folhetim - sofia

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Por Juliana R.

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Escrito por Juliana R. Projeto Cedaspy 2012

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Por Juliana R.

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Sumário Capítulo 1– Sexta-feira. ................................................................................................................. 3

Capítulo 2 – Uma dose e nada mais. ............................................................................................. 6

Capítulo 3 – Sempre há um motivo. .............................................................................................. 9

Capítulo 4 – O que se espera de um domingo? .......................................................................... 12

Capítulo 5 - Canal 12 ................................................................................................................... 16

Capítulo 6 – Nirvana Night .......................................................................................................... 20

Capítulo 7 – Se joga naquilo que te dá vontade ......................................................................... 24

Capítulo 8 – Contando o tempo .................................................................................................. 27

Capítulo 9 – Vivendo o pesadelo outra vez ................................................................................. 29

Capítulo 10 – Larissa ................................................................................................................... 31

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Capítulo 1– Sexta-feira.

Minha sexta-feira não havia começado como sempre. Primeiro, acordei com John gritando no meio da rua. Se você quer saber, John é um desses doidos varridos que a gente encontra no meio da rua, mas que acaba se rendendo à simpatia. Não sei se o resto do mundo se rende a simpatia de um doido que mora na rua, mas John tem um brilho nos olhos puro e inocente. Talvez eu seja mais doida do que ele. De qualquer modo, John gritava algo sobre: faça a sua vida valer a pena. Isso me tirou da cama uma hora antes do despertador tocar. Nada bom, nada bom. Sinal de que o dia vai ser complicado. Sem nada para se fazer e sem muitas opções às seis da manhã, me sinto totalmente obrigada a passar um café – ou tentar, imagino que esse seja o pior café que se pode encontrar no quarteirão. Minha mãe – nas raras vezes que me visita, sempre acaba jogando fora e passando um novo, daquele jeito que só uma mãe sabe. Não restam escolhas, tomo o café sem fazer careta e sinto saudade de quando tinha dezesseis anos. Era tudo tão mais... Fácil. Chacoalho a cabeça como quem quer tirar um enxame de abelhas, mas na verdade, só gostaria de afastar esses pensamentos nostálgicos. Sentir saudade nunca foi o meu forte. Saudade, que palavra estranha. Às vezes escuto John falar sobre saudade, principalmente quando me encontra na rua. Pelo pouco que sei, John era um rockeiro quando mais novo, vivia de shows, drogas e bebida. Ele diz que se casou e teve dois filhos – que hoje sentem vergonha dele. Isso é tudo o que sei, ele nunca termina de contar porque sua loucura não permite. Sempre que para neste ponto começa a falar sobre como veio de marte e que lá existe vida sim, mas que eu estou proibida de comentar. Tomo um banho, seis e meia. Procuro algumas peças de roupa pela casa, seis e quarenta e cinco. Pego as chaves do apartamento, fecho as janelas, saio, tranco a porta, seis e cinquenta. Desço, dou alguns passos, sete horas. Estou na frente do café em que trabalho. Mauro, um senhor de quarenta e poucos anos trabalha no turno da noite, quando chego, ele já aliviado me sorri. — Sempre pontual hein, Sofia?

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— Você sabe como eu odeio atrasos. — Ótima qualidade, pessoas pontuais me interessam – ele ri. — Sempre trovador hein, Mauro? Ele puxa a porta, me dá um abraço e me diz que infelizmente nossa máquina de expresso emperrou novamente. John gritando na rua, máquina de café com defeitos. Tudo bem deve ser alguma conspiração. Sem crises. — Então é isso Sofia, não acho que você terá problemas com isso. Sexta-feira, o máximo que você vai usar hoje é a máquina de Chopp. — Você deveria transformar isso aqui num pub Mauro, um verdadeiro pub. — Prefiro cafeteria. — Que diabos de cafeteria é essa que tem uma máquina de Chopp? Mauro dá de ombros, se despede de mim e diz que volta logo. Ainda me lembro como se fosse ontem quando minha mãe me apresentou pro Mauro. Eu tinha acabado de fazer dezessete anos, nenhuma ideia de onde procurar emprego, nenhuma ideia do que fazer então minha mãe me trouxe até aqui. Chegando à porta, minhas impressões sobre o lugar não foram das melhores. Talvez eu achasse meio tedioso trabalhar numa cafeteria onde aparentemente ninguém entraria. O problema é que Mauro gostou de mim, o problema é que Mauro gostava da minha mãe – parece que, antes da minha mãe conhecer meu pai, os dois tiveram um ‘’lance’’, como minha mãe gosta de rotular – e aí ele me deu o emprego. Já se passaram dois anos e tudo acabou mudando radicalmente. Guardei o máximo de grana que podia e quando completei dezoito anos, me mudei pro meu atual apartamento, com o resto, investi no meu gosto por fotografia. Mauro ainda não sabe, mas hoje é meu último dia aqui. Pretendo seguir minha carreira de fotografa, e com uns contatos aqui e outros ali, acabei conseguindo uma vaga pra fotografar eventos variados. Shows de rock, baladas, casamentos e qualquer tipo de coisa que me renda algum lucro. De todo jeito, deve ser isso que John queria dizer, valer a pena. *** Alguns clientes entram e saem do café durante a manhã toda, nada de especial. Quando a tarde começa se aproximar, o ritmo de entrada e saída do café aumenta. Todos saindo do trabalho e

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passando pra tomar a velha cerveja da cafeteria que mais deveria parecer com um pub. Lá pelas nove e tantas da noite, Mauro retorna e meu turno acaba. Hora de dar a notícia. — Mauro, podemos conversar um minuto? — Conversar? Você decidiu se render aos meus enquanto de um quarentão com tudo em cima? – risos e mais risos. — Na verdade, queria te agradecer pela oportunidade há dois anos. — O que você tá querendo dizer, Sofia? — É meu último dia aqui – digo com a voz tão baixa que mal posso escutá-la. Um silêncio horrível se espalha pelo ar. — Você tá dizendo que vai ir embora? — Não vou embora. Eu só arrumei outro emprego. — Não acredito que você vai fazer isso comigo... – ele para e eu tenho a péssima impressão de que ele vai chorar. — Olha Mauro, por favor... Ele começa rir. Ri tanto que espalma as mãos na frente da própria cara, depois segura a barriga e bate as mãos na mesa. — Qual é Sofia, você tá mais do que certa. — Como você é desagradável. — Achou mesmo que eu ia sentir sua falta? – ele olha de canto. — Ual, eu acho que você deveria pelo menos fingir. Ainda não fui embora. — Mas me diga o que você vai fazer? — Fotografar. — Sério? Que ótimo! Parabéns Sofia, de verdade. Ele me abraça, diz um milhão de vezes que eu levo jeito pro negócio e que eu posso contar com ele pra tudo. No fim das contas, não foi tão difícil assim. Vai ver que ele já estava de saco cheio de olhar pra minha cara. Antes de ir, Mauro me pede para que eu dê a honra de tomar um café e passar mais algum tempo na cafeteria. Eu aceito, ir pro meu apartamento agora não é uma das melhores opções. Essa coisa toda de um novo emprego me assusta um pouco, talvez. Novas pessoas, situações e tudo isso que eu vou ter que aprender a lidar agora. Não recuso o convite, peço um expresso, me sento. Minha última noite como funcionária da cafeteria.

