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SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL QUILOMBOS NO BRASIL ESCRAVISTA: ESPAÇOS DE LIBERDADE E RESISTÊNCIA TELMARY KAZMIERCZAK LUIZ CURITIBA 2008

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SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃOPROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL

QUILOMBOS NO BRASIL ESCRAVISTA: ESPAÇOS DE LIBERDADE E RESISTÊNCIA

TELMARY KAZMIERCZAK LUIZ

CURITIBA2008

1. Introdução

Em janeiro de 2003, com a publicação da Lei nº 10.639, que alterou a

Lei nº 9.394, de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) tornou-

se obrigatória a inclusão da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” nos

currículos escolares do ensino fundamental e médio. Já no ano seguinte, em

2004, foram aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação as Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o

Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, reconhecendo a

necessidade de valorizar devidamente a história e a cultura dos africanos e

afro-descendentes e ampliando o foco dos currículos escolares para a

diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira.

Os debates sobre a aplicabilidade da lei nº 10.639, de 2003 e

conseqüentes regulamentações ganharam espaço nos meios acadêmicos e

institucionais, dando novo impulso às discussões e pesquisas relacionadas ao

racismo, ou ao combate a este e às políticas afirmativas para o resgate e

valorização da identidade e da cultura africana e dos afro-descendentes.

Tornou-se premente a necessidade de desmistificação de algumas

visões equivocadas sobre o negro e o continente africano, como a de que o

negro foi escravizado porque era mais dócil que os indígenas, omitindo toda a

experiência de organização e resistência dos africanos e seus descendentes,

que se verificou tanto nas fugas individuais e coletivas, quanto nas

manifestações religiosas ou formas de negociação para a conquista da

liberdade.

Aos professores, cabe dar novo enfoque aos conteúdos tradicionais e

incluir outros que busquem a recuperação da auto-estima, do orgulho de ser

negro, dando destaque às lutas de resistência e contribuições culturais, como

orienta a Instrução 01/06 do Conselho Estadual de Educação do Paraná:

devem os professores, ao tratar da História da África e da presença do negro no Brasil, fazer abordagens positivas, sem deixar de tratar do sofrimento provocado pela escravidão, mas não se limitando a esse momento. Devem, antes, realçar a luta dos escravos contra o cativeiro, a contribuição do negro em todos os campos da cultura brasileira, no passado e no presente. Da mesma maneira, devem os professores tratar da

2

África antes da diáspora; dos conhecimentos em arquitetura, navegação, medicina, ciência, filosofia, matemática, geometria, agricultura, utilização do ferro, etc. e também da África atual, sempre visando a que o aluno negro-descendente mire-se positivamente, quer pela valorização da história do seu povo, quer pela contribuição atual ao país e à humanidade (CEE, Instrução 01/06).

A tarefa que se apresenta é um grande desafio, se considerarmos os

inúmeros obstáculos a serem superados: a beleza e inteligência branca

exposta na mídia, onde a presença de negros é ainda muito tímida e

discriminatória; os livros didáticos cuja história narrada é predominantemente

branca e onde costumeiramente a África aparece como um continente

primitivo, sujo, selvagem e habitado por comunidades também primitivas1 e os

negros (na história brasileira) apresentados como escravizados, coitados ou

derrotados quando se rebelavam; as expressões e linguagens depreciativas,

estigmatizadas, em relação ao povo negro; a quase inexistência de disciplinas

e conteúdos sobre a África e os africanos e afro-descendentes na formação

acadêmica dos professores; a escassa bibliografia que chega até os

professores e as escolas sobre esta temática, entre outros.

Este cenário foi sendo constituído ao longo da história do povo brasileiro,

desde a chegada dos europeus e a conseqüente ocupação, colonização e

exploração das novas terras. Durante o período colonial e imperial, ou seja, por

mais de 300 anos, a base da economia assentou-se na produção escravista,

que impôs duríssimas condições de trabalho e de existência aos cativos.

(FIABANI, 2005)

Porém, onde houve escravidão, houve resistência, manifesta pela

lentidão no ritmo de trabalho, pela sabotagem, pelo suicídio, pelo assassinato

de feitores e, principalmente pelas fugas individuais ou coletivas e conseqüente

formação dos quilombos, como ficaram conhecidas as comunidades de negros

fugidos espalhadas por todo o território brasileiro2.

Mesmo com o fim da escravidão, as condições de existência dos negros

africanos e seus descendentes não sofreram mudanças significativas e as

comunidades de negros remanescentes dos quilombos, assumindo novas

1 O termo primitivo aqui está sendo utilizado no sentido de atraso em relação aos outros continentes.2 Vários autores apresentam as diferentes formas de resistência dos negros escravizados, entre eles estão Clóvis Moura, Flávio dos Santos Gomes e Stuart Schwartz.

3

denominações não despertaram interesse nas primeiras décadas após a

abolição (FIABANI, 2005).

