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que Crise? que soluções? que alternativas? Director: Eduardo Lourenço Sob a Crise... Eduardo Lourenço Uma Crise Inesperada mas Prevista Guilherme d’Oliveira Martins Uma Estratégia de Esquerda para Enfrentar a Crise Augusto Santos Silva A Primeira Grande Crise do Século e o Eclipse do Liberalismo Paulo Pedroso

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que Crise?que soluções? que alternativas?

Director: Eduardo Lourenço

Sob a Crise...Eduardo Lourenço

Uma Crise Inesperada mas PrevistaGuilherme d’Oliveira Martins

Uma Estratégia de Esquerda para Enfrentar a CriseAugusto Santos Silva

A Primeira Grande Crise do Séculoe o Eclipse do LiberalismoPaulo Pedroso

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DIRECTOREduardo Lourenço

DIRECTORES-ADJUNTOSAntónio ReisFernando Pereira Marques

COORDENADORJoaquim Jorge Veiguinha

CONSELHO DE REDACÇÃOAlberto Martins, Alfredo Margarido, Diogo Moreira, Eduardo Geada, Glória Rebelo, Guilherme D’Oliveira Martins, Filipe Nunes, João Soares Santos, José Medeiros Ferreira, Mónica Dias, Pedro Adão e Silva, Pedro Delgado Alves, Pedro Nuno Santos, Rui Pena Pires

CONSELHO EDITORIALAndré Freire, António Coimbra Martins, António Vitorino, Augusto Santos Silva, Carlos Brito, Carlos Gaspar, Carlos Zorrinho, Edite Estrela, Eduardo Ferro Rodrigues, Fernando Catroga, Francisco Assis, Helena Roseta, João de Almeida Santos, João Cravinho, João Proença, Jorge Lacão, José Lamego, José Maria Brandão de Brito, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Miguel Serras Pereira, Paulo Ferreira da Cunha, Pierre Guibentif, Reinhard Naumann, Rui Namorado, Sérgio Sousa Pinto, Vital Moreira, Vitalino Canas

Título: Finisterra – Revista de Reflexão e Crítica n.º 65/66 – Primavera/Verão 2009Design e Produção: Garra Publicidade, SAApoio à Redacção: Sofia NascimentoRegisto de Título nº 113 463Depósito Legal nº 43 418/91Editora: Fundação Res Publica, Lisboa, 2009Redacção e Administração: Av. das Descobertas, 17 | 1�00 Lisboa Telfs.: 21 �01 �9 09 | Fax: 21 �01 59 56 E-mail: [email protected]

1. Os originais destinados a publicação deverão ser dactilografados a dois espaços em páginas A� de 25 linhas.

2. A revista não se compromete a devolver textos não solicitados.

�. Os artigos assinados são da responsabilidade dos seus autores.

�. A reprodução parcial ou integral dos textos publicados na Finisterra é permitida mediante a autorização da Direcção e indicação da origem.

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QUE CRISE? QUE SOLUÇÕES? QUE ALTERNATIVAS?

Sob a Crise... Eduardo Lourenço

Uma Crise Inesperada mas PrevistaGuilherme d’Oliveira Martins

A Primeira Grande Crise do Século e o Eclipse do LiberalismoPaulo Pedroso

O Festim Está SuspensoJoaquim Jorge Veiguinha

A Crise Financeira Global: O que é Necessário Fazer?Christopher Rude

Uma Estratégia de Esquerda para Enfrentar a CriseAugusto Santos Silva

Perante a Crise: Problemas e Perspectivas do Emprego, do Trabalho e da Equidade em Portugal

António Dornelas

Trabalho e Sindicalismo – Os Impactos da CriseElísio Estanque

MEMÓRIA

Simone Weil: a “Marciana”Fernando Pereira Marques

A Metodologia Revolucionária de Charles DarwinJoaquim Jorge Veiguinha

PARLAMENTO

Debate sobre a Reforma do Sistema EleitoralOrganização: André Freire, Manuel Meirinho e Diogo Moreira

IDEIAS

Estado e União Europeia: Ideologias e Debate Intelectual em tornodo Socialismo e da Igualdade de Oportunidades

Carlos Leone

ÍNDICE

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CULTURA

Manifesto: Pela Inscrição Democrática da Cultura na Sociedade PortuguesaFernando Mora Ramos

Livros, Percursos e Imaginários EruditosJoão Soares Santos

SOLTOS

A Passividade Cubana perante GuantanamoAlfredo Margarido

Bento XVI: Um Papa que também Vestia a Farda das SSAlfredo Margarido

LIVROS

As Voltas que o Capitalismo (não) DeuJoaquim Jorge Veiguinha

Os Charutos de ChurchillBeja Santos

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COLABORAM NESTE NÚMERO

Eduardo Lourenço – Ensaísta

Guilherme Oliveira Martins – Jurista

Paulo Pedroso – Deputado à Assembleia da República

Joaquim Jorge Veiguinha – Ensaísta

Christopher Rude – Professor Universitário

Augusto Santos Silva – Professor Universitário

António Dornelas – Professor Universitário

Elísio Estanque – Professor Universitário

Fernando Pereira Marques – Professor Universitário

André Freire – Professor Universitário

Diogo Moreira – Investigador no ICS da Universidade de Lisboa

Manuel Meirinho – Politólogo, Professor Universitário

Carlos Leone – Professor Universitário

Fernando Mora Ramos – Encenador

João Soares Santos – Ensaísta

Alfredo Margarido – Professor Universitário

Beja Santos – Sociólogo

Carlos Brito – Cartoonista

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QUE CRISE? QUE SOLUÇÕES? QUE ALTERNATIVAS?

Sob a crise...Eduardo Lourenço

O que há de original na mítica Crise que agora sacode o planeta como um “tsunami social” e metafísico é que esta é assu-mida, sem vergonha nenhuma, e até premiada pelos seus autores. É a primeira vez na história pouco humana que nos

antecede que as vítimas reais ou virtuais desta espécie de apocalipse branco são quem consola e tenta salvar os actores da nova peste do Cresus universal afogado no seu ouro. Um pouco à força os pobres deste mundo são convi-dados a salvar os ricos que programaram como gangsters intocáveis o caos universal. Versões do mundo às avessas já havia muitas. Esta é inédita.

Em tempos ingenuamente caritativos, a sociedade ocidental distribuía o que nem tinha a mais nos famosos “caldos da portaria”. Simbolicamente o lugar idealizado dessas épocas, ao menos entre nós, era o “convento”. Com o liberalismo criaram-se instituições laicas para em tempos de urgência se socorrerem os mais pobres. Ninguém podia então imaginar que em plena era de consumo universal – essência da mítica e real globalização – ressur-gissem as antigas “sopas dos pobres” destinadas agora não aos “miseráveis” do século XIX, mas a um novo tipo de pobres da classe média e até mais alta, com diplomas no bolso. No começo da era consumista um cómico de génio, Coluche, inventava uma nova forma de “caridade”, laica e anar-quizante, mas eficaz – os Resteaux du Coeur – como resposta a essa pobreza de tipo novo. Era só uma antecipação. Ninguém podia supor que esta nova pobreza numa sociedade oficialmente igualitária – e aparentemente rica... – em vez de ser eliminada, proliferasse não apenas na margem da sociedade de abundância (nas Áfricas e Orientes), mas no seu centro, como em todas as metrópoles do mundo. E que o seu exemplo mais espectacular fossem os mesmos Estados Unidos em plena fase imperialista-mundialista. Há muito que os Estados Unidos eram o centro de uma Crise endémica que o tipo de economia que ilustram provoca, mas só a amplitude do seu poder político-militar, tornando-os (imaginariamente) senhores do mundo – capazes

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de controlar os mecanismos do seu poder sem contrapoder – explica a intensidade desta crise de um tipo novo e os seus efeitos universalmente devastadores. Isso só aconteceu depois do fim da segunda guerra mundial e, com mais precisão, depois da implosão da União Soviética. Sem obstáculos sérios ao funcionamento da sua máquina económica-financeira (enfim sós...), os Estados Unidos, sem o saber ainda, ficaram mais desarmados do que nunca. Tinham o seu inimigo dentro e não fora como era o caso desde o seu tardio nascimento como nação. Podiam ou julgavam poder agir sozinhos em todas as ordens. Era o Capitalismo numa só nação que se confundia ou podia agir como se fosse o mundo. Este fantasma domina toda a política dos Estados Unidos e nada o ilustra com mais exaltação e secreto pânico que o cinema de Hollywood desde o fim da Guerra Fria. Não admira que o pai desta nova América-Mundo tenha sido Ronald Reagan, actor como todos sabemos. A Crise – esta com que agora estamos confron-tados e com os Estados Unidos não só na primeira linha mas no centro do ciclone por ela provocado – nasceu, existe e vive como esse cinema fantás-tico (e lucrativo) entre o delírio e o apocalipse. Objectiva e tecnicamente a Crise começou com o “mot d’ordre” de Reagan, em super-Guizot da era mediática: “enriquecei”. Endereçado aos ricos que nem o precisavam. E não se fizeram rogar. É o diagnóstico recente de Paul Krugman e de outros economistas americanos de referência. Só no mundo, a América de Reagan julgou possível mudar as regras financeiras vigentes criadas como resposta à famosa crise de 1929, que supunham vigilância e controlo dos movimentos de risco inflacionista clássico. E pouco a pouco, o sistema inteiro contaminou a economia americana, convertida em “economia de casino”, como se disse. Uma economia de risco máximo, estendida ao mundo. A mundialização tem os seus custos. E mais a que se toma como sendo a “única”, sem o ser.

Contrariamente à crise de 1929 (aquela que as “Vinhas da Ira” imor-talizaram) esta de hoje teve menos banqueiros insolventes que se atiraram de arranha-céus (até agora a única “vítima” pouco inocente é o célebre Madoff), mas atingiu o sistema bancário em si mesmo. Paradoxalmente – pelo menos até agora – esta implosão no coração do sistema capitalista iria salvar o Capitalismo – este capitalismo-casino –, mobilizando todas as forças e capacidades do Sistema. E até fora dele... Talvez esteja aqui a

SOB A CRISE... EDUARDO LOURENÇO

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verdadeira novidade da Crise. Fora do sistema mas ligada com “souplesse” ao seu funcionamento, a imensa e “rica” China veio em auxílio do antigo “inimigo de classe”. Não só se afirmou como potência emergente mas como parceiro incontornável de uma “globalização” da economia que não se resume à omnipotência dos Estados Unidos.

Afinal, o drama desta Crise (ainda em curso), ao fim de um ano de pânico e, sobretudo, de justificada preocupação pelos seus efeitos em matéria de desemprego universal, foi ou é uma espécie de “comédia” de um género novo: uma colossal “sopa aos ricos” com a China no papel de Coluche. Quem diria que o país para quem há uns setenta anos o Ocidente se mobilizava para dar a cada chinês uma “malga de arroz” estaria um dia em condições de socorrer os Mandarins da História. Esperemos que o gesto e a lição não sejam esquecidos.

SOB A CRISE... EDUARDO LOURENÇO

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Uma crise inesperada, mas prevista…Guilherme d’Oliveira Martins

1. Pode dizer-se que a crise que atravessamos é inesperada, na sua inten-sidade e nas suas repercussões. No entanto, muito analistas vinham-na prevendo, ao longo de vários anos – sobretudo perante a persistência do endi-vidamento exponencial nas economias ocidentais e da especulação imobiliária, que teria de ter um desfecho. E se é certo que o optimismo de muitos previu uma aterragem suave, a verdade é que não foi isso que se passou. Houve uma descida violenta até ao solo, com consequências ainda hoje não totalmente detectadas. A crise financeira originou-se, como é sabido, com a acumulação de factores perversos, de que o subprime foi apenas um dos sintomas; o crédito barato, a avalanche consumista, o endividamento excessivo das famílias, a insustentabilidade da actividade financeira ligaram-se à falta de credibilidade contabilística e à ausência de mecanismos eficazes de alerta e de regulação. Considerou-se normal viver acima das possibilidades próprias, com recursos de que não se dispunha efectivamente, sempre na ideia de que o crescimento económico geraria meios suficientes para cobrir o endividamento crescente assumido em nome das gerações futuras. No entanto, o crescimento não se baseava na criação e na economia real, mas na hipervalorização de recursos patrimoniais, a partir da especulação que acompanhou o desenvolvimento da “bolha imobiliária”, como já acontecera, numa muito menor dimensão, com a “bolha informática”. O domínio absoluto das falsas expectativas e das ilusões ficou, aliás, patente no caso “Madoff”, que não pode confundir-se com um epifenómeno ou com um caso de insanidade mental. Tratou-se de um sintoma absolutamente coerente com o ambiente geral.

A situação norte-americana dos mercados financeiros desregulados e a má qualidade de um número significativo de fundos, em lugar de se confinar aos Estados Unidos, transmitiu-se ao mercado global, por força de uma ânsia geral de ganhos fáceis e rápidos, tornando-se uma crise muito profunda e de dimensões imprevisíveis. Deste modo, verificou-se que a mentalidade era semelhante, de um lado e do outro do Atlântico, havia portanto condições

“Precisamos de poucas ideias mas claras, de gente nova, de amor aos problemas concretos…”.

Carlo Rosselli

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favoráveis a que uma onda especulativa se desenvolvesse em busca de ganhos muito rápidos e simples de conquistar. E assim os fundos pouco recomendá-veis foram procurados e criados um pouco por toda a parte. Para surpresa de muitos, o subprime estava espalhado globalmente e não confinado ao território americano.

Na Europa, os mercados mais abertos e também mais vulneráveis à espe-culação tornaram-se rapidamente prisioneiros do efeito em cadeia da crise financeira norte-americana, que assim se tornou global e com fronteiras indefinidas, não afectando apenas algumas famílias menos previdentes, mas a generalidade do sector financeiro. O caso da Islândia é muito significativo, uma vez que se tratou de um Estado soberano a cair no logro das operações financeiras atractivas e de ganho aparentemente chorudo, fácil e imediato. E se o caso ocorreu com um Estado soberano por maioria de razão atingiu institui-ções financeiras obrigadas a apresentar resultados competitivos e a demonstrar uma grande eficácia de gestão junto dos accionistas e do público. No entanto, como os objectivos eram irrealistas o ilusionismo passou a ter de ser prati-cado, e todos se foram enganando e mentindo aos seus clientes, que estiveram confiantes até aos primeiros sinais de alarme. Daí ao descalabro foi um ápice.

O “crash” das Bolsas mundiais do Outono de 2008 veio a abrir um novo capítulo na situação internacional, uma vez que deixou de poder falar-se apenas na crise do subprime, para ter de se falar numa crise financeira global, indutora de uma recessão económica global, que se tem aproximado perigosamente da situ-ação depressiva dos anos trinta do século XX, apesar de hoje possuirmos muito mais informação do que então e de haver, pelo menos em teoria, instrumentos de coordenação que poderiam funcionar se houvesse uma vontade comum de acção e de regeneração. Como Paul Krugman tem afirmado, a única diferença em relação a 1930 é que hoje estamos mais informados, mas isso não quer dizer nada quanto a cometermos ou não os mesmos erros (ou outros piores). De facto, a incerteza e a desconfiança instalaram-se e não são boas conselheiras. Há sempre a tentação, muito forte, de cada um procurar tentar salvar-se a todo o custo e só por si. E sabemos bem que os nadadores salvadores não têm dúvidas de que, no acto de salvamento, a vítima que pretendem salvar é quem mais temem, uma vez que, nos seus movimentos desesperados, ataca o salvador, agindo na prática de modo suicida. Assim se passa também nas crises económicas por causa da tentação de cada um agir por si, o que só agrava a situação.

UMA CRISE INESPERADA, MAS PREVISTA... GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS

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2. A globalização, como fenómeno contemporâneo, acelerou a transmissão da doença, transformando-a em epidemia, ora na sua expressão recessiva, ora como manifestação deflacionista (fazendo lembrar as recentes dificuldades da economia japonesa, de onde esta ainda não conseguiu sair); no entanto, a crise financeira poderá constituir-se em oportunidade para combater os males estruturais que a situação actual comporta. Etimologicamente, a palavra crise significa em grego cruz ou encruzilhada. Foi Hipócrates quem aplicou o termo à medicina, para significar o momento decisivo em que o doente morre ou começa a vencer a enfermidade. Hoje, importa saber se esta crise se poderá constituir numa verdadeira oportunidade, o que obriga a tentar perceber se há vontade e determinação suficientes (nos Estados Unidos, na União Europeia, no Grupo dos 20 países mais ricos etc.) para romper com a inércia e agir em contraponto aos erros que foram cometidos e que levaram à ilusão e ao desastre actual.

O primado das “economias de casino” foi acompanhado de um progressivo aumento das desigualdades na distribuição de rendimentos e no agravamento das injustiças sociais, com repercussões na quebra da coesão social e na degra-dação do “capital social”, com inerente pressão migratória desregulada sobre as regiões mais desenvolvidas. Esse agravamento das desigualdades era referido como uma inevitabilidade da globalização. No entanto, o atraso e o subde-senvolvimento não podem continuar a ser considerados como fatalidades. Há que contrariá-los, criando condições para que haja coesão, desenvolvimento regional, confiança, partilha de responsabilidades, transparência e prestação de contas fiáveis e verdadeiras.

Os instrumentos disponíveis de auditoria, de regulação e de supervisão das actividades e instituições financeiras revelaram-se manifestamente insu-ficientes face à dimensão dos riscos assumidos e à ausência de uma prevenção adequada; por outro lado, como tem sido referido por Joseph Stiglitz as organizações económicas internacionais revelaram-se incapazes de aconse-lhar adequadamente os países em desenvolvimento no sentido da adopção de estratégias eficientes e justas. Tudo parecia assim correr sem sobressaltos, até ao momento em que alguns perceberam que havia alguma coisa de grave e de diferente: a economia mundial apresentava sinais de uma doença muito preocupante e de diagnóstico reservado.

A falta de verdade contabilística, induzida pela obsessão no incremento

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das taxas de crescimento na prática artificiais, teve como efeito a fragilização da credibilidade das instituições financeiras e económicas e da confiança dos sujeitos económicos e dos cidadãos, o que se tornou patente a partir do momento em que os sintomas da crise se começaram a manifestar. Os sinais já dados anteriormente no caso Enron, que levaram à aprovação pelo Congresso em 2002 da lei Sarbanes – Oxley, revelaram-se, desta vez, muito mais agra-vados, em virtude da generalização do fenómeno entretanto ocorrida. Afinal, os erros cometidos não eram excepcionais, havia quem fizesse deles uma prática quase natural.

A fragmentação nas respostas aos primeiros sinais de crise e a falta de capacidade para combater, de facto, as tentações proteccionistas têm arras-tado a situação, uma vez que persiste a desatenção relativamente aos temas da coordenação dos investimentos estruturantes e das políticas de protecção e criação de empregos, em especial no tocante à produtividade e à valori-zação do binómio educação / formação. Assim, assiste-se, na prática, à falta de coordenação de políticas económicas (de que a ausência clamorosa de um “governo económico” da União Europeia é exemplo), bem como à concreti-zação de políticas que tendem a proteger mais os desempregados em lugar de procurar salvaguardar o emprego e os postos de trabalho. Daí que haja o risco de adiar os problemas, sem resolvê-los verdadeiramente. Por outro lado, as políticas educativas tornam-se cada vez mais importantes e decisivas – desde a valorização das formações profissionais até ao combate ao insucesso escolar e ao abandono.

3. Com razão, volta a dar-se atenção na União Europeia à designada “Estratégia de Lisboa”, uma vez que esta pressupõe: a definição de objec-tivos exigentes de crescimento e de desenvolvimento, centrados na economia do conhecimento; a consideração da necessidade de ligar a competitividade à coesão económica e social; e a articulação entre melhor emprego, melhor educação, formação e inovação científica e tecnológica. Ora, nenhum destes objectivos pode realizar-se sem coordenação de políticas públicas e sem um combate ao proteccionismo. E basta lembrarmo-nos do que se passou nos anos trinta para percebermos que o agravamento da crise e a ineficácia dos instrumentos aplicados tiveram a ver com as tentações de concretização de políticas fragmentárias e dispersas. Eis por que razão se exige mais Europa política e económica na actual fase da situação internacional. A preservação da

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concorrência internacional e de um mercado global obriga a que haja coor-denação de políticas, governação económica europeia, regulação articulada e subsidiariedade a sério.

Ao contrário do que pensaram nos anos trinta Joseph Schumpeter (1883-1950) ou F. A. Hayek (1899-1992), com pressupostos diferentes, uma situação como então ou agora se viveu ou vive não se soluciona espontane-amente, por força das ondas de pânico e dos efeitos sociais depressivos com graves e imprevisíveis consequências. Schumpeter procurava levar às últimas consequência a ideia de “destruição criadora” e Hayek acreditava piamente na força regeneradora exclusiva do mercado, como ordem natural. No entanto, J. M. Keynes (1883-1946) e Richard Kahn (1905-1989) contrapuseram (como tem lembrado Paul Samuelson) que, numa economia com desemprego e forte quebra na produção, um dólar a mais de despesa pública em produtos de consumo, especialmente naqueles que os consumidores normalmente não compram seria mais útil do que um dólar gasto em aumentar a produção total. E os estudos realizados têm também concluído que (nestas circunstâncias, e só nelas, isto é, de desemprego e forte quebra no produto) a baixa de impostos é menos eficaz pelo simples facto de os beneficiários aforrarem uma parte substancial desse dinheiro, em especial nas épocas de incerteza…

Não se trata, porém, de esquecer que a despesa pública tem de ser espe-cialmente controlada, em particular no domínio do consumo, a fim de que não induza desperdício e não se traduza em endividamento prejudicial para as gerações futuras. Temos de entender que há um “fine tuning” que tem de ser assegurado e conseguido na concretização de tais providências, ou seja, um equilíbrio entre o gasto público e a capacidade auto-regeneradora do mercado. Se J. M. Keynes vivesse hoje certamente que nos diria duas coisas: uma, que em tempo de pleno emprego (no tempo dos “trinta gloriosos”), houve abusivas e falsas reivindicações do seu nome em vão, fazendo-se exacta-mente o contrário do que sempre preconizou; outra, que no momento actual haveria, sim, que pôr em prática uma política de gasto público (mais do que reduzir impostos) para reconstituir a procura efectiva global. E se se fala hoje sobretudo nas despesas militares dos anos trinta na Alemanha de Hitler, e nos Estados Unidos depois de 1940, não há razões económicas para dizer agora que a despesa em obras públicas pacíficas funcionaria de um modo distinto.

4. Como fica dito, a crise a que assistimos e cujas consequências sofremos

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deve-se fundamentalmente a que estamos a deixar-nos iludir por concep-ções simplificadoras e mercantilistas, que nada têm a ver com a preocupação fundamental, de que falam Carlo Rosselli (1897-1937) e Norberto Bobbio (1909-2004), que se reporta à valorização do “governo das coisas”, em lugar do “governo das pessoas”. O governo das coisas orienta a economia no sentido da satisfação das necessidades humanas, sem esquecer a legitimidade dos cida-dãos que consolida as instituições. É essa tradição socialista e liberal que nos conduz à linhagem das conquistas que se foram afirmando no sentido da afir-mação dos factores democráticos – a Magna Carta de 1215, o percurso que conduziu à Revolução inglesa de 1688-89, à revolução americana e à revolução francesa. O código genético da legitimidade democrática contemporânea tem essas origens. No entanto, essa base liberal foi enriquecida em diálogo com a industrialização, nas suas diferentes vagas, não podendo deixar de se referir a tomada de consciência no século XIX (1848, 1871) e depois no século XX (1919, 1932, 1945) da importância dos movimentos sociais, do sindica-lismo, do cooperativismo, até à crítica dos totalitarismos. Daí dever falar-se à esquerda num amplo movimento de realização progressiva da liberdade e da justiça entre as pessoas… E estas ideias de movimento e da sua compreensão são fundamentais, contra as ilusões do “Estado produtor colectivista”, das razões de Estado e das ditaduras do proletariado.

É muito curioso verificar que o “crash” de 2008 foi uma espécie de contra-ponto em relação à queda do muro de Berlim de 1989 obrigando a pôr em causa a tentação das simplificações ligadas ao “fim da história”. E esta comple-mentaridade pode fazer-se, uma vez que a eleição do Presidente Barack Obama abriu novas perspectivas de esperança e novas linhas de acção, que devem ser consideradas no plano económico. Afinal, também as economias capitalistas sofreram os efeitos nefastos da contradição entre as virtualidades da economia livre e a tentação de a instrumentalizar ao serviço de meros cálculos especu-lativos ou de natureza puramente financeira. No fundo, a economia livre e a sociedade aberta devem ser vistas a partir das suas virtualidades criadoras, o que exige funcionamento das economias reais e da sua capacidade inova-dora. Nesse sentido, Schumpeter deve ser ouvido, uma vez que as lições da actual crise obrigam a perceber-se que o investimento, além de reconstituir a procura efectiva global, tem, necessariamente, de ser reprodutivo, tem de criar emprego, deve respeitar a regra de ouro das Finanças Públicas (o défice

UMA CRISE INESPERADA, MAS PREVISTA... GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS

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público deve ser igual ou inferior ao investimento reprodutivo) e tem de favo-recer a inovação, a competitividade e a produtividade.

Eis por que razão a intervenção do Estado deve ser disciplinadora e regula-dora. O Estado não pode ser produtor, não deve substituir-se à livre iniciativa, mas tem de ser um catalizador das diferentes iniciativas. Daí a importância de se regressar ao planeamento democrático, que foi perigosamente abando-nado. Com medo (legítimo) da tentação planificadora imperativa, largou-se (ilegitimamente) o indispensável planeamento indicativo, e o consequente acompanhamento e avaliação dos resultados obtidos. E basta lembrarmo-nos do projecto europeu, cujo sucesso se deve à visão e à audácia de um plane-ador, Jean Monnet, que durante a guerra esteve ao lado de Roosevelt e depois dela lançou as bases do que hoje é a União Europeia. Mas não tenhamos ilusões, se prevalecer (como tem prevalecido) a navegação à vista, o projecto europeu poderá condenar-se por ausência de rumo e de reflexão. Oiça-se Jacques Delors a dizer-nos exactamente que falar hoje de governo económico da União Europeia é exigir mais política e mais políticas económicas coor-denadas, em torno dos interesses comuns. Daí que a esquerda moderna deva reencontrar um novo diálogo legitimador entre o Estado e a sociedade, entre as políticas públicas e o mercado – que recuse a centralização, mas que favo-reça a orientação participada e a partilha de responsabilidades.

5. O “crash” de 2008 revelou o fim da ilusão de que seria possível gerir a economia capitalista apenas a partir do funcionamento espontâneo do mercado. Afinal, foi o próprio mercado a tornar-se vítima desta ilusão, o feitiço virou-se contra o feiticeiro, uma vez que a concorrência tem de ser protegida, que a regulação financeira e a supervisão têm de ser mais exigentes, e que a inovação, a produtividade e a competitividade têm de ser incentivadas. Se em 1989 a palavra “socialismo” pareceu afectada na sua imagem, em 2008 a palavra “liberal” pode também ser posta aparentemente em causa. No entanto, se virmos bem do que se trata é de tirar lições da história, serenamente.

O que caiu em 1989 não foi a ideia de um “socialismo” orientado para as pessoas e preocupado em salvaguardar a liberdade pela solidariedade, no contexto de um movimento de realização progressiva da liberdade e da justiça entre os homens, mas sim a ideia de um Estado produtor, centralizado, buro-crático, injusto e ineficiente. O que foi posto em causa em 2008 não foi a ideia “liberal” das grandes revoluções democráticas, mas a tentação de tornar

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o mercado alfa e ómega da vida económica e de fazer do lucro imediato o único aguilhão da satisfação de necessidades. Daí a necessidade de voltarmos a reconstruir o compromisso entre o Estado e o mercado, de que fala Amartya Sen, de modo que, em vez do centralismo, da burocracia e da ineficiência, tenhamos articulação de esforços e incentivos eficientes para a inovação, para a produtividade e para a capacidade competitiva. Não se trata de repetir o “New Deal”, mas de assumir a mesma disponibilidade e a mesma atitude. E Barack Obama é uma esperança, exactamente como foi Roosevelt. Mas circunstâncias diferentes obrigam a respostas diversas. Não basta, por isso, pensar-se apenas no Estado, sob pena de estarmos a reconstruir um novo e pernicioso centralismo burocrático. Não basta realizar despesas públicas (ainda que a intervenção no sector financeiro seja fundamental, em nome da confiança e da concorrência), é indispensável, sim, usar o gasto público como uma alavanca fundamental, desde que haja controlo rigoroso e justificação para os resultados pretendidos e efectivamente alcançados.

6. Os défices públicos devem ser transitórios e têm de ser escrupulosa-mente justificados. E, de novo, temos de nos lembrar das lições da política norte-americana do “New Deal”. Nem tudo correu bem, mas houve sempre a preocupação de pilotar as realizações (recorde-se a história da TVA, Autoridade do Vale do Tennessee, criada em 18 de Maio de 1933), então o planeamento indicativo funcionou, com abandono dos projectos que não atingiam os objectivos desejados. O acompanhamento e a avaliação das medidas contra a crise são, assim, fundamentais, para que os cidadãos contribuintes saibam como está o seu dinheiro a ser utilizado no sentido de reorientar a economia no sentido da estabilidade e da confiança. O emprego, a evolução dos preços, o crescimento económico, o incentivo à inovação e à competi-tividade têm de ser objecto de um rigorosíssimo escrutínio. Os perigos da inflação e da deflação, o nível de emprego, a ligação entre qualificações e mercado de trabalho, o funcionamento dos estabilizadores automáticos, a sustentabilidade dos sistemas de segurança social, tudo isso tem de ser objecto de adequado acompanhamento, no sentido da estabilização conjuntural e da evolução estrutural.

E se falámos da protecção da concorrência (através do aperfeiçoamento das respectivas entidades reguladoras), devemos ainda referir a prevenção da corrupção e o combate às mais diversas formas de competição ilegítima

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por força do efeito perverso dos “paraísos fiscais” (offshores), que criam um sistema global grandemente assimétrico, incentivador de um falsa liberdade económica que se liga à corrupção e ao crime internacional, sob a capa de livre cambismo e do que Stiglitz tem designado como “fundamentalismo de mercado”.

7. Onde nos conduzirá a situação actual? Que respostas se nos exigem? O ciclo de especulação, para usar a expressão de Vilfredo Pareto (1848-1923), tornou-se insustentável. As “falhas de mercado” e as “falhas de Estado” asso-ciaram-se para produzir um grave crise financeira da qual apenas poderemos sair com políticas públicas coordenadas que ponham em primeiro lugar o desenvolvimento humano, através da valorização das economias reais e do favorecimento do investimento reprodutivo, apto a criar emprego. Daí a importância da justiça distributiva e da coesão económica e social. O investi-mento público deverá ser considerado e incentivado, desde que devidamente planeado e avaliado. O endividamento deverá crescer moderadamente e sob controlo, para evitar as tentações discricionárias e proteccionistas, que espreitam treimosamente em conjunturas como aquela que atravessamos.

Devemos desconfiar de todas as simplificações. A solução para a crise actual não será encontrada num só país (daí a importância de fazer nascer o governo económico da União Europeia e de realizar a Estratégia de Lisboa) nem apenas a partir de uma intervenção maciça do Estado na economia. A intervenção pública torna-se necessária transitoriamente, desde que limitada e controlada, sabendo-se exactamente o que se quer e articulando cuidadosa-mente meios e objectivos. A confiança tem de ser restabelecida e a regulação financeira tem de ser aperfeiçoada. Do que se trata, no fundo, é de cuidar da eficiência e da equidade, da liberdade e da justiça, em vez da lógica do casino que está nos antípodas de um desenvolvimento humano. Em vez de protec-cionismo, precisamos de coordenação. Em lugar do fundamentalismo do mercado, precisamos de uma aliança entre o Estado e o mercado. Em vez da desordem dos paraísos fiscais, que favorecem a corrupção, o branqueamento de capitais e o crime em geral, deveremos ter uma concorrência justa e uma globalização humana, onde não prevaleça a “lei da selva”…

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A primeira grande crise do século e o eclipse do liberalismoPaulo Pedroso

A crise económica mundial que foi desencadeada pela espiral especulativa imobiliária americana é da mesma gravidade que a de 1929. Os indicadores económicos à escala global - a capitalização bolsista; a produção industrial; o comércio

internacional1 - estão a afundar-se a um ritmo paralelo. As diferenças entre uma e outra crise radicam na evolução das instituições

ao longo do século XX e do conhecimento acumulado sobre a gestão de crises económicas. De facto, o moderno Estado de bem-estar aperfeiçoou-se após a Grande Depressão e as políticas económicas keynesianas desenvolveram-se significativamente, os governos procuraram agir rápido e os bancos centrais estão a reagir mais depressa.

Crise de regulação e não crise moral

O diagnóstico sobre a origem da crise há-de influenciar as terapias a identificar. Se é dominante a perspectiva segundo a qual esta é uma crise originada pela desregulação dos mercados, há quem contraponha que ela tem uma origem ética.

Nesta última visão seria a ganância dos especuladores e a ruptura de um contrato moral que os ligasse ao interesse global que estaria em causa. Quem pensa assim sobrevaloriza um indicador, a meu ver lateral, mas com existência real nos últimos anos, o da tendência para que os salários dos executivos subissem de modo completamente independente das perfor-mances reais das suas empresas e sem qualquer relação com o progresso das condições de vida dos trabalhadores. Isto é, sem relação nem com a saúde económica da empresa nem com a sua coesão.

1 Ver o excelente artigo (em permanente actualização) “A tale of two depressions”, de Barry Eichengreen e Kevin H. O’Rourke em http://www.voxeu.org/index.php?q=node/3421.

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A constatação de base é verdadeira. A OIT publicou em Janeiro de 2009 o seu relatório anual sobre o mundo do trabalho referente a 20082. Nele é analisada a desigualdade de rendimentos dentro das 15 maiores empresas americanas.

Em vésperas da grande crise, o fosso entre os rendimentos de dirigentes e trabalhadores não parou de crescer. Entre 2003 e 2007, os salários dos CEO depois de ajustados à inflação, ou seja os salários reais, cresceram 9,7% ao ano enquanto os da média dos executivos crescia 3,5% e os da média dos trabalhadores apenas 0,7%. Em consequência o rácio entre os salários dos CEO e dos trabalhadores cresceu significativamente, de 369 para 521.

A quebra de coesão que estes dados mostram é uma das características da evolução das disparidades salariais e, consequentemente, das dispari-dades de rendimento nas economias avançadas. Ela ajuda, por outro lado, a perceber porque os executivos de várias das empresas falidas em Wall Street, que sobrevivem agora com o apoio do Estado, não acharam neces-sário inibir-se de momentos de convívio faustosos nem pensam diminuir os salários milionários que auferem ou resistem a perder os bónus milio-nários que estão associados à sua remuneração.

Há quem defenda que nada existe de incorrecto nesta tendência, dado que os salários dos executivos devem ser equiparados aos das estrelas do futebol e que a elite dos gestores é tão difícil de recrutar e tem que ter elevados níveis de desempenho que justificam essas políticas remunera-tórias. Nessa visão, ainda, as assimetrias salariais entre gestores de topo e trabalhadores nada tem de imoral ou errado, porque se prenderiam com o contributo de cada um para a formação de valor na empresa. Não partilho, de todo, de tal visão. Mas daí até ver na ganância dos gestores a origem da crise vai um passo que não dou. Não foi a obsessão salarial dos CEO que lançou as empresas financeiras na crise, foi a evolução especulativa dos mecanismos das transacções financeiras.

No caso concreto, tudo começou com a insustentablidade da valorização do mercado imobiliário americano que, quando começou a descer a uma escala generalizada, arrastou consigo a falência de sociedades hipotecárias,

2 ILO, World of work Report 2008, (http://www.ilo.org/public/english/bureau/inst/download/world08.pdf)

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bem como a desvalorização de produtos financeiros derivados, deixou à vista a fragilidade dos sistemas de supervisão financeira e provocou uma falta de liquidez avassaladora no mercado do crédito.

As falhas éticas dos gestores existem mas não apenas não foram elas que geraram esses mecanismos, também não se pode ver o capitalismo como um sistema económico que tenha sido gerido na contemporaneidade por sistemas de valores ou vinculações morais. Talvez seja possível um capita-lismo ético, mas esse não será seguramente o que existiu no século XX nos EUA. Pelo contrário, as falhas que devemos buscar estão no domínio da regulação da actividade económica. Alan Greenspan, um dos autores da desregulação do sistema financeiro que provocou o que o próprio chamou o “tsunami do crédito” já admitiu que julgava que a acção das empresas orientada pelos seus próprios interesses evitaria este tipo de crise e que hoje se encontra, face a essa asserção em estado de “descrença chocada”. De facto, a crise não nasceu no domínio da moral, mas na falta de domínio dos mecanismos da economia.

As três vagas

A crise económica global terá, provavelmente, três vagas. A primeira arrasou sectores significativos do sector financeiro especulativo que a gerou. A falta de liquidez no sistema financeiro precipitou a contracção do comércio internacional. Segundo a estimativa do Banco Mundial, a falta de crédito ao investimento será responsável por 15 a 20% da descida do comércio internacional desde a segunda metade de 2008.

A segunda está a sentir-se no mercado dos produtos devido à contracção da procura a nível mundial, que afecta o comércio internacional. Mas a terceira onda da crise, a crise social das famílias afectadas pelo desemprego e, consequentemente, a prazo mais ou menos longo pela pobreza, também se aproxima.

Se as duas anteriores não forem eficazmente travadas, pode atingir proporções difíceis de controlar que se reflectem tragicamente na terceira.

Se, para esta última, ainda não é tempo de anunciar planos com a dimensão dos que vêm sendo apresentamos para “salvar” o sector financeiro e a grande indústria, é tempo de os ter prontos para, se e quando se impuserem.

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Se os EUA foram os principais atingidos pela primeira onda da crise mundial, o colapso do sistema financeiro especulativo, a Alemanha e Japão parecem ser protagonistas da segunda, a da retracção dos mercados, dada a sua dependência das exportações industriais: em Dezembro de 2008 as exportações japonesas caíram 26,7% em relação ao mês homólogo e o governo alemão prevê uma baixa de 18% nas exportações em 20093.

Vendo bem, nem a Alemanha nem o Japão foram atingidos significati-vamente pela crise do imobiliário ou pelos activos tóxicos. Mas são atingidos fortemente pela contracção do comércio internacional. O caso do Japão é, a esse respeito, paradigmático. Até à crise, não apenas exportava direc-tamente para os EUA e a Europa como também beneficiava – tal como outros países industrializados asiáticos - de um esquema de “comércio triangular”, exportando componentes avançados para países como a China, a Tailândia ou o Vietname que os montavam e exportavam os produtos finais para os EUA (e Europa) em troca de divisas. O efeito combinado da dupla retracção das exportações implicou uma recessão particularmente violenta: no quarto trimestre de 2008 a queda do PIB japonês foi o dobro da americana4.

A crise transferiu-se do sistema financeiro para a economia real. A retracção dos mercados mundiais está a afectar os grandes espaços económicos. A variação homóloga do PIB é, desde o início da crise, extremamente negativa em todas as economias desenvolvidas.

Para Portugal, pequena economia aberta e dependente do sector exportador, no qual temos baseado o nosso crescimento, esta conjuntura é particularmente difícil. Se é certo que estamos a evoluir menos mal que o nosso motor econó-mico, a Alemanha e que o conjunto da área Euro, não é menos certo que estamos a sofrer esta recessão após vários anos de fraco crescimento.

Os indicadores sociais, se nada acontecer, reagirão retardada mas fortemente. Aproxima-se o momento de, mais do que falar de crise, se

3 Cf., para a Alemanha, artigo no Le Figaro de 30 de Abril (http://www.lefigaro.fr/economie/2009/04/30/04001-20090430ARTFIG00337-l-allemagne-paie-sa-dependance-a-l-export-.php) e para o Japão, artigo da Reuters (http://www.reuters.com/article/businessNews/idUSTRE4B70ME20081222?feedType=RSS&feedName=businessNews).

4 Kyoji Fukao e Tangjun Yuan, “Why is Japan so heavily affected by the global economic crisis? An analysis based on the Asian international input-output tables” (http://www.voxeu.org/index.php?q=node/3637)

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assumirem políticas mais firmes quanto às suas causas e consequências.Contudo, os planos de acção conhecidos até hoje têm sido alvo de críticas

fortes. Se o famoso bailout do sistema financeiro americano concebido por H. Paulson foi recebido com frieza, como um processo de compra de tempo para que Barack Obama, se fosse eleito, pudesse fazer algo de consistente na superação da crise financeira5, o plano que este fez aprovar foi por sua vez catalogado como insuficiente, porque dotado de meios inferiores aos necessários e apostando parcialmente em reduções fiscais pouco eficazes. Segundo Paul Krugman, Prémio Nobel da Economia, não conseguirá atingir mais do que um terço dos objectivos fixados6:

Na Europa, as atenções têm estado concentradas em evitar a falência de grandes instituições bancárias e em manter o sistema de crédito a funcionar minimamente, por via da concessão de garantias de Estado ao endividamento bancário e do aumento dos níveis de garantia de depósitos aos cidadãos.

A Europa ocidental apenas foi lateralmente afectada pela crise do sistema financeiro americano, de que sofreu os efeitos das consequências (falta de liquidez no crédito), mais do que das causas. Mas a exposição do sistema financeiro europeu à Europa Central e Oriental poderá vir a desempenhar para a Europa Ocidental o papel que o subprime teve no desencadeamento da crise financeira dos EUA, agravando a crise. Os bancos europeus têm mais de 1,5 triliões de dólares investidos no Leste e a desaceleração dos fluxos financeiros, com a contracção do investimento estrangeiro, a desaceleração da exportação dos países do Leste para os mercados ocidentais e a instabi-lidade monetária nesses países, pode desencadear uma segunda onda de choque da primeira vaga da crise. A crise do imobiliário na Hungria, em que a maior parte do crédito hipotecário foi concedido em Francos suíços e em que a degradação da situação económica levou a desvalorização forte da moeda local, pode demonstrar como esse efeito se produz. Basicamente, a vulnerabilidade do Leste europeu à crise assenta numa mistura explo-siva de desvalorização da propriedade (como nos EUA), interrupção do

5 Ver Paul Krugman “Bailout narratives” (http://krugman.blogs.nytimes.com/2008/10/01/bailout-narratives/) e James Galbraith (http://www.prospect.org/cs/articles?article=how_much_will_it_cost_and_will_it_come_soon_enough)

6 Paul Krugman, “The Obama gap” http://www.nytimes.com/2009/01/09/opinion/09krugman.html)

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investimento estrangeiro, arrefecimento do crescimento económico e desvalorização da moeda. Este cenário, que está a ocorrer de forma mode-rada, se vier a agravar-se, provocará perdas significativas por parte dos bancos europeus dependentes desses mercados. A ocorrência de grandes perdas nesses mercados pode provocar uma nova vaga de crise de crédito e de recessão, em particular na Áustria, na Suécia, na Bélgica, na Alemanha e na Itália, cujos bancos predominam nos mercados locais.

A intensidade e a persistência da crise económica reflectir-se-á, por sua vez, ainda que de forma diferida, no agravamento do desemprego. No passado, a crise demorava mais a chegar ao desemprego, dada a rigidez do mercado de trabalho. Do mesmo modo, uma vez ocorrido o desemprego, a sua contracção era mais difícil. Após as profundas reformas do mercado de trabalho realizadas por diversos países europeus, o contágio da crise para o desemprego é, naturalmente, mais rápido. A desregulação foi de par com o desenvolvimento do crédito às famílias como forma de garantir os níveis de bem-estar da classe média e a suavização dos “picos” de incerteza originados, por exemplo, por situações de desemprego.

O crédito às classes médias permitia suavizar a transição entre empregos e atenuar os efeitos do desemprego no bem-estar das famílias. Mas, na crise actual, essa desregulação tem efeitos sobre as famílias pelas duas vias. Por um lado, é mais fácil perder o emprego quando a economia entra em recessão, por outro lado, tornou-se mais difícil para as famílias obter crédito, dadas as dificuldades do sistema de crédito. Ou seja, os trabalhadores estão mais expostos à contracção da economia e o seu consumo está menos protegido pelas dificuldades do sistema financeiro. Assim a actual crise manifesta-se também sob a forma de crise de regulação dos mercados de trabalho7, quer porque aumenta a vulnerabilidade ao desemprego quer, talvez sobre-tudo, porque o mecanismo compensatório do crédito às famílias não está a funcionar. Mais uma vez, esta dimensão tem efeitos cumulativos com as ante-riores, porque provoca igualmente a propensão à contracção do consumo.

7 Giuseppe Bertola, “Labour markets on the verge of a regulation crisis” (http://www.voxeu.org/index.php?q=node/3604)

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O eclipse liberal

O furacão que irradiou de Wall Street não está a provocar apenas uma crise económica e social. Parece que produziu também um eclipse teórico dos que defendem a desregulação dos mercados. Ainda há poucos meses não faltava quem esgrimisse argumentos demonstrando o carácter parasitário do Estado na economia e queixando-se de que a carga fiscal produz perda de eficiência económica. Esperar-se-ia de quem pensa neste registo que nos fizesse chegar uma doutrina consistente sobre como sair desta crise pelo lado liberal, ou seja com intervenção mínima do Estado e esperando pelos dinamismos do mercado. Ora, parece que o consenso ou pelo menos o pensamento hegemónico neste momento vai por outro lado. Fundamenta-se na intervenção de massa do Estado quer potenciando o seu papel de regulador dos mercados financeiros, quer promovendo injec-ções de capital em empresas privadas, quer nacionalizando-as. Isto é, todos pedem a solução para os problemas gerados pela gestão irresponsável do sector financeiro ao Estado.

A mim, que sou um defensor da globalização com regulação forte, parece-me justo que se peça isso. Afinal, se o Estado não intervier, não há forma de que a irresponsabilidade dos tubarões de Wall Street que criaram para si próprios fortunas reais e para a s suas empresas opulências virtuais não se torne numa crise sistémica pela contracção da procura de bens e serviços.

O Estado deve tomar as medidas possíveis para que se contenha o afun-damento das bolsas e para que os bancos voltem a emprestar dinheiro uns aos outros, aos investidores e aos cidadãos a um preço comportável, de modo a que o investimento continue e o consumo se possa manter. Para isso terá que apoiar uns quantos empresários e empresas que não mere-ciam ser apoiados. Mas, como sempre, a intervenção no sentido de que os problemas se atenuem, não é moral, busca uma maior eficiência social e todos ganhamos em que a economia saia da crise.

Curioso é que aqueles que demonizam tão facilmente a irresponsabili-dade dos pobres corram tão céleres a defender os apoios à irresponsabilidade dos especuladores.

Curioso é que os que defendem tão facilmente o Estado mínimo quando se trata da saúde dos cidadãos corram tão decididos a apoiar a acção do

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Estado quando se trata de curar as doenças das empresas e em particular das que inflingiram a si próprias os golpes de que padecem. Esta crise vai provavelmente mudar o desenho institucional do sistema financeiro e talvez as instituições reguladoras do capitalismo global. Mas isso implica muito mais que as medidas cirúrgicas que estão a ser tomadas. Tal como todos os grandes males, implica grandes remédios e não pequenos remendos. Estou convencido que chegou a hora de nos voltarmos de novo para as instâncias de regulação da economia global - as instituições do sistema da ONU, os organismos supranacionais - e lhes pedir que produzam agora respostas novas. Mas eu sou um regulacionista. Vejo nesta crise uma opor-tunidade de reforçar os mecanismos de regulação da globalização que os neoliberais ridicularizaram nas discussões e obstaculizaram nas decisões. Eles, pergunto-me, porque não se defendem?

Respostas necessárias

Face à dimensão da crise, são necessárias novas respostas. Para já, estamos a conseguir não repetir erros de gestão da crise de 1929. O FMI interveio para estabilizar os países em maior risco, suplementado por algumas potências económicas em alguns casos. Os bancos centrais desceram drasticamente as taxas de juro para devolver a liquidez aos mercados. As nações mais poderosas concertaram acções para a gestão da crise. Contudo, até ao momento, para além das políticas nacionais e do alargamento do G-7 para o G-20,com o que isso significa de maior multilateralismo, nenhum redesenho institucional ocorreu e a única consequência prática para a regulação à escala global que resultou da Cimeira do G-20 em Londres, em Abril, foi o reforço de meios e a discussão sobre o alargamento do mandato do FMI, a instituição global de crédito de última oportunidade de que dispomos.

As medidas já tomadas conseguiram conter a crise e iniciar o que se tem chamado a recuperação em L, ou seja, a interrupção da tendência para a queda abrupta, mas não produziram sinais de inversão de tendências.

Em particular, três assuntos-chave continuam por enfrentar: a coordenação das políticas fiscais, as medidas de recuperação da solidez do sistema bancário e o mandato a conferir às instituições financeiras

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internacionais8. Ou seja, uma das maiores fragilidades que permanecem deriva de que a crise global continua a não ser enfrentada por mecanismos globais de regulação.

Muitos países, contudo, estão a adoptar medidas anticrise que obedecem a um padrão semelhante e que investem na intervenção do Estado e no aper-feiçoamento da regulação. Não é necessário recorrer a académicos radicais ou a partidos de esquerda para perceber que há necessidade de produzir alte-rações substanciais de política se queremos conter a crise no tempo e os seus efeitos negativos.

O staff do FMI produziu em finais de 2008 uma análise orçamental da política necessária para fazer face à crise num estado precoce bastante eluci-dativa9. Do estudo de cinco grandes crises financeiras do século XX – as crises americanas dos anos trinta e dos anos oitenta, a dos países nórdicos, a coreana e a japonesa, – extraíram quatro conclusões que podem ser de grande utilidade neste momento:

a) a resolução da crise financeira é uma pré-condição para o regresso ao crescimento económico sustentado e o adiamento da intervenção nesse domínio conduz à degradação das condições macroeconómicas, resultando por sua vez em maiores custos fiscais para contrariar os seus efeitos;b) a resolução da crise financeira precedeu sempre a resolução da crise macroeconómica;c) os estímulos fiscais são úteis sempre que a crise financeira se propaga para as empresas e as famílias, degradando a sua situação económica;d) a resposta fiscal pode ter efeitos significativos de estímulo da procura agregada se for adaptada ao formato da crise.

As recomendações do staff do FMI, baseadas nestas conclusões, conduzem a medidas cuja linha-força é o uso dos recursos públicos para que a engre-nagem da economia volte a funcionar. Assim, propõem a aceleração dos investimentos públicos, o estímulo ao consumo pela via da protecção às

8 Charles Wyplosz, “The outcome of the G20 Summit: A sceptic’s view” (http://www.voxeu.org/index.php?q=node/53)

9 Antonio Spilimbergo, Steven Symansky, Olivier Blanchard e Carlo Cottarelli, “Fiscal policy for the crisis” http://www.imf.org/external/pubs/ft/spn/2008/spn0801.pdf

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famílias e o aumento do crédito às empresas.No domínio do investimento público, recomendam aos governos

que não cortem programas de despesa pública por falta de recursos e que retomem os projectos de investimento atrasados, interrompidos ou rejei-tados por falta de financiamento ou considerações macroeconómicas, bem como adoptem alguns projectos de elevado perfil, com justificação de longo prazo e fortes externalidades. Por outro lado, dada a existência de maior risco para as empresas na conjuntura, sugerem que o Estado aumente a sua participação nas parcerias público-privado.

Recomendam também que os governos estimulem o consumo pela via da protecção dos rendimentos dos grupos mais pressionados e vulnerá-veis ao desemprego e aos limites ao crédito. Assim, a melhoria dos apoios às famílias em conjuntura de crise deveria focalizar-se em melhorias de subsídios de desemprego e no crescimento das transferências sociais, em particular das que beneficiam os segmentos mais pobres da população.

Os governos deveriam, ainda, proteger as empresas viáveis dos disfun-cionamentos do sistema de crédito, por exemplo pela garantia de créditos, corrigindo o mercado.

Este conjunto de estímulos parecer-me-ia passível de grande consen-sualidade, embora o caso português não o demonstre, dada a sobreposição que a direita democrática faz da retórica conjuntural a uma visão estrutural de futuro do país.

Menos consensual será a proposta de Dani Rodrik de que se racio-cine em relação aos trabalhadores da mesma forma que se faz em relação às empresas e aos agentes financeiros, dando-lhes confiança. Com efeito, numa era de incerteza e de crise social em que os mecanismos tradicionais de protecção dos trabalhadores foram flexibilizados, importa ser capaz de encontrar novos instrumentos que lhes confiram segurança em contexto de crise. A sua proposta de criar incentivos fiscais às empresas ligados à evolução do volume de emprego é um passo nesse sentido, garantindo que o Estado apoia a preocupação com a criação de emprego sem diminuir a capacidade de gestão do pessoal pelas empresas. Se houver trabalhadores ou unidades não eficientes elas podem ser substituídas por outras mais eficientes, mas a empresa deveria ser incentivada a manter ou aumentar o emprego e os salários. Uma empresa que diminua o número de efec-

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tivos ficaria sem benefícios fiscais, a que os mantivesse ou aumentasse teria incentivos progressivamente superiores. Na sua opinião este incentivo não geraria ineficiência económica porque permitiria às empresas despedir os trabalhadores não eficientes, desde que estes fossem substituídos, apenas diminuiria a propensão à redução do emprego como estratégia adaptativa face à crise10.

E Portugal?

A crise não chegou a Portugal imediatamente. O sistema financeiro português tinha quase nula exposição aos efeitos da crise imobiliária americana e a primeira vaga da crise não nos atingiu directamente. É certo que ainda podemos vir a ser afectados pela segunda onda de choque dessa vaga, dada a exposição ao leste europeu, mas ela é circunscrita. É ainda mais certo que existe a percepção de que a crise do sistema financeiro nos atingiu dada a mediatização da situação de dois pequenos bancos – o BPN e o BPP – mas apenas muito marginalmente estes casos repercutem a dinâ-mica mundial de crise, antes se lhe sobrepondo factores que radicam nas próprias instituições.

A partir do momento em que a crise começou a espalhar-se pelos mercados mundiais dos produtos, Portugal como pequena economia aberta começou a sentir violentamente os seus efeitos. A contracção do PIB português fez-se sentir de imediato e as previsões internacionais vão no sentido de que este acompanhe a recessão mundial e o país retome o crescimento apenas quando a procura mundial recuperar e a um ritmo ligeiramente inferior ao da zona Euro. Acresce que esta recessão surge após vários anos de crescimento modesto, o que torna a situação particu-larmente delicada. Desde o início de 2009, a conjugação da quebra nas receitas fiscais, em particular no IVA, com a subida nas despesas sociais, em particular no subsídio de desemprego, não deixa margem para dúvidas. A crise económica está a ter efeitos sociais que exigem monitorização cuidada nos próximos meses e que desafiam o Governo a continuar as medidas que

10 Dani Rodrik, “A proposal: employment-linked tax incentives” (http://rodrik.typepad.com/dani_rodriks_weblog/2008/12/a-proposal-employment-linked-tax-incentives-1.html)

A PRIMEIRA GRANDE CRISE DO SÉCULO E O ECLIPSE DO LIBERALISMO PAULO PEDROSO

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combinem estímulo fiscal, apoio social e apoio às empresas. Não há razões para optimismos, dada a natureza da nossa inserção geoe-

conómica e a evolução previsível da situação dos nossos principais parceiros comerciais, que tenderão a continuar a penalizar as exportações.

Se a primeira vaga da crise mundial nos atingiu lateralmente, tudo aponta para que a segunda nos atinja fortemente. O que aumentará as condições para que se desencadeiem os mecanismos da crise social.

O modelo social português foi construído para situações com baixo nível de desemprego e sofrerá um teste sério se tiver que adaptar-se a um cresci-mento do desemprego intenso e à permanência por um período prolongado de uma taxa de desemprego elevada. Até agora os dados demonstram que o país tem conseguido conter esse crescimento, que tem evoluído no último ano em linha com a média da área euro. Mas é possível que estejamos ainda num estádio inicial de pressão da contracção do comércio internacional sobre as empresas e estas não tenham esgotado ainda a margem de manobra para conterem os seus efeitos. Mas, se a recessão internacional se prolongar mais alguns trimestres, haverá forte pressão para um aumento muito signi-ficativo do desemprego.

Vamos ver como o desemprego português vai resistir à crise. Até onde as estatísticas já vão, Portugal não seguiu a tendência de descontrolo dos nossos vizinhos espanhóis mas isso não é garantia de que não venha a haver um agravamento sensível da situação. Seguramente, as medidas anunciadas no início de 2009 eram necessárias. É provável que outras se imponham num prazo relativamente curto.

O Governo deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance – na política orçamental e nas políticas de incentivo à economia - para evitar que a taxa de desemprego chegue aos 10%. Por outro lado, tem que continuar a inten-sificar as políticas activas de emprego e as medidas de protecção social, de modo a que o aumento da vulnerabilidade ao desemprego não se transforme em agravamento substancial do risco de pobreza e a que os mais desfavore-cidos também possam ser alvo de atenção nas medidas de combate à crise.

Tais medidas aumentarão a pressão sobre o défice e o endividamento público. Mas nesta conjuntura o controlo do défice é um objectivo subor-dinado da prevenção e mitigação da crise social. É de novo tempo de buscar respostas no pensamento divergente.

A PRIMEIRA GRANDE CRISE DO SÉCULO E O ECLIPSE DO LIBERALISMO

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O festim está suspensoJoaquim Jorge Veiguinha

Em 11 de Julho de 2005, a revista norte-americana BussinessWeek publicava um artigo significativamente intitulado Demasiado dinheiro (“Too much money”). Este tinha como subtítulo um aviso à nave-gação: “Uma superabundância global de poupança é boa para o

crescimento – mas os riscos estão a aumentar”. Os Estados Unidos, exemplos paradigmáticos de endividamento das famílias e do Estado, pertenciam, parado-xalmente, a esta zona da “global saving glut”. Segundo a BusinessWeek, as empresas norte-americanas tinham acumulado 542 mil milhões de dólares no primeiro trimestre de 2005, o que em termos absolutos representava um aumento de quase 100 por cento em dois anos. Mas o dado mais significativo era que a taxa de poupança nacional tinha aumentado de 12,8 para 14,7 por cento. Em 9 de Julho do mesmo ano, o semanário britânico The Economist apresentava um artigo intitulado A superabundância de poupança das empresas (“The corporate savings gluts”). Citando um estudo da consultora J. P. Morgan, esta revista liberal anunciava que o aumento total das poupanças líquidas das empresas dos países desenvol-vidos tinha atingido um trilião dólares entre 2001 e 2004, o que representava 3 por cento do PIB mundial e o quíntuplo do aumento das poupanças líquidas das economias emergentes no mesmo período.

Apesar da crise da Bolsa de valores tecnológicos de 2001, a característica central dos seis primeiros anos do terceiro milénio foi a de um aumento exponencial das taxas de lucro empresarial a nível mundial, particular-mente nos países mais desenvolvidos. O excesso de liquidez, referido pelas duas prestigiadas publicações do mundo anglo-saxónico, era, porém, um sintoma de sobreacumulação de capital, ou seja, em termos keynesianos, uma situação em que há um desequilíbrio entre a poupança e o investimento produtivo, o que constitui um índice de iminente crise de superprodução. Apesar dos comentários optimistas dos economistas neoliberais, de que se destaca Kenneth S. Rogoff para quem “a probabilidade de um cenário catastrófico desapareceu”, os autores do artigo da BusinessWeek alertavam para

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o facto de que “o dinheiro barato, em vez de se dirigir para os investimentos produtivos, poderia sobrestimular a despesa e provocar um aumento muito grande dos activos mobiliários, preparando o cenário para uma crise futura”1. Não restam dúvidas de que estes, embora não tivessem previsto que a crise eclodiria no mercado imobiliário, reflectiam, ao contrário de Rogoff, uma preocupação que acabaria por lhes dar razão. No entanto, poucos lhes deram ouvidos, aderindo à tese do economista do FMI. Nestes anos de aparentes “vacas gordas” as grandes empresas estavam pouco preo-cupadas em canalizar o excesso de poupanças para o investimento, pondo em causa os princípios dos manuais académicos de macroeconomia de que numa situação deste tipo existe muito singelamente uma capacidade de autofinanciamento, cujo destino “natural” é inevitavelmente o aumento da capacidade produtiva. Nada de mais falso! De facto, o excesso de liquidez auto-alimentava-se numa espiral ascendente que parecia não ter fim. Prova disso, era a prática corrente das sociedades cotadas em Bolsa readquirirem as próprias acções com o intuito de aumentarem artificialmente o seu valor. Nem a própria França, exemplo e paradigma de um capitalismo mais “social” do que o norte-americano e britânico, escapava a esta onda especu-lativa. Citando estatísticas da Autoridade dos Mercados Financeiros (AMF), o diário Le Monde de 31 de Dezembro de 2004 considerava que a reaquisição das acções da parte das grandes sociedades anónimas tinha atingido mais de 56 mil milhões de euros entre 2000 e 2003. Se a este valor juntarmos os 3 mil milhões da aplicação da liquidez na compra das próprias acções das empresas inscritas no índice CAC 40 da Bolsa de Paris, o valor total destas transacções especulativas ultrapassou a capitalização bolsista de duas das maiores empresas francesas, a France Télécom (58,7 mil milhões de euros) e a BNP Paribas (48,5 mil milhões).

O FESTIM ESTÁ SUSPENSO JOAQUIM JORGE VEIGUINHA

1 Esta observação é correcta. De facto, apesar do aumento das poupanças líquidas das empresas norte-ameri-canas, que são contabilizadas anualmente, terem aumentado neste período, o sector privado - famílias, empresas não financeiras e instituições financeiras - regista uma dívida acumulada que não tem parado de crescer desde os anos 80. Assim, em 2008, a dívida das empresas e das famílias norte-americanas atingia já 190% do PIB, enquanto a das instituições financeiras ascendia a cerca de 300% do PIB (Fonte: The Economist, 14.02.09). A tendência de fundo é clara: o modelo baseado no endividamento crescente do sector privado, e também do governo federal norte-americano da era de George W. Bush, era insustentável, e foi uma das causas da actual crise.

