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QUE DIABOS É A HISTÓRIA, CIÊNCIA OU ARTE? UMA QUESTÃO

DE PERSPECTIVA

Fernando Lucas Garcia de Souza1

INTRODUÇÃO

Especialmente a partir dos anos de 1970, a historiografia enfrenta o desafio de

repensar seu lugar no campo das ciências. Para alguns autores, o rigor metodológico na

pesquisa é o que permite à História reivindicar seu lugar científico, mesmo que os

paradigmas que lhe garantiam este status, construídos especialmente no fim do século

XIX, tenham sido colocados em xeque2. Para outros, a História é alguma outra coisa.

Preocupados com o caráter discursivo da narrativa historiográfica, lhes parece mais

apropriado assentá-la ao lado das produções artísticas ou literárias, ou em um lugar

situado entre a ciência e a arte.

Neste texto, como um exercício consideravelmente desafiador, procuraremos

questionar se este embate não é uma questão de perspectiva. A centralidade do

argumento se dará na diferenciação da natureza entre as fases da Operação

Historiográfica, o que nos permitiria pensar, simultaneamente, na História enquanto

ciência e literatura.

CIÊNCIA OU ARTE? O EXERCÍCIO DE INTERPRETAÇÃO DO PASSADO

A escrita da História me parece irremediavelmente um processo retrospectivo. O

historiador formula suas questões, sempre, a partir do presente, para só então retornar

imaginativamente à um passado que estava morto até então, e revirá-lo em busca do

acontecido. Como nos propõe Michel De Certeau, escrever é caminhar pelo mundo dos

mortos, trazendo-os à vida a partir da narrativa, do discurso. Segundo o autor, a história

é o discurso sobre o morto. Paradoxalmente, ela traz à vida, mas também sepulta, uma

vez que acaba por trazer a “última palavra” sobre um passado que não está mais aqui

para reclamar possíveis incoerências3.

1 Mestrando em História pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. E-mail:

[email protected] 2 (CARDOSO, 2011) 3 (DE CERTEAU, 1982)

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Neste sentido, como proposto por Hobsbawn, toda história é contemporânea, e o

é na medida em que, por fim, é sempre uma interpretação do passado orientada pelas

inquietações presentes4. Na prática historiográfica, ocorre então o que De Certeau

chamou de inversão escriturária5: parte-se do final para o início, da hipótese para a

fonte, do presente para o passado. Poderíamos, por analogia – especialmente se o leitor

possuir um espírito aventureiro – dizer que o historiador “coloca sua mochila nas costas

e parte rumo ao passado”. Ele o faz levando na bagagem alguns itens inseparáveis: seu

lugar social: suas concepções ideológicas, políticas e culturais – itens que parecem não

ocupar muito espaço na mochila, mas saibamos reconhecer, pesam muito na carga ao

longo do percurso – e um ou dois pares de hipóteses, sempre suscitadas a partir de seu

tempo.

O que chamamos retorno imaginativo, por certo, não é ficcional no sentido que o

senso comum poderia atribuir ao termo. Não se trata de inventar o passado, romanceá-lo

ao bel prazer do historiador, criando personagens heroicos, eventos, inventando

conjunturas ausentes, estruturas impossíveis de serem teorizadas, duendes, dragões,

ditaduras bem-intencionadas, políticos honestos ou qualquer outra criatura saída

diretamente dos contos de fadas.

Retornar ao passado para construí-lo ou interpretá-lo – vejamos bem, não

reconstruí-lo, dada a impossibilidade físico-temporal deste último – é ficcional à medida

em que o historiador se utiliza do fictio, no sentido original do termo, construído6. A

História, deste modo, é ficção não porque o historiador inventa deliberadamente os

eventos por ele narrados, ela é ficção porque o historiador constrói a narrativa acerca

dos eventos. Como proposto por Febvre, toda história é escolha:

