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    Questes Multiculturaispara o Ensino de Arte

    Professor autor: Dr. Imanol Aguirre Arriaga

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    QUESTES MULTICULTURAIS PARA O ENSINO DE ARTE

    APRESENTAO

    Caro(a) estudante,

    A disciplina Questes Multiculturais para o Ensino de Arte insere--se como contedo fundamental para compreenso do Projeto Peda-ggico deste curso. O conceito de Multiculturalismo prope a ser umeixo integrador entre as diferentes experincias j vivenciadas, tantonas disciplinas de Histria da Arte quanto nas relativas ao debatesenvolvendo questes especficas relacionadas ao campo do ensino deArtes Visuais e, tambm das disciplinas de Estgio Supervisionado.

    Com base nestas reflexes, o professor Imanol Aguirre prope umasrie de questes envolvendo a preocupao com as diferenas cultu-rais e a importncia do dilogo entre tais diferenas, no universo doensino da arte. Durante o curso outras disciplinas j tocaram nessasquestes: Teorias da Arte e da Cultura, Arte e Cultura Visual, Funda-mentos da Arte Educao. Muitos exerccios tambm foram propostospara provocar as reflexes sobre as questes multiculturais. A diferen-a que agora, temos um maior aporfundamento dessas questes em

    relao ao ensinar arte, ao ser professor, da qual depende a maneiracomo vamos entender a produo artstica. Assim, o professor Imanoldiscute as obras de arte como relatos abertos, relembra a necessidadede experiment-las em seu contexto histrico e cultural, e no comoelementos isolados, e importncia de compreend-las em termos deexperincias de vida (Dewey, 1934). Contarmos com a participaodo professor Imanol Aguirre como conteudista certamente enriquecenosso curso e mostra que as inquietaes que animam o nosso cur-rculo tem alcance nacional e internacional conferindo atualidade naformao de nossos futuros professores(as) de artes visuais.

    Profa. Dra. Leda Guimares

    DADOS DA DISCIPLINA

    EMENTACultura como perspectiva de anlise de processos de ensino e

    aprendizagem da arte; Ps-Modernidade, esttica do cotidiano e re-flexo contempornea sobre princpios e funes da arte na educao.

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    UNIDADE 1: POR QUE O PRAGMATISMO? IMAGINANDO NOVAS FORMAS DE ENSINO DAARTE1.1 A ARTE COMO EXPERINCIA E RELATO ABERTO1.2 O DEBATE SOBRE O CAMPO DE ESTUDO: ARTES CANNICAS, CULTURA VISUAL, ARTEPOPULAR

    1.2.1 O DILOGO COM A ARTE POPULARUNIDADE 2: O DEBATE SOBRE O MULTICULTURALISMO NO ENSINO DA ARTE2.1 O DEBATE METODOLGICO: A QUESTO DA INTERPRETAO2.1.1 O ENRIQUECIMENTO DAS MOLAS DA EXPERINCIA ESTTICA E DE VIDA2.1.2 O JOGO DIALTICO E A REDESCRIO IRONISTA COMO FUNDAMENTO DE UMANOVA ATUAO DOCENTE2.1.3 LEITURA INSPIRADA: O REEQUILBRIO ENTRE A ANLISE E A EMOO2.2 O DEBATE SOBRE A FINALIDADE DA EDUCAO: A CRIAO DE UM EU PRPRIOE A PARTICIPAO SOLIDRIA EM UM NS

    2.2.1 O DEBATE SOBRE O PODER DA ARTE E SEU VALOR PARA A RECONSTRUOSOCIAL2.1.2 ALGUMAS CONSEQNCIAS

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    Unidade 1Por que o Pragmatismo? Imaginando

    Novas Formas de Ensino da Arte

    Sempre tentei manter certa distncia de classificaes e designaesde princpios normativos de qualquer espcie. Por isso, devo esclare-cer que, quando falo de uma perspectiva prxima s idias desdobra-das pelo pragmatismo filosfico, no tenho a inteno de divulgar umanova crena, nem pretendo, evidentemente, inventar um novo modelo(mais um) para o ensino da arte.

    De fato, o que me interessa especialmente no pragmatismo, comoperspectiva filosfica para abordar os desafios da educao artsticaatual e repensar uma renovao da mesma, justamente seu carter an-tinormativo, sua posio crtica ante a ditadura do mtodo e sua nulapretenso de ser um modelo de explicao da realidade. Espero queningum acredite que estamos diante de uma nova doutrina na buscade solues para os problemas do ensino da arte, porque as razes queme possibilitaram encontrar idias como as de Rorty, Dewey, Shuster-man ou Greene, so completamente circunstanciais, e como tais, po-dem deixar de servir no futuro.

    O importante destes encontros, e o motivo pelo qual sou gratoa esses autores, que me permitiram enriquecer meu olhar, mudarmeu jogo de metforas, como diria Nietzsche, por outras mais teise confortveis com meu aqui e agora. Esta mudana tm me permi-tido aprofundar em formas de entender o ensino da arte, que, hu-mildemente acredito, podem contribuir com esta tarefa que h anosnossos colegas vm realizando. So vrias as idias pragmatistas que,acredito, podem ser uma sentinela para se repensar o ensino da arte:O questionamento do institudo: Uma perspectiva pragmatista nosfora a manter alerta diante do conhecimento j estabelecido e olharsem medo para uma mudana de paradigmas. Dewey e Shustermannos mostram que cada teoria da arte uma resposta intelectual a de-terminadas condies socioculturais e s perplexidades dirias, nosconvidando a soltar as amarras conceituais e ir em busca da teoria daarte que corresponda ao nosso tempo.

