo isso passava agora pela cabeça do Rubião...”, na
versão em folhetim, o termo grifado refere-se à experiência do ex-professor com Sofia,
desde o primeiro encontro na estrada de ferro até o momento presente, enquanto, na
24 ASSIS, Machado de. Quincas Borba: apêndice. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Ministério da Educação e Cultura, 1970. p.23. Como as referências extraídas da versão em folhetim de Quincas Borba serão freqüentes ao longo deste e do próximo capítulo, elas passarão a ser indicadas no corpo do texto, com o número da página seguido da designação versão A.
25 ASSIS, Machado de. Quincas Borba. 17.ed. São Paulo: Ática, 2002. p.31. O procedimento no tocante às referências extraídas da versão em folhetim será igualmente adotado em relação à versão em livro, designada como versão B. Cumpre registrar que o texto publicado pela editora Ática foi cotejado com a edição crítica da Comissão de Machado de Assis.
46
versão em livro, compreende, além do relacionamento com a esposa de Palha, os
eventos ocorridos em Barbacena.
Quanto ao processo de condensação, em que um capítulo da versão final se
converte em espécie de resumo de seu(s) equivalente(s) no folhetim, pode-se citar a
transformação dos capítulos I e III da primeira versão no quarto da narrativa em livro.
Tal ocorrência se verifica em função da eliminação de diálogos entre Rubião, o médico e
Quincas Borba, cujo teor é sumariado pelo narrador na versão final, bem como de
descrições das atitudes e pensamentos das personagens, além de um comentário
metanarrativo do enunciador, referindo-se à presença do filósofo Quincas Borba em três
ou quatro capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas e afirmando a pouca
importância que ele assumirá na narrativa que se inicia, pois logo morrerá. Tal
explicação sobre o papel secundário do filósofo torna-se desnecessária na versão em
livro, uma vez que a posição de Rubião como protagonista do romance fica evidente em
virtude da já referida transposição dos capítulos XX e XXI da narrativa seriada para a
abertura da versão em livro.
Outro exemplo significativo de condensação ocorre na passagem dos
capítulos CXLV, CXLVI, CXLVII e CXLVIII do folhetim para o CXLIII do livro. Enquanto
neste há apenas o sumário do narrador comentando o único incidente ocorrido no
passeio a cavalo de Rubião e do casal Palha, isto é, a queda de Sofia, na narrativa
seriada, há uma alternância de sumário e cena, com um diálogo entre Rubião e Sofia a
respeito do casamento da filha do Dr. Camacho com um engenheiro, Tobias Carlos
Ramalho. O mineiro afirma que, na verdade, Camacho gostaria de ter a ele como genro.
Depois, quando Sofia cai, Rubião corre em seu auxílio, mas ela o empurra e, quando
Palha pergunta se a esposa se machucara, ela responde que sim, no joelho.
Ao contrário do que ocorre no processo de condensação, a aglutinação se
caracteriza pela simples junção de dois ou mais capítulos sem que haja alterações
47
significativas. Um exemplo está na união dos capítulos XXXIII e XXXIV da primeira
versão que dá origem ao capítulo XXXV da narrativa em livro. Essa ligação se justifica
uma vez que o tema de ambos é a figura de Sofia, que tem os atributos físicos descritos
no primeiro e a procedência no segundo. Ainda como exemplo de aglutinação é possível
mencionar a junção dos capítulos LXXI e LXXII da narrativa seriada, que resultou no
capítulo LXXI da versão final. Embora o enunciado que abre o capítulo LXXII – “Ver
melhor o quê?” (p.73 – versão A) – decorra daquele que encerra o capítulo anterior –
“Deixou-se estar na cama, e fechou os olhos para ver melhor” (ibidem), a separação, na
versão em folhetim, é justificável em virtude do corte na publicação das partes, o que
não existe no romance em livro.
Em um movimento oposto ao da aglutinação, está o desmembramento, que
resulta da divisão de um capítulo da primeira versão em dois ou mais na segunda. Na
maioria dos casos, o que se verifica é que a separação acompanha a mudança no
espaço, como é o caso do desmembramento do capítulo LXIII da versão em folhetim,
que dá origem ao aos capítulos LXI e LXII do romance em livro. Naquele, Rubião está
conversando com Camacho em seu escritório, enquanto neste o mineiro já se encontra
no corredor, onde cruza com uma baronesa, cuja presença lhe causa certo impacto.
Os outros dois processos que se relacionam com as alterações de caráter
estrutural são a supressão e o acréscimo. Enquanto 34 capítulos são eliminados, a
grande maioria deles situada na segunda metade do romance, apenas nove são
adicionados, todos no início da narrativa. Alguns exemplos serão mencionados a seguir,
quando as diferenças de caráter diegético e enunciativo entre as duas narrativas são
abordadas.
48
2.1.2 Diferenças diegéticas
As mudanças na diegese são bastante numerosas, embora não interfiram nas
linhas gerais da história de Rubião, o que justifica o fato de consistirem, na maioria dos
casos, em supressões. Um exemplo seria o capítulo LXXVIII do livro que, em função da
exclusão de elementos diegéticos que faziam parte dos capítulos do folhetim a ele
correspondentes, LXXXIV e LXXXV, resume-se a, aproximadamente, a quinta parte
destes. O que não sobreviveu à versão final é o episódio da fuga do cão Quincas Borba,
em virtude da qual Rubião publica anúncios de recompensa pela restituição do animal.
Quando a gratificação aumenta para cem mil réis, um conhecido do mineiro, o major
Siqueira, que está de posse do cão, impacienta-se. Todavia, sua filha, D. Tonica, quer
conservar o cachorro consigo, pois, em sua carência e solidão, apegara-se a ele. Mesmo
assim, o major vai ao endereço do anúncio e surpreende-se ao encontrar Rubião. Conta
que tem o cão em casa e que a filha não o quer devolver, pois gosta dele. Seguindo a
sugestão do major, Rubião aparece naquela tarde em sua casa, alegando ter sabido
casualmente que Quincas Borba lá está. Narra o papel deste na herança, história da qual
o major descrê. D. Tonica, então, consente em devolver o animal, que, ao ver Rubião,
atira-se a ele cheio de saudades. Todavia, a filha do major afirma não dispensar os cem
mil réis da recompensa, mas pede que sejam entregues, em nome do próprio Rubião,
para a cera de sua madrinha, Nossa Senhora, da igreja do largo de Machado. Rubião sai
admirado com a devoção, a graça e a perspicácia de D. Tonica. Dois dias depois, manda
ao major e à filha um bilhete acompanhado de um recibo, comprovando a doação à
igreja. Siqueira fica envergonhado e vai à casa do amigo desculpar-se pelo pedido.
Rubião louva o gesto de D. Tonica e mostra ao major alguns truques que o cachorro
sabe fazer.
49
Outra ocorrência em que se verificam cortes no âmbito da diegese, relaciona-
se à personagem Cristiano Palha, que, na primeira versão, desconfia da fidelidade da
esposa, chegando a acreditar que ela mantinha um caso com Rubião. Esta situação é
retratada em quatro capítulos, resumidos a seguir:
CLIV - Sofia conta a Palha o episódio da carruagem, em que Rubião, delirando, a toma
por sua amante, referindo-se a ela como se fosse a imperatriz Eugênia. Palha diz que
esteve com Rubião e ele se encontrava em seu perfeito juízo. Desconfiado da mulher,
janta calado e mal. À noite, sai, dizendo que vai a Botafogo falar a alguém sobre um
negócio.
CLV - Palha fica imaginando que Rubião e Sofia são amantes: ouvia os carinhos de
ambos, inventava os quadros, coloria-os, dava-lhes vida. Para esquecer tais
pensamentos, vai ao teatro. Lá encontra dois comensais de Rubião, que insinuam a
loucura deste, que pensa ser Napoleão III.
CLVI - Palha volta tarde para casa e encontra a mulher em sono profundo. Ele dorme
pouco. Pela manhã, reflete e passa a achar a história de Sofia possível, caso Rubião
estivesse transtornado mentalmente. Decide, então, ir a casa dele.
CLV - Palha visita Rubião, que lhe mostra o busto de Napoleão III e, delirando, o nomeia
duque. Cristiano sente-se aliviado e, ao voltar para casa, pede desculpas à mulher e lhe
conta o encontro com os amigos de Rubião na noite anterior e a visita que acabara de
fazer ao ex-sócio.
Na seqüência de tais capítulos, há mais um que não sobrevive à versão em
livro. Nele (CLVI), o casal Palha recebe carta da prima de Sofia, Maria Benedita, datada
de Paris, anunciando que ela e o esposo, Carlos Maria, voltariam em abril, já que ele
tinha de acudir em pessoa a um negócio de bens, que estavam em perigo. Depois que
Palha sai, Sofia amarrota a carta e continua a ler o seu folhetim, de cujos personagens o
narrador transcreve a fala.
50
No episódio em que uma carta de Sofia, endereçada a Carlos Maria, chega às
mãos de Rubião por acidente, é possível perceber, além de exclusões de capítulos, uma
mudança no comportamento do mineiro, que resulta não só na diferença de sua
caracterização de uma narrativa para a outra, como também na instauração de uma
nova tensão, ausente na primeira versão. Os capítulos supressos são, resumidamente,
os seguintes:
CXVII – Rubião expõe sua dor e revolta, dizendo a Sofia que ela deveria tê-lo
desenganado. A esposa de Palha se justifica, argumentando que é uma mulher casada.
Ele, então, insinua seu possível envolvimento com Carlos Maria e declara possuir uma
carta dela endereçada ao jovem. Maria Benedita os interrompe e permanece na sala
conversando com Rubião sobre banalidades. A moça não chegara a ouvir nada, mas ele
desconfia que sim e espera, impacientemente, que ela o deixe novamente a sós com
Sofia.
CXVIII – A esposa de Palha pede que a prima toque algo ao piano e aproveita a ocasião
para garantir a Rubião que a carta é falsa, marcando um encontro com ele no dia
seguinte para comprová-lo.
CXIX – (primeira parte) No dia seguinte, Rubião leva, além da carta, um revólver de
quatro tiros para ameaçar Sofia, caso ela lhe tome o papel das mãos e não o devolva.
Sofia está ansiosa. Quando ficam a sós, Rubião avisa que não abriu a carta, tendo
apenas reconhecido a letra pelo envelope.
Na versão em folhetim (cap. CXIII), Rubião decide entregar a carta à Sofia
“com os olhos arredados, a fim de não ver o efeito; podia corar, podia empalidecer; não
queria saber de nada” (p.123 – versão A). Já na versão em livro (cap. XCIX), o mineiro
fica a imaginar as reações de Sofia ao receber a carta e ao ouvi-lo ameaçá-la, jurando
estrangular seu amante. Quando chega o momento de entregar a carta à esposa de
51
Palha, ocorre o seguinte: na versão em folhetim (cap. CXIX), Sofia confirma ser seu o
sobrescrito, embora jure não saber o que há dentro do envelope. Pede ao amigo que
conte como achou a carta, mas, mesmo com a explicação, não consegue lembrar o que
escrevera. Rubião afirma que é melhor abri-la, o que a moça sugere que ele faça. Depois
de hesitar por instantes, Rubião abre o envelope e, antes que leia a carta, Sofia recorda-
se do que se tratava: uma circular da Comissão das Alagoas. De fato, é este o conteúdo.
Sofia então censura Rubião pelo mau julgamento que fez dela, dizendo ter concluído que
ele não a estima e o manda embora. O herdeiro de Quincas Borba se descontrola,
ajoelha-se, diz que desconfiou por amor e acaba chorando. Sofia se deleita com o
espetáculo e pergunta se a desconfiança foi fruto de um boato de terceiros, o que ele
nega. No momento em que Rubião está de saída, chega a baronesa que ele vira, certa
vez, indo ao gabinete de Camacho. Sofia os apresenta e se despede de Rubião. Por
outro lado, na versão em livro (cap. CIV), ao receber o envelope, Sofia, pálida ao ver o
nome de Carlos Maria, pergunta o que aquela carta queria dizer. Rubião alega que a
letra é dela, o que Sofia confirma, mas indaga: “que diria eu aqui dentro? Quem lhe deu
isto?” (p.122 – versão B) O mineiro, pensando já ter escutado o bastante, corteja-a para
sair. Sofia então pede que Rubião leia a carta, mas ele não aceita e vai embora.
No folhetim, Rubião se mostra submisso à paixão, pois perde o controle,
chegando a ajoelhar-se e chorar diante de Sofia. É licito lembrar que tal comportamento
do protagonista está em consonância com as narrativas românticas, caracterizadas por
um sentimentalismo muitas vezes exacerbado, que faziam sucesso ao serem publicadas
nos jornais da época. Na versão em livro, Rubião age de forma intempestiva, pois não
permite que Sofia abra o envelope diante de si, o que impede que se dissipe a
desconfiança que ele tem no tocante à natureza do relacionamento da esposa de Palha
com o sedutor Carlos Maria.
52
Cumpre ressaltar ainda que, na narrativa seriada, a tensão em torno da carta
se restringe aos capítulos supressos, em função da expectativa resultante do adiamento,
para o dia seguinte, da abertura do envelope, recurso que funciona muito bem em um
romance publicado em partes, em que o leitor deve esperar ansiosamente pela
continuação da história. Isso acaba ocorrendo, uma vez que a narrativa é interrompida
quando Rubião retira a carta do bolso e, antes de a entregar à dona, verifica se trouxera
o revólver. O mesmo não se dá na versão em livro, na qual a tensão fica por conta da
recusa de Rubião em abrir o envelope, deixando Sofia temerosa em relação ao que ele
possa pensar ou fazer, caso acredite tratar-se de uma correspondência comprometedora
entre ela e Carlos Maria (Cap. CV).
Embora em menor número, também é possível constatar acréscimos no
âmbito da diegese. Um exemplo significativo ocorre no capítulo VI do livro, no qual
Quincas Borba explica a filosofia por ele desenvolvida: o Humanitismo. Talvez a
explicação não figurasse na versão em folhetim por já ter aparecido em Memórias
Póstumas de Brás Cubas, romance que precedera Quincas Borba e que conta com o
filósofo a afirmar que o Humanitismo constitui não só uma filosofia, mas também uma
religião, e a esclarecer alguns pontos de sua doutrina. Todavia, Machado de Assis, ao
reescrever o romance protagonizado por Rubião, percebe a necessidade de retomá-la e
ampliá-la, na versão em livro, em função de sua importância no decorrer da narrativa.
