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VII Simpósio Nacional de História Cultural
HISTÓRIA CULTURAL: ESCRITAS, CIRCULAÇÃO,
LEITURAS E RECEPÇÕES
Universidade de São Paulo – USP
São Paulo – SP
10 e 14 de Novembro de 2014
QUILOMBO: A ARTE DA MEMÓRIA NEGRA SOBRE PALMARES
NAS ALAGOAS OITOCENTISTA
Danilo Luiz Marques1
O Quilombo dos Palmares, apesar de findada a guerra contra o poder colonial no
século XVII, tem uma forte relação com a história da formação da Província de Alagoas
no século XIX. O espaço alagoano foi formado à “sombra” da simbologia de Palmares,
as elites se utilizaram de um discurso negativo em relação aos aquilombados da Serra da
Barriga, algo reforçado na memória local através de uma educação oficial que vangloriava
a vitória das forças contrárias aos quilombos. O Instituto Arqueológico e Geográfico
Alagoano (antigo IAGA e atual IHGAL) teve uma participação ativa nesse processo,
publicando em suas revistas artigos que marginalizavam os palmarinos. As autoridades
alagoanas temiam que outro “Palmares” voltasse a existir, o temor aumentou com as
notícias que circulavam em todo o Brasil acerca dos ocorridos no Haiti entre 1791 e 1804
que desencadearam em uma revolução escrava e das Revoltas dos Malês na Bahia na
primeira metade do século XIX. Esse “medo” existiu na mentalidade das elites alagoanas
até o fim dos oitocentos, algo que pode ser constatado através dos relatórios provinciais,
documentação policial, jornais e códigos de posturas municipais. Em contrapartida,
ocorreu a formação de uma identidade negra da quilombagem, a qual arraigava um ideário
de liberdade vinculado à memória do Quilombo de forma positiva na mentalidade popular
1 Doutorando em História Social pela PUC-SP, bolsista pela CAPES. [email protected].
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(SANTOS, 2013, pp. 7-33), tendo, segundo alguns folcloristas, o “Auto do Quilombo”
como uma das práticas culturais que realçavam essa memória.
Na conjuntura oitocentista, os acontecimentos em Palmares soavam como terror
para as autoridades e senhores escravistas da recém criada Província das Alagoas, por
isso, a memória oficial procurou marginalizar os aquilombados da Serra da Barriga.
Concebendo a memória, com base no pensamento de Raphael Samuel, como uma forma
de construir conhecimento e que é historicamente condicionada (SAMUEL, 1997, pp. 41-
81), acreditamos que o IAGA exerceu um papel de consolidar uma memória negativa em
torno de Palmares, papel este que estava dentro de um projeto político ligado à
consolidação da Província das Alagoas pelos grupos dominantes no poder. Em oposição
à essa situação, os povos da diáspora africana procuraram, dentro de suas práticas
culturais, preservar as memórias da luta quilombola na região, um desses exemplos é o
que alguns folcloristas chamaram de o “Auto de Quilombo”. Advindos de tradicionais
culturas orais, esses povos possuem possibilidades de memorização corporal, suas
expressões e formas de ser, viver e relacionar foram reatualizadas e incorporadas em
diversas práticas culturais. Pedro Nolasco Maciel, em seu romance de fins do século XIX,
Traços e Troças, descreveu o “Auto de Quilombo”:
Ao sair do templo foram assaltados por inúmeros sujeitos, uns vestidos
de pena e untados de oca, lembrando os primitivos habitantes do Brasil;
outros enlameados de preto. Era aquilo um brinquedo tradicional, que
renovava os quilombos da serra dos Palmares, célebre república
organizada por africanos escravizados em número superior a três mil e
que se refugiaram na Serra da Barriga, neste Estado, onde viveram mais
de meio século (MACIEL, 1964. pp. 123-124).