É-o, até devido ao acaso que aqui destruiu e ali salvou os vestígios do

passado. É-o devido ao homem: quando os documentos abundam, ele

resume, simplifica, põe em destaque isto, apaga aquilo. É o sobretudo,

porque o historiador cria seus materiais, ou se se quiser, recria-os: o

historiador que não vagueia ao acaso pelo passado, como um trapeiro

à procura de achados, mas parte com uma intenção precisa, um

problema a resolver, uma hipótese de trabalho a verificar. (FEBVRE,

1989, p.19)

4 (HOBSBAWN, 1998) 5 (DE CERTEAU, 1982) 6 (GEERTZ, 1989)

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Portanto, quando o historiador escolhe uma dentre as várias perspectivas

possíveis pela qual olhar um evento, quando formula uma hipótese e não outra, quando

separa determinados documentos ou opta por tal ou tal tipologia de fontes, está

produzindo uma interpretação acerca do passado, portanto criando-o, utilizando-se do

ficctio.

O que não significa dizer, que o historiador inventa o passado. Os eventos

estiveram lá. Como já apontou Thompson, o status ontológico do presente não muda ao

tornar-se passado7. Ou seja, o fato de um evento fixar-se em determinado momento no

tempo, enquanto este último avança, não descaracteriza o acontecido, não o insere no

campo do irreal, e sim do irreconstituível. Isto traz o problema da impossibilidade de

trabalhar com o conceito de verdade, como se o historiador fosse capaz de dar um

veredito final sobre o acontecido, explicá-lo ou reconstituí-lo em sua totalidade. O

alcance da verdade é impossível, como é possível perceber em Koselleck, para quem o

passado é sempre analisado a partir do presente, construindo as interpretações

historiográficas por meio de metodologias e fontes adequadas8. Esta construção é

permeada pela impossibilidade da imparcialidade por parte do historiador, que como

vimos em Febvre, faz escolhas. Escolhas orientadas por método e fontes, como

lembrado por Koselleck, mas ainda assim, escolhas.

Esta impossibilidade de verdade, que nos faz optar pelo conceito de

verossimilhança, mais plausível à produção do historiador, está ligada à concepção de

tempo histórico apresentada por Koselleck e Hartog. Para eles, no processo de

determinação da distinção entre passado e futuro, entre a experiência e expectativa,

constitui-se o tempo histórico – multifacetado, culturalmente construído e, portanto,

diversamente percebido em diferentes grupos humanos e diferentes períodos – onde o

passado se constrói entre o acontecimento e a sua interpretação, na forma de narrativa9.

É esta distância imutável entre o tempo do acontecimento e sua interpretação por parte

do historiador que caracteriza o problema na utilização do termo verdade, uma vez que,

como aponta De Certeau, a temporalidade simultaneamente desencadeia os fenômenos e

fecha as lacunas, impossibilitando a reprodução do mesmo10.

7 (THOMPSON, 1981) 8 (KOSELLECK, 2006) 9 (KOSELLECK, 2006; HARTOG, 2014) 10 (DE CERTEAU, 1982)

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Para o historiador, o evento situado no passado insere-se no campo do

irreconstituível, do irreproduzível. Isto se dá pela óbvia impossibilidade de reproduzir as

experiências passadas integralmente, a partir de todas as perspectivas possíveis, o que

coloca em dúvida o status de ciência reivindicado pela História. História é ciência?

Ciência experimental, certamente que não, dada a natureza de seus objetos, que não

podem ser reconstruídos. Há então, a possibilidade de inserir a História no campo das

ciências interpretativas, como Geertz faz com a Antropologia e seu objeto maior de

estudo, a cultura:

O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios

abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando,

como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de

significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas

teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em

busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do

significado. (GEERTZ, 1978, p.4 – grifo nosso)

Se aceitarmos esta concepção Geertziana e aplica-la à História, teremos de

aceitar que não poderemos, por meio da pesquisa em História, determinar modelos ou

estruturas pelas quais os seres humanos dão sentido à sua experiência. O trabalho com

as fontes – orientado por um rigor metodológico e regulado pelo corpo de profissionais

– permitiria compreender o acontecido, interpretar o passado à procura do significado

daqueles eventos para determinados grupos ou pessoas envolvidas.