Assim, é em conversa com o mineiro que Quincas Borba afirma que humanitas seria o
princípio universal e indestrutível, substância recôndita e idêntica presente em todas as
coisas e que, portanto, nem pela morte é eliminado. Para demonstrar sua doutrina,
Quincas Borba lança mão de uma alegoria: duas tribos famintas encontram um campo
de batatas, suficiente para alimentar apenas uma delas. Uma extermina a outra e
recolhe os despojos, garantindo a perpetuação de humanitas. Neste caso, a guerra
representou a conservação, enquanto a paz teria sido a destruição. O filósofo arremata
53
com a máxima “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas” (p.19 – versão
B).
Cumpre ressaltar também o acréscimo dos capítulos LXXXI e LXXXII. No
primeiro, o narrador apresenta os pensamentos de Rubião, que sonha com um
casamento luxuoso e enxerga carruagens, convidados de alta estirpe, nobres e políticos,
uma cerimônia, uma ceia e um baile esplêndidos e pomposos. No segundo, o enunciador
compara os sonhos do mineiro aos feitiços de Próspero e descreve sua fascinação pela
nobiliarquia, cujos títulos honoríficos transcreve como se assinasse o próprio nome.
Rubião se imagina casando com noivas tutelares, mas nelas vê o rosto de Sofia. O
enunciador afirma que o relacionamento do protagonista do romance com a esposa do
ex-sócio é instável, variando segundo o humor dela. A cada dia, a idéia de casar parece
mais acertada a Rubião, cujo espírito “pairava sobre o abismo” (p.101 – versão B).
Através de tais capítulos, em que a interioridade de Rubião se expõe, é retratado o início
de sua gradativa loucura, esta que, mais adiante, culminará com a adoção da identidade
de Napoleão III. Na primeira versão, essa fase intermediária não existe, uma vez que a
sandice de Rubião se manifesta com ele, já em delírio, acreditando ser o imperador da
França.
2.1.3 Diferenças lexicais
Com relação às alterações de nível lexical, é possível verificar a ocorrência da
substituição vocabular em grande parte dos capítulos. Um exemplo seria a troca do
vocábulo “idéia”, que aparece em demasia na versão em folhetim, por substantivos de
significado mais restrito, como “pensamento”, “lembrança”, “observação”, “suspeita”,
“convicção”, “possibilidade”, entre outros. Com a palavra “coisa(s)” se dá o mesmo: “a
menor coisa”, cede lugar a “o menor dito”; “coisas de negócio” a “apertos de
54
negócio”; “o mecanismo da coisa” a ”o mecanismo da operação”; "coisas agradáveis”
a “palavras agradáveis”; “outra coisa” a “outro assunto”, etc.
Há casos em que a função da substituição consiste em trocar termos
franceses por equivalentes em português, como “petit-pois” (cap.CXXXII – versão A) por
“ervilhas” (cap. CXXXII – versão B) e “monsieur” (cap. CXLVIII – versão A) por “senhor”
(cap. CXLVI – versão B). A opção pelo emprego de vocábulos franceses na primeira
versão se justifica em função da grande penetração que o idioma obteve em nosso país
durante a segunda metade do século XIX, principalmente através dos jornais que
publicavam, em sua língua original, os romances que obtiveram sucesso nas terras de
Napoleão. Além disso, a capital francesa vivia seu apogeu cultural, influenciando as artes
e a moda no mundo ocidental.
A permuta de vocábulos também se verifica entre sinônimos, como “ilhados”
(cap. CLIII [1] – versão A) por “insulados” (cap. CLII – versão B), “verter lágrimas”
(cap. CLII – versão A) por “chorar lágrimas” (cap. CLII – versão B), “arrumar” (cap.
CLXXIII – versão A) por “arranjar” (cap. CLXXV – versão B), “afeição” (CXCIII – versão
A) por “amizade” (cap. CXCII – versão B). Já no exemplo a seguir, há uma mudança de
sentido: no folhetim (cap. XCV), após Rubião ter matado várias formigas que se
enfileiravam no peitoril da janela, começou a cantar “um passarinho, com tal melodia
e graça”, que fez o mineiro parar de abotoar o colete, pois tinha a impressão de que o
canto entoava o nome de Sofia. No livro (cap. XC), os termos acima grifados são
substituídos por “cigarra” “propriedade” e “significação”. Enquanto os adjetivos
introduzem um tom irônico ao enunciado, pois consistem em atributos que parecem não
combinar com o simples canto de um animal, a opção pela cigarra remete à fábula de La
Fontaine, estabelecendo um paralelo também irônico entre ela e Rubião, que leva a vida
de forma displicente, sem se preocupar com o futuro, a exemplo da cigarra da história,
55
que se divertia enquanto as formigas trabalhavam para ter provisões quando o inverno
chegasse. Assim, na fábula, por não ter se precavido, quem acaba morrendo é a cigarra,
ao contrário do que ocorre na janela de Rubião26.
Ainda no tocante às substituições lexicais, a que mais se destaca é a
mudança do tom do pêlo do cão, que, na primeira versão (cap. IV), é “cor de café” e, na
segunda (cap. V), passa para “cor de chumbo”. Ao associar o pelo do animal ao chumbo,
Machado de Assis parece se valer da carga simbólica atribuída a esse elemento: ele
representaria a matéria impregnada de força espiritual e a possibilidade das
transmutações das propriedades de um corpo nas de um outro, assim como das
propriedades gerais da matéria em qualidades do espírito. Simbolizaria, assim, a base
mais modesta de uma possível evolução ascendente27. Com isso, confirma-se a sugestão
de que a alma do filósofo Quincas Borba teria sido transmutada para o corpo do cão,
como muitas vezes é sugerido no decorrer da narrativa. Na seguinte passagem, a idéia é
referida claramente:
ocorreu-lhe [a Rubião] que os dois Quincas Borba podiam ser a mesma criatura, por efeito da entrada da alma do defunto no corpo do cachorro, menos a purgar os seus pecados que a vigiar o dono. Foi uma preta de São João d’El-Rei que lhe meteu, em criança, essa idéia de transmigração. Dizia ela que a alma cheia de pecados ia para o corpo de um bruto; chegou a jurar que conhecera um escrivão que acabou feito gambá... (Cap. XLVIII – folhetim, p. 46 e livro, p.60).
Por último, cumpre registrar ainda a alteração do nome do protagonista: de
Rubião José de Castro para Pedro Rubião de Alvarenga. Essa mudança é analisada por
John Gledson – em estudo a que se fará referência no capítulo seguinte – que procura
26 Na versão em livro, há ainda o acréscimo do seguinte enunciado: “Pobres formigas! Ide agora ao vosso Homero gaulês, que vos pague a fama; a cigarra é que se ri, emendando o texto: Vous marchiez? J’en suis fort aise. Eh bien! Mourez maintenant” (p.109). 27 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 14.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. p.235.
56
justificá-la em função da semelhança com o nome do imperador brasileiro, Pedro de
Alcântara.
2.1.4 Diferenças enunciativas
Além das inúmeras diferenças lexicais, parte das quais foram mencionadas
acima, também abundam as modificações de caráter enunciativo entre as duas versões
de Quincas Borba. Verificam-se alterações de natureza sintática, como inversões,
passagem da voz ativa para a passiva, além da mudança de alguns tempos verbais.
Todavia, existem modificações que interferem de forma mais incisiva na configuração da
narrativa. Entre elas, cumpre ressaltar a adoção mais freqüente do discurso indireto
livre, que, embora já estivesse presente na primeira versão, sobressai na segunda.
Dessa forma, trechos em que predominava a voz do narrador passam a apresentar uma
simbiose entre esta e a voz da personagem, construindo um discurso polifônico e, por
vezes, ambíguo. Veja-se o seguinte excerto, extraído do décimo capítulo da primeira
versão:
Nesse mesmo instante, entrou-lhe o médico em casa. Rubião só deu por ele, quando já o tinha diante de si. Ergueu-se fazendo um gesto para esconder a carta, mas o médico foi direto ao assunto. — Já sei que recebeu notícias do nosso homem. — Recebi, respondeu Rubião. — É essa a carta? (p.17 – versão A).
Se aqui o narrador se limita a descrever a cena para, posteriormente, ceder a
palavra à personagem, através do discurso direto, na segunda versão (cap. X), ele
integra a fala do médico à sua: “ [Rubião] Estava ainda com a carta aberta nas mãos,
quando viu aparecer o doutor, que vinha por notícias do enfermo; o agente do correio
dissera-lhe haver chegado uma carta. Era aquela? (p.24 – versão B)”
57
Da mesma forma, no capítulo XXV do folhetim, figura o seguinte enunciado,
em que o narrador descreve o pensamento do protagonista, quando em visita aos novos
amigos, Palha e Sofia: “(...) [Rubião] não podia passar melhor as horas, não se
recordava sequer de as haver tido tão excelsas, tão novas” (p.28 – versão A). Já na
versão final (cap. XXIV), em vez de referir o que passa pela mente de Rubião, o
enunciador faz emergir, no seu discurso, a voz da personagem a se perguntar: ”Onde
acharia iguais horas?” (p.35 – versão B) .
Outra modificação importante em relação à enunciação consiste na passagem
da onisciência do narrador, predominante em boa parte da primeira versão, para a
onisciência seletiva, na versão em livro, através da qual o enunciador procura aderir ao
ângulo subjetivo das personagens. Esse procedimento é verificável na comparação entre
o vigésimo capítulo da versão em folhetim e o seu correspondente, que se transforma
em primeiro na versão final. Na narrativa seriada, através de descrições, o narrador
nomeia elementos do espaço, reproduz a avaliação da personagem diante deles e avalia
sua atitude, enquanto, no livro, as descrições desaparecem e os objetos nomeados
funcionam como uma extensão da visão do protagonista, figurando como metonímia
deste. Um exemplo mais simples dessa alteração se verifica através de dois breves
enunciados correspondentes, situados nos capítulos XXIV do folhetim e XXI do livro. Na
primeira versão, é a visão do narrador que se manifesta ao descrever a viagem de trem
a Vassouras, na qual Rubião encontra seus futuros amigos, o casal Palha: “Pouca gente
no carro; e toda ela carrancuda ou aborrecida. Rubião era o único rosto alegre e plácido”
(p.26 – versão A). Já na segunda, a percepção do contraste entre a fisionomia do
protagonista e a dos demais passageiros é atribuída a Palha: "Depois que o trem
continuou a andar, foi que o Palha reparou na pessoa do Rubião, cujo rosto, entre tanta
gente carrancuda ou aborrecida, era o único plácido e satisfeito” (p.31 – versão B).
58
A mudança do sumário, em que o narrador resume os acontecimentos, para
a cena, em que as personagens se manifestam diretamente, também ocorre. No capítulo
CXVI da primeira versão, a conversa entre Rubião e Sofia é assim referida pelo
enunciador:
Sofia pedia-lhe com o gesto que se calasse, e olhava de quando em quando para a porta; mas Rubião, embriagado da própria audácia, dizia tudo que até agora retivera. Provavelmente, não haveria medo de ninguém, nem de Maria Benedita, nem de algum escravo, nem do próprio marido (p.126 – versão A).
Na versão em livro (cap. CIII), a intervenção do narrador diminui:
— Cale-se, vem gente –, interrompeu Sofia, erguendo-se também e olhando para o lado da porta.
Não vinha ninguém; entretanto, podiam ouvi-lo, porque a voz do Rubião ia aquecendo e crescendo. Cresceu ainda mais. Não pleiteava esperanças; abria e despejava a alma.
— Não me importa que ouçam –, bradou ele –; podem ouvir-me; agora digo tudo, a senhora bota-me para fora e tudo acaba. Não, não se pode fazer sofrer assim um homem...
— Cale-se, pelo amor de Deus! — Qual Deus! Ouça-me o resto, porque eu estou disposto a não
guardar nada... (p.121 – versão B)
Essa alteração parece trazer maior intensidade à narrativa, bem como elevar
a importância do diálogo travado entre as personagens, caracterizado por certa tensão,
além de diminuir a distância entre elas e o leitor.
Ainda no âmbito do discurso, são freqüentes as substituições, condensações
e supressões de enunciados. Quanto às primeiras, no capítulo CXCIII do folhetim, por
exemplo, tem-se: “[D. Tonica] ficou com os olhos tão vermelhos, que o sol, no dia
seguinte, ao vê-la no quintal, não pôde distinguir se era efeito de angústia ou
conjuntivite”(p.238 – versão A). No livro (cap. CXCII), a metáfora em negrito é
substituída pela simples afirmação: “pareciam doentes” (p.209 – versão B). A opção por
enunciados mais breves, mas não menos significativos, é verificável também através do
processo de condensação, a que foram submetidos alguns trechos. No capítulo XXIV do
folhetim a despedida de Rubião e seus novos amigos é descrita da seguinte forma:
59
“Vieram assim falando até a estação da Corte, satisfeitos um do outro, quase familiares.
O casal Palha ofereceu ao ex-professor a sua casa de Santa Tereza; este disse-lhe que ia
para a Hospedaria União, e prometeram visitar-se” (p.27 – versão A). Na versão em livro
(cap. XXII), ela é expressa de modo mais simplificado e direto, conservando, todavia, o
mesmo sentido: “Chegados à estação da Corte, despediram-se quase familiarmente:
Palha ofereceu a sua casa em Santa Teresa; o ex-professor ia para a Hospedaria União,
e prometeram visitar-se” (p.34 – versão B).
Quanto às supressões, seguem alguns exemplos em que o que está em
negrito foi excluído da versão em livro:
Via na imaginação o cadáver do Quincas Borba, pálido, horrendo, fitando nele um olhar de ameaça, ou, mais exatamente, abrindo-lhe dois óculos para a eternidade, pelos quais via o julgamento e o castigo. Rubião era temente a Deus, e a ação pareceu-lhe tão imoral que ele resolveu, se acaso o fatal desfecho se desse em viagem, abrir mão do que o outro lhe tivesse deixado em testamento [expressão substituída, no livro, por legado]. Só assim pôde passar tranqüilo a segunda noite (cap. VII – versão A, p.14-15; cap. IX – versão B, p.22).
