questões de gênero na ciência e na educação

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His tória, Filos ofia e Sociologia da Ciência na Educação em Ciências 1 Atas do IX Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências IX ENPEC Águas de Lindóia, SP 10 a 14 de Novembro de 2013 Questões de gênero na ciência e na educação científica: uma discussão centrada no Prêmio Nobel de Física de 1903 Gender issues in science and in science education: discussing the 1903 Nobel Prize in Physi cs Marinês Domingues Cor deir o Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica UFSC [email protected] Resumo Os aspectos que definem os ideais de masculinidade e feminilidade permeiam todas as áreas da sociedade, e a ciência inclusive, como evidenciam a história e a filosofia da ciência . Esses ideais, que por séculos assinalaram a esfera doméstica como espaço feminino, acabaram limitando o acesso das mulheres à educação e, por conseguinte, à ciência. Desde a primeira onda do movimento feminista, essa situação vem mudando ; contudo, diversos obstáculos ainda se interpõem entre as mulheres e a carreira científica a educação científica, sutilmente permeada pelo sexismo ainda e xistente na sociedade, sendo um deles. Um dos fatores que afastam meninas da ciência, segundo estudiosos, é a falta de modelos de cientistas mulheres. Neste artigo, explora m-se o Prêmio Nobel de F ísica de 1903, que quase negligenciou Marie Curie, e suas potencialidades, na formação de professores, para o reconhecimento desse preconceito que ainda existe na ciência. Palavras chave: história da ciência, feminismo, Prêmio Nobel, radioatividade A bstract Gender binary and its aspects underlie our whole social environment, science included, as revealed by the studies in history and philosophy of science. These centennial ideals place women at the domestic sphere, limiting their access to education, and to science as a consequence. S ince the first wave of the feminist movement, this situation has been changing. However, there are still many obstacles to overcome in women s path to scientific carriers subtly sexist science education being one of them. Studies point out that the lack of role models of women scientists is one of the reasons girls feel left out of the scientific enterprise, and choose different carriers. This paper intends to explore the 1903 Nobel Prize in P hysics, that almost left Marie C urie out, and its educational possibilities for physics educators, who could use this episode to recognize the still pulsating prejudices prevailing in science. Key words: history of science, feminism, Nobel Prize, radioactivity Intr odução

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Questões de gênero na ciência e na educação

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  • His tria, Filos ofia e Sociologia da Cincia na Educao em Cincias 1

    Atas do IX Encontro Nacional de Pesquisa em Educao em Cincias IX ENPEC guas de Lindia, SP 10 a 14 de Novembro de 2013

    Questes de gnero na cincia e na educao cientfica: uma discusso centrada no Prmio Nobel

    de Fsica de 1903

    Gender issues in science and in science education:

    discussing the 1903 Nobel Prize in Physics

    Marins Domingues Cordeiro Programa de Ps-Graduao em Educao Cientfica e Tecnolgica UFSC

    [email protected]

    Resumo

    Os aspectos que definem os ideais de masculinidade e feminilidade permeiam todas as reas

    da sociedade, e a cincia inclusive, como evidenciam a histria e a filosofia da cincia . Esses

    ideais, que por sculos assinalaram a esfera domstica como espao feminino, acabaram

    limitando o acesso das mulheres educao e, por conseguinte, cincia. Desde a primeira

    onda do movimento feminista, essa situao vem mudando ; contudo, diversos obstculos

    ainda se interpem entre as mulheres e a carreira cientfica a educao cientfica, sutilmente permeada pelo sexismo ainda e xistente na sociedade, sendo um deles. Um dos fatores que

    afastam meninas da cincia, segundo estudiosos, a falta de modelos de cientistas mulheres.

    Neste artigo, explora m-se o Prmio Nobel de F sica de 1903, que quase negligenciou Marie

    Curie, e suas potencialidades, na formao de professores, para o reconhecimento desse

    preconceito que ainda existe na cincia.

    Palavras chave: histria da cincia, feminismo, Prmio Nobel, radioatividade

    Abstract

    Gender binary and its aspects underlie our whole social environment, science included, as

    revealed by the studies in history and philosophy of science. These centennial ideals place

    women at the domestic sphere, limiting their access to education, and to science as a

    consequence. S ince the first wave of the feminist movement, this situation has been changing.