    1.A impossibilidade da verdade: Uma viso como a do pragma-tismo, mesmo estando longe da pretenso de alcanar uma verdadedefinitiva que explique tudo, proporciona uma certa tranquilidade aonosso trabalho como educadores e pesquisadores, tornando possvel

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    que aceitemos a ns mesmos como construtores de discurso, entrelaa-dores de idias e experincias, e no como transmissores de certezas, jque essas quase sempre se chocam com a realidade.

    2. O uso da dialtica como forma de construo do conheci-mento: O valor dado pelo pragmatismo s formas menos usuais de

    expresso do conhecimento, como a ironia, por exemplo, nos permitesituar nossa atuao educativa numa posio muito prxima das for-mas de produzir e refletir no campo das artes, sendo possvel assim umamaior familiaridade conceitual e metodolgica com o objeto do nossotrabalho.

    3. A idia de arte como experincia: Finalmente, a propostadeweyana de conceber a arte como experincia nos proporciona, naminha opinio, a viso mais adequada para enquadrar claramente a na-tureza esquizide do gosto, as prticas culturais e a experincia estti-ca da maioria daqueles que esto comprometidos com o ensino da arte.

    De fato, um dos principais dilemas da educao artstica a escolhado tema vem da natureza fragmentada de nossa experincia estti-ca, j que, por um lado convivemos e desfrutamos de formas culturaismuito distantes dos modelos de arte culta, ao mesmo tempo que, comoprofessores, somos formados para valorizar as formas estticas da aris-tocracia culturalmente mais refinada.

    Veremos agora, de forma mais detalhada, como essas idias podemnos ajudar a reformular nosso discurso e atuao no ensino da arte:

    1.1 A ARTE COMO EXPERINCIA E RELATO ABERTO

    Para comear, preciso tirar a arte e suas obras da dimenso trans-cendental onde a tradio moderna as colocou o que Dewey (1934)descreve como a concepo musestica da arte ou a idia esotrica deBelas Artes. Diante da tradio acadmica, que considera os trabalhosartsticos como obras, os organiza em discursos, como por exemploo historicista, e determina seus significados (Barthes, 1971), acreditoque seja mais adequado conceber as produes artsticas como relatosabertos investigao criativa. Proponho que a abordagem da obra dearte seja feita, no como uma mensagem cifrada que podemos desven-

    dar, mas como um resumo de experincias que podem ter infinitas in-terwwpretaes, pois a essncia e o valor da arte no est na obra em si,seno na atividade experimental atravs da qual essa obra foi criada e observada ou utilizada.

    Conceber as obras de arte como relatos abertos pressupe:1. Neutralizar seu carter elitista (Greene, 2005), vivenciando-as

    como exemplos de experincias estticas que alcanaram um graude consenso social que as tornaram aceitas pela maioria. Nisso,Shusterman (1992) coincide com Dewey (1934), quando afirma

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    que a experincia esttica est nas possibilidades e que a arte inten-cionalmente materializa essas possibilidades de maneira clara, coe-rente, apaixonada e especial.2. Experiment-las em seu contexto histrico e cultural, e no comoelementos isolados, aceitando que seus significados podem mudar

    com a mudana dos hbitos e realidades que influenciam nossasexperincias (Dewey, 1934, Geertz, 1983, Barthes, 1971). Compar-tilho com Rorty a idia de que todas as prticas culturais, que nahistria tm pretendido ser resultado de uma evoluo da lgica e darazo, podem ser repensadas como distines entre conjuntos deprticas de existncia contingente ou estratgias empregadas dentrode tais prticas (Rorty, 1989:101). Isto implica reescrever a prpriahistria da arte, que deixaria de ser concebida como uma sucessode momentos classificados por estilos, fechados e em uma progres-so lgica, para ser vista como uma sucesso de jogos metafricos

    que vm e vo em funo de contingncias histricas e culturais.3. Compreend-las em termos de experincias de vida (Dewey,1934), tratando-as como tecidos de crenas e desejos. Assim, a obrade arte no faz mais do que desenvolver e acentuar o que signi-ficativamente valioso nas coisas que apreciamos diariamente. Esseponto de vista de Dewey particularmente interessante porque nospermite estabelecer que nossa tarefa como educadores ser restaurara continuidade entre as formas refinadas e intensas da experincia as obras de arte e os acontecimentos que constroem a experinciacotidiana.

    Efetivamente, conceber as prticas artsticas a partir deste ponto devista e, com ele, recuperar a unio da experincia esttica com outrosprocessos vitais, tambm tem conseqncias que afetam nossas con-cepes educativas. Para Dewey, cobrar essa continuidade entre a ex-perincia esttica e a vida, uma forma de romper com a concepofragmentada das belas artes. Com isso, segundo Shusterman, Deweyno apenas destrua as dicotomias arte/cincia e arte/vida, como tam-bm insistia na continuidade fundamental de um conjunto de noesbinrias e distines genricas tradicionais, cuja oposio e contrasteamplamente assumidos estruturou grande parte da filosofia esttica:

    forma/contedo, belas artes/artesanato, cultura elevada/cultura popu-lar, artes espaciais/artes temporais, artista/espectador, para citar ape-nas algumas (Greene, 2005).

    1.2 O DEBATE SOBRE O CAMPO DE ESTUDO: ARTES CANNICAS, CULTURA VISUAL, ARTEPOPULAR

    Um dos aspectos especialmente interessantes que as concepes es-tticas comentadas podem trazer para o nosso trabalho como educa-

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    dores, a de nos estimular a promover a restaurao da continuidadeentre as formas refinadas e intensas da experincia ou seja, as obras dearte e os fatos que constituem a experincia cotidiana, quebrada pelaesttica da modernidade. justamente nesse terreno que encontramosos fundamentos da resposta a um dos dilemas mais vivos do ensino da

    arte atual: a delimitao do campo de estudo.Certamente, buscar a continuidade da experincia esttica com ou-tros processos vitais, traz como conseqncia que nos vejamos agrada-velmente encorajados a ampliar nosso campo de estudo para todos osprodutos artsticos geradores deste tipo de experincia, sejam eles dasbelas artes, das artes populares ou da chamada cultura visual.