Somente a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que

em seu artigo 68 das Disposições Transitórias prevê o reconhecimento e a

titulação das terras ocupadas por “remanescentes das comunidades dos

quilombos”, cresceu novamente de forma significativa o interesse por essas

comunidades.

Desde então muitos grupos foram identificados no Brasil. Apenas Acre,

Roraima e Distrito Federal ainda não apontaram a existência de comunidades

remanescentes de quilombos, que segundo a Fundação Cultural Palmares3 já

somam 1209 certificadas e 143 áreas com terras tituladas.

(<http://portal.mec.gov.br/secad> acesso em 25/08/2008).

No Paraná, as comunidades quilombolas começaram a ganhar

visibilidade, especialmente a partir dos trabalhos do Grupo de Trabalho Clóvis

Moura4, que iniciou em 2004 o mapeamento destas comunidades em território

paranaense. Desde então já foram identificadas 90 comunidades

remanescentes de quilombos, das quais 36 já foram certificadas pela Fundação

Cultural Palmares. (GOMES Jr., SILVA, COSTA, 2008)

2. Quilombos e quilombolas: uma discussão conceitual

2.1. Questões presentes a partir da Constituição de 1988

O texto constitucional dos Atos das Disposições Constitucionais

Transitórias, em seu Artigo 68 diz que “aos remanescentes das comunidades

dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade

definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”. A interpretação

estrita deste preceito constitucional não incluía as comunidades afro-

descendentes cuja origem não estivesse diretamente vinculada a um quilombo.

Na tentativa de superar esta injustiça, procurou-se estender os critérios de

3 Entidade pública vinculada ao Ministério da Cultura cuja finalidade é promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira.4 Grupo de Trabalho Interssecretarial, constituído pelo Governo do Estado do Paraná para realizar levantamento de dados e diagnóstico da realidade social, educacional, econômica e cultural em que vive a população destas comunidades.

4

reconhecimento de uma comunidade como remanescente de quilombo.

(FIABANI, 2005. p. 28), garantindo o direito constitucional às comunidades que

se formaram por diferentes processos,

que incluem as fugas com ocupação de terras livres e geralmente isoladas, mas também as heranças, doações, recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, a simples permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante a vigência do sistema escravocrata quanto após a sua extinção (SCHMITT, TURATTI & CARVALHO).

Nesse contexto os debates sobre a conceituação de comunidades

remanescentes de quilombos ganharam destaque, principalmente entre

cientistas sociais, juristas e militantes de movimentos sociais, além das

instituições governamentais cujas competências se alinhavam, de alguma

forma, com este tema5.

Em 1994, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em

documento resultante da reunião do Grupo de Trabalho sobre Comunidades

Negras Rurais, divulgou a seguinte definição:

Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar (disponível em http;//www.cpisp.org.br/comunidades/html/oque/home_oque.html, acesso em 18/11/08).

As reflexões suscitadas por esta definição tratam de desfazer alguns

equívocos como a suposta condição de remanescente enquanto um fenômeno

em processo de desaparecimento e a situação de isolamento e de

homogeneidade da população destas comunidades. (LEITE, 2005)

Prova disto é a identificação de centenas de “comunidades

remanescentes de quilombos” por todo o território nacional, como apontam os 5 Um exemplo é a publicação Quilombos: a hora e a vez dos sobreviventes, da Comissão Pró índio de São Paulo, que reúne artigos de Juízes, Procuradores, antropólogos, educadores, entre outros.

5

dados da Fundação Cultural Palmares (citado anteriormente) e as diferentes

origens encontradas em sua formação. No caso do Paraná, por exemplo, as

comunidades já certificadas apontam suas origens: na fuga de escravos de

minas de ouro (Comunidade João Surá – Adrianópolis) e de fazendas da região

(Comunidade Campina dos Morenos – Turvo); na herança (Comunidades

Mamãs – Castro, Água Morna – Curiúva, Sutil – Ponta Grossa); na

permanência em propriedades dos antigos senhores (Comunidades

Despraiado – Candói e Restinga – Lapa), na doação de terras (Comunidade

Feixo – Lapa); na ligação com o tropeirismo (Comunidade Rio do Meio – Ivaí) e

Bandeiras de povoamento (Comunidades Adelaide Maria Trindade Batista e

Castorina Maria da Conceição – Palmas); no casamento entre proprietários de

fazendas e escravos (Comunidade Guajuvira – Curiúva e Comunidade Varzeão

– Doutor Ulisses); na aquisição de terras (Comunidades Batuva e Rio Verde –

Guaraqueçaba), além daquelas cujos membros não sabem precisar sua

origem. (GOMES Jr., SILVA, COSTA, 2008)

Na tarefa de fundamentar teoricamente a atribuição de uma identidade

quilombola a um grupo e a formalização da posse das terras, está presente a

contribuição da antropologia quanto ao conceito de identidade étnica que

baseia-se na autoidentificação do grupo, na sua forma de organização, na sua

relação com os demais grupos e na sua ação política. (LEITE, 2005).