O “Auto de Quilombo” tem sua matriz cultural na tradição africana e indígena
existente em algumas regiões de Alagoas e que remete ao tema da resistência escrava no
Brasil. Segundo Demian Moreira Reis, é datada da primeira metade do século XIX e era
encenada nas cidades de Alagoas (atual Marechal Deodoro) e Vila da Imperatriz (atual
União dos Palmares) (Reis, 1996, pp. 159-171). Na capital Maceió, também existem
registros, o jornal O Constitucional, publicara em 1851 que “Costuma-se fazer nesta
Província uma brincadeira tosca chamada os Quilombos que este ano se fez também nesta
capital2”. A descrição do “Auto de Quilombo” também está presente no Opúsculo da
2 Jornal O Constitucional, Maceió, série 11, n. 26, 23 julho de 1851.
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descripção geographica, topographica, phizica, política, e histórica do que unicamente
respeita à Pronvincia de Alagoas no Imperio do Brasil:
Inda hoje há por lá (na Vila da Imperatriz) comemoração, em uma
espécie de torneio que se celebra nas ocasiões festivas, e que dão o
nome de - Quilombos. Consiste em duas guerrilhas, uma de índios,
outra de negros aquilombados; travam-se, e os-negros vencidos são
prisioneiros, e os vencedores os levam de folia pelas ruas, oferecendo-
os, ou vendendo- os a troco de doces e bebidas, com que uns e outros
se encharcam, e isso entretém e diverte muito a quem nunca viu mais
do que isso (HUM BRASILEIRO, 1844, p. 10).
Salomão Azevedo, fazendo um paralelo com as Congadas e Mouriscadas,
documenta que o “Auto de Quilombo” era uma festa de caráter religioso, sendo dividida
em três momentos, inicia-se com a representação de uma grande paliçada simbolizando
os mocambos e configurando a representação de um Quilombo. “Feito o arraial,
primeiramente o grupo negro começa a agir como se estivesse realmente num Quilombo,
saqueando as fazendas em derredor, enchendo os Mocambos de coisas roubadas”
(AZEVEDO, 1985). Alfredo Brandão documentou que a realização do Quilombo
iniciava-se ao amanhecer, geralmente em praças públicas3 e via-se:
[...] organizando um reduto da paliçada, poeticamente enfestonado de
palmas de palmeira, de bananeiras e de diversas árvores virentes e
ramalhosas que durante a noite haviam sido transplantadas. Dos galhos
pendiam bandeiras, flores e cachos de frutas. No centro da paliçada
erguiam-se dois tronos tecidos de ramos e folhas; o da direita estava
vazio, mas o da esquerda achava-se ocupado pelo Rei, o qual trajava
gibão e calções brancos e manto azul bordado, tendo na cabeça uma
coroa dourada e na cinta uma longa espada. Em torno os negros,
vestidos de algodão azul, dançavam ao som de adufos, mulungus,
pandeiros e ganzás, cantando a instantes a seguinte copla: Folga
negro/Branco não vem cá/Se vier/O diabo há de levá (BRANDÃO,
1914, pp. 95-96).
Os versos dessa copla exprimiam, segundo Arthur Ramos, os sentimentos de
“liberdade que os escravos fugidos dos engenhos, os calhambolas, entoavam na segurança
da sua cidadela. Lá, dentro dos seus dez ou doze mocambos, [...] eles podiam brincar e
folgar à vontade” (RAMOS, 2007, p.54). Para Theo Brandão, a realização do Quilombo
se iniciava ainda pela madrugada com os saques e roubos (BRANDÃO, 1978, p.29), os
3 Theo Brandão documenta que o Quilombo era geralmente realizado em praças, largos ou ruas amplas,
“pois que sua ação, constante de lutas, combates de espadas, correrias, etc., necessita de amplo espaço”
(BRANDÃO, 1978, p. 22).
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negros dançavam, sapateavam, batiam palmas e pulavam até o dia amanhecer. A dança
ou batuque consistia em um coco solto ou sem parelhas, até “às 5 horas da manhã come-
se, então, a panelada que se cozinha no rancho, a noite toda, ou em casa das adjacências:
carne de boi com osso de tutano, verduras, charques, temperos, com pirão escaldado ou
coberto com caldo de panelada” (BRANDÃO, 1978, p. 30). Este primeiro momento,
consistia também em uma passeata pelas ruas das cidades onde o “Auto de Quilombo”
era realizado.