    1.2.1 O DILOGO COM A CULTURA VISUAL

    Na minha opinio, esta que acabo de expor a principal razo por-

    que um ensino da arte renovado deve incluir em seus estudos a culturavisual.Ao contrrio do que frequentemente recomenda a educao artsti-

    ca de vis ps-moderno, no vejo contradio em fazer essa incluso epropiciar simultaneamente o envolvimento experimental dos estudan-tes com as formas de arte tradicionalmente aceitas.

    Os estudos de cultura visual abriram o foco dos pesquisadores dearte filsofos, historiadores, antroplogos ou educadores para for-mas culturais muito mais vitais para a experincia esttica da maioria dapopulao contempornea. Nisso, sua contribuio digna de grande

    reconhecimento.Contudo, como disse Shusterman, o projeto pragmatista para aesttica no abolir a instituio da arte, e sim, transform-la (Shus-terman, 2002:185). E pretende fazer isso de duas maneiras: primeiro,como venho comentando, abrindo para a incluso de outras formasde produo esttica. Em segundo lugar, porque precisamos de umamaior abertura para os meios pelos quais a grande arte pode promoveruma agenda tica e sociopoltica progressista (Shusterman, 2002:185).

    nesse mesmo sentido, que h anos venho mostrando que umerro apresentar o estudo da cultura visual como um campo alternativo

    e distinto do estudo da arte culta.O que faz de um estudo algo alternativo e distinto no a seleode um novo tema, mas sim, o olhar que projetamos sobre essas formasculturais da experincia, e para esse olhar, nenhuma forma de arte insignificante.

    A questo relevante para nossos objetivos como educadores no seas artes pertencem ou no ao universo da cultura visual, se devem serestudadas separadamente ou em conjunto como parte de um mesmouniverso. O que, na minha opinio, as equipara no mbito educacionalno seu carter sociocultural, que obviamente diferente, mas sim o

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    seu potencial didtico. A arte erudita foi e ainda usada como instru-mento legitimador de certas ideologias hegemnicas e reforador dostatus quo de uma aristocracia cultural. Porm, isso no exclui a pos-sibilidade de aplicaes diferentes e a isso que se refere Shustermanquando afirma ser possvel promover uma agenda tica a partir da arte

    culta. curioso me ver defendendo as possibilidades didticas da arteerudita. s vezes, tenho recebido crticas por isso, mas concordo comShusterman na idia de que no h significados e aplicaes perversosinerentes ao trabalho com as artes cultas, perante significados e apli-caes educacionais independentes no caso da cultura visual. Por isso,acredito ser mais frutfero o dilogo, a dialtica que podemos articular apartir do ensino nesses campos, do que a estratgia de confronto entreeles. No so os objetos de estudo que devem enfrentar-se, mas os mo-delos pedaggicos com os quais os abordamos. Artes, cultura visual e

    outras formas de cultura esttica podem compartilhar o mesmo espaoeducacional. O problema no est no objeto de estudo, seno no usoque fazemos dele.

    Concebidas atravs da perspectiva da experincia, as imagens da cul-tura visual atual, o legado artstico herdado e as formas mais premiadasda arte cannica so apenas respostas humanas, em formato esttico,aos problemas vitais de hoje e de sempre ou circunstncias semelhan-tes quelas que vivenciamos em algum momento. Todas essas formasde manifestao cultural sejam populares, cultas, cannicas ou demassas constituem diferentes respostas a necessidades de expresso

    cultural e experincias estticas parecidas, mediadas por um contextoque lhes d sentido.Nisso reside, na minha opinio, o principal impacto de seu interesse

    educacional, j que essas respostas podem ser usadas como modelospara a revitalizao e o comeo de suas prprias experincias e, dessemodo, podem ser submetidas uma anlise crtica e desconstruode suas relaes com as redes de supremacia e poder. O fato de quealgumas formas de expresso cultural ocupem um lugar de destaqueno imaginrio dos jovens estudantes ou nas classes mais populares dasociedade tambm faz com que um educador responsvel se dedique

    elas, porm, no acredito que esta seja, como se diz frequentemente, arazo principal para essa dedicao.

    1.2.2 O DILOGO COM A ARTE POPULAR

    A esttica de Shusterman (2002) representa o fracasso do projeto moder-nista para superar o rompimento entre a arte culta e a vida. Projetos deintegrao entre a vida cotidiana e as expresses artsticas populares,como as de Picasso, Duchamp, os surrealistas ou os performticos, no

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    apenas no permitiram que se fechasse a lacuna, como aprofundaramas diferenas entre os usurios das artes erudita e popular.

    Segundo Shusterman, esses e outros ensaios foram absorvidos peloprprio sistema, aprofundando sem querer a separao entre as aris-tocracias culturais e a populao culturalmente submissa, reforando

    ainda mais seu sentimento de ignorncia e inferioridade. Shustermancontinua dizendo que quando a arte erudita se ope arte popular, sur-ge um elemento configurador de um novo cenrio para o rompimentodesta hegemonia cultural e a transformao da concepo de arte quedominou durante sculos.