Aceitar impossibilidade da História enquanto ciência – ou ao menos enquanto

ciência de cunho experimental – não é mergulhar a história numa crise intransponível,

pela qual nós historiadores deveríamos prantear como uma viúva pobre com oito filhos

para criar, mas sim aceitar que as certezas que arrogavam os historiadores do século

XIX – e boa parte do século XX – acerca do lugar da história no campo científico

foram, especialmente a partir dos anos de 1970, irreversível e coerentemente

questionadas. Aceitar isto é propor pensá-la enquanto alguma outra coisa, que pode ser

esta ciência interpretativa, que aceita a impossibilidade de reprodução de seu objeto,

mas propõe interpretações sobre o passado orientadas pelo rigor metodológico e pelo

uso das fontes, como já propôs Carlo Ginzburg11, ou pensá-la como arte – ou como um

lugar entre a arte e a ciência – valendo-se dos recursos literários em sua construção,

como proposto por autores como Hayden White e Paul Veyne.

11 (GINZBURG, 1989)

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Me parece que muito mais que alistarmo-nos na campanha bélica pelo lugar

ocupado pela História, a questão pode ser de perspectiva. Ambas as interpretações me

parecem possíveis, dependendo para qual fase da Operação Historiográfica o historiador

está atento12.

Ora, se nossa atenção estiver voltada para o que Paul Ricoeur13 chama de “fase

documental”, na qual o historiador busca, produz e organiza as fontes que lhe servirão

de “prova documental”, ou mesmo na fase “interpretativa/compreensiva”, que deve

seguir os preceitos estabelecidos e regulados pelo corpo de historiadores, testando as

hipóteses contra as fontes-evidências, utilizando-se daquilo que Thompson nomeia

Lógica Histórica14, para produzir o que Rüsen chama de uma perspectiva orientada do

passado15 – orientada, segundo o próprio autor, pela Teoria da História, ou seja, pelo

conhecimento das regras e princípios que norteiam a produção no campo científico -

então seria possível atribuir algum grau de cientificidade à História, uma vez que

segundo o argumento de autores como Ginzburg, Thompson e Rüsen a História

garantiria sua cientificidade, lógica ou razão própria por meio do rigor metodológico no

trato com as fontes e no teste das hipóteses, dos quais resultariam a interpretação acerca

do passado, produzindo, como lembra Thompson, um conhecimento sempre provisório

e incompleto, seletivo, limitado e definido pelas perguntas do historiador à fonte, mas

nem por isso inverídico16.

Porém, se desviarmos o foco para a “última fase” da Operação Historiográfica,

para a produção textual, é impossível ignorarmos as inquietações de autores como

White e Veyne. Isto porque a pesquisa do historiador de concretiza por meio da

narrativa.

12 É importante manter em foco que Ricoeur ressalta a importância de não dissociar as “fases” da Operação Historiográfica. Ele lembra que não se tratam de momentos cronológicos distintos, mas ligados uns aos outros. Como ele aponta: “ninguém consulta um arquivo sem um projeto de explicação, sem uma hipótese de compreensão, e ninguém se dedica a explicar uma sequência de acontecimentos sem recorrer a uma colocação de forma literária expressa de caráter narrativo, retórico ou imaginário (RICOEUR, 2007, p.147). Porém, penso não ser um esforço inútil pensarmos estes estágios dissociados na reflexão proposta neste texto, não como fases cronologicamente separadas, mas como processos de labor historiográfico de naturezas distintas. 13 (RICOEUR, 2007) 14 (THOMPSON, 1981) 15 (RÜSEN, 2001) 16 (THOMPSON, 1981)