Há também enunciados excluídos totalmente, em virtude da pouca
importância que assumem dentro da narrativa, como este: “[Rubião] Tinha ordenado
agora que o soltassem [o cão] para guardar a casa, e também para ver se ele não gania,
às noites como de costume, para dormir fechado. Dormia fechado para não fugir” (Cap.
XLVIII, p.46 – versão A). É interessante verificar também a supressão da descrição física
de Maria Benedita, talvez para aguçar a imaginação do leitor a compô-la, através das
ações e do comportamento da jovem: “Altinha, mãos grandes, grandes olhos atônitos
quando escutavam somente, mas que sabiam rir e conversar, se a boca falava também,
– aí fica o principal das feições da moça” (Cap. LXIV, p.61 – versão A).
É possível constatar ainda supressões de comentários e intervenções do
enunciador. Um exemplo figura no capítulo XC da primeira versão, em que o narrador,
60
dirigindo-se aos seus interlocutores, antecipa o que virá no capítulo seguinte: “(...) deixai
que vos conte onde é que ele [Rubião] tornou a entrar no tílburi, para onde foi e o que
fez” (p.101 – versão A). A eliminação desse tipo de enunciado se justifica uma vez que é
característico da narrativa folhetinesca e assume a função de estimular o leitor a
imaginar o que será revelado no próximo fascículo, estratégia desnecessária na versão
em livro.
Também no capítulo CLIX da primeira versão figuram vários comentários do
narrador que não permanecem na versão em livro. Em um deles, o enunciador afirma
que Sofia sente ódio da prima, Maria Benedita, chegando a profanar a maternidade da
jovem, mas recua, talvez impulsionada por outro sentimento. Após introduzir o provável
questionamento do interlocutor (“Que sentimento?”), faz a seguinte sugestão: “Cosei o
gosto da vingança ao impulso da curiosidade, e tereis alguma solução explicativa. Sim,
podia levar-lhe o desespero à alma, – ou, pelo menos, a desilusão de uma felicidade que
devia parecer-lhe eterna e única” (p.198 – versão A).
Essas exclusões de comentários e explicações do narrador dirigidas ao seu
interlocutor interessam sobremodo à presente investigação, uma vez que sinalizam para
a modificação na concepção dos destinatários textuais de uma versão para a outra. É,
portanto, especialmente através desse tipo de eliminação que se pretende proceder à
análise dos leitores textuais de ambas as narrativas, a fim de relacioná-los com os
leitores reais aos quais elas se dirigem.
Dessa forma, a fim de comprovar a hipótese de que o perfil do leitor real,
enquanto público consumidor, orienta a configuração dos leitores textuais, faz-se
necessário delimitar os conceitos que consistirão na base da análise proposta. Entre eles,
assumem relevância as noções de narratário, leitor real e leitor implícito.
61
2.2 As três faces do leitor: narratário, leitor real e leitor implícito
O narratário é aquele que recebe a mensagem do narrador, colocando-se no
mesmo nível diegético deste28. Assim como o enunciador, é um “ser de papel”29, não
podendo, portanto, ser confundido com o leitor “de carne e osso” (LAJOLO; ZILBERMAN,
op. cit, p.17) da narrativa, o leitor real ou empírico, que pode conhecer mais que o
narratário, ficar aquém dos conhecimentos atribuídos a ele ou deter uma competência
narrativa idêntica à sua. Portanto, o narratário é a entidade ficcional a quem se dirige o
texto e cuja existência está condicionada única e exclusivamente por este, o que não
anula, todavia, a estreita relação que o interlocutor textual mantém com o leitor real,
uma vez que procura representá-lo.
Segundo Gerald Prince30, o narratário pode assumir determinadas funções
dentro da narrativa. Entre elas, a de constituir um elo de ligação entre narrador e leitor
(real), ajudar a precisar o enquadramento da narração, caracterizar o narrador, destacar
certos temas, fazer avançar a intriga, tornar-se porta-voz da obra. Entretanto, a função
que cabe ao narratário depende do grau de envolvimento dele nos eventos recontados
em uma narrativa. Portanto, para Prince31, assim como os narradores, os narratários
também podem ser classificados de acordo com seu grau de inserção na história. Dessa
forma, o teórico propõe uma tipologia32 que abrange as seguintes modalidades:
28 GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Lisboa: Vega, s/d. p.258.
29 BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: Análise estrutural da narrativa: pesquisas semiológicas. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 46.
30 PRINCE, Gerald. On readers and listeners in narrative. Neophilologus, LV(2):117-22, 1971a.
31 _____. Notes toward a categorization of fictional “narratees”. Genre, IV(1):100-6, 1971b.
32 Uma vez que Prince não nomeia as categorias por ele estabelecidas, aqui se procurou fazê-lo, a fim de melhor defini-las, levando em consideração as características apontadas pelo teórico no tocante a cada uma delas.
62
♦ narratário-personagem espectador: o narrador dirige-se a um ou mais
personagens que podem ou não conhecê-lo bem como as pessoas que apresenta, mas
que não têm conhecimento dos eventos narrados e não se envolvem neles.
♦ narratário-personagem ator: o narrador dirige-se a um ou mais
personagens que conhecem muitos dos incidentes recontados pelo narrador e que
participaram de, pelo menos, alguns deles.
♦ narratário-narrador: o narrador é seu próprio narratário, uma vez que não
direciona sua atenção para outrem, mas para si mesmo, o que ocorre nos chamados
diários romanescos.
♦ narratário oculto: o narrador parece não se dirigir a quem quer que seja,
isto é, não há marcas concretas da presença de um narratário, pois este não é invocado
em momento algum. Aguiar e Silva chega a afirmar que, nesse tipo de narrativa, a figura
do narratário pode não existir, “pois nenhuma regra ou convenção obriga o ‘eu’ que
narra a endereçar o seu discurso a um ‘tu’ intratextualmente construído e particularizado
como entidade ficcional”33. Todavia, aqui se adotará o que postula Gerald Prince:
“sempre que um narrador fornece detalhes que podem ser conhecidos ou não pelas
personagens, tais sinais são transmitidos para um potencial receptor e indicam o lugar
que ele ocupa na narrativa”34.
♦ narratário interpelado: embora nenhuma personagem constitua uma
audiência ao narrador, ele se refere mais ou menos freqüentemente a um ou mais
narratários anônimos, que não conhecem o narrador ou os protagonistas de sua história
e não participam dos eventos recontados. Graças às referências feitas a eles, no
33 SILVA, Vítor Manuel Aguiar e. Teoria da literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina, 1990. p. 699.
34 PRINCE, 1971a, p.120. Tradução nossa.
63
entanto, é fácil delinear seus retratos e saber o que o narrador pensa deles. É o caso de
Quincas Borba.
Por outro lado, o leitor implícito, termo cunhado por Wolfgang Iser, decorre
da concepção, referida no capítulo precedente, de que o texto literário apresenta uma
estrutura lacunar que estimula a resposta estética e faz com que a indeterminação seja
a pré-condição para a participação do leitor. Assim, configura-se como a entidade que
materializa o conjunto das pré-orientações que um texto ficcional oferece, como condições de recepção, a seus leitores possíveis. Em conseqüência, o leitor implícito não se funda em um substrato empírico, mas sim na estrutura do texto. [...] A concepção do leitor implícito designa então uma estrutura do texto que antecipa a presença do receptor35.
Através de tal definição, Iser deixa claro que o leitor implícito não pode ser
igualado ao leitor empírico, uma vez que este, como já se definiu anteriormente, é o
leitor de carne e osso, “indivíduo habilitado à leitura, com preferências demarcadas,
figura que o escritor busca seduzir, lançando mão de técnicas e artifícios contabilizados
pela crítica e história da literatura” (LAJOLO; ZILBERMAN, op. cit., p.9).
Se o leitor implícito não pode ser confundido com o leitor empírico, também
não pode ser associado ao narratário – que, como já se definiu, é o destinatário a quem
se dirige o narrador e que, como este, tem existência puramente textual. Acrescente-se
o que postula Umberto Eco, que também se refere, de certa forma, ao leitor implícito,
todavia empregando a terminologia leitor-modelo. Este, conforme Eco, “constitui um
conjunto de condições de êxito, textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas
para que um texto seja plenamente atualizado no seu conteúdo potencial”36. Assim,
embora sejam duas figuras textuais, leitor implícito/modelo e narratário diferem um do
35 ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: 34, 1996. v.1. p.73.
36 ECO, Umberto. Lector in fabula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos. São Paulo: Perspectiva, 1986. p.45.
64
outro: o primeiro não é um ser fictício a quem o narrador se dirige, como é o caso do
segundo, mas sim uma combinação das habilidades necessárias para a construção de
sentido do texto, as quais o narratário não necessita dominar. Tal ocorrência é
verificável na versão final de Quincas Borba, uma vez que é possível perceber que a
imagem do leitor implícito da narrativa não confere com a do narratário. As habilidades
exigidas daquele não pressupõem a existência de um narrador a aconselhá-lo e a moldar
sua opinião, uma vez que teria plenas condições de captar integralmente a mensagem
que lhe é dirigida sem a interferência ostensiva do enunciador.
Se, como exposto acima, narratário, leitor empírico e leitor implícito são três
faces distintas do um mesmo campo, o da recepção, não se pode negar, todavia, que
elas são interdependentes. Como afirmam Marisa Lajolo e Regina Zilberman (LAJOLO,
ZILBERMAN, op. cit, p.17), “o leitor empírico, destinatário virtual de toda a criação
literária, é também diretamente ou indiretamente introjetado na obra que a ele se
dirige.” Conseqüentemente, o narratário é uma construção que representa o leitor real,
que pode ou não com ele se identificar. Da mesma forma, o leitor implícito consiste na
projeção das habilidades que o autor espera poder despertar no leitor real para que ele
tenha condições de captar a mensagem veiculada no texto.
65
3 QUINCAS BORBA, DO FOLHETIM PARA O LIVRO: UM NOVO LEITOR
A reimpressão do texto de A Estação em Quincas Borba: apêndice suscitou o
interesse de estudiosos, que se propuseram a analisar as alterações a que Machado de
Assis procedera ao reescrever a narrativa protagonizada por Rubião. Assim, antes de
principiar a investigação proposta, cumpre fazer referência a esses estudos, que
focalizam e justificam diferentes aspectos do processo ao qual o autor de Quincas Borba
submeteu o romance.
O primeiro estudo dedicado ao confronto entre as duas versões de Quincas Borba
foi realizado por Augusto Meyer, em Quincas Borba em variantes37. O crítico procura
atentar para o que chama de “intuição cirúrgica” revelada por Machado de Assis ao
reescrever a narrativa. Assim, para Meyer, a segunda versão seria o resultado da
consciência autocrítica do autor, que prima pela concisão a serviço da intensidade, que
prefere sugerir a explicar, deixando ao leitor o prazer ou a ilusão de colaborar com ele,
além de optar pelo descarte do excesso de alusões ou citações eruditas. Embora
reconheça o mérito da versão final do romance, o estudioso lamenta o excesso de rigor
machadiano, que, ao extinguir determinadas passagens da narrativa primeira, privou os
leitores de algumas demonstrações de sua intuição criadora.
37 MEYER, Augusto. Quincas Borba em variantes. In: BARBOSA, João Alexandre (org.). Textos críticos: Augusto Meyer. São Paulo: Perspectiva, 1986. p.339-353. O texto foi lançado originalmente em A chave e a máscara, volume publicado em 1964.
66
John Gledson, em Machado de Assis: Ficção e História, no capítulo dedicado ao
sexto romance machadiano38, procura apresentar algumas justificativas para as
alterações quando da reescrita de Quincas Borba. Detendo-se principalmente nas
supressões e acréscimos, o estudioso as relaciona com o aspecto político do romance,
apontando como causa básica delas a natureza da sociedade brasileira e seu
desenvolvimento histórico. Segundo Gledson, Machado procura fazer de Rubião
personagem representativo da incoerência e do conflito de uma sociedade inteira, bem
como do seu distanciamento da realidade.
Assim, para o estudioso, a loucura da personagem seria uma expressão do
sentido histórico do Brasil. Todavia, na versão em folhetim, a identificação do herdeiro
de Quincas Borba seria com a nação brasileira em um sentido mais lato, enquanto no
livro estaria restrita à caracterização do Império, que, como o protagonista do romance,
dividido entre os impulsos contraditórios do conservadorismo e do progresso, consegue
o que pensa ser uma vitória, mas, na aparente harmonia, revelam-se as forças
conflitantes que o conduzirão, em última instância, à derrota. Essa mudança é justificada
por Gledson principalmente em função da modificação do nome do protagonista: de
Rubião José de Castro, na primeira versão, para Pedro Rubião de Alvarenga. O estudioso
afirma que o segundo nome se aproxima de Pedro de Alcântara, alcunha do imperador
brasileiro. Além disso, menciona a aproximação com o imperador francês Napoleão III,
de quem Rubião assume a identidade ao enlouquecer: para Gledson, Machado estaria
traçando um paralelo entre a queda do último Império da Europa e uma crise
fundamental no último Império da América.
38 GLEDSON, John. Quincas Borba. In: _____. Machado de Assis: Ficção e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p.58-113.
67
Ainda no que concerne ao nome do protagonista, Gledson o associa ao boom do
café, de meados do século XIX, em função da semelhança com o nome latino do gênero
ao qual pertence a planta do café, rubiaceae. Para o estudioso, Rubião, assim como o
Brasil, enriquecera subitamente e desperdiçara a fortuna deixando-se esbulhar por
capitalistas cujos verdadeiros interesses estão no Exterior.
Gledson salienta também que, na primeira versão, Machado parecia estar mais
interessado nas motivações e nos conflitos de Rubião, apresentando a personagem mais
ambiciosa e calculista. Na segunda, o autor estaria menos preocupado com a questão da
moralidade de Rubião, delegando ao leitor o julgamento do egoísmo e das temporárias
crises de consciência do protagonista, uma vez que não fornece explicação de quase
nada: dá por explicada a doença e focaliza seus sintomas. Para Gledson, é possível
identificar uma mudança que partiria da tentativa de realismo psicológico até chegar à
sátira.
Por fim, Gledson afirma que, em nível de técnica narrativa, a adoção de uma
relação agressiva com o leitor torna a ficção machadiana capaz de operar em dois níveis:
o comum, entendido pelo leitor e ajustável às normas da ficção realista, e o oculto, que
desafia os leitores à descoberta, embora o estudioso acredite que a maior parte deles
não seja capaz disso39.