    Temos assim, a arte popular completamente inserida no debate daesttica contempornea. Agora, penso que a anlise de Shusterman precisa, porm incompleta, porque no meu entendimento no repre-senta a razo do fracasso. Como no caso da cultura visual, acredito quenovamente nos deparamos com a crena de que mudar o objeto de es-

    tudo ou incluir novas formas culturais, necessariamente implica mudarsua utilizao. Se alguma coisa nos mostrou a mostrou a modernidade,foi a capacidade fagocitria das instituies de arte de incorporar emseu seio a si mesmas e o seu oposto. Nenhuma forma de expresso es-ttica que tenha se apresentado como alternativa, no havia sido incor-porada e institucionalizada. Por que no aconteceria o mesmo com aarte popular?

    Na minha opinio, o problema ao qual se deve estar alerta, nova-mente que se mudarmos apenas o objeto e no o ponto de vista, a artepopular tambm pode acabar fagocitada pela esttica antes aristocrti-

    ca e agora burguesa. Esta mudana de olhar especialmente necessriana educao, onde frequentemente se pretende que uma simples subs-tituio de currculo represente um novo conceito de educao.

    Mais uma vez, creio que a esttica pragmatista pode nos ajudar namudana de foco, tirando-o da ateno ao objeto para direcion-lo aateno experincia que envolve e estimula. Novamente devemosafirmar que o encontro da arte com a vida (fundamental para que sejatil educacionalmente) no resulta da natureza do objeto artstico, esim do uso que fazemos dele.

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    UNIDADE 2O -

    Na Unidade anterior assinalei que, considerar as obras de artecomo geradoras de experincias estticas, possibilita aproximar-sedas borradas fronteiras entre as diferentes formas de arte e cultura deuma maneira diferente e mais enriquecedora do que aquela baseadaem critrios classificadores tradicionais. Algo parecido ocorre quan-do abordamos o fenmeno da multiculturalidade atravs da percep-

    o da arte como sistema cultural e experincia esttica.O pensamento de Geertz (1983) nos mostra que o interessante

    da obra cultural no tanto seu carter prescritivo, definidor de umestilo de vida, mas a constante interao sistmica com todas as re-as simblicas que a compe, sejam vindas do interior de seus per-sonagens, como da incorporao de elementos daqueles contextosculturais e simblicos, cujos significados no so familiares. Adotaressa perspectiva supe aceitar que tambm so borradas as fronteirasonde esto organizadas as propostas de educao multicultural.

    Pela perspectiva que estou desenvolvendo, no podemos dizer que

    h culturas fechadas, seno sistemas em contnua e fluente interao,em que se cruzam imaginrios, gerando constantemente novos signi-ficados e renovando incessantemente as relaes.

    O que interessante nesse ponto de vista no so os limites entreas culturas, mas sim as transgresses dos mesmos, ou seja, as ressigni-ficaes, que deveriam ser o eixo do estudo.

    Tudo questo de mudana de foco e acredito que na educao e no ensino da arte tambm focar na construo de sentido, nasaplicaes, mais que nos valores ou traos culturais, nos coloca emposio muito melhor para abordar fenmenos culturalmente tocomplexos como os que so vivenciados em praticamente todas associedades do mundo. Do ponto de vista educacional, intil prestarateno nas essncias culturais, enquanto suas aplicaes esto cons-tantemente lhe atribuindo novos significados.

    Em minha tese de doutorado sobre arte basca e identidade cultural,pude explorar como foi construda no imaginrio coletivo a identida-de tnica basca e, sobretudo, pude detectar claramente aqueles quecontriburam com esse processo. por isso que, quando me deparocom alguma situao educacional em que preciso usar definies ou

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    significados culturais, inevitvel me questionar sobre a autoria detais conceitos. Acredito que bom para as propostas multiculturalis-tas em educao, que nunca se perda de vista o questionamento sobrea origem dos valores que muitas vezes se apresentam como essenciaisou caractersticos de uma cultura, assim como sobre a posio que

    ocupam seus defensores no jogo das hegemonias sociais, polticas eeconmicas presentes em seus contextos culturais.Para explicar melhor, vou citar apenas um exemplo, e espero que

    seja suficientemente significativo: Uma das autoras que, com maisautoridade e sabedoria, abordou a questo da multiculturalidade nocampo das artes e da educao , sem dvida, Jacqueline Chanda(2004). Em seu trabalho intitulado Ver o outro atravs de nossosprprios olhos: problemas na educao multicultural, a clebre edu-cadora norte-americana lamenta a forma inadequada como a educa-o artstica de seu pas incorporou elementos de outros contextos

    culturais, especialmente africanos, em seus estudos de arte. Especi-ficamente, se refere a certa incapacidade de alguns de seus colegasde ver o outro e suas produes artsticas partir do seu prpriocontexto de origem.

    Concordo com Chanda em seu repdio ao fato destes produtosou eventos artsticos serem analisados sem uma abordagem do con-texto em que foram produzidos, no entanto, minha perplexidade sur-ge quando Chanda vincula a legitimidade de qualquer interpretaodesses produtos culturais com os respectivos significados de seuscontextos: necessrio contemplar o objeto com os olhos do outro

    e sentir o desejo de compreender suas crenas e suas formas de pensar(.../ ...) Infelizmente, em geral, vemos as obras de arte com os olhosda cultura dominante, porque a princpio estamos condicionados apensar dentro de uma perspectiva normativa. As descries e as in-terpretaes de um objeto artstico visto com os olhos de algum queno est familiarizado com a cultura de origem do objeto, refletirunicamente os conceitos filosficos, ideais e histria desta pessoa, eno da cultura que se est estudando. Uma esttua Ikenga, criada pelopovo Igbo na Nigria, ser percebida de maneiras diferentes por umnativo do povo Igbo e um etngrafo britnico do sculo XIX.(Chan-

    da, 2004:3)No difcil concordar com algumas das afirmaes que acabo

    de citar, mas sua apresentao me causa perplexidade porque h, naminha opinio, pelo menos duas questes que escapam educadoranorte-americana:

    A primeira que considerar muitos desses produtos como arte j uma ressignificao prpria de formas culturais distintas, a maioriadas vezes, do contexto em que esses produtos foram criados.