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Capítulo 2 – Uma dose e nada mais.

De todos os locais possíveis abertos há esta hora na cidade, ela entra logo aqui. Suspeito que tenha tomado chuva, pois suas roupas parecem um tanto quanto ensopadas. Ela olha em volta e se dá conta de que, não existe mais ninguém além do Mauro e de mim no local. Parece bêbada, talvez tenha saído de alguma festa incrivelmente chata e decidiu parar em algum lugar pra tomar um café. Ela se senta, pede alguma coisa e eu volto pra minha leitura. Não é nada tão extraordinário assim, alguns textos de Gabito Nunes onde eu me identifico pelo jeito engraçadão de falar. Por algum motivo – que eu nem sei dizer qual – ela se levanta e vem até minha mesa, se senta, e puxa assunto. — Tá lendo o que? — Gabito Nunes. — O cara de Juliete Nunca Mais? — Ele mesmo. — Queria ter a sorte de Juliete, não é todo dia que se encontra alguém como Santiago. — Pode ser que sim. Depende do dia. O garçom trás uma dose de tequila. Errei o tal do pedido não era de café. Ela vira tudo de uma só vez e nem precisa do sal e do limão. Continua falando. — Sabe, eu não sou daqui. —Percebi. —Sério? Como? — As pessoas daqui não costumam se sentar-se à mesa com estranhos. —As pessoas daqui devem ser chatas, então. Infelizmente concordo com tal afirmação. As pessoas daqui parecem sempre com pressa. Na verdade, elas estão sempre com pressa. Andando de um lado pro outro, sem vontade de sorrir, sem vontade de olhar ao redor, ou quem sabe, pro céu. Tenho essa mania com o céu, o acho incrivelmente lindo – ainda mais de noite, com a lua dando um brilho especial. — Como é teu nome? – ela pergunta entre soluços. —Qual você acha que é?

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— Você tem cara de, sei lá, Larissa. — Sofia, prazer. E o teu? — Larissa – ela ri – Tenho cara de Larissa também. — Bonito nome, Larissa. Depois dessa grande apresentação, ficamos em silêncio por alguns minutos até que ela resolve abrir a boca novamente. — O que você faz da tua vida, Sofia? — Canções, textos, fotos. — Você tem cara de inteligente mesmo. — Pode ser. — E é sempre assim, antissocial? Respiro fundo. Procuro uma resposta que não soe grosseira, afinal, ela é só uma guria bêbada tentando socializar no meio da madrugada em um café que fica aberto 24horas em pleno sábado. — Não, só quando eu estou lendo. — E por que ler num café há essas horas? —Porque meu apartamento parecia um tanto chato. Não sei qual a probabilidade disso acontecer, mas aconteceu comigo. Geralmente não se espera que ninguém puxe assunto com você logo numa situação dessas. Já que ela começou, decido continuar. — E você, Larissa, por que puxar assunto com desconhecidos que leem de madrugada num café? — Porque tu parece ser mais legal que o resto das pessoas que eu conheço. — Não posso confirmar, não sei das pessoas que você conhece. — Egoístas cheias da grana, mimadas, idiotas, infantis. — Bêbadas também? — Não estou bêbada! – mais alguns soluços. – Você não bebe? — Bebo. E o melhor de tudo, não puxo assunto com os outros. — Duvido! Aposto que você faz coisas piores. — Talvez, mas geralmente não me lembro depois. Nós rimos em conjunto. Desisto de ler e me rendo ao assunto. Aos poucos, acho que ela vai ficando sóbria e decide ir pra casa. Me pergunta se quero uma carona, recuso, afinal meu apartamento fica

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perto o bastante para que eu possa ir a pé. Me despeço e começo meu trajeto quando escuto Larissa falar algo: — Olha, eu não estava bêbada ok? Talvez um pouco contente. Vou lembrar de você amanhã. Aceno e sigo meu rumo. Tudo bem, você vai se lembrar de mim amanhã, mas não vai fazer diferença. Chego ao meu apartamento em menos de dez minutos. Tudo tranquilo, ainda são quatro da manhã de um sábado. Adentro meu recinto sem fazer o mínimo de barulho e me sinto como se fosse assaltar o local. Pego a garrafa de vinho que já encontra na metade, coloco um terço em um copo e me dirijo pro sofá, quem sabe eu consiga terminar minha leitura, o grande problema é que, ao pegar o livro, me dou conta de que um papelzinho cai do meio das folhas. ‘’ Uma dose de tequila Sofia, pra acalmar o coração. 95845-2563 Call me maybe, L.’’ Não sei como, não sei por que, pode ter sido quando dei uma pausa para ir ao banheiro. Quem em sã consciência puxaria conversa com alguém que lê de madrugada no café da esquina? Definitivamente, as pessoas são loucas. E o pior de tudo: Larissa tinha olhos bonitos.

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Capítulo 3 – Sempre há um motivo.