Na segunda parte, surgiam os soldados que representavam as tropas coloniais
acompanhados por índios, os quais cercavam o Quilombo e começavam a resgatar as
coisas roubadas, travava-se uma luta: “na praça, em frente ao quilombo, e depois de
muitas refregas, de retiradas simuladas e assaltos, o rei dos caboclos acabava subjugando
o rei dos negros e apossando-se da rainha” (BRANDÃO, 1914, p. 97). A sequência do
Auto se daria com a matança dos negros e destruição do Quilombo, sendo os
sobreviventes capturados e colocados como escravos. Arthur Ramos nos lembra que os
membros das expedições contra Palmares detinham o direito de posse sobre os que
“tomassem aos palmarinos, e os negros capturados seriam revendidos aos seus
respectivos senhores, ou a qualquer outro pretendente, no caso de não ficar provada a
legitimidade da posse” (RAMOS, 2007, p. 55). Os negros, que eram batidos pelos
caboclos, “recuavam para o centro do quilombo, o qual era cercado e destruído.
Terminava a festa com a vendagem dos negros e a entrega da rainha a um dos maiores da
vila, que para fazer figura tinha de recompensar fartamente os vencedores” (BRANDÃO,
1914, p. 98).
Nas palavras de Alceu Maynard Araújo, o Quilombo era: “uma festa que
relembrava as lutas e o anseio de liberdade dos negros escravos que um dia se refugiara
nas florestas de palmares, criando os núcleos de Zambi, Subupira, Macaco, Ozengá e
Andolaquituxe” (ARAÚJO, 1964, p. 391). Para Demian Moreira Reis, a “dança do
Quilombo deve ser pensada no contexto da cultura escrava das Alagoas da primeira
metade do século XIX” (REIS, 1995, pp. 159-171), sua encenação se dava com uma luta
entre índios e negros que terminava com a derrota e escravização dos negros, os quais
roubavam alimentos e objetos, levando para os mocambos. O escravo fugitivo que se
transforma em quilombola era uma condizente com a conjuntura histórica, onde escravos
rebeldes se arriscavam “com a formação de mocambos, o saque de fazendas, o levante
urbano e outras estratégias de luta temidas pelas autoridades e pela população branca
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livre” (REIS, 1995, pp. 159-171). Tudo isso, somado à tradição de quilombos na região
alagoana desde Palmares, causava temor às autoridades, as encenações do Quilombo
poderia significar afronta à hegemonia senhorial, para uma Província recém criada e com
essa tradição de resistência escrava, tal prática tenderia a ser criminalizada. Na cidade de
Alagoas, por exemplo, houve uma postura que proibia a prática do Quilombo, realizada
pelos negros na cidade e no interior em tempos de festas natalinas e nas celebrações de
irmandades como a de Nossa Senhora do Rosário. Na Resolução nº 10 de 11 de julho de
1839, no artigo 11º, encontramos: “Fica prohibido o barbaro e immoral espectaculo
denominado – Quilombo. Os contraventores soffrerão a pena de oito dias de prisão e
multa de dous mil réis, e sendo pessoas escravas serão seus senhores obrigados à multa
somente”4.
Após as rebeliões haussás na Bahia, no ano de 1835, as posturas municipais em
Alagoas passaram a proibir os batuques e ajuntamentos de escravos nas vilas, cidades e
sítios. Evidenciando a preocupação por parte da hegemonia senhorial com rebeliões e
fugas, já que as aglutinações de negros poderiam ser um elemento perigoso para a
manutenção da “ordem” (SANTOS, 2013, pp. 7-33). Para Stuart Hall, a cultura popular
é um campo de transformações, uma arena de tensões e conflitos, onde ocorre “uma luta
mais ou menos contínua em torno da cultura dos trabalhadores, das classes trabalhadoras
e dos pobres” (HALL. 2006, p. 247). Configuram-se então as dualidades luta e resistência,
apropriação e expropriação, na tentativa de reeducar as classes populares. Aventamos a
ideia de que a cultura também se constituiu como espaço para a resistência escrava.
Existe uma luta constante entre a cultura dominante, com o intuito de desorganizar e
reorganizar, e a cultura popular, o que se desdobra em resistência e superação.