2.2. Os quilombos na historiografia brasileira

Os questionamentos, os estudos e as pesquisas que se fizeram

presentes nas últimas duas décadas para identificar, conceituar e garantir o

direito constitucional da posse das terras aos remanescentes de quilombos,

suscitaram também um resgate dos debates e pesquisas em torno dos

quilombos do período escravista brasileiro.

Embora o assunto seja recorrente desde o período colonial,

reaparecendo no período republicano com a Frente Negra Brasileira, nas

décadas de 1930 e 40 e no período da redemocratização do país, nos anos 70,

ainda prevalece no senso comum a idéia de quilombo como uma organização

guerreira, embrenhada na mata, evocada pela referência mais comum deste

fenômeno que é o Quilombo de Palmares e seu líder Zumbi.

6

Palmares, de fato, recebeu atenção especial na historiografia (e ainda

recebe) devido a sua longevidade, seu suposto tamanho e contato contínuo

com a sociedade colonial. Estima-se em mais de 20 mil o número de habitantes

palmarinos e deduz-se, pelas notícias e registros disponíveis, que seu início

deu-se por volta de 1605, persistindo até 1694 apesar das inúmeras tentativas

de eliminá-lo (SCHWARTZ, 2001).

Desde o seu surgimento até a sua destruição, a referencia a Palmares

esteve presente em notícias e documentos. Um dos primeiros autores a

dedicar-se ao registro sobre o trabalho escravo no Brasil foi Gaspar Barleu6,

que também citou os Palmares grandes e Palmares pequenos, fazendo

referência a vários aspectos de sua organização e descrevendo os palmarinos

como fujões e salteadores (FIABANI, 2005)

Porém, é importante considerar que o termo quilombo não era utilizado

desde o seu surgimento. Stuart Schwartz (2001) afirma que o termo passou a

ser empregado usualmente, no Brasil, por volta do século XVIII, para designar

qualquer comunidade de escravos fugidos e cita que o primeiro documento

visto por ele, usando o termo quilombo com esta designação, data de 1691 e

refere-se especificamente a Palmares.

Na definição dada pelo Rei de Portugal, respondendo a consulta do

Conselho Ultramarino, em 2 de dezembro de 1740 como “toda habitação de

negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não

tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (MOURA, 1986),

também está presente a idéia de quilombo vinculada a escravos fugidos.

Esta caracterização foi a mais difundida, tornando-se clássica e

influenciando várias produções sobre a temática, cujo traço comum era atribuir

um tempo histórico passado – período em que vigorou a escravidão no Brasil -

e caracterizar os quilombos como expressão da negação do sistema escravista (SCHMITT, TURATTI & CARVALHO).

Flávio dos Santos Gomes indica duas linhas na explicação e análise dos

quilombos no Brasil: as visões culturalista e materialista. A primeira, presente

entre os anos 30 e 50, entendia os quilombos como resistência cultural, onde

os negros fugidos buscavam formas de manter sua identidade étnica africana e

6 Gaspar van Barleu, citado por Aldemir Fiabani, nasceu na Antuérpia em 1584 e faleceu em 1648, tendo sido escolhido por Maurício de Nassau para registrar seus feitos durante os oito anos que administrou o Brasil holandês.

7

onde a idéia de África estava presente de forma romantizada e homogênea.

Representam esta visão autores como Nina Rodrigues, Artur Ramos, Edison

Carneiro e Roger Bastide. Como representantes da visão materialista, presente

nas décadas de 1960 e 1970, estão Clóvis Moura, Luís Luna, Alípio Goulart e

Décio Freitas, que em diferentes contextos fizeram críticas às teses de

benevolência da escravidão brasileira e definia os quilombos no sentido de

resistência e negação do escravismo, do regime de cativeiro na busca de uma

sociedade alternativa livre. (GOMES, 1996)

2.3. Conexões possíveis com o quilombo africano

Porém, pesquisas recentes sobre a história da África indicam novas

possibilidades de interpretação e de compreensão dos quilombos,

estabelecendo conexões entre os quilombos brasileiros e africanos.

Partindo da origem da palavra quilombo, Kabengele Munanga (1995/96)

afirma que “é seguramente uma palavra originária dos povos bantu (kilombo,

aportuguesado quilombo)”. Tanto sua presença em terras brasilerias quanto

seu significado, estão ligados a grupos lunda, ovimbundu, mbundu, kongo,

imbangala, etc – ramos dos povos bantu que foram trazidos e escravizados no

Brasil. (MUNANGA, 1995/96)

Para maior compreensão do sentido da formação dos quilombos no

Brasil, é necessário buscar a história, nos séculos XVI e XVII, das regiões

africanas entre os atuais Angola e Zaire, que envolve os povos bantu. História

esta de “conflitos pelo poder, de cisão de grupos, de migrações em busca de

novos territórios e de alianças políticas entre grupos alheios”(MUNANGA,

1995/96, p.58)