Uma semana se passou e John pegou o péssimo hábito de me acordar antes da hora aos gritos. Não sei o que anda acontecendo. É possível alcançar um novo nível de loucura? — AS COISAS ACONTECEM POR UM MOTIVO. SEMPRE HÁ UM MOTIVO. Vou até a janela e vejo que John segura debaixo do braço seu velho violão. O problema é que ele continua gritando e eu sou obrigada a gritar também. — JOHN, PARA DE GRITAR. —SOFIA – me admira saber que ele lembra meu nome – SOFIA, A MENINA DOS OLHOS VERDES. — TUDO BEM JOHN, PARA DE GRITAR. — SÓ PORQUE VOCÊ PEDIU! MAS CUIDADO, ELES ESTÃO VINDO. CUIDADO SOFIA, CUIDADO. — OK JOHN, ELES NÃO VÃO ME PEGAR. Tenho que rir. Fico imaginando o que minha mãe diria se visse essa cena. ‘’Você é mais louca que o louco. ’’ Essa seria uma daquelas cenas que você conta pros parentes em uma reunião de família. Isso nunca vai acontecer, a família da minha mãe não é nada unida e a família do meu pai... Bem, eles não nos procuram desde papai morreu, há dez anos. Uma briga. Bebida. Carro. Eu tinha nove anos quando isso aconteceu e eu posso dizer que não é uma das experiências mais legais pra uma criança de nove anos. Se tudo acontece por um motivo, John, qual seria o motivo desse acidente? *** Flashback – Manhã do acidente. — Sofia, o que você quer ser quando crescer? —Cuidar das pessoas. — Cuidar das pessoas? Uma médica? — Não papai, cuidar das pessoas por dentro. — Não entendo Sofia. Me explica melhor. —Quando mamãe chora você vai lá e dá um abraço nela, aí ela para de chorar. Quero assim.

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—Agora eu entendi!– sorriso – Espero que você cuide bem das pessoas então, Sofia. *** São sete horas da noite. Hoje é meu primeiro dia de trabalho, pelo que me falaram, vou fotografar uma festa à fantasia e tenho que ir fantasiada. Pensei em mulher gato, mas eu não tenho o mínimo sex appeal pra isso. Depois, achei viável ir de espiã, sem graça. Decidi então comprar só uma máscara, colocar minha melhor roupa preta e tentar me lembrar de que não estava indo pra um velório. Em cima da mesa o bilhete de Larissa permanecia jogado durante toda a semana. Claro que eu não ia ligar, não era plausível. Só seria legal entender o porquê, mas no final das contas, nenhum bêbado tá tranquilo quando diz que tá, ou seja: ela não se lembraria de nada. Deixei o papel de lado e segui rumo à festa. O mais legal de tudo é que mandaram um carro particular me pegar em casa. Nada de táxi, nada ônibus. Um carro só pra mim. Quando fui acertar o tal contrato no meio da semana tive noção de que esse emprego novo ia mudar as coisas, mas não assim. Demorou cerca de quarenta minutos até chegar a tal festa. O som já era alto o bastante pra se ouvir dentro do carro, quando as portas abriram, parecia mais que o motorista havia estacionado dentro da balada. Muita gente. Quase tanta gente fora do que dentro. Tudo escuro, exceto pelas luzes que pareciam brincar entre si. Garçons pra lá e pra cá com as bandejas lotadas, queria que Mauro tivesse aqui. Peguei uma dose de tequila, engoli tudo de uma só vez e comecei a trabalhar. A maioria das garotas só usavam máscaras. Tinham alguns caras fantasiados de heróis do tipo Batman, Homem-Aranha, Super-man. Algumas mulheres maravilha, chaves, coringa, um cara nu com uma placa preta. Todos dançando como se não houvesse amanhã e pedindo alguns clicks. Realmente, queria que o Mauro visse isso. No meio do caminho houve milhões e milhões de pedidos de: por favor, só mais uma foto. Era engraçado até. Por volta das três da manhã, me disseram que eu podia ir curtir por aí e deixar as fotos de lado. Não deu tempo de pensar duas vezes. Algumas vodcas e tudo bem. Me misturei com o pessoal, dançando e derrubando bebida no meio da pista e cantando Madonna com todas

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as forças. Tudo lindo, até que pisei no pé de alguém e notei que meu nível etílico já não me permitia andar em linha reta. — DESCULPA – gritei. — O QUÊ? NÃO OUVI. — DESCULPA! — NÃO ESQUENTA. Tentei manter o equilíbrio com aquele tanto de gente dançando em volta e me empurrando. Pisei no pé de uma garota vestida de sei-lá-o-que, mas ela estava com o rosto quase todo coberto por uma máscara cheia de plumas e frescuras. Acho que ela estava fantasiada de meretriz, parecia. Ela dançava de um jeito que chamava atenção, um jeito bem bonito. Puxei ela pela mão, mais uma dose de tequila. Que mal pode acontecer? — QUEM É VOCÊ? – ela pergunta meio louca. — Não importa – falo em seu ouvido – Esquece, vem comigo. — PRA ONDE? — Sei lá – comecei a rir e saí puxando ela pela mão. No meio da escuridão, achei uma parede vaga e beijei a tal menina. Não quis saber de mais nada. Ela tinha um perfume bom também, algo parecido com roupa limpa. Não sei definir perfumes, mas era bom. Passamos tempo o bastante lá, até que ela decidiu que precisava ir. — Tenho que encontrar meus amigos – ela sussurrou. — Quem é você? — Meu nome é... Quando ela finalmente ia dizer, alguém a puxou. Algum dos amigos idiotas, eu acho. A única coisa que eu percebi antes dela sumir foi uma tatuagem no ombro, uma caveira mexicana no ombro. Aí a garota sumiu, mas três doses de vodca apareceram e tudo o que eu queria era saber se podia ir pra casa; e eu podia, pra minha sorte.

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Capítulo 4 – O que se espera de um domingo?

Acordei em casa e não sei como consegui vestir o pijama. Pra minha infelicidade, hoje o dia não era propício pra nada. Hoje se completam onze anos desde que meu pai se foi. Minha mãe mantém a mania de levar flores e me obriga a ir junto. Entre não ir e aguentar todo aquele dramalhão de mãe eu prefiro ir, é mais rápido e fácil de aguentar. Uma hora e meia se passa até que eu me arrume e saia de casa. Ainda são dez da manhã e eu me encontro parada em frente ao cemitério esperando. Geralmente cemitérios são lugares tão tranquilos que me dão sono. Eu dormiria se pudesse, mas minha cabeça parece o sino da praça central nessa manhã, fazendo aquele barulho horrível sem trégua. Maldita ressaca. Dez e meia da manhã. Meia hora de atraso. Além da dor de cabeça que não cessa, me sinto infeliz da vida por ter que esperar. Atrasos me deixam de mau humor. Deveria ter me atrasado – de certo, ela não me esperaria. Resolvo me sentar em frente ao portão e me coloco a pensar que essa situação não é necessária. Meu pai não precisa de flores, seja lá onde ele esteja. Ninguém aqui precisa. Basta que você se lembre de quem se foi com carinho e o resto não importa. Nunca vou entender essas manias idiotas que as pessoas têm, de querer provar pro mundo o que elas sentem, o que elas pensam, o que elas fazem. Provar o que pra quem? Quem quer saber? Isso soa mais como autoafirmação, e pra mim, isso soa como ‘’eu não tenho certeza do que isso representa pra mim, mas se os outros souberem, pode ser que seja bom. ’’ Baboseira. Perco as esperanças, vai ver que minha mãe decidiu quebrar o ritual e não vai aparecer. Ótimo, ela é a única por aqui que se sente bem fazendo isso. Minha sorte não dura muito tempo, assim que me levanto, ela aparece. — Me atrasei – ela diz entre o buquê de flores enormes que trás consigo. — Deu pra perceber. Vamos acabar logo com isso?