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    A segunda que quando falamos de os olhos do outro, ou qual-quer termo equivalente, referindo-nos a contextos culturais diferen-tes do nosso, no estamos submetendo a crticas o jogo de legitimaodas distintas vozes que, sem dvida, existe na comunidade de origemde tais produtos. Ela faz distino entre um Igbo e um etngrafo do

    sculo XIX, mas no ficam claras as diferenas entre os prprios Igbo,porque, nesse ponto, quando nos referimos ao outro como sinnimode outra cultura, devemos nos perguntar: Quais so os significadosde uma cultura? De seus lderes? Dos especialistas? Dos produtores?Dos usurios? Quais so as vozes legitimadas de cada cultura e quaisso os mecanismos que as legitimam? Raramente essas questes solevadas em conta nas propostas de interveno multiculturalista noensino da arte, por serem muito crticas.

    Aqueles que, como Chanda, no acreditam nas essncias culturaisou nos valores permanentes da cultura, mas sim, em uma constante

    transformao e ressignificao dos mesmos por seus usurios, de-veriam mudar o foco do problema da idia de permanncia culturalpara a interao dinmica dos significados. O que nos interessa soas transformaes de sentido e suas razes, os jogos de poder e he-gemonia que perpetuam ou transgridem. por isso que digo que asfronteiras interculturais esto indefinidas, porque quando focamosnesse jogo, percebemos que as mudanas de sentido no ocorremnecessariamente prximas aos limites tradicionais entre as culturas,se que isso existe, mas se do com a mesma intensidade tanto nointerior dessas fronteiras, como em seu contato com o que est fora

    delas. A prpria Jacqueline Chanda se descreve como um produtode, no mnimo, trs culturas, a cultura norte-americana, em geral, aafro-americana e a indiana. (Chanda, 2004:3) Uma identidade triplaque lhe permite observar e entender as obras de arte atravs de vriaslentes distintas. Certamente isso torna o problema da multicultura-lidade um fato mais complexo, como ela mesma afirma, porm, essacomplexidade no nada comparada ao resultado de uma descrioque ultrapasse as coordenadas tradicionais das classificaes etno-grficas. Porque alm de ser afro-americana ou indiana, JacquelineChanda tambm , por exemplo, mulher e professora universitria,

    detalhes identificadores que podem ter tanto peso em suas experi-ncias estticas, ou at mais, do que as etnias auto atribudas. Podehaver quem encontre nesta perspectiva resqucios de um velho sub-jetivismo. Estou disposto a aceitar isso, sempre que considerarmosum sujeito, uma pessoa, uma encruzilhada e um ponto de encontrode diferentes contextos simblicos e culturais ou mltiplas biografias,mas agora no posso desenvolver melhor essa idia. Enfim, o que digo que uma das principais funes que podemos outorgar ao ensinoda arte centrado na experincia a de possibilitar que todas as vozes

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    sejam ouvidas (melhor assim do que dizer ouvir todas as culturas),inclusive aquelas que as prticas tradicionais de ensino ignoram ouminimizam. Se trata, portanto, de romper as dinmicas escolares tra-dicionais, que buscam perpetuar os discursos e as relaes de poder jestabelecidos, favorecendo a presena curricular de algumas pessoas

    (ou camadas culturais), em detrimento de outras, e assim perpetuardiscursos e relaes de poder.

    2.1 O DEBATE METODOLGICO: A QUESTO DA INTERPRETAO

    Para este fim, a partir da concepo da arte como experincia e relatoaberto, combinada com uma perspectiva crtica da educao, podem searticular diferentes estratgias metodolgicas cujos fundamentos po-dem ser, pelo menos, trs:

    O enriquecimento das molas (infuncias) da experincia est-

    tica e de vida; O jogo dialtico e a redescrio ironista; O reequilbrio entre a anlise e a emoo, atravs da prtica daleitura inspirada.

    2.1.1 O ENRIQUECIMENTO DAS MOLAS DA EXPERINCIA ESTTICA E DE VIDA

    Considerando que a experincia esttica surge nos contextos maisdiversos, sejam artsticos ou de outra ordem cultural, parece adequado,como j foi dito, ampliar a familiarizao e a sensibilidade dos estudan-

    tes frente a todas as formas de expresso artstica ou esttica. Tal fami-liaridade possibilitar que eles sejam capazes de encontrar os discursosideolgicos, sociais e culturais que constituem as obras, assim comoos estmulos sensveis e as narrativas que lhes do forma material. Naeducao artstica decisivo, portanto, criar em torno dos estudantes,um ambiente culturalmente rico, e fazer da arte, e em geral de todo oconhecimento, um cenrio onde se pode recriar, testar e representarexperincias de vida. Afinal, os usurios da arte no devem viver comomundos distintos tpicos de gnios criativos, aficionados ou povosdistantes das respostas a impulsos vitais parecidos e necessidades ps-

    quicas, ideolgicas e, at mesmo, polticas semelhantes s suas.