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A narrativa é, como aponta White, um veículo de representação ordenada dos

eventos ou acontecimentos17. É preciso que nos detenhamos por um tempo neste

conceito: representação. De acordo com Roger Chartier18, a representação é a presença

do ausente. Ou seja, o historiador, ao construir a narrativa, fala sobre o morto, e não

podendo reconstruir, trazê-lo novamente à vida, representa, traz uma construção

narrativa sobre ele, que não é ele próprio, pela óbvia impossibilidade, mas sim uma

representação, uma perspectiva do historiador acerca deste passado morto, que deverá

ser confrontada à outras representações e perspectivas acerca do mesmo evento,

produzida por outros historiadores que leem o mesmo fenômeno por outro prisma,

munidos de outras perguntas ou a partir de outras fontes. Neste sentido, entendemos que

o trabalho do historiador é de interpretação. Uma interpretação sobre o passado

orientada pelas fontes, apoiada em métodos, mas ainda assim uma interpretação.

Esta interpretação só toma forma por meio do discurso, da narrativa. Como

aponta Veyne, a produção do historiador só faz sentido em seu trabalho final, ao se

tornar narrativa19. Hayden White sintetiza esta problemática:

(...) considerarei o labor histórico como o que ele manifestamente é, a

saber: uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em

prosa que pretende ser um modelo, ou ícone, de estruturas e processos

passados no interesse de explicar o que eram representando-os.

(WHITE, 1992 p.18)

É certo, porém, como dissemos, que o processo de construção desta

interpretação, é apoiado nos métodos de análise das fontes. É o trabalho com elas que

permitirá o historiador construir seu texto. Como aponta Koselleck, “as fontes não darão

respostas concretas, nem dirão o que deveremos escrever, mas auxiliam a construção da

narrativa historiográfica verossímil”20. Compreender isto é compreender a indissociável

relação das fases da Operação Historiográfica de que fala Ricoeur, relação que como

lembramos, não pretendemos ignorar. Ao passo que não há possibilidade de dar forma

ao conteúdo construído pela pesquisa sem o recurso da narrativa, como aponta Veyne21,

não há também como construir uma narrativa historiográfica – ao menos não uma

narrativa historiográfica verossímil e que escape ao memorialismo – sem lidar com as

17 (WHITE, 1994) 18 (CHARTIER, 2002) 19 (VEYNE, 2008) 20 (KOSELLECK, 2006, p.132) 21 (VEYNE, 2008)

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fontes através do método. Como lembramos, dissociamos não as fases cronológicas da

Operação Historiográfica, nem mesmo supomos uma autonomia de uma em relação à

outra, buscamos apenas evidenciar a diferença da natureza entre elas, a fim de pensar a

possibilidade da História enquanto ciência interpretativa ou arte, discurso de ordem

literária.

Eis outro ponto importante a ser considerado no que diz respeito ao caráter

discursivo do texto historiográfico. Como lembra Lynn Hunt, White aponta que a

narrativa historiográfica é da mesma ordem do discurso literário ou mítico22. À primeira

vista, isso poderia arrepiar os cabelos de uma senhora aparentemente tão conservadora e

recatada como a musa Clio. Conservadora se tivermos em conta que, durante muito

tempo e até hoje para alguns historiadores, a já senhora Clio não pode andar por aí, de

mãos dadas e tomando seu chá diário com a literatura, o discurso mítico ou outras

formas “não científicas” de produção textual.

Acontece que, além de ser a musa da História ela também é da criatividade.

Tenhamos em conta o mito grego não é sem razão, especialmente se associarmos o

processo de criação à figura de Clio. A narrativa historiográfica é, portanto, e mais uma

vez, construção, interpretação sobre um passado irreconstituível em sua plenitude.

Quanto às companhias de Clio, costumeiramente sem uma maior reflexão recorremos a

um “diga-me com quem andas que eu te direi quem és”. A narrativa historiográfica é,

repetindo White, da mesma ordem da literária e mítica. Elas não são a mesma coisa, não

se constroem seguindo os mesmos processos metodológicos, com as mesmas

ferramentas (fontes), ainda que possam ter o mesmo objetivo – explicar a experiência

humana no mundo. Ser da mesma ordem, parece significar muito mais estar organizada

de maneira semelhante, recorrendo ao mesmo estilo de apresentação.