Concebemos o Quilombo como uma prática cultural5 que preservava na
memória popular os acontecimentos em torno da Guerra de Palmares, entretanto, tal
4 Compilação das Leis Provinciaes das Alagoas, de 1835 a 1870. Volume I, p. 358.
5 Utilizamos o termo prática cultural para se referir ao Quilombo, com isso, visamos nos distanciar de
termos usados por alguns pesquisadores da temática (sobremaneira os folcloristas) como: auto,
brinquedo e dança dramática, pois buscam folclorizar, tendendo a minimizar a importância do Quilombo
para a memória da resistência escrava em Alagoas. Concebemos a prática cultural como algo que une
poesia, música, dança e teatro (oralidades e performances), assim, concordamos com a ideia apontada
por Abdu Ferraz de que entre os povos africanos e da diáspora africana tudo está interligado, não existem
domínios autônomos: “Quando falamos em música na África, importa dizer que o conhecimento
africano parte de um conceito unitário. Quer dizer, não temos divisão entre música, poema; a música
está interligada ao poema, ou melhor, o poema está interligado à música, que está ligado à dança, à
escultura, à pintura, que está ligado à luz, etc, etc. Quer dizer, não podemos dissociar o poema da música,
a música da dança, a dança da escultura, a escultura da pintura e da luz” (FERRAZ, 2003, pp. 211-245).
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afirmativa não é um consenso entre os pesquisadores do tema. Para Demian Moreira Reis,
existe uma problemática entre os estudiosos (folcloristas, literatos, musicólogos e
cientistas sociais) sobre a historicidade do “Auto de Quilombo” derivada da abordagem
folclórica à qual se submeteu (REIS, 1995, pp. 159-171). Alfredo Brandão o concebeu
como “uma festa puramente alagoana que relembrava um dos factos mais importantes da
nossa história – a guerra de Palmares” (BRANDÃO, 1914, p. 95). Indo na mesma linha
de pensamento, Arthur Ramos também relaciona a prática cultural ao Quilombo dos
Palmares, localizando sua historicidade no “inconsciente coletivo” dos negros em
Alagoas, sugerindo uma continuidade na memória popular, para este autor, se constituía
de um auto de sobrevivência histórica dos negros no Brasil, o qual mostrava “um flagrante
exemplo da gênese e do desenvolvimento das canções de gesta e de feitos heroicos que
passaram ao inconsciente popular” (RAMOS, 2007, p. 51).
Mário de Andrade, se distanciou das abordagens apresentadas acima, ele não
concebia uma ligação direta de Palmares à prática cultural Quilombo, e sim como uma
tradição advinda das cavalhadas e cheganças (ANDRADE, 1947, p. 56). Oneyda
Alvarenga, defendeu a hipótese da prática cultural ter inspiração em outros quilombos,
mas não particularmente no de Palmares, de maneira que “descarta o argumento
geográfico sustentado por Alfredo Brandão e Arthur Ramos, que se baseiam na
coincidência do auto tematizar Quilombo e ao mesmo tempo se originar em Alagoas,
onde existiu Palmares” (REIS, 1995, pp. 159-171). Edson Carneiro identificou uma
manipulação branca no “Auto de Quilombo” com o intuito de controlar a resistência
escrava, negando a historicidade popular da prática cultural, segundo o autor, ela seria:
“uma adaptação semi-erudita dos autos dos congos para comemorar a vitória das armas
luso-brasileira contra o Quilombo dos Palmares” (CARNEIRO, 1965, p. 187). Theo
Brandão, estudando o Quilombo na cidade de Maceió nos anos de 1950, argumentou que
as populações não guardavam a “menor lembrança da república negra e a guerra que a
ela foi movida” (BRANDÃO, 1978, p. 05). Antônio Alexandre Bispo, pesquisador da
Academia Brasil-Europa de Ciência e Cultura, segue na linha dos estudos que visavam
descaracterizar a ligação da prática cultural Quilombo com Palmares, para ele: “trata-se
de mais um mal entendido histórico causado por uma obsessão de natureza antropológica
de cunho biológico” (BISPO, 1991). Defendendo que, por motivos históricos, o “Auto de
Quilombo” foi adaptado a uma estrutura herdade da cultura europeia, e que não se pode
ignorar as tradições europeias medievais.
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Acreditamos que algumas das ideias levantadas em torno da prática cultural
Quilombo são genéricas, e deixam a questão da memória de Palmares em segundo plano.