    2.1.2 O JOGO DIALTICO E A REDESCRIO IRONISTA COMO FUNDAMENTO DE UMANOVA ATUAO DOCENTE

    A metfora de Richard Rorty sobre a atitude ironista uma das maisbem sucedidas dos ltimos tempos na capacidade de renovar meu pen-samento. Rorty descreve essa atitude como a prtica consciente e cons-tante da dvida ou da descrena. Ironista para Rorty aquele que, na

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    tarefa de conhecer, exclui toda a pretenso de fazer com a verdade. Apostura do ironista em relao s descries e fatos da experincia ade aceitar que no so histrias vindas diretamente da realidade, masapenas jogos de linguagem sobre a mesma. Por isso, corrosivo paraos princpios e prticas o jogo dialtico na sua tarefa de representar o

    mundo.O ironista descrito por Rorty usa a tcnica de provocar mudanasinesperadas de configurao por meio da transio entre terminologias:Seu mtodo a descrio e no a deduo (lgica) (/) de objetose acontecimentos em um jargo formado, em parte, por neologismos,na esperana de encorajar as pessoas a adot-lo e difundi-lo. (Rorty,1989:96). Esta nessa forma de pensar o jogo dialtico que Rorty colocaa crtica literria, que conforme suas abordagens, no consiste em ex-plicar o verdadeiro significado dos livros, seno situ-los no contextode outros livros, ou ainda situar figuras no contexto de outras figuras.

    Desse modo podemos dizer que um dos pilares do mtodo ironista aredescrio, convertida em uma espcie de crtica cultural. O interes-sante sobre o ironista rotyano, cujas caractersticas foram brevementeapresentadas, que oferece um bom material para tecer um novo perfildo educador artstico e fundamentar nossas prticas educativas de for-ma mais adequada s diferentes condies sociais e culturais.

    Partir de uma atitude ironista nos leva, entre outras coisas, a consi-derar escritores, filsofos ou artistas plsticos e suas obras, no comocanais que nos conduzem para a verdade, mas sim, com exemplifica-es ou abreviaturas de determinados lxicos modernos e das formas

    de crenas e desejos tpicos de seus usurios (Rorty, 1989:97).Visto assim, o estudo da arte ou da cultura visual deveria se transfor-mar em uma maneira de fazer amizade com pessoas estranhas, com ex-perincias distantes, que nos ajudem a rever e renovar as nossas: Nadapode servir como crtica a uma pessoa, a no ser outra pessoa, ou comocrtica de uma cultura, salvo uma cultura alternativa, pois, para ns, po-vos e culturas so vocabulrios encarnados (Rorty, 1989: 98).

    Uma educao orientada por esses critrios constantemente enco-raja o surgimento de novos jogos de linguagem e o confronto dialtico,no porque esto em busca de uma finalidade, mas porque essa estra-

    tgia traz novas maneiras de ver o mundo e liberta a imaginao (Gre-ene, 2005). Para realizar esse trabalho de confronto de vocabulrios oucriao de novos jarges, segundo o mtodo de ao do ironista, pode-ramos recorrer a diversos recursos sistemticos como a manipulaodo contexto e a redefinio, a desconstruo, o jogo entre smbolos, ouqualquer outra estratgia de interpretao, sempre despojadas de suapretenso de atingir alguma verdade fora do seu prprio discurso.

    Alm disso, a adequao de uma perspectiva ironista ao campo doensino da arte, como a que estou demonstrando, nos convida a repensar

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    nossa idia de interpretao e, sobretudo, de compreenso em nossaatuao como docentes. Deste ponto de vista, entender as obras de arteno seria necessariamente atribuir-lhes algum sentido preestabelecido,mas ser capaz de descrev-las, envolvendo-as com as influncias est-ticas que constituem a experincia de vida de cada um. O cenrio de

    produo das obras de arte ou das imagens pode ser importante parauma idia de compreenso que procure dar conta de seus significadosfixos e definitivos. No entanto, na minha opinio, o contexto pessoalou social de aplicao o que realmente tem relevncia para os educa-dores artsticos, pois nesse contexto que as imagens podem se tornaralimento para o imaginrio juvenil e elementos ativos na formao dasua identidade. Em termos rortyanos, o que ns educadores buscamosem nossa interao com as obras de arte redescrev-las em um novojargo, com a esperana de que esse jargo possa se espalhar e abrir ca-minho para novos jarges. Ou seja, temos esperana de progredir na

    mudana de vocabulrio que est fazendo de ns e de nosso meio, osmelhores possveis.

    2.1.3 LEITURA INSPIRADA: O REEQUILBRIO ENTRE A ANLISE E A EMOO

    J vimos que, tanto Dewey como Rorty, do a tnica sobre a inte-rao entre a obra de arte e a experincia de vida, considerando queesta ligao constitui a finalidade de nossa relao com as artes. Ambosindicam claramente que, depois da crtica analtica, chegou o momentode nos deixarmos levar sem medo para vivenciarmos as obras de arte,

    para nos envolver cognitiva e emocionalmente com elas, desenvolven-do em sua plenitude cada experincia esttica.Coerente com esta idia e indo para o campo especfico da prti-

    ca educativa, considero que as estratgias de compreenso no devemficar exclusivamente no nvel analtico-cognitivo, como habitual naperspectiva crtica, tambm devem progredir simultaneamente no n-vel emotivo-esttico. Na base da compreenso esttica est a capaci-dade humana de participar imaginativamente de viver esteticamente cada um dos atos de sua vida, e nesse contexto que o ser humanose prepara para participar e transformar o seu ambiente social, porque,

    como disse Dewey (1934:12) a obra de arte desenvolve e ressalta oque significativamente valioso nas coisas que apreciamos diariamen-te.

    Da perspectiva pragmatista, o propsito da compreenso estticaseria o enriquecimento da experincia, ao passo que a anlise deveriaficar em segundo plano. Para ele, seria muito pobre uma proposta deensino da arte, cuja finalidade fosse buscar a interpretao precisa ouencontrar a chave do significado das obras de arte; que isso seja fei-to atendendo a inteno do autor, ao sentido da prpria obra ou aos

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    valores culturais que poderiam ter no contexto, onde originalmente sedotou de significado.