    However, there are still many obstacles to overcome in womens path to scientific carriers subtly sexist science education being one of them. Studies point out that the lack of role

    models of women scientists is one of the reasons girls feel left out of the scientific enterprise,

    and choose different carriers. This paper intends to explore the 1903 Nobel Prize in P hysics,

    that almost left Marie C urie out, and its educational possibilities for physics educators, who

    could use this episode to recognize the still pulsating prejudices prevailing in science.

    Key words: history of science, feminism, Nobel Prize, radioactivity

    Introduo

  • His tria, Filos ofia e Sociologia da Cincia na Educao em Cincias 2

    Atas do IX Encontro Nacional de Pesquisa em Educao em Cincias IX ENPEC guas de Lindia, SP 10 a 14 de Novembro de 2013

    Uma pesquisa inicial inadvertida histria dos laureados do Prmio Nobel pode sugerir um

    carter vanguardista da premiao. Em seu terceiro ano, o de 1903, uma mulher (Marie

    Sklodowska C urie) foi premiada pela primeira vez e na cincia que, como ressaltam Gould

    (1998) e Schiebinger (2001), geralmente considerada a mais masculina a fsica. Infelizmente, a histria do Prmio em cincias no sustenta essa possvel primeira impresso:

    nestes ma is de cem anos de lurea, apenas duas cientistas foram premiadas na fsica, quatro

    na qumica e dez em medicina ou fisiologia.

    Essas raras premiaes a mulheres cientistas revelam a desproporo entre os gneros na

    atividade cientfica, fato conhecido, mas que vem mudando nos ltimos anos. Esse

    desequilbrio , por sua vez, um reflexo social mais amplo; historicamente, as diferenas

    profissionais, mesmo que sob a gide de escolha feminina/masculina, so, como os estudos feministas do ltimo sculo mostram, imperativos sociais. Profisses em cincia, engenharia e

    poltica so tradicionalmente consideradas masculinas, enquanto so tomadas como femininas

    aquelas em educao, enfermagem ou as domsticas. Essa classificao historicamente

    instituda, e as francas despropores entre os gneros nessas atividades propiciam a intruso

    nelas de certos valores socialmente compreendidos para cada grupo.

    Mesmo grande, o desequilbrio entre os gneros na cincia menor que o desequilbrio entre

    os gneros dos laureados. Assim, esse grupo seleto de cientistas uma espcie de reflexo

    agravado de uma atividade masculina. Schiebinger (2001) lembra que, apesar de haver um

    crescente nmero de mulheres na atividade, elas ainda sofrem embargos sua entrada,

    manuteno e reconhecimento na cincia, em todos os nveis da jornada inclusive na escolha do merecedor anual da mais distinta lurea do empreendimento.

    McGrayne (1994) cita diversas mulheres cujos trabalhos cientficos foram fundamentais para

    a premiao de seus parceiros ou orientadores. Na fsica, especificamente, ela cita Lise

    Meitner, C hein-Shiung Wu e Jocelyn Bell Burnell. Apesar da qualidade de seus trabalhos,

    suas contribuies foram neutralizadas. difcil distinguir qual, dentre tantos fatores sociais e

    histricos como guerras, xenofobia ou machismo, tornou-se o maior obstculo para cada uma

    delas. A primeira vencedora, Marie Curie, poderia ter sido parte deste grupo de mulheres.

    Este trabalho analisa o contexto social e histrico da Frana de 1903, levantando os possveis

    fatores que levaram a lguns fsicos franceses a desprezar o trabalho de Marie C urie na

    indicao ao P rmio Nobel de 1903, e o potencial didtico desse episdio para a discusso da

    excluso das mulheres da cincia. Para compreender melhor a conjuntura social europeia,

    discutem-se a primeira onda do feminismo e a histria do Prmio. Apontam-se enfim a lgumas

    consequncias de preconceitos sutis na educao cientfica e as possveis contribuies de

    uma aula de cincia pautada nesse episdio histrico para desconstruir tais concepes.

    Feminismo, primeira onda e o Prmio Nobel

    A Belle poque, que vai do fim do sculo XIX ao comeo da P rimeira Grande Guerra, usualmente retratada como um perodo de grande efervescncia cultural, com o desenvolvimento das comunicaes, da vida artstica e de novos pensamentos, na Frana e em toda a Europa. tambm o perodo de florescimento do movimento das mulheres (conhecido

    como primeira onda do feminismo 1) e de estabelecimento do reverenciado Prmio Nobel.