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O aumento da taxa média de lucro

O fenómeno do aumento das taxas de lucro em termos médios foi a característica central da expansão do capitalismo na era da globalização. Não se pode dizer que fosse um fenómeno inédito. Constitui, porém, a tendência dominante do período, resultante de um processo que combinou um conjunto de transformações na esfera produtiva e altera-ções na redistribuição do produto e da riqueza sociais que favoreceram o capital em detrimento do trabalho assalariado, o grande perdedor no confronto pela repartição do excedente social nas décadas de 90 do século passado e na primeira década do terceiro milénio. Este processo é acompanhado, desde os inícios dos anos 90 do século XX, pela hiper-trofia da esfera financeira, geradora de sucessivas crises que culminaram, em 2007, com a crise das hipotecas imobiliárias de alto risco (subprime), uma crise financeira generalizada que já abrange toda a economia e que pode considerar-se, sem exagero, a primeira crise global do capitalismo planetário de consequências imprevisíveis.

O aumento da taxa média de lucro é o ponto de partida da hipertrofia da esfera financeira ou do que é, por vezes, designado por financeirização da economia, alimentada pelo excesso de liquidez das grandes corpo-rações empresariais que desabou como um castelo de cartas com a crise das subprime. É impossível compreender este processo sem analisarmos as causas que estiveram na origem do aumento da taxa média de lucro que constitui o fundamento da acumulação de capital à escala mundial. Por outro lado, o modo como a hipertrofia da esfera financeira intervém no processo de acumulação de capital, definindo as suas linhas de orien-tação, é outro dos aspectos do problema que irá ampliar as desproporções e as distorções do capitalismo globalizado e conduzir a crises financeiras que podem converter-se em crises globais através de uma espiral de endi-vidamento que favorece a formação de enormes bolhas alimentadas pela especulação financeira. Estas rebentam inesperadamente em diversos sites do capitalismo globalizado, causando estragos de dimensões gigantescas quando eclodem no seu próprio centro hegemónico.

Na segunda metade dos anos oitenta do século passado, iniciou-se uma revolução tecnológica que contribuiu para a intensificação e expansão

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da acumulação de capital, embora esta não seja por si só suficiente para sustentá-la. A sua principal característica – que apenas encontra na revo-lução industrial dos finais do seculo XVIII na Grã-Bretanha e na primeira metade do século XIX nos principais países da Europa Ocidental o seu termo de comparação relativamente às profundas alterações introdu-zidas nos modos de trabalhar e produzir – foi a criação de um capital extremamente móvel, característica inédita, bem como de um processo produtivo em que o elemento director já não é a manipulação de coisas ou objectos, mas a de símbolos ou o tratamento da informação em redes conectadas a nível mundial. Esta transformação espantosa não teve como consequência, como alguns apressadamente tentaram deduzir, a subalter-nização do tradicional sector secundário relativamente ao sector terciário, mas uma maior interpenetração entre a indústria e o sector de serviços de alto valor acrescentado que constituiu de, certo modo, o núcleo do novo paradigma produtivo: o sector da programação informática. Com a extensão das máquinas dotadas de memória ou dos sistemas tecno-lógicos capazes de se auto-regularem, ou seja, parafraseando Marshall McLhuan, com a passagem da “galáxia de Guttenberg”, ou sistema meca-nicista que tinha como referente Newton, para a “galáxia Marconi”, ou sistema electrónico que tem como expoente Einstein, a separação entre o sector secundário e o sector terciário, baseada na tradicional divisão entre trabalho material e trabalho imaterial, foi superada: a indústria terciariza-se cada vez mais, já que utiliza bens de equipamento informa-tizados, máquinas dotadas de memória, cujos programas são elaborados por trabalhadores do sector terciário, enquanto o terciário se industria-liza, pois os trabalhadores deste sector utilizam cada vez mais máquinas automáticas, quando anteriormente utilizavam instrumentos de trabalho mecânicos ou manuais. Pela primeira vez, portanto, o trabalho efec-tuado com máquinas (programáveis) estendeu-se a todos os sectores da economia, deixando de ser característica exclusiva do sector secundário, como aconteceu no decurso da primeira revolução industrial e ainda durante a maior parte do século XX.

Outro aspecto desta espantosa revolução tecnológica que está direc-tamente ligada ao aumento da taxa média de lucro é o desmantelamento das grandes implantações de capital fixo que caracterizavam a indústria

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do período anterior ou, pelo menos, a redução do seu peso específico. A mobilidade do capital só é possível na base de tecnologias light que podem ser deslocalizadas e montadas em qualquer ponto do globo. É justamente por isto, que as indústrias ou as actividades menos móveis apresentam um coeficiente capital-trabalho ou uma composição orgânica de capital mais elevados – relação entre o valor do capital investido em meios de produção ou capital fixo ou constante e o valor do capital investido na força colectiva de trabalho que produz um valor maior do que consome para a sua reprodução social – e, consequentemente, uma taxa média de lucro mais baixa. Em contrapartida, as indústrias mais móveis ou mais leves, baseadas no paradigma do capitalismo informatizado, apresentam um coeficiente capital-trabalho ou uma composição orgânica de capital mais baixa, apesar de serem mais avançadas tecnologicamente do que as anteriores. Por conseguinte, a taxa de lucro destas indústrias e activi-dades sobe, ao contrário do que se poderia pensar. Prova disto, são os dados citados por Harry Shutt, num interessante livro desastrosamente traduzido para português, em que a redução do valor contabilístico das imobilizações corpóreas no valor total (capital próprio + dívida) das empresas não financeiras dos Estados Unidos, país onde arrancou a nova revolução tecnológica, passou de 83 por cento em 1978 para apenas 31 por cento em 1998 (O declínio do capitalismo, Cascais, Sururu, 2007, p. 47).

Devemos, porém, aceitar com algumas reservas estes dados. O valor contabilístico das imobilizações corpóreas, ou seja, do tradicional capital fixo ou dos bens de equipamento, pode não representar o seu valor real. A razão para isto não está nos métodos de cálculo, mas no facto de que a nova empresa móvel não é, em geral, proprietária dos seus bens de equipamento. A sua necessidade de poder transferir-se para outras paragens em que as condições de produção lhe são mais favoráveis – menores custos salariais, melhor qualificação da força de trabalho, sistemas fiscais e tributários mais generosos para a exportação dos lucros, etc. – leva-a a recorrer cada vez mais a sistemas de aluguer ou leasing. Deste modo, o que é contabilizado nos seus balanços não será o valor total da imobilização corpórea, mas apenas o aluguer do equipamento. Porém, esta provável subvalorização contabilística não pode pôr em causa o facto de que a revolução da tecnologia light contribuiu para reduzir o valor

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da composição orgânica de capital e, por conseguinte, para o aumento da taxa média de lucro. Um outro aspecto que confirma esta tese é que os sectores tecnológicos de ponta já não podem ser caracterizados como sectores capital intensivos por excelência, em que elevados níveis de coeficiente capital-trabalho ou de composição orgânica de capital constituem a característica central. Como muito bem se apercebe Harry Shutt, estes sectores são sobretudo intensivos em conhecimento humano, o que contribui para reduzir a composição orgânica de capital e, por conseguinte, para aumentar a taxa média de lucro, apesar da elevada intensidade tecnológico-científica.

Outro factor contribuiu também para reduzir a composição orgânica de capital ou o coeficiente capital-trabalho. Trata-se fundamental-mente da entrada no mercado mundial de uma nova força de trabalho proveniente de países que no passado recente se integravam na esfera das democracias populares ou no grupo dos Não-Alinhados. Para além dos países da Europa de Leste e da Rússia, destacam-se a Índia e sobre-tudo a China. Esta força de trabalho suplementar que engloba milhões de pessoas gera um enorme excedente social, uma grande parte do qual é apropriado pelos grandes grupos empresariais que se implantam nos novos países emergentes para beneficiarem das diferenças salariais e de condições de trabalho que os trabalhadores europeus e mesmo norte-americanos sindicalizados não poderiam aceitar. Alguns defendem que a deslocalização de actividades do sector secundário e terciário para estes novos países emergentes afecta sobretudo os sectores trabalho intensivos e que, por conseguinte, os trabalhadores ocupados nos sectores de elevada composição intelectual e tecnológica, que se concentram nos países mais desenvolvidos, não são minimamente afectados nos seus direitos e nos seus salários por esta mobilidade do capital transnacional. Este ponto de vista só, em parte, é verdadeiro, pois nos países emergentes desponta já um sector de elevada composição intelectual e tecnológica que contribui para exercer uma pressão sobre os salários dos trabalhadores dos países mais desenvolvidos. A Índia é talvez o seu exemplo mais paradigmático: não possui apenas call centers onde trabalham cibercoolies mal pagos, mas também uma força de trabalho qualificada que desenvolve a sua actividade na programação de computadores. Por sua vez, a China reapropria-se cada

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vez mais das inovações tecnológicas das empresas ocidentais instaladas no país, aumentando a composição tecnológica dos produtos exportados, mesmo tendo em conta que a matriz dos sectores mais avançados tecno-logicamente provém do capital transnacional.

Importa sublinhar que este processo de deslocalização que afecta não apenas a esfera da indústria, mas também os serviços contribui para aumentar a taxa média de lucro tanto em termos absolutos, como em termos relativos. Em termos absolutos, porque, é necessário relembrá-lo, aumenta o sobreproduto que alimenta o processo de acumulação de capital à escala mundial, enquanto, antes do ingresso desta imensa força de trabalho no mercado mundial, este seria apropriado pelo Estado nos países em que vigorava o sistema de planeamento centralizado ou não teria sequer possibilidade de vir à luz em economias onde o autocon-sumo camponês ou a produção mercantil simples de base rural limitavam a expansão do trabalho assalariado. Em termos relativos, porque o processo de deslocalização desencadeia um processo de competição à escala mundial pela redução dos custos laborais que exerce uma acção redutora sobre o valor da outra variável do coeficiente capital-trabalho e, por conseguinte, dá um novo impulso ao aumento da taxa média de lucro.

Os dados que confirmam o debilitamento do trabalho perante a mobi-lidade do capital transnacional são preocupantes. Segundo um estudo da revista BusinessWeek (6.12.04), insuspeita de simpatias de esquerda, mas suficientemente honesta e objectiva para não cair na tentação de “tapar o sol com a peneira” como sucede com alguns neoliberais e conserva-dores da nossa praça, “o desenvolvimento de um mercado global para os trabalhadores de colarinho branco pode reduzir os salários dos traba-lhadores norte-americanos altamente qualificados pela primeira vez”, o que confirma que o aumento da competitividade global, transformada numa espécie de palavra-chave ou passe partout, a que nem sequer esca-pavam muitos sociais-liberais contemporâneos antes da eclosão da crise das subprime, pode não oferecer perspectivas de uma vida melhor até para os sectores da força de trabalho dos países mais desenvolvidos que, até há bem pouco tempo, desfrutavam de uma situação relativamente estável. A BusinessWeek considera ainda que “se a globalização reduz os pagamentos

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tanto para os trabalhadores da indústria como para os trabalhadores dos serviços, a maioria da força de trabalho norte-americana poderá perder, deixando os empregadores e os accionistas como os principais beneficiários”.

E é precisamente isso o que está acontecer. Assim, citando um estudo da empresa de consultoria Forrester Research Inc., esta revista semanal norte-americana de negócios revela-nos que 68 por cento dos traba-lhadores que perderam o emprego como resultado das deslocalizações entre 1979 e 2001, e encontraram um novo emprego três anos depois, registaram uma quebra de salário de dez por cento. Por sua vez, 44 por cento dos que, no mesmo período, se reempregaram passaram a ganhar substancialmente menos no seu novo emprego, registando uma redução salarial de 49 por cento. Outro dado importante é a diferenciação cres-cente entre a variação da produtividade e a variação dos salários em terras do Tio Sam. Segundo o semanário liberal britânico The Economist (16.9.06), outra revista insuspeita de simpatias de esquerda, o salário horário real mediano do trabalhador norte-americano diminuiu 4 por cento, enquanto a produtividade aumentou 15 por cento. Os frutos deste aumento de produtividade foram embolsados pelos grupos sociais que possuem rendimentos mais elevados e pelas empresas. Assim, em 2006, 1 por cento destes grupos apropriam-se de 16 por cento, enquanto em 1980 recebiam apenas 8 por cento. Por sua vez, os lucros empresariais registaram um aumento exponencial, passando de 7 por cento do PIB em 1980 para 13 por cento em 2006.

A Europa do cada vez mais degradado modelo social europeu, embora revele menos disparidades salariais e sociais que os Estados Unidos, também está submetida à pressão das deslocalizações, a qual se tem refor-çado cada vez mais à medida que a “velha” Europa dos Quinze se transforma na “nova” Europa dos 27. No velho continente a pressão fez-se sobre-tudo ao nível dos horários de trabalho, o que contribuiu para bloquear todas as tentativas de redução do horário semanal de trabalho – de que a lei das 35 horas da ex-ministra socialista Martine Aubry é exemplo e paradigma para descontentamento dos sociais-liberais da “terceira via” ou do “novo centro” que, finalmente, esgotaram todas as suas “potencia-lidades”, bem como da direita neoliberal – e serviu de arma de arremesso

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contra os trabalhadores e os sindicatos, obrigados a aceitar trabalhar mais horas para evitarem a deslocalização ou a perda de empregos.

Os exemplos abundam. Num artigo publicado em 19 de Setembro de 2004 pelo diário espanhol El País, ano em que as entidades patronais intensificaram as suas operações de chantagem sobre os trabalhadores, os casos referidos de aumento da jornada de trabalho multiplicaram-se. Assim, nas fábricas belgas da Siemens os trabalhadores aceitaram aumentar o horário de trabalho de 37 horas para 38 horas semanais em troca de um aumento salarial de um por cento e da redução do número de despedimentos; em duas fábricas da Renânia-Westfalia no norte da Alemanha o sindicato IG Metall aceitou retornar às 40 horas de trabalho para preservar os empregos, quando a média na Alemanha era de 37,7 horas, sem aumentar os salários; a Volkswagen exigiu para evitar a ruptura das negociações com os sindicatos horários flexíveis e o congelamento salarial dos seus 102.000 trabalhadores; os trabalhadores franceses da Bosch concordaram trabalhar em Julho de 2004 mais uma hora sem aumento salarial, enquanto os pilotos da Alitalia, a pretexto da crise da empresa, comprometeram-se a trabalhar um máximo de 900 horas por ano quando, anteriormente, trabalhavam um máximo de 500 horas; a Siemens tocou o dobre de finados das 35 horas quando conseguiu que os sindicatos aceitassem o aumento da jornada de trabalho para 40 horas em troca do compromisso de evitar a deslocalização da produção para outro país. Coroamento destas medidas que não se podem considerar circunstanciais, mas fruto de uma estratégia muito bem arquitectada pelas entidades patronais para se apropriarem de uma fracção crescente do valor acrescentado ou para aumentarem o trabalho suplementar rela-tivamente ao trabalho necessário, foi o projecto de directiva do Conselho de Ministros da União Europeia que, em Junho de 2008, preconizou que a jornada semanal máxima de trabalho passasse de 48 horas para 60 horas e, excepcionalmente, atingisse mesmo as 78 horas. No final do ano, o Parlamento Europeu rejeitou esta directiva, estipulando que o horário máximo semanal de trabalho não deveria ultrapassar as 48 horas. Esta decisão que irá gerar um conflito institucional entre o Conselho e o Parlamento Europeu, revela, no entanto, como a tendência para o aumento do horário de trabalho é predominante na Europa. De facto, já

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não se discute as 40 horas ou as 35 horas como jornada semanal normal de trabalho, mantendo-se, na melhor das hipóteses, como horizonte, um limite máximo de 48 horas semanais.

A repartição do rendimento e do produto em detrimento do trabalho é outra das causas do aumento da taxa média de lucro. Os países da OCDE registaram a partir da década de 90 do século passado uma repartição do rendimento que favoreceu claramente o capital. Assim enquanto nos anos 70 do século passado os salários representavam em média 70 por cento do rendimento nacional, passaram a representar 64 por cento a partir do quinquénio de 1990-94 até 2000-03 (Fonte: Courrier International, 28.04.05, citando dados da OCDE). Este indicador não apenas reflecte o aumento da desigualdade social a nível das economias que integram a OCDE, mas é também a expressão de uma relação de forças entre o trabalho e o capital em que o primeiro surge como perdedor e elo mais fraco do capitalismo globalizado. Estas assimetrias e desigualdades sociais tendem a planetarizar-se cada vez mais. Segundo a Comissão Mundial sobre a Dimensão Social da Globalização, a taxa de crescimento do PIB mundial por habitante desacelerou exponencialmente desde a década de 90, situando-se, em média, em cerca de 1,5 por cento quando na década de 60 atingia, em média, cerca de 3,5 por cento. No que respeita aos países em vias de desenvolvimento (PVD), a mesma organização refere que, apesar do crescimento global do rendimento por habitante ter atin-gido 7,3 por cento entre 1985 e 2001 contra apenas 2,5 por cento dos países industrializados no mesmo período, a sua repartição foi extre-mamente desigual, já que grande parte deste crescimento foi suportado por dois países, a Índia e sobretudo a China, que englobam os 16 PVD que superaram os 3 por cento, enquanto 55 países não atingiram sequer os 2 por cento e 23 registaram valores negativos. Aumentaram também exponencialmente as disparidades entre os 20 países mais ricos e os 20 países mais pobres: em 1960-62 o PIB por habitante dos primeiros era 53 vezes mais elevado do que o dos segundos, enquanto em 2000-02 a disparidade tinha aumentado para 120 vezes (Por uma Globalização Justa, Cascais, Celta, pp. 49-51).

As assimetrias e desigualdades que favorecem o capital em nome da autodesignada “competitividade global” não se reduzem, porém, à repar-

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tição primária do rendimento, mas estendem-se também à repartição do rendimento após a tributação, o que contribui decididamente para pôr em causa a função redistributiva da política fiscal. Um dos indicadores mais esclarecedores desta regressão social é a redução da taxa média dos impostos sobre as sociedades que passou de 37,6 por cento para apenas 30,8 por cento nos Estados membros da OCDE entre 1996 e 2003 e de 39 por cento para 31,7 por cento na velha Europa dos Quinze no mesmo período (Ib. p. 56). Isto pressupõe que as receitas fiscais e tributárias estão cada vez mais dependentes dos impostos indirectos, que incidem cega-mente sobre o cidadão independentemente do rendimento que aufere, e dos que recaem sobre os rendimentos do trabalho dependente. Com o alargamento para 27 países, a maioria dos quais pertencentes à “nova Europa” de Rumsfeld & Cia, a União Europeia abandonou o princípio da progressividade fiscal, um dos princípios do modelo social europeu, para se render às maravilhas da “competitividade fiscal” que favorece as deslocalizações e o nivelamento por baixo dos direitos e garantias sociais. Qualquer tentativa de harmonização fiscal e tributária é banida como um horrendo crime que põe em causa o sacrossanto princípio da subsi-dariedade. No entanto, em nome deste princípio aceita-se sem reservas que alguns dos países recém-entrados na UE substituam a taxa progres-siva sobre o rendimento por uma taxa única (flat tax). Assim, em 1994, a Estónia e a Lituânia introduziram uma flat tax sobre o rendimento de 26 e 33 por cento, respectivamente; um anos depois a Letónia seguiu-lhes o exemplo com uma taxa de 25 por cento; e em 2005, a Roménia e a Eslováquia fixaram-na em 16 e 19 por cento, respectivamente (Fonte: The Economist, 16.04.05). Se a isto juntarmos os paraísos fiscais, completamos o quadro. Entre 1998 e 2000, os lucros das subsidiárias das companhias norte-americanas aumentaram 64 mil milhões de dólares, atingindo 208 mil milhões de dólares. Cerca de metade deste aumento teve a sua origem em paraísos fiscais, particularmente nas Bermudas, Bahamas e Caimão. A taxa média de tributação sobre os lucros destas empresas também baixou neste período de 24,2 para 20,8 por cento (Fonte: El País, 24.02.07). Mas a “velha” Europa tem também os seus paraísos fiscais. Basta pensar nos casos do Luxemburgo, Liechtenstein e na nossa zona franca da Madeira, protegida tanto pelo Governo regional da “pérola do

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Atlântico”, como pelo Governo da República.O efeito conjugado da redução do coeficiente capital-trabalho, do

aumento do excedente social apropriado pelo capital transnacional em consequência da entrada de um enorme exército de trabalhadores assala-riados no mercado de trabalho dos países emergentes, de uma repartição primária do rendimento e do produto que tem favorecido exclusiva-mente o capital em detrimento do trabalho e da redução da tributação sobre os rendimentos das sociedades, é a fonte do aumento exponen-cial da taxa média de lucro até 2007, bem como do excesso de liquidez ou da savings glut que parecia ter-se tornado numa never ending story de final feliz, já que os seus apologistas, apesar do crescimento das disparidades e assimetrias sociais, defendiam que, mais cedo ou mais tarde, algumas migalhas acabariam por ser recolhidas pelos trabalhadores e pelos párias deste mundo. Porém, o optimismo desta gente acabaria por ser desmen-tido pela eclosão da crise das hipotecas imobiliárias de alto risco que, para além de constituir o ponto culminante ou, quem sabe, o ponto de viragem de um período em que predominou o enriquecimento fácil e a lei do mais forte, revela que o capitalismo entregue a si próprio é um sistema económico e social que não é capaz de auto-regular-se, mas que se reproduz através de crises económicas e financeiras que não cessaram de desencadear-se, precisamente quando alguns julgavam que a História tinha chegado ao fim e todos tínhamos entrado no paraíso prometido pelos profetas do neoliberalismo de uma sociedade inteiramente subor-dinada às leis do mercado e da especulação financeira sem freio.

A hipertrofia da esfera financeira e as suas consequências

O último decénio do século passado e o primeiro decénio do terceiro milénio foram caracterizados pelo desencadeamento de sucessivas crises financeiras:1992 – Crise do Sistema Monetário Europeu (SME), que teve como consequência fundamental a saída da libra que rompeu a margem de flutuação estabelecidas;1994 – Crise mexicana com a saída maciça de capitais do país;1997 – Crise do Sudeste Asiático que não poupou as economias emer-

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gentes da região até então consideradas como modelos e paradigmas da superação do subdesenvolvimento;1998/99 – A Rússia e a Argentina anunciam a suspensão unilateral do pagamento das suas dívidas externas e a economia russa entra em colapso com uma queda maciça do rublo de mais de 45 por cento, em termos reais, em Janeiro de 1999;2001 – Quebra da Bolsa de valores tecnológicos (Nasdaq), falência da Enron com a suspensão de pagamentos de 4500 trabalhadores, bem como da World.Com que supera a da empresa de Kenneth Lay;2007 – Crise das hipotecas imobiliárias de alto risco.

Embora apenas as duas últimas crises possam ser consideradas como crises financeiras globais, a característica comum a este período foi indu-bitavelmente a instabilidade dos mercados de capitais em que as quebras bolsistas se repercutem rapidamente e afectam com maior ou menor intensidade a economia mundial, bem como a hipertrofia da esfera financeira que não cessou de aumentar nos finais do século XX e na aurora do século XXI. O quadro seguinte ilustra-o bem:

Tendência da Bolsa de Valores dos Estados Unidos (Standard & Poor’s 500, níveis finais em 31 de Dezembro)

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ANOS

1920

19�0

19�0

1950

1960

1970

19�0

1990

1999

2000

2002

200�

RÁCIO PREÇO/GANHOS

�,5

15,�

10,2

7,2

1�,9

17,�

9,2

15,2

��,�

2�,6

29,0

2�,�

DIVIDENDO PRODUZIDO (%)

7,27

5,62

6,��

7,20

�,�6

�,�1

�,5�

�,66

1,1�

1,19

1,�1

1,5�

Fonte: Harry, Shutt, ib. p. �0, citando dados recohidos por Global Financial Data, www.globalfindata.com.

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A característica central da evolução registada neste quadro é o aumento da diferenciação entre o rácio preço/ganhos dos títulos cotados na Bolsa norte-americana e os dividendos distribuídos. Se tomarmos como base o ano de 1930, em que o grande crash de Wall Street já faz sentir os seus efeitos, esta relação era de 3:1. A partir de 1990, cresce exponencialmente atingindo um máximo de 29,2:1, em 1999, e fixando-se em 18,2:1, em 2003, ano em que se inicia a recuperação da crise das dotcom. O signi-ficado destes dados não desperta nenhuma dúvida: o aumento do rácio preço/ganhos relativamente à percentagem dos dividendos é sintoma de que as mais-valias financeiras, que são um índice que mede o grau de especulação e hipertrofia financeiras, predominam sobre os próprios ganhos reais, representados pelos dividendos ou pela percentagem dos lucros distribuídos.

Como a expansão da esfera financeira tem sempre como fonte de alimentação a economia real e a esfera produtiva, já que o dinheiro é um valor estéril que não se multiplica a si próprio, os dados do quadro significam também que o excesso de liquidez resultantes dos superlucros cujas causas analisámos na secção anterior foram canalizados não para o alargamento da base produtiva, o aumento do emprego e a melhoria das condições de existência e do tempo disponível dos trabalhadores, mas para a especulação financeira. Por sua vez, a esfera financeira exerce uma pressão crescente sobre a esfera da economia real no sentido de extrair a máxima rendibilidade das aplicações e das carteiras de títulos dos possuidores de valores mobiliários, o que tem como consequência a intensificação das cadências laborais ou o prolongamento dos horários de trabalho e o aumento do sobreproduto – que é canalizado para fins improdutivos como despesas sumptuárias ou para alimentar o boom do imobiliário como aconteceu entre 2003 e 2006 –, bem como o aumento da taxa de exploração, pois os ganhos de produtividade obtidos na economia real não vão remunerar os salários, mas vão ser integralmente transferidos para os lucros do capital e os superganhos das aplicações financeiras.

O preço a pagar pela desproporção crescente entre a esfera finan-ceira e a economia real é a proliferação de crises financeiras que tendem a revestir um carácter cada vez mais global e imprevisível num contexto

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de ciclos de tipo montanha russa altamente instáveis, em que a diferença entre a “alta” e a “baixa”, a prosperidade e a depressão, atinge valores muito elevados. Neste contexto, a tese de Schumpeter sobre a “destruição criadora” do capitalismo perde toda a sua razão de ser. As sucessivas crises financeiras são, pelo contrário, expressões de destruição não criadora porque não apenas restam na nova fase ascendente do ciclo curto menos empregos ou empregos mais precários dos que são gerados na fase ascen-dente do ciclo anterior, mas também porque os períodos de recuperação se caracterizam por uma redistribuição do produto e da riqueza sociais que favorece os rendimentos de capital em detrimento dos rendimentos do trabalho. Esta é uma das razões pelas quais a saída de uma crise finan-ceira é antecâmara de uma nova crise financeira com consequências cada vez mais graves sobre o emprego e o investimento produtivo.

Outra das razões que estão na origem da cada vez maior violência das crises financeiras está precisamente na hipertrofia da esfera finan-ceira. Os períodos de recuperação que caracterizam a fase ascendente do ciclo acabam por resumir-se em sucessivas fugas para a frente, ou seja, em apostas especulativas cada vez mais arriscadas no plano finan-ceiro que subtraem recursos ao investimento produtivo, contribuem para o aumento das fusões e aquisições caracterizadas pela destruição do emprego e favorecem a procura de elevados retornos financeiros de curto prazo em detrimento dos que resultam de investimentos de longo prazo. O período posterior à crise da Bolsa de valores tecnológicos, ante-câmara da crise subprime, constitui a prova do que acabo de dizer. Entre 2004 e 2006, as aplicações em hedge funds, fundos que visam maximizar os retornos dos investidores em aplicações financeiras de alto risco como as opções, os futuros e as swaps de moeda e taxas de juro - em que se exploram as diferenças cambiais e as oscilações das taxas de juro - registaram um crescimento vertiginoso que abarcou as principais financeiras mundiais na América do Norte, Ásia e Europa. Em 2004, as aplicações financeiras em hedge funds atingiram cerca de 1 trilião de dólares. Segundo a revista The Economist (19.02.05), foram criados 400 novos hedge funds este ano, atin-gindo o número de 7000, o que os coloca em paridade com os fundos de investimento colectivo (mutual funds). Apesar da sua dimensão ser apenas um sexto da dos mutual funds, ofereciam aos investidores rendibilidades

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significativamente maiores. Dois anos depois, estes fundos ascendem já a 1,5 trilião de dólares, o que representa um aumento de 500 por cento relativamente a 1999, ano em que ascendiam apenas a 300 mil milhões de dólares (La Repubblica, 4.07.2007).

Embora os EUA detenham uma ampla liderança no mercado de hedge funds, estes fundos de alto risco conquistaram cada vez mais a preferência dos investidores europeus e asiáticos. Assim, no continente europeu, os principais investidores institucionais, entre os quais se destacam os fundos de pensões, seguiram o exemplo da outra margem do Atlântico, apli-cando 32 por cento do dinheiro que lhes foi confiado pelos seus clientes em hedge funds, quando em 2003 as aplicações financeiras reduziam-se a 23 por cento (BussinessWeek, 2.05.05). Num artigo intitulado A mania dos hedge funds atinge a Ásia (“Hedge-fund mania hits Asia”), a revista BusinessWeek (20.12.04) afirma que, apesar do baixo peso relativo dos hedge funds asiáticos no total das aplicações mundiais, apenas um sexto, o seu cresci-mento foi significativo entre 1999 e 2004, integrando-se, portanto, na tendência geral, já que passaram de 13,8 mil milhões para 59 milhões de dólares e, em número, de 162 para 500. A partir de 2007, ano em que estes fundos ainda atingiram 2 triliões de dólares a nível mundial, a situ-ação começa a inverter-se com a eclosão da crise das subprime, prevendo-se que um ano depois poderão cair entre 30 e 40 por cento, em conse-quência das ordens de vendas dos investidores (The Economist, 25.10.08). No entanto, estas projecções estão provavelmente subvalorizadas, já que são anteriores à falência fraudulenta da Bernard Madoff Investment Securities que pode atingir 50.000 milhões de dólares e constituir, se não o dobre de finados dos hedge funds, o bloqueio da sua expansão e sobretudo abrir a porta para a institucionalização de medidas severas de regulação e controlo dos fundos de carácter especulativo.

Para além dos hedge funds, cresceram exponencialmente os fundos de investimento que se especializaram em operações de reestruturação financeira de empresas, com especial preferência pelas sociedades não cotadas, designados por private equity. Estes fundos reservados a accionistas e investidores muito ricos, estiveram cada vez mais envolvidos nas opera-ções de fusão e aquisição de empresas. Em 2006, geriam 459 mil milhões de dólares contra apenas 91 mil milhões em 1991. No que respeita às

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operações de fusão e aquisição, ultrapassaram mais de 30 por cento do total nos Estados Unidos e mais de 20 por cento do total mundial em 2006, quando em 1991 se situavam muito abaixo dos 5 por cento nos dois casos (The Economist, 7.08.2007). O argumento que foi frequentemente utilizado pela finança internacional e os seus ideólogos académicos e das revistas de negócios para a defesa destes fundos é que eles contribuíam para eliminar nas empresas que adquiriam as operações não lucrativas para se concentrarem nas que fornecem aos accionistas as rendibili-dades mais elevadas. No entanto, esta pretensa eficácia financeira levanta uma série de problemas que revela enormes perigos para a estabilidade das condições de existência de milhões de pessoas que não fazem parte do círculo selecto de investidores e gestores envolvidos nas suas opera-ções. O primeiro é que as operações de reestruturação financeira que estes fundos promovem têm um horizonte que geralmente não ultra-passa os cinco anos, o que significa que são preteridas as estratégias de longo prazo que asseguram o crescimento do investimento e do emprego a favor das que se limitam a uma célere reestruturação financeira que tem como objectivo a venda das empresas no mais curto prazo de tempo possível com o objectivo de maximizar os retornos dos investidores. O segundo é que estes fundos são financiados através de empréstimos, o que estimula os seus gestores a concentrarem-se no pagamento das dívidas que contraíram em detrimento das contribuições para os esquemas de financiamento das pensões futuras dos trabalhadores das firmas reestru-turadas. O terceiro é que uma parte crescente das despesas de capital é canalizada para o pagamento dos juros dos empréstimos e das dívidas, o que torna as companhias geridas pelo sistema das private equity extraordi-nariamente propensas a cortar no emprego e no investimento quando as taxas de juro sobem e, por conseguinte, a favorecerem o desencadea-mento de espirais recessivas.

A eclosão da crise das subprime pôs a nu a hipertrofia da esfera finan-ceira e dos fundos especulativos que a sustentavam com consequências devastadoras sobre milhões de pessoas não envolvidas nas operações financeiras de alto risco. Em 2008, o valor transaccionado nos mercados financeiros globais caiu entre 15 e 30 triliões de dólares, o que supera os ganhos acumulados de 2003 a 2007 na fase ascendente do ciclo. Por

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sua vez, os fundos de pensão registaram uma quebra de 2 triliões de dólares nos Estados Unidos entre meados de 2007 e finais do ano de 2008 (The Economist, 6.12.08). Esta enorme quebra revela a fragilidade dos programas privados de pensões norte-americanos e também britâ-nicos que seguem o mesmo figurino e não se têm cansado de apregoar o seu exemplo com o objectivo de encontrar seguidores em outras partes do mundo. A situação é tanto mais grave, se tivermos em conta que a explosão destas bombas de destruição maciça que são as private equity e os hedge funds têm como principal consequência a transferência do risco de pagamento das pensões futuras das empresas para os trabalhadores que aplicam uma parte dos seus salários ou das suas poupanças nos fundos de pensão. O exemplo norte-americano é particularmente edificante. Nos últimos 18 anos, as empresas norte-americanas passaram celeremente dos planos de prestações definidas, que asseguravam ao futuro aposen-tado uma pensão estável calculada na base dos aplicações efectuadas nos melhores anos da sua carreira contributiva para o fundo – o que tornava estes planos privados parentes próximos dos esquemas públicos de repar-tição –, para os planos de contribuições definidas, os chamados 401 (k), em que as empresas não se responsabilizam pelo valor das pensões futuras dos trabalhadores. Estes planos foram introduzidos em 1978, mas apenas começaram a generalizar-se a partir dos anos 90 do século passado, ou seja, precisamente no período em que a finança global, em geral, e a norte-americana, em particular, iniciavam as suas aventuras especu-lativas. Nos inícios da década de 90, 35 por cento dos trabalhadores norte-americanos já subscrevia estes planos contra apenas 32 por cento que se encontravam cobertos pelo de prestações definidas. Em 2005, os valores eram respectivamente de 42 por cento e 21 por cento, com destaque para as empresas de mais de 100 trabalhadores, em que 53 por cento dos planos de pensão são 401 (k) (El País, 2.04.06). Mas isto signi-fica que a exposição ao risco dos trabalhadores norte-americanos, mas também britânicos, de perderem as suas pensões ou de as verem forte-mente desvalorizadas é tanto maior quanto maior for a especulação e a desregulamentação dos mercados financeiros.

A crise dos créditos imobiliários de alto risco foi o coroamento dos anos loucos da finança globalizada. A origem desta crise deve antes de

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tudo ser investigada nos anos 80 do século passado em que foi descoberto o expediente financeiro que permitiu que os riscos financeiros fossem repartidos e deslocalizados num processo incessante de fuga para a frente que parecia não ter fim. Trata-se fundamentalmente da titularização dos créditos que podem ser assim transferidos para terceiros e destes para outros sem qualquer criação de valor acrescentado, mas apenas através da apropriação de margens financeiras extraordinariamente remunera-doras enquanto o activo que lhes serve de suporte oferece perspectivas de valorização futura. Os créditos concedidos para a compra de habi-tação a pessoas de baixos rendimentos que tinham poucas ou nenhumas probabilidades de liquidá-los, basearam-se no pressuposto fantasioso da finança de Wall Street de que as taxas de juro manteriam a sua tendência declinante, o que teria como consequência a valorização ad infinitum da propriedade imobiliária. O expediente da titularização dos créditos concedidos permitiria repartir o risco de incumprimento de pagamentos num processo em que as propriedades imobiliárias poderiam sempre ser vendidas a valores muito superiores ao da sua aquisição. Embora para os milhões de pequenos proprietários endividados as casas adquiridas a crédito servissem para serem habitadas, pois é esse o seu valor de uso, para os possuidores dos títulos de que eram a garantia, constituíam apenas valores transaccionáveis nos mercados de capitais que lhes assegu-ravam significativas mais-valias financeiras, ou seja, um excelente rácio preço/ganho. É este predomínio do valor de troca sobre o valor de uso que se estende aos bens de primeira necessidade, como a habitação para os mais pobres e necessitados, presas fáceis das engenharias financeiras dos magos de Wall Street, que simboliza o mundo absurdo do capitalismo financeiro que esteve na origem da crise das subprime.

O cronista do New York Times, Thomas L. Friedman, desvela com clareza que o processo de titularização dos créditos imobiliários que esteve na origem do maior crash financeiro posterior ao de 1929, apesar da sua aparente sofisticação técnica na repartição do risco, se reduz em última instância ao tradicionalíssimo esquema da pirâmide, ou seja, não é estruturalmente diferente do caso D. Branca, que, na segunda metade dos anos 80 do século passado, foi responsável pela ruína de milhares de pequenos aforradores portugueses que acorreram em massa à impro-

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visada banquinha da “banqueira do povo” para beneficiarem dos juros extremamente elevados que lhes eram prometidos pelos seus depósitos. A única diferença é que o esquema das subprime teve cobertura legal e a benção das maiores agências de rating, enquanto D.Branca e os seus cúmplices foram condenados judicialmente: “que nome” – interroga-se Friedman – “poderemos dar a quem oferece a um trabalhador que apenas ganha 10.000 euros por ano uma hipoteca sem nenhum sinal e sem ter que pagar nada durante os dois primeiros anos para comprar uma casa de 525.000 euros, e desde logo juntar a hipoteca com outras cem em títulos – para vendê-los a bancos e fundos de pensões de todo o mundo? Isso foi o que o nosso sector financeiro estava a fazer. Se tal não é a típica pirâmide, então não sei o que será” (El Pais, 21.12.08).

A “pirâmide” das subprime atingiu proporções gigantescas entre 2001 e 2006, período que assinala a recuperação da crise das dotcom, passando de 160 mil milhões de dólares para 600 mil milhões de dólares (Blackburn, Robin - “Subprime Crisis”, New Left Review, Londres, Abril de 2008, p. 72). Isto significa que o capital fictício é fértil em encontrar novos expedientes em cada fase ascendente de um ciclo. Depois da crise dos mercados de acções resultante da queda da Bolsa de valores tecnológicos, os créditos imobiliários de alto risco foram o novo “produto” financeiro que reiniciou e potenciou o processo de fuga para a frente da especulação que não é mais do que o ponto de partida não de uma verdadeira recu-peração e prosperidade económicas, mas de uma nova crise, mais grave e violenta do que a precedente. E os resultados estão à vista. Não falo já do desaparecimento da banca de negócios norte-americana - falência do Lehman Brothers, venda do Merryl Linch e transformação do Morgan Stanley e do Goldman Sachs em bancos comerciais - comprometida na gigantesca pirâmide das subprime, mas das perdas astronómicas que o FMI, instituição caracterizada pela paralisia e negligência monstruosa no decurso de todo este processo, não se cansa de reactualizar. Em Abril de 2008, as suas estimativas apontavam para 945 mil milhões de dólares, mas em Outubro deste ano já atingiam 1,4 triliões de dólares.

No plano financeiro, a crise afecta o mercado interbancário, o que não aconteceu nas crises anteriores, bloqueando o fornecimento de crédito e liquidez entre bancos que, por sua vez, se abstêm de concedê-lo a clientes

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externos. Esta quebra de confiança em que assenta o funcionamento do sistema bancário pode conduzir a um círculo vicioso em que os consumi-dores não consomem por não terem crédito ou para pouparem à espera de melhores dias, as empresas não contratam por verem o seu volume de vendas baixar e os investidores não investem porque, apesar da tendência declinante das taxas de juro, não prevêem uma remuneração adequada para o capital que antecipam. Entretanto, acumulam-se os detritos da ressaca de um festim financeiro que se encontra suspenso. Prova disso, é que as junk bonds (“obrigações-lixo”), dívidas em que a probabilidade de não pagamento é elevada, atingirá 30 mil milhões de dólares em 2009, o dobro do valor que atingiram em 2008. Como dois terços de todos os empréstimos contraídos em 2007 eram junk, o que equivale a mais do dobro do anterior boom imobiliário de 1990, a factura a pagar será muito elevada, não poupando as já nossas conhecidas firmas de private equity envolvidas com grandes somas pertencentes a terceiros na aquisição de empresas em 2006-2007 (“The world in 2009”, The Economist).

A crise financeira é cada vez mais parte de uma crise global que tende a agravar-se. Nos Estados Unidos foram suprimidos 533.000 empregos desde Novembro e 1,9 milhões desde o início do ano de 2008, prevendo as estimativas mais optimistas que em 2009 a taxa de desemprego oficial atinja 7,3 por cento e 7,5 por cento em 2010, quando em 2008 era de 5,7 por cento. Apesar das medidas da Reserva Federal para injectar liquidez na economia norte-americana, o risco de uma espiral recessiva e deflacionária resultante do efeito conjugado da crise financeira e da crise económica e social é cada vez maior. Na Europa, embora a situação económica e financeira seja menos grave do que na outra margem do Atlântico, não há lugar para optimismos. Em Espanha, a crise do sector de construção e obras públicas, que era a base de sustentação do cresci-mento e do emprego, contribuiu para que num ano o desemprego tivesse aumentado 42,72 por cento, prevendo-se que atinja 12,5 por cento em 2008 e 17 por cento da população activa em 2009. Em França, a crise tem-se caracterizado pelos despedimentos da força de trabalho precária – contratos de duração determinada e intermitentes – que não têm cessado de crescer em anos recentes e pelo encerramento de empresas que, segundo a Confederação Democrática do Trabalho (CFDT), colocam

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os seus dependentes numa situação de “desemprego parcial ou técnico”. Na Alemanha, a locomotora da União Europeia, a recessão internacional afecta uma economia orientada para as exportações com uma quebra de 6,1 por cento da produção industrial em Outubro de 2008, depois de uma queda de 8,3 por cento em Setembro (le Monde, 8.12.08). Por sua vez, os países emergentes que têm sustentado o crescimento da economia mundial e que alguns pensavam que constituíssem a tábua de salvação ou, pelo menos, servissem de mecanismo amortecedor para a crise dão sinais crescentes de debilidade. Destaca-se sobretudo a China, outro país com uma economia orientada para as exportações, que, perante a retracção da procura internacional, poderá, segundo o director-geral do FMI Dominique Strauss-Kahn, crescer apenas 5 ou 6 por cento (Público, 16.12.08), valor manifestamente insuficiente para ocupar a força de trabalho que não tem parado de migrar dos campos para as cidades e que poderá gerar uma crise social de grandes proporções neste país imenso. Em suma, todos os pretensos mecanismos auto-reguladores do tão elogiado sistema de mercado livre correm o risco de uma paralisação total.

Para a construção de uma nova ordem global

A crise global do capitalismo que estamos actualmente a viver não revela apenas a falência das receitas neoliberais sobre a capacidade de expansão ilimitada da acumulação de capital e das teorizações que já previam festivamente o fim dos ciclos económicos e a possibilidade de um crescimento feliz sem oscilações e períodos de recessão e crise, mas também a necessidade de construção de uma nova ordem global que já não pode basear-se nos princípios da competição global, mas da coope-ração e do multilateralismo. No entanto, o peso do velho e ultrapassado continua a persistir e a encontrar apoios políticos, o que apenas revela que os interesses e as forças que foram responsáveis pelo actual desca-labro financeiro, económico e social continuam a opor-se a medidas que ponham em causa o statu quo e, persistindo no seu cego dogmatismo neoliberista, não se cansam de propor as mesmas estafadas receitas.

Um dos exemplos mais recentes da inércia dominante foi a cimeira

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do G-20 em Washington, em 15 de Novembro do ano passado, em que, apesar da presença pela primeira vez neste tipo de iniciativas de vários países emergentes, de que destacamos o Brasil, a Coreia do Sul, a Índia, a Indonésia e a Turquia, predominaram as declarações de pompa e circunstância do tipo de que “nos próximos doze meses abster-nos-emos de criar barreiras ao investimento e ao comércio de bens e serviços”. É completamente absurdo continuar a defender-se que a liberalização das trocas e a abertura dos mercados constitui a solução milagrosa para a actual crise global, tanto mais que a partir da década de 90 a liberalização mercantil atingiu proporções nunca antes alcançadas, mas não impediu a eclosão de sucessivas crises económicas e financeiras que culminaram com a explosão crise das subprime em 20072. E o desmentido de que este livre-cambismo exacerbado é apenas parte do problema, é precisamente a actual situação da China, a nação emergente a quem alguns tinham reservado a função exclusiva de amortecedor de uma crise que pensavam que se confinaria aos países desenvolvidos. De facto, nenhuma libera-lização das trocas poderá evitar que as exportações chinesas, bases de sustentação das suas elevadas taxas de crescimento económico até 2007, se reduzam significativamente à medida que os mercados de destino dos seus produtos nos países do velho Primeiro Mundo e, em especial, nos Estados Unidos, diminuam as suas importações. O melhor contributo que a China poderá dar para o seu próprio desenvolvimento e para a superação da actual crise é orientar os seus recursos para a expansão do seu imenso mercado interno não através da promoção de um consu-mismo desenfreado que já demonstrou os seus limites em terras do Tio Sam, mas favorecendo investimentos de carácter social na construção de escolas, hospitais, habitações a preços garantidos, formação profis-

2 A ideologia neoliberal dominante não se cansa de apregoar as virtudes das economias orientadas para as exportações e para o comércio externo. Esta concepção é totalmente redutora. Grande parte das econo-mias “extrovertidas” baseia a sua estratégia produtiva na contenção salarial, já que não dependem da procura interna para crescer. No entanto, quando a eclode uma crise de proporções globais, são as mais atingidas. Não é difícil de compreender porquê: como, em geral, praticam salários baixos e elevados horários de trabalho, a debilitada procura interna que alimenta o crescimento das exportações é completamente incapaz de limitar os efeitos depressivos decorrentes da quebra da procura externa. Em consequência, o livre-cambismo, funda-mento ideológico da extroversão das economias, não é parte da solução, mas parte do problema. Prova disso é que, segundo o Banco Mundial, o comércio internacional aumentou, a partir de meados dos nos 90, 6% por ano, valor que supera o crescimento do PIB mundial, o que não evitou as sucessivas crise financeiras que eclodiram entre 1992 e 2008 (Ver: El País, 7.02.08).

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sional, protecção do ambiente, tecnologias de ponta e novos materiais e o melhoramento dos horários e condições de trabalho (Ver: “Des écoles plutôt que des trains”, Courrier International, 27.11.03)3 .

Os fundamentalistas do neoliberalismo parecem também não ter aprendido a lição e continuam a demonstrar uma fé que tem grandes afinidades com a superstição mais grosseira na capacidade de auto-rege-neração dos mercados financeiros desregulamentados que conduziram à catástrofe actual. Num artigo intitulado Quando os ovos de ouro se esgotaram (“When the golden eggs run out”), publicado no The Economist em 6 de Dezembro de 2008, o colunista deste semanário liberal manifesta o seu espanto pelo facto dos investidores não “compreenderem” o funcio-namento a longo prazo dos mercados financeiros e, por conseguinte, actuarem de forma “irracional”. Assim, quando os mercados estão em baixa estes teriam vantagem em comprar, já que baixos retornos a curto prazo criam uma oportunidade para poderem vender com lucro no período da alta. Inversamente, deveriam adoptar o procedimento contrário neste período, pois os elevados retornos obtidos no passado são uma premonição de baixos retornos no futuro. O autor do artigo esquece, no entanto, que a óptica de funcionamento dos mercados finan-ceiros tem sido cada vez mais nos últimos anos o curto e o curtíssimo prazo. Prova disso, foi o exponencial crescimento dos mercados de deri-vados e das subprime. Neste sentido, predomina não a racionalidade, mas a ilusão financeira, que parte do pressuposto de que nos períodos de alta bolsista os valores mobiliários continuarão a valorizar-se ad infinitum e de que nos períodos de baixa a sua desvalorização não cessará de aumentar.

Entre a perspectiva de entesouramento ou a de aplicações finan-ceiras em private equities de maior risco, o autor do artigo do semanário The Economist aconselha os investidores a apostarem nas segundas porque

3 Actualmente, a China é o exemplo e paradigma do desenvolvimento insustentável: regime de partido único com elevados níveis de poluição, salários baixos, horários de trabalho infernais, ausência de direitos laborais e de sindicatos independentes e democráticos que possam defender os trabalhadores da superexploração a que estão submetidos (Veja-se a este respeito, Hui Qin - “Les leçons à tirer du miracle chinois”, Courrier International, 4.03.09). Tendo em conta que o antigo Império do Meio era, até há bem pouco tempo, um dos principais destinos das deslocalizações de empresas ocidentais em busca de baixos salários e de uma legis-lação laboral mais favorável aos seus interesses que a dos países de origem, pode compreender-se claramente por que motivo a versão chinesa da preobrajenskiana acumulação “socialista” primitiva de capital exerce um efeito desagregador sobre os modelos mais sociais do capitalismo.

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a altura mais adequada para estes “correrem riscos financeiros é quando os activos de risco oferecem um considerável retorno a longo prazo, não quando os prémios de risco são baixos”. A estas considerações poder-se-ia responder com a célebre frase de Keynes que “a longo prazo estaremos todos mortos”, frase que reflecte adequadamente o comportamento de quem opera nos mercados financeiros, onde apenas conta o fugaz “aqui e agora” de um eterno presente. Além do mais, a opção defendida pelo articulista do semanário liberal britânico, apesar de mais “racional” em termos estritamente financeiros, constitui apenas um pretexto para que tudo continue na mesma, pois se baseia no axioma de que os mercados financeiros se regeneram a si próprios sem nenhuma necessidade de regulamentação. Esta conclusão é tanto mais inaceitável, se pensarmos que as aplicações astronómicas nas private equities foram responsáveis pela desvalorização dos fundos de pensão baseados nos planos de contribui-ções definidas. Mas isso significa que o futuro de milhões de aposentados não pode estar dependente dos caprichos e das vicissitudes da especulação e dos mercados financeiros desregulados.

A actual crise financeira impõe antes de tudo uma abordagem multi-lateral que passa necessariamente pela criação de novas instituições internacionais. Trata-se não de uma postura radicalista e desproporcio-nada – desproporcionada é a finança desregulamentada, uma verdadeira arma de destruição maciça que tem que ser desmontada –, mas cada vez mais uma necessidade, já que instituições como o FMI revelaram em todo este processo se não uma cumplicidade tácita com os jogos financeiros que conduziram à catástrofe actual, pelo menos uma inaceitável negligência que de ora em diante lhes retira toda a legitimidade e as transforma em parte do problema e nunca em parte da solução. É por isso urgente criar uma nova instituição internacional de supervisão bancária que tenha poderes para controlar a especulação financeira desenfreada, que esta-beleça regras claras e transparentes que evitem e punam sem apelo nem agravo todas as formas de contabilidade criativa que empolam resultados para esconder perdas irreparáveis e que institua uma separação clara entre banca de negócios e banca comercial. É necessário também que o G-20 abandone as usuais declarações de boas intenções que não conduzem a outra coisa senão a lautos jantares de trabalho pagos com o dinheiro dos

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contribuintes e empreenda uma política coordenada de taxas de juro. Tendo em conta que a especulação financeira tem sido responsável por subordinar o interesse de nações e povos inteiros aos interesses de alguns poucos que ganham somas astronómicas e que, frequentemente, se retiram com indemnizações milionárias, deve criar-se uma taxa sobre os movimentos especulativos de capital, de que a célebre taxa Tobin poderá ser um ponto de partida, bem como reforçar as medidas penais sobre os criminosos de colarinho branco que fraudulentamente arriscam o dinheiro dos outros em proveito próprio e geram perdas astronómicas em esquemas de pirâmide. Mas a especulação e o regabofe continuarão impávidos e serenos a sua obra de instabilidade, insegurança e destruição que afectam as condições de vida de milhões de pessoas em todo o mundo enquanto continuarem a existir paraísos fiscais que permitem montar sociedades fictícias envolvidas em esquemas e manigâncias financeiras que ninguém controla. A sua abolição é uma necessidade imperiosa que não pode ser descartada como um desejo utópico, mas que depende da formação de uma nova vontade política mais interessada com o bem-estar e a prosperidade real dos cidadãos do que com os ganhos astronómicos que, em nome de uma cada vez mais descredibilizada liberdade de movi-mento de capitais – no fundo, a liberdade dos mais fortes – algumas grandes empresas, bancos e cidadãos abastados podem realizar impune-mente em detrimento de todos.

As alternativas à actual crise do capitalismo global não podem confinar-se à esfera financeira que constitui apenas parte do problema. A construção de uma ordem global baseada na cooperação e no multilateralismo deve situar-se para além das tradicionais receitas livre-cambistas que vêem na abertura de mercados e na liberdade das trocas a solução milagrosa para aumentar as taxas de crescimento e os investimentos internacionais, bem como das tentativas proteccionistas que transformam países e regiões em frágeis fortalezas que acabam por ser marginalizadas dos fluxos tecno-lógicos e de inovação sem os quais não é possível um desenvolvimento sustentado. O ponto de partida de uma nova ordem global é a construção de espaços politicamente integrados em que a partilha da soberania não é uma abdicação da independência nacional, mas constitui um alarga-mento da esfera de intervenção política num processo de acumulação

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do capital que os Estados-nacionais já não conseguem controlar. Não se trata, porém, da construção de espaços fechados, mas de espaços abertos, não no sentido redutor do livre-cambismo, mas no sentido da cooperação e da interdependência das políticas económicas, sociais e financeiras.

Os novos espaços devem ter como princípio de orientação políticas que visem fundamentalmente conjugar o crescimento do produto e do emprego com a melhoria da repartição dos rendimentos e a redução das desigualdades e assimetrias sociais que não têm cessado de aumentar. Assim, deve passar-se das teses neoliberais que defendem a “revolução das flat taxes” ou a competitividade fiscal para a promoção da progressivi-dade fiscal. É completamente inaceitável que alguns continuem a persistir no preconceito iníquo de que uma das soluções para a actual crise passa pela redução da tributação sobre as sociedades quando nos últimos anos tem sido precisamente isso que se tem verificado, o que não impediu, porém, a eclosão da actual crise. A alternativa passa pela redistribuição da carga fiscal segundo critérios de justiça social, aumentando os impostos sobre os patrimónios financeiros improdutivos e reduzindo a carga fiscal das classes médias e dos possuidores de rendimentos menos elevados que têm suportado grande parte do peso da tributação directa, bem como diminuindo o peso dos impostos indirectos nos orçamentos dos Estados e aumentando a progressividade dos impostos directos. Em contrapar-tida, devem ser promovidos investimentos públicos capazes de contribuir para o aumento do emprego e da inovação tecnológica, política que sempre revelou ser mais eficaz na dinamização da actividade económica do que a que se baseia na redução da tributação fiscal sobre as classes de rendimentos mais elevados que acaba por desembocar na especulação financeira e imobiliária e no aumento das despesas sumptuárias.

O papel interventor do Estado na economia e na sociedade deve ser reformulado depois de décadas de privatizações de empresas e de funções públicas. A reconstituição da centralidade do público e do político deve, é certo, passar pelo reconhecimento das novas necessidades de autonomia e liberdade dos indivíduos, mas deve partir do princípio de que a igualdade de oportunidades, tão do agrado de alguns social-liberais, só é possível se for criada uma igualdade relativa de condições. Caso contrário, como os pontos de partida não são os mesmos, também os pontos de chegada e os

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resultados serão muito assimétricos e os mais fortes ou os mais poderosos poderão reclamar o seu direito “natural” à liberdade. Mas uma igualdade relativa de condições é plenamente compatível com uma liberdade inclu-siva baseada na cooperação e não na competição e que tem em vista o bem comum e o pleno desenvolvimento das capacidades e talentos individuais muitos dos quais permanecem sufocados ou são votados ao desperdício numa sociedade injusta e desigualitária.

A centralidade do público arriscará, porém, tornar-se uma abstracção se não se tiver em conta uma mudança radical de perspectiva relativa-mente aos que têm visto as suas condições de existência degradar-se nos últimos anos: os trabalhadores assalariados. Alguns sociais-liberais, hoje tão solícitos em reclamar uma maior intervenção do Estado, foram no passado cúmplices tanto pela sua abstenção como por algumas das suas políticas na degradação das condições de trabalho e opositores a uma reforma de um sistema segurança social público que não tem cessado de retirar direitos aos contribuintes através do aumento do número de anos e da idade máxima para obter a aposentação, enquanto crescem como cogumelos os planos privados do tipo 401 (k) com os resultados catas-tróficos que se conhecem. Não é por si só aceitável o argumento de que o aumento da idade da aposentação ou a utilização de formas de cálculo menos generosas se faz em benefício dos contribuintes e em nome do interesse geral, pois nos países desenvolvidos, em particular na Europa, o número de activos por pensionista tem tendência a diminuir e, por conseguinte, a pôr em causa a sustentabilidade do sistema público de pensões. Embora o argumento seja, em parte, verdadeiro - nos Estados Unidos não é, porém, válido -, constitui sobretudo tanto um convite velado para o desenvolvimento do mercado dos fundos privados de pensão cujos ideólogos e apologistas não têm cessado de tentar demonstrar que a “tradicional” pensão paga pelo esquema público de repartição já não é suficiente para que o trabalhador consiga manter o nível de vida a que estava habituado, como um pretexto para renunciar a novas formas de financiamento do sistema da segurança social pública. Tendo em conta a constituição de espaços políticos integrados em que predomina a preocu-pação pela justiça social, uma nova forma de financiamento deste sistema deve basear-se numa taxa sobre o valor acrescentado e não nas tradicio-

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nais contribuições dos trabalhadores e das entidades patronais. O actual sistema de financiamento é iníquo porque são precisamente as empresas mais evoluídas tecnologicamente, as empresas ditas capital-intensivas, a contribuir proporcionalmente menos para o sistema, apesar do elevado valor acrescentado que geram. Os que consideram esta solução irrealista com o argumento de que o país que ousasse fazer uma reforma deste tipo logo sofreria uma maciça saída de capitais para o exterior, melhor fariam se defendessem a abolição dos paraísos fiscais e a construção de uma nova ordem cooperativa e solidária global. Além do mais, uma parte da receita da taxa sobre a especulação financeira deveria ser canalizada para a cons-tituição de fundos sociais geridos por instituições sem fins lucrativos que tivessem como objectivo a criação de esquemas complementares de pensões, de modo a reduzir a enorme pressão a que o sistema público está submetido nos países em que o envelhecimento demográfico aumenta e a reforçar indirectamente a sua sustentabilidade.

Chegamos agora ao alfa e ao ómega da questão social contem-porânea: a degradação das condições de trabalho e dos direitos dos trabalhadores. É inadmissível que à medida que a crise económica e o desemprego se agravam, alguns continuem a preconizar como alter-nativa mais moderação salarial e menos “rigidez” das leis laborais no sentido do embaratecimento dos despedimentos. Esta “alternativa” tem a chancela da OCDE, organização muito respeitada tanto pelos neoli-berais como por alguns sociais-liberais. É uma alternativa socialmente injusta e economicamente absurda. Socialmente injusta porque, como vimos, os salários têm sido nos últimos anos a nível global a parte do rendimento nacional que não tem cessado de diminuir relativamente aos rendimentos do capital. Economicamente absurda porque a mode-ração salarial e o embaratecimento do despedimento contribuem para a redução da procura e, por conseguinte, para criar menos investimento e mais desemprego. E isto é tanto mais verdade, se pensarmos que a moderação salarial que caracterizou a última década do século XX e os primeiros anos do século XXI não contribuiu para evitar as sucessivas crises financeiras. Antes pelo contrário, teve um efeito potenciador, já que cada nova fase de recuperação, antecâmara da próxima crise, carac-terizou-se por uma nova redistribuição do rendimento potenciadora do

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endividamento e do subconsumo que agravou a desigualdade entre os rendimentos do trabalho e os rendimentos do capital4 .

As notícias que nos chegam não nos deixam margem para grandes opti-mismos na frente do trabalho. Nos Estado Unidos, uma das condições impostas pelo defunto Governo Bush na sua fase declinante para salvar a Chrysler e a General Motors da bancarrota é que o nível salarial destas empresas, em que os trabalhadores dispõem de uma elevada taxa de sindi-calização e desfrutam de seguros de saúde e pensões de reforma baseadas no sistema de prestações definidas, seja reduzido para níveis “competi-tivos” relativamente às empresas estrangeiras concorrentes instaladas no país em regiões e estados em que a legislação dificulta a sindicalização, o que lhes permite, por conseguinte, consideráveis “vantagens relativas” em termos de custos. Além do mais, o prémio Nobel da Economia, o norte-americano Paul Krugman um dos críticos mais consequentes da Administração de George W. Bush e das receitas neoliberais para a crise económica, refere, num artigo publicado no diário New York Times, que “uma mensagem de correio electrónico entre os republicanos do Senado afirmava que negar ao sector automobilista um empréstimo era uma oportunidade para que os republicanos «lançassem um ataque contra o sindicalismo organizado»” (El País, 21.12.08). A nova administração norte-americana já compreendeu, em parte, a leviandade destas declara-ções e prepara um plano de ajuda para o sector automóvel. No entanto, é necessário ter em conta os interesses dos trabalhadores, sendo comple-tamente inaceitável uma estratégia que reduza os seus direitos sociais em nome da recuperação do sector5.