Ler e reescrever Quincas Borba40 reúne ensaios escritos por alunos do Programa
de Pós-graduação em Letras da UERJ, decorrentes de seminários dedicados ao estudo
39 Em seu texto, Gledson menciona outro estudo centrado na reescrita de Quincas Borba, mas pouco conhecido no Brasil. Trata-se de Machado de Assis, to believe or not to believe, artigo de John Kinnear, que, conforme atesta Gledson, procura demonstrar certo movimento consciente em direção a não-confiabilidade do narrador, revelando a propensão para desconfiar do realismo e das atitudes ingenuamente realistas dos leitores perante a ficção.
40 BARBIERI, Ivo (org.). Ler e reercrever Quincas Borba. Rio de Janeiro: UERJ, 2003.
68
de Quincas Borba. Os textos procuram apresentar diferentes justificativas para as
alterações resultantes da reescrita do romance.
Em As metamorfoses na estrutura narrativa entre as versões A e B, Leopoldo O.
C. de Oliveira apresenta como hipótese para as alterações no romance um impasse no
processo criativo romanesco de Machado de Assis, após a publicação de Memórias
Póstumas de Brás Cubas. O escritor teria se deparado com o desafio de lançar algo que,
se não fosse inteiramente novo, pelo menos apresentasse algo diferente, conservando e
consolidando, ao mesmo tempo, as conquistas temáticas e formais maturadas na obra
anterior. Após referir de maneira genérica os tipos de mudança verificadas de uma
versão para outra, Oliveira focaliza os dois pontos que lhe parecem cruciais tanto para
estabelecer as diferenças entre as duas versões de Quincas Borba, bem como deste e
Memórias Póstumas de Brás Cubas: o tratamento dado ao narrador e a própria natureza
dos fatos.
Oliveira sugere que, especialmente na segunda versão de Quincas Borba,
Machado de Assis encontra um meio termo entre a fragmentação de Memórias Póstumas
de Brás Cubas e convencionalismo predominante na estrutura romanesca. Nessa forma
renovada, o uso do discurso indireto livre, menos freqüente na primeira versão, e a
franquia ocasional da voz narrativa heterodiegética para uma homodiegética, bem como
as bem dosadas (ao contrário da versão em folhetim) intervenções
opinativas/digressivas do narrador, funcionam tanto como muro de contenção para a
coesão narrativa quanto como válvula de escape para suas tensões e impasses.
Em O narrador cético na segunda versão, Elisa Serpa procura demonstrar que,
enquanto na primeira versão o leitor é bem amparado pelo narrador, na segunda este já
não atua como um guia para aquele, mas prepara-lhe armadilhas, uma vez que o espaço
69
das indagações, das ambigüidades, da dúvida aumentou, tornando os significados mais
complexos. Segundo Serpa, a narrativa torna-se dubidativa pela recusa do narrador à
onisciência e pela sua conseqüente aproximação da personagem que não sabe. Quando
suas intenções não são explicitadas, o narrador, ao contrário do que ocorre na primeira
versão, insinua mais do que diz, alertando o leitor de que há mais a interpretar do que
aquilo a que ele está efetivamente acostumado, o que implicaria maior elaboração do
discurso e demanda de um leitor mais investigativo.
Em Quincas Borba, variante prenhe de questões, Carlos Tadeu de Andrade Galvão
afirma que o cotejo das variantes do romance protagonizado por Rubião proporciona a
reflexão sobre uma série de questões relativas à elaboração da narrativa, entre as quais
figura o destaque mais acentuado que a segunda versão delega à função do leitor,
enquanto sujeito que ativa e atualiza as potencialidades de um texto, por si só,
preguiçoso e inacabado. Como justificativa para tal afirmação, após assinalar o paralelo
entre a morte de uma das personagens, que possivelmente intitula o romance, embora
não o protagonize, o cão Quincas Borba (o outro seria o filósofo), e o fim da narrativa,
Galvão se detém na redução da inserção do animal na história da edição de base, que
consistiria em um dos artifícios de que Machado lança mão para não dizer mais do que
deve, deixando espaços a serem preenchidos no ato da leitura.
Suzimar Rioja, em Quincas Borba: embrião de uma moderna teoria da leitura,
procura mostrar que a narrativa da primeira versão apresenta como características
principais a linearidade, a redundância e o controle por parte do narrador, enquanto a
narrativa da segunda versão se caracteriza por elementos que demonstram concisão,
tensão e liberdade de imaginação por parte do leitor. Segundo a ensaísta, o narrador do
romance em livro, mais comedido do que o do folhetim, prefere sugerir a elucidar,
delegando ao leitor a tarefa de desvendar o caráter das personagens.
70
Segundo Rioja, a reescrita de Quincas Borba permite identificar uma
transformação formal, estilística e de parte do conteúdo, pois a mudança da focalização
e a conseqüente fragmentação do discurso promoveram um efeito estético capaz de
instituir uma consciência receptora distinta. Assim, parte da narrativa tornou-se
“submersa”, implicando novo leitor, uma vez que o texto vai se compondo a várias
mãos, atitude prenunciadora do que viria a se converter na base das modernas teorias
de leitura, que evidenciaram como o estatuto estético da obra literária demanda a
contribuição do destinatário, que não deve se contentar apenas em descobrir a
significação presente na obra literária, mas elaborá-la.
Em Rubião: um excêntrico entre a província e a Corte, Isabel Virgínia de
Alencar Pires aproxima o trabalho de reconstrução da narrativa Quincas Borba realizado
por Machado de Assis à técnica cinematográfica, com seus cortes, emendas, e
montagens, antecipando, na literatura, a revolução que o cinematógrafo viria a provocar
no final do século XIX. Para a estudiosa, tais procedimentos fizeram com que o foco, na
versão em livro, fosse “fechado” sobre a figura de Rubião, tanto em função da
eliminação de passagens que não possuíam relação direta com o protagonista, quanto
dos acréscimos que cumpririam a função de “lançar luzes sobre” ele. Todavia, Pires
adverte que, embora haja maior incidência de luz sobre a personagem, seu efeito seria o
de, conferindo maior visibilidade a Rubião, chamar a atenção para o seu lado obscuro e
indecifrável.
Assim como os ensaios reunidos por Barbieri, A autocrítica como mediadora
do processo de reescrita em Quincas Borba41, de Juracy A. Saraiva, também focaliza as
41 SARAIVA, Juracy A. A autocrítica como mediadora do processo de reescrita em Quincas Borba. Organon: revista do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v.17, p.37-44, dez. 2003.
71
Figura 1: Quincas Borba: visualização da organização da narrativa a partir do confronto entre os 27 capítulos iniciais da versão em folhetim e em livro.
duas versões do romance protagonizado por Rubião. Segundo a pesquisadora, em
ambas as narrativas, é preservada a história do ingênuo professor de Minas que almeja
brilhar na corte do Rio de Janeiro, apoiado na fortuna e na filosofia herdadas de Quincas
Borba, mas que, ao se submeter a um processo de reificação, chega à miséria e à
loucura. Todavia, a estudiosa garante que a semelhança do argumento não esmaece as
mudanças significativas que distinguem estrutural e discursivamente os dois textos.
Assim, enquanto no âmbito da diegese as alterações não apresentam relevância
decisiva, que permitisse afirmar a independência entre as histórias, no que concerne ao
tratamento dispensado à enunciação e à organização do relato, as diferenças entre o
romance em folhetim e o romance em livro se acentuam.
Saraiva focaliza as alterações de caráter estrutural que interferem na
configuração global do romance, atendo-se à contraposição entre os primeiros 27
capítulos de ambas as versões. Identifica os processos dos quais Machado de Assis se
utiliza para dar nova feição ao texto, categorizando-os como transposição, aglutinação,
condensação ou resumo, desmembramento, supressão e acréscimo. Em anexo,
apresenta um quadro, reproduzido a seguir, através do qual é possível perceber tais
modificações:
72
Após retomar a seqüencialidade das ações na versão em folhetim, para em
seguida confrontá-las com sua ordenação na versão em livro, a pesquisadora explica
cada um dos processos por ela apontados e conclui que, ao redigir a segunda versão do
romance Quincas Borba, Machado de Assis analisa o modelo que concebera sob
orientação de um determinado gênero e em função de um determinado veículo e verifica
sua inadequação em face de outro suporte material e de um receptor diferente.
A constatação da estudiosa é comprovada principalmente quando se
investigam as alterações de caráter discursivo que o autor de Quincas Borba imprimiu à
narrativa, no que se refere à imagem do leitor que se configura em cada uma das
versões do romance. Embora boa parte dos estudos acima mencionados reconheça que
as modificações de uma versão para a outra impliquem maior participação do leitor, não
aprofundam a análise do tema, nem procuram distinguir e investigar as noções de
narratário e leitor implícito, em cada versão do romance, relacionando-as com o leitor
real, objetivo que norteia o presente estudo.
Assim, mediante o cotejo entre alguns excertos das duas versões de Quincas
Borba, pretende-se demonstrar que a mudança do suporte material do romance assume
influência na concepção de seus receptores textuais, narratário e leitor implícito, uma
vez que o público leitor também se altera. Para comprovar tal ocorrência, traça-se o
caminho inverso: primeiramente, aborda-se a configuração dos leitores textuais na
versão em livro, contrapondo-os em seguida com seus equivalentes no folhetim, a fim de
que, através da caracterização deles, seja possível comprovar a hipótese de que o leitor
empírico da primeira versão de Quincas Borba inclina-se a assumir o posicionamento do
narratário, enquanto o leitor real da versão em livro teria mais condições de concretizar
o papel delegado ao leitor implícito da narrativa.
73
3.1 Quincas Borba, versão em livro: imagem dos leitores textuais
É possível afirmar que existe considerável descompasso entre os leitores
textuais de Quincas Borba. De um lado, está o narratário, receptor ficcional do texto,
caracterizado, predominantemente, como um ser ingênuo e até mesmo infantil,
interpelado constantemente pelo enunciador, que precisa, conforme afirmam Lajolo e
Zilberman (op.cit.), corrigir e direcionar a interpretação do destinatário, colocando-se em
posição superior, revelando a desigualdade da interlocução, que vai se impondo de
forma sutil. Em contrapartida, o leitor implícito, conjunto das habilidades do leitor real
com as quais o autor espera contar, configura-se de forma oposta a do narratário:
enquanto este acaba, na maioria das vezes, induzido pelo narrador – que integra a fala
dos diferentes locutores e os ângulos perceptivos inscritos pelo olhar à cadeia
comunicativa42 –, incorrendo em juízos precipitados, aquele precisa se colocar em uma
posição de desconfiança em relação ao discurso ambíguo do enunciador, a fim de
preencher os equívocos do narratário. Para comprovar a adequação de tal argumento,
passa-se à análise dessas categorias textuais, começando pela caracterização do
narratário.
O narratário em Quincas Borba é invocado de maneiras distintas pelo
enunciador: ora de forma indireta, ora direta, ora através da segunda pessoa do
singular, ora da primeira ou da segunda do plural. Tais referências, em se tratando de
uma narrativa machadiana, não são aleatórias, isto é, a opção por cada uma delas
assume uma determinada função no texto.
42 SARAIVA, Juracy A. Enunciação como espelho do enunciado. In: Espelho: Revista Machadiana. West Lafayette / Porto Alegre, n.6, 2000, p.6-24.
74
A invocação indireta aparece, por exemplo, na abertura do primeiro capítulo
da narrativa: “Rubião fitava a enseada, – eram oito horas da manhã. Quem o visse com
os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo,
cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta” (p.13 – versão B). Nessa
passagem, a escolha da referência indireta parece caracterizar um certo distanciamento:
o narrador não está se dirigindo a um leitor em especial, mas sim, de maneira geral, a
quem vier a se interessar pela matéria de seu relato, que acaba de ser iniciado. Na
seqüência do enunciado, aparece a segunda pessoa do plural: “mas, em verdade, vos
digo que pensava em outra coisa”. Tal opção também serve como um indicativo de
generalidade e caracteriza, conforme Mattoso Câmara, a vontade do narrador de “frisar
um assomo de confiança expansiva, que ultrapassa a situação de tête-à-tête com um
único leitor.”43 Além disso, a expressão “em verdade vos digo” provém do Novo
Testamento e era atribuída a Jesus Cristo, quando doutrinava seus discípulos. Assim,
ironicamente, o narrador parece querer se colocar, em relação ao narratário, em posição
semelhante à de Cristo diante de seus apóstolos, procurando conquistar a confiança do
destinatário, que, no decorrer da narrativa, será freqüentemente traída.
No tocante ao emprego da primeira pessoa do plural, percebe-se a tentativa
de estabelecer uma relação de proximidade e até de igualdade entre narrador e
narratário, especialmente quando aquele se coloca na posição de “um cicerone, que
conhece os meandros do universo diegético através dos quais pretende conduzir o olhar
do leitor” (SARAIVA, 2000, p.6), o que ilustra o exemplo a seguir: “Deixemos Rubião na
43 CÂMARA JR., Mattoso. Ensaios machadianos: língua e estilo. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1962. p.73. A opção pelo emprego do vós aparece também nas referências à leitora, como sinal de respeito, o que se justifica, segundo Mattoso Câmara (Ibidem), pelo fato de que o tu, de homem para mulher, só se compadecia com uma forte diferença de nível social ou moral entre um e outra. Veja-se, como exemplo, a abertura do capítulo L: “Não, senhora minha, ainda não acabou este dia tão comprido; não sabemos o que se passou entre Sofia e o Palha, depois que todos se foram embora. Pode ser até que acheis aqui melhor sabor que no caso do enforcado” (p.61).
75
sala de Botafogo, batendo com as borlas do chambre nos joelhos, e cuidando da bela
Sofia. Vem comigo, leitor: vamos vê-lo, meses antes, à cabeceira do Quincas Borba”
(p.15 – versão B).
Se o emprego do nós parece caracterizar a gentileza com que o narrador
trata seu narratário, como se o recebesse tal qual um convidado de honra, a quem deve
desdobrar-se em obséquios, o mesmo não ocorre quando é através da segunda pessoa
do singular que o enunciador se dirige ao interlocutor. Esse uso, mais freqüente, traduz
relação ambígua. Por um lado, parece exprimir intimidade e certa camaradagem entre
narrador e narratário, como no excerto a seguir:
Queres o avesso disso, leitor curioso? Vê este outro convidado para o almoço, Carlos Maria. Se aquele tem os modos ‘expansivos e francos’ – no bom sentido laudatório –, claro é que ele os tem contrários. Assim, não te custará nada vê-lo entrar na sala lento, frio e superior, ser apresentado ao Freitas, olhando para outra parte (p.40 – versão B).