    Contudo, isso no significa ignorar o valor que a anlise de contedo,a desconstruo ou qualquer outra forma de interpretao possam vira ter, como estratgias que provocam nossa imaginao e nos ajudam a

    chegar alm do que j sabemos no ato da compreenso. A teorizao ea anlise crtica podem ser, sem dvida, ferramentas eficazes para rom-per o conformismo e favorecer a compreenso na educao artstica.Mas, a anlise no a compreenso, da mesma forma que a histria daproduo de uma obra de arte no suficiente para explicar esta obraou lhe atribuir significado. A anlise deve servir para situar a obra emum contexto cultural, nunca para substituir ou reproduzir plenamentea experincia da obra de arte.

    Do ponto de vista que estou expondo, ver obras de arte (assim comoler textos literrios ou escutar peas musicais) no apenas tentar achar

    o seu significado, mas sim, v-las luz de outras obras de arte, de outrostextos, de experincias passadas ou das experincias de outras pessoas.Essa a diferena entre o que Rorty chama de leituras metdicas asque sabem exatamente o querem de uma obra de arte e as leituras ins-piradas ou seja, aquelas guiadas pelo apetite por poesia, feliz expres-so de Kermode. As primeiras projetam o conhecimento do espectadorsobre a obra analisada, j o segundo tipo de leitura consiste em se co-locar diante das obras de arte disposto a querer algo diferente, algo quelhe estimule a mudar, melhorar, ampliar ou diversificar seus objetivos e,assim, sua prpria vida.

    2.2 O DEBATE SOBRE A FINALIDADE DA EDUCAO: A CRIAO DE UM EU PRPRIO EA PARTICIPAO SOLIDRIA EM UM NS

    Os fundamentos estticos, filosficos e educativos que estou apre-sentando trazem como consequncia a necessidade de projetar nossosobjetivos educacionais para alm da alfabetizao visual, do conheci-mento da arte, por mais profundo que este seja, ou da sempre indispen-svel crtica cultural.

    Mesmo sem negar o interesse que cada um desses objetivos pode ter

    para orientar a formao dos nossos alunos, na minha opinio, a finali-dade do ensino da arte deveria ser criar competncia, critrios e sensi-bilidade para fazer uso das experincias transmitidas pela arte ou pelacultura visual.

    Se o ensino da arte tem algo interessante a oferecer, certamente aoportunidade perfeita de enriquecer nossos prprios projetos de vidacom as tramas tecidas por outros autores, cruzando suas experinciasestticas com as nossas. Definir a arte como experincia nos fora a es-tabelecer necessariamente uma relao com as produes estticas e os

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    seus autores, baseada exclusivamente no conhecimento, seja analticoformal ou desconstrutivo.

    O encontro com as obras de outros autores pode nos levar a estabe-lecer um tipo de relacionamento que contribua para a satisfao de doisobjetivos educacionais complementares e convergentes: por um lado, o

    enriquecimento da prpria experincia pessoal, ou como disse Rorty,a criao de si mesmo; e o surgimento da solidariedade baseada naampliao do ns, uma forma mais democrtica que a mera aceitaodo outro.

    Na minha opinio, ambos os objetivos indicam muito bem o cami-nho que a educao artstica deve tomar para oferecer alternativas demelhoria para os diversos tipos de sociedade e de estudantes que hojetemos diante de ns.

    O valor da arte na gerao do eu se d enquanto todo artefato es-ttico, como mostrei anteriormente, suscetvel a converter-se em um

    resumo simblico, no qual se pode cristalizar sentimentos, formar valo-res ou ter experincias estticas.Todo objeto, ao ou discurso, inclusive as obras de arte, pode se

    aliar histria de vida de algum para produzir uma experincia, quepode ou no ser esttica, mas que de qualquer forma afeta a criao doeu: Tudo, do som de uma palavra ao contato com a pele, passandopela cor das folhas, pode servir, de acordo com Freud, para dramatizarou cristalizar o sentido que um ser humano d a sua prpria identidade.Porque qualquer coisa pode desempenhar na vida de algum o papelque, para os filsofos, poderia ou, pelo menos, deveria ser desempe-

    nhado unicamente por coisas universais, comuns a todos. Tudo issopode simbolizar a marca cega que conduz todas as nossas aes (Ror-ty, 1989: 56-57).

    Por isso, buscar o significado dos produtos estticos no seu contextode origem, como sugerem algumas didticas multicuturalistas, ape-nas uma das possibilidades de trabalho oferecidas, pois o fato de com-preend-los como mediadores de valores, crenas, desejos e fantasias,nos estimula a tirar muito mais proveito de suas qualidades estticas ouartsticas. Pelo contrrio, como disse antes, mediante a redescriodos outros ou atravs do envolvimento com suas obras, que se realiza

    sua prpria construo. O processo comea quando desejamos saberse temos que adotar a imagem daqueles que nos surpreenderam e bus-camos essa resposta experimentando jogos de linguagem e metforaselaboradas por eles.

    No jogo com esse novo vocabulrio redescobrimos a ns mesmos,nosso passado, o contexto em que estamos e comparamos os resulta-dos a outras redescries alternativas. Fazemos tudo isso, pois espera-mos que essas redescries faam do ns o melhor eu possvel (Rorty,1989:98). Alis, enquanto ns cultivamos nossa identidade, nos torna-

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    mos sensveis linguagem dos outros, nos equipando com uma baga-gem cognitiva e afetiva que nos ajude a evitar uma humilhao. destaforma, atravs da redescrio, que a linguagem dos outros fica gravadaem ns mesmos. Os outros j no estranhos, algum que devemosentender ou tolerar, mas uma extenso de ns mesmos.