Na Europa não poderemos dizer que a situação dos trabalhadores é muito melhor. A precarização do trabalho tem sido a regra nos últimos anos. A França e a Alemanha, duas representantes do chamado “modelo social europeu”, são exemplos emblemáticos da degradação das condições

4 O exemplo norte-americano é paradigmático. Após a “recuperação” da crise das dotcom, o aumento da dívida não-financeira teve origem nas famílias. Pelo contrário, as empresas, conseguiram limitar o endivi-damento neste período. Isto explica claramente, como dissemos no ínicio do artigo, o aumento da liquidez empresarial entre 2003 e 2005 (Veja-se: “Worse than Japan”, The Economist, 14.02.2009). A conclusão a tirar é clara e inequívoca: o endividamento das famílias, reflexo pós-moderno do subconsumo de massa, alimentou as vendas do sector empresarial não financeiro, enquanto os lucros deste sustentavam o cresci-mento exponencial da finança especulativa. Uma verdadeira arma de destruição maciça!

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de trabalho e dos direitos laborais. Em terras gaulesas, todas as formas de emprego precário conheceram um considerável agravamento. Segundo o diário Le Monde (7.04.05), entre 1983 e 2003 o número de trabalhadores com contratos intermitentes aumentou 316 por cento, com contratos a termo (CDD) 517 por cento e o dos trabalhadores em condição de subem-prego (trabalho a tempo parcial, etc.) bateu todos os recordes, subindo 701 por cento. Em contrapartida, os contratos de duração indetermi-nada ou os empregos públicos registaram um aumento de apenas 12 por cento no mesmo período. Por sua vez, na Alemanha, pátria da economia social de mercado, a liberalização do mercado de trabalho promovida pelo governo social-liberal de Schröder fez com que um em cada três trabalhadores alemães tenha um contrato intermitente a partir de 2003. Esta medida que visava aumentar o emprego dos trabalhadores não quali-ficados e constituir uma alternativa para o desemprego de longa duração, acabou por atingir os trabalhadores com contratos estáveis. Os contratos precários, para além de relegarem os beneficiários do emprego para as tarefas mais desgastantes sem limite de horário, obrigam o trabalhador a aceitar propostas de emprego a 6,53 euros brutos por hora em qualquer ponto do território nacional (Courrier International, 4.12.08). Além do mais, com as leis Hartz IV, também aprovadas durante o governo social-liberal de Schröder, as ajudas sociais ao desemprego foram drasticamente redu-zidas. Não surpreende que, segundo uma investigação do instituto de Berlim DIW, a classe média alemã, exemplo e paradigma da economia

5 Infelizmente, é isto que está a acontecer. Uma das prioridades da nova administração da General Motors para viabilizar a empresa e poder beneficiar dos novos apoios financeiros do Estado norte-americano ao sector é “conseguir acordos com os trabalhadores para a redução dos salários e dos benefícios a que têm direito” (Público, 1.04.09). Esta “solução” revela que enquanto se gastam milhares de milhões de dólares para salvar bancos e a oligarquia financeira do colapso, se recua quando estão em causa empresas de sectores produtivos que, segundo a vulgata neoliberal, sustentavam “generosos” planos de pensão e saúde que lhes retiravam “capacidade competitiva” relativamente a outras de mais recente implantação em que predominava a “flexi-bilidade” laboral e os trabalhadores não estavam organizados em sindicatos. Não foram os “elevados custos sociais” a conduzirem a General Motors ao colapso, como defendem os adeptos do capitalismo selvagem, mas a manifesta incapacidade da administração da empresa em prever as novas tendências do mercado automóvel e dos consumidores norte-americanos que começaram a manifestar preferências por veículos mais pequenos e menos gastadores de combustível. Tudo aponta para que a anunciada reestruturação do sector automóvel nos Estados Unidos se faça através do da redução generalizada dos salários e do nivelamento por baixo dos direitos sociais dos trabalhadores. Neste sentido, a frase eleitoral de Obama “Yes, we can” - que começa a ser cúmplice desta situação por uma alegada “ausência de alternativas credíveis”, como diriam os apologistas do fatalismo centrista social-liberal da nossa praça - converte-se no seu contrário, quando estão em causa os interesses dos trabalhadores e desses “empecilhos” ou “forças de bloqueio” que são os seus sindicatos: “No, we can’t”.

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social de mercado e da “sociedade dos dois terços” de Peter Glotz, tenha caído de 62 para 54 por cento e que um em cada oito alemães seja pobre, valor que aumentaria de um para quatro se mesmo assim fossem supri-midas as mais limitadas ajudas sociais instituídas pela Hartz IV. E que dizer da velha Albion onde a jornada máxima de trabalho poderá atingir as 78 horas, o que levou o Conselho de Ministros da União Europeia a aprovar uma directiva que a fixa em 60 horas, quando era de 48 horas, com o pretexto de tudo reduzir a um menor denominador comum, mas acabando, na prática, por aumentar o horário máximo de trabalho para toda a União, apesar da oposição do Parlamento Europeu? Se esta é a situação laboral na “velha Europa”, imagine-se qual será na “nova”...

Poderiam multiplicar-se os exemplos, mas chegaríamos sempre à mesma conclusão: a degradação das condições e dos direitos laborais é uma constante lógica e social que não pode ser esquecida e escondida. E não apenas nos PVD, mas cada vez mais nos países desenvolvidos submetidos às ameaças da deslocalização de postos de trabalho e ao enfraquecimento do trabalho organizado. A melhoria das condições de trabalho não é, portanto, parte do problema, mas parte essencial da alternativa para a actual crise. É completamente inaceitável o argumento fatalista enun-ciado pelos defensores das soluções “centristas” para a crise que, como antigo prémio Nobel da Economia, Paul Samuelson, defendem candi-damente que “um centrista apenas pode reduzir de modo limitado as desigualdades inevitáveis num sistema de mercado. Isso está muito aquém de reduzir a maior parte da desigualdade” (El País, 28.12.08). Foi na base deste argumento que os sociais-liberais europeus têm paulatinamente contribuído para o desmantelamento do modelo social europeu, nive-lando por baixo os direitos laborais para evitar, dizem, que o pouco que resta se perca definitivamente. No entanto, na prática, nos factos, só restam resíduos em vias de ser varridos definitivamente de cena, tudo em nome, certamente, da competitividade da economia europeia e da preservação de empregos cada vez mais precários, sendo hoje hipócrita e sem nenhum fundamento ético-político que esses mesmos sociais-libe-rais defendam o reforço da intervenção do Estado, quando num passado recente defendiam precisamente o contrário. No entanto, tanto os neoli-berais como os sociais-liberais esquecem que uma das causas das sucessivas

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crises dos últimos anos tem sido precisamente a desigual repartição do rendimento, os superlucros e a desvalorização dos salários relativamente aos rendimentos do capital. Uma alternativa viável e imprescindível deve necessariamente passar por uma reestruturação profunda do mercado de trabalho no sentido de fazer recuar as formas atípicas de contratação, de criar condições para melhorar a qualidade e a estabilidade de emprego, assegurar horários de trabalho compatíveis com a autonomia e dignidade dos trabalhadores e a sua participação consciente nas decisões de gestão que influenciam a vida laboral. Mas isso implica precisamente a supe-ração do fatalismo neoliberal e social-liberal para o qual a competição global e a ordem proprietária dominante são uma realidade inexo-rável, uma espécie de lei natural a quem ninguém pode escapar e a que todos têm forçosamente que submeter-se. Eis a razão pela qual apenas o projecto político de construção de uma ordem cooperativa global poderá constituir não mais uma fuga para a frente no âmbito da especulação financeira que prepara as condições para a próxima crise mais grave e catastrófica do que a precedente, mas o início da génese de uma socie-dade mais igualitária em que, em vez do direito do mais forte à liberdade, a liberdade de cada um possa finalmente tornar-se em condição da liber-dade de todos.

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A crise financeira global:o que é necessário fazer?*Christopher Rude

1. Contexto

Em 13 de Novembro de 2008, um grupo de peritos acadé-micos, reguladores internacionais, responsáveis pelas políticas económicas e sindicalistas dos Estados Unidos, da Europa, da Ásia e da América Latina reuniram-se em Nova Iorque para

discutir a crise económica global, as suas causas e os seus efeitos sociais e as suas implicações na regulação e governabilidade dos mercados bancá-rios e financeiros. O prémio Nobel Joseph Stiglitz da Iniciativa para o Diálogo Político (IDP) foi o anfitrião da iniciativa, que foi patroci-nada pela Fundação Friedrich Ebert (FES). Participaram no encontro autoridades económicas de topo do passado e da actualidade prove-nientes da Argentina, Brasil, Canadá, China, Chile, Colômbia, Egipto, União Europeia (UE), Alemanha, Malásia, Polónia, Espanha, Reino Unido (RU) e Estados Unidos (EU), incluindo Justin Lin, Economista Chefe do Banco Mundial, Poul Rasmussen, responsável pelo Comité de Regulação Financeira do Parlamento Europeu, Y.V. Reddy, Paulo Nogueira Batista, Director Executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o Brasil, Amar Bhattacharya, Director do Secretariado do G24, Philip Turner do Banco de Transacções Internacionais (BTI) e José Antonio Ocampo e Stephany Griffith-Jones do IDP. O Vice-presi-dente do Banco da Reserva Federal de Nova Iorque Christine Cumming iniciou os trabalhos.

As discussões que se seguiram foram francas e sérias. Os participantes sabiam que os chefes de Estado do G20 dos países industriais e em vias de

* Traduzido do inglês com a autorização da Fundação Friedrich Ebert que nos disponibilizou o original. A Direcção da Finisterra agradece a esta instituição com a qual mantém uma colaboração regular e profícua a publicação deste excelente texto em português.

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desenvolvimento se reuniriam em Washington dois dias depois e quiseram influenciar os resultados da reunião. Saudaram os apelos para a realização de um “Bretton Woods II”, considerando fundamental a reforma finan-ceira tanto para a estabilidade económica como para e estabilidade social. Alguns participantes defenderam que um Forum para a Estabilidade Financeira (FES) mais reforçado, juntamente com o FMI, devia encar-regar-se da responsabilidade de promulgar estas reformas baseadas numa agenda limitada e sem realizar as mudanças necessárias na governação e na prestação de contas. Os participantes sabiam também que a Conferencia Internacional para o Financiamento do Desenvolvimento das Nações Unidas realizar-se-ia em Doha duas semanas depois da Cimeira do G20, e queriam reforçar todas as iniciativas para uma reforma fundamental - uma reforma que envolvesse mudanças em instituições - que pudessem partir dali. O autor participou nestas discussões informais.

2. Elementos fundamentais da reforma

Importantes medidas para reformar o sistema financeiro internacional devem ter em conta as grandes lições da actual crise para a regulação dos mercados financeiros, soluções específicas para tornar a futura estabili-dade financeira e a reformulação do sistema financeiro internacional mais credíveis, incluindo a sua arquitectura e governabilidade, de modo a servirem melhor as necessidades da economia real subjacente. Estas medidas devem iniciar-se com o reconhecimento de que os custos sociais da instabilidade financeira nos mercados emergentes e nas economias em desenvolvimento – e sobre os pobres e as classes trabalhadoras e mais geral-mente – são enormes.

Situação e diagnóstico - A derrocada do mercado financeiro norte-ameri-cano das subprime está a ter efeitos sociais muito graves no mundo em desenvolvimento. Nações com sistemas económicos, comerciais e finan-ceiros bem regulados foram arrastadas para o turbilhão através dos seus efeitos de segunda e terceira ordem. Deste modo, a crise já não é uma crise centrada nos Estados Unidos, mas uma crise económica global. Uma parte significativa do problema é a interacção entre o sistema financeiro e a

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economia “real” na fase declinante. O diagnóstico é simples: a tradicional regulação do mercado financeiro é pró-cícilica, inconsistente, desactuali-zada e incompleta, deficiente no que respeita às dívidas de curto-prazo dos bancos e às necessidades de liquidez, e baseada na concepção errada de que todos podem confiar na avaliação pelos mercados dos riscos sistémicos.

Estabilidade financeira – Para tornar a estabilidade financeira mais credível, devem ser tomadas medidas específicas para, pelo menos, reduzir a actual tendência pró-cíclica do sistema, submeter todas as instituições, mercados, instrumentos e a economia a um sistema simples e transparente de controlo regulador, orientar as necessidades de liquidez dos bancos e controlar fortemente o risco sistémico, global do mercado.

Enfrentar os custos sociais – É necessário garantir mais do que a estabilidade económica, por mais importante que esta seja. O sistema financeiro e bancário dos países, bem como os mercados monetários, de crédito e financeiros internacionais que os ligam – incluindo a sua dimensão e esta-bilidade e todos os lucros que estão a ser realizados – são meios para um fim, e não fins em si próprios. A dimensão social da actual crise coloca questões relativas à equidade do actual regime que não podem ser resolvidas em termos de mercado. De modo a gerar estabilidade social, as reformas da actual arquitectura financeira devem reorientar as necessidades e interesses dos mercados emergentes e dos países em desenvolvimento que foram atingidos pelo turbilhão proveniente dos Estados Unidos, incluindo as necessidades das suas classes trabalhadoras e dos pobres.

Estímulos, outras medidas - A reforma financeira não impedirá a crise de se agravar a não ser que seja acompanhada por estímulos fiscais coordenados e injecções de liquidez, pela utilização de controlos de capitais para objec-tivos anticíclicos e pela reforma do FMI.

3.1. Factos que estiveram na origem da crise

As dificuldades económicas actuais provêm dos Estados Unidos. Os activos básicos originais eram casas cujos preços estavam a crescer. O

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colapso do mercado norte-americano de obrigações hipotecárias e dos seus produtos derivados ampliou a debilidade do sector de construção norte-americano, lançando um choque recessivo sobre a economia dos Estados Unidos e do resto do mundo.

Activos suportados por títulos comerciais emitidos pelos special purpose vehicles1 (SPV), actualmente em dificuldades, enfraqueceram o mercado de fundos expressos em dólares, provocando o seu congelamento em Agosto de 2007. Este mercado fornece aos grandes conglomerados financeiros multinacionais norte-americanos e estrangeiros as divisas de curto prazo que necessitam para financiar os seus investimentos, incluindo os que efectuam diariamente nas suas mesas negociais. Desde então este tem permanecido mais ou menos congelado, com consequências desastrosas para o sistema financeiro.

O seu colapso total em Agosto de 2007 mutilou o sistema bancário e financeiro norte-americano, fazendo com que este se desemaranhasse lentamente. As coisas pioraram em Setembro de 2008, ou mais exacta-mente, os eventos atingiram um ponto culminante. Pouco de novo tinha sucedido no núcleo do próprio sistema financeiro, pois este já estava bloqueado, mas a macroeconomia geral estava a enfraquecer e a arrastar o preço dos activos para níveis cada vez mais baixos.

Uma clássica macrodeflação pilotada da dívida estava em curso: o congelamento deslocou-se do mercado interbancário para os outros mercados monetários de curto prazo dos Estados Unidos, incluindo os que eram controlados pelos maiores fundos de investimento colectivo (mutual funds) do mercado monetário, provocando também o seu conge-lamento. Em Novembro de 2008, todo o sistema financeiro, e não apenas o dos mercados monetários dos Estados Unido e do Reino Unido, tornaram-se incapazes de tomar as medidas mais elementares para

1 Poderá traduzir-se em português por “instrumentos ou entidades financeiras para fins específicos”. Os SPV constituem fundamentalmente instrumentos financeiros que permitem a uma firma transferir as suas dívidas para uma subsidiária com um estatuto legal e uma estrutura accionista e obrigacionista. O objectivo formal deste instrumento de “engenharia financeira” é o financiamento de um grande projecto sem pôr em risco a “casa-mãe”. No entanto, na prática, consiste num expediente para ocultar o endividamento da firma. Oficialmente, esta não tem responsabilidades financeiras perante terceiros, já que as suas dívidas não são registadas nos seus balanços contabilísticos. No entanto, como o demonstra a falência da Enron, quando as dívidas se vão acumulando de modo cada vez mais insustentável, os resultados deste expediente da “engenharia financeira” revelam-se catastróficos (N.T.).

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converter as poupanças das empresas em investimento ou para financiar a construção de casas, o consumo privado ou o desenvolvimento. Nas actuais condições, recolher os fundos necessários para melhorar e reju-venescer as infra-estruturas do mundo é muito difícil.

3.2. Perspectivas do mundo em desenvolvimento

Os mercados emergentes e os países em desenvolvimento pareceram inicialmente imunes ao turbilhão proveniente dos Estados Unidos. Atrasos na contracção das necessidades de importação dos Estados Unidos e da Europa, um intenso aumento nos preços da energia e das matérias-primas (parte do qual resultante da movimentação das moedas especulativas devido ao colapso dos mercados hipotecários e de crédito norte-americanos) e as reservas que muitos mercados emergentes e países em desenvolvimento acumularam em anos recentes permitiram um adiamento temporário. Esta imunidade não durou muito tempo. Os países que adoptaram estratégias de crescimento orientadas para a exportação e liberalizaram os movimentos de capitais, cedo perceberam que estavam a sofrer os efeitos da redução da procura global das nações para onde exportavam.

Estes eram também afectados por um aumento repentino e muito grande das suas taxas de juro na sequência da implosão do sistema finan-ceiro dos Estados Unidos em Setembro de 2008. Estas economias estão a sofrer a sua própria crise económica (expressa pela queda das exporta-ções, dos preços das mercadorias e a redução da procura interna) mas sem culpa própria. O mesmo aumento de preços que contribuiu para o adia-mento temporário da crise nestes países teve igualmente um outro efeito negativo: aumentos intensos dos preços do milho, do arroz, do trigo e de outros preços dos alimentos geraram uma quebra elevada e repentina dos salários reais e dos níveis de vida, que não foram subsequentemente melhorados pelas quedas posteriores dos preços. Isto estava a acontecer precisamente quando o desemprego estava a subir. O mercado emer-gente e os países em desenvolvimento estão agora a passar pelo mesmo círculo vicioso que está a afectar as nações desenvolvidas: as suas econo-mias enfraquecidas estão e interagir com as debilidades nos seus sistemas financeiros. Uma deflação global da dívida está a caminho.

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3.3. Implicações políticas para o desenvolvimento As implicações políticas disto para os mercados emergentes e para os

países em desenvolvimento são tão importantes como os efeitos econó-micos. A crise actual teve a sua origem nos Estados Unidos, o país que até agora era um dos principais responsáveis pela desregulação do mercado financeiro. Afectou os países em desenvolvimento a partir de fora (países que já tinham sido desregulados a partir do exterior). Contrariamente à crise financeira asiática, por conseguinte, os apelos para criação de uma ordem internacional financeira nova e diferente são fortes. O modelo de investimento bancário dos Estados Unidos foi desacreditado, junta-mente com a sua mera confiança nos poderes correctivos dos mercados financeiros. Não admira que muitos mercados emergentes e países em vias de desenvolvimento estejam a pedir uma reunião de “Bretton Woods II” para estabelecer uma forma de sistema bancário e financeiro interna-cional mais justo globalmente.

4.1. As medidas de reforma do mercado financeiro

O que é que correu mal economicamente?As regulações bancárias promulgadas pelo Comité Basel de Regulação

Bancária, com a sua tónica em requisitos mínimos de capital, supervisão ligeira e disciplina de mercado são pró-cíclicas: estimulam os inves-tidores a fazer investimentos maiores e mais arriscados durante a fase ascendente do ciclo de negócios e a reduzir os seus investimentos durante a fase descendente, não amortecendo mas aumentando a instabilidade dos mercados financeiros e a volatilidade da economia real subjacente.

As regulações existentes não acompanharam as mudanças no sistema bancário e financeiro. Também estimularam a arbitragem reguladora e ajudaram os bancos e outras instituições financeiras a esconderem as suas actividades dos reguladores, usando entidades legais fora das folhas de balanço, instrumentos derivados complexos e centros financeiros off-shore.

A asseguração2, os derivados de crédito3 e a passagem de um sistema financeiro centrado na banca para um sistema financeiro centrado, em

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geral, no mercado desempenharam claramente um papel na crise. Mas o turbilhão financeiro quando se manifestou, surgiu nos grandes bancos e nas casas de investimento, ou mais precisamente, no mercado monetário de curto prazo em que estas instituições situadas no centro da economia global recolheram os fundos de curto prazo que utilizaram para financiar investimentos de longo prazo. Os problemas situam-se mais na vertente do passivo do que na do activo dos seus balanços e relacionam-se mais com a sua incapacidade para gerir a sua dívida de curto prazo do que o risco dos seus investimentos.

As disposições existentes pouco fizeram para controlar a alavancagem (“leverage”)4 e a excessiva exposição ao risco. Muito pelo contrário, os bancos e as outras instituições financeiras foram encorajadas a utilizar as suas próprias medidas internas de gestão de risco para controlar o seu risco na base da noção errada de que os mercados avaliam o risco correc-tamente e que é possível, com efeito, privatizar a gestão e o controlo do risco global do mercado. A estabilidade financeira é um bem público que não é fornecido pelos mercados financeiros.

4.2. Rever os três pilares do Basel II

A reforma deve incidir sobre os “Três Pilares” da regulação do Comité de Basel e não centrar-se apenas no primeiro pilar. Os três pilares são: estabelecimento de níveis mínimos de capital, revisão adequada da supervisão de capital e disciplina de mercado. No contexto da estrutura do Basel II, a tónica é colocada na constituição de níveis de capital que

2 “Securitization”, no original. Trata-se fundamentalmente de seguros sobre créditos. Ao segurar o seu crédito numa instituição criada exclusivamente para este fim, a entidade credora adquire o direito de ser compensada no caso de incumprimento do devedor. No entanto, como o capital das “instituições” segura-doras era significativamente menor do que o volume astronómico das dívidas que se tinham comprometido a repor total ou parcialmente, todo o sistema de “asseguração”, apesar dos prémios ou comissões elevadas que lhe era pago, acabou por ruir como um castelo de cartas com a eclosão da crise das subprime. Estas operações de “asseguração” têm o nome de credit default swaps (N.T.).

3 São contratos que permitem trocar uma dívida com taxa variável por uma dívida com taxa fixa, uma dívida em euros por uma dívida em dólares ou noutra moeda com o objectivo de diminuir o nível de risco a partir de uma estimativa da evolução dos preços. (N.T.)

4 Trata-se de um processo que liga o valor de um título ao dos outros que são negociados no mercado bolsista de modo que a queda do valor de um arrasta a de outros e assim sucessivamente numa reacção em cadeia imparável (N.T.).

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dependem do próprio risco interno do sistema de gestão do banco. A incidência do mercado e a disciplina vêm a seguir. No âmbito do Basel II, as autoridades desvalorizam também as actividades tradicionais dos reguladores e supervisores, que estabelecem externamente regras deter-minadas e por vezes não-mercantis de regulação. Os oito por cento de requisito de capital são um rácio de capital mínimo. Um supervisor de um banco pode exigir-lhe a manutenção de um mais elevado. Mas as autoridades podem não ter necessidade de obrigar um banco a ter um rácio de capital mais elevado, em consequência da disciplina de mercado. Como o rácio de capital do banco é tornado público, funciona como uma medida célere e fiável da solidez do banco. Os bancos com rácios de capital elevados têm um acesso fácil tanto ao capital como ao crédito. Os mercados punem os bancos com rácios de capital baixos.

Isto pode muito bem parecer uma coisa sensata de fazer se o objectivo é regulamentar um banco em partícular, mas os efeitos são diferentes na prática e a nível global: este pacote de políticas acentua mais do que amor-tece o ciclo de negócios. É fácil compreender porquê. O problema não é simplesmente que o capital de um banco aumenta normalmente durante a prosperidade e cai durante a crise. O problema é que os requisitos de capital são avaliados pelo risco. As avaliações dos riscos são funções dos preços correntes e recentes, e são, por conseguinte, contra-cíclicos: as medidas do risco caem na alta e sobem na baixa.

Depois, existe o efeito do Basel II sobre a diversidade das opiniões dos investidores: se cada investidor está a usar o mesmo sistema de medida e gestão de risco, a ausência resultante de desacordo tornará impossível a negociação deste risco. A disciplina de mercado que o sistema encoraja é laxista na alta e severa na baixa. Os bancos que funcionam melhor, isto é, os bancos com capital de risco e investimentos lucrativos que são aparentemente mais seguros, fornecem mais capital para despender. Os bancos em dificuldades, isto é, os bancos com capitais declinantes e investimentos mais arriscados e perdulários ficam famintos. O efeito de cada banco que actua da mesma forma é primeiro expansionista, depois contraccionário num grau extremo. Todos aumentam ou reduzem os seus empréstimos ao mesmo tempo. Os bancos em que se sabe que os rácios de capital sobem ou descem de modo extremamente rápido serão

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bastante recompensados e punidos ainda mais.Duas importantes reformas contra-cíclicas devem ser introduzidas

para substituir ou contrariar a pró-ciclidade dos níveis exigidos do capital existente. Os próprios níveis exigidos de capital podem ser reformados de modo a torná-los contra-cíclicos. As provisões devem ser utilizadas como um instrumento de uma política contra-cíclica. Os bancos devem compensar as perdas nas suas reservas de crédito quando fazem os seus empréstimos. Requisitos mínimos devem ser utilizados pró-activamente. O objectivo deste tipo de medidas é impedir a implosão ao evitar que a expansão saia fora de controlo.

4.3. Criar uma regulação abrangente

As novas regulações devem ser abrangentes, cobrindo todas as activi-dades, instrumentos, mercados e instituições, incluindo os itens fora das folhas de balanço, os fundos de alto risco (“hedge funds”) e os centros off-shores e os paraísos fiscais. Caso contrário, um “sistema financeiro subterrâneo” torna impossível impedir a sobre-alavancagem e a arbi-tragem reguladora que contribuíram para a actual crise. Todos os tipos de actividade financeira e bancária têm que ser monitorizados, tanto a segurança subjacente e derivativa colocada sob observação, como as tran-sacções negociadas e as dívidas fora do balanço postas sob controlo. As firmas de corretagem, as companhias de seguros, os fundos de pensão e de investimento colectivo devem ser supervisionados. Uma autoridade financeira mundial ou um regulador global para complementar um FMI reformado, reconfigurado como um banco central de bancos centrais, seria imprescindível para desenvolver e depois implementar as reformas reguladoras necessárias. Em termos simples, o domínio do regulador deve ser o mesmo que o domínio do mercado.

4.4. Adoptar medidas para aumentar a liquidez

Falhas graves existem nos mercados monetários de curto prazo em que as instituições financeiras e não financeiras recolhem fundos para finan-ciar os seus investimentos e outras actividades de longo prazo. Todos os

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tipos de instituições, o mercado e o sistema financeiro foram desfavo-ravelmente afectados pela crise, mas o mercado que foi mais afectado situa-se no próprio centro da economia internacional: o mercado inter-bancário. Em toda a parte os bancos centrais tomaram medidas para tornar o mercado interbancário a termo de novo líquido, mas até agora sem sucesso. As razões para estes falhanços não são claramente enten-didas, nem é manifesto por que motivo o mercado interbancário foi tão severamente afectado. Os mercados monetários de curto prazo estão a precisar de uma reforma urgente.

4.5. Reduzir o risco de mercado

Os mercados financeiros não processam eficientemente ou bem a informação. Isto sucede ou devido ao tipo de problemas de assimetria de informação importantes para Stiglitz, ou devido ao que os keyne-sianos e pós-keynesianos designam por “incerteza radical”, os bancos e os mercados financeiros não distribuem eficientemente o capital e os riscos determinados pelos prémios de mercado fornecem pouca ou nenhuma informação sobre os riscos subjacentes. Se os bancos e os mercados financeiros não podem tornar eficientes os investimentos de longo prazo ou gerir o risco efectivamente quando entregues aos seus próprios mecanismos, logo é necessária uma regulamentação mais efec-tiva independentemente de todos os efeitos que poderá ter na prevenção ou redução das crises futuras.

Há uma grave insuficiência no modo em que o sistema corrente gere o risco, o seu preço de mercado e especialmente os riscos de crédito. Este tentou gerir os últimos através dos derivados de crédito, isto é, através da criação de um mercado não para o crédito mas para o risco do crédito. Em discussão está o encorajamento que as autoridades deram à passagem do primeiro regime de capital de Basel para o Basel II e, por conse-guinte, à conexão entre o regime de capital do BTI e as novas dificuldades correntes.

No âmbito do Basel II, os bancos podem utilizar as suas próprias medidas internas de risco e sistemas de gestão para determinar os seus requisitos de capital, não apenas para os riscos de preços das suas

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operações de corretagem (isto não era novo), mas também, e mais rele-vantemente, para os riscos das suas contrapartidas – ou de crédito – mais geralmente. A utilização dos derivados de crédito para formular, reestru-turar e gerir de outro modo a exposição ao crédito foi a resposta racional do sector privado. Os bancos já fizeram os investimentos necessários nas tecnologias de informação e corretagem para gerir os riscos de preço, de modo que era fácil para eles utilizar esta mesma tecnologia para construir e negociar seguros de crédito (“credit default swaps”5), obrigações de dívida com garantias6 (“collaterized debt obligations”) e activos baseados em papel comercial. Isto foi o que a passagem para o Basel II os estimulou a fazer, e foi isso que fizeram.

A última coisa de que poderemos ter necessidade é um “Basel II com sentimento”, ou por outras palavras, um regime de capital mais esbatido, mas em que a própria modelação de risco de um banco tem ainda um papel a desempenhar. O problema não é apenas a autonomia operativa que é estimulada pela política que permite aos bancos estabelecer o seu próprio capital de risco. A regulação efectiva é intrusiva: deve obrigar a firma que é regulada a actuar de forma diferente de como se comportaria simplesmente para maximizar os seus próprios lucros e minimizar os seus próprios riscos. A estabilidade é um bem público e o risco sistémico é uma externalidade7. Precisamente porque a última não é mensurável em termos da avaliação que um banco particular faz do seu risco, os bens públicos não são normalmente coisas que os mercados produzem. A acti-vidade macroeconómica bancária e a estabilidade do mercado financeiro são algo que um regulador impõe.

O facto dos mercados financeiros desregulamentados registarem problemas de informação tem diversas aplicações adicionais:

Para aumentar a transparência do mercado, as operações fora dos registos de caixa de todos os produtos derivados e estruturados devem ser

5 Ver nota 2 (N.T.).

6 As subprimes eram formas de collateralized debt obbligations, ou seja, eram dívidas que tinham como garantia um bem patrimonial, uma habitação que, quando os juros eram baixos, podia ser vendida a preços muito supe-riores aos da aquisição se o seu proprietário não pagasse a hipoteca (N.T.)

7 Consequências não previstas da actividade de um agente económico sobre a sociedade e o ambiente (N.T.).

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impedidas, transferindo, pelo contrário, para as trocas todas as funções que aquele derivado ou produto podia ter desempenhado. Os special purpose vehicles8 e outras ficções legais semelhantes que permitiram aos bancos e a outras instituições financeiras manter estas transacções fora dos registos contabilísticos devem ser adicionalmente abolidas.

Estas medidas têm de ser tomadas para acabar com o insider trading9 e os conflitos de interesses. Os incentivos, as barreiras de protecção e as formas de gestão das firmas devem ser reformadas.

Para impedir crises financeiras futuras e a má distribuição de capital durante uma “mania”, as autoridades monetárias devem ter em conta as inflações e deflações dos preços dos activos financeiros e não apenas as inflações e deflações do Índice de Preço do Consumidor (IPC) na condução das suas políticas, incluindo as políticas reguladoras. Há algo de perturbador na forma como os bancos centrais se comportaram no passado: o seu implacável empenhamento em manter a inflação do IPC baixa combinada com o seu aparente desinteresse em examinar a inflação dos activos financeiros, produziu uma era caracterizada pelos baixos salá-rios, baixo crescimento e instabilidade financeira persistente.

Considerando que o sistema financeiro não pode ser completamente reformado, devem ser tomadas medidas para colocar um cordão de segu-rança à volta do núcleo do sistema das instituições bancárias e financeiras. O objectivo é proteger o núcleo de outros sectores menos regulamentados do sistema financeiro que podem existir ainda e em que os problemas de informação continuam a predominar. O problema é controlar a alavan-cagem – a mobilização do sistema monetário para objectivos especulativos – e, por conseguinte, impedir o dinheiro “alavancado” de se desmoronar durante uma crise financeira para níveis inferiores ao da sua anterior massa monetária, com inevitáveis efeitos disruptivos relativamente ao uso do dinheiro como meio de pagamento. Uma forte regulação associada a uma generosa concessão de empréstimos de último recurso quando necessários, são claramente uma parte da solução de longo prazo.

8 Ver nota 1 (N.T.).

9 Obtenção e divulgação ilegal de informações sobre os valores dos títulos para obtenção de um ganho à custa dos outros intervenientes no mercado financeiro (N.T.).

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4.6. Adoptar pacotes de estímulo orçamental

O estímulo orçamental é urgentemente necessário para ressuscitar a economia real subjacente à medida que a política monetária é claramente capturada pelo que Keynes designava por “armadilha da liquidez”. Uma expansão orçamental coordenada, grande, rápida e internacionalizada é necessária para estimular a procura mundial, e é necessária imedia-tamente. Isto pode e provavelmente deve ser acompanhado por uma reciclagem das enormes reservas externas da China, do Japão e de outros países – possivelmente através de uma rede de bancos de desenvolvimento regional – para países emergentes e países em desenvolvimento em busca de financiamento adicional. Mas os responsáveis pela política económica devem ser cautelosos: isto envolve a venda de obrigações de tesouro dos Estados Unidos, o que poderá desencadear uma subida nas taxas de juro e uma queda do dólar.

5.1. Fins e meios: a economia política da reforma

O sistema financeiro numa economia de mercado tem quatro funções:

Deve mobilizar todos os fundos inactivos que possam existir para os objectivos de investimento no mercado de capitais, isto é, transferir as poupanças das firmas para o investimento.

Em economias como as dos Estados Unidos, Reino Unido e outros países desenvolvidos em que a construção de casas é financiada por hipotecas e as despesas de consumo por cartões de crédito e segundas hipotecas, este deve também financiar o consumo.

Um terceiro objectivo, em que os mercados emergentes e as nações em desenvolvimento têm um interesse específico, é o financiamento do comércio internacional e do investimento e, por conseguinte, do desen-volvimento. Por fim, o sistema financeiro deve permitir e encorajar investimentos de longo prazo, particularmente investimentos de longo prazo em infra-estruturas.

Os sistemas bancários e financeiros e os sistemas de pagamentos que estes incluem são consequentemente meios para fins e não fins em sei

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próprios. Avaliado por estes padrões, o sistema financeiro interna-cional tal como existe actualmente é um falhanço. Os actuais mercados financeiros desregulamentados ou fracamente regulamentados não têm credibilidade para transferir ganhos acumulados para investimento eficiente, financiar as despesas de consumo, construir casas a preços compatíveis, financiar o desenvolvimento ou recolher os fundos neces-sários para reestruturar as diversas infra-estruturas nacionais, enfrentar o aquecimento global e outras limitações ambientais.

O problema é que o sistema bancário e financeiro internacional não é simplesmente um mecanismo para distribuir bens e serviços. As relações económicas e as relações sociais, e o sistema financeiro internacional, longe de serem um terreno de jogo nivelado, são fundamentalmente um sistema hierárquico onde alguns sistemas financeiros nacionais predo-minam sobre outros sistemas financeiros nacionais numa configuração geográfica que também é política. Segundo esta perspectiva, o sistema financeiro internacional transfere valor sob a forma de juros, dividendos e outros pagamentos de uma região para outras.

Também segundo esta perspectiva, as crises financeiras têm uma função disciplinadora, que se caracteriza especificamente pelo modo como foram resolvidas no passado, com a divisão do trabalho entre a redução das taxas de juro dos bancos centrais do G10 e um austero FMI que asse-gura que a instabilidade – surja onde surgir – ou permanece confinada internamente ou é transferida para os sistemas financeiros mais fracos, enfraquecendo-os, por conseguinte, ainda mais. A “pró-ciclidade” dos requisitos mínimos de capital deve ser vista nesta perspectiva. Aqui, a disciplina é global.

Há um outro factor a ter em conta. As relações financeiras são sempre relações credor-devedor, em que em troca do dinheiro de hoje, o devedor transfere mais dinheiro para o credor no futuro. Sempre que o devedor deve efectuar os seus pagamentos ao credor, mesmo se os inves-timentos realizados com o dinheiro emprestado não são lucrativos, o devedor torna-se o membro subordinado na relação, mesmo se é um investidor. Os devedores que contraem empréstimos para financiar o consumo aprofundam-se cada vez mais na dívida.

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5.2. O que está em jogo?

Estes três factos – uma hierarquia internacional de sistemas bancários nacionais, crises financeiras como mecanismos disciplinadores, as rela-ções credor-devedor que impregnam todo o sistema – determinam o que está em jogo em qualquer debate sobre a natureza de uma “nova arqui-tectura financeira internacional”. A distribuição dos recursos que aqui está em causa depende de uma mudança nas capacidades organizacionais dos Estados e instituições inter-estatais. Esta nova distribuição não pode ser feita apenas na base do mercado porque a instabilidade e a injustiça são inerentes aos mercados livres e desregulamentados. Tendo em conta a relação que existe entre direitos e cidadania e, por conseguinte, entre direitos humanos e o Estado-nação, o princípio que deve orientar a nova distribuição dos verdadeiros recursos reguladores globais mundiais é claro: soberania nacional no interior de um sistema de igualdade internacional. A posição subordinada dos mercados emergentes e das nações em desen-volvimento no seio do sistema financeiro internacional deve acabar.

6.1. Para uma social-democracia global

O acordo entre os reformadores acerca da natureza da actual crise económica global e o lugar que nesta ocupam os mercados emergentes e os países em vias de desenvolvimento, de que todas as reformas devem ser contra-cíclicas, de que os mercados financeiros são propensos a falhas de mercado, de que princípios de igualdade nacional devem modelar o novo regime e de que devem ser tomadas medidas para estimular a procura global, não implica unanimidade relativamente ao que deve ser ou fazer precisamente o “Novo Bretton Woods”. Por um lado, existem os que acreditam que as dificuldades informativas dos mercados finan-ceiros devem ser resolvidas por uma melhor transparência do mercado, que estão mais preocupados com a estabilidade do que com a igualdade e que acreditam que as mudanças necessárias são mínimas. Por outro lado, os que desconfiam dos mercados pouco regulamentados ou não regulamentados e para quem as disposições actuais conduziram a conse-quências económicas e sociais graves e negativas, defendem ser necessária

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uma considerável mudança estrutural.Para o primeiro grupo, as regulamentações promulgadas por um novo

regulador do mercado internacional devem ser ligeiras, e devem limitar-se a pôr em foco questões relativas à estabilidade macroeconómica, deixando o mercado desempenhar um papel relevante na distribuição das poupanças globais e no financiamento do desenvolvimento. Para o segundo grupo, a nova regulamentação deve ser intrusiva e deve promover activamente o desenvolvimento dos mercados emergentes e das nações em desenvolvimento, encontrando modos inovadores para orientar os resul-tados do mercado para uma repartição mais igualitária dos bens sociais. O primeiro grupo atribui grande importância às relações de mercado; o segundo grupo favorece a desmercantilização. É importante recordarmos que, contudo, estes desacordos ocorrem no contexto de um acordo mais fundamental sobre as necessidades da reforma da economia internacional e do lugar que os mercados emergentes e os países em desenvolvimento ocupam nesta e sobre o ritmo e a extensão das reformas necessárias.

6.2. Um programa mínimo

Que conjunto mínimo de princípios deve, então, orientar o avanço do processo de reforma? Existem três:

Qualquer solução deve ter como ponto de partida os custos sociais da crise porque estes estão a afectar desproporcionadamente os países em vias de desenvolvimento, bem como os pobres e os trabalhadores mais geralmente. Um sistema bancário e financeiro global viável e estável é um meio para um fim, não um fim em si próprio, e os fins relevantes são sociais. O mérito do sistema bancário e financeiro não deve ser avaliado apenas segundo a estabilidade que promove ou segundo o crescimento, a inovação e o investimento que pode estimular. As disposições sistémicas devem ser avaliadas segundo o modo como promovem a justiça social.

Por estas razões, instituições globais representativas – e não agru-pamentos ad hoc sem legitimidade democrática – devem estar no centro de todos os esforços de reforma. O FMI, o BTI e outras organizações semelhantes devem ter uma função a desempenhar no novo sistema, mas as propostas que não têm legitimidade democrática não chegam a

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parte alguma. Existe uma ligação entre a injustiça e a instabilidade do sistema financeiro internacional que se está agora a revelar e a sua habi-tual incapacidade para promover a estabilidade e o crescimento. As reformas necessárias para estabilizar a economia internacional – e para a trazer de volta, em conjunto, de novo – devem, por conseguinte, ter em conta os apelos dos mercados emergentes e dos países em vias de desenvolvimento.

Por fim, estas reformas têm necessariamente que estabelecer um novo equilíbrio entre a economia e a política, um novo equilíbrio que favoreça o Estado democrático relativamente ao mercado financeiro, o interesso público relativamente aos lucros privados e um governo responsável rela-tivamente à especulação irresponsável**

(Tradução de Joaquim Jorge Veiguinha)

** O autor gostaria de agradecer a Werner Puschra, Stephany Griffith-Jones e Sara Burke pelo seu apoio e ajuda neste projecto.

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Uma estratégia de esquerda para enfrentar a criseAugusto Santos Silva

1. Uma crise intensa e complexa

Este artigo considera a experiência portuguesa de resposta à crise económica mundial, experiência conduzida pelo governo socialista em funções. E tem como objectivo analisar a coerência da resposta.

Para isso, preciso de lembrar dois ou três factos. A crise finan-ceira que irrompeu nos Estados Unidos e, depois, ao longo dos últimos meses de 2008, alastrou a toda a economia e tomou proporções planetárias, encon-trou o executivo liderado por José Sócrates na segunda metade do seu mandato, iniciado em Março de 2005. De 2005 a 2007, este executivo havia conseguido fazer sair Portugal da situação de défice excessivo, baixando o défice orçamental dos 6,8% implícitos, segundo o Banco de Portugal, no orçamento inicial para 2005, e dos 6,1% verificados no fim de 2005, para 2,6%. A economia portu-guesa havia retomado uma trajectória de crescimento, sustentada sobretudo na expansão das exportações, registando um aumento real do PIB de 1,9% no ano de 2007. O Governo havia logrado importantes reformas na segurança social, nas finanças locais e regionais, na saúde, na educação e na adminis-tração pública; e o Parlamento debatia a reforma da legislação laboral. O Plano Tecnológico, que tinha sido a bandeira política central da campanha socialista para as eleições legislativas de 2005, mostrava os primeiros resultados: simpli-ficação dos procedimentos administrativos, governo electrónico, balança tecnológica da economia portuguesa positiva, financiamento da investigação e desenvolvimento na ordem de 1% do PIB, distribuição maciça de compu-tadores e ligações em banda larga pelas escolas secundárias. Finalmente, do ponto de vista da reorientação da política económica, estava definida a prio-ridade às energias renováveis e, no que toca às políticas sociais, haviam sido lançados o programa de combate à pobreza nos idosos (através do comple-mento solidário) e as medidas de promoção da natalidade.

2008 foi um ano extremamente complexo. Toda a primeira metade foi domi-

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nada pela escalada dos preços de matérias-primas, com destaque para o petróleo, e dos bens alimentares, bem como pela subida das taxas de juro. A acção política concentrou-se, logicamente, em apoios adicionais às famílias (como o congela-mento dos passes sociais, a criação do passe escolar, o aumento dos escalões mais baixos do abono de família ou a majoração das deduções fiscais dos juros pagos por empréstimos à habitação), no auxílio a sectores fustigados pelo aumento do custo dos combustíveis, como os transportes e as pescas, e em medidas de equidade fiscal (como o imposto extraordinário sobre os lucros das empresas petrolíferas).

Na segunda metade de 2008, tudo mudou. A crise bolsista norte-ameri-cana pôs a nu a extrema fragilidade de sistemas financeiros contaminados pelo enorme peso dos chamados activos tóxicos e a desregulação de mercados captu-rados por práticas especulativas brutais. Os efeitos sobre a economia real foram devastadores. Todas as principais economias fecharam o ano em recessão, o crescimento das economias emergentes travou fortemente, os preços caíram, o comércio mundial retraiu-se, o desemprego disparou.

Portugal teve, no conjunto do ano de 2008, um crescimento nulo, entrando em recessão técnica no último trimestre. A taxa anual de desem-prego situou-se nos 7,6%, mas o número de inscritos nos centros de empregos haveria de aumentar significativamente logo nos primeiros meses de 2009. No fim do primeiro trimestre de 2009, a taxa de desemprego cifrar-se-ia nos 8,9%. Como noutros países, o Estado teve de intervir para evitar o colapso do sistema financeiro e tentar repor os canais de crédito às empresas e às famí-lias. A crise mundial atingiu-nos fortemente, nas suas diferentes dimensões: crise de confiança, crise de regulação, retracção do investimento, retracção da procura, queda do comércio internacional, dificuldades no financiamento da actividade económica, aumento do desemprego.

2. Combate à crise e reformas estruturais

Nestas condições, o governo socialista tem seguido uma estratégia política cujos fundamentos quero, aqui, apresentar, para que os leitores ajuízem sobre a sua coerência e potencial, assim como a articulação com a lógica política própria da esquerda democrática europeia.

A primeira característica distintiva desta estratégia – e talvez a mais importante – é a conjugação de dois planos ou dimensões de acção. Um, eminentemente circunstancial, é a resposta imediata à crise – tipi-

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camente reactiva, entre nós como em todo o mundo, não sendo possível dizer, à data em que escrevo (Junho de 2009) se as lideranças políticas e económicas já passaram a comandar o curso dos acontecimentos. O outro plano, estrutural, são as reformas modernizadoras.

A associação dos dois planos quer dizer simplesmente isto: que o Governo procura preservar, no decurso da crise, a sua agenda reformista, nos termos em que a definiu, desde o início do mandato. Esta agenda tem como pontos-chave a qualificação, a competitividade económica, a modernização administrativa, a sustentabilidade das políticas sociais e a melhoria do desempenho dos serviços públicos, a cidadania e os direitos pessoais.

A associação dos dois planos tem três razões de ser. A primeira é garantir que a conjuntura não faça perder as mudanças já conseguidas de natureza

estrutural. Entre tais mudanças contam-se, por exemplo, a consolidação de novos direitos sociais (como o direito dos idosos a rendimentos não inferiores ao limiar da pobreza), novas prestações sociais (como o abono pré-natal, para mulheres grávidas) ou novas oportunidades de formação e/ou inserção social (como os programas de reconhecimento e certificação de competências e completamento de formações qualificantes, reunidos na iniciativa Novas Oportunidades).

A segunda razão de ser é aproveitar os resultados obtidos no plano estrutural como meios e recursos de combate à crise económica. O exemplo mais ilustrativo é a consolidação orçamental. A descida do défice orçamental dos 6,1% de 2005 para os 2,6% de 2008 e a saída do procedi-mento por défices excessivos é que permitiram ao Estado português ter a margem de manobra financeira e a credibilidade externa, quer junto da União quer junto dos mercados, para acomodar novas despesas em contexto de significativa redução das receitas fiscais associadas à actividade económica. Os valores já apurados para o ano de 2008 evidenciam bem essa margem e essa vantagem comparativa internacional. Assim, Portugal fechou o exercício orçamental do ano passado com um saldo primário positivo em 0,3% do PIB: isto é, descontada a despesa com os juros, teve excedente orçamental. O peso da despesa pública no PIB (45,9%) era inferior à média da zona euro (46,7%); e o mesmo acontecia com o peso da receita fiscal no PIB (43,2%, contra 44,8% na zona euro). A dívida pública, que havia crescido para 66,4% do PIB situava-se, mesmo assim, também abaixo do valor da zona euro (69%)1.

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1 Cito os valores apresentados pelo Ministério das Finanças e da Administração Pública no Relatório de Orientação da Política Orçamental, datado de Maio de 2009, caps. 2 e 4.

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A terceira e talvez mais importante razão para associar o combate à crise e a prossecução da agenda reformista é a urgência do investimento nas condições estruturais de competitividade, para que a oportunidade de retoma da trajectória do crescimento seja imediata e plenamente aproveitada pela economia nacional, logo que se inicie a viragem mundial. E nada demonstra melhor a necessidade desta articulação do que o facto de Portugal ver sistematicamente depreciada, nas previsões de várias organizações internacionais, a sua capacidade de acompanhar o primeiro movimento inter-nacional de retoma, por causa de fragilidades estruturais em áreas tão decisivas como o capital humano, a intensidade tecnológica, a gestão empresarial ou a burocracia.

3. A dimensão europeia do combate à crise

Além da articulação entre o combate conjuntural à crise e a agenda de reformas estruturais, outro pilar que me parece sustentar a estratégia do Governo socialista português é a consonância com as estratégias seguidas pelo conjunto da União Europeia e pela Administração Barack Obama. De facto, as políticas de estabilização do sistema financeiro, com forte empenhamento do Estado na recapitalização dos bancos e/ou na redinamização do mercado interbancário, as políticas de estímulo orçamental, reforço do investimento público, antecipação ou acele-ração dos chamados investimentos modernizadores, seja na economia verde, nas acessibilidades rodoviárias ou ferroviárias, na educação e nas escolas ou nas redes de comunicação de nova geração, assim como as políticas de apoios sociais e fiscais, vêm sendo postas em prática por governos europeus de dife-rentes proveniências ideológicas e pelo novo Presidente norte-americano.

Pode até dizer-se que, em Portugal, quem não está em consonância com o espírito do tempo é a actual direcção do PSD, cujo discurso contra o investi-mento público e a intervenção estatal contrasta significativamente com a acção dos executivos de centro-direita pela Europa fora. Mesmo no tópico fiscal, não se pode dizer que o Governo Sócrates esteja sequer parcialmente desalinhado da tendência internacional. É que foi já no segundo semestre de 2008 que baixou a taxa normal do IVA em um ponto percentual (para 20%); e desde a aprovação do Orçamento para 2009 que ficou decidida a redução da taxa de IRC devida pelas empresas até à matéria colectável de 12.500 euros, além de outras descidas nas obrigações fiscais das empresas e das famílias.

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Esta consonância pode e deve verificar-se também no plano, absolutamente decisivo, das opções políticas gerais em matéria económica e financeira. E a esquerda democrática ocidental tem aí particulares responsabilidades.

Em primeiro lugar, na recusa do proteccionismo. A crise não significa o fim da globalização, mas sim, espera-se, da globalização desequilibrada a favor de um dos lados, o capital financeiro, e não sujeita a regulação equivalente. A solução para a crise não reside no fecho dos mercados nacionais. Mesmo a luta contra o chamado dumping social não pode servir de pretexto ou disfarce para reerguer barreiras às exportações dos países do Terceiro Mundo e para favorecer, através de medidas proteccionistas, as nações mais ricas.

Em segundo lugar, na exigência de regulação. De acordo com uma regra simples: todos os produtos, todas as instituições, todos os mercados devem ser objecto de supervisão e regulação adequadas. A crise financeira de 2007-2008 mostrou, à evidência, que a desvinculação da economia produtiva, a proliferação de mercados e instituições opacas e resistentes à regulação, a captura dos regula-dores pelos interesses dos regulados e o desequilíbrio entre a sofisticação dos produtos e mercados financeiros e os sistemas regulatórios nacionais, geram efeitos devastadores sobre todos os sectores económicos e sociais, à escala plane-tária. A exigência da regulação não pode, pois, ficar como um discurso piedoso e ocasional. A eliminação dos off-shores, a reforma das instituições internacio-nais, a articulação, pelo menos pan-europeia, das entidades de regulação, o reforço dos poderes e dos meios de supervisão, tudo isto consta da agenda progressista – e, aliás, foi (ou deveria ter sido…) um dos temas fundamentais da disputa eleitoral de Junho de 2009, para o Parlamento Europeu.

Em terceiro lugar, a esquerda tem de ser enfática na cultura de responsabilidade e pres-tação de contas. E não se menospreze esta dimensão, por alegadamente ficar por palavras, símbolos e intenções. Pelo contrário, ela toca fundo nos padrões de comportamento e organização na economia. O “capitalismo regulado” ou a “economia social de mercado”, que são pontos de convergência das grandes correntes políticas democráticas europeias, de direita ou de esquerda, foram diária, sistemática e ostensivamente ofendidos e desprezados nos mercados financeiros e nas administrações empresariais que conduziram os Estados Unidos e a Europa ao desastre. A crise só rebentou porque valores estrutu-rantes de uma economia inserida em sociedade democrática – valores como a transparência, a prestação de contas, a moderação nos ganhos, a visão de médio

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e longo prazo, a responsabilidade social e o compromisso perante autoridades e stakeholders – foram deliberadamente violados por uma geração de gestores e especuladores treinados no credo hiperindividualista e amoral do neolibe-ralismo. E uma das razões que explica a capacidade de mobilização até agora protagonizada por Barack Obama reside, não tenho dúvida, em ter sabido e conseguido contrapor um outro discurso ético, social e político a essa atmos-fera de, como ele diz, irresponsabilidade, egoísmo e ganância.

A consonância das posições dos socialistas portugueses com as tendências que marcam a reacção europeia e norte-americana à crise tem, pois, estas duas declinações. No plano prático das medidas circunstanciais de política, a neces-sidade parece vir imperando sobre as diferenças ideológicas (com a eloquente excepção da clivagem entre democratas e republicanos, nos Estados Unidos). Por convicção ou pragmatismo, a generalidade dos executivos nacionais aposta no mix entre investimento público, apoios sociais, ajudas directas a empresas ou estímulos em sede fiscal ou contributiva. Mas, já quanto às escolhas polí-ticas do futuro próximo, as divergências ideológicas reemergem (e, a bem do debate democrático, felizmente!). Mais “economia real”, mais regulação pública, mais responsabilidade social, caracterizam – com algumas signi-ficativas ressalvas – a generalidade das forças agrupadas no Partido Socialista Europeu – e, pelo menos quanto à intensidade, demarcam-nas do Partido Popular Europeu. As propostas que o Partido Socialista português fez aprovar, no seu Congresso de 2009, como a eliminação dos off-shores, a exigência de regulação global e a redistribuição da carga fiscal entre camadas possidentes e classes médias, colocam-no, a meu ver, no campo das exigências próprias da esquerda democrática europeia.

4. Quatro traços de uma estratégia política Julgo ter identificado duas linhas de força na estratégia prosseguida pelo

actual governo socialista português: a articulação dos dois planos do combate à crise e das reformas estruturais; e a consonância com o essencial das respostas europeias e norte-americana. Creio, pois, estar em condições de propor os quatro traços fundamentais de tal estratégia política.

O primeiro é a salvaguarda dos factores estruturais da consolidação orçamental. Entre esses factores contam-se a reforma do sistema de pensões, através da conver-

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gência do regime da função pública com a segurança social, da introdução do factor de sustentabilidade, da consideração de toda a carreira contributiva e da indexação da actualização das pensões ao crescimento económico; a reforma da administração pública, em particular no que significou o fim das progres-sões automáticas e a generalização da avaliação do desempenho profissional, além dos mecanismos de maior mobilidade na gestão de pessoal e de serviços; a racionalização da gestão do Serviço Nacional de Saúde, com a empresariali-zação dos hospitais, a reorganização da rede territorial das diversas unidades de prestação de cuidados e a regulação do mercado de medicamentos; e os instru-mentos de disciplina financeira e equidade distributiva associados às novas leis das finanças locais e regionais.

É absolutamente decisivo que as decisões de estímulo orçamental para contrariar a conjuntura recessiva não coloquem em causa estes factores estru-turais. Porque só eles permitirão a retoma pós-crise do equilíbrio orçamental, até porque se antevê que o crescimento económico mundial seja muito escasso durante vários anos.

O segundo traço caracterizador é a salvaguarda dos objectivos de modernização. Pode dizer-se o mesmo de outra forma, sugerindo que se trata, em certo sentido, de aproveitar a crise. Se a crise torna indispensável a antecipação, aceleração ou intensificação de investimento público, ou com forte incentivo público, isso deve fazer-se justamente nas áreas em que possa colmatar carências diag-nosticadas e/ou potenciar a adequação do passo às exigências tecnológicas, económicas e sociais do futuro próximo. O que implica, nomeadamente, investir na alta velocidade ferroviária (que diminui a distância, reduz a peri-feria geográfica, estrutura o território, favorece o transporte público e é amiga do ambiente), na modernização do parque escolar e dos recursos pedagógicos, na massificação do uso das tecnologias de informação e comunicação, nas redes de banda larga de nova geração, na eficiência energética e nas energias renová-veis. E não quero esquecer a modernização do sector primário e da indústria alimentar. Aliás, se é verdade que um dos principais problemas portugueses é o défice externo estrutural, então apostar na poupança de energia e na produção de energia a partir dos recursos hídricos, eólicos, solares, etc., assim como favorecer a competitividade da agricultura e da agro-indústria nacional signi-fica intervir em duas das principais causas do défice, a dependência energética e a dependência alimentar.

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Neste esforço de modernização incluo ainda o modelo de relações labo-rais, em ambos os planos da legislação e das práticas concretas de negociação colectiva. É, a meu ver, um ponto-chave quer para a realização dos direitos dos trabalhadores, quer para a promoção da competitividade económica. As linhas-mestras da reforma do Código do Trabalho (2006 e 2009), tais como a indução da negociação colectiva, a penalização das formas precárias de trabalho e o aperfeiçoamento dos instrumentos de adaptabilidade interna (e negociada) das empresas, inscrevem-se nesta direcção – e a crise económica tende a eviden-ciar também, não só a necessidade do recurso circunstancialmente aumentado a este tipo de instrumentos de agilização, regulação e compromisso como ainda a vantagem de inscrevê-los numa concepção mais moderna (e social-demo-crata) das relações laborais.

O terceiro traço caracterizador da estratégia seguida pelo governo socialista português manifesta-se na forma como utiliza os instrumentos de incentivo a empresas e particulares, quer em sede fiscal, quer nas contribuições para a segurança social, quer em medidas de política económica. A diferença entre a esquerda e a direita parece, aqui, clara. Do lado direito do espectro partidário, provêm sobretudo propostas de aligeiramento do controlo sobre a evasão fiscal e descida gene-ralizada de impostos ou encargos sociais, tais como a extinção do pagamento especial por conta, o chamado IVA de caixa, o “cheque fiscal” ou a redução em dois pontos percentuais da contribuição patronal. O lado esquerdo, primeiro, contesta que a baixa de impostos ou contribuições tenha outro efeito relevante senão diminuir os recursos orçamentais, pondo em perigo a capacidade de o Estado desenvolver as políticas económicas e sociais necessárias para enfrentar a crise – e, em segundo lugar, denuncia a iniquidade de descidas generalizadas que beneficiariam mais as pessoas singulares ou colectivas com melhor rendi-mento, face às restantes.

Daí que seja fácil de compreender a lógica seguida pelo Governo socialista na gestão dos diferentes incentivos: selectividade e focagem, exigência de compro-missos e contrapartidas. Vários exemplos podem ser dados: as micro, pequenas e médias empresas podem aceder a linhas de crédito bonificado se estiverem em situação regular face ao fisco e à segurança social; as micro e pequenas empresas beneficiam da redução em três pontos percentuais da contribuição devida pelos seus trabalhadores de mais idade em troca do compromisso de manutenção do volume de emprego; a contratação de jovens ou desempre-

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gados de longa duração é que proporciona a atribuição de um subsídio, mais a isenção bienal dos encargos sociais; a adesão de empresas a programas de formação dos seus trabalhadores em período de redução da actividade tem por contraparte a garantia de certo volume de emprego; etc.

A mesma lógica de foco e a mesma preocupação de evitar que a circunstância crítica prejudique os pilares estruturais de modernização e sustentabilidade explicam, ao que creio, outra clivagem maior entre a actuação do Governo do PS e a Oposição à sua direita ou à sua esquerda. Falo do debate em torno do subsídio de desemprego. Há, evidentemente, um plano propriamente orçamental: a redução dos prazos de garantia, o aumento da prestação ou o prolongamento da sua duração colocariam uma forte pressão adicional sobre o orçamento da segurança social, exactamente no período em que, por força da recessão, abrandam as receitas. Mas este é tipicamente um caso de contradição de pontos de vista, entre quem detém responsabilidades executivas, e por isso tem um dever adicional de gestão racional de recursos, e quem olha para o problema do lado da oposição, e por isso mesmo está menos sensível a esse dever – independentemente das orientações ideológicas. A esta divergência acrescenta-se outra, e sobre ela me quero centrar, porque essa sim revela divergências de foco e abordagem política. O PS tem defendido, por um lado, que, sendo o regime de atribuição do subsídio de desemprego um dos mais avançados no conjunto da OCDE, quer quanto à duração máxima da pres-tação, quer quanto à taxa de substituição do último salário pelo valor da prestação, não faz sentido mexer nestas variáveis – e muito menos pôr em causa os avanços no domínio da beneficiação comparativa dos desempregados com carreira mais larga, no conceito de oferta de emprego adequado e na fiscalização, avanços conseguidos através de um acordo de concertação social assinado pelas duas centrais sindicais. E, por outro lado, sendo a questão crítica a perda, agora, de dezenas de milhares de postos de trabalho, é mais necessária e eficaz a concentração das políticas na manutenção e na criação de emprego do que o alargamento do período máximo de atribuição do subsídio de desemprego, para lá dos actuais 38 meses. Ambos estes argumentos ilustram bem, a meu ver, essa opção pela abordagem focada e a preocupação de não pôr em causa, por razões meramente circunstanciais, ganhos estruturais para a sustentabilidade e a legitimação social das medidas de seguro social face ao risco de desemprego involuntário.

Finalmente, quarto traço caracterizador: a procura da equidade. A esquerda democrática só pode, julgo, destacar a complexidade da situação social presente.