    1 O termo fe minis mo, co mo s innimo de movimento das mu lheres e reivind icao de igualdade de direitos , foi

    utilizado pela prime ira ve z por Hubertine Auclert, e m La Citoyenne, na dcada de 1880. O termo s e cons agrou

    na dcada s eguinte, primeiramente na Frana, e ento entrando em outros pas es e s uas res pectivas lnguas .

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    Atas do IX Encontro Nacional de Pesquisa em Educao em Cincias IX ENPEC guas de Lindia, SP 10 a 14 de Novembro de 2013

    difcil definir o momento exato de nascimento das reivindicaes femininas; em virtude do

    posicionamento scio-histrico inferior dado s mulheres desde os perodos mais remotos,

    muitos estudiosos acreditam que sempre houve tentativas pontuais para mudar e ssa condio

    ao longo da histria (PINTO, 2012 ). Entretanto, enquanto movimento social, poltico e

    filosfico, o movimento feminista surgiu no sculo XIX, resultado de manifestos de mulheres

    (e homens simpatizantes) cada vez mais frequentes, que vinham aco ntecendo desde o sculo

    anterior na Europa. Dentre as reivindic aes, o movimento exigia o direito ao voto em leis, liberdade no casamento, e demandava solues educacionais e econmicas para combater o

    crescente empobrecimento feminino (OFF EN, 2000, p. 108). A partir da Primavera dos Povos, em 1848, o ideal feminista de igualdade poltica e social entre os gneros ganhou cada

    vez mais adeptos; sua histria, porm, mostra o crescente nmero de obstculos que se

    impunham ao menor sinal de ganhos sociais femininos.

    Interessantemente, apesar da natureza de florescimento de conhecimentos, a Belle poque

    francesa foi um perodo de fortes contra-ataques ao feminismo. Eram reaes s tmidas

    vitrias do movimento, que miravam usualmente no que a literatura pa ssara a chamar de a nova mulher: mulheres empregadas, solteiras, educadas, de classe mdia. Uma guerra de conhecimentos surgia, contra-argumentando os tratados feministas, inflamada por uma enxurrada de publicaes de mdicos, criminologistas, psiclogo s, socilogos e outros

    expertos, muitos dos quais [...] comprometidos em manter as mulheres onde alguns homens

    pensavam ser sua posio designada por Deus ou definida biologicamente (OFFEN, 2000, p. 183). O u seja, em uma posio de subservincia ou servido ao marido, no mbito

    domstico, enquanto progenitoras.

    Nessa mesma bela poca de nascimento dos tempos modernos, surge tambm o Prmio

    Nobel. Alfred Nobel, qumico sueco que fez fortuna durante sua vida com o desenvolvimento de explosivos e suas patentes em diversos pases europeus, instituiu em seu testamento que,

    aps destinar parte de sua riqueza a familiares, o restante deveria constituir um fundo cujos rendimentos anuais seriam distribudos queles que, no ano a nterior, tivessem feito grandes

    contribuies ao mundo. Assim, definiu cinco reas de premiao: fsica, qumica, medicina

    ou fisiologia, literatura e paz2.

    Em virtude da necessidade de definies burocrticas, o Prmio s passou a ser distribudo

    em 1901. Os enormes montantes eram suficientes para provocar excitao na comunidade

    cientfica; mesmo havendo diversos tipos de premiao poca, nenhuma delas se

    aproximava, financeiramente, ao recm- institudo prmio sueco. A celebridade generalizada

    da lurea, remanescente at os dias de hoje, no entanto, foi inesperada. Para Feldman (2000),

    nos primeiros dois anos de premiao, as atenes do mundo tornavam-se aos vencedores da

    Literatura e da Paz prmios inusitados queles que s conheciam a faceta cientfica de Nobel, o inventor dos explosivos. O interesse mundial nos prmios da rea cientfica se

    concentrou a partir de 1903, quando o casal C urie, dois fsicos desconhecidos mesmo em

    Paris, onde moravam, foi premiado (FELDMAN, 2000).