Concebemos importante desenvolver tal análise, pois as manifestações dos povos da
diáspora africana podiam ser um dos poucos locais em que uma memória de resistência a
escravidão era propagada. Assim, propomos compreender tal prática cultural como
ingrediente ativo da história social e do espaço onde se trava uma batalha de memórias,
contrapondo o discurso de uma historiografia oficial presente em locais como o Instituto
Arqueológico e Geográfico de Alagoas. Maria Antonieta Antonacci nos lembra em
Memórias Ancoradas em Corpos Negros, que a diáspora negra trouxe consigo corpos
forjados em culturas orais e que vivenciavam memórias corporais, algo que não os foi
expropriado, dessa forma, refizeram-se, colorindo, ritmando e reinventando os universos
brasileiros. Os cativos “sob chicotes e castigos trabalharam, conservando mentes para
fugas e rebeliões, reinventando seu vibrante e festivo universo cultural no Novo Mundo”
(ANTONACCI, 2013, p. 144).
A memória de Palmares está presente na música, na teatralidade, na dança e na
oralidade da prática cultural Quilombo. Concordamos com a hipótese defendida por
alguns folcloristas de que a prática cultural Quilombo era uma reminiscência de Palmares,
levando em conta os fatores geográficos e históricos, doravante, para melhor
entendimento da questão, torna-se necessário analisá-la dentro de uma perspectiva
descolonial de poderes e saberes, procurando tornar audíveis as memórias de Palmares
obliteradas pela escrita oficial do século XIX. As práticas culturais da diáspora africana
foram racializadas e desmoralizadas por culturas e politicas eurocêntricas, desaparecendo
nas dobras dos discursos e intervenções colonialistas e imperialistas. Concebendo o
folclore como um ingrediente ativo da história social e local onde a memória de
determinada população se perpetua (THOMPSON, 2001, p. 243), defendemos que o
Quilombo era um dos poucos locais em que as memórias de Palmares e de outros
aquilombados eram contadas pelos povos africanos da diáspora. Advindos de uma matriz
cultural oral, utilizavam de seus corpos, músicas e performances como instrumentos de
preservação de suas memórias, uma memória que contrapunha o discurso histórico oficial
dos oitocentos, que representava o discurso senhorial. Como lembra Lindoso: “A história
dos negros escravos não interessava a seus senhores. Essa história inexistia na consciência
do senhor, e criou-se até a parêmia que dizia: ‘O que o negro diz não se escreve’”
(LINDOSO, 2005. p. 286).
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Percebemos que a prática cultural Quilombo foi folclorizada por alguns
pesquisadores da temática, colocando-a em um local inerte e isolado da memória social.
Desta maneira, concordamos com a ideia de Frantz Fanon, também trabalhada por Stuart
Hall: a de que a cultura nacional não pode ser folclore e a tradição não é uma coisa morta,
é sempre reinventada. Para consolidar outras visões de mundo e formas de saberes, as
práticas culturais provenientes da diáspora africana precisam ser compreendidas como
um “conjunto dos esforços feitos por um povo no plano do pensamento para descrever,
justificar e cantar a ação através da que esse povo se criou e se mantem em existência”
(FANON, 2005, p. 268), elas eram espaços privilegiados na preservação da memória dos
povos dizimados da África. Para Lander, “caracterizando as expressões culturais como
‘tradicionais’ ou ‘não-modernas’, como em processo de transição em direção à
modernidade, nega-lhes toda possibilidade de lógicas culturais ou cosmovisões próprias”
(LANDER, 2005, p. 37).
Os povos da diáspora africana elaboraram a construção de um conhecimento na
contramão, atentar à ela possibilita descontruir imagens produzidas na colonialidade.
Deste modo, compreendemos que a prática cultural Quilombo foi um dos vários espaços
desenvolvidos pelas populações afro-diásporicas com o intuito de preservar suas
memórias de luta e resistência contra a escravidão, e manter vivos os seus horizontes de
liberdade. O Quilombo, assim como outras práticas culturais provindas de matrizes
africanas, subvertem os modelos culturais tradicionais orientados para a nação (HALL,
2006, p. 36), possibilitando uma memória alternativa aquela propagada pelo IAGA, por
exemplo, dotada de uma epistemologia colonial. As culturas afro-diásporicas descentram
os modelos ocidentais-europeus que constituem uma história nacional europeia, que no
caso do IAGA, criou uma memória de Palmares marginalizando os quilombolas e os
colocando como inimigos, como o “outro”, algo que era perigoso para a recém criada
Província das Alagoas. Atentar para as tradições orais de culturas africanas na diáspora
possibilita subverter padrões monopolizadores e preconceituosas hegemonias.
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