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Assim que termino de falar, ela emburra a cara. Isso tem acontecido com muita frequência nos últimos anos. Nossa convivência é baseada no que ela acha certo para mim e no que eu faço de errado. — Mauro me ligou para dar os parabéns pela sua nova carreira. Dou de ombros e continuo andando. Não quero tocar no assunto. Não quero sermões. Não consigo evitar. —Ótimo, sua mãe agora é a última a saber da sua vida. — Ninguém sabe de nada ainda. Sem dramas. — E o que exatamente você faz agora? — Tiro fotos. — Hum, interessante – ela ri ironicamente – E você trabalha em um estúdio ou algo do tipo? — Pode ser que sim. Ontem tirei fotos em uma balada. — Isso explica o seu novo odor. Olho para ela e dou uma leve cheirada no colarinho da minha blusa. Deveria ter tomado um banho antes de vir. — Por favor, não me dê sermões hoje. Eu já tenho 19 anos, não moro mais com você e me sustento. As coisas não estão tão erradas assim. — Esse não é o problema Sofia – ela para, segura em meu braço – Você parece mais com o seu pai do que pensa. Não aprovo a vida que você leva. — E que vida que eu levo? — Você sabe... — Vamos lá, diga. Não sei por que você tem que tocar nesse assunto. — Não preciso dizer você sabe do que estamos falando. — Sei. E o fato de gostar de garotas não muda em nada. Mesmo se eu estivesse casada agora, com três filhos, uma casa rosa e um cachorro pra chamar de Bob eu seria essa grande merda aqui que você acha que eu sou. Ela solta meu braço e continua andando. Se antes eu queria ir embora, agora eu quero sair correndo. Por fim, chegamos ao túmulo de meu pai. Aquela velha sensação ruim volta, saudade, eu acho. Leio sua lápide e as coisas só pioram: Um homem e um pai calorosamente amados. Ele não era só isso. Ele nunca seria só isso. ***

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Flashback – Manhã do acidente — Papai, você tá triste? — Um pouco, Sofia. Mas isso é normal, vai passar. — Me abraça papai, vou curar você. — É claro que vai Sofia. – ele me abraça – Já me sinto bem melhor, obrigado. ... — Sofia, você vai ser aquilo que quer ser. E não se importe se alguém disser que não está certo, você vai saber se está ou não. *** Finalmente estamos indo embora. Minha mãe se oferece para me levar em casa, recuso o máximo de vezes possíveis, mas não adianta. Ela quer me dar sermão, não há escapatória. — Posso arrumar um novo trabalho para você. ... — Em um escritório. O único problema são suas tatuagens, o seu cabelo descolorido. Mas você pode pintar e usar uma blusa com mangas. — Eu não quero. Já tenho um trabalho. — Mas você vai ter um futuro. Respiro fundo. Sem discussões Sofia, não adianta. Fique tranquila, respire. — Vai ganhar mais. Vai poder arrumar um lugar melhor e... — EU NÃO QUERO A DROGA DA SUA AJUDA. Ela me olha chocada. É a primeira vez que grito com ela de verdade. Todos os sermões, seja isso, seja aquilo, blábláblá, futuro, tudo isso me fazia sentir como um vulcão, acumulando forças pra explodir. Se a hora era essa eu não sabia, mas dane-se. — Não grita comigo Sofia, eu ainda sou sua mãe. — O problema é seu. Você não vê o que fez e continua fazendo? Eu não quero saber do seu emprego bonitinho, não quero esconder minhas tatuagens, não quero pintar o cabelo. Que saco. Eu não

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quero a merda da sua vida perfeita. Minha vida anda ótima, se você quer saber. — Igual ao seu pai. — Ainda bem. Odiaria parecer com você. E para a droga desse carro, eu prefiro ir a pé. Ela para o carro em uma esquina qualquer e me deixa descer. Bato a porta forte o suficiente pra quebrar um vidro, pena que não quebra. Vou seguindo a passos lentos. Ela ainda dá a última palavra. — Talvez eu não saiba lidar com você tão bem quanto seu pai, mas eu amo você Sofia, só quero o melhor. Tento ignorar, mas não consigo. — Se você quer o melhor, não tenta me mudar. — Um dia você vai saber o que é perder o que você ama e vai me entender. — Vai pra casa mãe, palavras não importam. — Se cuida, Sofia. Ela acelera e some virando a esquina. Que droga.

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Capítulo 5 - Canal 12

Já estamos no meio da semana. Passei os últimos três dias editando fotos, alternando entre o café e o vinho e dormindo quando possível. Repasso as fotos para ter certeza de que as melhores vão chegar até o e-mail do meu chefe. Trabalho terminado. Entre essas fotos, talvez eu tenha achado uma em que a tal garota sai meio de canto, antes mesmo de ter ficado comigo. Olhando assim, sóbria, tenho a impressão de que a conheço. De todo jeito, as únicas coisas que consigo me lembrar são o perfume, o beijo e a tatuagem. Perco-me por alguns segundos pensando que deveria ter tirado a tal máscara dela, mas isso seria um abuso, não é? Uma festa a fantasia com uma pessoa sem fantasia. Rio sozinha. Nem teve tanta graça assim, quando me dou conta, o celular toca. Finalmente uma alma viva lembrando da minha pobre existência. — Bom dia, Sofia! — Bom dia, Flávia. Bom dia. Bom dia. Bom dia. Vai ser um bom dia mesmo? Flávia é minha amiga de longa data, digamos que é quase minha irmã mais velha. Tem 22 anos e nós nos conhecemos em algum bar por aí, quando eu era nova e saía sem a permissão da minha mãe. Ela era amiga do meu amigo Lúcio, ele nos apresentou e acabou fundando um trio. Por falar nisso, já faz duas semanas que não tenho notícia dele. — Então Sofia, quero te ver. Você tá ocupada? — Não muito. Conte-me seus planos. — Me encontra no shopping, vamos almoçar, sei lá. — Tudo bem. Aliás, chama o Lúcio. Você tem notícias dele? — Já chamei. Ele reclamou que você não liga mais. — Eu não gosto de telefone... — Você é estranha Sofia. Se não fossem seus olhos verdes, eu não falaria mais com você. — Cala a boca. — Meio - dia. Praça de alimentação. Beijo. Desligo o celular. Flávia é a única pessoa pontual que conheço, então, não posso me atrasar. O trajeto até o shopping é um pouco