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O ano de 2009 será mais um ano de aumento do rendimento disponível para a generalidade das famílias. (Aliás, ao contrário do que alguns querem fazer crer, a subida, em termos reais, do rendimento disponível dos particulares é uma característica também do período 2005-20072 ). Para os funcionários públicos e para os trabalhadores privados cujo emprego esteja protegido, 2009 significará um aumento bem real de salários. O conjunto dos consumidores beneficiará de uma descida da inflação para próximo de zero e as famílias com empréstimos bancários contam com a redução das taxas de juros. A consequência lógica é que as políticas públicas devem ser canalizadas para o apoio ao meio milhão de activos em situação de desemprego e aos respectivos agregados.

Temos, pois, uma dupla responsabilidade. Por um lado, através das políticas de regulação, financeira e económica, intervir na economia para contrariar a retracção, induzindo o investimento e minorando as dificuldades de finan-ciamento e tesouraria das empresas. E daí ser essencial, para uma óptica de esquerda, tomar medidas como a estabilização do sistema financeiro, a facili-tação do crédito, o incentivo fiscal e contributivo ao investimento ou o reforço do investimento público. Por outro lado, o foco das políticas sociais deve estar nas famílias colocadas em crise pelo encerramento ou a redução de actividade empresarial – e não nas restantes, ou numa imaginária “média” nacional.

O activo do Governo socialista inclui, neste campo, a recusa de abandonar, ou até abrandar, o combate à fraude e à evasão fiscal e contributiva; a selec-tividade nos apoios, focando-os nos grupos de mais baixo rendimento e/ou nas situações de maior vulnerabilidade (a começar pelos desempregados); e a escolha política de centrar as ajudas públicas nas despesas efectivamente reali-zadas pelas famílias (ou necessariamente a realizar), designadamente com a educação dos filhos, com a habitação própria ou com o acesso a medicamentos e cuidados de saúde. Refiro-me a medidas como a moratória temporária do pagamento de metade de juros para famílias devedoras com desempregados, a garantia de 100% de apoios sociais para os seus filhos estudantes, no caso

2 Reporto-me aos dados apurados e publicados pelo Banco de Portugal, no Relatório Anual 2007, Lisboa, 2008, p. 219. Os valores para 2006 e 2007 são ainda estimativas preliminares. Segundo esta série, na última década só na recessão de 2003 a variação nominal do rendimento disponível dos particulares foi inferior ao índice de preços ao consumidor. Aliás, de acordo com os dados apresentados por Manuel Caldeira Cabral (“Década perdida?”, Jornal de Negócios, edição de 21 de Maio de 2009, p. 33), se considerarmos a evolução do PIB per capita em paridades de poder de compra, Portugal convergiu com a União Europeia a 15, entre 2004 e 2008, tendo sido, aliás, um dos cinco países desta área que apre-sentou uma evolução mais favorável. No conjunto da década de 1998 a 2008, o nosso país aproximou-se em 2,6 pontos percentuais da média da UE-15 (uma aproximação inferior à da década anterior, mas ainda assim efectiva).

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de serem beneficiários do abono de família, a gratuidade dos medicamentos genéricos para pensionistas com rendimentos inferiores ao salário mínimo ou a majoração dos abonos em caso de famílias numerosas ou monoparentais. O próximo passo indispensável – já prenunciado na moção de estratégia do PS para o biénio 2009-2011 – é a intervenção redistributiva no sistema fiscal.

5. Uma dupla demarcação política

Situo-me no registo da Finisterra: “Revista de Reflexão e Crítica”. A expe-riência dos socialistas portugueses no combate aos efeitos da crise económica mundial pode constituir objecto de escrutínio analítico de concretas políticas públicas e de motivo para debate intelectual, quer internamente à esquerda democrática quer na contraposição entre esta e os demais campos políticos.

Pessoalmente, insisto numa dupla demarcação, que julgo ver em cada uma e na soma das direcções estratégicas que atrás sumariei. E o caso português talvez seja paradigmático, pela clareza das opções em causa. O centro-direita protagoni-zado pelo PSD tem oscilado muito, em função da sucessão de circunstâncias e lideranças. Mas a aversão ao investimento público, a denúncia do “excesso” de Estado, a defesa de “sistemas mistos”, segundo a doutrina dita da liber-dade de escolha, na saúde, educação ou segurança social, e a exortação à descida generalizada, isto é, sem contrapartida nem selectividade, dos encargos fiscais e contributivos das empresas, traçam um quadro suficientemente diferenciado e contraditório com a estratégia seguida pelo PS3.

Mas não é menos forte a clivagem entre as esquerdas. E em pontos absolu-tamente decisivos. A defesa da sustentabilidade da segurança social, a promoção da equidade entre gerações, sectores e grupos profissionais e o aprofundamento dos mecanismos de fiscalização da atribuição de prestações sociais são responsa-bilidades fundamentais daqueles que são favoráveis ao Estado-Providência, que eles não devem enjeitar nem transferir para terceiros. Ora, a atitude prevalecente nas forças de esquerda comunista e revolucionária acaba por convergir com a da direita: por razões diferentes, esta porque desgradua o modelo social de forte componente pública, aquela porque desconfia de qualquer mudança do statu

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3 A direita propriamente dita, representada no CDS-PP, apresenta algumas nuances, quer de natureza doutri-nária quer de ordem táctica. Elas não são, contudo, centrais para o tema e o argumento deste artigo.

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quo (o que a leva, aliás, regularmente à posição absurda de defender hoje o que ontem combateu…), ambas se perfilam em contramão do processo de susten-tação financeira e legitimação social dos serviços públicos.

E coisa análoga se passa com o entendimento da nova geração de políticas sociais. Os liberais e a direita mais conservadora são claros na sua defesa da redução do Estado social à provisão de mínimos. A garantia mais básica e para os mais desapossados – aqueles em que nenhum prestador privado estará interessado… – competiria ao Estado (e até, desejavelmente, por intermediação de instituições sociais); acima dela, “liberdade de escolha” entre serviços públicos e privados, com cobertura pública de riscos e/ou igual financiamento público do utente do sector privado. Mas a posição da esquerda conservacionista é quase simétrica: nenhum espaço para a responsabilidade individual, concepção dos direitos sociais apenas como créditos dos cidadãos sobre o Estado e, sobretudo, um entendimento tipi-camente formalista da igualdade, que na prática beneficia fortemente, em termos comparativos, os grupos sociais e profissionais mais protegidos do risco social.

Ora, a estas duas orientações contrapõe-se, sem grande equívoco, a defesa da combinação entre universalidade dos sistemas sociais – que justamente os afirma como factores de coesão social e nacional – e selectividade das políticas de solidariedade – que se devem pautar pelo princípio da equidade, tratando positivamente aqueles que estão em situação mais vulnerável. O debate sobre o tipo de rendimentos a considerar para a satisfação da condição de recursos no complemento solidário para idosos, sobre a existência e incidência de taxas moderadoras do acesso a cuidados de saúde ou sobre a orientação da extensão da acção social escolar, é, pois, um debate necessário, não só pela obrigação de afectação eficiente de recursos escassos como também pela questão politica-mente crítica da definição da justiça distributiva4.

4 Há também, neste ponto, uma divergência não despicienda entre responsabilidade e demagogia. Que vem ao de cima em circunstâncias como as actuais, em que a esquerda democrática se confronta com oposições à sua esquerda e à sua direita, não sendo raro que elas convirjam em posições logicamente absurdas, mas aparentemente potenciadoras de fogo de barragem sobre o Governo. Para dar um exemplo absolutamente evidente, recordarei o debate parlamentar de 23 de Janeiro de 2009, sobre a proposta de lei 239/X, oriunda da Assembleia Legislativa da Madeira. Ela propunha que, durante o ano de 2009 e, eventu-almente, 2010, o Estado pagasse 50% dos juros suportados pelas famílias com empréstimos bancários para habitação própria permanente – independentemente do regime de crédito e do rendimento das famílias. É difícil imaginar uma proposta mais cínica – apresentada pela Região Autónoma da Madeira à conta da República – financeiramente mais irresponsável – porque os custos seriam da ordem dos milhares de milhões de euros – e, sobretudo, socialmente injusta – porque, com o dinheiro de todos os contribuintes, beneficiaria mais as famílias com melhores condições. Na votação parlamentar, a proposta, rejeitada por força do voto contrário do Partido Socialista, contou com a aprovação de CDS, PSD, PCP, PEV e BE…

UMA ESTRATÉGIA DE ESQUERDA PARA ENFRENTAR A CRISE AUGUSTO SANTOS SILVA

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Finalmente, a agenda de modernização. Nas suas diversas declinações – de que são exemplos actuais, entre nós, as polémicas em torno dos programas Simplex, Novas Oportunidades e Magalhães, em torno da revisão da legislação laboral ou mesmo, em certos sectores, é certo que mais restritos, em torno das energias renováveis (sobretudo hídrica). Também aqui me parece essencial que a esquerda democrática se coloque sem ambiguidades no lugar (e no tempo) da modernização, e saiba combinar, como vem fazendo, a dinâmica reformista nos grandes sistemas públicos com igual impulso modernizador no domínio dos direitos pessoais. E só é pena que, demarcando-se assim, aqui como na generalidade da Europa, da esquerda do imobilismo no plano económico e do Estado social, e da direita conservadora no plano dos direitos (como bem se viu nos debates em torno da paridade nas listas eleitorais, da reprodução medicamente assistida, do regime jurídico do divórcio, da educação sexual ou da despenalização da interrupção voluntária da gravidez, e se verá certamente a propósito do casamento entre pessoas do mesmo sexo), a esquerda democrá-tica portuguesa continue a não ter à sua direita, ao contrário do que sucede em vários países europeus, uma força liberal capaz de ser sua interlocutora nessa agenda de modernização dos costumes e valoração dos direitos.

6. Na conjuntura e para além dela

Nas políticas públicas de combate aos efeitos da crise mundial encontra-se, por conseguinte, vasta cópia de temas para o debate de ideias. Fazendo-o a partir da perspectiva da esquerda democrática europeia e norte-americana, quero sustentar, para efeitos de eventual discussão, que defender a disciplina financeira e a sustentabilidade do Estado social, promover a modernização e a competitividade, seguir os princípios de equidade na esfera redistributiva e usar de selectividade e foco nas políticas públicas, é um traço característico e diferenciador da esquerda que se não resigna a canalizar o protesto e que se não deixa capturar, a pretexto de combater o “poder dominante”, pelos poderes corporativos e sectoriais.

Isto não significa que baste esta estratégia para superar a crise. Ou, mais precisamente: que a envergadura actual das políticas económicas e sociais dos Estados esteja ajustada à profundidade da recessão e aos riscos sociais associados. Uma política resulta de combinações conjunturais de instrumentos limitados,

UMA ESTRATÉGIA DE ESQUERDA PARA ENFRENTAR A CRISE AUGUSTO SANTOS SILVA

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disponíveis e total ou parcialmente alternativos. Por isso, creio que a própria evolução da crise também ditará a evolução das políticas.

Restam três pontos essenciais, que correspondem a três lições maiores da crise. O primeiro é a regulação adequada, e supranacional, dos mercados financeiros. O segundo é a transparência e responsabilidade pública, a acoun-tability das empresas. O terceiro é a redução das desigualdades sociais. Estas, que a crise sublinhou serem questões-chave do nosso próximo futuro comum, são também tópicos persistentes do ideário democrático. Aqui como noutros planos da cidadania, as urgências do presente reencontram e reforçam os valores identitários.

Junho de 2009

UMA ESTRATÉGIA DE ESQUERDA PARA ENFRENTAR A CRISE

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Perante a crise: problemas e perspectivas do emprego, do trabalho e da equidade social em PortugalAntónio Dornelas

Este artigo pretende discutir as implicações da crise que se está a desenvolver à escala planetária para as políticas de emprego, de protecção social e de regulação do mercado de trabalho.

Para o fazer, começa-se por caracterizar a evolução das rela-ções laborais em Portugal desde a institucionalização da democracia até à decisão sobre as reformas levadas a cabo entre 2005 e 2008 nos regimes de emprego, de protecção social e de regulação dos mercados de trabalho e perspectiva-se o alcance das alterações legislativas delas decorrentes sobre o sistema de relações laborais.

De seguida, ensaia-se uma caracterização da crise global em curso, inventariam-se e discutem-se brevemente as perspectivas disponíveis quanto aos seus impactos e sumariam-se algumas das principais propostas da esquerda democrática quanto ao modo de enfrentar os actuais desafios económicos, sociais e políticos.

Por último debatem-se as alternativas estratégicas disponíveis e a sua aplicação ao caso português.

Antes da criseDurante o século passado, Portugal viveu quarenta e oito anos sob a

mais longa ditadura da Europa ocidental, abriu caminho para a institu-cionalização da democracia a partir de 25 de Abril de 1974, promoveu a descolonização das suas ex-colónias e integrou meio milhão de cidadãos nacionais que retornaram a Portugal em pouco mais de um ano, aprovou a Constituição da República em 1976, tornou-se membro da Comunidade Económica Europeia em 1986, integrou a zona euro desde o início (1999) e substituiu a circulação do escudo pela do euro em 2002, a primeira data em que tal foi possível.

Entre 1974 e o início da década de 1980, Portugal institucionalizou um sistema de relações laborais. Esse processo foi completado com a criação,

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em 1984, do Conselho Permanente de Concertação Social, o que fez com que cada uma das principais características do sistema actual de relações laborais reflicta as escolhas dos poderes públicos e dos seus interlocutores sociais durante os principais episódios do percurso histórico dos últimos trinta e cinco anos.

De acordo com esta hipótese, o sistema de representação dos interesses espelharia os conflitos e os resultados da institucionalização da democracia e da tentativa de criar interlocutores económicos e sociais dos poderes públicos; a estrutura e o conteúdo da negociação colectiva reflectiriam as crises económicas e sociais dos anos setenta e oitenta do século passado e as consequências das políticas utilizadas nesse período para controlar e corrigir a situação macroeconómica; o modelo de concertação social reflectiria os conflitos e os compromissos relacionados com a adesão de Portugal às Comunidades Europeias e os desafios subsequentes decor-rentes da integração do país nas instituições europeias, designadamente as necessidades de adequar o funcionamento da economia portuguesa aos critérios de Maastricht bem como a de enfrentar a recente crise orça-mental num contexto de redução do crescimento económico e de subida do desemprego.

Submete-se igualmente a debate uma segunda hipótese, segundo a qual os governos portugueses são o principal actor do triângulo neocorporati-vista, muito embora as confederações sindicais e patronais desempenhem um papel relevante na determinação da agenda na concepção das políticas públicas, mas não na sua implementação.

A instituição da democracia e o pluralismo competitivo das organiza-ções de interesses

A legislação publicada entre o derrube da ditadura e a entrada em vigor da Constituição de 1976 traduz uma série de compromissos polí-ticos tendentes a promover uma relação privilegiada entre os poderes públicos e as organizações de interesses existentes, incluindo os sindicatos e os grémios patronais herdados do corporativismo autoritário. Tal relação destinou-se a permitir o controlo da explosão reivindicativa que se seguiu ao 25 de Abril e a permitir a sua gestão de forma aceitável pelas forças políticas, sociais e económicas que partilhavam as diferentes alavancas de

PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO, DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL

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poder relevantes nesse período, todas elas confrontadas coma necessidade de construir em Portugal uma sociedade diferente da que sustentara a dita-dura salazarista e marcelista.

Por isso mesmo, a legislação desse período visou dois efeitos congruentes: para criar as condições mínimas de gestão da explosão reivindicativa, promoveu a protecção legal dos interesses económicos e sociais dos traba-lhadores; para reforçar a interlocução privilegiada com os representantes dos trabalhadores e dos empregadores, impôs legalmente a unicidade sindical e a facilitação da adaptação dos sindicatos e dos grémios corpora-tivos aos critérios mínimos da democracia política.

Com a entrada em vigor da Constituição de 1976, começou a definir-se o modelo de sociedade, tornando-se progressivamente mais claro que ele assentaria na democracia política e na economia de mercado. Em coerência com esses dois critérios fundamentais, o texto constitucional de 1976 consagrou a liberdade sindical – e a consequente possibilidade de pluralismo sindical organizativo – e a possibilidade de se criarem comissões de trabalhadores. Ficou, pois, legalmente definido um modelo de repre-sentação dos interesses dos trabalhadores, modelo esse que, com pequenas alterações, ainda hoje vigora.

Do ponto de vista conceptual, trata-se dum modelo dual, próximo dos que existem noutras sociedade europeias, em que as comissões de traba-lhadores tenderiam a especializar-se nas formas de relacionamento laboral menos propiciadoras de conflitos laborais explícitos, enquanto o ordena-mento legal atribuiu aos sindicatos o monopólio da negociação colectiva e da declaração da greve lícita. Mas, do ponto de vista prático, a represen-tação dos trabalhadores está hoje quase exclusivamente resumida à que os sindicatos asseguram, como se mostrará adiante.

Foi neste quadro legal que se desenvolveu o panorama sindical portu-guês, actualmente organizado em torno de três modelos sindicais que competem ao longo dum eixo definido por dois pólos, a CGTP e a UGT. Tal competição repercute, certamente, a diferente dimensão e composição social das duas principais organizações sindicais portuguesas. Mas expressa também um conflito aceso quanto aos papéis publicamente reconhecidos de cada uma daquelas confederações, eles mesmos relacionados com as respectivas identidades e estratégias políticas.

ANTÓNIO DORNELAS

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O primeiro modelo é representado pela CGTP, a maior e a mais antiga das confederações sindicais portuguesas. Originária da fase terminal da ditadura, tributária das ideologias sindicais típicas do sindicalismo de classe é dirigida de forma hegemónica pela corrente sindical comunista. Largamente preponderante na primeira década posterior ao derrube da ditadura, a CGTP permaneceu até hoje como defensora activa e mili-tante do padrão de relações laborais que precedeu a institucionalização da concertação social. O segundo modelo é representado pela UGT, cuja identidade está indissociavelmente ligada a três factos relevantes da história recente do país: a consagração constitucional da liberdade sindical, que permitiu a sua criação; a integração europeia, de que foi partidária desde a sua fundação; a institucionalização da concertação social, pela qual se bateu. Com os seus líderes predominantemente ligados ao PS e ao PSD, a UGT tem optado por se associar às principais mudanças do sistema de relações laborais verificadas em Portugal nas três últimas décadas. O terceiro modelo é constituído pelo conjunto de organizações sindicais que recusa a filiação quer na CGTP, quer na UGT e nele avultam alguns sindi-catos profissionais cuja expressão é socialmente relevante em segmentos profissionais capazes de se fazerem reconhecer como interlocutores em caso de conflito laboral em determinados sectores ou empresas de grande dimensão.

A segunda característica do movimento sindical português é dada pela sua crescente fragmentação, pelo declínio da sindicalização e pela sua escassa presença em muitas organizações de trabalho. De facto, um inqué-rito realizado em 2007 a uma amostra representativa dos trabalhadores portugueses mostrou que: é elevado – e semelhante ao verificado noutros países europeus - o apreço dos trabalhadores pelo papel do sindicalismo quer para a segurança de emprego, quer para a melhoria das condições de trabalho; a taxa de sindicalização total será de cerca de 19%; 69% dos assa-lariados entrevistados nunca tinha sido sindicalizado; a sindicalização varia apenas marginalmente com o género mas significativamente com a idade e o tipo de contrato; os respondentes consideram a CGTP mais “atractiva” e mais “eficaz” do que a UGT, enquanto a maioria - 62% e 53%, respecti-vamente - declararam não considerar “atractivo” ou “eficaz” nenhum dos sindicatos existentes em Portugal; não existirá qualquer forma de represen-

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tação colectiva dos trabalhadores em 2/3 das empresas onde os inquiridos trabalham (Dornelas, no prelo).

Do lado dos empregadores é também manifesta a elevada fragmen-tação organizativa, sendo igualmente muito marcados os traços da origem histórica das organizações, sendo distinguíveis dois tipos de associações de empregadores. O primeiro tipo, as confederações patronais, todas criadas depois de 1975, inclui entre os seus associados as associações patronais que se criaram a partir dos grémios corporativos e é responsável pela repre-sentação social dos empresários, isto é, pela coordenação das actividades dos empregadores na negociação colectiva e na concertação social. A CIP, a CAP, a CCP e a CTP – todas com assento na concertação social – são as quatro confederações mais importantes. O segundo tipo de associa-ções é constituído pelas associações empresariais – de que a AIP e a AEP constituem os expoentes principais – e toma seu cargo a representação dos interesses económicos dos empregadores mas não a sua participação na negociação colectiva ou na concertação social. Assim, o associativismo patronal revela, tal como o sindical: a existência de alguma concorrência entre confederações patronais, tanto no plano da representação sectorial, como no da orientação política; a existência de um conjunto muito signi-ficativo de organizações patronais que não se encontra filiada em nenhuma das confederações (Cerdeira e Padilha, 1998); a inexistência de uma orga-nização que congregue a totalidade do patronato português, apesar das várias tentativas feitas ao longo do último quarto de século. Uma estimativa recente da representatividade patronal (Visser, 2004) situa-a no intervalo 51-60%.

A legislação laboral nas sucessivas crises: da restrição da negociação colectiva à institucionalização da concertação social

A institucionalização do estado de direito democrático teve lugar num contexto de profunda crise económica e empresarial, em que as conse-quências do primeiro choque petrolífero, a descolonização e a explosão reivindicativa que se seguiu ao derrube da ditadura levaram muitos empre-sários a abandonarem o país e as empresas.

Foi nesse contexto de crise multidimensional que se deram os primeiros passos para a institucionalização do sistema de relações industriais e se

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definiu um modelo de contratação colectiva de trabalho que começou por se basear na rede de convenções colectivas de trabalho herdadas da fase terminal da ditadura. Trata-se de uma rede de convenções colectivas de trabalho sectorial que, nesse período de crise, foi objecto de três tipos de mudanças: primeiro, a “verticalização”, isto é a agregação do conjunto dos grupos profissionais dum mesmo sector económico na mesma convenção colectiva; segundo, a agregação de várias convenções de diferentes subsec-tores; terceiro, o uso frequente da extensão erga omnes às empresas e aos trabalhadores não filiadas nos sindicatos e nas associações patronais subs-critores das convenções colectivas de trabalho em questão. Deste modo, criou-se uma rede alargada de direitos e deveres contratuais colectivos que, em conjunto com uma legislação laboral então publicada, contribuiu para estabilizar a situação social, o que aumentou a compatibilidade da economia de mercado com a democracia política.

Note-se, porém, que a legislação da época é uma legislação de natu-reza conjuntural, que exibe uma forte presença do Estado na configuração do sistema de representação de interesses e na regulação do mercado de trabalho, com limitação do espaço da contratualização formal das relações de trabalho e da conflitualidade laboral mas que não impediu a nego-ciação informal de empresa (Fernandes 1993). É, também, uma legislação sensível à conjuntura política - e, por isso, limitadora do poder patronal e igualitária quanto aos direitos dos trabalhadores, embora pouco permeável à inovação social e às reivindicações de gestão alternativa das empresas e do mundo trabalho em que esses anos foram férteis (Lima 1991).

O efeito combinado das reticências patronais à intervenção sindical nas empresas, duma intervenção governamental forte mas desfavorável ao desen-volvimento da autonomia contratual colectiva e da redução progressiva do poder sindical, decorrente do pluralismo sindical politicamente competitivo, levou a que o potencial regulador da negociação colectiva fosse sacrificado à produção rápida duma rede de convenções colectivas de tipo sectorial, cujos conteúdos reproduzem frequentemente a legislação da época.

Boa parte destas convenções colectivas de trabalho está, ainda hoje, parcialmente em vigor, apesar da negociação dos acordos de empresa, iniciada no final da década de 70 no sector empresarial do Estado. Tais acordos constituíram o exemplo mais relevante da articulação dos processos

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de informação, de consulta e de participação com a negociação colectiva, até hoje realizado em Portugal.

Gerou-se, assim, uma situação que levou à formulação da hipótese de que seriam distinguíveis dois subsistemas de negociação colectiva, com lógicas diferentes: o da contratação colectiva sectorial, com a maior taxa de cober-tura, mas com baixo poder de inovação e de regulação socioeconómica; o dos acordos de empresa, quase exclusivamente no sector empresarial do Estado, com maior capacidade de inovação, com conteúdos temáticos mais vastos e menores coeficientes de desajustamento salarial, mas abrangendo um menor número de empresas e uma percentagem reduzida do total do emprego do país (Dornelas, 1989).

Com a privatização da generalidade das empresas públicas, a direita política, então no poder, optou deliberadamente por uma estratégia de relações laborais que esvaziou de relevância económica e social a negociação de empresa, criando a situação actual cujo elemento caracterizador é a rede de convenções colectivas de trabalho sectorial

De facto, o conteúdo das convenções colectivas de trabalho em vigor é, frequentemente, obsoleto – por exemplo: quanto à duração e à organização do tempo de trabalho e quanto aos sistemas de classificação profissional – enquanto a almofada salarial que separa as tabelas salariais das convenções colectivas de trabalho dos salários totais é elevada e se manteve pratica-mente estável, pelo menos até 2003 (Dornelas et al., 2006). Esta reduzida capacidade de regulação da contratação colectiva facilita a manutenção da situação actual, em que 4/5 dos trabalhadores declaram que os seus salários, as suas categorias profissionais e os seus horários de trabalho são fixados sem que se façam sentir os efeitos da contratação colectiva de trabalho ou qualquer forma de intervenção das suas estruturas de representação colec-tiva (Dornelas, no prelo).

Assim, as relações laborais em Portugal podem ser definidas como um sistema em que uma contratação colectiva com uma taxa de cobertura próxima da média da União Europeia coexiste uma lógica de relaciona-mento laboral marcada pelo adversarialismo da CGTP, com a fortíssima competição política entre esta confederação sindical e a UGT, com o predomínio do unilateralismo patronal e a individualização nas relações laborais dentro da empresa.

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A institucionalização da concertação social e os seus impactosO Conselho Permanente de Concertação Social (CPCS) foi criado, em

1984, como um primeiro passo da estratégia de reforço da governabilidade da sociedade portuguesa julgada indispensável para permitir a adesão do país à Comunidade Económica Europeia (Lopes: 1993; Dornelas, 1999).

A sobrecarga das reivindicações patronais e sindicais, a necessidade de reduzir a inflação e de pôr os aumentos salariais portugueses em fase com os dos restantes países europeus, a procura dum modelo social capaz de conjugar melhor o aumento da competitividade empresarial, o crescimento sustentável dos salários e a melhoria das condições de trabalho levaram a que o CPCS, inicialmente criado como órgão de consulta do governo, se tenha transformado numa instância relevante de negociação tripartida, apesar das reticências iniciais da CIP e das críticas, mais duráveis, da CGTP.

O quarto de século que o CPCS tem de existência pode ser dividido em quatro ciclos políticos, cada um deles correspondente a um ciclo parlamentar de natureza distinta.

Ciclo político

Questões principais

Acordos tripartidos sobre política salarial

Outros acordos tripar-tidos ad-hoc

Acordos bipartidos

Acordos globais sobre a regulação do emprego, da protecção social e a regulação do mercado de trabalho

PSD (Cavaco Silva) 19�5-95

Adesão à CEE e integração europeia

19�6; 1990; 1992

1991

1990

PS (António Guterres) 1995-2002

Conformidade com os critérios de Maastricht

1996

1996; 2001

1996

PSD/CDS-PP(Durão Barroso; Santana Lopes) 2002-05

200�

PS (José Socrates) 2005-09

2006

2006; 2007; 200�

2005

200�

Crise orçamental e dívida externaCrise económica e aumento do desemprego

Fonte: elaboração do autor

Figura 1 – Ciclos políticos e resultados da concertação social

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O primeiro ciclo político, que corresponde ao início da concertação social propriamente dita, inicia-se com os acordos tripartidos que fizeram da moderação salarial a regra predominante da negociação salarial em Portugal, inclui a maior greve geral de sempre em Portugal (1988) e, subse-quentemente, o primeiro acordo tripartido sobre a regulação do mercado de trabalho (1990), os dois primeiros acordos tripartidos ad-hoc (1991) e termina com duas tentativas falhadas de negociação tripartida sobre polí-tica de rendimentos e sobre regulação do mercado de trabalho.

O ciclo político correspondente aos governos de António Guterres constitui uma tentativa de responder à crise da concertação social verifi-cada no fim do ciclo precedente com o relançamento e o aprofundamento da lógica neocorporativista, tentando ultrapassar quer os problemas procedimentais, quer os problemas substantivos herdados do ciclo polí-tico anterior. Entre as questões de procedimento avultam, desde então, dois problemas: primeiro, o do momento óptimo para a celebração de acordos tripartidos, que os parceiros sociais tentaram localizar no início da legislatura e os Governos de Cavaco Silva preferiam fazer aproximar do extremo oposto do seu mandato; segundo, a questão da unanimidade entre os parceiros sociais, abordada adiante.

O terceiro e o quarto ciclos correspondem a duas estratégias governa-mentais diferentes de resposta a problemas análogos: a desconformidade das contas públicas com os critérios do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) e o crescimento do desemprego. Assim, no ciclo dos governos PSD/CDS-PP, verifica-se a periferização da concertação social, o que se traduziu pela ausência de qualquer acordo de concertação social e pela assi-natura (2005) do primeiro dos dois únicos acordo bipartidos até agora assinados em Portugal. O quarto ciclo – que está actualmente em curso – corresponde aos governos PS de José Sócrates, inclui o segundo acordo bipartido, o único acordo unânime sobre política de rendimentos até agora obtido em Portugal (2006), quatro acordos tripartidos ad-hoc (2006, 2007 e 2008) e o recente compromisso social tripartido sobre política de emprego, protecção social e regulação do mercado de trabalho.

Como notou recentemente Jelle Visser, Portugal foi o país da União Europeia onde, durante a década em curso, foi mais intensa a actividade de concertação social.

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Figura 2 – Actividades de concertação social na União Europeia (200-2007)

Fonte: Visser, Jelle: EC, Industrial Relations in Europe, 200�: 52

Ora, como no terceiro ciclo político não foi formalizado qualquer acordo tripartido, há que retirar duas conclusões: primeira, que os governos e os ciclos político-parlamentares têm influência relevante na actividade de concertação social; segunda, que o ciclo Durão Barroso/Santana Lopes – como, aliás, o Governo Cavaco Silva até à greve de 1988 – influenciaram negativamente o desenvolvimento da concertação social.

Uma outra dimensão a considerar diz respeito à subscrição das confede-rações sindicais e patronais nos acordos de concertação social. A análise dos acordos verificados entre 1986 e 2008 mostra: primeiro, que os acordos bipartidos – 2 em 21 - são mais recentes e menos frequentes do que os acordos tripartidos; segundo, que a unanimidade – 7 acordos em 21 – é a excepção, não a regra; terceiro, que as recusas de subscrição são quatro vezes mais frequentes do lado sindical do que lado patronal; quarto, que, do lado sindical, apenas a CGTP recusou subscrever acordos e que essa decisão – 12 recusas de subscrição em 19 acordos tripartidos – constitui uma das marcas da concertação social em Portugal; quinto, que, desde 2006, a CGTP recusou subscrever qualquer dos acordos de concertação social.

A terceira dimensão de análise diz respeito aos temas dos acordos de concertação social.

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Figura 3 – Conteúdos dos acordos de concertação social em Portugal (1986-2008)

ANO

19�6199019921996

1996

2006

2006

20012007

19912001

2001

20012006

19901996200�

TEMAS

Moderação salarial

Criação do Rendimento Mínimo Garantido

Reforma do Subsídio de Desemprego

Aumento sustentado do Salário Mínimo Nacional

Direito individual à formaçãoReconhecimento e certificação das qualificações adquiridas no exercício da profissão (RVCC)

Quadro legal da segurança, higiene e saúde no trabalho

Quadro legal da protecção social

Aumento da sustentabilidade da segurança social

Acordos globais sobre a regulação do emprego, da protecção social e a regulação do mercado de trabalho

ACORDO

Maioria

Unanimidadeexpost

Unanimidade

Unanimidade

Unanimidade em 2001; maioria em 2007

Unanimidade

Unanimidade

Maioria

Maioria

IMPACTO

Elevado

Elevado

Elevado

Elevado

Elevado quantoao RVCC

Reduzido

Elevado

Elevado

1990: Elevado1996: tendencialmentereduzido200�: ?

PAPEL DOS PARCEIROS SOCIAIS NA IMPLEMENTAÇÃO

Forte e generalizado, apesar da oposição da CGTP

Reduzido

Reduzido

Reduzido

Reduzido

Reduzido

Reduzido

Reduzido

1990 e 1996: Reduzido, forte oposição da CGTP200�: ?

Fonte: elaboração do autor

A síntese dos temas constantes dos acordos de concertação social apresen-tada na figura acima mostra que as escolhas políticas e a orientação ideológica dos actores do triângulo neocorporativo constituem traços relevantes da caracterização do topo do sistema de relações laborais e ajudam a compre-ender a frequente ausência de consenso quanto à renovação da agenda da negociação colectiva.

Uma análise horizontal de três dos temas acima mencionados parece confirmar esta tese, sugerindo que, mesmo que a agenda temática da

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concertação social seja modulada para obter, sempre que possível, a unanimidade dos parceiros sociais, tal não garante, por si só, que os resultados sejam transpostos para a contratação colectiva de trabalho.

No que respeita às políticas salariais, o caso português sugere que, uma vez adoptada na concertação social a decisão de alterar os critérios de actualização das tabelas salariais e decorridos alguns anos de aplicação da decisão, mesmo que a maior confederação sindical se pronuncie reiteradamente contra a política salarial adoptada, pode não ser necessária a sua revalidação no topo tripartido do sistema de intermediação de interesses para que a política de remunerações continue a respeitar o princípio da moderação salarial. De facto, desde que a almofada salarial que separa as tabelas salariais dos salários efectivamente recebidos pelos trabalhadores seja suficiente para acomodar a individualização das remunerações e a inflação se mantenha baixa, existem equivalentes funcionais aos acordos de concertação social sobre políticas de rendimentos. O aumento do salário mínimo nacional e os aumentos dos vencimentos dos funcionários públicos são exemplos desses equivalentes funcionais. Porém, se se pretender alterar o modus operandi estabelecido por acordo - ainda que não unânime - e confirmado por anos de aplicação na negociação colectiva, pode ser necessário um novo acordo que garanta a legi-timação da mudança.

Foi o caso com o acordo de 2006 sobre o aumento sustentado do salário mínimo nacional em percentagem superior aos aumentos esperados dos salários mínimos contratualmente fixados. O acordo, neste caso unânime, estipula que o salário mínimo nacional deve ter um acréscimo de 30% em cinco anos, um valor significativamente superior aos aumentos que, mesmo antes da actual crise global, eram expectáveis para as tabelas salariais das convenções colectivas de trabalho. A solução encontrada baseia-se no controlo dos efeitos colaterais indesejados por qualquer dos três vértices do triângulo neocorporativo: os empregadores obtiveram a garantia de que o aumento do salário mínimo nacional não teria efeitos de bola de neve que pusessem auto-maticamente em causa os baixos salários de alguns sectores económicos; os sindicatos obtiveram uma vitória altamente simbólica com impactos efectivos – mas não automáticos! – na parte inferior das tabelas salariais dos sectores de trabalho intensivo e baixo nível de remunerações; o governo manteve a possibilidade de controlar a despesa pública com as prestações sociais, desin-

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dexando-as do valor do salário mínimo nacional. É, porém, indispensável reconhecer que, pelo menos no plano formal, é limitado o entendimento comum dos problemas a resolver pelo acordo. De facto, no texto respectivo não há qualquer referência formal ao princípio da moderação salarial, aceite pela UGT desde 1986 mais ainda hoje formalmente recusado pela CGTP; os empresários obtiveram uma redução da pressão para o aumento dos salários dos trabalhadores pobres (working poor) sem terem de abrir um debate global sobre a política salarial e a desigualdade; o governo pôde adoptar um instru-mento de política laboral e social de grande impacto sem induzir um efeito de contaminação das prestações sociais, uma opção inviável no contexto orçamental da época.

A política sobre duração e organização do tempo de trabalho constitui outra ilustração relevante da relação problemática entre aos acordos de concertação social e a contratação colectiva de trabalho. O Acordo Económico e Social (1990) estabeleceu o princípio de que a redução do tempo de trabalho seria realizada pelo uso convergente da legislação e da contratação colectiva de trabalho. Nos termos então previstos, a legislação reduziria, como reduziu, de 48 para 44 horas a duração semanal do período normal de trabalho, devendo a redução das 44 para as 40 horas ser completada, em cinco anos, por negociação colectiva, que deveria igualmente regular as formas de adap-tabilidade do tempo de trabalho a aplicar em cada sector. Porém, em 1995, em consequência do desacordo verificado em inúmeras unidades negociais quanto ao modo de combinar a redução da duração com o aumento da adaptabilidade do tempo de trabalho, continuava a haver mais de 1 milhão de trabalhadores com horários superiores a 40 horas. A solução encon-trada pelos parceiros sociais no início do mandato do primeiro governo de António Guterres foi, mutatis mutandis, análoga: as confederações patronais reivindicaram que se legislasse sobre a flexibilidade e a polivalência; as confe-derações sindicais reclamaram que a lei reduzisse para 40 horas a duração semanal do tempo normal de trabalho. O governo da época, adepto público da concertação social, optou pela única solução possível para sair do impasse: promoveu a negociação do Acordo de Concertação Social de Curto Prazo (ACSCP), que assinou em 1996 com todos os parceiros sociais excepto a CGTP, e, em consequência desse acordo, publicou a legislação que dava força vinculativa ao compromisso tripartido revalidado. Os resultados são

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conhecidos: foi despoletada uma vaga de greves sectoriais, particularmente durável no sector dos têxteis e confecções e o problema só foi resolvido com a intermediação dos poderes públicos na construção de soluções casuísticas que se prolongaram até ao mandato do actual governo.

A evolução no domínio da protecção social é diferente, o que, indirecta-mente, confirma a tese que se vem sustentando. Em primeiro lugar, porque apenas em 2001 a protecção social começou a ser tratada como questão autó-noma na concertação social e, ainda assim, essa extensão da agenda não foi sempre respeitada. De facto, uma das medidas mais inovadoras desde meados dos anos noventa – a criação, em 1996, do Rendimento Mínimo Garantido – foi adoptada com uma participação menor dos parceiros sociais. O mesmo aconteceu, em 2006, com a criação do Complemento Solidário para Idosos. Em segundo lugar, e ao contrário do que vem acontecendo noutros domí-nios, a larguíssima maioria das medidas adoptadas desde 2001 ou já está a ser aplicada ou foi substituída por medidas julgadas mais adequadas à situ-ação presente, como aconteceu recentemente com a introdução do chamado “factor de sustentabilidade” das pensões. Apesar destas especificidades, desde o último governo de António Guterres que o papel dos parceiros sociais na determinação da agenda é suficientemente relevante para que o conteúdo dos acordos de concertação sobre protecção social seja modulado para tentar obter o consenso da CGTP no maior número de matérias possíveis. Foi o que aconteceu quer em 2001, quer em 2006, com a diferença de que, ao contrário do que se passou em 2001, na data mais recente o governo não conseguiu obter o acordo unânime que também agora desejava.

A análise dos acordos globais sobre a regulação do emprego, da protecção social e a regulação do mercado de trabalho parece confirmar que continuam por resolver de forma consistente quatro problemas principais.

O primeiro problema é o da legitimidade e da utilidade de acordos de concertação social que não incluam todas as confederações patronais e sindi-cais com um papel activo na concertação social. Se a questão da legitimidade se põe independentemente do maior ou menor papel da contratação colec-tiva de trabalho na aplicação do acordo, o problema da utilidade dos acordos não unânimes é potencialmente mais grave nos casos em que a negociação colectiva constitui um instrumento muito importante para a realização dos compromissos tripartidos alcançados na concertação social e, como frequen-

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temente acontece, a CGTP nega a sua assinatura. Ainda assim, a experiência das duas décadas e meia de concertação social sugere que o poder de veto das confederações com assento na concertação social, sendo relevante, não é sempre absoluto e não parece ser definitivo, tal como se mostrou acima quanto à política salarial e quanto tempo de trabalho.

A segunda questão, directamente relacionada com a anterior, é a da capa-cidade das entidades subscritoras de acordos – bipartidos ou tripartidos, unânimes ou apenas maioritários – celebrados com os parceiros sociais transporem para a negociação colectiva realizada pelas organizações que ali representam. Pelo menos até agora, essa capacidade tem-se mostrado muito limitada.

O terceiro quesito é o das fronteiras que podem ou devem limitar a concertação social, ou, se se preferir, a definição dos temas em relação aos quais é aceitável entender as confederações sindicais e patronais como inter-locutores preferenciais do governo.

A quarta dúvida respeita aos modos de tornar compatíveis os consensos tripartidos obtidos na concertação social com as competências específicas de outros órgãos do estado de direito democrático, especialmente quando os acordos de concertação social incluem medidas da competência reservada da Assembleia da República.

Desenvolvimentos recentesNo início da actual legislatura, Portugal estava fora dos limites fixados

pelo PEC; o PIB per capita tinha estagnado globalmente entre 2000 e 2005; a convergência com a média comunitária dos níveis de vida tinha sido substituída pela tendência oposta; o desemprego total estava a crescer e o desemprego de longa duração tinha aumentado de 1,7% da população activa no ano 2000 para 3,8% em 2006; entre 1995 e 2005 os custos reais unitá-rios do trabalho cresceram sempre acima da média da UE25; a produtividade por hora trabalhada (63% da média da UE15 em 2000) deixou de convergir para média comunitária desde então.

Tendo em conta a necessidade de repor o país dentro dos limites fixados pelo PEC, o governo de José Sócrates adoptou uma estratégia global de reforma estrutural que visou quer a administração pública, quer o sector privado da economia e que incluiu medidas quer do lado da procura, quer

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do lado da oferta. Mas, ao contrário dos governos Barroso e Santana Lopes, e para enfrentar os mesmos problemas que se punham no ciclo político anterior, o actual governo do PS promoveu o desenvolvimento da concer-tação social.

Como se sabe, no que respeita à administração pública, as medidas adop-tadas incluíram reformas visando a consolidação fiscal, a controlo dos custos da administração pública, especialmente através da racionalização da estru-tura organizativa desta, a simplificação dos procedimentos administrativos e a convergência do sistema de emprego e de protecção social da administração pública com os padrões do sector privado (OECD, 2008). Tais medidas motivaram um aumento da conflitualidade laboral e política na adminis-tração pública que envolveu quer os sindicatos da CGTP, quer os da UGT. Porém, enquanto o conflito para o regime geral terminou com um acordo com os sindicatos da UGT, os sindicatos da CGTP recusaram esse acordo e mantiveram as manifestações de protesto político contra o governo de José Sócrates. No sector da educação, apesar dum memorando de entendimento assinado a meio do percurso contestatário com os sindicatos da CGTP e da UGT, o conflito permanece aberto, embora aparentemente menos expres-sivo, pelo menos que respeita à reestruturação das carreiras docentes e à gestão das escolas.

Quanto ao sector privado, a estratégia de reforma do governo em funções estruturou-se em três vectores principais: reduzir os baixos níveis de quali-ficação da população, aumentar a sustentabilidade financeira da segurança social pública e reformar o sistema de regulação dos mercados de trabalho.

A estratégia de qualificação incluiu, pela primeira vez em proporções significativas, quer medidas destinadas à população jovem quer instrumentos de intervenção quanto à população adulta. Entre os primeiros, salientam-se as medidas de diversificação dos curricula escolares e o aumento das forma-ções profissionalizantes de dupla certificação, escolar e profissional. As principais medidas destinadas à população adulta postas em prática foram: o desenvolvimento do sistema, lançado durante os governos Guterres, de reconhecimento, validação e certificação das competências adquiridas no trabalho, de modo a permitir a aquisição rápida de níveis mais levados de educação; a renovação e o aumento das oportunidades de formação profis-sional; a integração na educação formal dos adultos com menos de nove anos

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de escolarização. Assim, as políticas adoptadas baseiam-se na mesma análise da situação feita anteriormente e no reforço de medidas que não se afastam das que foram anteriormente consagradas pelos acordos unânimes de 1991 e de 2001. Porém, em 2007, a CGTP recusou subscrever o acordo de concer-tação que as desenvolveu.

O aumento da sustentabilidade financeira da segurança social compre-ende dois programas gémeos: a convergência dos direitos e deveres dos trabalhadores da administração pública com os padrões em vigor no sector privado, de modo a reduzir a despesa pública com a administração pública e a reforçar a legitimidade das reformas no sector privado; modificar as regras de cálculo das pensões do sector privado e ligar a idade de referência para a reforma à esperança média de vida nessa data. Para além da alteração do subsídio de desemprego, feita na sequência dum acordo de um acordo tripartido unânime (2006), os conteúdos dos acordos de concertação seguem uma modulação análoga à que, em 2001, permitiu ao governo da época obter o acordo da CGTP para todos eles excepto o que respeitava à eventual introdução de limites opcionais para as contribuições para a segu-rança social (2001). Em 2006, de forma análoga ao que se verificou quanto aos acordos mais recentes sobre educação e formação, a CGTP recusou subs-crever qualquer deles.

A reforma do enquadramento regulador das relações laborais baseou-se no acordo tripartido de 2008 e está actualmente a iniciar a sua aplicação. Comparado com o Acordo de Concertação Estratégica de 1996 e com o Código do Trabalho de 2003, o acordo de 2008 revela diferenças relevantes.

O compromisso tripartido de 2008 distingue-se dos anteriores acordos globais sobre a regulação do mercado de trabalho de 1996 quer por razões metodológicas, quer por razões substantivas. Por razões metodológicas porque o governo fez analisar e publicar os resultados obtidos por um grupo de especialistas quanto aos principais problemas detectados – o Livro Verde sobre as Relações Laborais (Dornelas et al., 2006) e, depois disso, consti-tuiu uma comissão independente de peritos a quem incumbiu de apresentar recomendações e propostas de solução para os problemas anteriormente identificados. O resultado dos trabalhos dessa comissão – o Livro Branco das Relações Laborais – foi igualmente publicado previamente ao debate da proposta do governo. Deste modo, a determinação da agenda ficou desde

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logo condicionada a exigências de fundamentação dos pontos a incluir, o que reduziu a margem de manobra dos poderes de veto tradicionais. Do ponto de vista substantivo, o compromisso tripartido de 2008 é muito mais focado nos problemas específicos da regulação do mercado de trabalho e na integração vertical das respostas aos principais problemas identificados: a reduzida capacidade de adaptação das empresas e dos trabalhadores à mudança económica e social; a rigidez formal do quadro legal; os altos níveis de emprego precário e a elevada segmentação dos mercados de trabalho.

O acordo de 2008 distingue-se também do Código do Trabalho de 2003, quer do ponto de vista metodológico, quer do ponto de vista substantivo. Do ponto de vista metodológico porque, para além das razões mencionadas no parágrafo precedente, se baseia num compromisso tripartido, ao contrário do que aconteceu em 2003. Do ponto de vista substantivo, porque a lógica das medidas adoptadas é a oposta: em vez da redução do poder sindical na negociação colectiva promovida pelo Código de 2003, o Código de 2009 reequilibra os poderes das partes contratantes e permite a submissão da recusa de negociar a procedimentos de mediação e de arbitragem; em vez da estratégia de flexibilização externa através da facilitação do emprego precário adoptada em 2003, o Código de 2009 baseia-se na promoção da adapta-bilidade interna, na redução – pela legislação laboral e pelo diferencial dos custos não salariais - das formas precárias de emprego. Dito de outro modo, o Código de 2009 substitui a estratégia de “flexibilização na margem” (Regini, 2003) e de redução do poder sindical adoptada pelo governo Barroso por uma estratégia: de des-segmentação dos mercados de trabalho; de contenção da flexibilização externa mediante a promoção da adaptabilidade interna negociada; de regulação negociada da mudança mediante a criação de possi-bilidades de combinação virtuosa da legislação com a contratação colectiva de trabalho; de reforço da protecção da mobilidade interna e externa. Ainda assim, a posição da CGTP foi a de recusar o compromisso tripartido.

Põe-se, portanto, a questão de saber o que concluir, antes da crise global que assola actualmente as economias e as sociedades do mundo inteiro, sobre o sistema de relações laborais existente em Portugal.

Apesar dos enormes progressos sociais realizados nas últimas três décadas, Portugal permanece um país de baixos padrões laborais (Crouch, 1993; 1996).

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De facto, alguns autores (Rhodes, 2001; Hancké e Rhodes, 2005) sublinham que os requisitos clássicos do neocorporativismo estão apenas parcialmente presentes em Portugal e que os acordos tripartidos até agora realizados se têm revelado potencialmente instáveis (Pochet, 1998) ou mesmo falhados (Hassel in Gröte e Schmitter, 1999). Noutro sentido, pode argu-mentar-se que, dada a transformação das lógicas neocorporativas (Traxler, 2004; Siegel, 2005), a questão dos pré-requisitos neocorporativos assume um menor relevo. Mas, ainda assim, carecem de explicação consistente os motivos que levam a que a unanimidade seja a excepção e não a regra da concertação social em Portugal bem como as razões que levam à inconsis-tência dos acordos de concertação social e à sua aplicação apenas parcial.

Um hipótese de interpretação destes dois factos parte da verificação de que as relações laborais em Portugal resultam da bricolage institucional (Campbell, 2007; Crouch, 2007) de elementos herdados de diferentes fases do desenvolvimento do sistema que ainda não se traduziu num novo sistema coerente.

Figura 4 – Principais problemas das relações laborais em Portugal

ELEMENTO

Sistema de representação de interesses

Negociação colectiva

Concertação social

PROBLEMA

Elevada fragmentaçãoForte competição política entre sindicatos, entre associações patronais

Predomínio do relacionamento antagonistaAusência de coordenação entre níveis de decisãoObsolescência progressiva dos conteúdos

Circunscrita ao topoReduzida influência na contratação colectiva de trabalhoSubmetida aos ciclos políticos

Fonte: elaboração do autor

Esta incoerência sistémica caracterizar-se-ia pela coexistência de elementos com lógicas distintas e conflituantes entre si nos diferentes níveis potenciais de regulação. Assim: ao nível de empresa predominaria o unila-teralismo patronal combinado com a individualização das relações laborais; ao nível sectorial, o traço fundamental do sistema seria a existência duma contratação colectiva com elevada taxa de cobertura mas uma baixa capa-

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cidade de regulação; o nível de topo, seria principalmente marcado pela preponderância do papel dos governos e, quando os governos favorecem esta forma de governança, pelo papel dos parceiros sociais na definição da agenda da concertação social e no condicionamento das soluções viáveis mas não na aplicação das políticas públicas decorrentes das decisões cons-tantes dos acordos ou na transposição desses acordos para a contratação colectiva de trabalho.

Dado o diferencial de poder dos governos em relação aos parceiros sociais e a preponderância do antagonismo nas relações entre as confede-rações patronais e sindicais, as respectivas posições na concertação social quadram-se particularmente bem com a hipótese (Hirschman, 1970), segundo a qual o descontentamento e a reivindicação perante o governo (voice) predominariam face à participação convicta (loyalty), de modo a evitar um abandono (exit) cujas consequências poderiam ser particular-mente nocivas para uma organização de interesses forçada a competir quer com os seus pares, quer com os representantes dos poderes e dos interesses adversários.

Mas, se assim é, deve concluir-se que a situação actual tem potencia-lidades quer para se manter instável, quer para evoluir em direcção a um modelo de mercado mais liberal, quer para uma economia de mercado mais coordenada (Hall e Soskice, 2001). Dito de outro modo, no futuro, os pactos sociais em Portugal podem aproximar-se mais quer de “coliga-ções entre fracos e moderados” (Baccaro e Lim, 2007), quer, em sentido oposto, dos produtos típicos dum “neocorporativismo magro”, em que a organização em rede substitui a hierarquia e a “descentralização organi-zada” fornece uma alternativa especialmente adequada quer à centralização, quer à descentralização absoluta das relações laborais (Traxler, 2004).

Perante a criseA globalização tem, na ausência duma regulação eficiente e suprana-

cional da sua dimensão social, como aconteceu durante as décadas em que as ideologias neoliberais predominaram, profundas consequências quer nas condições de competição empresarial, quer nas relações sociais.

Se é certo que os fenómenos de globalização não são novos, o que diferencia a globalização em curso dos processos de expansão capitalista

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ocorridos em fases anteriores, é o processo de decomposição das econo-mias nacionais e de posterior rearticulação destas num quadro de operação crescentemente internacionalizado (Boyer, 1997). É esse processo que terá levado, por um lado, à redução dos meios ao dispor dos estados-nação para a orientação das políticas económicas e sociais e, por outro, ao desenvolvi-mento da interdependência dos diferentes países.

Porém, nem uma coisa nem outra determinaram o fim dos Estados-nação nem a unificação dos modelos de capitalismo. Apesar das pressões que a financiarização das economias, a transnacionalização dos fluxos financeiros, as possibilidades crescentes de deslocalização das indústrias e do investimento directo estrangeiro vieram criar, estamos longe da conver-gência institucional dos modelos de capitalismo ou dos modelos sociais, quer dentro da União Europeia, quer, sobretudo, entre os diferentes espaços regionais supranacionais que coexistem hoje no mundo (Boyer, 2005).

Mas é inegável que a globalização acentuou a tripla assimetria que carac-teriza as sociedades em que vivemos (Traxler, 2003). É, em primeiro lugar, uma assimetria estrutural, porque os empresários dispõem dum leque de opções muito mais vasto do que o que está ao alcance os trabalhadores. É, em segundo lugar, uma assimetria nas políticas de regulação porque a competição fiscal entre os Estados-nação, os processos de recomposição das economias nacionais e o predomínio das opções políticas e ideológicas baseadas no chamado consenso de Washington (Held et al., 2005) limitam as opções politicamente viáveis da intervenção do Estado na regulação do conflito estrutural nas democracias europeias. É, por último, uma assime-tria institucional porque os empregadores têm agora maiores possibilidades de pôr em causa o modelo de procedimentos e o conteúdo substantivo das relações laborais característico do compromisso social gerado nas demo-cracias desenvolvidas do pós-guerra.

Acresce que estas consequências da globalização são potenciadas pelo modelo de construção europeia e pelas transformações estruturais conhe-cidas pela União Europeia após a queda do Muro de Berlim que, no seu conjunto, reforçam, a tripla assimetria acima referida.

Em primeiro lugar, o facto de os tratados europeus criarem uma assi-metria, desfavorável às questões sociais, quanto à possibilidade de utilização da hard law, que, no domínio social, fica quase exclusivamente confinada

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às questões da saúde, higiene e segurança no trabalho, da igualdade de género e da não discriminação. Em segundo lugar, as decisões do Tribunal Europeu de Justiça, em boa medida dependentes das exigências decor-rentes da criação e funcionamento do mercado interno têm contribuído para debilitar os sistemas sociais nacionais. Em terceiro lugar, os constran-gimentos macroeconómicos resultantes da UEM e do Pacto de Estabilidade e Crescimento, que criam um cenário de restrições financeiras para as reformas a realizar pelos Estados-membros. Em quarto lugar, o aumento da diversidade económica e social resultante do alargamento, que dificulta a aplicação do método comunitário. Em quinto lugar, a manifesta difi-culdade em obter consensos políticos no domínio da hard law aplicável às questões sociais, de que os sucessivos impasses em torno da Directiva sobre o tempo de trabalho constituem um exemplo bem eloquente. Em sexto lugar, o método aberto de coordenação, transformado em instrumento por excelência do desenvolvimento das políticas sociais europeias, mas cuja aplicação, de geometrias variáveis segundo as matérias em questão (Zeitlin, 2003 e 2005), sugere não só dificuldades particularmente relevantes no domínio da flexibilidade e da segurança como a existência de tensões quanto às suas evoluções possíveis (Pochet, 2005). Em sétimo lugar, o diálogo social europeu, apesar dos esboços promissores de que os acordos-quadro são exemplo, não conduziu à criação duma instância de regulação europeia das relações laborais capaz de coordenar a renovação do compro-misso social saído dos anos fordistas.

Nestas circunstâncias, haverá que reconhecer que, apesar da integração europeia ter contribuído de forma significativa para a definição das agendas políticas dos Estados-membros (Streeck, 1999), é no plano nacional que continuam a localizar-se as principais instâncias de regulação do trabalho, do emprego e da protecção social.

Assim, a versão neoliberal da globalização e um processo de inte-gração europeia centrado na disciplina orçamental criaram uma situação que produziram dois efeitos negativos para as políticas de emprego e de protecção social: primeiro, pelo reforço das assimetrias estruturais do capi-talismo contemporâneo, limitaram a margem de manobra dos governos dos Estados-nação; segundo, fazendo radicar nos Estados-membros a gestão do chamado trilema das economias de serviços (Iversen e Wren,

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1998) - isto é, a decisão sobre a forma de tentar compatibilizar a disciplina orçamental, a promoção do emprego e o combate às desigualdades – limi-taram a governabilidade da esquerda democrática.

Foi nesta situação que eclodiu a actual crise global, iniciada em 2007 nos EUA com os créditos ditos subprime do mercado imobiliário norte-ameri-cano. Nos meses finais de 2008 já era claro que se estava perante uma crise sistémica do sector financeiro, primeiro nos EUA e, depois, no resto do mundo. No início de 2009 a generalidade das organizações internacionais reconheciam que a crise financeira dera lugar a uma recessão económica generalizada cuja profundidade, duração previsível e consequências estão ainda por determinar. Em qualquer caso, a generalidade das organiza-ções internacionais mais importantes (IMF, 2009; ILO, 2009; OECD, 2009) convergem na comparação da actual crise económica com a Grande Depressão dos anos trinta do século passado e na afirmação de que a crise actual levará à perda de milhões de empregos à escala planetária, a que a Europa não conseguirá escapar.

Figura 5 – Previsão da evolução do desemprego entre 2007 e 2010

Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook, Crisis and Recovery, Abril de 2009. As estimativas acima reproduzidas, cuja margem erro é potencialmente muito elevada, baseiam-se nas seguintes previsões de variação real do PIB em 2009 e em 2010: Espanha: -�.2; -0.�; Zona Euro: -�.�; -0.�; Portugal: -�.1; -0.5; Chipre: 0.�; 2.1.

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Do ponto de vista qualitativo, tais previsões não diferem muito das que a Comissão Europeia publicou em Janeiro de 2009, já que, embora os valores previstos para o aumento do desemprego entre 2008 e 2010 sejam menores do que as publicadas pelo FMI, a comparação de Portugal (+1,3%), com a média da Zona Euro (+2,7%) e com a Espanha (+7,4%) mostra alguma coin-cidência, o que, porém, não acontece em relação a todos os países europeus (EC, 2009).

Pelo seu lado, a OIT (ILO, 2009) estima que podem perder-se, à escala mundial, pelo menos 38 milhões de empregos até ao fim de 2009 e que o principal risco é uma recessão prolongada do mercado de trabalho, cuja recu-peração poderia durar quatro a cinco anos. No conjunto, a OIT prevê que, se não forem tempestivamente adoptadas as medidas adequadas, a crise global em curso traduzir-se-ia numa deterioração grave da posição dos trabalhadores, dos pensionistas e dos desempregados, especialmente acentuada no caso das mulheres, dos jovens e dos imigrantes. Nos países em desenvolvimento, 40% a 50% das mulheres e dos homens tornar-se-ão incapazes de ultrapassarem a linha de pobreza absoluta dos dois dólares norte-americanos por dia.

A avaliação da OIT das medidas adoptadas até às vésperas da reunião de Londres do G20 é muito negativa, sublinhando o facto de que, até agora, as medidas são essencialmente de carácter nacional, principalmente consti-tuídas por grandes volumes de apoio financeiro ao sistema financeiro e por medidas fiscais que não são suficientemente focadas na promoção do emprego e da dignidade do trabalho. De acordo com esta organização internacional, se as respostas continuarem a ser basicamente nacionais, aumentam-se os riscos de, perante o prolongamento da crise, se entrar na espiral isolacionista em que as respostas proteccionistas se articulam com a deflação salarial e, em consequência, com o desenvolvimento das possibilidades de criação de situa-ções de desestabilização social, quer nacional, quer internacional.

As propostas da esquerda democrática europeiaA esquerda democrática e, em particular, o Partido Socialista Europeu

(PES), vêm-se batendo, desde muito antes da crise global em curso, contra a versão neoliberal da globalização, enquanto se pronunciam a favor de uma Nova Europa Social (Rasmussen e Delors, 2006), que actualize o modelo social europeu e o adapte à era da globalização. O objectivo principal desta

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estratégia é adaptar o modelo social europeu à diversidade crescente das popu-lações europeias, ao envelhecimento das sociedades europeias e às ameaças da mudança climática de modo a torná-lo mais capaz de contrariar o crescimento das desigualdades entre pobres e ricos, jovens e idosos, mulheres e homens.

O argumento de base consiste na afirmação de que é possível e necessária uma nova governança a múltiplos níveis – local, regional, nacional, europeu e mundial – que permita enfrentar os problemas sociais existentes e combater os riscos sociais emergentes através da construção duma nova articulação virtuosa entre um crescimento económico mais sustentável do ponto de vista ambiental, socialmente mais equitativo mas não menos competitivo. A alter-nativa proposta consiste em opor: à privatização, a reforma da administração e dos serviços públicos; à desregulamentação dos mercados de trabalho, a promoção da adaptabilidade interna e da protecção da mobilidade dos traba-lhadores; ao dumping social, a reforma das políticas públicas de promoção do pleno emprego e da equidade social (Rasmussen e Delors, 2006).