    A polvorosa nas imprensas francesa e internacional acerca do casal se devia aos obstculos

    que eles tiveram de transpor durante suas investigaes (F ELDMAN, 2000). Eles trabalharam

    em condies insalubres para o enriquecimento dos dois elementos que sua hiptese previa;

    seu laboratrio estava instalado em um galpo cedido pela Universidade de Paris, sem

    2 Atualmente, o Pr mio Nobel inclui ta mb m a rea de economia u ma in iciat iva de 1969 do Sveriges

    Riks Bank, a quem cabe s ua res pons abilidade financeira.

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    Atas do IX Encontro Nacional de Pesquisa em Educao em Cincias IX ENPEC guas de Lindia, SP 10 a 14 de Novembro de 2013

    assoalho e cujo teto, aos pedaos, umedecia o local o que, muitas vezes, os fez perder as delicadas pores enriquecidas de rdio que com muito esforo conseguiram (QUINN, 2011).

    Para Feldman (2000), mesmo sendo fa tores impressionantes, o anonimato e as condies

    precrias de trabalho no fora m o motivo maior da polvorosa miditica provocada pelo

    Prmio de F sica de 1903. A imprensa estava mesmo interessada em Madame C urie,

    imigrante polonesa que estudou fsica e ma temtica em Paris com pouqussimas condies

    financeiras. Mesmo na Belle poque, os ganhos feministas ainda no haviam conseguido a

    aceitao das mulheres no espao acadmico. A mulher que estudava, como se viu, era o alvo

    preferido dos reacionrios. As mulheres acadmicas, especialmente em cincias, eram em sua

    maioria estrangeiras. Marie C urie foi pioneira entre as doutoras em cincia da Europa. Com a

    nomeao, o casal tornou-se um cone. Em um momento histrico em que as reivindicaes

    femininas ganhavam cada mais espao, mas tambm sofriam srias crticas e impedimentos, a

    deciso do Comit Nobel em premiar uma mulher tambm o elevou condio de mito.

    O trabalho dos Curie e a controvrsia por trs das nomeaes ao Prmio Nobel da Fsica de 1903

    Como tema para sua tese de doutorado, Marie C urie escolhe u, em 1897, as radiaes de

    urnio, descobertas por Henri Becquerel no ano anterior, e que por ele foram interpretadas

    como uma espcie de fosforescncia invisvel (MARTINS, 1990). Eram emisses intrigantes,

    pois, apesar da classificao de Becquerel, eram originadas tambm pelo urnio metlico,

    poca j reconhecidamente no luminescente.

    Embora Becquerel houvesse comunicado as propriedades ionizadoras das emisses de urnio,

    a maior parte das pesquisas feitas por ele e outros cientistas usavam o mtodo fotogrfico. As

    investigaes de Marie C urie conc entraram-se na propriedade eltrica do fenmeno, testando

    diversos outros compostos, procura de radiaes anlogas s de Becquerel. Observou que os

    compostos de trio tambm eram emissores. As radiaes, portanto, no mais poderiam ser

    chamadas de radiao de urnio; aos compostos que as emitiam, o casal, que a essa altura j

    trabalhava em colaborao, deu o nome de radioativos. Mais tarde, o fenmeno passar ia a ser

    chamado de radioatividade.

    Eles formularam a hiptese de que a radioatividade era um fenmeno de natureza atmica;

    com ela, interpretaram que a atividade mais alta em certos minrios de urnio e trio deveria

    ser resultado da existncia de algum outro elemento desconhecido que, mesmo em

    quantidades infinitesimais, emitia fortes radiaes. De fato, observaram no apenas um, mas

    dois novos elementos, que chamaram de polnio em homenagem terra natal de Marie e rdio. A partir de ento, dedicara m-se ao enriquecimento dessas substncias, um trabalho

    rduo, que culminou no doutoramento de Marie Curie, em fsica, no ano de 1903.

    Sua hiptese atmica da radioatividade permitiu um novo foco nas pesquisas sobre o assunto; com ela, em 1899, Rutherford classificou as radiaes em alfa e beta (Paul Villard observou a terceira categoria, denominada gama). Entre 1902 e 1903, Rutherford, em parceria com Frederick Soddy, observou que as emisses ocorriam com uma transformao dos tomos, processo ao qual dera m o nome de desintegrao a tmica. Em virtude fertilidade da hiptese

    de Marie C urie, e mesmo antes de sua defesa de doutorado, ela fora sugerida 3 nos anos de

    1901 e 1902 para o Prmio da Fsica.