    2.2.1 O DEBATE SOBRE O PODER DA ARTE E SEU VALOR PARA A RECONSTRUO SOCIAL

    Ensinar a compreender as obras de arte no , portanto, apenas des-vendar os mecanismos de poder implcitos nas obras e, assim, libertar osindivduos, e sim, fornecer informaes completas sobre os princpios,crenas e desejos alheios, de forma que esse conhecimento nos possi-bilite ser solidrios s causas justas. A ao educativa de compreendera cultura esttica (nossa e dos outros) deve ter como misso ampliar oespectro do ns, nica forma possvel de concretizar a solidariedade

    diante do sofrimento. Esse o meio mais eficaz de nos identificar como outro e faz-lo nosso. Nesse sentido, o ensino da arte ideal paradesenvolver uma identidade leve, casual, permevel e aberta aceita-o do outro, bem como, eficaz na transformao e reconstruo social,enquanto esse tipo de identificao nos predispe a ser sensveis hu-milhao.

    No meu entendimento, no atravs de um suposto exerccio deao direta da arte, mas sim, com a educao frente desigualdade, queo ensino da arte pode contribuir com a reconstruo social. a capaci-dade da arte de evocar o contingente e imaginar novas linguagens que

    torna possvel extendendo nossa sensibilidade para as contingncias dooutro e, com isso, expandir-nos em vez de compreender o outro ampliando, desse modo, o leque de opes do que consideramos obje-to de nossa solidariedade.

    As experincias estticas no resolvem nada por si mesmas, tam-pouco a arte, mas contribuem para uma diversificao e expanso dascrenas pessoais, alm do crescimento da sensibilidade, que em ltimainstncia e de acordo com um paradigma moral baseado na igualdade,respeito pelos outros, etc., podem levar melhoria das relaes sociais,uma maior identificao com a sensibilidade esttica do outro e, assim,

    com sua maneira de estar no mundo e lidar com ele.

    2.2.2 ALGUMAS CONSEQNCIAS

    Finalmente gostaria de comentar que, por trs dessa concepo queestou sugerindo, existe algo alm de um mtodo para discriminar oslimites do nosso campo de estudo e nossos objetivos educacionais,porque quando decidimos qual o espao da nossa ao educativa,estamos assumindo um compromisso com a tica. A forte carga tica

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    e esttica que acompanha muitos dos produtos culturais atualmenteconsumidos por nossos estudantes, nos estimula a enfrentar a situaopartindo de onde a experincia esttica tem lugar, ou seja, produtos esituaes derivados dessa experincia.

    Repensar nossa atuao como educadores e os eixos do nosso tra-

    balho so os grandes desafios que temos pela frente. Porm, no umatarefa fcil em razo das prprias caractersticas do territrio ondedevemos desenvolver nossa ao e pelo peso que ainda tem em nossacultura o antigo imaginrio escolar. Por sorte, acredito que uma visopragmatista pode nos proporcionar o matria-prima necessria para ge-rar novas linguagens, novas formas de imaginar a educao e nos rein-ventarmos nela.

    Por um lado, nos mostra que no importante definir se o objeto deestudo do nosso campo de trabalho a arte visual ou a cultura visual.Na verdade, no h contradio entre os dois termos, nem entre cultura

    popular e cultura erudita, se esse tipo de produto for considerado umcompndio de experincias. Tambm nos permite evitar a necessidadede impor formas de arte supostamente refinadas outras que achamosque no so. Ao contrrio, uma perspectiva pragmatista nos incita abuscar a melhoria da capacidade sensvel para viver esteticamente (eeticamente), como centro das aes educacionais; e aperfeioar o de-senvolvimento de uma ferramenta para o desenvolvimento pessoal doindivduo, ou seja, uma ferramenta til para melhorar a vida.

    Os trabalhos de Rorty tm me dado a possibilidade de experimen-tar uma renovao de linguagem e, com ela, do imaginrio respeito ao

    professor e s atividades educativas. Tentei adaptar o modelo de pen-samento e ao ironista, destacado Rorty, para essa finalidade e o re-sultado foi um tipo de educador muito diferente daquele que habitao imaginrio atual. Longe de considerar o professor como aquele quesabe tudo e tem como nica misso transmitir seus conhecimentos, doponto de vista do modelo ironista, vemos um professor muito peculiar:

    Intrigante, Instigador, Aberto s necessidades e Criador de relaes inditas.

    Esse mesmo modelo tambm possibilita imaginar de outra maneiraas prticas e, principalmente, os objetivos educacionais, centrados noapenas na aquisio de conhecimento, mas na preparao para a vida.

    Sei que esta tarefa no deveria ser exclusivamente assumida por edu-cadores de arte, mas este deve ser o marco de uma ao educativa geral.Tambm sei que nesse caso, poderia acontecer de nos ser exigido tratarunicamente das artes visuais. Mas o principal no manter a idia ultra-passada de que cabe a ns ensinar arte e apenas arte. Porque sem umaproposta didtica de formao de pessoas capazes, competentes, bem

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    equipadas e preparadas para as novas realidades que vamos encontrar,se torna irrelevante que os estudantes saibam mais ou menos sobre arte,assim como no importa que saibam muita lgebra, trigonometria ouos nomes dos artistas do barroco brasileiro.

    Talvez seja a hora de perceber que a escola de hoje, se no abrir suas

    portas e romper com seus costumes, no seu papel de cofre intranspon-vel do conhecimento, de costas para a vida; no ser o lugar mais apro-priado para aproximar os estudantes do legado cultural e muito menospara tornar esse legado, parte do seu imaginrio esttico e til para suasexperincias de vida.

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