Por outro, parece alçar o narrador a uma posição de superioridade em
relação ao narratário, principalmente tendo em vista que é lançando mão do tu que o
enunciador repreende seu interlocutor, o que se verifica no último capítulo da narrativa
(CCI), quando o narrador se mostra impaciente com o fato de o narratário se preocupar
com algo aparentemente sem importância: a atribuição do título do livro. Ele se esquiva
de responder ao interlocutor se a escolha se deve ao cão ou ao filósofo e assim se
pronuncia: “Eia! chora os dois recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te! É
a mesma coisa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está
assaz alto para não discernir o riso e as lágrimas dos homens” (p.214 – versão B).
Portanto, assim como as estrelas estão bem acima dos homens e, por isso, são
indiferentes ao seu sofrimento, o narrador se mostra em posição superior à do
narratário, expondo também o seu desinteresse em relação à forma como o interlocutor
concebe a morte do protagonista do relato e de seu único e fiel amigo.
76
Quando o narrador atribui algum pensamento ou julgamento ao interlocutor,
dirige-se a ele, na maioria das vezes, por meio do termo leitor, o que parece produzir um
efeito de distanciamento ou até de generalidade, isto é, embora empregue um vocábulo
no singular, o enunciador parece referir-se a todos aqueles que acompanham o relato,
como no capítulo XXVIII, em que, após apresentar os pensamentos do cão, o narrador
assim se dirige ao narratário: “são idéias de cachorro, poeira de idéias, – menos ainda
que poeira, explicará o leitor” (p.37 – versão B). Em outros momentos, a remissão ao
leitor é mero recurso retórico para permitir a emergência da opinião do narrador, como
no seguinte trecho do capítulo XC: “Oh! precaução sublime e piedosa da natureza, que
põe uma cigarra viva ao pé de vinte formigas mortas, para compensá-las. Essa reflexão
é do leitor. Do Rubião não pode ser” (p.109 – versão B).
Na maior parte da narrativa, o enunciador coloca o interlocutor em pé de
igualdade com Rubião, como no capítulo LV: “Tudo esperava o outro [Palha], menos isto
[a volta de Rubião a Barbacena]. Daí o espanto em que se dissolveu a cólera; daí
também uma sombrinha de pesar, que é o que o leitor menos espera” (p.69 – versão B).
O que o leitor (narratário) menos espera é que Palha, apesar da raiva que sente do
amigo por este ter se declarado à sua esposa, Sofia, não queira que Rubião vá embora.
Com tal afirmativa, o narrador comprova a ingenuidade do interlocutor, que parece não
perceber que o grande interesse de Palha no dinheiro do herdeiro de Quincas Borba
torna-o capaz de fazer vistas grossas ao mau passo do sócio. Nesse caso, o narratário se
iguala a Rubião, que não se dá conta da natureza de sua relação com o casal Palha,
cogitando a possibilidade de afastar-se dos dois em razão de sua atitude impensada.
Entretanto, o maior exemplo da semelhança entre o narratário e Rubião
ocorre quando o primeiro, induzido pelo narrador a aderir às conclusões do segundo,
incorre no erro de acreditar que Sofia e Carlos Maria mantinham um relacionamento
77
adúltero: “... o leitor, desorientado, não pode combinar as tristezas de Sofia com a
anedota do cocheiro. E pergunta confuso: — Então a entrevista da Rua da Harmonia,
Sofia, Carlos Maria, esse chocalho de rimas sonoras e delinqüentes é tudo calúnia?”
(p.124 – versão B). Nessa passagem, o narratário, tal qual Rubião, é acusado de se
deixar seduzir pelas aparências e pela fantasia, adotando os temores de um homem
apaixonado, o que o faz julgar Sofia precipitadamente.
Tal não pode ser a postura do leitor implícito, que se pressupõe ter condições
de lançar mão das habilidades que lhe competem para desconfiar da possibilidade de um
malogro, fazendo com que suas hipóteses confluam para as do narrador, que afirma ser
inverossímil “que um homem, indo a uma aventura daquelas, fizesse parar o tílburi
diante da casa pactuada. Seria pôr uma testemunha ao crime” (p.124 – versão B). Mais
uma vez, o narrador atenta para a falta de sagacidade de Rubião e do narratário,
qualidade não necessária às leituras às quais o primeiro e muito provavelmente o
segundo, em razão da atitude tutelar com que na maioria das vezes é tratado pelo
narrador, são afeitos: os romances-folhetim de Alexandre Dumas com “aquelas cenas da
corte de França [...] e os seus nobres espadachins e aventureiros”, bem como “as
condessas e os duques de Feuillet, metidos em estufas ricas, todos eles com palavras
mui compostas, polidas, altivas ou graciosas” (p.99 – versão B).
Outras personagens também são caracterizadas por suas leituras
folhetinescas, como Sofia, que lia, na Revista dos Dois Mundos, o já citado Feuillet, e o
major Siqueira, que tinha como único livro o precursor dos romances-folhetim, o Saint-
Clair das Ilhas44, com cujos personagens se identifica, isto é, bebe “à saúde dos bons e
44 Este romance também é referido em boa parte dos contos de Machado de Assis, bem como em Helena, cujo enunciador salienta o caráter sentimentalista da narrativa: “... moralíssimo livro, ainda que enfadonho e massudo, como outros de seu tempo. Com ele matavam as matronas daquela quadra muitas horas compridas de inverno, com ele se encheu muito serão pacífico, com ele se desafogou o coração de muita lágrima sobressalente” (ASSIS, Machado de. Helena. 25.ed. São Paulo: Ática, 2003, p.20).
78
valentes oprimidos, e ao castigo dos seus opressores” (p.154 – versão B). Na condição
de oprimido, o major espera pelo castigo daqueles que considera seus opressores, o
casal Palha, que, após ascender socialmente, passa a ignorá-lo.
Essas obras eram conhecidas e apreciadas, conforme atesta Marlyse Meyer
em Folhetim: uma história45, pelo público leitor do século XIX. A pesquisadora situa o
surgimento do romance-folhetim na França, mais precisamente no ano de 1836,
coincidindo com o apogeu do Romantismo, já então em sua fase social. A idéia se deve
aos responsáveis pelos periódicos La Presse e Le Siècle, que queriam criar uma “isca”
para atrair assinantes. Desde seu lançamento, o romance-folhetim converteu-se em
grande sucesso de público e teve como principais autores Alexandre Dumas, Eugène
Sue, Ponson du Terrail e Xavier de Montépin. Apesar de Marlyse Meyer apontar algumas
diferenças principalmente em relação ao tipo de enredo que as narrativas apresentavam,
o que a levou a dividir a trajetória do gênero em três fases, de um modo geral, o que a
estudiosa identifica são os recursos de corte de capítulo, característicos do gênero
folhetinesco, bem como a presença do sentimentalismo romântico. No Brasil, segundo a
pesquisadora, o romance-folhetim não demorou a conquistar o sucesso que obtivera na
França, sendo publicado cotidianamente, entre 1839 e 1842, no Jornal do Comércio. A
partir de 1844, as narrativas brasileiras começam a ganhar espaço, através de autores
como Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar.
Cabe citar ainda o libreto de ópera, tão popular quanto o romance-folhetim, e
que, em Quincas Borba, se faz presente através da pelotense D. Fernanda, que “preferia
a música italiana, — talvez esta ária da Lucia: Óbell’alma innamorata. Ou este pedaço do
Barbeiro:
45 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
79
Ecco ridente in cielo
Sppunta la bella aurora" (p.148 – versão B).
Ainda conforme Marlyse Meyer, o melodrama italiano teria chegado primeiro
ao Brasil que o próprio romance-folhetim. O conceito de melodrama, que, no século
XVIII era tomado no sentido pleno do termo (drama acoplado à música), isto é, a ópera,
cujas tramas refletem sentimentos e paixões ligados à sensibilidade em particular da
Europa setecentista e romântica, que coincidia com a sensibilidade popular de todos os
países, amplia-se no século XIX. Passa a designar não só os muitos libretos da ópera
novecentista, mas também um novo gênero teatral popular francês pós-Revolução
Francesa, caracterizado por certo tipo de exacerbação verbal e gestual de sentimentos,
sublinhados pela música, e que, no Brasil, fora levado à cena pelo consagrado João
Caetano. O sucesso desse gênero em nosso país se comprova ainda através de sua
presença na comédia O delirante, de 1844, daquele a quem Marlyse Meyer, assim como
outros críticos, considera o primeiro grande comediógrafo brasileiro, Martins Pena. Além
disso, o escritor trata da ópera nos folhetins que escrevera de 8 de agosto de 1846 a 6
de outubro de 1847, em que fazia comentários a respeito das peças encenadas durante
a semana lírica.
Assim, é possível perceber que, de certa forma, o gosto do público leitor do
século XIX está representado pelo narratário de Quincas Borba. Mas, se o interlocutor
ficcional compartilha das leituras das personagens do romance, quando o narrador cita
os clássicos Shakespeare, Molière, Sterne, não é ao narratário que ele se dirige, e sim a
um leitor modelo, culto e de gosto refinado, que seja capaz de correlacionar a referência
a tais autores com a matéria do relato. Aqui se percebe, mais uma vez, a fissura entre o
narratário e o leitor implícito de Quincas Borba.
80
3.2 Quincas Borba em dupla versão: contraponto entre os leitores textuais
Se na versão em livro do romance Quincas Borba é possível perceber a
constante invocação do narratário, essa, no texto publicado em A Estação, é ainda mais
freqüente. Ao reescrever a história de Rubião, Machado de Assis a despojou de inúmeras
referências ao interlocutor ficcional, o que, como se procurará comprovar, tem relação
direta com a figura do leitor implícito em ambas as narrativas e, conseqüentemente, com
a distinção estabelecida pelo autor entre a imagem do leitor real do folhetim e a do livro.
O sexto capítulo da primeira versão, por exemplo, supresso da versão em
livro, compõe-se de um comentário do narrador a respeito das lágrimas do filósofo
Quincas Borba por seu cão – a quem dera o próprio nome – ao despedir-se dele.
Segundo o enunciador, são “lágrimas verdadeiras”, embora os narratários, a quem se
refere como “eternos rapazes”, certamente duvidem do que ele está contando.
Acrescenta ainda que trará uma dessas lágrimas, dali a pouco, “fechada n’uma bocetinha
antiga” e a mostrará “tão verdadeira e tão amarga como no dia em que brotou dos olhos
do nosso Quincas Borba" (p.12 – versão A). Aqui se percebe o apelo ao sentimentalismo,
característico das histórias folhetinescas, mas de forma inusitada, já que, em vez de se
tratar do amor entre um homem e uma mulher, tem-se a dor da separação entre um
homem e seu cachorro, daí o tom irônico do enunciador e a incredulidade atribuída ao
narratário.
A promessa do narrador se cumpre, em termos, no capítulo IX, que
apresenta uma carta do filósofo a Rubião. Assim se pronuncia o enunciador: “Não lhes
tinha eu prometido uma lágrima de Quincas Borba? dou-lhes uma pérola. Ao cabo, é a
mesma coisa; aqui vai ela, pérola ou lágrima” (p.14 – versão A). Mais uma vez, a ironia
aparece, pois o narrador se mostra indiferente em relação à lágrima que prometera,
81
frustrando as expectativas do interlocutor. Essa postura em que se verifica a oscilação
entre a tentativa de agradar o leitor afeito às histórias românticas dos folhetins e a
conseqüente zombaria em virtude de tais preferências fica clara no capítulo XV da
primeira versão, através de mais um enunciado que não sobreviveu à reescrita do
romance, em que o narrador informa que Rubião tornou-se herdeiro universal de
Quincas Borba mediante o cumprimento da cláusula que determina sua obrigação de
cuidar do cão do finado até a morte:
Aí tem a cláusula inteira. Não a queria dar por meio de aborrecer o leitor nem a leitora, pessoas principais em tudo isto, e às quais não desejo mais que saúde e tempo. Aí tem a cláusula. Que é esquisita, não há dúvida; mas eu não hei de inventar um testamento nem mentir à minha história só pelo gosto de pôr aqui uma cláusula vulgar. Toda a questão é que o herdeiro não a achasse humilhante (p.19 – versão A).
Na passagem acima, o narrador primeiro adula seus interlocutores, “pessoas
principais em tudo isto” e a quem não deseja “mais que saúde e tempo”, concordando
com a esquisitice da cláusula, mas afirmando que não alteraria sua história para nela
colocar uma “cláusula vulgar”. Dessa forma, o enunciador se mostra contrário à
adequação da narrativa aos moldes românticos, em que boa parte das histórias figura a
herança que alça o herói ou a heroína, após certas privações, a uma condição social
superior e merecida, desde que obedeçam a determinada cláusula, como é o caso de
Senhora, de José de Alencar.
Outra alusão ao espírito romanesco é perceptível no capítulo XVII do
folhetim, também excluído do romance em livro, que consiste na descrição da comadre
Angélica – que era “muito feia” –, no pedido de desculpa do narrador aos narratários
pelo fato de ser tão feia a primeira mulher que aparece na história e na promessa de
que “as bonitas hão de vir” (p.20 – versão A). Em grande parte das narrativas que
atendiam às expectativas dos leitores, é sabido que a heroína, sempre bela e delicada, é
apresentada ao leitor logo nos primeiros capítulos, com uma descrição idealizada, como
82
a Ceci de O Guarani, “uma menina ingênua e inocente, que nem se quer tinha
consciência de seu poder, e do encanto de sua casta beleza”46.
Através dos excertos até aqui analisados, todos ausentes da versão em livro,
constata-se que o narratário é configurado como um leitor que aprecia o
sentimentalismo romântico e que, portanto, espera encontrar em Quincas Borba a
idealização presente na maioria das histórias veiculadas nos folhetins. No romance em
livro, como se procurou demonstrar anteriormente, o narratário também se comporta
dessa forma, mas a sua caracterização não se apresenta tão explícita quanto no texto de
A Estação, em que é invocado com maior freqüência. Cumpre registrar que as
referências ao narratário se fazem presentes na primeira versão também quando o
narrador antecipa o que virá no próximo capítulo, tentando aguçar a curiosidade de
quem tem o periódico nas mãos, estratégia característica da publicação sob forma de
folhetim e desnecessária à narrativa lançada no formato de livro: “Em verdade, sucedeu
uma coisa imprevista, – possa dizer fulminante; vê-la-emos daqui a pouco” (p.103 –
versão A).