Ainda hoje, a história oral é uma das principais fontes para a história

africana, mesmo considerando suas lacunas e imprecisões. Uma das versões

mitológicas para conhecermos a história dos quilombos e dos povos bantu é a

que se inicia com a migração de um príncipe caçador do império Luba (centro e

sudeste do Zaire). O príncipe Kimbunda Ilunga, insatisfeito com a perda do

trono após a morte de seu pai, teria migrado com alguns seguidores em busca

de novo território. Neste movimento casou-se com Rweej, rainha de uma aldeia

lunda que transferiu o poder real ao marido, causando descontentamentos e

8

novas migrações. Um irmão da rainha, Kinguli, com um grupo de simpatizantes

seguiu em direção a Angola, que já havia sido anteriormente subjugada pelos

povos jaga ou imbangala, que haviam se tornado uma organização

militarmente superior em seu processo de migrações, invasões e conquistas,

tendo dominado a costa angolana. Kinguli e seu exército fizeram-se aliar aos

bandos jaga, adotaram o quilombo e dominaram toda a região. (MUNANGA,

1995/96)

Munanga, citando Joseph Miller afirma que a instituição quilombo teria

pertencido aos jaga tendo

a conotação de uma associação de homens, aberta a todos sem distinção de filiação a qualquer linhagem, na qual os membros eram submetidos a dramáticos rituais de iniciação que os retiravam do âmbito protetor de suas linhagens e os integravam como co-guerreiros num regimento de super-homens invulneráveis às armas dos inimigos (MILLER, apud MUNANGA, 1995/96, p.60).

Esta vertente é também adotada por Stuart Schwartz (2001) que aponta

proximidades entre os jaga e os palmarinos, em particular. Um destes aspectos

de aproximação é a característica essencialmente guerreira, encontrada em

Palmares, que se explica pelos constantes ataques sofridos, tornando seus

defensores “senhores da arte da guerrilha, peritos no uso da camuflagem e em

emboscadas” (SCHWARTZ, 2001, p.253).

Outro aspecto levantado é a diversidade de pessoas: escravos de várias

origens, africanos e crioulos que se uniam em sua oposição comum à

escravidão, formando os quilombos. Segundo Schwartz (2001), os imbangalas

(ou jaga) em decorrência de sua condição guerreira, com constantes

deslocamentos, adotou o kilombo (sociedade de iniciação ou campo de

circuncisão mbundu) e adaptou esta instituição aos seus propósitos, pois

tinham necessidade de dar coesão aos elementos étnicos díspares que

compunham seus bandos. Dessa forma o kilombo tornou-se para eles, uma

“sociedade militar à qual qualquer homem podia pertencer por meio de

treinamento e iniciação,...” (SCHWARTZ, 2001, p.258)

Outro vínculo que pode ser estabelecido entre o Quilombo de Palmares

e seus correspondentes africanos é a figura de Ganga Zumba, que seria um

9

título e não um nome próprio. Para o Kilombo africano, cuja organização social

baseava-se em associação, um dos perigos que enfrentavam era de natureza

espiritual, pois não possuíam linhagem de ancestrais que intercedessem junto

aos deuses em seu favor. Assim, um sacerdote – nganga a zumba - tinha a

responsabilidade de lidar com o espírito dos mortos (SCHWARTZ, 2001).

Neste contexto é possível identificar indícios para afirmar que o termo

quilombo, que passou a ser utilizado no Brasil, em fins do século XVII não foi

acidental e além de representar um empréstimo lingüístico pode significar o uso

intencional de uma instituição africana cujo objetivo era a comunhão entre

diferentes povos, tornando-se uma organização militar eficiente. Esta descrição

servia, de certa forma, para designar os quilombos brasileiros que constituíram-

se num “contínuo comentário sobre o regime escravista brasileiro”

(SCHWARTZ, 2001, p.261).

3. Revisão Histórica

3.1. Para além de Palmares: onde estavam os quilombos

1. A partir de 1500 o Brasil viveu a experiência de ser colonizado pelos

portugueses e a população nativa passou a compor o mundo dos trabalhadores

escravizados. Paralelamente desenvolveu-se o tráfico de escravos,

especialmente africanos, que passaram a constituir a força produtiva

predominante na sociedade colonial que foi estabelecida. De acordo com

Flávio dos Santos Gomes (2005) pode ter sido superior a dez milhões, a

quantidade de africanos que chegaram às Américas entre os séculos XVI e

XIX, sendo que para o Brasil teriam vindo 40% destes (GOMES, 2005).

O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão. Por mais de

três séculos, a produção escravista regeu a nossa sociedade colonial e impôs

duríssimas condições de existência aos trabalhadores escravizados. Décio

Freitas (1982) salienta que o valor e a variedade das riquezas produzidas pelo

trabalho escravo: açúcar, ouro, diamantes, fumo, algodão, café, não pode ser

comparado a nenhum outro.