Trata-se de ligar a promoção da qualidade do emprego e da segurança do emprego à reforma da protecção social, uma e outra concebidas em termos dinâmicos. Noutros termos, pretende-se combinar as diferentes formas de flexibilidade com as diferentes modalidades de segurança, reequilibrar a flexibilidade externa e interna e concentrar os recursos públicos na protecção da empregabilidade e da mobilidade dos trabalhadores, ao mesmo tempo que se apoia, através de políticas públicas selectivas a manutenção e a criação de novos empregos. É, portanto, uma estratégia do tipo da que se seguiu em Portugal na actual legislatura, designadamente no que respeita à regulação do sistema de emprego e dos mercados de trabalho. É, igualmente, uma estra-tégia muito próxima da “agenda do trabalho digno”, da OIT, facto que é, aliás, formalmente reconhecido nas propostas de Poul Rasmussen e Jacques Delors, ao sustentarem que a esquerda democrática europeia deve basear naquela agenda as suas propostas para a regulação social da globalização.

Já depois de eclodir a actual crise global, vieram a público um conjunto de propostas (ILO, 2009; Policy Network, 2009; Social Europe, 2009) que visam, simultaneamente, enfrentar a crise e combater as suas causas. O ponto comum dessas propostas consiste numa estratégia de intervenção a três níveis. No plano internacional, opõe-se à lógica neoliberal da globalização a regulação da sua dimensão social na base da “Agenda do Trabalho Digno”,

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da OIT; no plano europeu, propõe-se que o emprego e a equidade social deixem de ser variáveis de adaptação submetidas aos imperativos da disciplina orçamental para passarem a ter a mesma relevância na avaliação das polí-ticas do que os critérios de Maastricht (Schultz, 2009); no plano nacional, propõem-se políticas de flexigurança, de redução da pobreza e da desigual-dade, de promoção da qualificação e recalibragem dos vários welfare system que coexistem na União Europeia.

A consequência da adopção destes princípios seria uma redução da tripla assimetria já referida e um aumento do espaço de viabilidade das estratégias da esquerda democrática, quer no plano nacional, quer no plano europeu, quer no plano mundial. Em síntese, tratar-se-ia de construir um sistema coerente que permitisse o retorno da política à governação da economia e das relações sociais. Mas não se trataria de voltar às versões clássicas do intervencionismo estatal. Pelo contrário, a intervenção estatal deveria ser focada nos problemas de relevância sistémica; deveria distinguir as respostas de natureza conjun-tural das de índole estrutural, especificando regras claras de entrada e de saída da intervenção pública para as questões de curto prazo; e deveria assentar em parcerias público-privado sempre que possível (Schuppert, 2009).

Uma tal estratégia implicaria uma ruptura com as concepções neoliberais que condenam, desvalorizam e menorizam o papel da administração e do sector público (Rasmussen e Delors, 2006) e a sua substituição por uma nova gestão pública (Pochmann, 2009) capaz de promover objectivos normativos consentâneos com o aumento da igualdade de oportunidades dos cidadãos ao longo dos seus ciclos de vida através da combinação dinâmica de instru-mentos públicos e privados (Ferrera, 2008 e 2009). Não se trata, portanto, de voltar aos modos de desenvolvimento do welfare system e de regulação dos mercados de trabalho assentes no fechamento dos Estados-nação, nos este-reótipos de género que afastam as mulheres do emprego, no pleno emprego masculino em profissões de baixa qualificação, na promoção do crescimento económico e da produtividade empresarial baseados nas economias de escala e no condicionamento do consumo pela produção e na centragem das rela-ções laborais no emprego típico e no custo horário do trabalho.

Do que se trata, é de combinar um ataque eficiente à crise global em curso que articule respostas conjunturais socialmente equitativas com reformas do sistema de emprego e do welfare system que ataquem as causas estruturais da

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crise e sejam susceptíveis de, à saída dela, favorecer a construção de socie-dades mais justas e de pleno emprego, como reclama o movimento sindical europeu e internacional (ETUC, 2007 e 2009; ITUC, 2009).

Porque é disto que se trata, este conjunto de propostas confia menos nos estímulos fiscais do que na orientação do investimento público e recusa a deflação pela redução generalizada dos salários e favorece o aumento das taxas de marginais de impostos sobre os mais ricos (Reich, 2009). Porque se trata de conjugar um novo pleno emprego com a reforma dos direitos sociais (Rasmussen e Delors, 2006), estas propostas visam reduzir o abandono escolar precoce, aumentar a escolarização da população jovem e em idade de traba-lhar, modernizar os serviços sociais, utilizar estratégias de flexigurança que promovam a adaptabilidade interna e reduzam o volume de emprego precário, des-segmentar os mercados de trabalho, favorecer o emprego feminino, recalibrar a segurança social em termos funcionais e distributivos, assegurar uma protecção social digna e não discriminatória ao longo de todo o ciclo de vida, combater as reformas antecipadas e promover o envelhecimento activo, reduzir o número de trabalhadores pobres e reduzir a distância entre ricos e pobres sem pôr em causa os rendimentos do Estado (Ferrera, 2008 e 2009; Hemerijck e O’Donnel, 2007; Hemerijck, 2009; Schmid, 2006).

E em Portugal?Pode esta estratégia ser aplicada em Portugal? A resposta parece depender

de três factores: em primeiro lugar, do modo como se avaliar o que vem sendo feito desde 2005 pelo único governo PS que, até agora, dispôs de uma maioria absoluta; em segundo lugar, da identificação dos principais problemas do emprego e da equidade social a enfrentar; por último, das expectativas quanto às possibilidades de o próximo governo conjugar o apoio parlamentar de que dispuser com o desenvolvimento da concertação social.

Quanto à agenda social do governo Sócrates, dir-se-á que ficam acima factos, argumentos e avaliações que desmentem a retórica quer das oposições parlamentares, quer da oposição sindical consubstanciada na CGTP nalguns movimentos de contestação de base profissional. Em síntese: Portugal foi o país que realizou o maior número de acordos de concertação de toda a União Europeia; o número de trabalhadores cobertos por contratação colectiva de trabalho recuperou da crise induzida pelo Código de 2003 e atingiu níveis

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nunca alcançados desde que há registos administrativos; o número de dias de trabalho perdidos por greve reduziu-se; a despesa pública total em protecção social, expressa em percentagem do PIB, embora a ritmo mais lento, conti-nuou a crescer ao contrário do que aconteceu com a média europeia; o risco de pobreza reduziu-se e o risco de pobreza de quem está a trabalhar reduziu-se ainda mais.

É verdade que o actual ciclo político conheceu grandes manifestações de descontentamento e de protesto político público. São disso exemplo, desig-nadamente, as grandes manifestações dos professores e da administração pública, que contaram com o apoio de líderes dos vários grupos de oposição político-parlamentar, que constituem expressões relevantes de protesto político com base sindical. Mas essas manifestações não podem ser confun-didas com acções sindicais tendentes a forçar a negociação de compromissos. Pelo contrário, a sua motivação é a pressão para a demissão de membros do governo ou, na ausência desta, a sanção política do governo, com o conco-mitante benefício das forças políticas da oposição.

Hoje, em virtude das reformas realizadas e da alteração do contexto inter-nacional, os problemas não são os mesmos que se verificavam no início da legislatura que está prestes a terminar. Em virtude das reformas porque estas promoveram a adequação das políticas públicas aos problemas contempo-râneos, reduziram as desigualdades entre a administração pública e o sector privado, criaram condições para a redução da segmentação dos mercados de trabalho, aumentaram a sustentabilidade financeira do sistema público de protecção social e criaram um novo quadro de referência para o desenvolvi-mento das relações entre governos, confederações sindicais e confederações patronais. Em consequência da crise global em curso porque, apesar das incertezas quanto à sua extensão e duração, as suas consequências potenciais sobre o emprego, a informalidade e a desigualdade podem pôr em causa a coesão social da sociedade portuguesa.

Ainda assim, os principais problemas portugueses actuais são o emprego, a qualificação e a desigualdade.

O emprego porque, por razões nacionais que a crise global em curso está a potenciar, o desemprego, incluindo o de longa duração, está a aumentar; porque Portugal tem uma percentagem excessivamente elevada de emprego atípico; porque os empregos precários juntam à menor segurança de emprego

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piores remunerações e expectativas salariais; porque os níveis de adaptabilidade do emprego e do tempo de trabalho dentro das empresas são reduzidos, o que potencia despedimentos evitáveis, facilita a contratação precária e dificulta a conciliação da vida profissional com a vida pessoal e familiar.

A qualificação porque, apesar dos progressos realizados, os níveis de quali-ficação do emprego se encontram entre os mais baixos da União Europeia; porque o abandono escolar precoce é mais do dobro da média comunitária; porque o acesso à aprendizagem ao longo da vida ainda é cerca de metade da média da UE27; porque, dadas as tendências demográficas recentes, a alter-nativa para o reforço da escolarização de adultos e de jovens é a aceitação da divergência continuada da produtividade e da competitividade portuguesas em relação á média comunitária.

A desigualdade porque Portugal continua ter (Rodrigues, 2009) um nível muito elevado de desigualdade na distribuição dos rendimentos, uma percen-tagem elevada de trabalhadores pobres e porque as desigualdades económicas tendem a reproduzir e a potenciar outras formas desigualdade social.

Com a crise global ainda em desenvolvimento, são possíveis evolu-ções muito diferentes e, consequentemente, cenários de referência muito díspares. Mas, no cenário que toma a crise como uma oportunidade para atacar as suas causas estruturais, o desenvolvimento da regulação da dimensão social da globalização e o reforço da dimensão social europeia, aumentam as possibilidades de a esquerda democrática europeia e portuguesa conceberem e porem em aplicação programas que respondam aos principais problemas sociais identificados a partir da situação actual.

Com essa margem potencial de desenvolvimento alargada, em Portugal estar-se-ia perante um novo desafio ao triângulo neocorporativo: às confe-derações patronais, para que participem duma regulação económica e social da competição empresarial que substitua o unilateralismo pela negociação social das mudanças e promova o aumento da competitividade com base na qualidade do emprego e da inovação económica e social; às confederações sindicais, para que renovem a agenda negocial e os instrumentos contratuais colectivos, de modo a converter a elevada taxa de cobertura num indicador da eficácia da regulação contratada; aos poderes públicos, para que prossigam a renovação e a recalibragem das políticas públicas de modo a combinar o combate à crise global em curso com a promoção dum novo pleno emprego,

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prosseguindo a redução da pobreza, reduzindo as desigualdades e promovendo a capacitação dos actores sociais para uma intervenção crítica mas proactiva no novo contexto económico e social.

É esta estratégia realizável? A resposta é tendencialmente afirmativa, mas não isenta de problemas, alguns dos quais já identificados. E, entre esses, o de que, não sendo os governos e os seus interlocutores totalmente condicionados pelo seu passado, uma avaliação prospectiva não pode deixar de ter em consi-deração a identidade, as opções e as ligações políticas, quer dos governos, quer dos actores sociais (Zambarloukou, 2006; Baccaro e Lim, 2007).

São, evidentemente, possíveis escolhas diferentes das aqui apresentadas. Mas nem todas as escolhas alternativas são compatíveis com o modelo de socie-dade promovido pelas propostas da esquerda democrática europeia, isto é, uma melhor conciliação do desenvolvimento da democracia política com a promoção da justiça social e com a competitividade empresarial em mercados nacionais e internacionais abertos, mas regulados.

E não é menos certo que os governos das sociedades europeias quase nunca estão sós perante o contexto que cria os problemas para os quais devem cons-truir respostas fundamentadas e viáveis: das equações políticas da governação fazem sempre parte as escolhas dos interlocutores parlamentares, económicos e sociais dos governos.

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Trabalho e sindicalismo – os impactos da criseElísio Estanque

Centro de Estudos SociaisFaculdade de Economia da Universidade de Coimbra

Numa época de crise internacional que atinge todos os cantos do mundo é fundamental que nos questionemos sobre os seus impactos, em especial em sectores como o do trabalho, aquele que mais se impôs como a infra-estrutura fundamental do

sistema social e político das sociedades industriais. Importa, todavia, começar com duas notas prévias: a primeira, é que o presente texto não se destina a discutir a crise, antes situa um conjunto de aspectos relacionados com as transformações ocorridas nas ultimas décadas, em especial no que toca às grandes mutações socioeconómicas e sua incidência nas relações de trabalho e nos processos produtivos; a segunda refere-se à necessidade de relati-vizar a tendência para direccionar ou discutir todos os assuntos em torno da “crise”, já que tal atitude pode provocar distorções de índole diversa, inclusive perder de vista a complexidade de factores que se foram acumu-lando, e os efeitos colaterais que foram gerando, antes ainda de entrarmos na “crise” propriamente dita ou de ela atingir o seu ponto culminante (que ainda ninguém sabe quando surgirá nem quais os seus contornos).

Importa, pois, evitar conceber a crise como se fosse a causa e, ao mesmo tempo, a consequência de tudo aquilo que vem ocorrendo no mundo, no último ano. O presente texto procura, portanto, apresentar um conjunto de reflexões em torno do campo do trabalho e do sindicalismo, não se limi-tando a tratar o mais recente período, mas tentando recuperar algumas das principais tendências dos tempos recentes no contexto da economia global deste início de século. Para além de uma reflexão sobre a questão laboral e social a nível geral, procurei também apresentar alguns dos traços especí-ficos da sociedade portuguesa, mostrando algumas das suas vulnerabilidades particulares, remetendo para a história recente do país e para as dificul-dades que enfrenta na aproximação aos padrões europeus. O texto termina com uma breve reflexão sobre o sindicalismo e os desafios com que ele se debate, tanto no contexto de crise como no período precedente. Se o diag-

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nóstico que se pode fazer ao caso português, acerca destes problemas, não se circunscreve à realidade presente (de resto, como se diz correntemente entre historiadores e cientistas sociais, a única coisa que podemos conhecer é o passado) ele procura captá-la esforçando-se por iluminá-la com base em traços estruturais que só podem conhecer-se escavando no passado.

Crise, globalização e fragmentação do trabalho Como se sabe, a noção de “crise” pode encerrar em si mesma uma enorme

variedade de significados e, no caso vertente – em que se pensa sobretudo nas tendências negativas na esfera financeira, económica e no emprego –, ela recobre todo um leque de realidades bem diferentes, muitas das quais já bastante antigas. Por outro lado, a própria crise económica foi suscitada por um conjunto complexo de factores sociais, uns mais estruturais outros mais contingentes. Diversas instâncias políticas e interesses económicos desen-cadearam, desde há cerca de trinta anos, um programa de iniciativas que significou uma aposta sem precedentes no comércio livre, na especulação bolsista, nas offshores e na economia financeira, os factores que serviriam de barómetro ao crescimento económico. Os mercados assegurariam um crescimento ilimitado e, portanto, quanto menos regulação e intervenção estatal, tanto melhor.

Estas foram algumas das grandes opções que se tornaram decisivas na erupção da actual crise. Alguns dos seus mentores teóricos mais impor-tantes, como Alan Greenspan, fizeram mea culpa. Mas, foram os Estados e as economias mais ricas do mundo, fortemente apoiadas pelos mercados internacionais e pelas novas tecnologias da informação e comunicação, que impuseram como regra a abertura total das fronteiras ao comércio mundial, a competitividade deixada ao sabor do mercado, etc., envolvendo tudo isso na conhecida retórica neoliberal, que prometia um mundo de oportuni-dades para os mais competentes e uma “nova economia” capaz de assegurar o bem-estar, senão de todos, pelo menos daqueles – países, economias e indi-víduos – que decidissem guiar-se pela aposta nas qualificações, na inovação e na competição. A bondade do mercado global parecia garantir o sucesso.

Apesar da polissemia que a noção de globalização encerra – e muito embora se tenha percebido que, afinal, o comércio global é já uma velha história de que existem marcas indeléveis há mais de cinco séculos –, a viragem

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que ocorreu há cerca de três décadas, suscitou uma fantástica multiplicação das transacções e fluxos, de pessoas, bens e serviços de todos os tipos, dando lugar a profundas transformações tanto no plano prático como no plano teórico e conceptual. Com a massificação da industria turística e a demo-cratização dos transportes aéreos, o mundo ficou mais pequeno e passou a ser olhado sob novas perspectivas. As velhas noções de modernidade, desenvolvimento e progresso deram lugar à ideia de pós-modernidade, de imprevisibilidade e de incerteza quanto ao sentido da história e da mudança social. A intensificação das trocas comerciais na escala transnacional, com a ajuda da revolução informática, tecnológica e comunicacional, aceleraram e multiplicaram os processos de mercantilização da vida e das sociedades, ao mesmo tempo que os Estados e as economias nacionais perderam parte da sua antiga soberania e autonomia.

Porém, ao contrário da retórica liberal e tecnocrática de muitos teóricos e experts, o novo liberalismo que avassalou o mundo desde os anos oitenta, não só não atenuou os problemas humanos e os riscos sociais como os agravou drasticamente. É verdade que as oportunidades de negócio e as vantagens lucrativas se mostraram fantásticas para uma ínfima minoria – sobretudo dos que já eram ricos e poderosos –, mas em contrapartida a larga maioria das populações e das classes trabalhadoras, incluindo amplos sectores da classe média, vêm-se debatendo com o agravamento das suas condições de vida e de trabalho. Hoje, muitos constatam a intensificação das desigualdades e injustiças sociais, e mesmo aqueles que mais activamente glorificaram o mercado livre e as infinitas potencialidades da economia financeira, viram-se agora para o Estado pedindo auxílio.

O campo laboral é sem dúvida aquele em que os impactos desestrutura-dores da globalização tem sido mais problemático. As consequências disso mostram-se devastadoras para milhões de trabalhadores de diversos conti-nentes. E o caso particular da Europa é aquele em que as alterações em curso representam um flagrante retrocesso em face das conquistas alcançadas desde o século XIX, com o decisivo contributo do movimento operário e do sindicalismo. Porque a Europa é justamente a região “referência” e o berço da civilização Ocidental, é necessário pensar em toda a sua tradição humanista e emancipatória, lembrar que está aqui a génese das principais doutrinas progressistas, revoluções e movimentos sociais. O projecto da

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modernidade e a democracia política, assentaram em promessas de grande potencial utópico, rumo a uma sociedade mais justa e igualitária. Porém, os velhos lemas do iluminismo – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – foram nas últimas décadas secundarizados, se não mesmo desprezados ostensivamente, no discurso institucional de governantes e dirigentes (inclusive de correntes como a social-democracia, cuja história e referências éticas e doutrinárias se inscrevem em projectos e ideologias desse teor). Os efeitos da globalização têm vindo a induzir novas formas de trabalho cada vez mais desreguladas, num quadro social marcado pela flexibilidade, subcontratação, desemprego, indi-vidualização e precariedade da força de trabalho. Assistiu-se a uma progressiva redução de direitos laborais e sociais, e ao aumento da insegurança e do risco, num processo que se vem revelando devastador para a classe trabalhadora e o sindicalismo os finais do século XX (Castells, 1999; Beck, 2000).

As convulsões que o mundo do trabalho tem vindo a sofrer e o crescente ataque ao direito laboral inserem-se, de facto, num contexto mais amplo e obedecem a poderosos interesses económicos e políticos ditados pelas instâncias internacionais que, no fundo, governam o mundo (BM, OCDE, FMI, etc.) e se impuseram também na Europa, obrigando-a a abdicar em larga medida do seu património social, humanista e civilizacional. Muito embora tenhamos de reconhecer que o velho Estado social perdeu susten-tabilidade à medida que se verificaram quer o abrandamento económico quer a quebra de crescimento demográfico nos países europeus, não pode aceitar-se – pelo menos de um ponto de vista da esquerda – que a contenção da despesa pública e o controlo orçamental sirvam de justificação para toda esta inversão (ou, dir-se-ia, reconversão...) da velha social-democracia num modelo cuja viabilidade só é pensada no pressuposto de uma inevitável cedência ao neoliberalismo. Menos ainda se pode ficar indiferente quando governos apoiados por partidos socialistas revelam uma total insensibili-dade perante o aumento das injustiças e os ataques cada vez mais intensos ao direito do trabalho e à dignidade do trabalhador.

A realidade laboral dos últimos tempos voltou a dar actualidade a visões críticas do capitalismo até há pouco julgadas ultrapassadas. Karl Marx e a sua obra maior, “O Capital”, voltou a suscitar as atenções do mundo, quer por parte de académicos quer da opinião pública em geral. Mas, se o pensamento marxista parece ganhar nova actualidade não é porque se pretenda recuperar

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a ortodoxia leninista ou reincidir em modelos comprovadamente falidos, como o soviético. É sim porque o mercado desregulado, a intensificação da exploração – sob velhas ou novas formas – e todo o conjunto de problemas socioeconómicos que a actual crise veio agudizar comprovaram a falência do paradigma neoliberal e requerem, por isso, que se repensem os modelos de mercado que guiaram a economia mundial nos últimos tempos.

Em especial no campo do emprego temos assistido a um efeito de pêndulo, em que cada vez menos trabalhadores se encontram numa situação de emprego seguro, estável e com direitos, enquanto existem cada vez mais pessoas desem-pregadas que se debatem com o iminente risco de pobreza e exclusão. Como os vagabundos do século XVIII europeu ou os chamados malteses alentejanos de meados do século XX, esta gente vê negados os mais elementares direitos. São atirados para o mundo em busca desesperada de subsistência e obrigados a aceitar quaisquer condições de trabalho e a entregarem-se à vontade ganan-ciosa de patrões sem escrúpulos. Excluídos, de facto, do estatuto de cidadania são por vezes os próprios que se negam a si mesmos o direito de procurar um trabalho digno, aceitando ser tratados como sub-humanos ou como os novos escravos da economia global do século XXI.

Os processos recentes de fragmentação e precarização das relações e formas de trabalho atingiram o conjunto das classes trabalhadoras e pulve-rizaram as próprias estruturas contratuais e organizacionais do sistema produtivo. Perante o triunfo do neoliberalismo económico e o acentuar de novas formas de opressão e exploração, alguns dos velhos conceitos e dico-tomias de Marx, tais como as divisões entre capital fixo/ capital circulante; trabalho vivo/ trabalho morto; trabalho material/ trabalho imaterial; acti-vidades produtivas/ improdutivas, são hoje reconceptualizadas à luz da nova dinâmica do capitalismo global.

Na verdade, as actuais tendências permitem mostrar como aquelas divi-sões estão a ser reconvertidas e se imbricam hoje dialecticamente umas nas outras, com isso contribuindo para intensificar e expandir novas formas de “estranhamento” e “alienação” das classes trabalhadoras e dos novos segmentos precarizados e em perda. Porém, o trabalho, em vez de desapa-recer e se diluir para dar lugar ao lazer e ao consumo, ganha nova centralidade ao mesmo tempo que se combina sob diferentes lógicas e formas mais instá-veis (metamorfoseia-se) e em muitos casos mais penosas para quem tem de

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viver de qualquer trabalho. Tornou-se clara a versatilidade, a instabilidade e a multiplicidade de formas e de sentidos que envolvem o trabalho e os seus mundos no início do século XXI. Muito embora se tenha esbatido enquanto potencia criadora e espaço de consolidação de “subjectividades de classe” dirigidas para a acção transformadora (Castells, Méda, Gorz, Rifkin, Schnapper), o trabalho, material e imaterial, permanece como o módulo central no processo de acumulação capitalista (Antunes, 2006).

O flagelo do desemprego, associado a um “individualismo negativo” (Castel, 1998), que se assemelha a fenómenos que ocorreram na Europa do século XVIII, resultante desta precariedade – geradora das mais diversas formas de dependência, insegurança, resignação e medo – permite todo o tipo de prepotências e abusos. No actual panorama, já não são os direitos laborais que se pretende defender, mas, do ponto de vista de milhões de assalariados, tão só o emprego a todo o custo, pois “o pior dos empregos é sempre preferível ao desemprego”, o que traduz bem a debilidade em que se encontra hoje o trabalhador. Desmantelou-se o velho compromisso capital-trabalho e a concertação social – a negociação “tripartit” –, essa velha conquista do fordismo e do Estado providência europeu, tornou-se nos últimos tempos uma mera figura de retórica em que já nem as forças polí-ticas herdeiras da social democracia parecem acreditar, sobretudo quando alcançam o poder.

A sociedade portuguesa no contexto europeuA este respeito convém ter presente alguns dos traços particulares da socie-

dade portuguesa. Portugal é, como todos reconhecemos, um país periférico da Europa, cujas dificuldades se devem a um tardio e incipiente desenvolvimento industrial, bem como a um processo de democratização também ele recente e repleto de contradições. Com a instauração da democracia em 1974, conso-lidaram-se as classes trabalhadoras vinculadas à industria e os sectores da nova classe média assalariada (sector administrativo, saúde, educação, poder local e funcionalismo público em geral) cresceram rapidamente – apesar de no seu conjunto a classe média portuguesa ter permanecido débil – sob o impulso de um Estado providência em rápido crescimento, apesar de ele próprio ser fraco. Aliás, convém lembrar que Portugal começou a construir o seu Estado social numa altura em que já estavam a emergir os sinais de crise desse modelo

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na Europa, ou seja, tentou-se apanhar um comboio em andamento quando ele já estava a atingir o fim da viagem.

Daí que as transformações sociais desencadeadas com o 25 de Abril de 1974 – e de certo modo consignado na constituição “socialista” de 1976 –, sendo sem dúvida profundas em muitos aspectos, nunca deixaram de evidenciar os contrastes que persistiam e persistem na sociedade portuguesa. A moderni-zação das infra-estruturas, em especial após a adesão à UE, em 1986, trouxe progressos inquestionáveis, mas no plano social, persistiram as dificuldades, injustiças e bloqueios. Muito embora os trabalhadores e a “classe baixa” em geral tenham melhorado substancialmente as suas condições de vida, em comparação com a miséria em que viviam há 30 ou 40 anos, o certo é que as elites – em especial as novas elites privilegiados ligadas à indústria e ao comércio – subiram muito rapidamente, distanciando-se dos níveis de vida da classe média e dos trabalhadores manuais. A “classe média” cresceu até finais do século, em boa medida à sombra do crescimento do Estado, como se disse, mas ao mesmo tempo permaneceu instável e internamente muito diferenciada.

Pode até dizer-se que a classe média portuguesa foi mais importante pelo seu papel enquanto referência simbólica no imaginário colectivo, do que por ser um segmento social consistente e dotado de índices elevados de bem-estar. Foi sobretudo resultado de uma rápida concentração urbana e da facilitação do crédito, aspectos decisivos para que estes sectores recém urbanizados começassem a estruturar padrões de vida subjectivamente projectados numa imaginária “classe média”, ou, por outras palavras, numa categoria supostamente “distintiva” e “superior” por comparação com os grupos de referência originários, isto é, os que remetiam para um mundo rural e pobre, que se pretendia ver ultrapassado. Assim, como alguns estudos mostraram (Estanque, 2003; Cabral, 2003), uma parte significativa da própria classe trabalhadora manual, incluindo alguns dos seus segmentos mais precarizados, via-se a si própria como pertencendo à “classe média”

Ora, se o consumismo desenfreado e as expectativas de mobilidade ascendente puderam alimentar tais ilusões durante algum tempo, com a entrada no novo milénio e sobretudo perante o reforço da competitividade global, a contenção de custos, as pressões para a flexibilização e privatização (mesmo nos sectores onde o emprego se mantinha relativamente seguro), deram inicio a um profunda mudança na esfera do emprego, com isso

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evidenciando, uma vez mais, o carácter persistente e estrutural das nossas debilidades. Ressurgem problemas que era suposto terem sido resolvidos há décadas, como sejam a pobreza, a falta de qualificação de trabalhadores e empresários, as elevadas taxas de abandono escolar, o fenómeno dos recibos verdes (inclusive os falsos), o crescimento brutal das desigualdades sociais, o aumento do desemprego e da pobreza, as desigualdades de género e um rápido aumento das situações de precariedade no trabalho, que atingem em especial os sectores mais jovens (incluindo os mais escolarizados).

Temos, portanto, sobre os nossos ombros um passado recente marcado por inúmeros contrastes, e é neles que porventura repousam as causas mais decisivas do nosso atraso estrutural. A cultura tradicional do país e a escassa qualificação dos agentes económicos (empresários e trabalhadores) espe-lham ainda os atributos de uma sociedade subdesenvolvida, amarrada a mentalidades atávicas e paroquiais, aqui e ali deixando ainda transparecer alguns resquícios de feudalismo e de salazarismo. Prevalecem os modelos de gestão de cariz despótico, lado a lado com dependências e tutelas de todos os tipos que se adaptam de modo perverso à vida moderna, corroendo o funcionamento das empresas e instituições e travando as potencialidades de modernização económica e de aprofundamento democrático.

Mantêm-se ou intensificam-se os velhos dualismos, tais como a divisão entre o interior e o litoral ou entre o rural e o urbano, muito embora tais divisões mantenham entre si fortes contaminações recíprocas. Essas antigas contradições continuam a persistir, embora se adaptem aos tempos actuais. Os sectores protegidos do emprego tornam-se cada vez mais raros, enquanto o emprego precário subiu acima dos 20% (22% em 2007 para os trabalhadores com menos de 35 anos) e nas camadas mais jovens atinge cerca do dobro, o que, por sua vez, exprime a contradição geracional entre uma juventude mais qualificada, mas também mais precária, e as condições de trabalho dos seus país ou avós. O discurso da privatização foi durante décadas elevado ao estatuto de único garante da competitividade, e, ao abrigo desse discurso – erigido em pensamento único por parte do poder – desen-cadearam-se diversas reformas nos serviços públicos em diversas áreas como a saúde, o funcionalismo público, a educação e outras, justificando-se tais mudanças com base num suposto privilégio dos trabalhadores e funcionários da administração pública por contraste com os do sector privado, servindo

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este argumento uma clara estratégia de nivelamento por baixo. Porém, quer a capacidade de realizar as reformas quer as possibilidades

de lhes resistir, bem como a razoabilidade com que as mesmas são concebidas e levadas a cabo, são parte de processos mais complexos, que só poderemos interpretar se forem devidamente situados no devido contexto e na própria historia. E é justamente a essa luz que as propostas legislativas de alteração do sistema de relações laborais, para terem sucesso, deveriam começar por diagnosticar a realidade que temos, não com base em assumpções ou juízos de índole ideológico, mas tendo presente o contexto onde nos inserimos e o património sociocultural que herdámos do passado. Sem considerarmos a história e o significado das lutas sociais dos trabalhadores europeus longo dos últimos 150 ou 200 anos jamais compreenderemos a diferença entre o modelo social europeu e o mercantilismo individualista dos países anglo-saxónicos. Se houve efectivamente progressos fundamentais na Europa ao longo de todo este tempo, eles devem-se essencialmente às capacidade de organização e de luta colectiva da classe trabalhadora e do movimento operário nos países industrializados. Esse é, de resto um património que é reivindicado por toda a esquerda, desde a social-democracia ao movimento comunista.

Se hoje temos mecanismos de regulação dos conflitos e uma ordem jurí-dica que privilegia o diálogo e a concertação entre os diferentes parceiros e classes sociais foi à custa de grandes sacrifícios e lutas do movimento operário. Nesse sentido, o direito do trabalho foi (e é) um instrumento decisivo ao serviço dos trabalhadores destinado a reequilibrar as relações sociais capital e trabalho, que são, como se sabe, estruturalmente assimétricas. No entanto, apesar dos avanços alcançados, em muitos países persistiram ao longo dos tempos inúmeras formas de trabalho fora de qualquer protecção jurídica, e a erosão dos direitos sociais e económicos dos trabalhadores suplantou largamente a força da lei. Ainda hoje assim é, em diversas regiões do mundo, como é sabido.

Sendo expressão das relações políticas numa sociedade, a ordem jurídica funcionou ao longo da histórica como meio de legitimação de relações de poder fortemente desequilibradas, em geral impondo uma força de trabalho submissa e destituída dos direitos mais elementares, sem um salário digno, sem protecção social e sem acesso aos direitos humanos mais elementares. No entanto, a transformação histórica teve resultados fantásticos de sentido

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emancipatório, em particular nos países mais avançados. O direito do trabalho triunfou nos países europeus e é uma bandeira fundamental para trabalhadores dos mais diversos continentes, justamente porque repre-senta uma poderosa arma ao serviço das classes desapossadas, defendida, desde sempre, pelo movimento sindical internacional e veiculada por orga-nizações internacionais como a OIT, que tem prestado um inestimável contributo na defesa dos direitos humanos no trabalho, em todos os conti-nentes. É precisamente à luz deste património histórico, de que a Europa é um palco privilegiado, que as mudanças impostas pelos poderes dominantes nesta matéria – no sentido de uma flexibilidade ditada pela concorrência desregrada, pelos requisitos do mercado global e pelas exigências do grande capital – correm o risco de representar uma regressão inaceitável para os trabalhadores europeus.

Portugal, com todas as suas especificidades, insere-se justamente nesse quadro. E é por isso que as alterações que o novo Código do Trabalho vem introduzir são, em variadas matérias (ou melhor, nos seus aspectos mais decisivos), motivo de grande apreensão para quem assuma a defesa da classe trabalhadora enquanto vítima da exploração capitalista (cerca de 140 anos após a 1ª edição do livro 1 de O Capital) e de outras formas de opressão e de injustiça social. Acresce que as condições de subdesenvolvimento já referidas colocam a sociedade portuguesa – e a sua força de trabalho assalariada – numa situação de especial vulnerabilidade, visto que estamos longe de cumprir plenamente com os direitos de cidadania. Como muitos de nós temos apontado repetidamente, existem medos incrustados nas instituições, que impedem o fortalecimento da esfera pública e tendem a inibir qualquer acção reivindicativa no campo profissional, onde imperam os constrangimentos e a mentalidade autori-tária de empresários e chefias. A presença de culturas autocráticas, de tutelas e compadrios dos mais diversos tipos onde deveriam prevalecer a transparência, as estratégias de gestão e lideranças democráticas, constituem ingredientes que corroem as nossas instituições e desmotivam qualquer trabalhador dedicado. Em vez do mérito e da iniciativa individual prevalecem as posturas e atitudes de bajulação e resignação perante a autoridade; em vez do ambiente de exigência e de estímulo à criatividade e à co-responsabilização (individual e colectiva) cultiva-se o seguidismo e a mediocridade; em vez de cidadãos livres e autó-nomos promove-se o oportunismo e a delacção. Tudo isto é o contrário de

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uma sociedade democrática avançada. Tudo isto se opõe aos valores do socia-lismo democrático. E a tudo isto é possível fazer frente. A questão está em saber se os governos e a classe dirigente pretendem inverter esse rumo ou contribuir para que ele se torne irreversível e nos empurre de novo para o abismo.

Ora, perante este panorama – e como diversos estudos internacionais têm mostrado –, a questão da estabilidade e da segurança no emprego constitui o principal motivo de preocupação dos trabalhadores. Encontrar um primeiro emprego é a primeira das prioridades dos estudantes do ensino superior (Estanque e Bebiano, 2007).

Hoje, é-se “jovem” até muito além dos 30, porque muito ficam depen-dentes da família até muito tarde, mas é-se por vezes considerado “velho” quando, trabalhadores desempregados, com quarenta e poucos anos, são preteridos devido à idade. A perda do emprego é a principal ansiedade face à qual muitas outras exigências, mesmos as mais evidentes, podem ser sacri-ficadas. Existem empresas, nos EUA e na Europa que estabelecem um salário máximo, pedindo aos candidatos a um posto de trabalho que indiquem quanto “pretendem” ganhar, até esse nível máximo (por exemplo, 8 euros por hora) o que tem como consequência o constante baixar do nível do salário indicado pelos pretendentes ao emprego (os que indicam 4 euros ou menos serão natu-ralmente os preferidos). É a lógica da autonegação da dignidade produzida pelo espectro do desemprego e da miséria. O clima de angústia que o actual cenário de crise tem vindo a acentuar só vem contribuir para que tais sintomas “patoló-gicos” se tornem ainda mais dramáticos do que até agora temos conhecido.

Porém, quando o trabalhador (ou o cidadão) é sistematicamente repri-mido e impedido de manifestar a sua vontade ou de exigir o cumprimento de direitos, o que acontece é o aumento do descontentamento e da contrariedade no trabalho e na sociedade. Daí resulta então uma de duas coisas: ou se acentua a resignação e o medo, ou aumenta a crispação e o sentimento de revolta. Este ambiente, agravado com as múltiplas formas de recomposição, desmembra-mento, flexibilidade, deslocalização e encerramento de empresas, precariedade do trabalho, fragmentação dos processos produtivos, etc., tem conduzido a classe trabalhadora a uma cultura de impotência e de conformismo. Uma “classe” cada vez mais heterogénea e frágil que se depara com tremendas dificuldades em agir colectivamente. Há muito que as identidades de classe perderam fulgor em favor de outras identidades rivais e de outras formas de acção colectiva (e

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de inacção), num processo que se acentuou enormemente com o colapso do regime soviético e, no caso português, após a saturação da linguagem marxista e “de classe” de que se usou e abusou no período do PREC. Perante o refluxo da acção colectiva e do discurso ideológico, os sindicatos perderam força e capa-cidade de organização e de mobilização, nomeadamente junto dos segmentos mais fragilizados e mais jovens da força de trabalho. Para além de um contexto social e político pouco favorável à participação colectiva e associativa – e sem esquecer as próprias dificuldades de renovação do sindicalismo (Estanque, 2008) –, o reforço do poder patronal e a retirada de condições favoráveis à acção sindical vêm agravar ainda mais essas tendências.

Sindicalismo e acção colectivaNesta discussão, torna-se incontornável equacionar a questão sindical.

Se nos despirmos de juízos de valor, e sobretudo se formos capazes de evitar a tendência de valorar os sindicatos entres os “bons” e os “maus” (uns com quem, supostamente, se pode dialogar e os outros, ditos conservadores sou “ao serviço de...”), seremos levados a perceber o papel social e transfor-mador do sindicalismo (e tanto a contestação como a negociação são vias igualmente válidas no plano social) e talvez então se possa aceitar que o sindicalismo combativo e de movimento é aquele que maior contributo deu e pode dar à sociedade e ao progresso. É sobretudo em períodos de crise e de dificuldades para as classes trabalhadoras que ocorrem as grandes viragens históricas, normalmente acompanhadas de novos movimentos e da emer-gência de novas lideranças. Na Inglaterra do século XIX e noutros contextos mais recentes – de que pode ser exemplo o 25 de Abril de 1974 –, a mobi-lização popular não se deveu apenas a motivações políticas e económicas (nem a causas racionais, da ordem da “consciência” ou dos “interesses”), mas também, talvez sobretudo, a factores culturais e identitários. A identi-dade precede os interesses. Mas estes, quando fundados em fortes carências e necessidades básicas por satisfazer, podem produzir rebeliões radicais e de massas, ainda que não sejam orientadas por nenhuma motivação política.

A classe trabalhadora deixou há muito de ser homogénea, mas o alastrar da precariedade e do trabalho sem estatuto e sem dignidade pode conduzir a novas homogeneizações, que, embora de base transclassista, sejam capazes de se unificarem na defesa de uma identidade agredida e ofendida nos locais

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de trabalho. Mesmo a participação, a solidariedade e a partilha colectiva da indignação podem recuperar um certo sentido de recompensa simbólica, estimulando o desejo de reconstrução comunitária, quer este seja virado para um passado nostálgico e em nome das “raízes” (por exemplo, o nacio-nalismo ou o bairrismo), quer se projecte num qualquer futuro promissor e “emancipatório”, por exemplo, o socialismo (Tilly, 1978; Morris, 1996).

Tomados por muitos como factores de bloqueio ao crescimento econó-mico e ao desenvolvimento, os sindicatos queixam-se, com razão, de que em diversas regiões do mundo as formas de trabalho parecem ter regressado aos tempos “satânicos” de Marx. Mas, apesar da mítica classe operária estar em desagregação, não surge no horizonte nenhuma outra entidade capaz de congregar a unidade dos assalariados. As actuais pressões do mercado e da economia global deixam aos sindicatos uma margem de manobra cada vez mais estreita, mas por outro lado o esforço de actualização por parte das estruturas sindicais tem sido diminuto e insuficiente para responder aos problemas da actualidade. Sobra então espaço para novos actores e movimentos.

Nas últimas décadas, enquanto a economia e os mercados deixaram de estar confinados a fronteiras, o movimento sindical revelou enormes difi-culdades em agir para lá do âmbito nacional (e muitas vezes sectorial). A globalização revelou-se contraditória e gerou múltiplos efeitos paradoxais, nomeadamente ondas sucessivas de protestos juvenis e movimentos sociais que se reclamaram de “alter-globalização”. Desde a cimeira da OMC em Seatle, em 1999, passando pelos encontros do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre e noutras cidades, este activismo – largamente apoiado pelas redes virtuais do ciberespaço – revelaram novas e inovadoras formas de denúncia e de intervenção pública, que até agora têm marcado as formas de activismo global do século XXI. As mais recentes ondas de contestação juvenis (França, Grécia, Catalunha), invocam por vezes o Maio de 68, até porque condições são igualmente activadas por condições de emergência semelhantes, em que os grupos e as comunidades de jovens se afirmam mobilizando-se contra um opositor, ou um “inimigo” identificado. Mas são fenómenos muito distintos. Enquanto naquela época era a consciência política e as auto-proclamadas “vanguardas” que assumiam a liderança da luta, agora a acção colectiva perdeu parte do seu conteúdo político. Dito de outro modo, continua em vigor o princípio da “válvula de escape”, mas os

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seus efeitos são politicamente mais incertos. As ondas de protesto e o discurso de indignação que as acompanha, exacerbados por um poder (institucional, empresarial ou governamental) de cariz autoritário, podem ganhar um efeito mimético de proporções imprevisíveis, se para tal as condições sociais se tornarem propícias.

O actual contexto de crise, ao mesmo tempo que ameaça desfazer um conjunto de laços sociais, que até aqui garantiam a coesão mínima da sociedade, pode, precisamente porque o sistema social tem horror ao vazio, galvanizar de novo as multidões que se sentem ressentidas e desprotegidas. E o facto de o sindicalismo apenas timidamente se envolver neste tipo de iniciativas, até agora, não garante que elas continuem a ter pequena expressão. Até porque se o presente é fortemente marcado pela contingência, tanto pode acontecer que expressões de grupos mino-ritários (sejam eles os MayDay, os FERVE ou outros) possam repentinamente alastrar, como a própria intensificação da pressão pode levar a que o sindicalismo radicalize o seu discurso e consiga mobilizar a massa de precários e desempregados que tem vindo a engrossar e ameaça expandir-se ao longo de 2009.

Diversos autores e académicos têm formulado a necessidade de se criarem novas alianças e dinâmicas internacionalistas, como condição para revitalizar o sindicalismo perante o agravamento das desigualdades e injustiças sociais em todos os continentes, alegando que a mobilidade global – de capitais e de empresas funcionando em rede – exigem respostas sindicais também em rede e igualmente articuladas na escala transnacional (Waterman, 2002; Estanque, 2007). Ao contrário de outros países e regiões, como o Brasil e a América Latina, onde a cooperação entre as universidades, académicos e centros de pesquisa, de um lado, e os movimentos sociais e sindicais, de outro, são uma constante, em Portugal essa tradição praticamente não existe.

As novas redes e estruturas transnacionais de organização política são cada vez mais necessárias. Não apenas na União Europeia, onde as famílias políticas possuem ainda pouca eficácia e os próprias estruturas sindicais são incipientes. Para enfrentar os actuais desafios (que a crise apenas veio acelerar), o sindicalismo de hoje terá de se reinventar ou reestruturar profundamente. Um sindicalismo de movimento social global, orientado para a intervenção cidadã, terá de se estender para além da esfera laboral; terá de passar das solidariedades nacionais para as transnacionais, de dentro para fora, dos países avançados para os países pobres. Precisamos de um sindicalismo que não abdique da defesa dos valores democrá-

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ticos, mas em que estes se alarguem à democracia participativa (nas empresas, escolas, cidades, comunidades, etc.); que coloque as questões ambientais e a defesa dos consumidores, dos saberes e tradições culturais locais no centro das suas lutas e negociações; que resista ao capitalismo destrutivo através de um maior controlo sobre o processo produtivo, os investimentos, a inovação tecnológica e as polí-ticas de formação e qualificação profissional; que pense os problemas laborais no quadro mais vasto da sociedade, da cultura ao consumo, do trabalho ao lazer, da empresa à família, do local ao global (Estanque, 2004; Hyman, 2002).

Mas tudo isto pressupõe uma estratégia ambiciosa que rompa com a prática de acomodação ao funcionamento burocrático em que boa parte do sindicalismo de hoje se deixou enredar. Exige uma reflexão séria e uma atitude autocrítica e porventura mais humilde da parte das actuais lideranças sindicais, associativas e institucionais, em todos os domínios da nossa vida social.

Por exemplo, a extraordinária capacidade da Internet e do ciberespaço são um enorme potencial ainda subaproveitado. A facilidade para aceder à informação, para acumular e divulgar conhecimento em fracções de segundo, poderiam ser uma poderosa arma ao serviço do movimento sindical e da democracia em geral (Ribeiro, 2000; Waterman, 2002). O problema não reside, portanto, na tecno-logia ou na sua ausência. O problema é que os atributos socioculturais que atrás enunciei – tão atreitos à nossa sociedade desde há séculos – se reflectem e repro-duzem nos mais diversos meios e instâncias organizacionais, com isso inibindo uma maior transparência na gestão das instituições e travando, sem sabermos até onde, o processo de consolidação e aprofundamento democrático.

Em conclusão, a crise que nos surpreendeu a todos em finais de 2008 tem causas bem mais profundas e longínquas do que pode parecer. E o modo como sectores decisivos como o do emprego são ou não capazes de responder às dificul-dades e problemas do presente, derivam em boa medida da capacidade que tenha de reconverter algumas das velhas pechas do nosso sistema produtivo em poten-cialidades de viragem. De viragem para outro paradigma. E isso depende muito dos agentes económicos em posições de liderança e da capacidade do próprio poder político aceitar o surgimento de novos protagonistas e novas posturas, limpas, com sentido ético, e animados pelo principio da causa pública, em busca do bem-estar geral e da solidariedade para com os mais pobres e despojados.

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MEMÓRIA

Simone Weil: a “Marciana”Fernando Pereira Marques

I

Simone Weil nasceu em Paris, a 3 de Fevereiro de 1909, numa família da burguesia judia. Tanto o pai, Bernard Weil, médico, como a mãe, Salomea Reinherz ,de origem russa, não eram crentes, e, como os outros membros da família, tinham acentuado gosto pelas artes e pela

cultura. O irmão, André, nascido três anos antes, viria a tornar-se um dos mais importantes matemáticos do século XX.

No Liceu Henri IV – prestigiado estabelecimento de ensino parisiense – foi discípula de Alain, que lhe chamava, significativamente, a “Marciana”, e conti-nuaria a seguir as aulas dele mesmo depois de já acumular vários certificados de licenciatura na Sorbonne e de ter sido recebida na Escola Normal Superior. Esta última, tradicional incubadora do que de mais notável tem surgido no pensamento francês.

Dir-se-ia, por estes dados, que afinal se tratava de um percurso comum a muitos dos que constituíam a elite intelectual da França, mesmo se já marcado pela excelência. No entanto, aquela jovem de óculos redondos, que parecia pouco se importar com a aparência e o corpo, tornar-se-ia um caso particular. Saída de um meio familiar como o descrito, viria a ser atraída intensamente pela questão reli-giosa e legar-nos-ia, nos seus escassos trinta e quatro anos de vida, não só um rico e complexo percurso pessoal, como uma não menos complexa, multifacetada e fasci-nante obra dificilmente catalogável.

Quando há muitos anos atrás, de um modo que não consigo reconstituir - ainda na cadeia de Peniche -, li referências a Simone Weil, procurei conseguir o que sobre ela houvesse e por entre as malhas da censura (nacional e prisional) passasse, assim me chegando às mãos uma biografia em português – penso que ainda será a única ou uma das poucas traduzidas -, da autoria de Marie Magdeleine Davy1. Muitos cambiantes do seu pensamento escapavam-me na altura, sendo

1 V. DAVY, Marie Magdeleine – Simone Weil. Lisboa : União Gráfica, 1969.

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sobretudo alguns dos episódios da sua vida que me suscitariam uma espécie de afinidade electiva, pois mostravam tratar-se de uma personalidade extra-ordinária, no sentido mais literal da palavra, como extra-ordinária era a permanente vontade de se elevar, elevando a condição humana.

A grande fonte inspiradora da sua reflexão filosófica foi sempre o pensa-mento grego, a Antiguidade, génese da nossa civilização, e de onde deriva o que de melhor nesta subsiste de sentido da beleza, da harmonia, do tempo e da verdade. Não obstante os desvios surgidos no decurso dos séculos: do sectarismo cristão, posto ao serviço dos poderes, ao niilismo do século XX anunciado por Nietzsche, sem esquecer o relativismo pós-moderno dos dias de hoje que, naturalmente, Simone Weil não conheceu. Escreve ela em L’enracinement: ”Le besoin de vérité est plus sacré qu’aucun autre. Il n’en est pourtant jamais fait mention2.» Necessidade de verdade como uma das « necessidades fundamentais da alma », entre as várias enunciadas no “Prelúdio a uma declaração dos deveres para com o ser humano”, que ela considerava deverem completar os direitos fundamentais do Homem, nos quais estava omissa essa dimensão, chamemos, espiritual. Entendendo-se por isto o que na relação com os outros e o colectivo nos liberta, enquanto pessoas, da mísera condição animal e material, da estrita condição sociopolítica. Alma num sentido algo diferente, portanto, de uma noção metafísica associada ao religioso.

Deste modo, quando nesse texto Simone Weil se refere à verdade, não está só a referir-se à verdade na relação consigo mesmo, com os outros e o mundo, mas também à verdade intelectual (critica por exemplo Maritain por este afirmar, erra-damente, que não havia nenhum texto grego condenando a escravatura), à verdade na política e na imprensa. Pode-se, assim, sublinhar este traço que percorrerá a sua obra e, consequentemente, a sua existência, ao qual outros se deverão acrescentar: a procura da verdade, ou talvez melhor dito – usando expressões sartrianas -, o desejo de autenticidade, a recusa de todas as formas de má-fé.

No plano intelectual isto exprimia-se por uma curiosidade insaciável, multi-disciplinar, e por um questionamento permanente que a tornava, por vezes, quase impertinente, mesmo agressiva, no relacionamento com colegas ou professores; ou até apressada e pouco rigorosa em teses e afirmações, como realça George Steiner3.

No plano espiritual, por uma não menos insaciável procura de Deus e de

2 Cf. WEIL, Simone – L’enracinement. Paris: Gallimard, 1999, p.53.3 V. STEINER, George – De la Bible à Kafka. Paris: Hachette, 2002, pp.119-131

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coerência nos fundamentos das religiões, incluindo a dos seus antepassados – o judaísmo – em relação ao qual é, frequentemente, tão radical na crítica, ou mesmo violenta, que provocou acusações de anti-semitismo. Mas também no que se refere ao cristianismo e ao catolicismo exprimia uma exigência quase tornada intransi-gência, não obstante a sua sede de um absoluto à dimensão humana e até ter passado por fases de viva exaltação mística. Por tudo isto nunca aceitou integrar-se na Igreja-instituição, onde o que há “de mais puro está misturado com aquilo que mais suja”4 e onde “houve santos obcecados pelo poder da Igreja que aprovaram as Cruzadas e a Inquisição”. Para ela qualquer religião não deveria pretender-se exclusiva e negar as outras, posto em todas se plasmar uma idêntica materialização do humano desejo de transcendência. Além de que a beleza residia também fora do cristianismo e do religioso que a esse facto se fecham: “Toda a imensa extensão dos séculos passados, exceptuados os vinte últimos; todos os países habitados por raças de cor; toda a vida profana nos países de raça branca; na história destes países, todas as tradições acusadas de heresia, como a tradição maniqueia e a albigense; todas as coisas nascidas da Renascença, muitíssimas vezes degradadas, mas não completamente sem valor5.”

No plano político, considerava indissociável a afirmação teórica ou doutrinária da intervenção prática, do engagement militante, da partilha da sorte dos humilhados e ofendidos, ou daqueles que se batiam no verdadeiro campo da acção onde se arriscava a vida. E também neste plano, precipitada em certas análises e opiniões, podia ser impiedosa consigo própria quando descobria erros na avaliação que fizera de situações concretas, como foi o caso em relação às posições pacifistas assumidas – em nome do objectivo de defesa da paz – aquando da ascensão do nazismo ( o mesmo erro foi cometido por muitos outros espíritos superiores , lembro-me de Stefan Zweig). No caso da guerra civil de Espanha, sempre pacifista, lúcida quanto à percepção de que o envolvimento directo das democracias no conflito tornaria inevitável o alastramento à escala mundial, aceita a decisão dos governos, mas consi-derará imperativo alistar-se nas Brigadas Internacionais.

Munida de credenciais de jornalista – o que a ajudará inclusive a tranquilizar os pais (naturalmente inquietos) – parte para Barcelona em 1936, contacta o POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista), oferece-se para ir espiar na zona fran-quista e até indagar sobre o desaparecimento de Joaquim Maurin, cunhado do

4 In Attente de Dieu cf. DAVY, Marie Magdeleine – Simone Weil. Op. cit., p. 90.5 Ibid. p.91.

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seu amigo Boris Souvarine – conhecido revolucionário precursor na denúncia do carácter totalitário do estalinismo . Não sendo aceite, acaba por integrar a coluna anarquista de Durrutti e participará nalgumas acções, até que – confirmando a sua crónica distracção e inabilidade – queimou gravemente um pé com azeite a ferver. Segundo Laura Adler, quando a notícia da sua partida para a guerra chegou ao círculo dos colegas da Escola Normal, foi acolhida, espontaneamente, por uma enorme gargalhada colectiva. Na verdade é, digamos, comovente vê-la nas fotos envergando uma farda onde caberiam dois corpos como o dela, ostentando a sigla CNT (Confederación Nacional del Trabajo), as calças largas presas por um enorme cinturão militar. Numa dessas fotos está sem óculos, os olhos míopes brilhando de inteligência e alegria – como alegre é o sorriso -, bivaque às três pancadas na cabeça; noutra, com os seus óculos redondos, um lenço – decerto vermelho - à volta do pescoço e uma pesada espingarda a tiracolo.

Antes de ser evacuada por causa do referido acidente, insistira em bater-se na frente, contrariando as reservas dos seus chefes, apesar do medo que confessa na correspondência a alguns amigos, da violência exacerbada, da brutalidade da guerra e dos seus próprios companheiros, presas do círculo vicioso de represálias e fuzilamentos que não poupava nenhum dos campos. Ela viverá, por dentro e sem disfarce, as realidades de um conflito civil, verá como as armas transformam os melhores sentimentos e ideais, de como se perde a inocência mesmo quando se luta por causas justas nas motivações e objectivos. Dirigindo-se a Georges Bernanos – que chegara a sentimentos semelhantes, mas ao apoiar os franquistas – comenta: “On part en volontaire, avec des idées de sacrifice, et on tombe dans une guerre qui ressemble à une guerre de mercenaires, avec beaucoup de cruauté en plus et le sens des égards dus à l’ennemi en moins6. »

Não por acaso, no seu elenco de “ necessidades da alma”, em L’enracinement, escreve sobre o risco: “ Le risque est un besoin essentiel de l’âme. L’absence de risque suscite une espèce d’ennui qui paralyse autrement que la peur, mais presque autant7.” E ela recusa essa « espèce d’ennui », assumindo desafios que a levam a situações limite no que se refere, não só à resistência moral, mas também física. Acontecerá o mesmo quando decide trabalhar como operária, desempenhando duras tarefas numa siderurgia e em cadeias de montagem; quando, professora na

6 Cf. ADLER, Laure – L’insoumise, Simone Weil. Arles: Actes Sud, 2008, p.191. 7 Cf. WEIL, Simone - L’enracinement. Op.cit., p.49.

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província – e para escândalo “des gens bien” (como diria Georges Brassens) -, sai à rua ao lado dos operários e sindicalistas em lutas reivindicativas; ou ainda quando, vivendo em Marselha, vai trabalhar na agricultura e se envolve em actividades de resistência contra o regime de Vichy e o ocupante alemão. Por fim, depois de ter conseguido – a contragosto - exilar-se com a família durante um curto período nos Estados Unidos, regressa à Europa, concretamente à Inglaterra, para se juntar à França resistente mobilizada em torno do general De Gaulle. Uma vez em Londres não se conforma com as funções de “redactora” que lhe atribuem e insiste, até à impertinência, junto dos seus superiores, para que a enviem para o interior, para território francês. Queria enfrentar o ocupante de arma nas mãos e partilhar os perigos quotidianos de quem resistia.

Tanto quanto parece De Gaulle chegará a considerá-la “maluca”, e não será o único. Há, na verdade, algo de excessivo, ou mesmo de patológico, nesta ânsia de sacrifício, de entrega, de partilha, que é, simultaneamente, uma busca de abso-luto e manifestação de generosidade extrema. Chegará ao ponto de privar-se de alimentos e de outras comodidades para se sentir mais perto daqueles que sofriam directamente as consequências da guerra e da ocupação. Fragilizada, morre de tuberculose no sanatório de Ashford, em 24 de Agosto de 1943.

II

O legado de Simone Weil é, em grande parte, composto por textos dispersos reunidos postumamente (L enracinement foi uma compilação feita por Albert Camus). São uma excepção as Réflexions sur les causes de la liberté et de l’oppression sociale que ela considerava a sua obra principal. Circunscrevendo-me, nesta breve evocação, essencialmente às suas ideias políticas e sociais, será pois esse último título que tomarei como ponto de partida, assim como os diversos trabalhos, notas, apontamentos, publicados sob o título de La condition ouvrière.

O pensamento político-social de Simone Weil é de uma enorme riqueza e originalidade no que se refere à visão crítica, não só da sociedade capitalista e da democracia liberal, mas também do marxismo, na medida em que já percebera, com inteligência, a verdadeira natureza do regime e do sistema que entretanto se estavam a construir na URSS (não nos esqueçamos que decorriam os anos 30, quando muitos intelectuais ocidentais se mantinham encandeados pela grande ilusão nascida na Rússia). Trotsky, que numa das suas passagens por Paris se cruzará com ela, enfrentará com dificuldade os seus argumentos e análises contundentes.

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As Reflexões, escritas em 1934, estão semeadas de intuições e de passagens lumi-nosas, com pistas inovadoras que visavam superar as insuficiências da crítica marxista ao capitalismo e ao liberalismo. Em que consistiam essas insuficiências? Essencialmente nas derivadas do primado dado à instância económica, à infra-estrutura das sociedades – ao modo de produção e às forças produtivas –, que fazia depender da alteração dessa infra-estrutura o fim da opressão social.

Ora, para ela, a natureza e as causas da opressão são muito mais profundas e complexas. Desde logo, se o poder depende das condições de vida, não cessa de transformar estas últimas, pois é a luta pelo poder, a “religião do poder”, que está no centro dos fenómenos sociopolíticos. E enquanto houver homens que ordenam e homens que executam, a luta pela subsistência está associada a esta divisão. Porém, Marx parecia pensar que, uma vez instaurado o socialismo nos países industriais, desa-pareceria a luta pelo poder. A URSS era o exemplo vivo de que isso não acontecia.

A possibilidade de uma democracia efectiva implicava uma transformação da “civilização actual” ou, por outras palavras (minhas), uma mudança de para-digma civilizacional. Neste sentido, Simone Weil introduz e equaciona questões como a da relação dos indivíduos com a sociedade e entre si, o fim da humilhação, do aviltamento do homem pelo homem, a importância da amizade, da arte, da cultura. Esta considerada, não só enquanto simples “meio de evasão da vida real”, mas também como preparação dos homens para essa vida real. Ao que acrescen-tava o papel da arte enquanto “expressão do feliz equilíbrio entre o espírito e o corpo, entre o homem e o universo”. Era indispensável, e isso faltara a Marx, “de se faire au moins une représentation vague de la civilisation à laquelle on souhaite que l’humanité parvienne », mesmo que essa representação tenha mais a ver com a “ simple rêverie” do que com o verdadeiro pensamento8. Em síntese: “Les termes d’oppresseurs et d’opprimés, la notion de classes, tout cela est bien près de perdre toute signification, tant sont évidentes l’impuissance et l’angoisse de tous les hommes devant la machine sociale, devenue une machine à briser les cœurs, à écraser les esprits, une machine à fabriquer de l’inconscience, de la sottise, de la corruption, de la veulerie, et surtout du vertige9. »

Simone Weil considera, ainda, outras causas da opressão social, as quais apro-fundará, muito particularmente, após a sua experiência como operária: a técnica e

8 Cf.WEIL, Simone – Réflexions sur les causes de la liberté et de l’oppression sociale. Paris : Gallimard/Folio, 1998, p.117 e sgts.9 Ibid., p. 125.1998, p.117 e sgts.

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os métodos de trabalho industrial, estudados, pormenorizadamente, nalguns dos vários textos reunidos em A Condição Operária. Para resolver o problema da opressão, não basta expropriar os capitalistas, alterar a forma de propriedade. A opressão manter-se-á se não se alterarem as técnicas de produção e a relação dos traba-lhadores com as máquinas, se não se transformarem “as propriedades sociais do maquinismo”. Ao desempenhar tarefas penosas, em fábricas como a Alsthom e a Renault, durante vários meses de 1934 e 1935 - apesar da sua fragilidade e das dores de cabeça crónicas de que padecia -, aperceber-se-á da extrema violência do trabalho à peça e em cadeia, do embrutecimento provocado pela rotina e pelo cansaço físico, de como se deixa de pensar, durante horas, quando todos os sentidos estão mobilizados pelo ritmo das máquinas e a necessidade de cumprir os objec-tivos traçados pelas chefias. Impunha-se: ”Entrevoir une transformation technique ouvrant la voie à une autre civilisation10.” Ou seja, um desenvolvimento espiritual no domínio do trabalho.

Mais ainda, ela compreenderá como se estruturam hierarquias entre os próprios operários, de como são raros os momentos de camaradagem e de fraternidade, o sistema fomentando a emulação, a rivalidade, a luta pela sobrevivência, a degra-dação moral e o esgotamento físico. Tornava-se claro, por tudo isto, que a classe operária não era portadora, por causa da especificidade da sua condição, de uma diferente civilização, de uma sociedade outra, como pretendia Marx, que nunca trabalhara numa fábrica. Antes pelo contrário, o “imperialismo operário”, ou seja, a concentração do poder nessa classe, poderia conduzir ao totalitarismo11, pois a própria organização da produção nas fábricas impedia a formação de trabalhadores livres, e que os “ trabalhadores viessem a constituir uma classe dominante”12.