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longo, tenho que pegar um ônibus que passa por todos os lugares possíveis, inclusive pela tal praça do sino. Meu pai me levava lá, ele dizia que quando o mundo fosse um lugar barulhento demais pra se habitar, o melhor a se fazer era procurar a paz no meio do caos. A paz dele ficava naquela praça. Ainda não achei a minha. Nem sei se quero achar, pra falar a verdade. Chego ao shopping quinze minutos antes, procuro um lugar mais afastado e me sento. Por sorte, trouxe meu computador e usarei o tempo livre para escrever. Não tenho uma história ainda, mas as idéias surgem, eu espero. Fico observando as pessoas na praça de alimentação. Todas tão diferentes. Logo do meu lado tem uma família, parecem bem felizes e isso me causa algum tipo de frustação. Um pouco mais ao longe, alguns amigos se divertem fazendo caretas pras fotos. E a minha frente, não muito perto, tem uma loja de óculos que se chama ‘’Canal 12. ’’ Estranho. Canal me lembra televisão. Pode ser essa a idéia. Se você assistir muita televisão, vai precisar de óculos, então vai comprar no Canal 12. Sofia, você deveria parar de pensar em coisas tão sem graça. Olho por tanto tempo que começo a ver coisas, ou será que a vendedora de lá é a menina ensopada da cafeteria? Larissa o nome dela, eu acho. Continuo olhando. Diabos, é ela mesma. E eu acho que ela me viu. Ela tá vindo pra cá. Mas porque ela tá vindo pra cá? Desvio o olhar e finjo que não vi nada. Quem sabe ela desiste no meio do caminho e dá meia volta. — Sofia? – ela sorri e puxa a cadeira para que possa se sentar. Continuo fingindo que não escutei. Não sei lidar com esse tipo de coisa, é como se eu estivesse encontrando uma tia que não vejo há séculos e que está prestes a perguntar aquelas coisas que toda tia pergunta. — Acho que você tá ocupada... eu vou... Antes mesmo que ela possa terminar a frase, meu subconsciente grita para que eu tome algum tipo de atitude. — Não! Fica aí. – digo num tom imperativo. — Ok...

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Ótimo, agora ela me olha com certo olhar de ‘’ok, calma, eu vou ficar aqui, não se altere. ’’ — Você não me ligou – ela diz enquanto brinca com uma mecha do cabelo. — É... eu... Estive muito ocupada nesses dias. — Ah... Eu poderia ter dito que simplesmente não quis ligar, mas e se ela se chateasse? Eu deveria ligar pra isso? — Mas e você, como vai? Ainda perambulando por aí nos cafés de madrugada? — Engraçadinha – ela sorri de uma forma sútil – Mas não, eu não tenho frequentado muitos cafés. Confesso que até voltei naquele lá, mas um tal de Mauro disse que você havia se demitido e que agora era fotografa. Faço um sinal positivo com a cabeça e me pergunto mentalmente se Mauro fala da minha vida para qualquer um que entre no café. Dou uma breve olhada no relógio e sinto que Flávia e Lúcio estejam pra chegar. — Você tá esperando alguém Sofia? — Dois amigos. Faz certo tempo que não os vejo. — Entendo. Então eu vou voltar ao trabalho, como você pode ver, eu tenho muita coisa pra fazer. – ela ri. —Com certeza. O movimento por aqui é tão tranquilo. — Isso é bom, mas às vezes cansa. — É. Não havia reparado antes, mas Larissa tem olhos azuis. O que fica extremamente bonito quando sua franja cai sobre o rosto. A pele branca, talvez tenha um metro e sessenta e cinco de altura. Tem um bom gosto, eu desconfio. Alguma coisa nela me é familiar, eu só não consigo dizer o que é. — Sofia? – ela pergunta e me tira do transe.

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— Oi? —Você parece meio desligada. Eu vou indo ok? — Tudo bem. — Até mais. — Até. Enquanto ela caminha de volta pra loja, meu subconsciente intrometido me diz o que fazer outar vez. Levanto o mais rápido que posso e sigo atrás dela, seguro ela pelo braço e ela se vira no mesmo instante. Quando minha mão toca a pele dela, sinto como se tivesse levado um choque. Ela me olha surpresa e sorri. — É... eu...eu... – vamos lá Sofia, sem gaguejar – Anota meu telefone! Ela continua sorrindo, pega o celular, eu dito os números e ela diz que vai mesmo me ligar já que eu não ligo. —Então, tudo bem, agora eu vou deixar você ir trabalhar. Tenha um bom dia. — Você também Sofia, você também. Volto até minha mesa e me dou conta de que eu não sei o que acabei de fazer, ou porque o fiz, mas me sinto bem por ter feito. Flávia e Lúcio chegam, hora de contar as novidades. Enquanto eles se sentam, dou algumas olhadelas até Larissa. Alguma coisa me é familiar, tenho certeza.

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Capítulo 6 – Nirvana Night

Já estamos no sábado. Quarta, Quinta e Sexta-feira foram dias estranhos, pelo menos pra mim. Um breve resumo do que aconteceu: Na quarta-feira tive o tal almoço com Flávia e Lúcio. Foi bem mais divertido do que achei que seria. Os dois ficaram felizes pelo meu novo emprego e prometeram comparecer na próxima festa. Larissa me ligou naquela noite. Conversamos por pelo menos meia hora. Talvez tenha sido o máximo de tempo que fiquei no telefone até hoje. Na quinta-feira acordei com uma mensagem de Larissa no meu celular. ‘’Que tal um café. ’’ Nos encontramos na cafeteria do Mauro, porque segundo ela, era um lugar aconchegante e sofisticado, sem contar que nos conhecemos lá. Nesse dia em especial, descobri que Larissa era louca por Nirvana, então a convidei para a festa também, já que seria toda dedicada ao grupo grunge. Depois do café, acompanhei ela até o shopping e voltei para a cafeteria onde tive o seguinte dialogo com Mauro: —Você fica estranha quando tá com ela Sofia. — Eu? Acho que você não anda bem, tem dormido direito? — Eu sei o que estou falando Sofia. Não adianta negar. — Mauro, por favor... — Você vai se apaixonar por essa garota. — Me apaixonar? Ok. — Vamos fazer uma aposta. Se você não se apaixonar por ela, eu mudo a cafeteria e a transformo n’um pub. — Então se prepara, porque você vai ter que mudar. — Veremos Sofia. Veremos. Na sexta-feira passei o dia todo enfurnada dentro do meu apartamento tentando dar a ele uma cara diferente. Mudei alguns moveis de lugar. Pintei uma parada. Colei alguns pôsteres na parede da sala. Ficou legal. Quando a noite chegou, sai pra comprar uma boa garrafa de vinho e passei o resto do tempo assistindo desenhos. E hoje é sábado. Mais uma festa, mais uma noitada. Não é só isso, claro, com a minha última festa pude ganhar o bastante pra pagar as