10

Há trezentos anos que o africano tem sido o principal instrumento de ocupação e da manutenção do nosso território pelo europeu, e que os seus descendentes se misturam com o nosso povo. Onde ele não chegou ainda, o país apresenta o aspecto com que surpreendeu aos seus primeiros descobridores. Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo, que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar (NABUCO apud FREITAS, 1982, p. 10).

Estes trabalhadores, primeiro índios, a seguir africanos e seus

descendentes não foram objetos passivos, meros espectadores da história,

mas ao contrário, “um componente dinâmico permanente no desgaste do

sistema, através de diversas formas, e que atuavam, em vários níveis, no

processo de seu desmoronamento” (MOURA, 1986, p.8).

Durante a vigência da escravidão foram várias as formas de

manifestação dos escravos contra a exploração escravista: resistência ao

trabalho por meio do “corpo mole”, sabotagem de ferramentas, autoferimento;

apropriação de bens por eles produzidos; suicídios, fugas, revoltas,

inssurreições, ataques aos seus feitores ou senhores; aquilombamentos, enfim,

“o cativo resistiu ininterruptamente, mesmo quando se acomodava à

escravidão” (FIABANI, 2006, p.7).

As fugas foram expressivas nessa oposição e aconteciam em toda a

extensão territorial. Podiam ocorrer no momento do desembarque, nas grandes

fazendas, nas pequenas propriedades, nas senzalas, no meio rural e no meio

urbano. Aconteciam em grupos, aos pares, ou mesmo sozinhos. Segundo

Aldemir Fiabani (2006, p.8) “as fugas foram uma hemorragia incessante na

produção escravista”, o que pode ser observado no volume de anúncios de

jornais e listas de cativos fugidos, na preocupação (legislação e empenho

financeiro) com a vigilância e captura de “fujões”.

Porém, outro elemento da história brasileira que merece maior atenção é

a existência dos quilombos, suas origens, formas de organização, sua

importância enquanto movimento de resistência ao escravismo, sua

11

participação na construção do Brasil. Datam de meados do século XVI as

primeiras notícias da existência de quilombos em território brasileiro e eles

continuaram a ocorrer durante todo o período em que durou a escravidão.

O quilombo de Palmares, como já foi dito, é tido como uma das mais

importantes comunidades de africanos fugidos, por sua extensão, sua duração,

sua organização e pela importância que recebeu das autoridades no interesse

de destruí-la. De qualquer modo, apesar da atenção especial dedicada a

Palmares, as autoridades e senhores percebiam a formação de quilombos em

todo o território.

Em Minas Gerais, os quilombos do Ambrósio e de Campo Grande

destacaram-se pelo tamanho, tendo cerca de 10 mil habitantes cada um,

segundo Clóvis Moura (1986). Porém, nas zonas de mineração, durante todo o

século XVIII, o quilombo foi uma presença constante. Os escravos fugiam para

regiões próximas às comunidades mineradoras urbanizadas, onde formavam

numerosos pequenos quilombos. Eles eram a principal causa de preocupação

para os habitantes livres, mas paralelamente, tornavam-se parceiros de

negócios dos comerciantes das vilas (RAMOS In: REIS & GOMES, 1996).

Com características particulares, o Mato Grosso também foi palco da

formação de quilombos durante os séculos XVIII e XIX, entre os quais os que

se constituíram de forma mais organizada e duradoura foram os de Quariterê,

do Sepotuba e do Rio Manso (VOLPATO In: REIS & GOMES, 1996). Segundo

esta autora, vários aldeamentos de escravos fugitivos formaram-se em território

mato-grossense, embora alguns não tenham deixado registros, devido à sua

efemeridade.

Também datam do século XVIII os quilombos que podem ser

identificados por meio de documentos e tradições locais, no estado de Goiás.

Alguns fatores, como o tipo de terreno, sua localização distante dos centros

administrativos portugueses, população esparsa, preocupação – por parte dos

governantes - com guerras indígenas e contrabando do ouro, fizeram da

capitania de Goiás um local ideal para a formação de quilombos. Os quilombos

de Três Barras, Tocantins, Arraias, Meia Ponte, Crixás e Paracatu são alguns

dos quilombos do século XVIII, que tiveram seus locais identificados7. Além

7 Os historiadores goianos Luiz Palacin e Gilka V. F. de Salles foram, segundo Mary Karasch, os responsáveis por esta identificação.