Se pensarmos que escreveu as Reflexões em 1934, é de grande lucidez a análise que faz da crise que atravessava o sistema capitalista nos países industrializados, dos limites do expansionismo colonial, e dos factores estruturais que empurravam esse sistema para a ruptura anunciada. Esta teria como consequência o reforço do papel do Estado e a “subordinação do económico ao militar”, a “guerra económica difusa” podendo descambar numa guerra propriamente dita13.

Noutro texto posterior, e só publicado em 1950, a sua reflexão estende-se aos

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10 Cf. WEIL, Simone – La condition ouvrière. Paris: Gallimard/Folio, 2002, p37.11 Ibid., p.32.12 Cf. WEIL, Simone – Réflexions (…). Op. cit., p.143.13 Ibid., pp.136-137.

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partidos políticos no quadro da democracia, baseando-se na experiência da parti-docracia da III República francesa, assim como no aparecimento de um novo tipo de partidos de carácter totalitário – os comunistas e os nazi-fascistas . Segundo ela – na linha de um Roberto Michels ou de um Moisei Ostrogorski – os partidos, estru-tural e inevitavelmente, esmagavam o pensamento autónomo dos seus membros e levavam a que se confundisse o interesse geral e a vontade geral, com as estratégias dos seus dirigentes, acabando por oprimir espiritualmente as pessoas, a exemplo da Igreja católica14.

Simone Weil não tem a pretensão de construir ou propor sistemas ou modelos alternativos. As suas conclusões são em grande medida pessimistas no que concerne ao futuro imediato, mas não perde a confiança nas potencialidades de mudança dos indivíduos e das sociedades. Considera que as “gerações que se depararão perante as dificuldades suscitadas pelo descalabro do regime actual ainda estão por nascer”, no entanto sabia “que a vida será tanto menos inumana quanto maior for a capa-cidade individual de pensar e de agir15.”

Em síntese, e fundamentalmente, pensando e agindo numa fase em que a Europa e o mundo mergulhavam num processo de destruição e de negação do Homem na sua dignidade, em que se espalhava a morte e a violência, em que se enfrentavam ideologias totais e totalitárias, Simone Weil, posicionando-se sempre ao lado das vítimas, dos mais indefesos, dos que lutavam pela sua sobrevivência e pela sua libertação, contribuirá para pensar a necessidade de superação dos sistemas políticos existentes, sem se cair no positivismo e no economicismo de correntes de pensamento – caso do marxismo – que se pretendiam emancipadoras. Ela diz-nos haver algo nos indivíduos que transcende a sua condição de mortais e de seres sociais, devendo-se, por isso, melhor estudar e compreender a real natureza dos factores geradores de opressão, para se poderem delinear as condições de uma efectiva emancipação. Deste modo, ela surgia então, como dizia Alain, quase como uma “marciana” no domínio das ideias. Singularidade que se mantém cem anos após o seu nascimento, tornando-a, ainda nos dias de hoje, uma fonte de inspiração.

14 V. WEIL, Simone – Note sur la suppression générale des partis politiques. Paris : Climats, s.d.7.15 Cf. WEIL, Simone – Réflexions (…). Op. cit., p.147.

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A metodologia revolucionária de Charles DarwinJoaquim Jorge Veiguinha

1 Darwin, Charles - Autobiografia, Lisboa, Relógio de Água, 2004, p.19.

1. Charles Darwin nasce em 12 de Fevereiro de 1809 em Shrewsbury, Inglaterra. Filho do médico Robert Waring Darwin (1766-1848) e de Susanna Wedgwood (1765-1817), perde a mãe com apenas oito anos de idade. Charles era, em idade, o penúltimo filho do casal e contava com cinco irmãs - Marianne, Caroline, Sarah, Susan Elizabeth, mais velhas, e Emily Catherine, a mais nova - e um irmão mais velho, Erasmus Darwin, que seguiria a carreira médica do progenitor. De 1818 a 1825, o jovem Darwin estuda no liceu do Doutor Butler na sua Shrewsbury natal como aluno interno. Desde pequeno sempre preferiu o contacto com a natureza relati-vamente ao estudo das línguas clássicas, passando grande parte do seu tempo livre a desenvolver os seus talentos de coleccionador e a caçar. A experiência liceal de Darwin revelou-se completamente frustrante, já que o estabeleci-mento do Doutor Butler nada mais ensinava para além de “alguma geografia e história da antiguidade”, como refere na sua Autobiografia1.

Os interesses do jovem Darwin seguiram uma direcção completamente diferente. O seu gosto pela observação, primeira etapa do método cien-tífico, cedo se revelou. Teve oportunidade de desenvolver os seus talentos precoces de naturalista quando o seu irmão mais velho, Erasmus, cons-truiu um pequeno laboratório de química na casinhota de ferramentas do jardim caseiro onde pôde fazer experiências. Em 1825, Darwin ingressa na Universidade de Edimburgo para cursar Medicina, como o pai e Erasmus. A experiência não foi melhor do que a do liceu do Doutor Butler. Para além do carácter enfadonho do curso e dos professores, o futuro naturalista não conseguiu suportar a assistência a uma operação sem anestesia a uma criança, já que só posteriormente o clorofórmio seria descoberto. Consciente da inaptidão do filho para o curso de Medicina, Robert Darwin envia-o para a Universidade de Cambridge para estudar Teologia.

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Darwin permanece três anos em Cambridge, de 1828 a 1831. A expe-riência não foi muito melhor do que a do liceu e a de Edimburgo quanto mais não seja pelo facto de no Christ College, onde Darwin se licenciou, pontificar o reverendo William Paley (1743-1845), eminência da Teologia Natural que defendia que apenas um Criador inteligente podia explicar a origem e as complexas adaptações dos seres vivos. No entanto, Darwin inte-ressou-se sobretudo pelas aulas de botânica e pelo método de ensino do reverendo John Stevens Henslow (1796- 1861), de quem se tornou amigo. Com Henslow aprendeu os rudimentos das técnicas de observação e amos-tragem que desempenharam uma influência assinalável na elaboração da sua metodologia científica. Henslow esteve também ligado a um acontecimento que mudou o rumo da vida do futuro naturalista e reforçou extraordinaria-mente a sua orientação vocacional. Em 1831, Darwin recebe uma carta do botânico em que é convidado para integrar, como naturalista, a expedição à volta do mundo do Beagle, navio da marinha real britânica. Graças ao apoio do tio materno, Josiah Wedgood, conseguiu vencer as resistências iniciais do pai a esta viagem, embarcando no Beagle em 27 de Dezembro de 1831 e só retornando a Inglaterra em 2 de Outubro de 1836.

A viagem do Beagle permitiu-lhe alargar os seus horizontes e aperfei-çoar o seu método. A observação da fauna e da flora nas ilhas Galápagos na América do Sul e os estudos sobre a estrutura geológica de algumas ilhas foram os resultados mais profícuos da expedição em que Darwin parti-cipou. A sistematização dos seus poderes de observação, bem como o início da segunda etapa da sua metodologia científica, a construção de hipóteses explicativas fundamentadas, constituem provavelmente os grandes trunfos desta viagem marítima à volta do mundo. Na sua Autobiografia reconhece que adquiriu nesses cinco anos um “hábito de activa diligência e atenção concen-trada relativamente a tudo aquilo que me ocupava. Tudo o que pensava ou lia era directamente relevante para iluminar o que tinha visto ou iria prova-velmente ver; e este hábito continuou durante muitos anos”2. O resultado deste “hábito de activa diligência” foi a publicação sob a forma de livro dos seus diários de bordo sob o título A viagem do Beagle: Viagem de um naturalista à volta do mundo (“The voyage of the Beagle - a naturalist voyage around the world”), em 1839.

2 Ibidem, p. 68.

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O retorno a Inglaterra não deixou Darwin inactivo. Alojando-se na capital do império britânico em 7 de Março de 1837, leu diversas comunicações científicas na Geological Society e começou a preparar o manuscrito sobre as suas Observações Geológicas, bem como os seus cadernos de apontamentos sobre a Origem das espécies. Em 29 de Janeiro de 1839 casa com a sua prima direita Emma Edgewood, filha do tio Josiah, mulher crente, de quem teve oito filhos - seis rapazes e duas raparigas - dois dos quais Charles Waring e Anne Elizabeth, morreram respectivamente com dois e dez anos de idade. Em 1841, o casal abandona Londres para instalar-se definitivamente numa propriedade rural em Down, no condado de Kent, onde, longe da azáfama londrina, Darwin pode dedicar-se integralmente às suas pequisas. Graças aos cadernos que foi redigindo com esmero e espírito sistemático, o grande naturalista elabora o primeiro esboço da Origem das espécies no Verão de 1842 durante uma visita à propriedade da família da esposa.

Em Junho de 1858, o jovem naturalista Alfred Russel Wallace (1823-1913), que se encontrava na Malásia, envia-lhe o ensaio A tendência das variedades para se afastarem indefinidamente do tipo original (“The tendency of varieties to depart indefinetly from the original type”) que coincide com as suas teses sobre a Origem das espécies. Em Setembro de 1857, são publicados no Journal of the procee-dings of the Linnean Society, o ensaio de Wallace e um extracto da Origem das espécies, de Darwin. Porém, o acolhimento dos dois textos foi recebido com indi-ferença. Dois anos depois, Darwin publica a sua obra-prima cujo título completo é Sobre a origem das espécies por meio da selecção natural ou a preservação das raças favorecidas na luta pela existência (“On the origin of species by means of natural selection or the preservation of the favoured races”). A obra revelou-se desde logo um enorme sucesso editorial. A primeira edição esgotou-se no próprio dia. Uma segunda de 3000 exemplares teve a mesma sorte.

Com a Origem das espécies a reputação científica de Darwin consolidou-se defi-nitivamente no Reino Unido e no estrangeiro, apesar da oposição dos inúmeros adeptos das teorias criacionistas, como o provam as inúmeras traduções da obra. Em 1871, Darwin publica A origem do homem e a selecção sexual (“The descent of man and selection in relation to sex”), onde aplica a doutrina da Origem das espécies aos seres humanos, demonstrando que estes descendem dos primatas. Impressionado com as afinidades de comportamento entre os símios e o homem, escreve, em 1872, A expressão das emoções nos homens e nos animais (“The expression of

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the emotions in man and animals”), o seu terceiro grande livro. Posteriormente, publicou diversas obras sobre temas específicos. Morre na casa de Down, com 73 anos de idade, em 19 de Abril de 1882.

2. O primeiro grande mérito da teoria científica de Darwin foi a rejeição do teleologismo e das causas finais. O autor integra-se assim na grande tradição científica que remonta a Galileu. A ciência baseia-se fundamen-talmente para o grande naturalista britânico na investigação das causas (eficientes) dos fenómenos naturais do mundo orgânico. Na sua Autobiografia considera singelamente que esta consiste “em agrupar factos de modo a tirar deles conclusões gerais”3, definição algo reducionista, mas que exprime, de certo modo, o fio condutor de uma metodologia contrária à especulação do modo de pensar baseado na dedução a partir de princípios abstractos sem fundamento na observação e paciente recolha de dados e informações. Para Darwin, as espécies não se formaram independentemente umas das outras, nem forem criadas por um “Artífice Inteligente” a partir de um desígnio providencial, como pensava o reverendo Paley. As espécies actuais descendem de outras mais antigas através de um longo processo evolutivo que durou milhões de anos.

O francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) é o primeiro naturalista a romper com a teoria criacionista e a avançar, na sua Philosophie zoologique, publicada em 1809, com a hipótese evolucionista. Para Lamarck, as espé-cies animais são organizadas de forma linear e ascendente, das mais simples para as mais complexas - invertebrados, peixes, répteis, aves e mamíferos. No entanto, considera que cada uma se forma a partir de actos de geração espontânea, o que acaba por retirar credibilidade científica à sua teoria evolucionista. A sua grande descoberta, que exercerá uma influência deter-minante em Darwin, é a hereditariedade dos caracteres adquiridos que lhe permite demonstrar que em cada linha evolutiva emergem novas variedades resultantes de mudanças adaptativas que são transmitidas aos descendentes.

Darwin, na verdade, não foi o criador da teoria da evolução, já que tinha sido esboçada, se bem que de modo incorrecto, por Lamarck. No entanto, a correcção feita pelo naturalista inglês à teoria do seu precursor foi uma

3 Ibidem, p. 59

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verdadeira descoberta científica que teve como consequência, pese embora a oposição dos criacionistas da sua época, bem como dos actuais, a consolidação da teoria da evolução das espécies no âmbito da comunidade científica. As alterações de Darwin não são de pouca monta, já que todas convergem para a refutação do ponto débil da teoria lamarckiana da geração espontânea, teoria ainda tributária de uma explicação metafísica, não-científica, da origem das espécies. O primeiro grande princípio da teoria evolucionista de Darwin é que todos os animais e plantas actualmente existentes têm uma origem ou ascendência comum. Na Origem das espécies defende que os primeiros derivam de quatro ou cinco formas primitivas e as segundas de um número seme-lhante ou mesmo menor. Esta hipótese leva-o a concluir que ambos podem descender de um “protótipo único”, tese verdadeiramente genial numa época em que a pesquisa científica não possuía os recursos e tecnologias de que hoje dispõe, e que seria confirmada irrefutavelmente com a descoberta do ADN, a estrutura genética comum a todos os seres vivos.

Dois outros grandes princípios contribuíram directamente para destronar a hipótese “espontaneísta” de Lamarck. O primeiro considera que o elo de ligação do ascendente comum às espécies animais e vegetais actualmente exis-tentes é um conjunto indefinido de formas intermédias que, no entanto, foram desaparecendo no tempo. O segundo foi a descoberta de um princípio classificatório dinâmico em que os seres da natureza orgânica são ordenados em grupos subordinados a outros grupos e se integram numa árvore genealógica, onde se destaca tanto a ascendência comum como as ramificações ou derivações de que resultam uma grande diversidade de espécies e variedades cada vez mais afastadas do antepassado comum. Assim, na grande árvore da vida, se assim a poderemos chamar, os géneros agrupam-se em classes segundo a ascendência comum, cada um dos quais se subdivide em espécies e estas em variedades; por sua vez, os géneros constituem famílias e subfamílias que se distinguem como ramificações da árvore da vida conforme os diferentes períodos em que come-çaram a divergir do antepassado comum; por fim, os géneros que descendem de antepassados diferentes formam ordens distintas, o que não põe de modo algum em causa a hipótese darwiniana sobre a derivação de um protótipo único de todos os seres orgânicos, mas apenas confirma a grande diversidade e fecun-didade do reino da natureza.

A nova estrutura classificatória em que os seres da natureza surgem inter-

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ligados, destrona definitivamente a ordenação descritiva e estática do sueco Carl Lineu (1707-1778) que dominava o panorama da história natural até à descoberta de Darwin, apesar do naturalista francês Buffon (1707-1788) ter rejeitado a classificação dos seres da natureza em categorias hierarquizadas e fixas e ter considerado as espécies como a única categoria natural, o que, juntamente com Lamarck, o transforma num precursor do autor da Origem das espécies. Outro dos grandes princípios darwinianos, porventura o eixo central da sua teoria evolutiva, é o princípio da selecção natural. Segundo este princípio todos os seres da natureza evoluem através da conservação dos caracteres que são úteis ao seu desenvolvimento e da eliminação dos que lhe são nocivos. Trata-se, no fundo, de um lento processo de formação dos seres da natureza através de modificações que se vão acumulando no decurso do tempo e são transmitidas aos descendentes. O princípio da selecção natural contribui tanto para destronar a teoria criacionista da criação simultânea ou paralela das espécies como para desmentir a tese sobre as transforma-ções repentinas da estrutura dos seres da natureza orgânica, já que, como gostava de sublinhar Darwin, “a natureza não dá saltos” (Natura non facit saltum). Este princípio desmente também o axioma criacionista da perfectibilidade da obra do “Grande Artífice”. De facto, a selecção natural não cria seres perfeitos, mas apenas relativamente perfeitos quando comparados uns com os outros. Prova manifesta desta “imperfectibilidade” dos seres da natureza e do carácter anticientífico da teoria criacionista, é a existência em muitos deles do que Darwin designa por “órgãos rudimentares”, ou seja, órgãos atrofiados cujo desenvolvimento foi bloqueado por falta de uso. Estes órgãos são comparados por Darwin “às letras que conservadas na ortografia de uma palavra, se bem que inúteis para a sua pronúncia, servem para lhe definir a origem e a filiação”4.

Mais polémico é o conceito de “luta pela existência” (“struggle for life”), sobretudo pelo facto da corrente dos chamados darwinistas sociais, em que se destacam Herbert Spencer e Friedrich Nietzsche, o ter transformado em princípio omniexplicativo do desenvolvimento social. Para Darwin, este conceito, para além de constituir um mero corolário do princípio da selecção

4 Darwin, Charles - Origem das espécies, Porto, Lello & Irmão, s.d. Existe do mesmo editor uma edição actuali-zada: A origem das espécies, Porto, Lello, 2009. As edições portuguesas da Lello foram excelentemente traduzidas por Joaqim Dá Mesquita Paul.

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natural, é um fruto da influência do Ensaio sobre o princípio da população (“An Essay on the principle of population”) de Thomas Malthus, publicado em 1798, e que Darwin leu em Outubro de 1838. Segundo Darwin, a luta pela exis-tência resulta de que todos os seres da natureza tendem a multiplicar-se em progressão geométrica. Na Origem das espécies cita um exemplo de Lineu em que uma planta anual produz uma semente num ano, duas no ano seguinte, depois quatro, oito e assim sucessivamente. Ao fim de vinte anos, o total de exemplares da tímida plantinha supera o milhão, para ser mais exacto, a soma dos 20 termos desta progressão geométrica de razão dois é de 1.048.575. Esta fecundidade da natureza orgânica conduz à conclusão que inúmeros indivíduos terão necessariamente que ser destruídos em determinados perí-odos da sua existência, já que, “de outra maneira, invadiriam todos os países e não poderiam subsistir”5.

O conceito de luta pela existência tem, porém, um significado científico que supera o absurdo ideológico do princípio do reverendo Malthus que o aplicava à espécie humana, apesar de deixar uma prolífica descendência. Para Darwin, este deve ser entendido “no sentido geral e metafórico, o que implica as relações mútuas de dependência dos seres organizados”6. O natu-ralista britânico rompe tanto com a teoria criacionista em que as espécies se formavam separadamente umas das outras, como com as teorias atomistas para as quais o todo se reduzia à soma de partes discretas. O grande mérito do autor da Origem das espécies consiste em que cada espécie apenas pode ser analisada e compreendida em termos científicos na sua relação com as condições orgânicas e inorgânicas da sua existência e as espécies com que “se encontra em concorrência para a sua alimentação e habitação, e com a de todas aquelas que lhe servem de presa ou contra às quais tem de defender-se”7. Deste modo, cai um outro axioma da teoria criacionista que concebe a natureza como um ente pródigo, mas benévolo e beneficente construído à imagem do “Grande Artífice”.

Outra grande descoberta de Darwin foi a rejeição dos tipos eternos e imutáveis. Esta descoberta transforma-se num princípio metodológico de dimensão científica universal porque extravasa o âmbito das ciências

5 Ibidem, p.62.6 Ibidem, p.60.7 Ibidem, p.71.

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da natureza e entra sob uma nova forma no âmbito das ciências sociais. Para o autor da Origem das espécies, a formação dos seres vivos baseia-se em duas grandes leis: a lei da unidade de tipo e a das condições de existência. A primeira pode ser definida na linguagem actual como a estrutura de todos os seres vivos que pertencem a uma mesma classe, ou seja, que têm uma ascendência comum, e que é independente do seu modo de vida. A unidade tipo remete para a unidade de descendência e para a trans-missão dos caracteres hereditários no seio das espécies da mesma classe. Em contrapartida, a lei das condições de existência depende do prin-cípio da selecção natural através do qual as espécies se vão adaptando às suas condições orgânicas e inorgânicas de existência e se transformam no decurso do tempo. O “estatuto” das duas leis não é, porém, igual, o que constitui outra importante descoberta de Darwin: “a lei das condições de existência é, de facto, a lei superior, pois que compreende pela heredita-riedade das variações e das adaptações, a da unidade de tipo”8.

Estas considerações são importantíssimas, pois subentendem um princípio fecundíssimo no âmbito tanto das ciências da natureza como das ciências da sociedade: o princípio de que a chave para a compreensão do mais simples parte do estudo do mais complexo. Ou seja, utilizando a terminologia darwiniana, a lei das condições de existência é mais abran-gente e compreensiva do que a lei da unidade de tipo. Justamente por isso pode e é, de facto, a chave para a compreensão da primeira, já que os próprios caracteres hereditários que resultam da ascendência comum não são eternos e imutáveis, mas estão submetidos à mudança e à trans-formação à medida que as espécies evoluem no tempo. Esta evolução consiste no aparecimento de umas e no desaparecimento de outras através de um processo de renovação incessante que passa por um conjunto indefinido de formas intermédias cuja “reconstrução mental” é extraor-dinariamente difícil pelo facto de que apenas nos restam fragmentos de vestígios fósseis. Mas esta dificuldade não é uma prova da fragilidade da metodologia e da teoria de Darwin. Outra das provas da sua robustez, a que Darwin dava grande importância, é a tese de que “os animais antigos e extintos parecem-se até certo ponto, aos embriões dos animais vivos

8 Ibidem, p.194.

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e pertencentes à mesma classe”9. Esta tese, para além de reforçar a ideia de uma ascendência comum a todos os seres da natureza orgânica - os embriões dos répteis, aves e mamíferos são semelhantes uns aos outros, apesar das significativas diferenças das formas adultas -, significa que é através da análise destes embriões que poderá reconstruir-se mentalmente, juntamente com os vestígios fósseis, a história natural das espécies. Mais uma vez, a chave para a compreensão do mais simples reside no estudo do mais complexo.

Ao contrário da teoria do seu precursor Lamarck, a teoria evolucionista de Darwin não é uma teoria linear. Tal como as novas espécies não se formam imediatamente, ou seja, por geração espontânea, também as antigas não se extin-guem imediatamente. Esta concepção inaugura um outro princípio científico metodológico de dimensão universal. Poderemos designá-lo por princípio da coexistência entre formas dominantes e formas não dominantes. Para Darwin, as espécies novas, ou seja, as que se encontram num patamar superior da escala evolutiva, continuam a reproduzir-se, a espalhar-se e a diversificar-se, roubando o predomínio às formas mais antigas. Estas, porém, continuam a resistir em grupo durante um certo tempo, até que desaparecem definitivamente. Isto significa que a existência de seres mais aperfeiçoados no processo evolutivo é perfeitamente “compatível com a persistência de seres numerosos, conservando ainda uma conformação elementar e pouco perfeita, adaptada às condições de existência simples”10. Mais uma vez se poderá concluir com Darwin que Natura non facit saltum.

3. A teoria de Darwin teve implicações controversas, apesar do seu inegável valor científico. O darwinismo social foi uma doutrina completamente alheia às intenções do naturalista britânico que despontou no século XIX e que ainda hoje imprime a sua marca. O filósofo e sociólogo Herbert Spencer (1820-1923), contemporâneo de Darwin, foi o fundador desta doutrina. A sua teoria parte do princípio de que tanto os seres da natureza como os seres sociais se desenvolvem através de um progresso contínuo do mais homogéneo ou indiferenciado para o mais heterogéneo e diferenciado. O motor desta expansão é uma permanente luta pela existência e pelos meios de conservação em que triunfam os mais aptos.

9 Ibidem, p.361.10 Ibidem, p.476.

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Se é certo que o princípio spenceriano da “sobrevivência dos mais aptos” influenciou a teoria de Darwin sobre a selecção natural, também é verdade que Spencer e os seus discípulos extrapolaram este princípio, que em Darwin se integra no conceito da “struggle for life”, para a sociedade, transformando-o numa categoria teleológica omnicompreensiva que pretendia explicar a evolução do universo. Porém, na realidade, este não dá conta dos fenómenos da natureza e muito menos dos fenómenos sociais. A teoria de Spencer ao tentar reduzir o progresso a um princípio generalista acaba por não explicar nada em concreto, porque se abstrai das diferenças e da diversidade tanto no seio da natureza como, por maioria de razão, nas sociedades historicamente determinadas.

Uma das provas mais evidentes da falsidade da “hipótese” spenceriana - que a antropologia científica destroçou completamente relegando-a para o caixote do lixo da indigência teórica - é a ideia de que a conformação anató-mica dos homens “civilizados” é mais “perfeita” do que a dos homens “não civilizados”. Spencer defende que as pernas dos papuas são muito “curtas” relativamente aos braços e ao corpo, ao contrário do que acontece com os europeus civilizados, em que esta “desproporcionalidade” entre a dimensão dos membros inferiores e as “extremidades superiores” não existe. Spencer não hesita em defender que a heterogeneidade ou complexidade biológica e anatómica dos europeus colonialistas e civilizados marca a sua superioridade relativamente aos selvagens para concluir de acordo com o seu princípio explicativo que “o homem civilizado possui também o sistema mais complexo ou heterogéneo do que o homem civilizado, facto que corresponde à maior relação que o cérebero do primeiro tem com os gânglios subjacentes”11.

Este exemplo que denota, além do mais, uma concepção racista e euge-nista sobre a evolução da espécie humana, revela bem os radicais limites e insuficiências da “metodologia” de Spencer quando pretende deduzir o que chama “progresso” de um princípio especulativo indiferenciado. Mas a “teoria” de Spencer piora quando pretende explicar o que designa por “progresso na sociedade”. A passagem do homogéneo para o heterogéneo ou das sociedades “primitivas ou indiferenciadas” para as sociedades “complexas e diferenciadas” do mundo dito “civilizado” faz-se através do aprofundamento da divisão social do trabalho que acaba por converter-se em princípio explica-

11 Spencer, Herbert - Do progresso, sua lei e sua causa, Lisboa, Cadernos Culturais Inquérito, s.d.

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tivo do contraste ou separação entre governantes e governados. Esta separação depende, porém, de um conjunto de condições históricas que não são as mesmas no feudalismo e na liberal-democracia, pelo que não podem ser explicadas simplicisticamente através de um princípio abstracto e omnicompreensivo. O próprio Darwin não era adepto da “metodologia” dedutivista spenceriana. A este propósito, escreve na sua Autobiografia: “Não estou consciente de ter tirado proveito das obras de Spencer no meu trabalho. O seu modo dedutivo de tratar todo e qualquer assunto é completamente oposto ao meu modo de pensar. As suas conclusões não me convencem (...) as suas generalizações fundamentais (que foram comparadas por algumas pessoas com as leis de Newton!) - as quais creio que possam ser muito valiosas sob um ponto de vista filosófico, são de tal natureza que não me parecem ter qualquer utilidade estritamente científica. Têm mais características comuns com definições do que com leis da natureza”12.

Outro importante darwinista social foi o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). Adversário feroz da democracia e da igualdade social e política, Nietzsche considera que a “imperfeição” da vida social reside precisamente em que a lei da sobrevivência do mais apto é restringida pelas leis morais e políticas predominantes em que triunfa a “massa”. Na sua obra A genealogia da moral, publi-cada em 1887, considera que “sob o ponto de vista biológico, as condições de vida legais são restrições da vontade de viver propriamente dita, que tende para a dominação, e estão subordinadas a esta tendência geral como meios de domi-nação mais vastos”13. Na obra A vontade de poder (“Der Wille zur Macht”), publicada postumamente em 1901, Nietzsche aprofunda a sua “perspectiva” biológica de poder, confessando-se como um incondicional discípulo da “escola de Darwin”: “Vejo todos os filósofos, vejo a ciência ajoelharem-se perante uma realidade que é o contrário da luta pela existência como é defendida pela escola de Darwin - isto é, vejo no topo, sobrevivendo em toda a parte, todos os que comprometem a vida e o valor da vida (...) Vejo como os inferiores predominam através do seu número, da sua astúcia, da sua perspicácia (...) Encontro a «crueldade da natureza», de que tanto se fala, noutras paragens: ela é cruel para com as suas criaturas mais dotadas, poupa, protege e ama les humbles...”14.

12 Darwin,Charles - Autobiografia, Lisboa, Relógio de Água, pp. 98-99.13 Nietzsche, Friedrich - A genealogia da moral, Lisboa, Guimarães & C. a , 1976, pp. 69-70. Esta péssima tradução portuguesa obrigou-me efectuar algumas correcções sob pena desta passagem se tornar inexplicável.14 Nietzsche, Friedrich - The will to power, New York, Vintage Books, 1968, p. 365.

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O mestre não reconheceria certamente este discípulo e proclamar-se-ia certamente não-darwinista. Ao contrário de Rousseau, Nietzsche e os darwi-nistas sociais consideram que os fundamentos da desigualdade entre os seres humanos têm origem na natureza e não na sociedade. Neste sentido, o princípio da luta pela existência e pelo predomínio transmuta-se em princípio universal do desenvolvimento social. No entanto, é precisamente o contrário que acon-tece, já que as sociedades progridem quanto mais os seres humanos conseguem libertar-se do reino da necessidade, ou seja, superar a luta naturalista pela exis-tência, esse hegeliano”reino animal do Espírito”, e se aproximam cada vez mais do reino da liberdade, baseado na cooperação e na emancipação da opressão e da exploração de muitos por alguns poucos. Natureza e sociedade são realidades distintas e contrapostas: o que é válido para a primeira encontra a sua superação na segunda, apesar do homem participar na natureza como organismo. Trata-se, porém, de um indivíduo sui generis, já que, ao contrário dos demais seres da natureza, é susceptível de aperfeiçoamento voluntário, consciente e deliberado. Resultado tardio dos mecanismos da selecção natural, o ser humano é o ponto de partida para a sua superação, pois é o único ser da natureza capaz de agir cons-ciente e deliberadamente sobre ela com vista a libertar-se da sua dependência e de transformar as suas próprias condições de existência.

O darwinismo social não passa de um aborto degenerado da teoria de Darwin. Pode ser comparado àqueles órgãos rudimentares que na teoria do grande naturalista exprimem a imperfeição dos mecanismos da selecção natural: o darwinista social não passa de uma falha no mecanismo da evolução da espécie a que retrógradas contingências ideológicas atribuíram relevância no período da pré-história do homem. A metodologia revolucionária de Darwin teve, porém, outros que lhe fizeram justiça e contribuíram para potenciar o seu significado. Entre estes, destaca-se, sobretudo, Karl Marx (1818-1883). Frequentemente, tem-se sobrestimado a influência de Hegel na formação intelectual do filósofo alemão, mas tem-se esquecido ou simplesmente subestimado o legado do autor da Origem das espécies. Os vestígios deste legado na obra de Marx não constituem teias de aranha ou provas fósseis, mas avanços determinantes para a interpretação e compreensão científica do mundo histórico social. Destacamos o conceito marxista de “Formação Social” como combinação ou coexistência dinâmica de modos de produção em que um deles é dominante e sobretudo o princípio de que a chave para a compreensão do mais simples encontra-se no estudo do mais

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complexo, princípio que se tornaria o núcleo da metodologia científica de Marx: “A sociedade burguesa é a organização histórica de produção mais desenvolvida e mais variada que existe. Por este facto, as categorias que exprimem as relações desta sociedade e que permitem compreender a sua estrutura, permitem ao mesmo tempo perceber a estrutura e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos ela se edificou, de que certos vestígios, parcialmente, ainda não apagados continuam a subsistir nela, e de que certos simples signos, desenvolvendo-se nela, se enriqueceram de toda a sua significação. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. Nas espécies animais inferiores só se podem compreender os signos denunciadores de uma forma superior, quando essa forma superior já é conhecida”15.

Outro legado de Darwin na teoria de Marx foi sem dúvida a que refere a unidade de tipo às condições de existência. Tal como Darwin defendeu que a unidade de tipo ou a estrutura de todos os seres da natureza que tinham um ascendente comum devia ser referida às suas mutáveis condições orgânicas e inorgânicas de existência, também Marx considerou que os géneros intelectuais (conceitos, ideias) não eram eternos e imutáveis, mas deviam ser referidos à “espécie social”, ou seja, às condições histórico-sociais de existência dos homens, de que constituíam apenas uma parte, e não o todo. Isto não significa que Marx, que se autoconfessava não-marxista, fosse darwinista. Apenas significa a possibi-lidade de construção de uma metodologia que, apesar de reconhecer a diferença específica entre ciências da natureza e ciências da sociedade, não se encerra num dualismo irredutível ou num reducionismo que põe em causa a diversidade do objecto de uma e de outra, mas se propõe redimensionar as afinidades electivas de uma pesquisa e de um projecto científicos que são, no fundo, comuns a ambas.

15 Marx, Karl - Contribuição para a crítica da Economia Política, Lisboa, Editorial Estampa, 1973, p. 234.

A METODOLOGIA REVOLUCIONÁRIA DE CHARLES DARWIN JOAQUIM JORGE VEIGUINHA

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Dossiê especial:“Debate sobre a reforma do sistema eleitoral”Organização:André Freire, com Manuel Meirinho e Diogo Moreira

1 André Freire, Manuel Meirinho, Diogo Moreira (2008), Para uma melhoria da representação política. A reforma do sistema eleitoral, Lisboa, Sextante. 2 Aproveitamos para agradecer aos jornalistas, Sónia Sapage (Visão), Paulo Martins (JN), Sustete Francisco (DN) e João Pedro Henriques (DN) a amabilidade e a generosidade em nos terem facultado de imediato as notícias que fizeram sobre o assunto para reproduzirmos na Finisterra.

IntroduçãoA pedido da direcção do grupo parlamentar do Partido Socialista (PS),

na pessoa do Dr. Alberto Martins, a quem aproveitamos para saudar viva-mente daqui, realizámos um estudo sobre a reforma do sistema eleitoral para a Assembleia da República que foi publicado em livro.1

O referido estudo foi intensamente debatido, nomeadamente na imprensa e nos blogues, seja na sequência da divulgação do livro, seja na sequência de uma apresentação da pesquisa na Assembleia da República, numa conferência parlamentar organizada pelo grupo parlamentar do PS, 4/12/2008, presi-dida por Alberto Martins, e que, além dos autores do estudo, contou com os comentários de Manuel Braga da Cruz, Jorge Reis Novais, Marina Costa Lobo, António Araújo e Vital Moreira.

Nomeadamente para memória futura, e até porque o debate se revestiu de uma assinalável qualidade, pensámos em organizar os principais documentos publicados na imprensa e nos blogues neste número especial da Finisterra – revista de reflexão e crítica. Prontamente a direcção da revista e o seu conselho editorial concordaram com a ideia. Pelo facto agradecemos e nos congratulamos aqui.

Devido às limitações de espaço, tivemos que operar uma selecção das notí-cias e dos artigos de opinião saídos na imprensa, os quais foram em número bastante superior às peças que aqui reproduzimos. No caso das notícias, apesar de numa primeira fase temos pensado incluir algumas delas (nomeadamente porque, pelo menos algumas delas, descreviam de forma fiel, precisa e exaus-tiva o estudo que fizemos2), no final, e por decisão do conselho de redacção e adicionais constrangimentos de espaço, apenas mativemos uma notícia, da

PARLAMENTO

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autoria da jornalista São José Almeida (Público, 6/11/2008), “Parlamento: Proposta de reforma do sistema eleitoral está nas mãos do PS”. A opção deveu-se a ser a peça jornalistica simultaneamente mais precisa, mais fiel e mais exaustiva quanto aos contornos fundamentais da proposta, e além do mais acompanhada de um mapa sobre o desenho dos círculos que é proposto no livro. Pensou-se, por isso, que a inclusão desta notícia seria uma boa forma de introduzir o tema aos leitores, embora os editores do dossiê considerem que a integração das outras peças também beneficiaria o mesmo.3

Globalmente, a selecção que infelizmente tivemos que operar pautou-se por três critérios fundamentais: primeiro, a qualidade das peças; segundo, abranger tanto quanto possível a diversidade dos órgãos de informação – embora não tenhamos podido ser exaustivos; terceiro, abranger tanto quanto possível a diversidade dos argumentos e posições defendidas.4 Aproveitamos para agra-decer aqui a disponibilidade dos vários directores de jornais e revistas (Diário de Notícias, Expresso, Jornal de Leiria, Jornal de Notícias, Público, Visão e Le Monde Diplomatique – Edição Portuguesa), que pronta e generosamente nos facultaram as peças e nos deram permissão para a sua republicação.

Pretendiamos ainda republicar vários textos de qualidade que foram divul-gados nos blogues. Porém, as limitações de espaço impediram-nos de os aproveitar e republicar aqui. De qualquer modo, gostaríamos de agradecer aqui a todos os autores (Filipe Nunes/Outubro, Miguel Poiares Maduro/Gerção de 60, Paulo Trigo Pereira/Outubro, Pedro Magalhães/Margens de Erro e Sedes, Rui Valada/página pessoal) pela pronta generosidade de nos facultarem as suas peças para republicação.

Porque o espaço de que dispomos não é muito, passamos de imediato ao dossiê com as referidas peças. As mesmas estão organizadas em dois subcon-

3 Pretendiamos também incluir a entrevista a Paulo Trigo Pereira (Público, 26/1/2009), intitulada “Falta liberdade de voto em Portugal”, por se tratar da posição de um investigador com algum trabalho publicado na área, nomeamente na revista Electoral Studies, e, além disso, expressar uma posição singular e fundamentada sobre os problemas do sistema eleitoral vigente e deixando subentendida uma determinada linha de reforma como mais adequada (no sentido de se concederem “mais liberdade de voto e mais possibilidades de escolha” aos eleitores, tal como também defendemos no estudo).Ver Paulo Trigo Pereira e João Andrade e Silva (2009), “Citizens’ freedom to choose representatives: ballot structure, proportionality and «fragmented»’ parliaments”, Electoral Studies, 28, pp. 101-110. 4 No caso dos artigos de opinião, e por idênticas razões àquelas que presidiram à exclusão de quase todas as notícias, tivemos ainda de excluir a recensão sobre o nosso livro (ver nota 1) saída no Le Monde Diplomatique – Edição Portuguesa, na edição de Maio de 2009. Na verdade, não se tratava exactamente de um artigo de opinião mas sim de uma recensão. De qualquer modo, aproveitamos para agradecer à autora, a Professora Conceição Pequito (ISCSP-UTL), e à direcção do Le Monde Diplomatique – Edição Portuguesa a cedência do artigo para republicação.

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junto: as “notícias” (isto é, os artigos de São José de Almeida), primeiro, e os “artigos de opinião”, depois. Em cada subconjunto, os textos estão (geral-mente) organizados por ordem cronológica. Em pé de página, são sempre referidas a fonte e a data da publicação original. Adicionalmente, refira-se que, sempre que um determinado estudo era citado na peça (geralmente de forma incompleta), decidimos colocar na peça a referência bibiográfica citada de forma completa.

André FreireManuel MeirinhoDiogo Moreira

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Parlamento: Proposta de reforma do sistema eleitoral está nas mãos do PS1

São José Almeida2

Se a reforma for aceite, vem aí a aproximacão entre eleitos e eleitores, sem rupturas com a proporcionalidade.

Não é uma revolução no sistema eleitoral para a Assembleia da República nem propõe mudanças radicais. Apenas procura cumprir o objectivo de aproximar os cidadãos da

política e dos políticos. A proposta de reforma do sistema eleitoral, preparada por André Freire, Manuel Meirinho e Diogo Moreira3, mantém a actual natureza proporcional do apuramento de votos e as bases para a governabilidade do país, aumentando-as até.

A reconciliação dos cidadãos com a política seria feita através da substituição dos actuais círculos distritais por dois novos tipos de círculos: os primários, ou locais, e o secundário, ou nacional. O estudo ultrapassa assim a ideia de que esta aproximação só seria conseguida através de círculos uninominais, os quais, dizem os autores, distorcem a proporcionalidade.

Dois boletinsNão há entre os círculos locais e o nacional transferência de votos. Os eleitores exprimem-se

através de dois boletins de voto. No círculo nacional, votam em partidos, em boletins de voto idên-ticos aos actuais. A novidade é a criação de um boletim de voto para o círculo local, em que, além de se votar em partidos, surgem também os nomes dos candidatos, para que se saiba quem se está a eleger.

Aqui, os autores aconselham mesmo que o PS proponha a adopção de um sistema de listas fechadas, mas não bloqueadas, com voto preferencial. Isto é, no boletim, além do partido, pode-se votar no candidato que o eleitor quer como seu deputado.

Estas são algumas das principais mudanças propostas pelo estudo, elaborado por estes três académicos a pedido do PS e que será apresentado e debatido pelos socialistas e pelos autores em sessão pública a decorrer, em princípio, a 4 de Dezembro.

O estudo analisa comparativamente o sistema eleitoral português com os dos 27 países da União Europeia e ainda da Islândia, Noruega e Suíça. Opta por um sistema eleitoral proporcional de múltiplos segmentos (círculos), idêntico ao vigente na Dinamarca e na Suécia. Uma fórmula que, segundo os autores, assegura a maior pluralidade, mantendo o nível de representação proporcional actual, para que não haja mudanças radicais na representatividade de cada partido.

A preocupação com a estabilidade do sistema leva os autores a propor que sejam adoptadas algumas medidas absolutamente novas no sistema político português. Ainda que concluam que Portugal é dos países com menos partidos políticos representados no Parlamento, os autores defendem que, em nome da continuidade, se evite a fragmentação partidária.

1 Público, 6/11/2008.2 Jornalista.3 E publicada em livro como André Freire, Manuel Meirinho e Diogo Moreira, Para uma melhoria da representação política. A reforma do sistema eleitoral, Lisboa, Sextante, 2008.

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229 DeputadosPara o conseguir, propõem que seja adoptada a barreira dos 1,5 por cento dos votos como limite

mínimo para um partido eleger deputados pelo círculo nacional. Já quanto aos círculos locais, se o PS optar por propor o voto preferencial em lista não bloqueada, então os autores sugerem a adopção de uma barreira mínima de sete por cento dos votos que cada candidato nominalmente votado tem que obter em relação à votação do respectivo partido para ser eleito.

Para aumentar a estabilidade governativa e facilitar as soluções de governo, o estudo propõe também que seja introduzida a moção de censura construtiva. Ou seja, que uma moção de censura só possa ser apresentada por quem tenha uma solução de governo alternativa. Neste domínio, é também aberta a porta a que os partidos possam fazer coligações apenas para a contagem de votos e eleição de deputados, potenciando resultados (apparentement).

Da comparação com os sistemas eleitorais e políticos dos 30 outros países analisados resulta a conclusão de que o Parlamento português não é grande, pelo que é mantido o seu tamanho. Apenas é proposta a diminuição de 230 para 229 deputados, para facilitar as votações e evitar eventuais empates.

Os autores fizeram várias simulações para encontrar o modelo que, na sua opinião, garante o nível de proporcionalidade e de governabilidade. Dentro do modelo encontrado, apresentam também várias soluções.

Hare por HondtAfirmando que é o que menos desproporcionalidade cria, optam por indicar como preferen-

cial um mapa eleitoral de 14 círculos locais no continente, número obtido pela agregação e partição dos actuais 18 círculos distritais. Admitem a manutenção dos círculos de Açores e Madeira ou a sua agregação num só, e a mesma solução para os círculos da emigração.

Outra alteração é a substituição do método de Hondt pelo método de Hare no que toca à distribuição de mandatos pelos círculos locais, para assegurar uma maior representatividade. No apuramento dos deputados eleitos mantém-se o método de Hondt.

Quanto ao número de deputados a eleger por cada círculo, o estudo apresenta sete propostas, em que o número de deputados a eleger no círculo nacional vai de 49 a 109. A referência para a criação deste círculo nacional é o actual círculo de Lisboa (50 deputados). É através deste círculo que é hoje conseguida menor distorção de proporcionalidade. Já os restantes deputados são distribuídos pelos outros círculos locais, em ordem de grandeza inversamente equivalente. Mas dez mandatos são sempre atribuídos a ilhas (seis) e imigração (quatro).

Depois de aplicar os resultados das várias legislativas aos sete modelos, os autores concluem que o modelo que mais garante uma proporcionalidade próxima da actual é aquele em que são eleitos 99 deputados pelo círculo nacional. Se baixar o número de eleitos pelo círculo nacional, aumenta a distorção da proporcionalidade, prejudicando os pequenos partidos.

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Dez diferenças essenciais separam o sistema eleitoral em vigor e o proposto pelo estudo encomendado pelo PS.5 O sistema continua proporcional, mas aproxima os cidadãos da política através de mecanismos como círculos locais mais pequenos, em que cada um pode até votar no seu deputado. O círculo nacional garante a proporcionalidade,

limitando as distorções.1. Tipo de sistema eleitoralEm vigorRepresentação proporcional com um segmento de círculos distritais.PropostaRepresentação proporcional com segmentos múltiplos, incluindo locais e nacional, mas estes

são independentes entre si e não há transferência de votos.2. Número total de deputadosEm vigor230 deputados. Proposta229 deputados para evitar empates3. Estrutura dos círculosEm vigor1. Círculos distritais plurinominais. São 18 no continente;2. Círculos de base não espacial: dois para a imigração;3. Círculos das ilhas: são dois.Proposta1. Círculos primários ou locais: são plurinominais; o seu número depende da opção tomada

em relação à quantidade de deputados a eleger no círculo nacional. Na proposta escolhida pelos autores existem 14 resultantes de agregação e divisão dos actuais círculos (ver Mapa em anexo);

2. Círculo secundário ou nacional: é de lista plurinominal e os autores apontam a quantidade de 99 deputados a eleger neste círculo como forma de manter a proporcionalidade em termos idênticos à que existe e de evitar que os partidos saiam beneficiados ou prejudicados em relação à representatividade que tem existido;

3. Círculos com base não espacial: dois para a imigração ou um só;4. Círculos das ilhas: são dois mas poderão ser também agregados em um.4. Distribuição de mandatosEm vigorA distribuição dos mandatos pelos círculos é feita pelo método de Hondt.PropostaA distribuição dos mandatos pelos círculos é pelo método de Hare.

Dez diferenças essenciais4

São José Almeida

4 Público, 6/11/2008.5 André Freire, Manuel Meirinho e Diogo Moreira, op. cit.

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5. Sistema de listas e de votoEm vigorAs listas são fechadas e bloqueadas.PropostaNos círculos primários ou locais, as listas são fechadas e não bloqueadas, permitindo o voto prefe-

rencial opcional, em que o eleitor vota no partido e escolhe o seu candidato assinalando uma cruz no seu nome - ou, em alternativa, o voto preferencial obrigatório, com ordenação alfabética dos candidatos nas listas; no círculo secundário ou nacional, a lista é fechada e bloqueada e o voto é no partido apenas.

6. Boletins de votoEm vigorHá um boletim em que os partidos aparecem por ordem de sorteio com o nome e a sigla.PropostaHaverá dois: nos círculos primários, são identificados os partidos (símbolo e sigla) e os candi-

datos (nome e pronome), sendo que a ordenação dos partidos é feita por sorteio; no círculo secundário, são identificados apenas os partidos (símbolo e sigla).

7. Apuramento dos deputadosEm vigorO apuramento é pelo método de Hondt, com a distribuição dos mandatos pelos candidatos de

acordo com a ordem de colocação na lista.PropostaNos círculos primários o apuramento é pelo método de Hondt, com a distribuição dos mandatos pelos

candidatos a partir do maior número de votos nominativos recebidos, desde que atinjam em votos nominativos sete por cento dos votos atingidos pelo respectivo partido; no círculo nacional, o apuramento é pelo método de Hondt, com a distribuição dos mandatos pelos candidatos de acordo com a ordem de colocação na lista.

8. ApparentmentEm vigorNão há.PropostaNos círculos primários, as listas podem fazer coligações para distribuição de mandatos (apparentment).

Os partidos têm que declarar antes das eleições que, naquele círculo, concorrem “aparentados”.9. Limite no círculo nacionalEm vigorNão há.PropostaCláusula de barreira de 1,5 por cento. Cada partido tem que obter esta percentagem de votos

para poder receber mandatos.10. Moção de censura construtivaEm vigorNão há.PropostaQuem quiser fazer cair um governo através de moção de censura tem de ter uma solução alter-

nativa de constituição de governo.

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O Sistema eleitoral1

José Carlos Vasconcelos2

1 Visão, 20-11-20082 Jornalista.3 Freire, André, Manuel Meirinho e Diogo Moreira, (2008), Para a Melhoria da Representação Política: A Reforma do Sistema Eleitoral, Editora Sextante.

Há muitos, muitos, anos que a mudança do sistema eleitoral para a Assembleia da República (AR) está na ordem do dia e que defendo um sistema misto, à alemã, de representação proporcional personalizada. Os dois maiores partidos, PS e PSD, andam há mais de uma dúzia de anos para a fazer, e não fazem, apesar de

já na revisão de 1997 terem alterado a Constituição para permitir os círculos uninominais, pedra-de-toque dessa mudança, com a condição de manter (ou aumentar) a proporcionali-dade, com aproveitamento de restos, através de um círculo nacional, acompanhado ou não de círculos regionais.

O PS tomou o compromisso dessa mudança nos Estados Gerais de 1995, a mais participada, aprofundada e aberta à sociedade civil iniciativa política que alguma vez promoveu. Nesse sentido, e com base em estudos tornados públicos, apresentou propostas e projectos, o último em 2002. E o mesmo compromisso assumiu nesta legislatura só que de novo não o vai cumprir, sem expli-cação plausível e sem desculpa.

Entretanto, como já se percebia, o PS mudou de posição e deixou cair os círculos uninomi-nais. Como também resulta de um estudo sério e de qualidade (da autoria de André Freire, que o dirigiu, Manuel Meirinho e Diogo Moreira)3, encomendado pelo partido para fundamentar um novo projecto. De facto, o que nele se propõe é um sistema misto, com um amplo círculo nacional, mas sem círculos uninominais, antes com círculos plurinominais «primários», por áreas geográficas, a maioria deles para eleger 5/6 deputados.

Ora, assim não se consegue a personalização do deputado indispensável para a efectiva ligação entre eleitores e eleitos.

Tenho consciência dos riscos que os círculos uninominais comportam, só que creio serem maiores as suas vantagens do que os seus inconvenientes. (Mesmo sem eles, o sistema proposto representa, porém, uma assinalável melhoria face ao actual, sobretudo se nos círculos primários a lista for fechada, não bloqueada. Isto é: se o cidadão puder escolher o candidato em que vota o que, aliás, pode ter maiores riscos do que os imputados pelos autores aos círculos uninomi-nais...) Uma das vantagens, segundo o estudo, dos círculos plurinominais, com voto em lista, é que com eles «mantém-se, pelo menos teoricamente, um maior controlo dos partidos sobre os deputados». Pois é, mantém-se mesmo, não é só teoricamente.

E a minha firme convicção é ser este o principal motivo para o PS não cumprir o seu compro-misso e alterar a sua posição...

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Só que, para mim e creio que para a maioria dos cidadãos, o partido ter menos «controlo» sobre os deputados não é um inconveniente, antes uma grande vantagem.

Mais: uma absoluta necessidade democrática.O estudo diz, com razão, ser mais «moroso, sensível e dispendioso» desenhar os círculos

uninominais do que os plurinominais. Porém, não menos difícil será mudar de novo a Constituição para poder concretizar duas das suas propostas: a) a substituição, com que concordo, do método de Hondt pelo da quota de Hare, que aumenta a proporcionalidade na distribuição dos mandatos pelos círculos; b) a muito discutível criação de uma cláusula-barreira exigindo, pelo menos, 1,5% dos votos, no círculo nacional, para um partido poder eleger deputados.

Por último, Freire e seus colegas propõem: 1) descer de 230 para 229, para não permitir empates, o número de deputados (creio admissível um número não inferior a 201); 2) a possi-bilidade de nos círculos primários haver coligações para distribuição de mandatos (apparentment), o que me suscita dúvidas; 3) a «moção de censura construtiva», o que implica só se poder derrubar um Governo no Parlamento assegurando a constituição de outro. Do que discordo, por julgar legítimo entender-se, em certo momento, que o quadro parlamentar esgotou as suas virtuali-dades para gerar Executivos, sendo o Governo derrubado para abrir caminho a novas eleições.

Se tivéssemos problemas de estabilidade e governabilidade, poderia ser aconselhável tal solução; como não é esse o caso, creio que nada a justifica.

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O sistema eleitoral português no contexto europeu1

André Freire2

1 Público, 1/12/2008.2 Politólogo, Professor Auxiliar no ISCTE e investigador sénior no CIES-ISCTE.

Em 4 de Dezembro, numa conferência parlamentar organizada pelo Grupo Parlamentar do PS (GPPS), será debatido o estudo que realizei com Manuel Meirinho e Diogo Moreira (no CIES-ISCTE): Para uma melhoria da representação política. A reforma do sistema eleitoral, Lisboa, Sextante, 20083. A pesquisa foi-me encomendada

pelo GPPS através do seu líder. Foi um prazer e uma honra trabalhar com o Dr. Alberto Martins, não só pelas suas qualidades humanas e profissionais, mas também porque, tendo-nos posto de acordo quanto aos princípios, tivemos inteira liberdade na sua operacionalização. Apresento hoje a ancoragem comparativa das soluções propostas.

Há três elementos norteadores da reforma, acrescidos de uma condição quanto à sua operacionalização, os quais têm sido defendidos pelo PS e pelo PSD nos projectos de reforma apresentados desde 1997. Os dois partidos têm reconhecido que o sistema eleitoral não tem problemas de governabilidade e de proporcionalidade (isto é, na correspondência média entre as percentagens de votos e de mandatos dos partidos) e, portanto, os níveis de governabilidade e de proporcionalidade devem ser mantidos. O terceiro princípio resulta do reconhecimento de que o regime tem problemas em matéria de qualidade da representação e, por isso, é neces-sário reformá-lo criando condições institucionais mais favoráveis a uma melhoria da qualidade da representação política. A condição adicional que nos foi proposta, e na qual também nos revemos, foi a de encontrar soluções sem círculos uninominais.

Para fundamentar as opções começámos por recorrer a análises comparativas, situando o regime eleitoral português no contexto europeu: os 27 países da UE mais a Islândia, a Noruega e a Suíça (30 países e 39 casos, dadas as mudanças de regras em cada país). Classificámos os sistemas eleitorais em quatro grupos: “maioritários”, “representação proporcional de um segmento”/RP1S, “representação proporcional de múltiplos segmentos”/RPMS e “mistos”.

Concluímos que a evidência comparativa aconselha, também ela, a que, numa qualquer reforma, sejam integralmente mantidos os níveis de proporcionalidade e de governabilidade. Primeiro, entre 1990 e 2007, Portugal (5,20) tem um nível de desproporcionalidade (medido através do “índice dos mínimos quadrados”) significativamente superior às dos sistemas RP1S (4,32) e RPMS (4,27), que são a esmagadora maioria dos casos (32 em 39). Só nos sistemas maioritários (18,93) e nos mistos (8,13) a desproporcionalidade é maior. Segundo, para o mesmo período, Portugal apresenta um sistema partidário muito pouco fragmentado (isto é, poucos partidos e com uma votação muito concentrada em dois deles): o índice do “número efectivo de partidos parlamentares” é de 2,5; tal valor é significativamente inferior ao dos sistemas RP1S (4,11), RPMS (4,66) e mistos (3,82), sendo praticamente igual ao dos regimes maioritários

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(2,49). Ou seja, todos estes dados desaconselham claramente qualquer compressão adicional da proporcionalidade: por um lado, as distorções na conversão de votos em mandatos são já elevadas e, por outro lado, Portugal tem um sistema de partidos muito pouco fragmentado, pelo que não cria problemas de governabilidade. Mais, entre 2001 e 2005, para o conjunto dos 30 países, 26 tinham governos de coligação ou semelhante (um com acordo de incidência parlamentar). E os estudos existentes demonstram que, em matéria de performance macroeconómica, não há diferenças significativas entre tipos de governo. Mas há diferenças significativas, favoráveis às democracias consensuais/governos de coligação, em matéria de qualidade da democracia: maior satisfação dos eleitores com o funcionamento da democracia, maiores níveis de participação política, menores desigualdades, maior presença das mulheres na política, etc.

Há várias soluções para se criarem incentivos a uma melhoria da representação política: regimes com círculos eleitorais pequenos (maxime de um só deputado: uninominais; mas podem ser plurinominais: mais de um), onde, por isso, as condições institucionais são mais favoráveis a um maior conhecimento e responsabilização dos eleitos pelos eleitores; e/ou regimes com voto preferencial de lista, isto é, em que os eleitores têm a capacidade de determinar que candidatos (em cada lista) são efectivamente eleitos: também assim se criam incentivos para um maior conhe-cimento e responsabilização dos eleitos pelos eleitores. Primeiro, há vários sistemas com círculos uninominais (na totalidade, regimes maioritários, ou em parte, mistos): 7 casos, entre 1970 e 2007. Segundo, há os sistemas RP1S com voto preferencial ou semelhante: “listas abertas”, “listas fechadas mas não bloqueadas” e “voto único transferível”. Num conjunto de 19 regimes RP1S, só 6 não têm um qualquer destes expedientes, usando ao invés “listas fechadas e bloqueadas”: só se pode escolher o partido. Outra solução para melhorar a qualidade da representação é a dos sistemas RPMS (usualmente com um círculo nacional, para garantir a proporcionalidade, complementado com pequenos círculos plurinominais de base regional, os quais incentivam a proximidade eleito-eleitor mas também geram mais desproporcionalidade): há 14 sistemas, 1970-2007, e só num deles não se usa também “voto preferencial”. Portanto, do ponto de vista da evidência comparativa, Portugal tem efectivamente um problema na qualidade da represen-tação: “listas fechadas e bloqueadas” conjugadas com um único segmento (e com vários círculos grandes). As soluções de reforma que propomos, um sistema RPMS e “voto preferencial”, são largamente usadas na Europa, muito mais do que os “sistemas mistos”. No próximo artigo, expli-carei as soluções que se revelaram óptimas para cumprir os três objectivos e como chegámos a elas.

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O valor da opinião1

António José Seguro 2

1 Expresso, 6/12/20082 Deputado à Assembleia da República pelo Partido Socialista

Em Julho de 2007, em entrevista ao programa “Diga Lá Excelência” afirmei que “o pior para a democracia seria que alguém tivesse que sair de um partido político para dizer o que pensa”. Na semana passada, à pergunta sobre a minha eventual candidatura à liderança do PS, respondi que “o facto de ter opiniões não faz de mim candidato ao que quer que seja”.

A pergunta que emerge é simples: pode-se ser militante de um partido, ter-se opinião e afirmá-la livremente sem que daí decorra menor solidariedade ou tenha que resultar uma candidatura a qualquer cargo que seja?

Eu persisto em responder sim. Pode e deve ter-se opinião, num quadro de solidariedade e de simples contributo. O contrário seria negar a política e nesse caso, os partidos não passariam de grupos em luta pelo poder como um fim em si mesmo e não como instrumento para execução de um determinado projecto político. A diversidade de opiniões no interior dos partidos enriquece as posições públicas e alimenta a coesão interna, condição indispensável à unidade na acção.

Por outro lado, os militantes dos partidos políticos não podem ver amputados os seus direitos de cidadania. Ser militante de um partido não deve dar lugar à perda de liberdade, e em particular da liber-dade de expressão. Os partidos devem intensificar os seus espaços de debate, livres de constrangimentos, como condição para atrair mais qualidade e mais competências.

Quanto mais plural for o debate, maior será o número de portugueses que se revêem nele. O confronto de opiniões estimula o interesse pela política. Favorece o surgimento de novas opiniões e aumenta a partici-pação de pessoas qualificadas. E se desse debate surgirem divergências, isso deve ser assumido como natural. Ter opinião é intrínseco ao Homem e nem todos pensamos da mesma maneira. Ora, o que é natural é que a divergência, e não o monolitismo, seja o elemento caracterizador do debate no interior dos partidos.

No nosso país, dramatiza-se a divergência e isso empobrece o debate político. É necessário romper com esta cultura e estimular o surgimento de novas ideias. Sem receio de rupturas. Só o imobilismo tem medo das ideias. A democracia portuguesa está com bloqueamentos indesejáveis. Torna-se necessário criar um novo ambiente, mais verdadeiro e com maior transparência.

O Parlamento pode ser o espaço indicado para iniciar essa transformação. É neste sentido que tenho vindo a apresentar propostas que aumentem a autonomia dos Deputados, de modo a limitar o poder dominante dos partidos, e a potenciar a opinião individual.

Primeiro, na reforma do parlamento, nomeadamente para que os Deputados, e não apenas as “direcções partidárias”, possam apresentar iniciativas legislativas que sejam debatidas e votadas, pondo fim a 30 anos de vetos de gaveta; e, depois, na defesa do princípio da liberdade de voto como regra para as votações dos parlamentares, de uma mesma família política, excepto para as promessas eleitorais e para as questões da governabilidade.

Pela minha parte tenciono continuar por este caminho, reflectindo e dando os meus contributos.

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O Sistema eleitoral, outra vez1

Pedro Magalhães 2

1 Público, 8/12/20082 Politólogo, Investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

Uma das actividades favoritas dos partidos políticos portugueses é discutir possíveis reformas do sistema eleitoral para a Assembleia da República. No passado dia 4 de Dezembro, o PS promoveu mais um desses debates, desta vez em torno de uma proposta solicitada pelos socialistas a três politólogos - André Freire, Manuel

Meirinho e Diogo Moreira - onde se defendia, entre outras coisas, a criação de um círculo elei-toral nacional e a introdução do chamado voto preferencial (permitindo aos eleitores exprimir a preferência não apenas por um partido mas também por deputados desse partido). Não vou discutir os méritos ou deméritos da proposta, nem sequer abordar as razões pelas quais, a acreditar nos jornais, essa proposta deverá ter falecido logo nessa quinta-feira. A questão mais interessante, a meu ver, é outra: por que razão se anda sempre a discutir este assunto? Arrisco três hipóteses.