A transformação do vigésimo capítulo da versão em folhetim no primeiro do
romance em livro acarreta uma considerável mudança não só em termos estruturais,
como demonstra Juracy A. Saraiva, mas também em relação ao narratário e ao leitor
implícito em ambos os textos. Na primeira versão, o narrador sumaria e analisa os
pensamentos de Rubião e se refere diretamente ao narratário no início do capítulo: “Vês
aquela figura de pé, com os polegares metidos no cordão atado do chambre, à janela de
uma linda casa da praia de Botafogo? É o nosso homem” (p.22 – versão A). Já na versão
definitiva do romance, o enunciador se restringe a apresentar, através do discurso
46 ALENCAR, José de. O Guarani. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1999. p.159.
83
indireto-livre, os pensamentos do protagonista, sem comentá-los, e assim se dirige ao
interlocutor: “Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre à janela
de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água
quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra coisa” (p.13 – versão B).
O enunciado da segunda versão, já analisado quando da caracterização do
narratário previamente apresentada neste capítulo, ao invés de simplesmente postular a
presença do interlocutor, como ocorre no texto de A Estação, parece dirigir um alerta ao
leitor implícito da obra para que não se deixe levar pelas aparências, idéia que permeia a
narrativa inteira.
Assim, verifica-se que, na primeira versão do romance, o narrador se interpõe
mais ostensivamente entre o interlocutor e o relato, lançando mão de intervenções e
avaliações explícitas, como no capítulo LXXXVI, em que faz considerações a respeito da
vida de Rubião, que, segundo ele, não possui unidade na alma – que “não achava
equilíbrio nem alimento em si própria” – nem na situação – pois “vivera mais de metades
em outro lugar, com outras gentes, outros meios, outros horizontes” (p.95 – versão A).
Menciona ainda as saudades que o herdeiro de Quincas Borba tinha, às vezes, de Minas,
onde sua existência “era muito mais notória que a atual, que se perdia na multidão de
tantas vidas”. Dirigindo-se ao narratário, faz comentários a respeito da vida dispendiosa
que o mineiro leva, afirmando que, talvez, “o casamento lhe desse o segredo de viver
com parcimônia, — ou tento, pelo menos” (p.96 – versão A).
Outro exemplo de enunciado explicativo, também subtraído do texto final,
está no capítulo XCI da versão em folhetim, cujo equivalente na versão em livro é o
capítulo LXXXVII, em que Rubião encontra uma moça com uma criança e começa a
relembrar as palavras do major Siqueira, que o aconselhara a casar-se. No texto de A
Estação, o narrador, dirigindo-se ao narratário, comenta o fato de Rubião cobiçar “a
84
mulher elegante e ainda fidalga”, embora “as pobrezas de outro tempo lhe trouxessem
não sei que de saudades esquisitas”. Afirma ainda que o herdeiro de Quincas Borba dizia
consigo, “arrependendo-se logo”, que “tudo o que contribuísse para [...] libertá-lo
daquela mulher do diabo [Sofia] era um benefício do céu” (p.103 – versão A).
Os dois excertos acima apresentados também podem ser relacionados não só
com o narratário, mas também com o leitor implícito do texto: se no livro existe uma
fissura entre ambos, o mesmo não ocorre na versão em folhetim. Uma vez que o
enunciador procede constantemente a explicações e comentários, pouco exige do leitor
implícito. Ironicamente, é contra esse procedimento que o narrador se pronuncia em
mais um capítulo (XXX) supresso da versão em livro, no qual sugere que o narratário,
para conhecer o outro convidado de Rubião (Carlos Maria), imagine o oposto do primeiro
(Freitas) e, em seguida, se propõe a descrevê-lo. Entretanto, critica seu próprio método:
arrenego de um autor que me diz tudo, que me não deixa colaborar no livro com a minha própria imaginação. A melhor página não é só a que se relê, é também a que a gente completa de si para si. Três linhas de Pascal dão cinco a oito minutos de reflexão. Vede aqui por exemplo, certa idéia que sai do papel para a cabeça, entra na cabeça e de manso acorda outra idéia, fala-lhe, a conversação das duas desperta a outra, as três mais outras, e aí ficam dez ou doze, em boa, longa e familiar palestra (p.31 – versão A)47.
Esse enunciado, como se vê, manifesta uma opinião do próprio Machado de
Assis, uma vez que, para conseguir o efeito acima referido na versão final, ele suprime
as várias passagens que impediam o leitor de participar do livro com a imaginação,
fazendo com que sua função se modifique, o que se procura comprovar através do
presente estudo.
47 É interessante notar a semelhança entre este comentário do narrador com o do enunciador de Tristram Shandy, de Lawrence Sterne, romance mencionado no próprio Quincas Borba: “O verdadeiro respeito para com o leitor supõe compartilhar amigavelmente o assunto, e lhe deixar algo para imaginar por sua vez, tanto quanto o próprio autor. Por minha parte sempre lhe concederei este tipo de homenagem, e farei tudo o que estiver a meu alcance para manter sua imaginação tão ativa quanto a minha” (STERNE, Lawrence. Tristram Shandy. Londres: Everyman’s Library, 1956. p.79. tradução nossa).
85
Mais um exemplo em que se percebe a mudança no tocante ao papel do
leitor implícito em ambas as versões ocorre em virtude da eliminação dos capítulos CI e
CII. No primeiro, o narrador justifica o capítulo anterior, atribuindo-lhe a função de
explicar a “benevolência do empurrado [o presidente de um banco que humilhara Palha
depois de ser tratado da mesma forma por um ministro de Estado]” e de dar ao leitor
“um bom ensejo de fazer uma reflexão” (p.113 – versão A); no segundo, o enunciador
divaga a respeito da concepção e da execução das idéias e revela que a reflexão a se
fazer é que o presidente do banco não tem nome. Tais capítulos, portanto, consistem
em comentários avaliativos e explicativos do narrador em relação ao ocorrido no capítulo
precedente. Mais uma vez, destarte, fica claro o quanto o enunciador da primeira versão
direciona e restringe a percepção do interlocutor, fazendo com que narratário e leitor
implícito tenham papéis equivalentes. Com a supressão dos capítulos quando da
reescrita do romance, o efeito é outro: o leitor implícito assume posição superior à do
narratário, pois, ao contrário deste, não depende do enunciador para guiar a sua
interpretação.
O mesmo resultado é obtido através da subtração do enunciado, pertencente
ao capítulo CXV da primeira versão, em que o narrador se dirige aos narratários,
lembrando-os do episódio do capítulo LXII, em que Rubião cruzou com uma baronesa e
ficou deslumbrado. Afirma serem “tempos idos, capítulos passados” (p.147 – versão A),
pois ele agora desceria as escadas tranqüilo, sem se admirar de nada. No romance em
livro, substituindo o comentário do narrador, tem-se apenas o que se grifou a seguir:
“Rubião olhava superiormente para tudo. A qualidade dos convivas não lhe produziu
impressão, nem o ar cerimonioso, nem o luxo da mesa; nada disso o deslumbrou”
(p.134 – versão B). Com essa alteração, o leitor implícito deve ser capaz de relacionar,
86
sem a ajuda do enunciador, o capítulo da aparição da baronesa com o episódio que lhe é
relatado no momento.
Após o cotejo entre os leitores textuais das duas versões de Quincas Borba,
cabe identificar de que forma as diferenças verificadas apontam para a distinção entre os
destinatários empíricos, ou do público leitor, em ambas as narrativas.
3.3 Quincas Borba, do folhetim para o livro: novo suporte material, novo leitor
A partir da análise acima, é possível tecer algumas considerações no tocante
à distinção entre a imagem dos leitores reais de cada versão de Quincas Borba. Além de
abordar as questões inerentes aos aspectos da enunciação, apresentados anteriormente,
cabe atentar também para os fatores extrínsecos ao texto, a saber, aqueles que se
referem à sua materialidade.
Como se demonstrou previamente, no texto de A Estação, através da
constante invocação do narratário e das inúmeras intervenções explicativas e avaliativas
do narrador dirigindo a interpretação do interlocutor, é possível afirmar que não há
distinção entre as exigências de interpretação propostas ao narratário e ao leitor
implícito. Isso significa que a expectativa de Machado de Assis em relação aos leitores
reais da primeira versão de Quincas Borba é a mesma do narrador em relação ao
narratário. Portanto, se o destinatário ficcional é ingênuo, afeito a histórias românticas,
pautadas por forte apelo sentimentalista, assim também se caracteriza o leitor real a
quem o autor se dirige. Conseqüentemente, as preferências de leitura desse destinatário
empírico convergem com as das personagens do romance, que, como se comentou
quando da caracterização dos leitores textuais da versão em livro, lêem textos de
Dumas, Feuillet e libretos de ópera. O mesmo não ocorre com o leitor empírico do texto
87
Figura 2: Página de A Estação, 15 de maio de 1884.
final, que, por se identificar com o leitor implícito do texto, o que se comprovará a
seguir, está representado pelas obras sugeridas pelo narrador, entre elas, as de Molière,
Sterne, Shakespeare e o Dom Quixote de Cervantes.
Cumpre registrar que, segundo John Gledson48, A Estação era uma revista
feminina, impressa na Europa, que dava destaque para a moda, apresentando
ilustrações de trajes elegantes. Além disso, argumentava, com o devido respeito do
ponto de vista masculino, que as mulheres deviam ser instruídas e não se limitar tão
completamente à vida doméstica. Ana Luiza Andrade49 destaca que a revista ainda
atribuía importância às técnicas manufatureiras, através de matérias que variavam entre
as receitas de bordados e de rendas, dicas de moda e ensaios como aquele escrito pelo
próprio Machado de Assis, sobre a fetichização do leque, suas tradições, seu uso
sedutor.
48 GLEDSON, John. Os contos de Machado de Assis: o machete e o violoncelo. In: _____. Contos, uma antologia: Machado de Assis. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. v. 1.
49 ANDRADE, Ana Luiza. Transportes pelo olhar de Machado de Assis: passagens entre o livro e o jornal. Chapecó: Grifos, 1999.
88
Assim, é possível afirmar que, ao escrever a primeira versão de Quincas
Borba, o autor se preocupasse em torná-la atraente principalmente para as mulheres.
Tal ocorrência é verificável, por exemplo, através de dois paralelos, excluídos da versão
final: em um, o narrador equipara Rubião, à espera da abertura do testamento, com
uma noiva às vésperas do casamento (capítulo XIV); no segundo, compara o cão
Quincas Borba, à espera do dono, com uma mulher amada a receber o noivo (capítulo
XXVIII).
Outro fator importante a se levar em conta é que a história de Rubião era
apenas um entre os demais atrativos da revista e, portanto, tinha como objetivo entreter
a “leitora amiga”, servindo-lhe de passatempo e incitando sua imaginação através dos
cortes providenciais, geradores de tensão, tão característicos dos romances-folhetim.
Dessa forma, justifica-se a inviabilidade de lançar mão de estruturas complexas, como a
analepse instaurada na versão em livro, cujo primeiro capítulo equivale ao vigésimo da
versão em folhetim. Além disso, um texto publicado em partes e, no caso de Quincas
Borba, de 15 em 15 dias, dificultava a retomada de determinados episódios por parte do
leitor.
Portanto, enquanto o texto de A Estação assume caráter transitivo, dirigindo-
se ao público específico de uma determinada época, o romance em livro tem em seu
benefício o fator da permanência, o que lhe garante o diálogo com leitores de épocas
distintas, que continuamente o reinterpretam. Assim, o romance em livro se insere em
múltiplos e distintos contextos, que não estão limitados à época de sua produção. Some-
se a isso a mudança em relação ao objetivo do texto: se à versão em folhetim era
delegada, em primeira instância, a função de entreter a leitora de uma revista de modas,
à segunda versão cabe primordialmente propiciar ao leitor momentos de reflexão sobre
a sociedade a que pertence e sobre sua condição de ser humano em face da mesma.
89
Destarte, o leitor empírico do livro aproxima-se da configuração do leitor
implícito, cujo papel difere consideravelmente em relação ao do narratário, pois, como
afirma Juracy A. Saraiva50, a ele se abre a possibilidade de situar-se frente ao texto, que
não lhe dá um sentido pronto e acabado, mas apenas sugerido pelo poder de evocação
das palavras e pelo contexto singular da comunicação ficcional, e de preencher os vazios
significativos, correlacionando a mensagem literária à realidade circundante.
50 SARAIVA, Juracy A. A situação da leitura e a formação do leitor. In: _____ Literatura e alfabetização: do plano do choro ao plano da ação. Porto Alegre: Artmed, 2001. p.27.
90
4 MACHADO DE ASSIS: REESCRITA E CRIAÇÃO
A reescrita de Quincas Borba demonstra a preocupação de Machado de Assis
em adequar o romance lançado em folhetim a novo suporte material, o livro, uma vez
que este demandava público leitor diverso daquele a quem se destinara a primeira
versão da narrativa. Todavia, evidencia-se, sobretudo, o trabalho de autocrítica do
escritor, que se distancia do próprio texto e da condição de produtor deste, assumindo a
posição de receptor da criação, lendo a si mesmo, visando ao aprimoramento de sua
obra. Essa postura se justifica principalmente em virtude dos prazos a que uma
publicação sob a forma de folhetim era submetida, que faziam com que o autor não
dispusesse de tempo suficiente para revisar seu texto, tarefa reservada para mais tarde.
Essa preocupação com a qualidade do texto fora expressa por Machado de
Assis quando do lançamento, em livro, de seu segundo romance, A mão e a luva,
primeiramente publicado em folhetim, de 26 de setembro a 3 de novembro de 1874, no
jornal O Globo. Lançado no mesmo ano, o volume apresenta uma advertência, em que o
escritor afirma que o romance, devido “às urgências da publicação diária, saiu das mãos
do autor capítulo a capítulo, sendo natural que a narração e o estilo padecessem com
esse método de composição, um pouco fora dos hábitos do autor”51. Em 1907, o livro é
relançado, apresentando nova advertência, em que o escritor afirma que
51 ASSIS, Machado de. A mão e a luva. 19.ed. São Paulo: Ática, 2002. p.13.
91
os trinta e tantos anos decorridos do aparecimento desta novela à reimpressão que ora se faz parece que explicam as diferenças de composição e de maneira do autor. Se este não lhe daria agora a mesma feição, é certo que lha deu outrora, e, ao cabo, tudo pode servir a definir a mesma pessoa (ibidem).