12

destes pode ser destacado o de Pederneiras, citado pelo antropólogo Curt

Nimuendajú quando estudou os Apinajé na década de 1930 e inúmeros outros

em toda a extensão da capitania de Goiás, de acordo com diferentes relatos e

documentos. (KARASCH, In: REIS & GOMES, 1996)

A documentação da polícia do Rio de Janeiro tornou-se importante fonte

para verificar a existência de diversos quilombos, no século XIX,

particularmente na região de Iguaçu. Região que favoreceu a formação e

desenvolvimento dos quilombos por tratar-se de uma extensa planície com

riachos e pântanos (GOMES, 1996). Apesar desta documentação referir-se aos

quilombos, em diferentes momentos, com diferentes denominações, ela aponta

a existência de quilombos em toda a região circunvizinha à região iguaçuana,

ou seja, nas freguesias de Magé, da Guia, Inhomirim, Suruí e Guapimirim, além

das vilas de Cabo Frio, Resende e Macau. Também nos subúrbios da Corte

próximos, como Irajá e Campo Grande (GOMES, 1996), demonstrando a

extensão e importância atingida pelos quilombos no Rio de Janeiro.

Nem os Pampas sulinos ficaram alheios a esta manifestação de

resistência de cativos à escravidão. Um dos autores que mais se dedicou a

este tema foi Mário Maestri, demonstrando que a população escrava contribuiu

significativamente na fundação e desenvolvimento da sociedade rio-grandense.

Ele afirma existir abundante documentação escrita para o estudo dos

quilombos sulinos. Atas e outros documentos das Câmaras e jornais da época

são algumas fontes que dão notícias da existência de quilombos nas cercanias

e ilhas fluviais próximas a Porto Alegre; na região de Rio Grande; nas

proximidades das charqueadas de Pelotas, em Rio Pardo, e outras localidades

quase sempre utilizando acidentes geográficos como proteção (MAESTRI, In:

REIS & GOMES, 1996).

Na Bahia, foram amplamente estudados e divulgados os levantes

urbanos, com destaque para a insurreição de 1835, que ficou conhecida como

Revolta dos malês, tendo sido liderada por escravos islamizados hauçás e

posteriormente nagôs (MOURA, 1986). Porém foram identificados vários

quilombos8 formados por poucos fugidos que

8 Os Quilombos do Urubu; de Jacuípe; de Jaguaripe; de Maragogipe; de Muritiba; dos Campos de Cachoeira; de Orobó, Tupim e Andaraí; de Xiquexique; do Buraco do Tatu; da Cachoeira; de Nossa Senhora dos Mares e do Cabula são listados por Clóvis Moura (1986) como os principais da Bahia.

13

se estabeleciam próximos a povoações, fazendas, engenhos, lavras, às vezes nas imediações de importantes centros urbanos, e mantinham relações ora conflituosas, ora amistosas, com diferentes membros da sociedade envolvente (REIS, 1996, p.332).

O Quilombo do Oitizeiro, na Comarca de Ilhéus ao sul da Bahia, é um

exemplo que foi tratado por João José Reis (1996) por suas características

bastante peculiares pois,

ali os fugitivos conviviam com, e trabalhavam para, homens livres e seus escravos, ambos assumindo o papel de protetores e empregadores de quilombolas. (...) Um quilombo dirigido por homens livres. Um quilombo com escravidão. Um quilombo agrícola e cuja produção estava integrada ao mercado regional (REIS, 1996, p.332).

Matthias Röhrig Assunção (1996) afirma que houve uma “extraordinária

multiplicação de quilombos” nas áreas de fronteira no Maranhão, durante o

século XIX, devido à numerosa população escrava que aí se concentrava. No

Maranhão é possível dizer que existiram poucas fazendas escravistas sem

quilombos ao seu redor e estes quilombos podiam ser de três tipos: os que se

formavam com poucos escravos fugidos, nas matas próximas às fazendas; os

grupos mais afastados que desenvolviam uma economia de subsistência e

eventual venda de excedentes e os grupos que dedicavam-se paralelamente à

agricultura e ao garimpo (ASSUNÇÃO, In: REIS & GOMES, 1996).

Clóvis Moura (1986) cita ainda a presença de quilombos na Ilha de

Marajó e na região continental da Amazônia, noticiadas e pormenorizadas por

Vicente Salles e em Santa Catarina, estudados por Walter Piazza.

O que parece certo é que apesar da presença de quilombos em toda a

extensão territorial brasileira, não se pode determinar o número exato de

quilombos que se formaram. E tampouco se eram pequenos, médios, ou

grandes, considerando que quase sempre as notícias são apresentadas pelos

seus inimigos, ou seja, aqueles que se dedicavam a destruí-los e recapturar

escravos aos seus senhores.

Em forma mais ou menos sistemática, as mais diversas regiões do Brasil escravista conheceram quilombos. Não temos igualmente estimativas sobre o número de minúsculos,

14

pequenos, médios e grandes quilombos, formados durante o passado escravista brasileiro – entretanto, ele certamente se eleva às dezenas de milhares (FIABANI, 2005, p. 11).

O que não se pode negar é que a quantidade e a extensão geográfica

das fugas e aquilombamentos exerceu forte influência na história política,

social, econômica, demográfica, brasileira (FIABANI, 2005).