A primeira coisa que pode tornar este tema tão atraente para a classe política portuguesa é o facto de 99,9 por cento dos portugueses - e estimo por baixo - não compreenderem praticamente nada do que se está a discutir. O caro leitor preferia ter listas fechadas e bloqueadas, fechadas e não bloqueadas ou abertas? Gosta do método da média mais alta D’Hondt, ou acha que as quotas de Hare ou de Droop seriam preferíveis? Concordaria com a introdução de cláusulas-barreira? E com a aplicação do apparentement aos círculos primários? Se conseguiu responder a estas perguntas, parabéns. Mas saiba que pertence a uma ínfima minoria. O problema, de resto, está longe de ser português. Segundo julgo saber, a última vez que uma proposta de reforma eleitoral foi subme-tida a referendo foi na Roménia onde, há cerca de um ano, se perguntou aos eleitores se “estavam de acordo com a eleição de todos os deputados e senadores em círculos uninominais por uma maioria a duas voltas”. Pergunta simples. Mas mesmo com o referendo a decorrer em simultâneo com a eleição dos primeiros deputados romenos para o Parlamento Europeu, 74 por cento dos eleitores não se dignaram a comparecer nas urnas. Para os membros da classe política, a oportu-nidade de discutir assuntos que tornam os eleitores incapazes de os responsabilizar num sentido ou noutro é imperdível, um verdadeiro oásis no meio de uma multiplicidade de outros temas - economia, emprego, ambiente, aborto, taxas de juro - em relação aos quais qualquer eleitor julga poder formar um juízo qualquer na base dos seus valores ou da sua experiência quotidiana. A brutal assimetria de informação que se cria entre os eleitores e os eleitos quando se discutem temas sobre os quais os segundos são os maiores e quase únicos especialistas - trata-se, afinal, das regras através das quais adquiriram o seu cargo - deve parecer demasiado boa para não aproveitar o mais possível.

A segunda coisa que torna este assunto atraente para a classe política é o facto de permitir que ela sinalize a sua preocupação com a “qualidade da democracia”, a “aproximação entre deputados e eleitores” e uma série de outros temas em relação aos quais, aparentemente e em

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abstracto, todos estamos de acordo. Para os partidos, especialmente os grandes partidos com ambições de governo, é frequentemente preferível conduzir o debate político para os chamados temas de “valência” em desfavor dos chamados temas “posicionais”. Nos segundos - temas como a imigração ou o peso do Estado na economia, só para dar dois entre muitos exemplos possíveis - os eleitores têm diferentes preferências, estão divididos e o mesmo sucede, frequentemente, com os próprios partidos. Nos primeiros, contudo, essas divisões desaparecem, e tudo passa a depender da capacidade de um partido se associar a objectivos universalmente aprovados. Ninguém quer “mais crime” ou “mais corrupção”. E todos querem “melhor democracia”. Para que isto funcione como os partidos desejam, o ponto anterior é fundamental: se os detalhes sobre como supostamente se obtém “melhor democracia” forem totalmente incompreensíveis para o eleitor comum, as divisões nunca emergem, e tudo se pode passar no domínio da mera associação de partidos a “bandeiras” e “símbolos” puramente abstractos, coisas como “represen-tatividade”, “aproximação entre eleitores e eleitos” ou “governabilidade”.

Finalmente, o tema da reforma eleitoral tem uma vantagem adicional para os partidos. Como sucede com outras regras básicas na maior parte das democracias, passar da discussão para a concretização das reformas eleitorais é algo que raramente está ao alcance de uma única força política. As regras que exigem a aprovação destas reformas por maiorias qualificadas impõem o acordo entre pelo menos dois partidos, impedindo que o vencedor de uma eleição modifique as regras com o objectivo de se perpetuar no poder. Contudo, as maiorias qualificadas acabam por servir um propósito adicional. Se um partido político desejar declarar perante os eleitores a sua intenção de “melhorar a democracia” sem ter de enfrentar as incertezas decorrentes de uma mudança real do sistema eleitoral e as suas consequências para aquilo que realmente conta - a distribuição de poder - basta-lhe propor algo que sabe ser inaceitável para os restantes partidos com os quais teria de negociar a sua aprovação. Segue-se um jogo de “passa-culpas”, no qual cada partido tenta marcar o máximo de pontos possíveis enquanto “reformista” e “democrata” enquanto se espera que a ignorância dos eleitores sobre os detalhes da coisa impeça que compre-endam o que está realmente a suceder.

Não censuro os politólogos envolvidos na mais recente proposta, nem defendo que as pessoas que ganham a vida a estudar estes temas se alheiem do debate político sobre eles. Eu próprio, confesso, com alguma dose de arrependimento, já subscrevi há alguns anos uma proposta de reforma do sistema eleitoral. Mas importa não perder de vista aquilo que alguma distância sani-tária em relação a estes processos ajuda a perceber. As discussões a que assistimos nos últimos 30 anos sobre a reforma do sistema eleitoral têm, por tudo o que disse anteriormente, o seu quê de farsa. Provavelmente, o sistema só mudará se houver uma pressão pública imensa (e por isso implausível) nesse sentido ou, em alternativa, se PS e PSD acharem que ela é indispensável para a manutenção da sua hegemonia em relação aos pequenos partidos. E importa lembrar que, se é verdade que há casos de mudanças globalmente positivas - a Nova Zelândia, por exemplo -, também é verdade que a Itália fica bem mais perto daqui: a mudança, se ocorrer, pode ser para nada, para pior, ou até para muito pior.

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A reforma do Sistema Eleitoral1

Marina Costa Lobo 2

1 Jornal de Negócios, 11/12/20082 Politóloga, Investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

Há dias foi lançado o livro “Para uma melhoria da Representação Política - A Reforma do Sistema Eleitoral”, elaborado por André Freire, Manuel Meirinho e Diogo Moreira, pela Editora Sextante, que resulta de um estudo encomendado pelo Partido Socialista. A reforma do sistema eleitoral é algo de que se tem vindo

a falar há já largos anos na política portuguesa, como solução para o descontentamento dos cida-dãos com a política. Este estudo é um importante contributo para o debate, pelo rigor cientifico empregue. Mas atenção: não há soluções mágicas. Todas as escolhas têm custos e benefícios. Vejamos então as escolhas feitas pelos autores.

Ao traduzir votos em mandatos, os sistemas eleitorais são determinantes tanto no que respeita o tipo de governos que se formam (governos monopartidários ou de coligação, governos mino-ritários ou maioritários) bem como o tipo de representação que existe no parlamento. Essa representação pode ser entendida tanto em termos de proporcionalidade (o número de partidos que existe no Parlamento) como do grau de proximidade que existe entre eleitores e eleitos.

Ora é precisamente este último ponto, o da relação entre deputados e cidadãos que o estudo se propõe remediar. Com esse objectivo central os autores avançam uma série de mudanças. A saber, a criação de dois segmentos eleitorais, um com círculos de pequena dimensão, outro com um circulo nacional. Depois, cada eleitor teria dois votos, um para usar no círculo pequeno e outro no grande, podendo também indicar um voto de preferência num dos candidatos da lista partidária em que vota.

Nas escolhas avançadas existe uma questão prévia muito importante, nomeadamente o pres-suposto de que não existem problemas de governabilidade em Portugal desde 1987. Significa isto que ao propôr alterações ao sistema eleitoral os autores não se preocupam com os eventuais efeitos que esta poderá produzir na formação de governos. Ora este pressuposto é bastante criti-cável. É certo que entre 1987 e 1999 houve três governos de partidos diferentes que cumpriram os seus mandatos, tendo havido portanto alternância democrática. Mas entre 1999 e 2005 houve novamente grande instabilidade governativa em Portugal, tanto em governos minoritários como de coligação. A realidade é que em Portugal, de 1976 até hoje, apenas um governo que não tinha maioria absoluta de um só partido na Assembleia da República cumpriu o mandato de quatro anos (Guterres, 1995-99). Nos trinta e dois anos de democracia já contamos dezassete governos enquanto que por exemplo na vizinha Espanha estes não somam mais do que dez.

Se os governos de coligação e minoritários são frágeis em Portugal, qual o efeito que teriam a criação de listas semi-abertas (ou seja listas onde os candidatos são eleitos com votos preferenciais) na disciplina parlamentar dos partidos? É evidente que esta reforma iria dificultar ulteriormente

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a relação entre governo e partidos parlamentares. As quebras nos já fracos padrões de governabi-lidade que existem em Portugal, resultantes desta proposta de reforma não são tidas em conta.

Além disso, importa considerar a questão importante do alcance da reforma. A reforma vale por si, tal como as recentes reformas das listas partidárias para incluir mais mulheres, ou como a decisão recente dos partidos de os militantes elegerem os lideres. Mas – aliás como os autores bem referem - não constitui uma garantia de que os portugueses passarão a estar mais satisfeitos com a democracia em Portugal. Nos últimos inquéritos à opinião pública disponíveis a confiança nos partidos não tem sofrido nenhum aumento, apesar das medidas atrás referidas.

E porquê? Porque as avaliações sobre as instituições políticas e sobre o funcionamento da nossa democracia dependem muito da capacidade que estas instituições têm de produzir resul-tados concretos na qualidade de vida dos cidadãos. Sem esses resultados o alcance da reforma do sistema eleitoral será sempre pequeno.

É por isso que uma reforma do sistema eleitoral poderá tentar aprofundar o relacionamento dos eleitores e eleitos, sim. Mas em Portugal, tendo em conta a nossa experiência democrática, a haver custos, como há sempre, deveria ser a proporcionalidade da representação e nunca os níveis de governabilidade a arcar com eles.

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Jogar Pelo Seguro1

António Vitorino 2

1 Diário de Notícias, 12/12/20082 Jurista3 André Freire, Manuel Meirinho e Diogo Moreira, (2008), Para a Melhoria da Representação Política: A Reforma do Sistema Eleitoral, Editora Sextante.

Por entre o ruído provocado pelas faltas dos deputados à sessão parlamentar de sexta-feira passada, quase passou despercebido o colóquio promovido pelo grupo parlamentar do PS em torno de um estudo académico sobre possíveis alterações a introduzir na lei eleitoral para a Assembleia da República3.

Com efeito, a reforma da lei eleitoral é um daqueles temas recorrentes, designadamente desde que a revisão constitucional de 1997 abriu a possibilidade de, por via da legislação ordi-nária, se introduzissem mecanismos que visassem uma mais directa ligação dos eleitos aos eleitores e consequentemente uma sua maior responsabilização.

Sucessivamente reiterada como intenção nos programas eleitorais do PS e do PSD, essa alteração eleitoral depende de uma maioria de dois terços na Assembleia da República.

Pelo tom do debate naquele colóquio, a fazer fé nos parcos relatos vindos na imprensa, ainda não será nesta Legislatura que tal objectivo será atingido.

Desde 1991 que defendo a introdução de mecanismos de personalização do voto, isto é, soluções que confiram aos eleitores um poder de decisão que vá mais além do que a simples escolha de uma lista fechada de candidatos apresentada pelos partidos políticos.

O estudo académico apresentado parece apontar para o chamado “voto preferencial”, isto é, para a possibilidade de o eleitor, perante uma lista partidária da sua escolha, poder alterar a ordem dos candidatos, manifestando assim uma preferência individualizada, dessa forma determinando quem será eleito dentro da quota que couber a esse partido, determinada pela aplicação do sistema de representação proporcional.

O modelo respeita, à partida, os cânones constitucionais, embora na minha opinião não ofereça grande espaço para melhoria da representação em termos práticos. De facto, nos casos onde existe “voto preferencial”, o que a prática tem revelado é que a maioria dos eleitores acaba por não fazer uso da faculdade que lhe é conferida de reordenar a lista partidária da sua escolha, de modo que o voto que exprime ratifica a ordem dos candidatos tal como foi definida pelo próprio partido.

Continuo a pensar que a melhor forma de personalização do voto passa pela criação de círculos uninominais de candidatura, compatibilizando-os com círculos proporcionais de apuramento, com base nos quais se faria a distribuição dos mandatos pelos partidos, desta forma reconhecendo a prevalência do princípio da representação proporcional como deter-mina a Constituição. Reconheço, contudo, que o desenho de um tal modelo não seria isento de alguma complexidade e que tal exigiria um esforço de explicação do novo sistema aos elei-

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tores que poderia tornar mais imprevisível o seu resultado final.E é aqui que reside o problema. Todas as propostas de alteração da lei eleitoral até hoje

apresentadas (inclusivamente uma que subscrevi em 1997) esforçaram-se por demonstrar que da sua aplicação não resultaria nenhuma alteração de fundo quanto às condições de acesso dos partidos ao hemiciclo da São Bento. Em todos os casos se pretendeu demonstrar que as máquinas partidárias podiam arriscar a mudança na medida em que o “coração do sistema”, ou seja, a proporcionalidade não seria afectada pelas inovações. O argumento “sedutor” assim apresentado contava com o facto de muito previsivelmente as direcções partidárias tenderem a ler mais as propostas de alteração com a máquina de calcular ao lado do que com qualquer edição de Tocqueville.

Ora tal demonstração pode ser feita num colóquio ou num estudo académico, mas como o prova o nosso actual sistema eleitoral, os eleitores vão progressivamente aprendendo a “usar” o sistema eleitoral em função dos seus interesses, apropriam-se dele ao longo do tempo e podem de facto, a prazo, vir a causar algumas surpresas aos agentes políticos. Esta mera possibilidade leva os partidos a preferirem “jogar pelo seguro” e a deixarem as coisas como estão.

Entretanto podem sempre entreter-se a discutir se deve ou não haver multas para os faltosos, claro!

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O “eleitor-ovelha” e as reformas eleitorais1

Manuel Meirinho 2

1 Jornal de Notícias, 14/12/20082 Politólogo. Professor Auxiliar no Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa

Todas as democracias têm os seus fantasmas. Também na nossa democracia surgem, pontualmente, estas “criaturas” que assombram alguns dos seus actores princi-pais, a ponto de impedir reformas aos mais variados níveis.

Convoco os fantasmas a propósito das reacções de alguns comentadores, a um estudo sobre a reforma do sistema eleitoral para a AR que realizei com André Freire e Diogo Moreira, a pedido do Grupo Parlamentar do PS. O estudo teve três objectivos (indicados pelo GPPS): manutenção dos níveis de proporcionalidade e de governabilidade e a criação de incentivos à melhoria da representação política, sem círculos uninominais.

No quadro do último objectivo, e ancorados numa análise comparativa de trinta países europeus, propomos o voto preferencial opcional, um sistema largamente utilizado na Europa em eleições parlamentares e recomendado pela Comissão de Assuntos Constitucionais do Parlamento Europeu para ser aplicado a todos os países da UE nas eleições europeias de 2013.

Não se trata aqui de fazer a história da reforma do sistema eleitoral português no período democrático que conta já com doze tentativas, com soluções tão diferentes como a opção maioritária e a representação proporcional personalizada (com círculos uninominais). Curiosamente, em 1984, António Guterres propôs o voto preferencial, opção retomada pelo PS em 1992, ano em que Guilherme de Oliveira Martins defendeu o voto único transferível. Qual foi o resultado daquelas tentativas? Nenhum.

E porque falharam as reformas? Essencialmente, por duas razões: pela falta de consenso entre os dois maiores partidos na gestão dos benefícios para ambos (ou para cada um deles) e pela aparição de fantasmas de vária estirpe, por exemplo: perda do controlo da disciplina partidária, criação de classes diferentes de eleitos, favorecimento dos exageros do clientelismo local, entre muitos outros horrores atribuídos, pasme-se, às regras eleitorais.

Volto ao estudo que foi debatido na Assembleia da República no passado dia 4, por inicia-tiva do GPPS, para me referir ao mais recente fantasma (há outros…). Entre os comentadores surgiu o fantasma do “eleitor-ovelha”. Como se sabe, genericamente, o voto preferencial permite ao eleitor ter um papel activo na escolha dos deputados, uma vez que pode definir quem é o eleito a partir de uma lista de candidatos apresentados pelos partidos. A solução proposta é a mais conservadora possível.

Mesmo assim, as criticas foram no sentido de considerar que os eleitores portugueses não se encontram habilitados ao exercício de escolhas deste tipo. Ou porque são analfabetos, ou porque não têm competências cívicas, ou até porque se sujeitam à compra de votos por troca de electrodo-mésticos, entre outras prebendas baratas. Em suma, ao eleitor português deve-lhe ser emitido um atestado de menoridade cívica condizente com a sua impreparação para actos que pedem reflexão.

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Na altura do debate, lembrei-me de Stuart Mill3 quando, nas suas “Considerações sobre o Governo Representativo”, afirmou que um dos grandes defeitos da democracia é aquele em que as elites políticas e alguns moralistas olham para os cidadãos como «um rebanho de ovelhas que pasta inocentemente lado a lado». Mill não podia ter mais razão. Tenho dúvidas é que, em algum momento, imaginasse que tal consideração se pudesse aplicar, em 2008, à democracia portu-guesa. E muito menos que o fantasma do “eleitor-ovelha” assombrasse uma reforma eleitoral.

3 John Stuart Mill, Considerations on Representative Government, Nova Iorque, Prometheus Books, 1991.

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A vertigem maioritária1

André Freire

1 Público, 15/12/2008.

O estudo sobre a reforma eleitoral (Para uma melhoria da representação política, Sextante, 2008), que coordenei, tem gerado bastante controvérsia, o que é saudável. Porém, foram feitos reparos por alguns intervenientes que revelaram que, ou não lerem com a devida atenção o estudo, ou não perceberam a sua lógica.

Impõe-se uma clarificação. Foram-nos pedidas propostas de reforma no sentido de, primeiro, manter os níveis de

proporcionalidade e de governabilidade e, segundo, criar incentivos institucionais para uma maior “proximidade” entre eleitos e eleitores, sem círculos uninominais. Foi o que fizemos. Todavia, alguns vieram agora contestar os pressupostos. Nomeadamente, Vital Moreira e Marina Lobo (ML) colocaram a ênfase em significativos problemas de governabilidade que, supõe-se, seria necessário corrigir. O primeiro afirmou que há, em Portugal, um problema de governabilidade porque em 30 anos de democracia tivemos 17 governos. Esta crítica não é séria porque é sabido que há dois períodos distintos: 1975-87, em que o sistema partidário era mais fragmentado e em que tivemos muita instabilidade governativa; 1987-presente, em que o sistema partidário é muito pouco fragmentado e a estabilidade dos governos tem sido elevada (pelos padrões europeus). E porque é que o período mais recente é distinto do ante-rior? Porque os eleitores alteraram os seus comportamentos, concentrando os votos nos dois grandes: temos hoje um “bipartidarismo imperfeito” semelhante ao das “democracias maiori-tárias”. Por isso, houve três maiorias absolutas e dois governos minoritários quase com maioria absoluta. Portanto, no período relevante, não há um problema de governabilidade e, adicio-nalmente, uma maior compressão da proporcionalidade levar-nos-ia para uma situação ainda mais próxima dos regimes maioritários, opostos à nossa matriz constitucional (a “democracia consociativa”).

Foi uma inflexão maioritária que, com louvável clareza, advogou Manuel Braga da Cruz: retirar o sistema proporcional da Constituição. Tal clareza faltou, porém, aos outros dois analistas. É que, por esta via, há um risco de cartelização através do reforço artificial da hegemonia dos grandes partidos face aos pequenos, como quase acontecia na lei eleitoral autár-quica... Desde 1997, as propostas do PS e do PSD têm tido um objectivo central: aproximar eleitos e eleitores e, por essa via, estimular a participação destes. Uma inflexão maioritária apontaria em sentido inverso: se a representação dos pequenos fosse artificialmente reduzida, PS e PSD passariam a competir só pelos votos do centro e, por isso, a indiferenciação ideoló-gica dos grandes (já acentuada) tenderia a aumentar. Logo, a participação tenderia a diminuir. Mais, os eleitores dos pequenos ficariam confrontados com uma de três hipóteses: desperdiçar os seus votos, votar útil ou abster-se. Também por isso a abstenção tenderia a aumentar.

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No Jornal de Negócios (11/12/08), ML insiste: alega que, desde 1974, só um governo (monopar-tidário) sem maioria absoluta chegou ao fim. Esqueceu-se de referir que a coligação PSD-PP se revelou bastante coesa perante circunstâncias adversas (crise orçamental e económica; inves-tigação do líder do PP no caso Moderna; etc.) e que, não fosse a contestada dissolução do parlamento, chegaria provavelmente ao fim do mandato. Ou seja, a direita já provou que é capaz de governar em coligação e com estabilidade; se há ainda algumas questões de governabi-lidade elas situam-se só à esquerda (p. 39 do livro).

Procurámos, por isso, reforçar as condições de estabilidade sem compressão da propor-cionalidade. Primeiro, com a “moção de censura construtiva”: quem quiser fazer cair um governo terá de propor uma alternativa, medida que reforçaria a estabilidade dos governos minoritários. Concordo com Jorge Novais que tal medida deveria ser complementada com a solução existente em França: a maioria poder converter algumas das suas propostas em moções de confiança que só poderiam ser chumbadas por quem fosse capaz de propor uma alternativa de governo. Mas só para o orçamento e pouco mais; no resto, maioria e oposição deveriam negociar.

Segundo, propomos a “coligação de listas” como incentivo à cooperação inter-partidária: embora com listas separadas, os partidos declaram-se publicamente coligados; poderão por isso ser beneficiados na conversão de votos em mandatos. O sistema eleitoral proposto visa aproximar os eleitos dos eleitores por duas vias: a transformação dos actuais círculos distri-tais/regionais em pequenas circunscrições (5-10 mandatos) e o voto preferencial. Por serem pequenas, geram resultados muito desproporcionais. Daí a necessidade de um círculo nacional para compensar tais distorções: segundo as simulações, cerca de 99 lugares. Mesmo assim, a desproporcionalidade e o bónus ao partido mais votado aumentariam ligeiramente: não só se repetiriam todas as maiorias absolutas registadas até hoje como teríamos tido pelo menos mais uma, em 1999 (p. 177). Os pequenos partidos quase só elegeriam pelo círculo nacional (p. 110) que, por isso, tem que ser grande: condição sine qua non para manter a proporcionali-dade. E é aqui que entra a “coligação de listas”, só permitida nos círculos distritais/regionais (se fosse permitida no nacional poderia gerar coligações espúrias entre os micro-partidos, aumentando a fragmentação): os pequenos só poderiam aumentar a probabilidade de eleger nesses círculos se se disponibilizassem a cooperar com os grandes. Como a direita coopera mais facilmente, a esquerda seria confrontada com a necessidade de cooperar para não perder… Portanto, defendemos que é possível conciliar os dois objectivos referidos acima e, ainda, que é possível aumentar a estabilidade sem reduzir a proporcionalidade, ao contrário do que têm sido alegado.

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Uma proposta falhada1

Vital Moreira 2

1 Público, 16/12/20082 Constitucionalista, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

A cerca da proposta de reforma do sistema eleitoral da Assembleia da República recentemente apresentada por uma equipa liderada por André Freire (ISCTE), alguém disse que ela “morreu no dia da sua apresentação pública”, dadas as críticas generalizadas de que foi objecto. Compartilhando dessas críticas, cumpre-me

explicar porquê.Antes de mais, não questiono os principais pontos de partida da proposta, designadamente

(i) a criação de um círculo eleitoral nacional, sobreposto aos actuais círculos distritais, (ii) a divisão dos actuais círculos eleitorais de maior dimensão (de modo a diminuir a distância entre os eleitos e os eleitores) e (iii) a atribuição de dois votos aos eleitores (um para o círculo distrital, outro para o círculo nacional).

Um círculo nacional de dimensão razoável teria várias vantagens: asseguraria, à partida, o pluralismo e um mínimo de proporcionalidade na representação parlamentar; facilitaria a eleição das elites partidárias, dispensando o tradicional fenómeno dos cabeças de lista “pára-quedistas” nos círculos distritais; e, sobretudo, combinado com o duplo voto, daria relevância ao voto de todos os eleitores em todo o território nacional, incluindo nos pequenos partidos parlamentares que hoje não elegem ninguém na maior parte dos círculos, tornando inútil o voto dos seus eleitores na maior parte do território ou reforçando a tendência para a abstenção ou para o “voto útil” num dos grandes partidos.

Por sua vez, a desagregação dos círculos maiores (designadamente Lisboa e Porto), gerando um maior número de círculos, e mais pequenos, proporcionaria maior proximidade e visibilidade dos candidatos e dos deputados, valorizando eleitoralmente a personalidade dos candidatos e facilitando a responsabilização dos deputados pelos eleitores, sem abdicar porém da representação pluripartidária e proporcional que só os círculos plurinominais permitem (ao contrário dos círculos uninominais).

O que é há então de errado na referida proposta? Reduzindo a apreciação à arquitectura do sistema, deixando de lado outras questões (como o controverso “voto preferencial” nos círculos distritais), as falhas estão, por um lado, na excessiva magnitude do círculo nacional, que elegeria quase metade dos deputados (roubando outros tantos aos círculos territoriais de base), e, por outro lado, no desenho dos círculos territoriais de base.

Em primeiro lugar, a enorme magnitude da lista nacional (99 deputados na versão prefe-rida pelos autores) é manifestamente contraditória com um dos objectivos centrais da reforma, que é a de dar visibilidade aos candidatos e deputados e aproximá-los dos eleitores. Não há nada de mais anónimo e distante do que uma lista nacional de uma centena de candidatos

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(quase metade do número total de deputados da AR), escolhidos directamente pela direcção nacional dos partidos.

Em segundo lugar, dar-se-ia uma enorme redução do número global de deputados a eleger nos círculos distritais, o que diminuiria drasticamente a representação territorial do Parlamento, reduziria a metade (ou quase) o número de deputados dos actuais círculos eleitorais, obrigaria a agregar os círculos mais pequenos em novos círculos territorialmente muito extensos (sobre-tudo no interior) e elevaria para quase o dobro o rácio entre deputados e eleitores, o que é totalmente contraditório com o objectivo de aproximar os deputados dos eleitores.

Em terceiro lugar, o elevado número de deputados do círculo nacional provocaria uma baixa inaceitável no limiar eleitoral de entrada no Parlamento (bastando algo como 0,8%...), permitindo a representação parlamentar de micropartidos extremistas, não sendo lícito impedir esse resultado por meio de uma “cláusula-barreira” de 1,5% (como propõem os autores), por esta ser desde logo constitucionalmente interdita, além de politicamente “invendável”.

Em quarto lugar, sendo de esperar que o círculo nacional proporcione uma sensível subida da votação nos pequenos partidos em relação ao nível actual (dado que os votos na lista nacional passarão a ser relevantes em todo o território nacional, o que afasta a pressão para o “voto útil” em muitos distritos, como hoje sucede), o sistema proposto levaria a um imprevisível aumento da proporcionalidade geral do sistema (“sobrecompensando” a redução da proporcionalidade nos círculos distritais), favorecendo os pequenos partidos e desfavorecendo os maiores em relação ao actual sistema, fomentando a fragmentação política do parlamento, reduzindo o actual “prémio eleitoral” dos maiores partidos e, em suma, prejudicando a governabilidade.

Ainda no que respeita à arquitectura dos círculos eleitorais, não pode concordar-se também com a manutenção da tradicional divisão distrital no continente, que vem desde 1975 (aliás, seguindo a solução do Estado Novo...), quando os distritos ainda eram autarquias locais e tinham um lugar central na administração territorial do Estado. Nada disso é assim hoje.

Antes de estarem condenados a prazo pela regionalização, os distritos administrativos foram sendo esvaziados de funções, que hoje são marginais (segurança pública, protecção civil e pouco mais), deixando de ser um factor de identidade territorial das populações. Mais importante do que isso, a divisão distrital não se harmoniza com a nova divisão territorial da administração do Estado e da administração local, hoje baseada nas cinco regiões-plano (NUTS II) e nas 28 sub-regiões (NUTS III), sendo estas agora a base territorial das novas “comunidades intermunicipais” (CIM). Por conseguinte, a manutenção do distrito como circunscrição eleitoral consolidaria a actual “esquizofrenia” territorial, além de impedir a coincidência entre os círculos eleitorais para a AR e os círculos eleitorais das futuras autarquias regionais (previsivelmente baseados nas “comunidades intermunicipais”).

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Análises equivocadas ou agendas escondidas1

André Freire

1 Público, 22/12/2008.

Têm sido feitas afirmações sobre o estudo Para uma melhoria da representação política. A reforma do sistema eleitoral, Lisboa, Sextante, 2008, que estão equivocadas. Como mostrarei, descontando os que assumiram a preferência por uma inflexão maio-ritária, a dúvida que fica é se não traduzem também agendas escondidas.

Os “efeitos mecânicos” dos sistemas eleitorais resultam da simples aplicação das regras para a conversão de votos em mandatos, por exemplo, favorecendo os maiores partidos e preju-dicando os pequenos. Os “efeitos psicológicos” resultam da forma como os actores políticos usam as regras. É possível estimar os primeiros, os segundos não.

O nosso mandato era manter os níveis de proporcionalidade e de governabilidade e, simultaneamente, criar incentivos institucionais para uma melhoria da representação (livro: pp. xiii-xvi e 1-15). Seguimo-lo tão rigorosamente quanto possível e demonstramo-lo através de simulações; propomos ainda reforçar a governabilidade sem beliscar a proporcionalidade (meu artigo, PÚBLICO: 15/12; pp. 39-40, 53-54, 175-177, 199-210). Só uma leitura apres-sada pode levar alguém a dizer que o PS “nunca mais teria maioria absoluta”: só se os eleitores mudassem radicalmente o seu voto; caso contrário, teria tido mais uma, em 1999, e o PSD as duas que teve. Mas não facilitamos a formação de “maiorias absolutas artificiais” (muito) para além do que já hoje acontece (em 2005, o PS teve mais de 50% dos deputados com 45% dos votos; será razoável, mas está acima da média dos regimes proporcionais: p. 28).

Há duas formas de criar incentivos para uma melhoria da representação mantendo a proporcionalidade. Ou um sistema misto: um segmento com círculos uninominais, para melhorar a representação, e um círculo nacional, para assegurar a proporcionalidade. Ou um sistema de “representação proporcional com múltiplos segmentos”/RPMS: pequenos círculos plurinominais, para melhorar a representação, e um círculo nacional. Realço duas das razões da escolha desta opção: mesmo com um sistema compensatório, a componente unino-minal induz bipartidarização; sem pluralismo (nos uninominais) é discutível que, para certos segmentos do eleitorado, haja identificação entre eleitos e eleitores, logo proximidade. Não será por acaso que, em 39 sistemas estudados, apenas 5 são mistos e há 14 regimes RPMS (pp. 21-22). Destes, só um não usa a outra medida que propomos para a melhoria da represen-tação: o “voto preferencial”. Este mecanismo é usado em mais 13 sistemas (pp. 40-41) e está a ser proposto pelo Parlamento Europeu para que se generalize nas europeias de 2013.

Vejamos alguns dos equívocos mais gritantes. Na linha de várias simulações da magnitude do círculo nacional (49-109) verificámos que, para atingir os objectivos, aquela deveria situar-se entre 89 e 109. Vital Moreira (VM) (PÚBLICO, 16/12/08) argumenta que “o elevado número de deputados do círculo nacional provocaria uma baixa inaceitável no limiar eleitoral

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de entrada no Parlamento (bastando algo como 0,8%...), permitindo a representação parla-mentar de micropartidos extremistas, (…).” Primeiro, no sistema vigente, o limiar de entrada variou entre 1,27% e 1,53% (p. 190): semelhante a 0,8%. Segundo, de acordo com as simu-lações, no período comparável (1991-2005) não entraria nenhum partido além dos que têm estado (pp. 109-111 e 199). No período anterior, devido à maior fragmentação do sistema de partidos, há reforço de alguns micropartidos (p. 111). Mas isso ocorre numa escala tão dimi-nuta que nada de fundamental se alteraria: aumenta até o bónus ao partido mais votado (pp. 152-177). À cautela, propomos uma cláusula-barreira de 1,5%.

VM diz ainda que a magnitude do círculo nacional “proporcionaria uma sensível subida da votação nos pequenos partidos” e “levaria a um imprevisível aumento da proporcionali-dade geral do sistema”. É apenas uma opinião. Pelo contrário, como não é possível fazer isto a régua e esquadro, as simulações revelam que aumenta ligeiramente a desproporcionalidade e o bónus ao maior partido (pp. 175-177). E a ideia de que um grande aumento da magni-tude do círculo (M) aumenta na mesma extensão a proporcionalidade revela desconhecimento da sistemática eleitoral. Há muito que Douglas Rae demonstrou que, a partir de M = 20, há um decréscimo substancial da taxa de incremento na proporcionalidade (tende para zero): “a relação positiva entre a magnitude dos círculos e a proporcionalidade é curvilinear: conforme aumenta a magnitude dos círculos, a proporcionalidade aumenta a uma taxa decrescente”2. Mais, contando Lisboa (M=48) e Porto (M=38), temos hoje 37% dos lugares atribuídos em círculos com uma proporcionalidade praticamente igual a M=99. (Isto para não falar de Braga, M=18, e Setúbal, M=17). Passaríamos a ter 43% dos lugares (99/229) nestas condições (não 50%, como diz VM).

Uma das dúvidas que se levantam é se muitos daqueles que enfatizaram os supostos problemas de governabilidade, embora não assumindo a preferência por uma inflexão maio-ritária, estão apenas equivocados na leitura que fizeram ou, na verdade, pretendiam também baixar o limiar das “maiorias absolutas artificiais” (para 40% dos votos, por exemplo?) mas não têm a coragem de o assumir.

Em relação ao voto preferencial, muitíssimo usado na Europa, as críticas caricaturais que foram feitas menorizam quem as fez e evidenciam uma grande desconfiança perante os elei-tores e os eleitos3. Lembraram-me as reservas dos conservadores sobre a extensão do sufrágio4. Quanto aos responsáveis partidários, como rejeitam os círculos uninominais e o voto prefe-rencial, fica a ideia de que apenas pretendem que “mude alguma coisa para que tudo fique na mesma” (a não ser que acompanhem as agendas maioritárias…).

2 Douglas Rae, The political consequences of electoral laws, New Haven, Yale University Press, 1969, pp. 116-117.3 Referimo-nos sobretudo a algumas da críticas que foram feitas na Conferência Parlamentar “A reforma do sistema eleitoral”, Assembleia da República (Sala do Senado), 4 de Dezembro de 2008, nomeadamente aquelas que então foram proferidas por António Araújo e por Vital Moreira.4 Sobre este ponto, ver Albert Hirschman, O Pensamento Conservador: Perversidade, Futilidade e Risco, Lisboa, Difel, 1993.

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O “fetichismo” dos círculos uninominais1

Manuel Meirinho & André Freire

1 Diário de Notícias, 22/12/2008.

As faltas de deputados a uma sessão plenária reabriram o debate sobre a qualidade da nossa democracia e as reformas eleitorais. Alguns reclamaram um corte no número de deputados e a adesão aos círculos uninominais. São reacções típicas, mas não é disso que aqui tratamos. Diremos, antes, que há alguns equívocos

acerca das propriedades dos sistemas eleitorais e da sua influência na melhoria da represen-tação política.

Primeiro equívoco: as reformas resolvem problemas sistémicos do funcionamento da democracia, das suas instituições e dos seus actores. Ajudam, mas não resolvem necessaria-mente as questões, nomeadamente as que se colocam noutros terrenos.

O segundo equívoco prende-se com o entendimento da personalização das relações entre eleito e eleitor. Se, por um lado, o conceito é utilizado em termos abstractos, por outro lado, considera-se que tal relação se obtém por via exclusiva de modificações na estrutura do voto. Por exemplo, os defensores dos círculos uninominais aceitam que estes resolvem a ausência de “proximidade”. Há aqui várias confusões. A primeira é que este conceito não é unidimen-sional. Se em algumas dimensões a estrutura do voto é importante, noutras não. E isto porque a “proximidade” é tributária de interacções individuais, organizacionais e institucionais: as regras eleitorais terão sempre um contributo relativo na sua melhoria.

Um terceiro equívoco prende-se com os efeitos das possibilidades dadas ao eleitor na selecção dos deputados na melhoria da qualidade da representação. Entre nós alguns aceitam que os círculos uninominais têm propriedades curativas dos males da “proximidade”, porque asseguram uma mais estreita ligação entre os eleitos e os seus constituintes. Ora, se o sistema eleitoral tem uma influência relativa na qualidade da representação, a estrutura do voto tem um impacte ainda mais relativo. O problema é o que os elementos dos sistemas eleitorais actuam em trade-off: quando se modifica um elemento isso tem consequências nos restantes. Em suma, não há sistemas óptimos. Por isso, quando se sugerem modificações, o ponto de partida deve aliar os objectivos das reformas ao seu contexto, sem esquecer as limitações dos instrumentos. É aqui que se coloca a comparação entre os círculos uninominais (com voto categórico nominal) e os círculos plurinominais pequenos (com voto preferencial), ambos combinados com um círculo nacional.

Mesmo num sistema misto, os círculos uninominais induzem a bipartidarização; reduzem as opções dos eleitores; estimulam o localismo e o clientelismo, levando à parasitação da acção do deputado por inconfessados interesses locais – quem não se lembra do “voto limiano” em 2001; dificultam a responsabilização dos partidos, não sem efeitos na sua coesão parlamentar.

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Já o voto preferencial permite que os eleitores escolham os “seus” deputados em regime mais competitivo e plural; facilita a responsabilização dos partidos e a representação descritiva (das mulheres, etc.); estimula a competição intrapartidária; garante a estabilidade do desenho dos círculos.

Ambas as soluções têm vantagens e desvantagens. Mas a solução que nos parece mais equilibrada é a segunda. É por isso que a propomos no estudo sobre a reforma eleitoral que realizámos por solicitação do Grupo Parlamentar do PS. Quem ler o livro constatará que é possível garantir os padrões de governabilidade e de proporcionalidade e, simultaneamente, introduzir mecanismos de personalização do voto. Nas legislativas, o voto preferencial (de vários tipos) está muito mais difundido na Europa do que os sistemas com círculos unino-minais (e/ou as listas fechadas): 26 casos de um total de 39 (30 países) (pp. 40-41 do livro). E está a ser proposta a sua generalização a todos os Estados da UE nas eleições de 2013 para o Parlamento Europeu2.

2 Projecto de relatório sobre a proposta de modificação do Acto relativo à eleição dos representantes ao Parlamento Europeu por sufrágio universal directo, de 20 de Setembro de 1976, (2007/2207(INI)), Comissão dos Assuntos Constitucionais, cujo relator foi Andrew Duff: http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+COMPARL+PE-412.180+02+NOT+XML+V0//PT

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Mais defeitos do que virtudes1

Vital Moreira

1 Público, 23/12/2008

Há ideias muito atraentes à primeira vista, como sucede com a do “voto prefe-rencial”, incluída na recente proposta de reforma do sistema eleitoral para a Assembleia da República, de André Freire e seus colaboradores. Mas a sua fácil atractividade não basta para a tornar virtuosa.

Segundo essa proposta, além de poderem votar no partido da sua preferência, como hoje sucede, os eleitores também passariam a poder votar num dos candidatos das listas partidárias. É o sistema chamado de “listas fechadas mas não bloqueadas”. Para esse efeito, os boletins de voto passariam a inserir não somente a lista dos partidos concorrentes, como hoje acontece, mas também a lista nominal dos candidatos de cada partido, de modo a possibilitar a escolha individual dos candidatos pelos eleitores.

Os eleitores passariam a ter efectivamente dois votos, um no partido da sua escolha e outro no candidato da sua preferência, de entre os apresentados por esse partido. Desse modo, os deputados eleitos por cada partido não seriam necessariamente os primeiros nomes da lista partidária, mas sim os nomes mais votados individualmente pelos eleitores, desde que esses votos ultrapassem uma determinada percentagem do total dos votantes no respectivo partido ou seus candidatos (7% na solução proposta).

A favor dessa solução podem invocar-se vários argumentos, desde o reforço do poder dos eleitores, passando pela “personalização do voto”, até à diminuição do “monopólio político” dos partidos, tudo alegadamente em prol da revitalização da democracia.

Sem questionar tais argumentos, são porém vários e decisivos os argumentos contrários a essa solução. Vejamos os principais.

Para começar, o voto preferencial implicaria uma mudança substancial de filosofia da representação política no nosso sistema político-constitucional, assente no voto em partidos. Se as eleições são obrigatoriamente mediadas pelos partidos políticos e se a razão de ser das eleições num sistema de base parlamentar consiste na escolha do governo, então é lógico que deva caber aos próprios partidos, sobre quem impende a legitimidade e a responsabilidade político-partidária, o direito de escolher quem melhor os representa e defende as suas posi-ções no Parlamento. O voto preferencial introduziria um dualismo entre os deputados eleitos nominalmente e os deputados eleitos por via do voto partidário.

A segunda objecção é de natureza procedimental, dado que o voto preferencial tornaria mais complexa a votação, obrigando à inclusão dos nomes de todos os candidatos no boletim de voto (que podem ser muitas dezenas...). Além disso, o voto preferencial excluiria tenden-cialmente os iletrados, o que numa sociedade como a nossa deixaria de fora uma sensível percentagem de cidadãos mais idosos. Ora, entre os valores mais estimáveis de um sistema

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eleitoral contam-se a facilidade da votação e a igualdade dos eleitores.A terceira objecção decorre do escasso uso que o voto preferencial muito provavelmente

teria. Sendo certo que a maior parte dos eleitores vota num partido ou num candidato a primeiro-ministro, sem nenhuma consideração pelos candidatos constantes das listas, é de prever que o número de votos preferenciais, à revelia da ordenação da lista partidária, fosse muito reduzido. E então, de duas uma: ou se exige que as preferências sejam maioritárias, para serem eficazes -, e então elas serão irrelevantes na maior parte dos casos, frustrando as expectativas criadas; ou se considera suficiente uma baixa percentagem de preferências (como é o caso da proposta acima referida) -, e então cai-se na solução nada democrática de atribuir mais peso ao voto nominal de uma minoria de eleitores do que à maioria dos eleitores que votaram no partido, concordando implicitamente com a ordenação dos candidatos constante da lista partidária.

O principal argumento contra o voto nominal resulta, porém, dos seus enormes riscos para a coesão e a disciplina partidária. Se a eleição dos deputados dependesse das preferên-cias nominais dos eleitores, a consequência seria a competição entre os candidatos de cada lista pelo maior número de votos preferenciais. Em vez da campanha eleitoral pelo partido comum, o que passaria a sobressair seriam as campanhas individuais de cada candidato, na luta pela conquista de apoios, incluindo iniciativas, cartazes e consignas próprias, que tenderiam a encontrar os seus próprios meios de organização e de financiamento.

É fácil imaginar o potencial disruptor da competição intrapartidária nas eleições. Cada facção ou orientação partidária organizar-se-ia para apoiar os “seus candidatos”. As eleições parlamentares seriam também (quiçá sobretudo) disputas internas aos partidos. Surgiriam também os candidatos de interesses sectoriais, desde os candidatos locais aos candidatos de grupos de interesse mais influentes. A organização de “sindicatos de voto” mais ou menos ostensivos não pode ser descartada.

Os riscos do voto preferencial para a unidade e disciplina dos partidos são conhecidos desde há muito. Num estudo clássico de 1985 sobre o assunto, Joseph S. Katz23 considerou o voto preferencial um “poderoso incentivo à desunião partidária”, quer durante o processo eleitoral, quer depois, no parlamento. Como ele mostrou, a competição intrapartidária “subverte a unidade partidária de duas maneiras”. “Primeiro, como os candidatos eleitos não devem a sua eleição somente ao partido, eles têm menos razão para lhe serem leais depois de eleitos. (...) Segundo, ao construírem uma base de campanha independente, os candidatos incorrerão em dívidas, farão compromissos e desenvolverão lealdades diferentes dos de outros candidatos do mesmo partido.”

Em suma, o voto preferencial poderia bem ser uma receita para a fragmentação e para a indisciplina partidária, ou seja, para a instabilidade parlamentar e governamental. Não se vê a quem é que isso aproveitaria.

2 Nota do Editor: Consideramos que o nome do autor da obra a que Vital Moreira se refere deve ser Richard Katz e não Joseph Katz. Tentativas de esclarecer essa dúvida junto de Vital Moreira foram infrutíferas. Reproduzimos na íntegra o texto publicado no Público, mas colocamos em nota de pé de página a referência que nos parece ser a correcta. 3 Katz, R. S. (1986), “Intraparty preference voting”, in Grofman, B., e A Lijphart (org.) , Electoral Laws and their Political Consequences, New York, Agathon Press, pp. 85-103.

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As virtudes do voto preferencial1

André Freire

1 Público, 5/1/2009.

Na sua penúltima crónica, Vital Moreira (VM) fez uma crítica sistemática a uma das medidas do recente estudo sobre a reforma eleitoral, que coordenei: o voto preferencial (em “listas fechadas e não bloqueadas”). Há três problemas fundamen-tais com este tipo de críticas. Primeiro, fazem tábua rasa dos problemas associados

ao status quo e às vias alternativas para a personalização do voto. Segundo, parecem ignorar que não há sistemas perfeitos: há sempre que assumir algum trade-off. Terceiro, assentam numa visão elitista e partidocrática da democracia, eivada de desconfiança perante eleitores e eleitos: tendem a ignorar as muitas experiências bem sucedidas na Europa e enfatizam os inconve-nientes, supondo que tudo poderá correr mal porque os eleitores tenderão a ser manipulados (o fantasma do “eleitor-ovelha”: Manuel Meirinho, JN, 14/12/08) e os eleitos inclinar-se-ão a subverter o regime (em proveito próprio e/ou de obscuros interesses).

Recordemos o status quo (“listas fechadas e bloqueadas”) e os problemas associados. Quando votamos podemos apenas pôr uma cruzinha num dos partidos e, por isso, mesmo que este-jamos profundamente desagradados com a performance de alguns deputados nada podemos fazer a não ser mudar de partido. Este sistema foi escolhido na transição democrática para forta-lecer os partidos: uma escolha acertada para uma democracia jovem. Quase 35 anos depois, os partidos estão consolidados e sobressaem os problemas. Primeiro, os deputados preo-cupam-se sobretudo em agradar às direcções partidárias, subalternizando os eleitores, pois a sua reeleição depende da posição nas listas. Por isso, o papel dos deputados na representação foi subalternizado e, exceptuando algumas figuras de proa, quase só se dá por eles quando, à revelia da regra do voto por bancada, se pede uma votação nominal e se constata que há muitos que faltaram… Segundo, os eleitores têm muita dificuldade em saber quem são os deputados que os representam e, sobretudo, estão impossibilitados de os responsabilizar. Daí as razões apresentadas por PS e PSD para a personalização do voto: estimular a participação, dando poder aos eleitores na escolha e responsabilização dos deputados, e melhorar a qualidade da representação. Ou seja, as virtualidades do modelo vigente estão esgotadas e as críticas têm-se centrado no excessivo papel dos partidos.

Há basicamente duas formas de promover a personalização do voto. Os sistemas mistos, que se caracterizam por ter um segmento composto por círculos uninominais, e os regimes com pequenos círculos plurinominais, para promover a proximidade entre eleitores e eleitos, e um círculo nacional (para compensar as distorções à proporcionalidade), como o que propomos. Face aos sistemas mistos, a solução proposta não só preserva a pluralidade da representação nos círculos regionais como, sobretudo por manter o voto em lista, promove uma melhor “repre-sentação descritiva” (por género, etnia, etc.) e dá maior poder relativo aos partidos. Só um dos

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14 sistemas europeus com este perfil não é também complementado com o voto preferencial: os eleitores têm o poder de expressar preferência(s) pelo(s) candidato(s) em cada lista e, desse modo, determinar que deputados serão eleitos. Uma solução de círculos pequenos sem voto preferencial será sempre uma reforma minimalista.

Algumas das críticas em relação ao voto preferencial são infundadas. Primeiro, VM alegou que “excluiria tendencialmente os iletrados” por causa da sua complexidade. Porém, tal como o propomos, o voto preferencial é opcional e, por isso, os iletrados, etc., podem continuar a votar só no partido. Além disso, não é por causa da brutal iliteracia informática que o governo deixa de usar o e-government: razões semelhantes assistem ao expediente proposto. Segundo, VM alegou que ou o voto preferencial tem uma fasquia muito alta para que tais sufrágios contem, desincentivando-o, ou então incentiva-se o uso do instrumento (como propomos: mínimo de 7 por cento dos votantes de cada partido em cada círculo) mas “cai-se na solução nada democrática de atribuir mais peso ao voto nominal de uma minoria” do que “à maioria dos eleitores que votaram no partido”. É verdade que, para haver incentivo, a fasquia tem que ser baixa, mas é preciso sublinhar que, para chegar a esta solução, baseámo-nos numa extensa pesquisa comparativa. E o argumento da democraticidade é espantoso para quem defende o status quo: apenas uma ínfima parte da hierarquia partidária escolhe os candidatos e, mesmo que fossem os militantes, num sistema de primárias (que também defendo), seria sempre uma solução menos democrática. Terceiro, VM alega que o que propomos representaria uma “mudança substancial de filosofia da representação política”, dando uma maior centralidade aos candidatos/deputados do que aos partidos. Todavia, os estudos existentes, nomeadamente sobre as experiências escandinavas, demonstram que este receio é infundado2. Finalmente, VM alegou que o voto preferencial poderia criar “enormes riscos para a coesão e a disciplina partidária” pondo em risco a governabilidade. As experiências escandinavas, bem como as dos inúmeros países onde este tipo de regime existe, mostram que são receios infundados, até porque os partidos permanecem com o derradeiro poder de decidir quem integra as listas. Mas é certo que a nossa proposta implica alguma perda de poder dos partidos: o trade-off necessário para combater a partidocracia e estimular a participação. Mais, na linha de António J. Seguro (Expresso, 6/12/08), creio que chegou a hora de olhar para a disciplina partidária de forma dessacralizada: reservando-a para as promessas eleitorais, o orçamento e as moções de censura e de confiança. A questão é que, pelas reacções, algumas direcções partidárias parecem não querer ceder poder algum...

2 David Arter, Democracy in Scandinavia – Consensual, Majoritarian or Mixed?,Manchester, Manchester University Press, 2006, pp. 26-45;K ver também Carmen Ortega. Los Sistemas de Voto Preferencial. Un Estudio de 16 Democracias, Madrid, Centro de Investigaciones Sociológicas, Siglo XXI, 2004.

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Estabilidade política1

Vital Moreira

1 Público, 30/12/2008

Com a aproximação das eleições parlamentares de 2009, após a mais longa legis-latura desde 1976, volta à discussão pública o tema da estabilidade política e da governabilidade. Como assegurar a estabilidade governamental num sistema político que, mercê do sistema eleitoral proporcional, raramente proporciona

maiorias parlamentares e em que a experiência mostra também uma grande vulnerabilidade dos governos de coligação?

Antes de mais, importa sublinhar que a estabilidade governamental constitui um valor em si mesma. Sem governos que possam planear e levar a cabo uma linha de governação durante quatro anos, não é possível implementar reformas, assegurar a disciplina das finanças públicas, nem responsabilizar governos. Além disso, a instabilidade política gera a instabilidade econó-mica e social. Nada pior para o investimento do que a imprevisibilidade das decisões políticas. Independentemente do juízo que se faça do actual Governo, ninguém pode seriamente contestar que, sem a maioria parlamentar, não teria sido possível conseguir o saneamento das finanças públicas nem empreender as profundas reformas que se realizaram na administração pública, na segurança social, na educação, na saúde, etc.

Em segundo lugar, não tem nenhum fundamento a ideia de que Portugal não tem, ou deixou de ter, um problema de governabilidade. Onze eleições parlamentares e 17 governos em 32 anos de democracia constitucional não são propriamente um bom registo de estabili-dade política. Das 11 eleições, só três proporcionaram maiorias parlamentares (1987, 1991, 2005); e dos 17 governos, só quatro completaram a legislatura. Mesmo nos últimos 20 anos, em que a rotação governamental diminuiu e em que se verificaram todos os casos de maioria parlamentar e de governos de legislatura, ainda assim houve duas legislaturas e três governos que não chegaram ao fim do mandato.

Salvo o caso excepcional do primeiro Governo minoritário de António Guterres (1995-1999) - aliás, em tempos de “vacas gordas” e à custa de muitas cedências -, só os governos com maioria parlamentar monopartidária completaram o mandato. Com a referida excepção, todos os demais governos minoritários, bem como todos os governos de coligação (nada menos de sete) abortaram. Este panorama contrasta com o que se passa noutros países euro-peus com sistema eleitoral proporcional, onde existem governos minoritários que governam estavelmente (por exemplo, em Espanha) e onde inúmeros governos de coligação perfazem legislaturas completas.

Neste quadro, bastará que nas próximas eleições legislativas o partido vencedor não tenha maioria absoluta para que o espectro da instabilidade governamental regresse a toda a força. Sobretudo se se tratar do PS (como é previsível), dada a tradicional impossibilidade de coliga-

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ções com os partidos à sua esquerda, dominados pelo radicalismo político e por uma cultura de protesto e de oposição que os torna inelegíveis para responsabilidades governativas.

Então, como melhorar as condições de governabilidade em Portugal?Sem excluir uma mudança das condições e das atitudes políticas que permita governos de

coligação estáveis no futuro, as respostas canónicas a essa questão passam por mudanças insti-tucionais. Uma consiste em modificar o sistema eleitoral, de modo a favorecer a obtenção de maiorias parlamentares, diminuindo o respectivo limiar para baixo dos actuais 45% de votos. Outra consiste em assegurar melhores condições de sobrevivência aos governos minoritários, reduzindo o espaço para o seu bloqueio por coligações negativas da oposição.

A primeira opção, que necessitaria de modificação da lei eleitoral, é a menos provável, e não propriamente por necessitar de uma maioria de 2/3. Tal reforma teria de passar, directa ou indirectamente, pela indução de uma maior bipolarização eleitoral e pela consequente redução do actual nível de proporcionalidade do sistema eleitoral, o que, mesmo não sendo inconstitucional, seria politicamente muito controverso. A segunda opção, embora menos melindrosa, também não é fácil, até porque necessitaria de uma revisão constitucional, e logo também de uma maioria de 2/3.

Que medidas poderiam permitir uma maior segurança de executivos minoritários? Como é sabido, a Constituição facilita a formação de tais governos - ao prescindir de um voto de inves-tidura parlamentar e ao exigir maioria absoluta para que a oposição possa rejeitar o programa de governo -, mas depois deixa-os à mercê das oposições. Apesar de ainda exigir maioria abso-luta para as moções de censura, a verdade é que nada impede uma coligação negativa para derrubar um governo minoritário. Além disso, e mais importante, um governo minoritário não pode aprovar nenhuma lei contra a oposição, incluindo os principais instrumentos de governação (a começar pelo orçamento), podendo ver-se confrontado com leis de grande impacto financeiro aprovadas pela convergência da oposição contra o governo. Basta citar o “orçamento limiano” e a Lei das Finanças Locais nos governos de Guterres, para mostrar o potencial destrutivo de tais situações.

Recentemente, foi recuperada a velha proposta da “moção de censura construtiva”, que acautelaria os governos minoritários contra moções de censura, salvo entendimento entre as oposições para um governo alternativo, o que é pouco provável (embora se tenha verificado em 1987). Mas isso não basta. Sem mecanismos que garantam a aprovação dos orçamentos (por exemplo, transformando a sua rejeição numa moção de censura) e impeçam a aprovação de leis financeiramente incomportáveis pela oposição (por exemplo, proibindo o agravamento do défice orçamental), a vida dos governos minoritários será quase sempre insustentável.

Seja como for, é de crer que o tema da governabilidade integre a agenda da próxima revisão constitucional, na legislatura que vem.

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DAS IDEIAS

Estado e União Europeia: ideologias e debate intelectual em torno do socialismo e da igualdade de oportunidadesCarlos Leone

1 A título de exemplo, a nova tradução de O caminho para a servidão, de F. A. Hayek, surgida no final de 2008 nas edições70 (Lisboa), com prefácio de J. C. Espada. Poderá ser muito instrutivo para os «cães de guarda» do mercado livre (i.e., sem regras) descobrirem que mesmo Hayek – e logo numa obra não científica e sim política – defendia o papel do Estado em tempos de crise, considerando-o mesmo indispensável.

A gora que a Direita portuguesa redescobre fontes de pensamento a que nunca deu grande uso1, convirá que a Esquerda democrática reflicta sobre as suas próprias possibilidades de evolução. Para isso, este artigo diferencia Esquerda e Direita, centra a sua atenção na

Esquerda democrática e na sua dimensão europeia, para, por fim, identificar várias possibilidades de desenvolvimento futuro e privilegiar a caracterização de uma delas.

I. Como celebremente afirmou Norberto Bobbio em Direita e Esquerda, a diferença entre os dois campos políticos pode detectar-se em torno da questão da igualdade. Notemos, desde já, como esta afirmação pressupõe uma liber-dade política generalizada, própria de regimes políticos modernos, sem a qual a «igualdade» seria apenas eufemismo para «opressão».

Segundo a distinção feita por Bobbio, a Esquerda, mesmo não sendo toda igualitarista (questão que irei abordar daqui a pouco) tende a actuar no sentido de diminuir as desigualdades, contrariamente à Direita. De facto, podemos concordar, sendo ainda assim recomendável atentar em vários aspectos: tradição liberal na origem; igualitarismo de direita; natureza política e não económica da igualdade (equilíbrio direitos individuais e colectivos). Nada disto é contra Bobbio, mas com Bobbio de uma forma que me parece mais adequada à compreensão dinâmica (e não apenas estática, para recorrer aos termos das leis do positivismo) do problema.

Ideologicamente, a Direita e a Esquerda reclamam fontes comuns da modernidade política europeia, o republicanismo renascentista e o liberalismo contrário ao absolutismo. As forças de Direita e de Esquerda que reclamam

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outras fontes (o reaccionarismo e o revolucionarismo) são menores, deriva-tivas e muito datadas. Quando Bobbio se refere à igualdade, pressupõe-a num contexto de liberdade política liberal, não noutro, pois essa tradição intelectual é a matriz do pensamento político moderno, até hoje. Sem ela, nem haveria união de perspectivas que permitisse diferenciar, de um mesmo ponto (ainda que esse «centro» seja em muito imaginário), Direita e Esquerda. Por isso mesmo, há forma de pensamento igualitárias também à Direita, de tipo liber-tário, embora sejam de acto minoritárias. Nem por isso este ponto deve ser esquecido. O que ele revela, justamente, é o modo como o ideal político da igualdade se tornou hoje comum a Esquerda e Direita, ainda que de diferentes formas (tal como sucede no interior de Esquerda e de Direita). É esta dinâmica que revela a relevância das ideologias, ao dinamizarem a vida social institu-cional num sentido ou noutro.

Essa compreensão requer que se saliente a natureza não apenas económica mas sobretudo política de uma opção ideológica (digamos, de Esquerda) em favor de políticas de governo promotoras de igualdade. Se esta opção inclui necessariamente aspectos orientados para a correcção de desigualdades econó-micas gritantes, geradoras de tensão social e correspondente baixo «capital social», nem por isso deve esquecer que o combate à desigualdade é sobre-tudo político, pois as causas da desigualdade não são apenas económicas mas também sociais, religiosas, legais, etc.

Assim, seguindo Bobbio, podemos concordar que a Esquerda é ideologi-camente mais consistente no combate às desigualdades do que a Direita. Com efeito, o que vemos na Direita, quer a centrista, de governo, quer a libertária, minoritária, quer mesmo na extrema-direita, é uma concepção de igualdade na qual os direitos e deveres devem ser iguais para todos e, a partir daí, haverá quanto muito assistencialismo de Estado aos mais necessitados ou em tempo de crise (sintomaticamente é a extrema direita que ainda se diferencia mais desta visão paleoliberal da igualdade, os extremos tocam-se…). Isto é, a Direita privilegia por norma os direitos e liberdades individuais e no caso das questões da igualdade abre excepções a essa norma, mas poucas.

Ainda seguindo Bobbio, podemos argumentar no sentido de a Esquerda adoptar uma visão e acções mais compreensivas face aos problemas da desigual-dade social. Herdeira de uma visão optimista da História, na qual o progresso deve trazer benefícios para todos e não apenas para os que sejam capazes de

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se aproveitar dele, a Esquerda concebe a desigualdade não como uma situação natural que se deve minorar se for socialmente necessário mas como uma reali-dade social que deve ser combatida para não nos reaproximar de um Estado de Natureza hobbesiano. A questão está no modo como o faz: não apenas através de direitos individuais mas também promovendo direitos colectivos. E, bem enten-dido, a Esquerda distingue-se internamente em diferentes ideologias consoante se admite o prejuízo dos direitos individuais em nome do colectivo (revoluciona-rismos) ou se apenas se vê os direitos individuais e colectivos como cooperantes, nunca excluindo-se reciprocamente (Esquerda liberal); já a prioridade absoluta aos direitos individuais, na Esquerda, que talvez se encontre no libertarismo, seja uma ilusão metodológica (ver abaixo).

Como é consensual (creio mesmo que sem excepção) encontrar-se à Esquerda o privilégio da igualdade, discutirei esta questão em função das ideologias de Esquerda. Como não concebo igualdade sem liberdade, é natural que se note o privilégio da concepção liberal, na qual se incluem as diversas concepções de igualdade de oportunidades, mas naturalmente aberta a discussão.

II. IgualdadesÀ Esquerda, a igualdade surge como condição de possibilidade (não apenas

económica, mas também moral e política) do exercício público dos direitos indi-viduais e das suas garantias políticas por via legal (à Direita, o mesmo se aplica, ainda que menos sistematicamente). Em grande medida, desde os seus primórdios a Esquerda adoptou como sua a promoção da igualdade. Nesta forma moderna, a igualdade já não é uma questão de regime político (mais ou menos igualitários, como na Antiguidade) mas de sistema de governo (políticas promovidas pelas instituições de governo no sentido de legislar para a promoção da igualdade).