Em seguida, garante que não alterara nada, apenas emendara erros
tipográficos e de ortografia e eliminara cerca de quinze linhas. Manifestação semelhante
figura na advertência de Helena, terceiro romance do escritor, também lançado
originalmente em folhetim pelo jornal O Globo, entre 6 de agosto e 11 de setembro de
1876. O autor explica que a nova edição, lançada em 1905, “sai com várias emendas de
linguagem e outras, que não alteram a feição do livro”52. Assegura que o texto é o
mesmo que compôs e imprimiu, mas diverso do que o tempo o fez depois,
correspondendo, portanto, ao capítulo da história de seu espírito, naquele ano de 1876.
Acrescenta que, ao reler as páginas do romance, ouvira eco remoto de mocidade e fé
ingênua, mas, nem por isso, seria capaz de modificar-lhe a feição passada, pois crê que
“cada obra pertence a seu tempo” (ibidem).
Embora atente para a importância de respeitar a relação entre o texto e a
época de sua produção, Machado de Assis não abandona a prática de releitura e
reescrita das próprias obras, que o acompanharia até o fim da vida. Além de Quincas
Borba, também Iaiá Garcia e Memórias Póstumas de Brás Cubas passaram pelo senso
autocrítico do escritor, apresentando modificações que ultrapassam o aperfeiçoamento
lingüístico a que o autor limitara a revisão de A mão e a luva e Helena.
52 ASSIS, Machado de. Helena. 25.ed. São Paulo: Ática, 2003. p.10.
92
4.1 A reescrita tardia de Iaiá Garcia
O romance Iaiá Garcia é lançado pela primeira vez, sob a forma de folhetim,
no jornal carioca O Cruzeiro, entre 1° de janeiro e 2 de março de 1878. No mesmo ano,
tem sua publicação em livro, pela editora Vianna, sem alterações no texto. Estas viriam
somente em 1898, quando o editor Garnier publica o romance. Nesta versão, Machado
de Assis imprime ao texto modificações de caráter lexical e discursivo, bem como
supressões de enunciados, em sua maioria comentários avaliativos do narrador53.
No que concerne às diferenças lexicais, ocorre a supressão de vocábulos,
como no enunciado “água virgem e pura”, em que os termos em negrito desaparecem,
por ocasião da evidente redundância de significado dos adjetivos que caracterizam o
substantivo. É possível verificar também a substituição de palavras equivalentes, como
na troca do verbo “dilacerar” (a carta) por “rasgar”, e de expressões correspondentes,
como na permuta de “olho de águia” por “vista pronta”, bem como de termos cujo
sentido diverge, caso de “grão da poesia”, que cede lugar a “grão de romanesco”.
Constata-se ainda, com freqüência, a substituição do pronome possessivo pelo artigo
definido (“sua asa invisível” – “a asa invisível”).
Em relação às alterações discursivas, predomina a eliminação de comentários
do enunciador, que, na primeira versão, lança mão de número considerável de reflexões
e máximas formuladas a partir das atitudes e sentimentos das personagens, como se
constata no seguinte excerto, em que os termos grifados foram eliminados:
Estela, posta entre as musas, seria Melpomene. Tinha as formas; restava só que o destino fizesse correr sobre elas o frêmito das paixões
53 As diferenças foram verificadas através de levantamento realizado pela proponente da presente investigação, por ocasião de sua inserção, como bolsista Capes, no projeto História da Literatura e Profissionalização do Escritor, orientado pela professora Regina Zilberman, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
93
trágicas. Usualmente trazia roupas pretas, cor que preferia a todas as outras. A mulher pálida, que não usa de preferência a cor preta, carece de um instinto. Estela possuía esse instinto do contraste. Nu de enfeites, o vestido punha-lhe em relevo o talhe esbelto, elevado e flexível. (...) Mas, conhecido o caráter da moça, eram dous os motivos — um sentimento natural de simplicidade, e, mais ainda, a consideração de que os meios de seu pai não davam para custosos atavios, e assim não lhe convinha afeiçoar-se ao luxo. Esta reflexão na cabeça de uma mulher de dezoito anos, era já sintoma de organização pouco vulgar54.
Eis outro exemplo de manifestação do narrador que não sobreviveu à
reescrita do romance e na qual se percebe a concepção machadiana daquilo que deve
caracterizar a obra de ficção:
(...) lembrou-se de escrever um romance, que era nada menos que o seu próprio; mas esse gênero de escritos pessoais só é suportável à força de grande talento. Ao cabo de algumas páginas, reconheceu que a execução não correspondia ao pensamento, e que não saía das efusões líricas e das proporções da anedota. Faltava-lhe o engenho preciso para extrair do fato particular a lei universal e humana; e a sagacidade com que o reconheceu sobrelevava a todos seus méritos (p.118-119).
Na passagem a seguir, a eliminação do trecho em negrito parece revelar a
preocupação identificada através da análise das diferenças entre os leitores textuais das
duas versões de Quincas Borba: delegar ao receptor do texto a tarefa de refletir sobre o
narrado, dispensando a explicação do enunciador:
Mas as paredes eram as mesmas; eram os mesmos o parapeito e o ladrilho do chão. Mudam os homens, a vida varia seus aspectos; há porém nas coisas inanimadas a virtude de guardar as feições fugitivas do tempo; e a rua insignificante, o prédio denegrido, o muro escalavrado cativam os olhos da memória, reconstruindo a sensação que se foi (p.119-120).
O mesmo objetivo parece determinar o corte do comentário a seguir:
Não é isso mesmo a imagem do passado? De tantos sucessos que nos aturdiram, comoveram, atulharam a vida, de tantas cóleras, alegrias, desânimos, de tudo isso que pareceu duradouro, o resíduo único é um punhado de recordações, ou saborosas ou amargas (p.166).
54 ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia. Rio de Janeiro: G. Vianna, 1878. p.48-49. As demais referências passarão a ser indicadas no corpo do texto, apenas com o número da página da qual foram extraídas.
94
Uma vez que a reescrita de Iaiá Garcia fora realizada após a de Quincas
Borba, é possível aventar a possibilidade de que a reelaboração da narrativa
protagonizada por Rubião tenha influenciado Machado de Assis a modificar o romance
lançado em 1878. Todavia, antes e até mesmo durante a publicação de Quincas Borba,
outro texto merecera passar pelo filtro autocrítico do autor.
4.2 As quatro edições de Memórias Póstumas de Brás Cubas
Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance considerado como divisor de
águas na produção literária de Machado de Assis, teve sua primeira edição lançada em
folhetim, no periódico carioca intitulado Revista Brasileira, entre 15 de março e 15 de
dezembro de 1880. O primeiro volume em livro é publicado no ano seguinte, pela
Tipografia Nacional. Em 1896, o romance é relançado pela editora Garnier, que, três
anos mais tarde, é responsável pela última edição do livro antes da morte do autor.
Eugênio Gomes, em As correções de Machado de Assis, artigo publicado em
1949 pela revista Província de São Pedro, procura levantar as alterações a que o autor
de Memórias Póstumas de Brás Cubas submetera o romance em suas quatro primeiras
edições, destacando o que chama de “trabalho consciente de um grande escritor”55.
Verificam-se modificações de caráter estrutural, enunciativo e lexical, semelhantes às
identificadas através do exame da reescrita de Quincas Borba, embora em menor
número. O estudioso ressalta a preocupação absorvente do ficcionista com os problemas
relativos à técnica e ao estilo, procedendo principalmente a eliminações e reduções,
reveladoras do tato da omissão e da economia verbal bem como da tendência
55 GOMES, Eugênio. As correções de Machado de Assis. In: Província de São Pedro. Rio de Janeiro; Porto Alegre; São Paulo: Globo, 1949, n.13. p. 11.
95
progressiva à simplicidade e à concisão. Exemplo significativo está no corte da menção a
nomes célebres, como os de Hobbes e Espinosa, que transparece o cuidado em evitar o
exagero nas demonstrações de erudição.
Assim como Eugênio Gomes, Regina Zilberman, em “Minha teoria das edições
humanas”: Memórias Póstumas de Brás Cubas e a poética de Machado de Assis56,
garante que o exame das modificações sofridas pela narrativa protagonizada por Brás
Cubas suscita observações relevantes no que concerne ao processo de escrita do autor.
É possível verificar, primeiramente, na segunda edição, a substituição de uma epígrafe,
pertencente à peça As you like it (Como gostais), de William Shakespeare, por uma
dedicatória, bem como a introdução do que Zilberman caracteriza como espécie de
“ante-sala”, intitulada Ao leitor, cuja autoria é atribuída ao protagonista da narrativa,
Brás Cubas, que assina o texto. Segundo a pesquisadora, esse preâmbulo e a dedicatória
que o antecede são mantidos nas edições seguintes, embora Ao leitor apresente
pequenas modificações relativas ao estilo, bem como a supressão da alusão a Charles
Lamb, que integrava, juntamente com Lawrence Sterne, Xavier de Maistre e Stendhal, o
grupo de escritores adeptos da forma livre nos quais Brás Cubas se inspirava, e a
alteração de uma referência temporal que se transforma em localização espacial, pois,
em vez de memórias “trabalhadas cá no outro século”, tem-se, no lugar do vocábulo
grifado, o substantivo “mundo”.
A estudiosa explica que a epígrafe estava marcada pela humildade e pelo
reconhecimento formal de insignificância perante o mundo, que pouco se associavam
com o posicionamento rebelde da narrativa diante da literatura da época, e com a
56 ZILBERMAN, Regina. “Minha teoria das edições humanas”: Memórias Póstumas de Brás Cubas e a poética de Machado de Assis. In: _____ et al. As pedras e o arco: fontes primárias, teoria e história da literatura. Belo Horizonte: UFMG, 2004.
96
atitude indisciplinada e o culto à ociosidade que caracterizam o protagonista do
romance. A dedicatória, por sua vez, apresenta coerência com o desenrolar da história
em virtude de seu caráter agressivo e macabro, assinalado pelo humor negro que pauta
a caminhada existencial do defunto autor. Apesar da eliminação da epígrafe, Zilberman
lembra que a peça de Shakespeare não deixa de integrar a narrativa, permanecendo
através da curta citação de uma fala da melancólica personagem Jacques, de As you like
it (Como gostais). Todavia, a pesquisadora crê que a exclusão contribui para o
obscurecimento da relação entre o romance machadiano e a peça shakespeareana, bem
como entre Brás Cubas e Jacques, uma vez que a fala desta personagem é indicada
apenas como “palavra de Shakespeare”, sem o esclarecimento de sua fonte. Dessa
forma, para Zilberman, resta uma pista ao leitor letrado, capaz eventualmente de
preencher a lacuna intertextual.
Em 1896, Machado de Assis lança a terceira edição do livro e, em 1899, a
quarta, acrescida de um prólogo, no qual discute, em poucas linhas, a poética do
romance, começando pelo esboço da história editorial do texto. Em seguida, responde às
críticas de Capistrano de Abreu, que questionara a forma romanesca do texto, e de
Macedo Soares, que apontara a influência de Viagens na minha terra, de Almeida
Garrett, na concepção da narrativa. Quanto à duvida do primeiro, o escritor utiliza-se das
palavras do defunto autor, que explica que o texto era romance para alguns, e não para
outros. No caso da influência do autor português, lembra que este, bem como Maistre e
Sterne, citados em Ao leitor, também viajara, embora o fizera em sua terra, enquanto os
demais, respectivamente, à roda do quarto e na terra alheia. Já Brás Cubas, segundo o
autor, empreendera viagem à roda da vida. Na seqüência de tal esclarecimento, ressalta
a presença, na “alma” do livro, de “um sentimento amargo e áspero” que o distancia de
97
seus modelos. A semelhança estaria, segundo o escritor, apenas na taça, e não no vinho
que a abastece.
Conforme Zilberman, a inserção do prólogo demonstra o interesse de
Machado de Assis em sinalizar a originalidade e a identidade de sua criação. Lançando
mão de uma imagem gastronômica, o autor dirige apelo ao leitor, que deve ser capaz de
perceber a singularidade da iguaria que consome. A pesquisadora destaca ainda que, ao
assinar o prólogo com a identidade literária que marcou sua trajetória artística, o escritor
se intromete na intimidade do texto, o que não ocorrera nas edições anteriores, já que
seu nome ficara escondido na última página do folhetim e limitado à capa dos livros.
Assim, a aparente pretensão de estabelecer separação radical e intransponível entre o
escritor, responsável pelo romance, e o protagonista, a quem são atribuídas as Memórias
Póstumas, acaba se diluindo em virtude do testemunho que o autor presta, ainda que
utilize a voz fictícia de Brás Cubas para revelar as intenções do livro.
Quanto às demais alterações realizadas no texto, Zilberman menciona trocas
e supressões de palavras, cortes de trechos, rearranjo de capítulos e inserções. Todavia,
garante que se concentram no início e no final da narrativa as inovações de destaque e
recursos criativos destinados a abalar boa parte das convenções vigentes na prosa de
ficção da época em que Memórias Póstumas de Brás Cubas fora lançado. Um exemplo
encontra-se no capítulo IX, intitulado Transição, em que o defunto autor, após
descrever, nos capítulos anteriores, informações de sua vida adulta, retrocede ao dia em
que nascera. Na versão em folhetim, o capítulo termina com a afirmação de que a
narrativa apresenta todas as vantagens do método, sem a rigidez deste. Já na passagem
para o livro, verifica-se a ampliação de tal discussão, em que o narrador garante que,
embora o método seja algo indispensável, torna-se mais proveitoso deixá-lo livre, “sem
gravata nem suspensórios”.