Lembremos que De Certeau dialoga com Marshall Sahlins para propor que o

mito é olhar para trás a partir do presente, que o rito, realizado no presente, atualiza o

mito e ao atualizá-lo, o modifica. Deste modo, o rito é discurso que se faz o mito, uma

vez que para Sahlins, ação é discurso23. Que semelhanças podemos perceber entre a

dinâmica do rito e a produção do historiador? Na distinção bem apontada por De

Certeau entre História (disciplina) e História (real), a primeira atualiza a segunda ao

22 (HUNT, 1992) 23 (SAHLINS, 1990)

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produzir interpretações sobre ela. É o trabalho que produzimos, nosso texto, que

atualiza (e modifica) o passado, ao promover interpretações sobre ele, cria-o, utilizando

de recursos que são da mesma ordem do discurso mítico e literário: a narrativa.

Não por acaso, White aponta que toda explicação histórica é retórica e poética

por natureza24. Outra vez, isto diz respeito ao recurso literário pelo qual a pesquisa do

historiador se apresenta, se transforma em texto. Além disso, como propôs White e

procuramos lembrar, as narrativas históricas carregam um elemento de interpretação

irredutível25. Essa interpretação por vezes recorrerá a um conceito que preocupa os

historiadores mais conservadores – mais pela terminologia que pela utilização, a qual

eles também recorrem – a Imaginação Histórica.

Diferente do que se possa inferir à primeira vista, como propomos no início

deste texto, a imaginação histórica não é a recorrência a recursos fantasiosos, não é o

voo livre da imaginação do historiador para inventar um passado do qual ele nada

conhece, tudo supõe. A imaginação histórica e a literária não são da mesma natureza,

ainda que seus discursos, seus produtos finais sejam, como dissemos anteriormente.

Para White, não se trata de inventar, mas de trabalhar com uma noção de verdade

presumível. 26 O historiador trabalha no limite, seu caminho começa onde terminam as

fontes. Mas estes caminhos são construídos a partir destas fontes! A imaginação

histórica, deste modo, parte daquilo que já se construiu por meio dos documentos, para

só então “preencher” as lacunas que são impossibilitadas de compreensão pela falta das

fontes. Assim, esta imaginação histórica é colocada em ação partindo da incompletude

de um quadro formado pelas fontes, trabalhando sempre com o que é permitido ao

historiador presumir a partir delas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, entendemos que o passado é irreconstruível, inalcançável pela sua

natureza – salientando que mesmo nos eventos sincrônicos, a realidade é impossível de

ser alcançada em sua totalidade, pois sempre se tratará de uma perspectiva particular –

e, portanto, as fontes revelam apenas uma parte do passado, que permitirão ao

historiador criar uma versão verossímil acerca do acontecimento ou fenômeno estudado.

24 (WHITE, 1994) 25 (WHITE, 1992) 26 (WHITE, 1992)

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O historiador, a partir do trabalho com as fontes, coloca sua bagagem de

hipóteses nas costas e caminha rumo à compreensão do acontecido. Ele caminha

mantendo o passado em seu horizonte, sua pesquisa segue na direção deste, mesmo

ciente da impossibilidade de alcançá-lo. Nessa caminhada, como nos mostra White,

mais do que descobrir os fatos o historiador os elabora por meio das perguntas que faz

às fontes, produzindo interpretações orientadas sobre o passado27.

É por meio do método de questionamento das fontes, que é regulado por regras

próprias da “ciência” e que toma forma textual utilizando-se de recursos narrativos

“artísticos”, da mesma ordem dos discursos literários – poético e retórico – que o

historiador produz suas interpretações. E talvez, por fim, elas sejam tudo o que o

trabalho sério de um historiador pode de fato produzir. Interpretações, não mais – e não

menos – que isso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos

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27 (WHITE, 1992)

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