    3

    Anualmente, as acade mias des ignadas (Pa z: Pa rla mento Noruegus ; Literatura: a Aca de mia de Letras de

    Es tocolmo; Medic ina ou Fis io logia: o Karolins ka Medica l Ins titute de Es tocolmo; Fs ica e Qu mica: a Acade mia

    Sueca de Cincias ) apontam cinco de s eus me mb ros para es colher nomeadores , recolher s uas suges tes e com

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    Atas do IX Encontro Nacional de Pesquisa em Educao em Cincias IX ENPEC guas de Lindia, SP 10 a 14 de Novembro de 2013

    Em 1901, Madame Curie foi sugerida para o Prmio de F sica pelo mdico Charles-Joseph

    Bouchard, patologista influente, membro da Academia Francesa de Medicina. Naquele ano,

    entretanto, ele foi o nico a sugeri- la. J em 1902, alm de Bouchard, dois fsicos tambm

    nomearam Marie C urie, juntamente com P ierre C urie e Becquerel: Jean-Gaston Darboux,

    reitor da Faculdade de C incias da Universidade de Paris, e Emil Warburg, influente fsico

    alemo, membro da Academia Prussiana de Cincias. J o fsico leuthre Mascart sugeriu

    apenas P ierre naquele ano. Segundo Q uinn (2011), porm, fosse a radioatividade premiada

    em 1902, dificilmente negligenciariam Marie Curie, em virtude das nomeaes conjuntas.

    Estranhamente, a situao mudou de figura no ano seguinte. leuthre Mascart, juntamente

    aos tambm fsicos franceses, Gabrie l Lippmann, Jean-Gaston Darboux e Henri Poincar

    assinaram uma carta nomeao em que sequer mencionavam o trabalho de Marie C urie. A

    carta era quase inteiramente uma fico. A tribuam a P ierre o estudo de diferentes minerais de urnio e trio e o enriquecimento de duas novas substncias. Disseram que, juntos, P ierre e Becquerel competiam com rivais estrangeiros pelo suprimento de rdio e buscaram com grande dificuldade alguns decigramas desse precioso material , fazendo suas pesquisas por vezes juntos, por vezes separados. A carta conclua que parece impossvel para ns separar os nomes dos dois fsicos, e, portanto, no hesitamos em propor que o Prmio Nobel seja

    dividido entre Sr. Becquerel e Sr. Curie (QUINN, 2011, paginao eletrnica).

    A omisso de Marie faria com que ela fosse desconsiderada da premiao de 1903. O Estatuto

    do Prmio Nobel especifica a necessidade de uma nomeao para que o comit escolha o

    laureado e naquele ano, e ela no fora nomeada. Contudo, um dos mais ativos e respeitado s

    membros do comit, Gustav Mittag- Leffler, ao receber a carta, escreve u a P ierre,

    questionando o desprezo repentino ao trabalho de Marie. Em sua resposta, P ierre enfatizou

    sua preferncia por ser considerado juntamente sua esposa, pois seus trabalhos fo ram

    colaborativos. Mittag-Leffler precisou de manobras burocrticas, a fim de nomear Marie

    Curie; sua influncia e o fato de ela ter sido sugerida nos anos anteriores permitiram, ento,

    que o casal dividisse com Becquerel o Prmio da Fsica de 1903 (QUINN, 2011).

    Ao ser anunciado, o prmio teve grande efeito nas imprensas francesa e mundial. Dependendo

    da linha do jornal ou da revista, a descrio do trabalho do casal diferia. Alguns jornais

    conservadores evitavam mencionar o trabalho de Marie Curie; outros, mais moderados,

    insistiam em exp- la como colaboradora secundria, essencial para a concentrao de P ierre

    em seus estudos. O outro lado tambm se mostrou, com a defesa de Madame C urie como

    nica responsvel pelo trabalho, tratando seu marido como uma pea num jogo de aparncias.