3.2. Organização econômica dos quilombos brasileiros

Independente do tamanho e da localização, os quilombos possuíam um

“mesmo objetivo: fugir do sistema escravista” (MOURA, 1993, p.32). Porém o

tamanho e a localização, muitas vezes, definia sua organização interna.

No início, quando o quilombo era pequeno e apenas se iniciava, tinha necessidade de uma vida predatória para a sua subsistência e continuidade. No entanto, à medida que ele crescia, procurava organizar-se internamente para poder pôr em funcionamento os grupos populacionais do reduto. Com isto, tinham de surgir formas de governo, religião, propriedade, família e especialmente economia (MOURA, 1986, p.34).

Nestes espaços de liberdade os fugidos dedicavam-se, principalmente a

agricultura de subsistência, mas também ao extrativismo, mineração, comércio,

em face da região em que se organizavam e a economia predominante destas

áreas (MOURA, 1993).

Décio Freitas (1982) organizou uma tipificação dos quilombos,

considerando a produção econômica predominante de cada um:

- quilombos agrícolas: os mais desenvolvidos e populosos, localizados

nas serras e nas matas que praticavam a agricultura de subsistência e cujo

excedente era trocado por outros produtos necessários, nos núcleos

escravistas mais próximos;

- quilombos mineradores: ocorreram especialmente em Minas Gerais,

Goiás, Mato Grosso e Bahia, onde os aquilombados dedicavam-se ao garimpo

de ouro e diamantes, que eram trocados pelos alimentos, ferramentas e

demais produtos num intercâmbio, mais ou menos clandestino com os

comerciantes da região;

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- quilombos extrativistas: com numerosa população constituída de

negros e índios, dedicavam-se à extração das “drogas” da Amazônia que eram

vendidas aos comerciantes fluviais do Rio Amazonas e seus afluentes. Estes

devido aos lucros que obtinham, não revelavam a localização dos quilombos;

- quilombos mercantis: instalados estrategicamente às margens dos rios

da bacia amazônica, atuavam como intermediários entre os índios que

extraíam “ as “drogas” da floresta e os regatões (comerciantes fluviais);

- quilombos pastoris: ocorridos especialmente nas campanhas de gado

do atual Rio Grande do Sul. Inicialmente abatiam gado selvagem para extração

de couro, chifres e outros acessórios e mais tarde, com o desenvolvimento das

charqueadas, refugiaram-se em locais mais distantes, dedicando-se à criação

de gado;

- quilombos predatórios: viviam exclusivamente de assaltos e saques a

viajantes e propriedades, para obtenção de armas, munições e outras

mercadorias;

- quilombos de serviços: foram numerosos no Rio e Salvador.

Localizavam-se na periferia de grandes centros urbanos onde prestavam

serviços, trabalhando como assalariados e passando-se por libertos.

Esta diversificação especificada por Décio Freitas, foi entendida por

Clóvis Moura como fruto da necessidade dos quilombolas em

criar uma economia que produzisse aquilo de que os quilombos necessitavam e que era regionalmente possível, de acordo com as possibilidades ecológicas e as disponibilidades de matéria-prima ou de sementes daquelas áreas em que se formavam (MOURA, 1993, p.33).

A agricultura era a base da produção econômica em todos os grupos de

aquilombados, exceto nos classificados por Décio Freitas como predatórios ou

de serviços. Ao invés de reproduzirem a monocultura, aproveitando-se dos

recursos naturais e de elementos trazidos dos engenhos e fazendas,

dedicaram-se a policultura.

Há informações de grandes plantações de milho, feijão, mandioca,

amendoim, batata, cará e outros tubérculos no Quilombo do Quariterê, em

Mato Grosso. Aí também se cultivava banana e ananás. Plantava-se fumo e

algodão, que gerava a confecção de tecidos grosseiros e, ainda, criava-se

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galinhas (VOLPATO, In: REIS & GOMES, 1996). Também no Mato Grosso no

quilombo do Rio Manso havia roças de cereais, canaviais, fabricação de

rapadura e tecidos grosseiros e criação de galinhas e cachorros (FIABANI,

2005).

Mary Karasch (1996) em seus estudos sobre os quilombos de Goiás

afirma que dedicavam-se a caça, pesca e cultivo de roças, havendo também os

que se envolviam em assaltos, criação de gado e produção de carne-seca.

Em Palmares, o mais pesquisado dos quilombos, até hoje, sabe-se que

plantavam milho, feijão, mandioca, batata-doce, banana e cana-de-açúcar

(MOURA, 1986).

A agricultura, portanto, abrangia toda classe de gêneros alimentícios,

desconhecida pela sociedade escravista. A ela aliava-se a criação de aves e

pequenos animais; a caça e a pesca como fontes regulares de abastecimento;

uma produção artesanal de ferramentas, tecidos, instrumentos domésticos,

arcos e flechas e uma indústria rudimentar que produzia açúcar, azeite, farinha

e aguardente (FREITAS, 1982).