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contas dos dois próximos meses. Em uma noite garanti dois meses de contas a se pagar, isso não é incrível? Às vezes acho que isso é muita sorte. Tem horas que me pego pensando em como a vida pode mudar em uma fração de segundos. Em um minuto você se encontra totalmente ferrada e no outro, como um passe de mágica, você tem quase o mundo nas mãos. Ligo o rádio no último volume e começo a entrar no clima dessa noite. Preparo meus equipamentos enquanto converso com Larissa através de sms’s. Não sei bem como posso classificar essa coisa toda, mas Larissa tem me chamado mais atenção do que o normal. E sempre que penso nela, tento encontrar a tal coisa familiar que até agora não descobri o que é. Essa noite vai servir pra isso, tentar descobrir o que anda acontecendo comigo quando Larissa fica por perto. Mais ou menos uma hora e meia antes da festa, o carro vem me buscar. Pergunto ao motorista se é possível que ele leve alguns acompanhantes comigo, ele diz que sim e pede para que eu lhe passe os endereços. Primeiro passamos na casa de Flávia, depois na de Lúcio e por fim, encontramos com Larissa na frente do shopping. Quando todos estão reunidos, sinto que devo apresenta-los. — Essa é a Larissa. Larissa, esses são Flávia e Lúcio. Eram eles que eu estava esperando aquele dia. Eles se cumprimentam e por sorte, não preciso puxar nenhum tipo de assunto. Flávia fala pelos cotovelos e assim a conversa segue num ritmo natural. Enquanto os três conversam, reparo que Larissa tem algum tipo de desenho no ombro, mas não consigo ver tudo. — Larissa... — Fala Sofia... – ela se vira para mim. — O que é isso no seu... — Chegamos! – diz o motorista. — Isso o que Sofia? — Depois eu pergunto. Vamos, vocês tem uma noite inteira pra aproveitar. – digo entre gargalhadas. Quando saímos do carro, os olhos deles chegam a brilhar. Larissa diz que é muito bonito e que ela já é acostumada com coisas assim, mas

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que essa parecia muito melhor. Flávia sai correndo na frente e Lúcio logo atrás dela. Enquanto os dois parecem duas crianças num playground novinho em folha, Larissa me puxa pela mão e seguimos logo atrás deles. Existe um fila imensa, com pessoas reclamando disso e daquilo enquanto nós estramos sem problema algum. Começo a rir sem parar. Talvez seja essa sensação de... Não sei, sensação de poder ser o que quiser ser. Do lado de dentro as coisas são absurdamente surreais. O mundo lá fora não existe, a única coisa que importa é o aqui e o agora. A música rolando, as pessoas se divertindo, tudo devidamente criado como se fosse um universo paralelo. Infelizmente me despeço dos três e começo a trabalhar. A primeira foto da noite é de Larissa, ela me retribui com um beijo no rosto e se perde no meio da multidão.

Sigo pelo lado oposto tirando foto da galera mais animada. Encontro um grupo de pelo menos cinco pessoas, um cara cheio de piercings no rosto, duas loiras parecidas com suicide girls e um garoto estilo Axl Rose. Todos brindam com seus copos vermelhos enquanto eu fotográfo. Eles me agradecem e continuam surtando ao som de

‘’Smells Like Teen Spirit. ’’ O resto da noite passa tão rápido que eu nem consigo contabilizar quantas fotos tirei. Pelo que eu sei, agora eu já posso me divertir também. Quero encontrar Larissa. No meio de tanta gente vai ser difícil, mas eu preciso resolver algumas coisas. Ando de um lado pro outro enfrentando o mar de gente bêbada que se coloca na minha frente, empurro alguns, desvio de outros e finalmente a encontro. — HEY – grito. — SOFIAAAAAA! — Vem comigo um minuto? Quero conversar. — VAMOS! Ela me parece bem, talvez um pouco animada, como na cafeteria. Seguro ela pela mão enquanto refaço todo o caminho de volta. Acho um corredor que me parece mais tranquilo e decido que ali é um bom lugar pra tirar a minha dúvida.

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— Larissa, você tem uma tatuagem? — Tenho algumas. Por quê? — Posso ver a do seu ombro? – digo enquanto afasto sua blusa com a ponta dos dedos. — Espera – ela segura minha mão – O que eu ganho com isso? — Nada! Só preciso tirar uma dúvida. — Ok... Ela me mostra a tatuagem e meu coração só falta sair pela boca. Ela é a garota da festa. Ela é a tal que usava a fantasia cheia de frescuras. — O que foi cara? Você tá bem? – ela me pergunta meio assustada. — Você foi numa festa a fantasia. — Fui... mas espera, como você sabe? — Eu também estava nessa festa. — E porque você não me disse? – agora ela parece um pouco nervosa. — Não consegui... Eu estava te beijando Larissa. — O quê? – ela se afasta — Eu beijei você na festa. — Claro que não! Eu não fico com garotas. — Mas você ficou comigo. — Não Sofia, acho que você me confundiu. Melhor eu ir embora... — Não! – seguro-a pelo braço – Não vai. Sem pensar muito no que ia ou não acontecer, tomo Larissa nos braços e a beijo mais uma vez. Ela não demora muito a se soltar de mim e me xingar pelas próximas três gerações, então ela sai batendo o pé e me deixa com a cara mais lavada do mundo no meio do corredor. Não posso perder a aposta.