    De todo modo, era difcil conceber que um trabalho to rduo pudesse ser conduzido por um

    casal em colaborao, especialmente quando se esperava das mulheres casadas o total cuidado

    da casa e dos filhos. Certamente, essa conjunt ura familiar de cooperao, tpica dos C urie, era

    bastante inusitada no comeo do sculo XX, e talvez se pudesse atribuir a esse cenrio uma

    justificativa carta dos fsicos franceses. Entretanto, dois dos quatro signatrios estavam

    bastante familiarizado s com os trabalhos da cientista; Lippmann apresentara a primeira

    comunicao de Marie C urie Acade mia Francesa de C incias e foi, mesmo no ano de 1903,

    o presidente da banca examinadora de sua tese de doutorado. Darboux, que um ano antes

    sugerira ao Comit os C urie e Becquerel, mais frente viria a ser um grande defensor da

    nomeao de Marie Curie Academia Francesa de Cincias (QUINN, 2011).

    bas e nelas decidir u m vencedor, que deve s er aprovado, finalmente, pela acade mia. Dentre os nomeadores , tm

    pos io permanente os me mb ros das prprias academias ; profes s ores de cincias e literatura de toda a

    Es candinvia e nobelis tas podem enviar s uas suges tes . H tamb m nomea dores temporrios , geralmente

    profes s ores de divers os ins titutos pelo mundo, que s o es colhidos , us ualmente, a cada dois anos .

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    Atas do IX Encontro Nacional de Pesquisa em Educao em Cincias IX ENPEC guas de Lindia, SP 10 a 14 de Novembro de 2013

    Se no se pode alegar desconhecimento acerca do papel de Marie C urie nos estudos da

    radioatividade, ento qual a justificativa para a carta dos quatro fsicos? Seria porque, em

    diversos aspectos, Marie C urie incorporava aquela nova mulher, estudada, independente e,

    inesperadamente, talentosa? Seria um resultado do contra-ataque ao feminismo, que se armava to fortemente na Frana do incio do sculo XX? impossvel afirmar

    definitivamente que o seja; para isso, seria necessria uma investigao sobre registros das

    opinies dos signatrios da carta sobre as questes femininas. Entretanto, o histrico de

    dificuldades encontradas por mulheres nas cincias, alm da conjuntura da poca e o fato de

    conhecerem bem o histrico do trabalho colaborativo do casal, nos permitem inferir que as

    motivaes dos quatro fsicos possam ter sido de natureza sexista.

    Cincia e a questo de gnero: consideraes educacionais

    O machismo no permeia apenas a cincia, mas tambm a educao, afastando mulheres de

    carreiras cientficas. Diversas investigaes tm sido feitas, em variados estgios da educao,

    para compreender as consequncias desse preconceito. Alguns diagnsticos, no caso

    estadunidense, mostram a menor propenso de meninas a seguir a carreira cientfica

    (RIEGLE-CRUMB; MOORE; RAMOS-WADA, 2011); a dificuldade daquelas que gostam

    de cincia, na tentativa de equilibrar esse suposto lado masculino com outros aspectos de

    heterofeminilidade (ARC HER et al, 2012); a preferncia de meninas por brinquedos domsticos, enquanto meninos demonstram mais conforto com brinquedos cientficos

    (JONES; HOWE; RUA, 2000).

    So normativas de gnero que invadem a educao, por meio de hbitos sutis, como

    Schiebinger (2001) menciona, tais como provas de cincias contextualizadas com analogias

    esportivas, incentivo e elogios criatividade dos meninos (enquanto as meninas so elogiadas

    por esmero), e o tempo maior de manifestao verbal em sala de aula dado a meninos. Uma

    pesquisa de Frana e Munford (2012) com duas professoras de cincias, apesar de no ser

    parmetro para generalizae s, evidencia tratamentos estereotipados similares no Brasil.

    Materiais didticos tambm reflete m essas diferenas. Softwares didticos desenvolvidos para

    meninos tendem a exaltar a aventura e a coragem, enquanto para as meninas, so voltados a

    sentimentos e vida domstica. Alis, os trabalhos domsticos de cuidado e limpeza aparecem

    com frequncia em livros didticos, e sempre na forma feminina. Homens, nessas obras,

    segundo Schiebinger (2001) nos EUA e Martins e Hoffmann (2007) no Brasil, so mais

    representados exercendo funes relacionadas a carros e pesca, e quando so retratados como

    profissionais, so professores de cincias ou mdicos.