98
Assim, segundo Zilberman, com o acréscimo de tal comentário, o narrador
elucida sua compreensão do método, que, no texto, configura-se de forma contrária às
convenções usuais da prosa memorialista, marcada pela ordem cronológica crescente. A
pesquisadora acrescenta que essa pequena inserção revela, juntamente com o conjunto
de manifestações iniciadas através da substituição da epígrafe pela dedicatória, seguida
do acréscimo de Ao leitor e do Prólogo à quarta edição, a poética do romance, pois,
nessas ocasiões, o autor explicita, tanto em nome de Brás Cubas quanto de si próprio, “o
programa que rege a elaboração do romance, sobre o qual o controle é exercido e as
reações, manipuladas” (ZILBERMAN, 2004, p.53).
Se Memórias Póstumas de Brás Cubas inaugura nova fase na produção
machadiana em virtude das inovações que a narrativa apresenta, também o faz por dar
início à prática de reescrita, em que se revela o trabalho autocrítico do autor. Todavia, a
preocupação com a recepção do texto, evidenciada primeiramente por intermédio das
alterações impressas à segunda versão de Quincas Borba, datada de 1891, só se
manifesta na quarta edição das Memórias, lançada em 1899, através da inserção do
prólogo no qual o escritor responde a questionamentos levantados pelos resenhistas que
se ocuparam da análise da obra. Assim, parece que a reelaboração de Quincas Borba
influenciara, além da revisão de Iaiá Garcia, também a retomada do romance
protagonizado por Brás Cubas.
Destarte, evidencia-se a relevância que a revisão dos textos assume na
produção do escritor. A reescrita de um é capaz de impulsionar a reelaboração de outro,
proporcionando o aprofundamento, o reaproveitamento e a renovação dos aspectos
modificados, procedimento que certamente contribuíra para o aperfeiçoamento de
criações posteriores, bem como para a consolidação da poética desenvolvida por
Machado de Assis ao longo de sua carreira.
99
4.3 O papel da reescrita no processo de (re) criação machadiana
Em virtude das informações acima mencionadas, é possível perceber que a
preocupação com a reescrita dos textos tornou-se exercício constante na trajetória de
Machado de Assis. Examinando as datas das publicações e reedições (com alterações)
dos romances, verifica-se que, pela proximidade entre elas, tanto o trabalho de criação
quanto o de reelaboração ocorriam de forma quase simultânea. Veja-se o quadro a
seguir:
Tabela 1 – Cronologia das edições dos romances machadianos57
1872 Ressurreição primeira edição em livro – abril
1874 A mão e a luva
� publicação em folhetim – 26 de setembro a 3 de novembro
� primeira edição em livro (sem alterações) – dezembro
� advertência datada de novembro
1876 Helena � publicação em folhetim – 06 de agosto a 11 de
setembro
� primeira edição em livro (sem alterações) – outubro
1878 Iaiá Garcia
� publicação em folhetim – 01 de janeiro a 02 de março
� primeira edição em livro (sem alterações) – abril
� término da redação – setembro de 1877
1880 Memórias
Póstumas de Brás Cubas
� publicação em folhetim – 15 de março a 15 de dezembro
1881 Memórias
Póstumas de Brás Cubas
� primeira edição em livro (com alterações) – janeiro
1886 Quincas Borba � início da publicação em folhetim – 15 de junho
57 Informações obtidas em SOUSA, J. Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura; Instituto Nacional do Livro, 1955. Cumpre registrar que os livros traziam a data da edição, mas sua chegada às livrarias normalmente ocorria meses depois.
100
1891 Quincas Borba
� término da publicação em folhetim – 15 de setembro
� primeira edição em livro (com alterações) – setembro
Memórias Póstumas de Brás
Cubas � segunda edição em livro (com alterações) – julho
1896
Quincas Borba � segunda edição em livro (sem alterações) – mês (?)
1898 Iaiá Garcia � segunda edição em livro (com alterações) – fevereiro
Memórias Póstumas de Brás
Cubas � terceira edição em livro (com alterações) – julho
1899
Quincas Borba � terceira edição em livro (sem alterações) – mês (?)
1900 Dom Casmurro
� primeira edição em livro – março
� término da redação – outubro de 1899
� finalização da composição tipográfica – dezembro de 1899
1904 Esaú e Jacó � primeira edição em livro – junho
Ressurreição � segunda edição em livro (com alterações mínimas) – janeiro
1905 Helena
� segunda edição em livro (com alterações) – mês (?)
� advertência datada de novembro de 1903
1907 A mão e a luva � segunda edição em livro (com alterações mínimas) – mês (?)
1908 Memorial de Aires � primeira edição em livro – julho
Cumpre registrar que, além dos romances acima relacionados, também os contos
(mais de cem ao todo) assumiram importância na carreira do escritor, que chegara a
lançar parte deles em folhetim, como é o caso de Casa Velha, publicado na revista A
Estação, entre 15 de janeiro e 28 de fevereiro de 1885, e que também passou pelo
processo de reescrita. Ainda integram a produção machadiana poemas, crônicas, crítica
literária e teatral, editoriais, o que demonstra o trabalho abrangente e incessante
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realizado pelo autor durante toda a sua carreira, marcada pela colaboração em mais de
vinte periódicos. E, mesmo assim, o escritor ainda dispunha de tempo para revisar os
próprios textos antes de relançá-los, não obstante a época à qual pertenciam.
Cabe lembrar que, no início da carreira, em 1858, Machado de Assis
trabalhara como revisor de provas junto à livraria de Paula Brito. Portanto, data
desse período o desenvolvimento da habilidade da qual o autor se valera ao
reescrever seus textos e que assumira considerável importância para a consolidação
de sua poética. Ao contrário do autor de Memorial de Aires, José de Alencar não
apreciava tal exercício. Em Como e porque sou romancista, o autor reclama da
necessidade de se ocupar da revisão dos próprios textos: “se eu tivesse a fortuna de
achar oficinas bem montadas com hábeis revisores, meus livros sairiam mais
corretos; a atenção e o tempo por mim despendidos em rever, e mal, provas
truncadas, seriam melhor aproveitados em compor outra obra”58. Alencar não
percebia a relevância da qual a releitura dos próprios textos poderia se revestir,
auxiliando no aprimoramento de produções futuras, algo de que o autor de Esaú e
Jacó soubera tirar proveito.
Quanto à reescrita de Quincas Borba, é lícito ressaltar sua distinção em relação às
demais pelo fato de a primeira versão em livro, que conta com as inúmeras modificações
cujos exemplos mais significativos foram apresentados no segundo capítulo da presente
investigação, ter sido lançada dias após o término da publicação em folhetim. Esse curto
período certamente não seria suficiente para proceder a tantas alterações, o que
significa que a reelaboração tenha sido realizada à medida que saíam os números da
58 ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. In: Obra completa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951. v.1. p. 72-73.
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revista A Estação. Portanto, há pelo menos duas hipóteses a considerar: a) ao mesmo
tempo que escrevia para o periódico, o autor refazia o texto, trabalhando de forma
simultânea; b) a primeira versão, a exemplo do que ocorrera com Iaiá Garcia, teria sido
finalizada antes do início da publicação em partes, durante a qual o escritor se ocupara
da tarefa de dar nova forma à primeira redação do romance.
De qualquer forma, ambas as possibilidades apontam para a mesma evidência: a
convicção do autor de que havia a necessidade de adequar o texto a novo suporte
material e, conseqüentemente, a novo leitor, o que se procurou demonstrar na análise
apresentada no terceiro capítulo desta investigação. Todavia, não se pode negar que tal
procedimento foi acompanhado por um exercício minucioso de aprimoramento do texto,
em que se verifica, em primeira instância, desvelo considerável no tocante à linguagem e
ao estilo, revelando o trabalho autocrítico a que o escritor submetera a totalidade da
narrativa.
Por outro lado, a reescrita dos demais textos, possivelmente impulsionada pelo
procedimento realizado em Quincas Borba e levada a termo anos depois de seu
lançamento, evidencia a preocupação constante de Machado de Assis com a própria
obra. Apesar de ter abandonado o estilo das primeiras narrativas, caracterizadas por
certa influência romântica, bem como por uma postura deveras explicativa do
enunciador, o autor não deixou de revisitá-las, buscando o aperfeiçoamento dos textos,
sem alterar-lhes a feição, e reconhecendo a importância que assumiram na sua trajetória
de ficcionista.
Essa prática, além de contar com o objetivo de melhorar as composições
anteriores, também proporcionava ao escritor rever certos princípios, a fim de melhor
desenvolvê-los em criações posteriores, nas quais a crítica, ao longo dos anos, tem
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apontado a maturidade literária adquirida e aprimorada por Machado de Assis a partir de
Memórias Póstumas de Brás Cubas. Nessa fase da produção do escritor, é possível
verificar a manutenção da presença marcante do narrador, mas sem a intervenção
ostensiva das primeiras produções, proporcionando maior participação do interlocutor.
Cumpre relembrar que tal postura é expressa em comentário eliminado da primeira
versão de Quincas Borba e apresentado no terceiro capítulo da presente análise:
“arrenego de um autor que me diz tudo, que me não deixa colaborar no livro com a
minha própria imaginação. A melhor página não é só a que se relê, é também a que a
gente completa de si para si” (ASSIS, 1976, p.31).
E foi igualmente através da releitura e da complementação das páginas escritas
do próprio punho que o autor de Quincas Borba buscou cumprir o papel que ele próprio
atribuíra ao escritor, a quem se refere como “operário”, na advertência de seu primeiro
romance, Ressurreição, datada de 1872: o de preocupar-se com o ofício da escrita, em
que não há lugar para a improvisação e o diletantismo. Ao solicitar à crítica “expressão
franca e justa”, dispensando os aplausos não fundados no mérito, o então estreante
romancista afirma que “quem tem vontade de aprender e quer fazer alguma coisa,
prefere a lição que melhora ao ruído que lisonjeia”. Mais adiante, reconhece estar
trilhando o início de um longo caminho, pois garante que a reflexão adquire o seu
império através do tempo, no qual o autor inclui “a condição do estudo, sem o qual o
espírito fica em perpétua infância”59.
59 ASSIS, Machado de. Ressurreição. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1998. p.13.
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CONCLUSÃO
O exame da obra de Machado de Assis é capaz de proporcionar a
identificação de “uma verdadeira filosofia da arte de escrever”. Tal afirmativa de Eugênio
Gomes (op. cit. p.11) é verificável através da análise da reescrita de Quincas Borba,
especialmente em virtude de duas constatações: a manifestação da consciência do autor
no tocante à distinção entre o público leitor de folhetins e o de livros, bem como o
acurado senso crítico com que trata a própria obra. Ao reformular o romance, o escritor
não apenas corrige-lhe o estilo, mas o ajusta a novo suporte material e,
conseqüentemente, a novo leitor.
Embora contemporâneo às doutrinas positivistas do século XIX, preocupadas
com o lado produtivo do processo de comunicação, centrando a crítica na biografia do
autor e no contexto histórico em que ele se inseria, Machado de Assis parece estar em
consonância com os estudos que focalizam a recepção e que, como se procurou
demonstrar no primeiro capítulo desta investigação, só assumem importância no século
XX. Ao transformar a narrativa do folhetim em livro, o autor manifesta a consciência de
que a primeira versão assume caráter transitório, pois contempla uma massa leitora
específica, cujas preferências devem ser levadas em consideração, enquanto a edição
em volume tem a seu favor o caráter de permanência, que lhe confere a possibilidade de
atingir leitores de épocas distintas, com perspectivas e gostos cambiantes. Essa
percepção se deve, muito provavelmente, ao fato de o escritor ter desempenhado o
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papel de jornalista, assumindo diversas funções, o que lhe possibilitou conhecer o perfil
de seus leitores e compreender a necessidade de a ele adequar sua produção,
transformando-a em algo rentável para os jornais em que atuava.
Todavia, ao adotar tal postura, o autor não se deixou influenciar pelo molde
da grande maioria das narrativas folhetinescas, caracterizadas por um apelo ao
sentimentalismo e à aventura, como é o caso dos romances de Alexandre Dumas, autor
citado no próprio Quincas Borba e cujos livros contribuíam para os devaneios do
protagonista. O escritor, de forma arguta, utiliza o narratário da primeira versão, cujas
preferências coincidem com as do leitor real, como elo entre este e a história de Rubião,
que, entretanto, em muito difere das narrativas que costumavam agradar a massa
leitora do século XIX. Embora mantenha a conexão narrador-narratário, de que decorre
a oralidade do estilo e a proximidade com os leitores, Machado de Assis, no romance em
livro, exclui passagens que se aproximavam do sentimentalismo fácil das narrativas
folhetinescas e acentua a diferença entre narratário e leitor implícito, quase nula na
primeira versão.
A reelaboração de Quincas Borba revela ainda a habilidade do escritor em
proceder a alterações não só de caráter enunciativo, através das quais se evidencia com
maior clareza a adequação a novo público, como também de natureza estrutural,
diegética e lexical, sem alterar as linhas gerais da história. O autor demonstra a já
mencionada “intuição cirúrgica” apontada por Augusto Meyer e reveladora do senso
autocrítico com que tratava sua obra. Essa constatação é reforçada pela hipótese de que
a reescrita da narrativa protagonizada por Rubião tenha motivado a retomada de outros
romances, como é o caso de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Iaiá Garcia. Evidencia-
se, portanto, o desvelo constante de Machado de Assis em tornar a revisão dos próprios
textos, atividade encarada com fastio por José de Alencar, parte do processo de criação,
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no qual a releitura, como garante Wolfgang Iser, permite o surgimento de novas
descobertas. Assim, abre-se ao escritor a possibilidade de renovar a si mesmo,
aprimorando e consolidando a própria poética.
Em razão de fatores como os supracitados, a obra de Machado de Assis
assume lugar de destaque não só na literatura nacional como também universal,
emergência de que decorre sua inclusão entre os gênios que marcaram o século XIX.
Segundo Harold Bloom60, Machado de Assis distingue-se por sua capacidade criadora,
alimentada pela dedicação à arte de escrever. O autor prestigia o esforço contínuo e
permanente, exigido em um processo de aprendizagem, valoriza o esmero técnico e
enfatiza a importância do comportamento reflexivo e do distanciamento crítico em face
das produções literárias pessoais e alheias. Portanto, a análise da reescrita de Quincas
Borba permite concluir, acima de tudo, como afirma Juracy A. Saraiva (2003, p.44), que
Machado de Assis “declara a natureza artesanal da literatura e diante dela assume o
papel de artífice que, todavia, somente se expõe pela efetiva participação do leitor”.
60 BLOOM, Harold. Gênio. São Paulo: Objetiva, 2003.
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