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Capítulo 7 – Se joga naquilo que te dá vontade

Duas semanas depois. Larissa tem me evitado. Não atende o celular, não responde minhas mensagens. Decido então deixar de lado. A grande porcaria dessa história toda é que eu não paro um segundo de pensar. Não consigo dormir a noite e quando durmo, sonho com ela. Às vezes perco a fome e tenho tomado mais vinho do que o costume. Mauro deve ter feito algum tipo de macumba – não que eu acredite nisso, mas foi algo realmente poderoso só para que ele tenha o prazer de dizer que estava certo. Evito pensar nisso, evito escrever sobre isso, mas no final tudo o que consigo fazer é tentar achar uma resposta plausível para que isso aconteça logo comigo. Conversei com Flávia e ela me disse que o melhor a se fazer era ir até a loja e conversar com Larissa. Lúcio me disse para esquecer. E entre duas opiniões tão diferentes, decidi assumir o meu papel de louca e conversar com John. — Sofia, seus olhos estão tristes. — Como você sabe John? — Eles me disseram. Dou um riso forçado enquanto entrego alguns lanches pra ele. Nenhum dos meus vizinhos aprova minha atitude, eles dizem que eu incentivo John a ficar nessa vida. Mas que vida ele vai levar se não comer? — John, eu conheci uma pessoa. E eu não paro de pensar nela, mas ela não quer me ver. — As pessoas também não querem me ver. — Mas o que eu faço? — Já que você gosta dela, procure. Eu gostaria que meus filhos me procurassem. — Eu não gosto dela John. — Eles me disseram que você gosta. — Quem? — Não posso te dizer.

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Ele se levanta e diz que precisa ir porque estão vindo busca-lo. Eu nunca vou saber quem são ‘’eles’’, mas sei que John sabe muito mais do que qualquer outra pessoa. Depois da conversa com John, resolvo que é hora de ir atrás de Larissa, que mal pode acontecer? Talvez ela não tenha direito de me evitar. Talvez ela não tenha direito de me evitar enquanto a única coisa que sei fazer é pensar nela. Vou até o shopping e me sento no mesmo lugar onde encontrei Larissa. Fico observando atentamente a entrada da loja para me certificar de que ela não vai fugir caso perceba que eu estou lá. E ela já percebeu, mas finge que não. Permaneço com o olhar fixo até que ela note que eu não vou desistir tão fácil. No final das contas, dá certo, ela atende o último cliente que está na loja e vem correndo até minha mesa. — Achei que você ia me evitar aqui também. — Era o que eu queria fazer. — Não tem motivos. — Tenho. E muitos. Mas eu não posso conversar com você agora. Me encontra no fim expediente e nós conversamos. — Tudo bem. – digo com calma. — Você vai ficar aí esperando? — Só pra ter certeza de que você não vai fugir. Ela segura uma risada e volta pra loja. Isso é um bom sinal? Uma quase risada-sem-graça. Mas, quanto tempo falta até que o expediente acabe? Ainda são três da tarde. Vou esperar, melhor. Ou será que seria melhor eu dar uma volta? Não! Melhor ficar aqui e ter certeza de que isso não é um truque. Merda me sinto como uma criança de cinco anos.

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Fico quase cinco horas esperando Larissa sair de lá. Finalmente ela sai e podemos resolver tudo isso como pessoas grandes e civilizadas. Ela me leva até o estacionamento, respira fundo e começa a falar: — Não sei como te dizer isso, mas você é a primeira e tudo é muito confuso pra mim. — Então você quer dizer que eu sou a primeira garota que você beijou? — Exatamente. Agora as coisas fazem sentido. Por isso ela me evitou durante duas semanas. Se eu soubesse que era por isso... — E você é a primeira pessoa de quem eu gosto. — Você tá gostando de mim? — Não que eu ache isso bonito, mas estou. — E você nunca gostou de ninguém? — Isso é tão clichê. Não. Não assim. — Eu não sei o que fazer Sofia – ela desvia o olhar. — Nem eu, só não aguento mais passar a noite em claro pensando em você e em como você foi extremamente idiota em entrar naquele café ou ir naquela festa. Ou quem sabe, eu que tenha sido idiota de estar nesses dois lugares. Dane-se, não dá pra deixar pra lá. — Se joga naquilo que te dá vontade, Sofia. Me jogar naquilo que me dá vontade. Ela espera algum tipo de resposta, mas eu não sei o que dizer. Eu não sei lidar com isso. Eu não quero lidar com isso. Eu queria sair correndo, exatamente como uma criança de cinco anos e ir pra debaixo da saia da minha mãe – ela me tiraria de lá, com certeza. Ela ainda está esperando uma resposta, me olhando como se a resposta valesse um milhão de reais ou quem sabe, o coração dela. — Então vem comigo. — Pra onde? — Para o precipício de onde eu vou me jogar. O silêncio se instala. Agora a vez de responder é dela.

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Capítulo 8 – Contando o tempo

30 dias Um mês com Larissa. Diga-se de passagem, o mais difícil é aturar Mauro fazendo brincadeirinhas e jogando na minha cara que sabia desde o começo. Flávia e Lúcio gostam dela e passamos os finais de semana jogando videogame. Larissa sabe cozinhar como ninguém e faz o melhor bolo de caneca da história. Ela gosta de The Strokes, Nirvana e Arctic Monkeys. Às vezes nós brigamos por quem vai ouvir o quê no rádio enquanto lava a louça. 60 dias Dois meses. Descobri que Larissa odeia verduras. Eu amo. Ela aprendeu a preparar diversos tipos de salada pra mim. Convidei ela pra morar comigo e ela aceitou, estamos arrumando as coisas. O único problema é que ela tem roupas demais e nós precisamos de um armário maior. Ah, ela também tem um gosto muito infantil, pantufas de bichinhos, pijamas de bichinhos e até um travesseiro em forma de panda. Ela odeia que eu faça gozações com isso, mas não interessa, a cara de braba dela é impagável. 90 dias Três meses. Minha mãe conheceu Larissa e por incrível que pareçam, as coisas melhoraram entre nós. Agora os finais de semana são passados na casa da minha mãe, que por sinal, voltou a ter seu lance com Mauro. Os dois estão felizes, isso é bom. Larissa me disse que nunca conheceu seus pais, ela só não sabe explicar o porquê e eu não me dou ao trabalho de perguntar. Aliás, Larissa tem me dito que tudo melhorou depois de mim, que ela parou de fazer besteira. 120 dias Quatro meses. Ela disse que me amava pela primeira vez. Não sei definir o que é ouvir eu te amo de alguém que não seja da sua família. Não é a primeira vez que eu escuto, mas sei que dessa vez é verdade. E pela primeira vez eu me importo com isso, mas não consigo dizer de volta. Eu a amo é claro, só não consigo dizer.