    A influncia do machismo na cincia e na educao cientfica, como se tentou mostrar at

    aqui, restringe a cincia aos homens. Naturalmente, podemos citar algumas mulheres que

    efetivame nte conseguiram chegar ao topo da carreira, mas no sem passar pelos mais diversos

    obstculos. Alm disso, esses exemplos dificilmente chegam com a riqueza de detalhes

    necessria educao cientfica. Desse modo, meninas e mulheres, que demonstram preferir

    abordagens mais contextualizadas da cincia (KAHVECI; SOUTHERLAN D; GILMER,

    2008; JOHNSON, 2007), ficam sem modelos inspiradores de cientistas mulheres, fator

    fundamental para perseguirem uma carreira cientfica (BUCK et al, 2008).

    Madame C urie foi uma das mulheres que conseguiu, apesar de todos os empecilhos, inclusive

    no auge de sua carreira, com a notvel lurea. Premiaes funcionam como importantes

    legitimadores do conhecimento cientfico e do cientista que o props. Assim, a histria do

    episdio, med iada com a conscincia das diversa s formas de manifestao que o machismo

    encontra, tem o potencial de fornecer um grande exemplo de mulher cientista (fsica e

  • His tria, Filos ofia e Sociologia da Cincia na Educao em Cincias 7

    Atas do IX Encontro Nacional de Pesquisa em Educao em Cincias IX ENPEC guas de Lindia, SP 10 a 14 de Novembro de 2013

    matemtica, que fez enormes contribuies na qumica) e discutir esse que um dos aspectos

    da natureza da cincia. Como bem aponta Prez et al (2001), a concepo elitista da cincia,

    alm de propagar a ideia de que esse um empreendimento levado por gnios, restringe

    tambm o que ser gnio: e m geral, homens, brancos e heterossexuais. O nmero de

    mulheres na cincia hoje em dia seguramente mais expressivo que h um sculo ela, afinal, feita em grandes grupos e conhece poucas fronteiras. No entanto, nossos livros e

    escolas continuam com o hbito danoso de festejar apenas um punhado de nomes, escolhidos

    por valores sociais que, como demonstram os levantes contraculturais, devem ser repensados.

    Importa, certamente, contextualizar os acontecimentos daquele Prmio Nobel: como j dito

    aqui, uma Europa que se transformava. Momentos histricos assim naturalmente presenciam

    a queda de braos entre progressistas e reacionrios, e uma interpretao feminista do evento

    demonstra que ele foi palco deste tipo de embate. Cabe perguntar se ainda hoje mulheres na

    cincia passam por esse tipo de dificuldade e a resposta afirmativa, infelizmente. Elas tm progresses mais lentas na carreira, ganham menos, encaram dupla jornada de trabalho e

    ainda enfrentam assdio moral e sexual (SC HIEBINGER, 2001). Alm disso, na atual onda

    de feminismo, tambm se presencia m manifestaes conservadoras contra os avanos das

    mulheres em relao a direitos trabalhistas, vida domstica e, principalmente, vida sexual e

    reprodutiva. Alunos e alunas que se deparem com esse episdio, devidamente transposto e

    mediado por um professor preparado, podem comear a desenvolver algum senso crtico em

    relao temtica e aplic- lo para identificar, em outros mbitos de suas vidas, a propagao

    de desigualdade de gnero.

    Por fim, cabe perguntar: o que seria da histria da fsica, em termos de representatividade de

    mulheres, se Madame C urie no tivesse sido laureada naquele ano? Teria sido nomeada pela

    segunda vez, na Q umica, em 1911? E as mulheres que se seguiram tambm na fsica (e

    qumica) nuclear, como sua filha Irne Joliot-Curie, e Lise Meitner e Maria Goeppert-Mayer,

    seriam cientistas amplamente reconhecidas? O exemplo de Meitner bastante valioso e

    sugestivo; indicada pelo menos quinze vezes aos Prmios de Q umica e F sica

    (GONALVES-MAIA, 2012), foi negligenciada pelo Prmio Nobel da Q umica de 1944, que

    laureou somente seu parceiro, Otto Hahn. S uas reais contribuies tambm foram por muito

    tempo relegadas por museus de cincias, instituies, festividades sobre a descoberta da fisso

    nuclear e mesmo por historiadores da cincia (SIME, 1989). O que se pode inferir se o mesmo

    tivesse ocorrido com Marie Curie?

    Agradecimentos

    Este trabalho foi desenvolvido com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento

    Cientfico e Tecnolgico (CNPq).

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