Para organizar esta estrutura econômica que se estabelecia nos

quilombos, ao longo de sua existência aparecia, em todos uma divisão do

trabalho. Enquanto alguns se dedicavam ao trabalho na terra – exceto em

tempos de colheita, que era tarefa para a coletividade -, outros dedicavam-se à

caça, outros à pesca, outros ao artesanato, outros à transformação dos

produtos primários. Porém “tratava-se de uma divisão apenas técnica do

trabalho entre membros da comunidade, não de uma divisão social do trabalho

entre classes” (FREITAS, 1982, p.43).

O excedente da produção era trocado ou vendido com as populações

próximas ou comerciantes, em quase todos os quilombos, pois as carências

básicas dos aquilombados eram o sal, as armas e munições (FREITAS, 1982).

Este fato demonstrou uma freqüente interação entre os quilombolas e a

população tanto livre quanto cativa, na sociedade colonial, o que não diminuía

e, talvez, reforçava o temor dos escravistas e autoridades em relação aos

quilombos, que os viam como transgressão à ordem e constante ameaça,

tornando-os alvo de constantes investidas com o fim de destruí-los. (FIABANI,

2005). “Os opressores não se contentavam com a apreensão e recondução

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dos quilombolas à escravidão. Havia a necessidade de acabar com a estrutura

do quilombo” (FIABANI, 2005, p.289).

O escravo era um bem e um investimento do escravizador, portanto sua

fuga significava sua retirada do processo produtivo, gerando-lhe prejuízos.

Uma das táticas dos colonos e autoridades era a recaptura de negros fugidos,

antes que se organizassem em bandos e esta era a principal razão para a

nomeação dos capitães-do-mato, exigidos pelos proprietários. Este posto era

comissionado recebendo recompensa para cada negro fugitivo que era

capturado (SCHWUARTZ, 2001).

Os prejuízos aos senhores e à Coroa portuguesa mediam-se também

nos salários de policiais, nos investimentos em armas e munições, na

organização de milícias para destruição dos quilombos, nos prejuízos

financeiros decorrentes dos negócios clandestinos praticados entre

quilombolas e comerciantes, além da constante insegurança provocada à

classe proprietária.

Ainda, segundo Aldemir Fiabani (2005), pode-se considerar o aspecto

psicológico, pois a cada novo quilombo, era maior a apreensão considerando

que “os trabalhadores escravizados materializavam sua insatisfação com o

regime que apreendia a sua força de trabalho” (FIABANI, 2005, p.291).

Os quilombos, embora não tenham se configurado como uma luta única,

de toda a coletividade de escravos contra o regime escravista, contribuíram

indiscutivelmente para a supressão da escravatura (FREITAS, 1982). Foram

uma força de desgaste do sistema escravista e demonstraram a possibilidade

de uma sociedade alternativa, de homens livres e de democracia racial

(MOURA, 1993).

4. Considerações finais

A crença na possibilidade de um outro olhar sobre a história brasileira

que ultrapasse a historiografia tradicional dos fatos políticos, dos heróis e das

guerras, aliada à obrigatoriedade do ensino de história africana e dos

afrodescendentes é que motivou este trabalho, inicialmente.

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Um país que por mais de três séculos sustentou-se escravizando a

grande maioria de de seus habitantes, fossem índios, negros ou os seus

descendentes, não pode negar que estes trabalhadores deixaram sua marca

na definição de muitos aspectos da sociedade que construiu.

Apesar das vertentes historiográficas que os mantiveram invisíveis

enquanto participantes na formação desta nação, ou relegados à imagem de

preguiçosos, conformados, submissos, incapazes, eles se organizaram, os

africanos importados para o Brasil escravista e seus descendentes cumpriram

seu papel seja na manutenção do regime, seja na sua negação, contestando,

resistindo, lutando.

Revisitando autores que se dedicaram a este tema é possível perceber

que as visões sobre as manifestações dos cativos, em especial a organização

dos quilombos apontam ora para a visão do quilombo como um mal, um

incômodo, ora como uma alternativa de liberdade e manifestação de

resistência.

Os quilombos como foi visto, sempre estiveram presentes na história

brasileira, desde o século XVI, ocupando espaços geográficos e sociais.

Neste trabalho foram apontadas algumas discussões possíveis sobre o

tema, embora muito aquém do que ainda se pode levantar, investigar e

disponibilizar a professores e alunos da educação básica paranaense como

subsídio para a educação das relações étnico-raciais, valorizando

afirmativamente a cultura e a história dos negros no Brasil.

Não foram aqui contempladas as contribuições culturais, políticas,

religiosas, sociais dos quilombos brasileiros ou a sua importância para a

concretização da Abolição. Ficou apenas o aguçamento da curiosidade

científica para novas pesquisas, com a certeza de que este é um dos caminhos

para o combate ao racismo e a negligência da história para com esta parcela

da população brasileira.

REFERÊNCIAS

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