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150 dias Cinco meses. Algumas brigas aconteceram e eu me sinto mal por brigar com ela. Larissa tem reclamado do meu trabalho, ela não gosta desses ensaios que eu tenho feito com modelos extremamente lindas e descompromissadas. Não vejo graça em nenhuma, mas ela insiste em dizer que elas podem me fazer mudar de ideia. 180 dias Seis meses. Larissa tem ficado insuportável. Reclama do meu trabalho o tempo todo e agora insiste em me colocar contra a parede dizendo que eu nunca disse que a amava. Mas as pessoas precisam mesmo dizer isso? Não é só sentir? E eu sinto tanto. Até minha mãe pode ver isso agora. Eu não consigo dizer. Tenho algum tipo de bloqueio que me impede de dizer eu te amo e que me impede de dizer que tenho esse bloqueio. Eu até tentei explicar pra ela, mas ela diz que não quer saber.

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Capítulo 9 – Vivendo o pesadelo outra vez

210 dias. Hoje nós fazemos sete meses e eu finalmente tomei coragem pra dizer tudo o que eu sinto. Não sei bem o que aconteceu nesses sete meses, mas todos dizem que mudei, que meu humor anda muito melhor, que talvez eu não seja tão nem aí pro mundo. John me parou na rua essa manhã. Começamos conversar enquanto íamos até a cafeteria. Ele não sabia, mas eu tinha uma surpresa. — Sofia, você vai dizer hoje? — Vou John. É o certo, não é? — Sim. Nós devemos dizer enquanto podem nos ouvir. — Você tem razão. Inclusive, eu alguém quer dizer algo pra você. Entramos na cafeteria e os filhos de John o abraçam. Me agradecem por ter, de alguma forma, conseguido esse milagre. É um casal. Maria e Fernando. Ambos religiosos. Dizem que John simplesmente havia saído um dia e nunca mais voltou. Quando John os viu, seus olhos encheram de lágrimas e foi a primeira vez que o vi chorar. Aquela coisa toda, aquela cena, tudo isso me fez lembrar do meu pai. Não permaneci muito tempo, eu ainda precisava ligar pra Larissa, arrumar meu equipamento e fotografar a ultima festa da minha carreira. Eu já havia juntado dinheiro o bastante pra um bom tempo e o que mais me importava agora era passar mais tempo com ela. Seria uma ótima noticia, tenho certeza de que ela vai gostar. *** São sete horas da manhã e eu estou voltando pra casa quando meu celular toca. Minha mãe. — Sofia, onde você tá? — Voltando pra casa, o que foi? Sua voz tá estranha. — Me diz onde você tá que eu vou pegar você de carro. É urgente. Ela não me diz o que aconteceu. Passo o endereço e espero que ela chegue. Durante todo o caminho ela parece um tanto quanto desesperada e isso me irrita. Insisto para que ela diga o que está acontecendo, mas só quando paramos em frente ao hospital é que ela começa a falar.

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— Nós tentamos ligar pra você a noite toda, mas você não atendeu. — Acho que eu não ouvi o celular tocando. Me diz logo, o que aconteceu. — Ontem, quando a Larissa estava saindo do trabalho... – ela pausa. — O que aconteceu com ela? ANDA, DIZ LOGO. — Um cara ultrapassou o sinal enquanto ela atravessava a rua... *** Agora eu me encontro dentro do hospital, procurando feito louca o quarto onde Larissa está. Os médicos não querem que eu entre, mas eu mando todos pro inferno e entro de qualquer maneira. A cena não é nada agradável, Larissa está com tubos por todos os lados, e uma daquelas máquinas que te dizem se o coração ainda bate ou não. Me sento ao lado da cama e seguro sua mão. Meu peito parece que vai explodir, sinto como se alguém segurasse tudo por dentro e espremesse pra fazer um belo suco de laranja. — Me desculpa... – a voz falha — Larissa! Não, não pede desculpas. Eu que me desculpo, eu não deveria ter ido pra festa, você disse tanto que não queria que eu fosse. — Era seu tralho Sof... – a voz falha outra vez. — Por favor, não faz esforço. Você vai ficar bem. Aliás, eu não vou trabalhar mais. Decidi voltar pra cafeteria... E... — Sofia, eu amo você. You know, eu amo você. E você foi a melhor parte do que eu podia chamar de vida. Só não encontre nenhuma outra Larissa por aí, quero ser a única. Obrigada por ter me curado, digamos que eu não era uma garota tão boa assim antes de você. — Para com isso. Você vai ficar bem. Muito bem. — Me diz Sofia... — O que? — Só me diz... — Eu... eu... Eu te... Um último suspiro. Fim de jogo.

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Capítulo 10 – Larissa

— Larissa, hoje é um dia especial. Com o dinheiro que eu juntei esse tempo todo, eu e Mauro reformamos a cafeteria, agora não é mais uma cafeteria, é um pub. Sabe o melhor de tudo? É o nome! Larissa’s Pub. Mauro que decidiu por esse nome. Ficou bom até, hoje é a inauguração. Tomara que dê certo. Vou tirar umas fotos mais tarde. Tá tudo bem, sério. Eu e minha mãe nos acertamos. Você acredita que ela fez até uma tatuagem? Sério. E largou o emprego. Ela virou decoradora. Não me pergunte o porquê, nem eu sei. Ela e Mauro se casam daqui três meses. Quem diria minha mãe casando novamente. Agora eu entendo o que ela quis dizer. Às vezes nós perdemos coisas realmente importantes, coisas que nós não nos imaginaríamos viver sem. E isso me faz pensar que todo o dinheiro, as coisas materiais e seja lá o que for que você compre, não tem importância de verdade. Obrigada por todo esse tempo Larissa. Ah, John anda melhorando, pelo que fiquei sabendo, mas ele ainda diz que ‘’eles’’ existem. Outro dia encontrei ele na antiga cafeteria, ele me disse que tudo ficaria bem. As coisas acontecem por um motivo. Tudo. Seja um mínimo acontecimento ou o maior deles, tudo tem um proposito. No seu ultimo momento, você me disse que eu havia te curado e isso me fez pensar nos últimos dias. Meu pai deve estar orgulhoso de mim Larissa, graças a você. Espero que vocês dois se conheçam. Ele é um cara legal e vai adorar você. Eu te amo.

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Os seus medos Seus sonhos

Sua vida O que você diz O que você faz

Tudo se torna relevante a partir do momento Que acontece.

Fim