A questão da igualdade joga-se sobretudo ao nível de políticas de governo. Isto significa que estas políticas consubstanciam premissas muitas vezes implícitas (ou formais) do regime político, são acções que afirmam princípios. Daí mesmo poderem ser acções diferidas no tempo, matizadas, sujeitas a avanços e recuos, dependem de um assentimento geral a uma determinada afirmação de valores muitas vezes tácitos ou abstractos. De um modo geral, como a liberdade sem igualdade gera tensões a prazo insustentáveis para a liberdade (logo, para a socie-dade), um módico de igualdade é necessário, e a questão está em saber se não será melhor ter mais do que esse mínimo e, em todo o caso, como o obter.

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1. Concepções de igualdadeO tema da igualdade é tão antigo quanto a própria definição de um campo

político «de Esquerda». Contudo, a promoção da igualdade gerou, nas experi-ências históricas conduzidas no século XX (nomeadamente regimes sob a órbita soviética e no extremo-oriente), enormes engenharias sociais nas quais o sistema governativo se sobrepôs, invariavelmente, à afirmação dos princípios políticos dos regimes que devia servir. Que esta hipertrofia do governo no Estado, geral-mente designada «totalitarismo», tenha ocorrido em Estados estranhos à cultura política republicana e liberal do Ocidente moderno não é de estranhar; que essas torções se tenham perpetrado «em nome» dos mais altos valores não deve, por outro lado, desmerecer esses mesmos valores. Assim, tal como no século XIX Engels já reconhecia que as conquistas sociais nas barricadas já eram coisa do passado, também a Esquerda democrática que se manifestou indisponível para a via da violência seguida por autoproclamados marxistas se viu levada a encontrar um conceito exequível de igualdade. Hoje em dia ouvimos falar disso, na maioria das vezes, a propósito do New Labour, mas, em Portugal e no continente em geral (França, Itália, RFA, pelo menos; mas em Espanha também) esse processo foi anterior, teve resultados igualmente importantes e, coisa muito importante, teve a sua origem na prática política.

Este último aspecto merece atenção: tal como foi na execução prática da «Revolução» que os ideais políticos do materialismo histórico-dialéctico se viram subvertidos (1917, «uma revolução contra O Capital», como terá obser-vado Gramsci), foi na experiência de governo (ou parlamentar, pelo menos) que os socialistas democráticos desenvolveram modelos de igualdade política mais amplos que os preconizados pelo liberalismo do século XIX, mas evitando fazê-lo à custa dos direitos fundamentais. Uma maior atenção a estas origens da reflexão política «continental» pode poupar-nos a muitas discussões (e mesmo ao recurso a termos infelizes) que são simplesmente deslocadas e, portanto, com escassa pertinência, nos contextos políticos exteriores ao mundo de língua inglesa.

No caso português, que data dos anos da «teoria áspera» e de uma revolução real (1974) mesmo se democrática, esse trabalho teórico baseado na experiência política foi desenvolvido em particular por Sottomayor Cardia, num livro escrito no final da década de 1970 e publicado em 1982 sintomaticamente intitulado Socialismo Sem Dogma. Confessadamente influenciado pelos processos de

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renovação ideológica dessa década, o eurocomunismo italiano e a experiência da frente de esquerda conduzida em França por Miterrand, Cardia contestou o enfeudamento teórico (e respectivas consequências práticas) do ideal socialista de igualdade a uma concepção maximalista de «igualdade de resultados» assegu-rada (em tese) pela colectivização dos meios de produção. Ecoando muitas ideias de Raymond Aron, Cardia viu neste capitalismo de Estado um novo ópio dos intelectuais, cujos resultados, já visíveis na segunda metade da década de 1970 em Portugal, eram uma menorissíma correcção das desigualdades sociais e um gigantismo do Estado que facilitava a retórica conservadora da Direita. Concluía, provocadoramente então mas hoje comprovadamente acertado, que o «socia-lismo colectivista» era o melhor aliado da Direita.

Em vez disso, Sottomayor Cardia defendia uma concepção mista da economia, em que o Estado intervinha directamente nas actividades econó-micas mas privilegiando as entidades reguladoras, por norma, e mantendo monopólios apenas em casos pontuais (funções de soberania). O objectivo seria o de promover a distribuição da riqueza produzida sem interferir com a liber-dade individual na condução da vida de cada um e na consequente actividade económica. «Socialismo de distribuição», privilegiava não a uniformização de rendimentos mas a garantia por parte do Estado de condições de igualdade à partida (pela promoção de reformas destinadas a melhorar as habilitações e as condições materiais dos mais desfavorecidos na sociedade) e acompanhando a competição social pelos bens comuns com um sistema de monitorização e de correcção de excessos concorrenciais e/ou legais (sistema de justiça, desde logo; mas igualmente as entidades reguladoras, etc.). Aqui, a igualdade não é conce-bida como uma questão dogmática, a atingir sem olhar a meios (comunismo), nem como uma questão teórica (uma teoria da justiça), nem, sequer, como uma ética (embora a ética utilitarista de Cardia, exposta no seu doutoramento, esteja pressuposta). A igualdade é concebida como tarefa política moderna, ou seja, acção social colectiva, prosseguida em liberdade, com o fito de promover o bem comum sem com isso elidir a diferença entre a polis e o oikos, apenas privilegiando aquela e não (conservadoramente) este último.

Partindo desta diferenciação elementar entre dois socialismos, e adoptando o campo do socialismo democrático, distributivo, que evoluções há a registar nesta teorização da igualdade?

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2. Políticas promotoras de igualdade em liberdade e UEO argumento aqui desenvolvido associa a promoção de igualdade de opor-

tunidades à promoção da igualdade em liberdade. Creio já ter exposto os seus pressupostos: república, democracia, gradualismo, meios pacíficos, controlo público de iniciativas legislativas, neutralidade do Estado (i.e., Estado não doutrina os cidadãos sobre o que devem fazer, apenas garante um quadro polí-tico de tolerância entre visões discordantes da sociedade e do bem comum).

Merece referência particular o facto de os Estados modernos, por regra, se inserirem voluntariamente em organizações internacionais (mesmo mundiais) nas quais se articulam políticas não apenas acções externas mas se desenvolvem também políticas de incidência interna a cada Estado. Assim, as políticas votadas à promoção da igualdade no interior de cada Estado europeu membro da UE não são indiferentes umas às outras, pelo contrário, articulam-se justa-mente para serem mais eficazes no seu efeito (sobre populações com liberdade de circulação em 27 Estados) e na sua disponibilidade (articulando verbas de cada Estado e fundo da UE). Esta articulação é também promovida por polí-ticas comuns «sociais» e ainda por outras não relacionadas com «questões sociais» (políticas de Defesa comuns, com a consequente redução de verbas nacionais para esses fins, em tese). Este quadro internacional, e outros como o da UE, não podem deixar de ser considerados na formulação (mesmo teórica) de doutrina «igualitarista», tanto no plano da aplicabilidade quanto no dos princípios.

Em comum, tem os pressupostos políticos que já enunciei e a sua natureza transnacional. Integra-se, ainda, numa reflexão hoje comummente designada por «terceira via», em referência à experiência inglesa dos anos ’90, mas que tem raízes mais antigas e mais complexas no pensamento de Esquerda europeu (como Sottomayor Cardia, para dar apenas um exemplo próximo). Convém por isso conhecer essas outras fontes e respectivos contextos sociais, que nos podem ser mais úteis e, também, evitar críticas muito comuns a este «socia-lismo distributivo» que promove a igualdade de oportunidades.

III. Modelos de pensamento igualitário actuaisSe aquilo que se acabou de dizer a respeito da dimensão transnacional

das políticas de igualdade está correcto, será necessário que as eleições para o Parlamento Europeu e o funcionamento das restantes instâncias da UE sejam

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pensadas como os instrumentos políticos decisivos na definição de políticas de igualdade para o futuro. Nesse sentido, autonomizar-se a política europeia da política dos «negócios estrangeiros» será necessário, bem como traba-lhar para eleger grupos parlamentares europeus directamente (votar no PSE directamente, sem ser por intermédio do PS). Para isso, articular programas é necessário, mas não suficiente, pois cada programa responde a realidades específicas e com uma história própria que condiciona as soluções viáveis em cada contexto nacional.

O centro da política socialista do futuro terá de ser a articulação entre a coerência e relevância das políticas públicas a nível europeu e a sua aceitabili-dade e viabilidade a nível de cada Estado.

Entre os vários modelos de promover essa articulação, vou referir aqueles que me parece serem os mais influentes no futuro. Isto é uma previsão, não uma certeza2. E a influência não será necessariamente em Portugal, mas no espaço europeu. São modelos de articulação nacional/internacional em torno da questão da promoção da igualdade que se reflectem, aliás, em outras polí-ticas públicas:

a) «liberdade inclusiva»: na Finisterra nº44, encontra-se um texto de Joaquim Jorge Veiguinha criticando o livro de Alex Callinicos Contra a Terceira Via. Veiguinha critica a Callinicos várias afirmações muito gerais sobre a Terceira Via mas, mais do que isso, interessa aqui concepção de igualdade que defende ao terminar a sua recensão: «Uma comunidade baseada numa liberdade inclusiva entendida como recíproco aperfeiçoamento de uns pelos outros e não como competição de uns contra os outros só possível no contexto de uma igualdade relativa de condições sociais.» (p. 184). O que significa «igualdade relativa», aqui? Veiguinha critica Callinicos mas sem defender Blair e Giddens. Na verdade, apoia muitas das críticas do livro à actual governação trabalhista: repudia a «responsabilidade» como critério moral que se sobrepõe aos direitos legais; crítica o «conceito minimalista de igualdade»

2 Este texto, que adapta uma intervenção no primeiro curso de formação da Fundação Res Pública (Fevereiro 2009), partilha ainda algumas secções (naturalmente reescritas) com uma apresentação ao seminário de filosofia política do Cento de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho sobre o tema da igualdade em Liberdade (30 de Janeiro 2009). Contudo, os modelos apresentados nesta secção final reflectem de forma sumária materiais de trabalho para o congresso internacional a realizar entre 29 e 31 de Outubro, na Biblioteca Nacional de Portugal (Lisboa) subordinado ao tema «igualdade de oportunidades», em cuja organização estou envolvido

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de Labour e SPD (dotação à partida, aliás reduzida a meios económicos em vez de culturais/cognitivos); crítica as teorias liberais (de Locke a Rawls) que reconhecem desigualdades legítimas (as que beneficiam os mais fracos).

Estas críticas são desiguais: a «responsabildiade» como critério moral é um problema, mas não pelas referências indirectas a Weber que Veiguinha faz, e sim pela sua afirmação contra direito sociais (restará provar essa oposição, claro, mas pelo menos ocasionalmente ela existe); a crítica ao conceito minimalisa de igualdade faz todo o sentido, mas resta saber se é justa para os visados no que concerne à alegada falta de empowerment; e a crítica ao liberalismo defensor de desigualdades legítimas tem de atender à existência de desigualdades que toda a sociedade (e não apenas os conservadores) entende não serem problemáticas, o que bastará para que o socialismo democrático não interfira nelas. Também aqui a maximização é um sonho.

Além disso, modelos de «liberdade inclusiva» precisam ainda de defini-ções: além de se determinar o que é em termos positivos «igualdade relativa», também será útil precisar o que é a «revolução das sensibilidades» e a «comuni-dade» em que tudo isto ocorre. Dito assim, parece um programa pré-marxista. O que não é necessariamente mau, mas talvez seja demasiado pouco.

b) «igualitarismo aleatório», tradução minha de «luck egalitarianism», designa outra corrente teórica cuja influência nos debates anglófonos torna previsível que venha a influenciar a teorização sobre igualdade de oprtu-nidades; ela reduz a promoção da igualdade à igualdade de oportunidades à partida, atendendo contudo a aspectos materiais e culturais. Responde portanto à objecção de Veiguinha ao «igualitarismo minimalista». Contudo, desinteressa-se dos resultados da vida social posterior, validando desigualdades que venham a surgir durante esta vida social. Esta corrente de pensamento, influente nos debates teóricos de língua inglesa (ver um resumo em White 2007), distingue entre desigualdades causadas aleatoriamente e as desigual-dades causadas por escolhas voluntárias. Estamos aqui próximos daquela «responsabilidade» moral que desagrada a «inclusivistas» como Veiguinha. E com razão, creio: esta concepção faz tábua rasa da realidade social em que as escolhas individuais se inserem3, quer no imediato (i.e., as escolhas são

3 Embora se deva ressalvar que estas questões já suscitam debates e variantes mitigadas do «luck egalitarianism».

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condicionadas socialmente), quer a prazo (as nossas escolhas afectam-nos mas também comprometem os vindouros). Vale a pena não rejeitar liminarmente este modo de pensar, contudo: ele é influente por motivos teóricos (desen-volvem-se modelos bastante elaborados de diferentes tipos de recursos) e politicamente pode vir a ser explorado por quem, à Esquerda, quiser persuadir o centro-direita a aderir a políticas promotoras de igualdade (resta saber se é o melhor argumento para o fazer, mas isso só é decidível em concreto).

c) libertarismo, defesa da igualdade na sua forma mais radical. Sintomaticamente, existe à Esquerda e à Direita, partilhando ambas as formas a concepção de igual-dade como não obstrução por parte do Estado ou de instituições em geral à fruição de si e do seu trabalho. Como afirmou um teórico do libertarismo de Direita (Nozick, Anarchy, State and Utopia), «trabalho sujeito a impostos é igual a escravatura». Aqui tende-se a igualizar os indivíduos reduzindo-os a um estado de natureza permanente, no qual a sociedade ou é ignorada ou é dada como aproblemática. O libertarismo defende a total liberdade e dá assim por adquirida a igualdade de todos, como se a vida humana não se organizasse em associações intermédias de filiação múltipla (família, amizades, vizinhança, trabalho) e estas não condicionassem (promovendo e excluindo diferentes possibilidades) a vivência da liberdade individual. De novo, é essencialmente um debate univer-sitário, mas a individualismo inevitável nas sociedades modernas potencia a sua influência (já real nos EUA).

Existe recentemente um «libertarismo de Esquerda», que soma à defesa absoluta do direito à autopropriedade uma preocupação com a dimensão supra individual, na forma de cuidado com o bem comum de todos, os recursos natu-rais. Nesta versão (Otsuka 2003), além do direito aos nossos recursos ser absoltuo (ninguém dispõe da nossa força de trabalho), um direito à partilha dos recursos comuns é também absoluto. As limitações deste modelo, que se centra numa espécie de «eterno presente» muito comum nas ciências sociais e numa lineari-dade de modelos nos quais a ambiguidade da vida social nunca aparece, são fáceis de ver: também ele ignora o que há de dinâmico e não apenas mecânico na relação entre o individual e o colectivo, também ele concebe o colectivo como uma soma de indivíduos cujas características são decomponíveis sem ambiguidades nem contradições (os condenados a penas de prisão trabalham para sustentar os que sofrem de deficiências, tudo perfeitamente unidimensional e estanque).

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d) liberalismo de Esquerda, também conhecido por social democracia ou socialismo democrático é uma tradição também e com possibilidades de se renovar.

Um trabalho recente (Giddens e Diamond 2005) apresenta ideias para um «novo igualitarismo» num conjunto de trabalhos muito diversos mas todos operando dentro das linhas já enunciadas. Destaco apenas algumas ideias chave do pensamento actual sobre igualdade em liberdade:

1) A ideia de que a promoção de igualdade é hoje comum a Esquerda e Direita, com matizes claramente diversos, tal como a ideia de escolha (de escola para filhos ou de unidade de cuidados de saúde a utilizar) foi introduzida pela Direita e já é aceite pela Esquerda (por ser integrável na sua cultura liberal);2) Esta transversalidade ideológica, ainda que matizada, não obrigada a «pensamento único» nenhum, não é preciso gostar subjectivamente da promoção política da igualdade para poder conviver com ela enquanto cidadão, sendo mesmo a cidadania a capacidade de contribuir para alterar livremente essa e qualquer outra política;3) O reconhecimento por parte de entidades públicas de direitos sociais que promovem a igualdade entre as pessoas é gradual e limitado no tempo e noutras condições (casos da admissão à cidadania, por exemplo) e que isto mesmo pode ser combinado com a dimensão internacional de coordenação dessas políticas, de modo a que a promoção da igualdade seja uma questão da maioria da população, de diferentes modos e de diferentes formas, e não de uma série mutável de minorias;4) Igualdade para todos, portanto, significa atenção à emergência de novos «actores sociais» como mulheres, homossexuais, etc., situação de facto que não pode ser descurada nem deve ser reduzida a uma série de «single issue policies»; a igualdade é questão da maioria pela sua própria natureza comum, não pela simples adição de minorias; 5) Além de novos actores sociais, as políticas em favor da igualdade precisam avaliar os seus resultados para se legitimarem e se aperfeiçoarem: além de políticas sectoriais distributivas habituais, na forma de apoios económicos e de programa educativos específicos para determinados públicos, novas áreas da vida em sociedade suscitam desafios às políticas de igualdade (áreas como a saúde, tornada universal), tanto se tomadas

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isoladamente como na sua relação com as políticas já existentes;6) Estudos recentes (cf. pp. 183-199 em Giddens e Diamond 2005) indicam que, em vez de nos concentrarmos exclusivamente na obtenção de patamares de igualdade gerais, prestemos igual tenção à redução de desigualdades concretas em subsectores e em graus intermédios, pois há já dados que comprovam o efeito sensível dessas reduções mais restritas da desigualdade no trabalho mais amplo pela promoção da igualdade, quer a nível prático quer a nível da validação do pensamento político e social «igualitário» (no caso do emprego esta abordagem segmen-tada é decisiva, pois apesar da insistência meritocrática na selecção dos melhores, muitas vezes é já no exercício de funções que de forma siste-mática se sofrem desigualdades de tratamento e oportunidades que subvertem o princípio geral de igualdade, por vezes de forma informal e portanto praticamente insusceptíveis de comprovação e de correcção pelo sistema de justiça);7) Incentivar por via legal (política económica) a co-propriedade das empresas pelos seus trabalhadores, de acordo com os dados existentes sobre empresas nessa situação serem marcadas por uma maior paridade salarial e por um maior capital social, com consequentes benefícios individuais e colectivos (cf. idem);8) Diferenciar políticas de coesão social enunciando os seus crité-rios políticos (promoção do emprego, modernização dos sectores de actividade económica, etc.), não apenas para evitar o alargamento da diferença entre os mais ricos e os mais pobres mas também para impedir um empobrecimento das classes médias, por um lado, ou, por outro, a formação de um grupo menos privilegiado face a toda a sociedade (o pesadelo ético da meritocracia);9) Actuar no imediato contra os factores de reincidência na pobreza (sair dela para voltar a ela, quer em aspectos materiais, de vencimento, quer em aspectos pessoais, de integração social) e no longo prazo para garantir que iguais oportunidades hoje não reproduzem para as gera-ções futuras apenas os resultados actuais (i.e., prevenir que o sucesso profissional da presente geração condicione de forma tão directa como até aqui as trajectórias da próxima geração);10) Não esperar da «sociedade do conhecimento» a solução para os

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males presentes, antes usá-la como instrumento para os corrigir (p. ex., campanhas para informar sobre o uso dos serviços públicos por parte de quem deles mais necessita, os mais pobres, em vez de por parte daqueles que melhor sabem utilizá-los, a classe média, como hoje se verifica);11) Valorização da responsabilidade individual (e familiar) no combate a situações de desigualdade social, da responsabilidade pública na criação de instrumentos para corrigir essa desigualdade, e da responsabilidade dos agentes económicos privados em não explorar as desigualdades em proveito próprio (não apenas evitar cartelização, evitar critérios de gestão únicos como a maximização dos lucros em matérias intrinseca-mente complexas, económicas e sociais).

Estas são linhas pelo menos possíveis de evolução e que se integram naquilo que alguma literatura académica denomina «democracia cívica», que será talvez a noção mais adequada para designar este mesmo espírito de igualdade complexa, pensada a vários níveis (individual, social e estatal) e em vários momentos (nas oportunidades de partida, na competição justa e no acautela-mento dos efeitos futuros).

Democracia cívica é então o resultado do triunfo das aspirações da socie-dade civil moderna, que impôs ao poder de Estado um conjunto de preceitos políticos (além de morais) na regulação das relações sociais. Esta ideologia democrática encontra no socialismo, bem entendido no democrático, a sua expressão mais consequente. E, no caso português, em linha com as preocupa-ções cívicas que moviam os socialistas europeus desde o século XIX, contando também com os contributos de portugueses – de Antero a Jaime Cortesão, António Sérgio, até hoje.

ESTADO E UNIÃO EUROPEIA: IDEOLOGIAS E DEBATE INTELECTUAL EM TORNO DO SOCIALISMO E DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES

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CULTURA

Manifestopela inscrição democrática da culturana sociedade portuguesaFernando Mora Ramos e Joaquim Jorge Veiguinha

1. Inscrever será incorporar, socializar organicamente aquele conjunto de bens imateriais que designamos por cultura e que expressam entendimentos do mundo, olhares específicos consubstanciados de forma privilegiada na Língua, raiz de sermos e continente da nossa Identidade reactiva e criadora.

2. A questão, entre nós, europeus genéticos na geografia, no discurso politizado da integração europeia e periféricos na realidade, em boa verdade americanizados de segunda, é a da compreensão ainda não alcançada das razões de uma dada “coerência” das circunstâncias estruturalmente repetidas do nosso escandaloso atraso de desenvolvimento cultural e modelo social quando, como europeus portu-gueses nos comparamos aos Europeus.

3. Se nos salários a discrepância entra pelos olhos dentro, como na percepção do que seja a “qualidade de vida”, já na cultura o assunto é sempre tratado com uma ambivalência que torna a questão cultural uma inexistência, um não lugar, um não assunto – estranhamente não há neste caso, nem no discurso político, ignorante, nem nos média, afastados de um discurso íntegro sobre o país cultural e o que isso será e seria, a demonstração reflexiva e objectiva do que é óbvio: a diferença radical dos sectores públicos da cultura entre Portugal e as Europas, do centro ao leste e mesmo ao sul.

4. Quando falamos da necessidade de inscrição da cultura estamos a falar de uma necessidade nossa de criar as condições estruturais, as práticas, as instituições e as dinâmicas de fruição e criação cultural e artística, numa escala que, determinada publicamente e aberta à iniciativa civil, permita aos portugueses o exercício de uma cidadania activa, esteio de um aprofundamento da democracia como construção do seu futuro.

5. Essa escala confunde-se com a criação de um modelo social que se funde na superação do nosso atraso relativamente aos padrões de vida e de democracia quoti-diana da Europa paradigmática, o que hoje é porventura falar dos momentos mais felizes do seu Estado Social para trás e da necessidade de criar uma Europa do bem comum altamente qualificada para a frente, na Europa por vir.

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6. Nesta visão, cultura serão todas aquelas práticas que cruzam um específico olhar veiculado pelos valores culturais gerados na língua que falamos, com os conteúdos simbólicos e intelectuais que emergem do património histórico vivi-ficável e com a criação contemporânea, novos entendimentos constantemente experimentados que se ensaiam nas novas realidades e reinterpretações do passado que o futuro sempre gera.

7. Assim sendo, falamos da necessidade de inscrever como práticas de acesso generalizado na escola e na sociedade, as artes da cena, do som e da imagem, assim como o acesso ao livro e à leitura, necessária parte integrante da formação básica obrigatória de todos os portugueses, mas também da sua inscrição directamente fruível na vida real.

8. A cultura, sob a forma de práticas identitárias e como patrimónios globais, históricos e contemporâneos, universais e europeus, deveria ser uma constante da vida, à mão de semear como a água e a electricidade. Não tem sentido que sejamos excluídos da obra de Camões, como não tem sentido desconhecer Shakespeare se essa possibilidade é real e alcançável – trata-se de um esbulho, esse impedimento ou essa ausência da possibilidade de fruir.

9. E uma verdadeira inscrição não se remenda, não há pílula cultural possível, não há alternativa a ler e saber ler, como leitor, como espectador, como cidadão e sujeito, como animal político. Esses modos de ler têm tempos de maturação que contrariam a velocidade instalada no fluxo comunicacional global que, na reali-dade, gera as mecânicas do funcional mas impede a reflexão e a emergência do que em nós pode ser pensamento.

10. Esse socialismo da cultura integral do indivíduo será o verdadeiro laicismo libertador, um socialismo cujo paradigma assenta numa profunda qualificação cultural dos portugueses, no exercício de um poder da sociedade que se genera-lize enquanto hegemonia cultural, poder da maioria qualificada sobre a barbárie financeira e a selvajaria de uma sociedade desregulada pelos poderes – de facto sem controle e mais poderosos que os Estados – de meia dúzia de especuladores planetários.

11. Que nenhum português seja excluído da possibilidade e da capacidade de ler, de ler livros, de ler teatro, de ler arquitectura, de ler cinema, de ler a própria realidade. Este princípio, imperativo ético e constitucional, certamente factor de qualificação do Portugal por vir contido nessa possibilidade de sermos Europeus mais que oficialmente e na moeda, pressupõe a existência de um vasto sector de

CONVENÇÃO CULTURAL PELA INSCRIÇÃO DEMOCRÁTICA DA CULTURA NA SOCIEDADE PORTUGUESA FERNANDO MORA RAMOS E JOAQUIM JORGE VEIGUINHA

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actividades artísticas criativas como um serviço público organizado pelo Estado que garanta e materialize a consigna constitucional do exercício da criação artística contemporânea (que alimenta e dinamiza a memória patrimonial além da sua actu-alidade interventiva), condição de realização da consigna constitucional do acesso generalizado à fruição cultural, isto é, a uma cidadania consciente de si mesma, da realidade e da democracia compatível com a chamada sociedade do conhecimento e da criatividade.

12. Que sociedade será a sociedade do conhecimento e da criatividade sem a cultura?

13. A liberdade dos portugueses depende do seu grau de independência inte-lectual, criativa e cognitiva, e esse só o Estado laico pode propiciar através de um conjunto qualificado de estruturas de criação artística e cultural que complementem o trabalho da escola e que materializem no todo nacional o acesso a uma verdadeira cultura elitária para todos

14. Essa cultura será também e muito especificamente aquela que as gerações anteriores nos legaram, desde a infância da nossa história à sua primeira moder-nidade, através dos clássicos e clássicos contemporâneos, de Gil Vicente a Pessoa, através das realizações materiais e imateriais de uma história singular, mas também a que é criada e reinventada pelos criadores e pensadores portugueses contempo-râneos, de José Gil a Paula Rego, de Maria João Pires ao professor Damásio, de Ricardo Pais a Siza Vieira, de Pedro Carneiro a Eduardo Lourenço, de João Vieira a Luís Miguel Cintra e a tantos outros criadores.

15. Nesta visão de um contributo especificamente nosso, enriquecido pelos tais mundos que nos descobriram e descobrimos, mundividência gerada na hibridação desde a primeira hora, há que integrar os criadores europeus e universais, nas mais diversas áreas das artes e do conhecimento. O que desde sempre também tentámos ser – basta pensar na dimensão europeia da nossa cultura científica quinhentista e em parti-cular no teatro de Gil Vicente, o Shakespeare de um tempo ainda preso às “trevas”.

16. Se existem áreas do saber e do conhecimento restritas, o mesmo não é verdade relativamente à cultura. Não só a capacidade cultural é uma potencialidade de todos, como também é verdade que o conhecimento das artes é generalizável do mesmo modo que a popularização da ciência é uma preocupação acertada. O que é verdade é que ciência e tecnologia sem cultura artística humanista são, como propósito e projecto, aberrações prospectivas.

17. Só a cultura, com a sua diversidade de raízes e de fenomenologias material-

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mente concretas, pode fertilizar o olhar científico. Uma, a ciência – e a tecnologia – sem a outra, a cultura, são como um jardim sem água, a invenção sem a compre-ensão do quadro amplo da sua inscrição humana, o nuclear sem a paz.

18. A cultura não se reduz à dimensão estética nem consiste exclusivamente nas obras de arte. Se assim fosse, até alguns nazis pertencentes às SS, melómanos e eruditos, podiam ser considerados homens cultos. A dimensão fundamental da cultura não se reduz às suas obras - arquitéctónicas, escultóricas pictóricas, teatrais, cinematográficas e literárias -, mas consiste no alargamento e no enriquecimento dos horizontes dos seres humanos. Já humanizada pelo trabalho, pela práxis produtiva, a realidade ganha uma nova dimensão, já que todas a cultura projecta o homem para além do presente imediato, criando uma novo mundo onde os seres humanos se reconhecem e alcançam uma dimensão universal.

19. A cultura não é a vida, mas não pode estar separada da vida. Para que uma sociedade seja culta não basta que tenha grandes monumentos, meros símbolos patrimoniais das suas façanhas, das suas conquistas heróicas, dos seus grandes criadores ou da sua identidade. A identidade só existe verdadeiramente através do reconhecimento da diversidade. E este reconhecimento tem duas dimensões importantes. A primeira diz respeito à nação e a segunda ao indivíduo. A cultura de uma nação jamais pode ser exclusiva, já que a sua identidade só pode constituir-se e enriquecer-se através da relação com outras culturas a quem reconhece uma igual dignidade. Por sua vez, a cultura deve ser parte integrante da vida quotidiana do indivíduo, formando o seu gosto, refinando a sua sensibilidade e concebendo o outro não como um competidor, mas como um igual, como um ser que partilha um destino comum.

20. É certo que a cultura não é um modo de vida, mas faz parte do modo de vida. Uma sociedade culta não ostenta gadgets, não concebe a inovação tecnológica como um fim em si próprio, mas como um meio de libertação do homem das tarefas, penosas, repetitivas e mecânicas, participa nas decisões que afectam o destino de todos, desenvolve uma dimensão cívica que combina a autodeterminação do indi-víduo com o sentido da responsabilidade colectiva. Uma sociedade culta enfrenta com coragem os seus desafios, não tolera as injustiças sociais e considera que a liber-dade de cada um é a condição da liberdade de todos. Ninguém melhor que Altiero Spinelli, o pai do federalismo europeu, exprimiu a dimensão essencial da cultura, que poderá servir de leitmotiv a este Manifesto: “O país em que gostamos de nos reconhecer é feito de condutas, não de monumentos.”

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Livros, Percursos e Imaginários EruditosJoão Soares Santos

1. Os relatos de viagens e as informações sobre gentes e lugares distantes, permitem analisar a amplitude íntima daqueles que os redigiram. Na descrição de paragens e de populações habitando territórios longínquos intrometeram-se elementos da subjectividade dos seus autores. O registo do viandante acerca dos interlocutores contactados, imiscui-se com os dados culturais que transporta, com a predisposição, os motivos que o levaram a partir e a transitar de um local para outro. A narrativa das suas experiências em terras estranhas, o testemunho dos acontecimentos, os detalhes sobre as paisagens e peculiaridades das sociedades corresponde a uma selecção ajustada em função dos seus conhecimentos e dos efeitos que se pretendem suscitar no destinatário. A compreensão e transmissão das ocorrências, surge sempre pressionada pelas referências memorizadas, pela modelação intelectual do autor. O que ele recolhe, assinala e reflecte e, por vezes, a sua intenção em convencer o receptor da credibilidade das suas observações, da escrupulosa exactidão do discurso em relação às evidências, não deixa de ser uma decifração, uma interpretação, uma afirmação da sua alteridade.

As grandes religiões e os seus legados impulsionam numerosos itinerários peregrinos, numa diligência disseminadora das doutrinas ou para encontrar os sítios sagrados em que viveram, jornadearam e pregaram as figuras tutelares desses valores e ideias. Nascido em Tânger, Ibn Battuta (1304-1377), antes de iniciar um extraordinário percurso por terra e mar abrangendo o Extremo Oriente, deslocou-se em 1325 para Meca em romagem devocional. Na sua extensa Rihla, de Meca às estepes Russas, à Índia, Indonésia e China ele anota, quando atinge a cidade de Khansa (Hangzhou), na actual província de Zhejiang, na China, o seu deslumbramento perante esta urbe, a maior “que os seus olhos viram na face da

«Many cities did he visit, and many were nations with whose manners and customs he was acquainted. »

Homero

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terra.”A dinâmica e variedade dos habitantes bem como as dimensões da localidade impressionaram este árabe, salientando a sua divisão em seis secções onde residiam, segundo ele, cristãos, turcos adoradores do sol e muçulmanos. No século anterior Marco Polo, os franciscanos Guillaume de Rubruck e Odoric de Pordenone comprovaram a presença de comunidades nestorianas a par de budistas, islâmicas e hindus na Ásia Central e China. Marco Polo alude à fé nestoriana dos príncipes turcos Öngüt e ao eclectismo religioso de Khubilai Khan, honrando e prestando veneração a Shakyamuni, Jesus Cristo, Maomé e Moisés. Éditos promulgados por dirigentes mongóis como Ögödei (reinou entre 1229 e 1241), Möngke (reinou entre 1251 e 1259) e Khubilai (reinou entre 1260 e 1294) isentavam de impostos e concediam vantagens especiais a monges budistas, taoístas, nestorianos e islâmicos. A mãe de Möngke, Sorghaghtani Beki, nora de Chinggis Khan, era cristã nestoriana e mecenas de várias religiões.

A propagação do budismo pela Ásia terá acontecido cedo, embora de um modo marginal. As directrizes do próprio Gautama aos seus adeptos indicavam um desígnio irradiador. Ele mesmo, segundo as tradições, visitou o Sri Lanka e a Birmânia. «Ide monges e viajai para o bem-estar e felicidade do povo. Por compaixão pelo mundo, pelo benefício, pelo bem-estar e felicidade dos deuses e do Homem. Que nenhum de vós siga o mesmo caminho. Ensinem a Doutrina, monges que é boa no seu princípio, meio e fim, com o seu significado e letra, integral e simples e proclamem a pura vida sagrada. Existem seres naturalmente com pouca paixão que definham por não ouvir a Doutrina: esses saberão compreendê-la.»1 Terá sido esta a vontade proferida por Buda aos sessenta primeiros monges por si convertidos.

No século I ou II, Asvaghosha, o décimo segundo patriarca budista pela escola de Yogachara, deslocou-se pela Índia indagando e coligindo histórias acerca do seu mestre Gautama, originando a redacção de um poema biográfico em sânscrito («Buddacharita Kavya Sutra»), traduzido para chinês (entre 414 e 421) por Dharmaraksha (nome indiano de Zhu Fahu) e por Jnana Gupta (587). Este texto terá sido recitado pelo seu autor nas suas deambulações instrutivas pela Índia. Uma das versões chinesas desta obra, no canto de louvor ao Nirvana, é exposto o método de Gautama predicar, de veicular as suas ideias em circunstâncias de errância peregrina. «Indo para diante entre os homens, convertendo aqueles ainda não convertidos; aqueles que ainda não viram a verdade de modo a que a vejam! Todos aqueles que praticam um falso método de religião, fazendo-lhes chegar princípios profundos da sua religião! Pregando as doutrinas do nascimento, da morte e da

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impermanência; declarando que sem um mestre que ensine não haverá felicidade! Erigindo o padrão da sua grande fama, vencendo e destruindo os exércitos de Mara! Avançando até ao ponto de ficar indiferente ao prazer ou à dor, não se importar com a vida, desejando apenas serenidade. Fazer com que aqueles ainda não convertidos obtenham conversão! Aqueles ainda não salvos possam ser salvos! Aqueles ainda sem sossego possam encontrar sossego! Aqueles ainda não iluminados possam ser iluminados.»2

Desde os primórdios que os ensinamentos de Shakyamuni, ansiando por respostas sobre a natureza e o destino humano, cativaram e agregaram seguidores laicos e monásticos. Uma ordem religiosa de monges austeros, mendicantes e itinerantes que compreendeu, na sua génese, sessenta membros, livres dos dez vínculos do Karman, por isso intitulados Arhats. A mensagem do mestre aos discípulos, segundo Asvaghosha foi que partissem «através dos países para converter todos aqueles ainda não convertidos; ensinem em qualquer parte do mundo que permaneça calcinada pelo sofrimento. Instruam em todos os lugares; instruam quem estiver privado da instrução correcta. Ide, pois! Cada um viajando sozinho; preenchido pela compaixão, ide! Salvai e recebei.» 3

Ashoka (c. 272 - c. 231 a.C.), terceiro imperador da dinastia Maurya de Magadha, asseverou a sua convicção na Lei da Piedade (budismo) e procurou inculcá-la nos seus oficiais e reinos vizinhos. Com esse intuito ordenou o envio de missionários encarregues de transmitir a doutrina a cinco monarcas gregos (Yavanas), Alexandre (Alikasudaro) de Epiro, Antígono (Amtekina) Gonatas da Macedónia, Antíoco II da Síria, Ptolomeu II (Turamayo) do Egipto e Magas (Maka) de Cirene (Líbia). As crónicas de Ceilão mencionavam emissários enviados a esta ilha e à Birmânia, península Malaia e Samatra (Suvarnabhumi). A missão a Ceilão era liderada pelo príncipe Mahendra, seu filho, que converteu o monarca local e quarenta mil dos seus súbditos.

Uma lenda menciona que o imperador Ming Di, da dinastia Han (governou entre 58 e 75), foi certa vez perturbado por um sonho onde aparecia uma entidade sobrenatural dourada e com configuração humana. Inquirindo sobre o significado desta percepção onírica, os sábios que reuniu em conselho retorquiram-lhe que deveria ser uma divindade exógena designada por Buda. O soberano reuniu e expediu para a Índia, por volta do ano 65, um grupo de dezoito emissários incumbidos de investigar e obter elucidação sobre esta personalidade e os seus ensinamentos. Alguns anos depois eles retornaram com dois mestres indianos,

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Kashyapa Matanga e Dharmaratna, um cavalo branco, uma imagem esculpida de Buda e um exemplar do «Sutra dos Quarenta e dois Parágrafos» ou «Secções», obra de tendência Hinayana («Dvachatvarimshat Khanda Sutra» ou «Si Shi Er Zhang Jing»). Numerosos textos do Grande Veículo (Mahayana) começaram a ser transpostos para chinês desde o séc. II. Intensificou-se o trânsito de peregrinos entre a China, a Índia e outros pontos da Ásia. Da Índia ausentaram-se, Sanghabuti, Dharmadhara (ou Dharmaprajna) e Gautamasangha (séc. IV), Dharmayasha, Buddhayasha, Vimalaksha, Buddhabhadra, Kumarajiva e Gunavarman (séc IV-V), Buddhajiva, Punyatrata, Buddhavarman e Dharmamitra (séc. V), Gunavriddhi, Paramartha, Dharmaruchi e Bodhidharma (séc. V-VI), Dharmagupta (séc. VI-VII), Ratnachinta e Dharmananda (séc. VII), Gautama Siddhanta, Shubhakarasimha e Amoghavajra (séc. VII-VIII) e Dharmakara (séc. VIII-IX), entre outros nomes conhecidos e muitos anónimos. Da China para a Índia e para outras paragens em busca de esclarecimento, manuscritos para tradução e relíquias, seguindo por uma rota marítima, terrestre ou ambas, dirigiram-se Zhang Quian (séc. II), Zhu Shixing de Henan e Zhu Fahu de Dunhuang (séc. III), Sengchun e Tanchong (séc. IV), Tanmong (séc. IV), Faxian (340 - c. 413), Baoyun (séc. IV-V), Fajing e Faling (séc. V), Huirui (séc. V), Zhimeng, Fayong, Zhiyan e Huilan (séc. V) que seguem para a Índia com o desígnio de aprender sânscrito, estudar com um mestre reputado e trazer conhecimentos para a China, Songyun e Huisheng (séc. VI) enviados em 518 pela imperatriz Wu, da dinastia Wei do Norte, com a incumbência de fazer doações aos santuários budistas e colectar textos da orientação Mahayana, Xuanzang (c. 602-664), Yijing (634 ou 635-713), Xiuan Zhao (séc. VII), Hye Ch’o ou Hui Chao (c. 704 - c.780), Changchun (1148-1227) e Li Zhichang, monges taoístas, Zhou Daguan (séc XIII), entre outros nomes como Ming Yuan, Yi Lang, Zhang Min, Dao Lin, Yun Qi, Da Cheng Deng, Zhe Heng e Wu Hing. O imperador Liang Wudi (502-550) apelou ao rei Gupta no poder que remetesse para Nanjing três mil monges budistas, pedido esse que foi correspondido. Vários japoneses deslocaram-se para a China com o desígnio de aprofundar a sua erudição acerca destes princípios filosófico - religiosos. O príncipe Shôtoku (574-622) mandou, em 607, uma embaixada à corte Sui, chinesa, principiando assim contactos diplomáticos cujo prolongamento temporal proporcionou permutas culturais proveitosas, principalmente para o Japão. O budismo entrou neste país através da Coreia. A «Crónica do Japão» («Nihon Shoki») realça que o rei de Paegche, Syong-Myong na expectativa do apoio militar de Kimmei Tennô contra os estados

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coreanos hostis, endereçou-lhe em 538 uma escultura de bronze, revestida com uma camada áurea, retratando Buda, juntamente com estandartes guarda-sóis e Sutras budistas. Acompanhando as ofertas ele, numa carta, enaltece esta doutrina enfatizando a vontade de a disseminar.

Dos viajantes peregrinos nipónicos podemos salientar Dôshô (629-700) Chitsû (séc. VIII), Saichô (Mitsukube Hirono) que recebeu o título póstumo de Dengyô Daishi (767-822) e Kûkai (Kôbô Daishi, 774-835).

Alguns budistas chineses legaram-nos interessantes narrativas descrevendo as adversidades, os locais, os hábitos, as características humanas e geográficas e os contactos estabelecidos ao longo das suas rotas. Faxian, Songyun, Huisheng, Yijing, Xuanzang, Hye Ch’o e Changchun foram alguns dos mais distintos. Duas obras que compendiam as façanhas destes devotos foram as «Memórias de Eminentes Monges», datada de 519 e «Memórias de Monges Maravilhosos», esta última atribuída ao terceiro imperador da dinastia Ming, Yong Le (1402-1424). As compilações de informação obtidas de viajantes anónimos originaram a «Memória sobre os Países Ocidentais» («Xiyu Zhi») de Dao’na (morto em 385) da qual só restam fragmentos.

Em Nanjing, Faxian recordou as peripécias dos seus percursos no «Registo dos Reinos Budistas» ou «Memória dos Reinos Budistas» («Foguo Ji»), também com o título alternativo de «Relato de Faxian» («Gao Seng Faxian Zhuan»), cujas primeiras traduções em línguas europeias foram de Abel Rémusat (Paris, 1836), Samuel Beal (Londres, 1869 e 1884), James Legge (Oxford, 1886), H. A. Giles (Xangai e Londres, 1887 e Cambridge, 1923). Songyun e Huisheng compõem as crónicas da sua jornada conjunta em, respectivamente, «Onze países a Oeste do Reino de Wei» («Weiguo Xi Shiyi Guo») e «Relação das Viagens de Huisheng» («Huisheng Xing Zhuan»), citadas na obra «Descrição dos Templos Budistas de Luoyang» («Luoyang Qielan Ji»), datada de 547 e da autoria de Yang Xianzhi, com traduções de Edouard Chavannes (Hanói, 1903) e Samuel Beal (Londres, 1869 e 1884). Bianji, discípulo de Xuanzang, redigiu as «Memórias sobre os Países Ocidentais na Época dos Grandes Tang» («Datang Xiyu Ji») em 646, versando sobre as viagens vividas e proferidas pelo seu mestre, traduzidas no Ocidente por Stanislas Julian (Paris, 1857-1858), Samuel Beal (Londres, 1884), T. Waters (Londres, 1905) e Catherine Meuwese (Paris, 1968). Huili caligrafou a biografia deste mesmo monge por volta de 664, revista em 668 por Yancong, designada por «A Vida de Xuanzang» («Daci’ensi Sanzang Fashi Zhuan»), traduzida

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por Samuel Beal (Londres, 1911). Daoxuan em 650 compôs a «Monografia do País dos Sakya» («Shijia Fang Zhi») com dados reportados por Xuanzang. Em Srivijaya (actual Palembang, na ilha de Sumatra), Yijing redigiu a «Relação sobre o Budismo, enviada dos Mares do Sul» («Nanhai Jigui Neifa Zhan»), descrevendo o budismo na índia e no Sudeste Asiático e a «Relação dos Monges Eminentes que procuraram a Lei nos Países Ocidentais na Época dos Grandes Tang» («Datang Xiyu Qiufa Gaoseng Zhuan»), relatando a vida de 56 peregrinos chineses que entre a governação de Taizong (626-649) e da imperatriz Wu Zetian (c. 624-705) se deslocaram para países budista. Ambas as obras foram remetidas para a China em 692, havendo uma tradução de J. Takamusu (Oxford, 1896). Hye Ch’o, de origem coreana, concedeu-nos a «Memória duma Peregrinação às cinco Regiões da Índia» («Wang O-Ch’onch’ukkuk Chon» ou «Hui Chao Wang Wu Dian Zhu Guo Zhuan»), cujo manuscrito fragmentado foi descoberto por Paul Pelliot em 1908, no espólio da caverna dos mil Budas em Dunhuang, na actual província de Gansu, próximo do deserto de Gobi. O texto foi traduzido pelo próprio Pelliot, por Walter Fuchs (Berlim, 1939), Han Sun Yang, Yun Hua Jan, Iida Shotaro e Laurence Preston (Seul, sem data). A tradução dos originais em sânscrito e pali foram a principal actividade destes eruditos e o impacto destes idiomas no chinês literário acabou por ser significativo. «A estrutura da frase chinesa veio a tornar-se mais flexível de modo a seguir o significado e por vezes a sintaxe dos textos originais; o paralelismo e o equilíbrio rítmico, tão importantes no estilo clássico, vieram a ser abandonados para um curso mais livre; o vocabulário era muito menos recatado, chegando até a pedir emprestado o chinês vernacular. A mesma influência libertadora fez-se sentir na poesia. Os versos em sânscrito eram transmitidos em verso branco, sem rima e indiferente ao contraponto tónico e a dispositivos de simetria e antítese, comuns na poesia clássica chinesa. Outra característica específica da literatura indiana que veio a ser adoptada como característica regular no drama e na novela chinesa foi a mistura de verso e prosa. As histórias liberalmente incluídas nas escrituras dos indianos, que são narradores natos, contribuíram para o desenvolvimento da literatura narrativa na China, onde a forma épica foi completamente negligenciada.»4

Li Zhichang coligiu para literatura os acontecimentos de viagem experimentados pelo seu mestre Changchun (1148-1227) em «Viagem para o Ocidente do Monge Taoísta Changchun» («Changchun Zhenren Xiyoulu») em 1228, traduzido por Artur Waley («The Travels of an Alchemist»).

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O proselitismo budista e o afã chinês de ressumar os textos de proveniência indiana para o idioma autóctone resultaram numa mobilização extraordinária, envolvendo inúmeros monges eruditos das duas nacionalidades. Consta que Kumarajiva (344-413 ou 360-415), traduziu mais de meia centena de obras em sânscrito com o apoio de Vimalaksha e Yasa, mormente, o «Lótus da Verdadeira Lei» («Saddharmapundarika Sutra»), concebido por volta do século III, com uma versão chinesa anterior (286) da autoria de Dharmaraksha, o «Sutra do Buda Amithaba» («Amithaba Sutra»), também traduzido ulteriormente por Xuanzang, o «Sermão de Virmalakirti» («Virmalakirtinirdesha Sutra»), o «Tratado dos Cem Versos» («Shata Shastra») de Aryadeva (séc. III) entre outras, tendo igualmente revisto traduções já efectuadas. Os anais chineses anotam o nome de um monge de Caxemira (Tian Sizai) que, ao serviço do imperador, coordenou uma equipa que transliterou mais de duzentos textos.

Os acidentados percursos para a Ásia Central em busca das prelecções sobre a Lei (Dharma em sânscrito ou Qiufa em chinês), sobre o verdadeiro entendimento dos princípios em que se fundamenta o conhecimento budista e dos escritos das várias direcções de pensamento que o complementam, assim como a procura de homens doutos que soubessem explicar tópicos obscuros ou de discórdia, aptos para transmutar com clareza da língua original para a língua de acolhimento, nasceram da consciência de que os primeiros textos vertidos do sânscrito para chinês não garantiam a fidelidade exigida. Adaptavam para uma terminologia de teor taoista e confucionista conceitos e discursos cuja substância parecia falseada e deturpada.

Xuanzang (602-664), de Henan, entendeu essa falta de rigor e de devida observância ao ler a tradução de Paramartha (499-569), do «Compêndio sobre o grande Veículo» («Mahayanasamgraha») atribuído ao monge Asanga (séc. IV-V). Paramartha foi um indiano que chegou à China em 546, responsável pela tradução de 64 obras. A arrojada e solitária viagem de Xuanzang pretendeu, em prol da genuína sabedoria, dissipar as dúvidas e incoerências detectadas. O seu itinerário foi dos mais longos. Estudou em Cachemira, desceu o Ganges, visitou os santuários mais venerados da Índia (Kapilavastu, Vaishali, Bodhgaya e Kushinagara), permaneceu cinco anos na universidade budista de Nalanda na região de Bihar. Ao volver a Chang’an (Xian) em 645, transportou sobre vinte cavalos 657 manuscritos de inestimável valor, estátuas de Buda, de Bodhisattvas, relíquias e pinturas.

Nesta cidade situada na actual região de Shaanxi, na altura capital da dinastia Tang, tendo Taizong como soberano, foi efusivamente recebido pelos cidadãos.

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Nos dezassete anos seguintes, incansavelmente e com o auxílio de vários assistentes, traduziu setenta e cinco obras, entre as quais as principais conectadas com a doutrina Madhyamika ou Yogachara, como o «Sutra da Sabedoria Transcendente» («Prajnaparamita Sutra») cuja primeira versão chinesa remonta a 179, o «Compêndio sobre o Grande Veículo» («Mahayana Sangraha»), o «Tratado do Mestres da Terra do Ioga» («Yogacharabhumi Shastra»), estes dois últimos atribuídos a Asanga (séc. IV-V), o «Tesouro da Doutrina Particular» ou «da Doutrina Suprema» («Abhidharmakosha»), talvez composto por Vasubandhu, em Caxemira, no século V a. C., a «Sistematização do Saber» («Jnanaprasthana»), o «Grande Comentário» ou «Grande Exegese» («Mahavibasha»), crucial manuscrito da escola Sarvastivada, redigido sob a direcção de Vasumitra, etc. Solicitado pelo rei hindu de Kamarupa (antigo nome da região de Assam), transferiu para sânscrito o «Daodejing» de Laozi. Xuanzang foi «o maior de todos, o mais fecundo dos tradutores de textos sânscritos e o mais sábio de todos os budistas da China».5

Yijing (c. 635-713) saiu de Cantão (Guangzhou) num navio persa em 671, estudou budismo Hinayana e Mahayana e regressou à China em 695, vindo de Sumatra. Em Luoyang, foi recebido pela viúva de Taizong, a imperatriz Wu Zeitian. A sua douta mercadoria, muito apreciada, somava trezentas relíquias e quatrocentos textos, tendo ele traduzido pelo menos cinquenta e seis.

Hye Ch’o poderá ter colaborado com Vajrabodhi (670-741) e Amoghavajra (705-774), tendo este último traduzido cento e oito obras e uma grande porção delas respeitantes ao budismo tântrico.

Custosos problemas de transferência linguística do sânscrito para o chinês terão tornado a tarefa destes monges árdua, «pois nenhuma tradução, seja para uma linguagem familiar ou para uma completamente distinta, pode simplesmente traduzir mecanicamente o texto original, pois nenhuma linguagem consiste somente de palavras. Sem dúvida que a linguagem tem sempre um carácter distintivo em progressivo desenvolvimento. Assim, qualquer tradução é, até certo ponto, necessariamente uma transferência do texto original para o espírito do mundo e época do tradutor. Por outro lado, terá sempre a intenção de veicular os conteúdos do original com a maior fidelidade possível na sua nova forma linguística e, por isso, será uma responsabilidade erudita.»6

A procura de manuscritos originais e fidedignos para a dilucidação de incertezas e incógnitas interpretativas, resultantes do estado deplorável, escassez e incompletude

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dos acervos bibliográficos budistas chineses, suscitou uma mobilidade peregrina e alguns preciosos apontamentos de viagem, contendo em maior ou menor grau interessantes dados geográficos, históricos, políticos e socioculturais, revelando igualmente aspectos psicológicos daquele que os redigiu e, principalmente, um extraordinário denodo e abnegação em prol dum ideal de alargamento dos saberes e da compreensão, em proveito duma rara aspiração de iluminação. O apelo religioso, a devoção profunda, os escopos e os imaginários dos intervenientes nestas jornadas limitaram os seus relatos. Sem querer entrar em minúcias biográficas e exaustivo traçado das suas rotas, localidades por onde passaram e realidades testemunhadas, gostaríamos apenas de salientar as palavras de René Grousset acerca do impacto e dos vestígios retidos pela memória destas audaciosas digressões: «aquilo que gostamos de imaginar entre estes sábios da Ásia extrema, letrados subtis e delicados poetas, é o seu sonho interior. No silêncio reencontrado do mosteiro, depois de muitas visões e de tanto espaço, eles deviam por vezes evocar os grandes países mudos que, do alto dos Pamirs, se estendiam aos seus pés. Reviviam as noites de Bénares ou ouviam cantar no fundo da sua memória os mares do sul que, da baía de Along aos portos de Sumatra, os haviam conduzido até à paradisíaca ilha de Ceilão. Uma vez fechada a porta do mosteiro, os peregrinos da sabedoria encerravam com eles o sonho de um mundo.» 7

2. O sonho destes eruditos que os mobilizou a partir e a consagrar uma parte significativa das suas existências, que persistiu na clausura monástica, no exercício de trasladação de textos, na pregação ou que se desvaneceu numa morte prematura, foi compartilhada por membros de todas as grandes religiões, muitas vezes com equívocos, desencontros e dificuldades. Os apóstolos S. Paulo, S. João, S. André, S. Tomás ou S. Bartolomeu, envolvidos numa dispersão evangelizadora primitiva do cristianismo, terão certamente desfrutado e guardado nas suas lembranças o maravilhamento e a perturbação do contacto com outras alteridades, ajudando-os a definir melhor as suas naturezas. A acreditar nos Apócrifos, S. Tomás terá sido enviado à Índia e os seus discípulos à Ásia Central, tendo o seu corpo eventualmente sido sepultado em Mylapore, na região actual de Tamil Nadu.

Evitando hostilidades várias seitas heréticas cristãs expandiram-se e asilaram-se na Ásia, levando os seus acervos bibliográficos e costumes, formando núcleos minoritários no seio das sociedades indígenas. Entre essas seitas, os nestorianos foram os que mais medraram nas conjunturas instaladas e mais influência nelas exerceram.

A primeira missão nestoriana na China remonta ao ano de 631. O imperador Li

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Shimin ou Taizong (600-649), da dinastia Tang, recebeu estas novas concepções com uma disposição acolhedora, sendo erigido em Chang’an um convento com vinte e um sacerdotes. Foi desta cidade, uma das capitais Han e Tang, que Faxian iniciou, no ano de 399, aos sessenta anos, a sua jornada para a Índia, onde Xuanzang se fixou para prosseguir os seus estudos e de onde igualmente saiu em 629, onde Yijing permaneceu durante algum tempo na sua juventude, assistindo ao funeral de Xuanzang, onde Xiuan Zhao se aplicou a procurar uma instrução mais cabal da doutrina e de onde partiu para a Índia por volta de 651, onde provavelmente terá residido Hye Ch’o, depois do retorno da Índia e onde se estabeleceu Shubhakarasimha, oriundo de Orissa, chegando à China por volta de 716, traduzindo o «Sutra da Grande Cintilação» («Mahavairochana Sutra»), obra essencial da escola tântrica Chinesa.

Nos primeiros anos do século VIII, existiram comunidades nestorianas em vários locais da Ásia como, por exemplo, em Herat (Afeganistão) e Samarkand (Uzbequistão). Antes das invasões mongóis, em certos lugares, como o reino Uigur de Beshbaligh Kucha, desenvolveram-se culturas que articulavam budismo, nestorianismo e maniqueísmo, tendo a expressão deste último decaído rapidamente.

O papa Sinibaldo Fieschi (Inocente IV, 1243-1254) para além dos problemas com os sarracenos, a cisma dos gregos, a heresia albigense e o conflito com Frederick II (1084-1147), recebeu notícias alarmantes dos ataques perpetrados pelos mongóis e a sua potencial ameaça para a cristandade romana. Admitindo a possibilidade de os ter como aliados militares contra os muçulmanos e agregar as orientações cristãs dispersas pela Ásia, enviou de Lyon, em 1238, uma embaixada ao grande Khan dirigida pelo dominicano André de Longjumeau. Em 1245 partiu com igual propósito diplomático Ascelin (ou Anselmo) de Crémone da mesma ordem religiosa a quem se juntou Saint-Quentin que registou por escrito os percalços vividos ao longo da distância percorrida. Nesse mesmo ano e lugar Giovanni da Pian del Carpino (c. 1180 – 1252) com Étienne de Bohême rumaram para a Mongólia na altura em que Guyuk era proclamado rei. O novo soberano mostrou interesse em enviar uma delegação acompanhando o retorno de Carpino a França. Porém, o receio que as informações sobre o estado em que a Europa se encontrava pudessem ser um incentivo para os mongóis a invadirem, dissuadiu a iniciativa.

Giovanni atestou a presença de nestorianos em Karakorum, na Mongólia, agindo como conselheiros do filho primogénito de Ögödei, chamado Güyük que sucedeu ao trono em 1246. Ao serviço deste mesmo soberano exerceu funções de

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médico e astrónomo o nestoriano poliglota de nome Ai Sie (1227-1308). Perto de Kayalik, a leste do lago Baikal, a 30 de Novembro de 1253, Guillaume

de Rubrouck (1215-1295), afirmou ter deparado com uma aldeia de nestorianos, tendo entrado na sua igreja entoando «Salve, Regina!».

Rubrouck (ou Rubruquis) foi emissário de Louis IX, rei dos Francos na terra dos Tártaros (1253-1254) com a incumbência de converter o Khan e de o persuadir a participar numa cruzada. Este franciscano descreveu os mongóis como uma população sem residência estável e distribuída através da região da Cítia (do Danúbio ao Extremo - Oriente). Dedicavam-se à pastorícia, deslocando-se no período invernal na direcção das zonas mais quentes a sul para regressarem às paragens mais setentrionais durante o estio. Esboçou aspectos relacionados com os hábitos alimentares, o alojamento, o modo de se vestirem e ornamentarem, as tarefas masculinas e femininas, os procedimentos respeitantes à justiça, ao casamento, à doença e falecimento. Anotou também que as suas habitações eram montadas sobre carros, edificadas com varas entrelaçadas que convergiam para cima parecendo uma chaminé e revestidas com feltro branco, decorado com pinturas e com uma extensão de cerca de seis metros entre as rodas. A presença de cristãos nestorianos é regularmente atestada ao longo da sua viagem diplomática, aludindo a certa altura à existência de um reino algures numa planície entre as montanhas Altai e Karakorum, governado por um nestoriano chamado Jean. Na cidade de Karakorum, a norte do deserto do Gobi, encontrou Guillaume Buchier, um ourives parisiense a trabalhar numa obra de arte para Möngke.8 Na mesma localidade Rubrouk encontrou mercadores, altos dignitários representando o sultão de Bagdad, do imperador da Índia e o próprio rei da Arménia Hetum II.

Em Karakorum, durante a regência de Möngke (1251-1259), relata que o grande secretário do Khan era Bulgai, um nestoriano, acrescentando ainda haver entre os mongóis numerosos prisioneiros cristãos e conflitualidade entre os nestorianos e as restantes facções religiosas. Menciona também que Möngke era tolerante no que respeita a convicções religiosas na sua corte, tendo certa vez, a 30 de Maio de 1254, organizado um debate no qual o integrou como convidado para discursar, juntamente com um muçulmano e um «idólatra». Apesar de a sua intervenção ter sido escutada civilizadamente, ninguém manifestou vontade de alterar as suas crenças.

No tempo de Möngke cerca de trinta mil cristãos alanos do ritual grego vieram do Cáucaso para ser admitidos na guarda pessoal do monarca, permanecendo no desempenho desta tarefa na época de Khubilai e dos seus sucessores. Möngke tinha

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como esposas mulheres nestorianas e, na urbe, existiam duas igrejas, duas mesquitas e doze pagodes ou outros templos «idólatras». O depoimento dos nestorianos Rabban Sauma (morreu em 1294) e Marcos (1245-1317) que se deslocaram da China até Jerusalém assevera o benefício desta tendência confessional cristã entre os mongóis da Pérsia.

Giovanni de Montecorvino (1246-1328), fundador da Diocese de Pequim em 1307, declarou ter encontrado na China nestorianos protegidos pelo Khan. Odoric de Pordenone (c. 1286-1331) realçou a instalação de comunidades arménias e nestorianas no território do actual Azerbaijão. Em Thana (porto costeiro de Maharashtra, próximo de Bombaim), por volta de 1323 ou 1324, obteve relíquias de quatro franciscanos chacinados em 1321 por muçulmanos. Em Mylapore (Madras) onde uma lenda vigorante narrava a cristianização de muitos hindus por S. Tomás, habitavam ainda muitos seguidores desta tradição cujas concepções se misturaram com as das religiões autóctones.

No ano de 1605, o padre jesuíta Matteo Ricci (1552-1610), em Pequim, graças ao judeu Ai Tian, toma conhecimento da existência de adoradores da cruz em Kaifeng (na actual província de Henan) e também, segundo a suposição do seu interlocutor, noutras localidades. Ricci interrogou-se sobre a procedência desta população. Seriam descendentes de georgianos ou arménios, viajantes do Médio Oriente ou uma primitiva seita fundada pelo apóstolo Bartolomeu? Para esclarecer a sua incredulidade, encarregou António, um jovem chinês de ir a Kaifeng investigar o assunto. As informações conseguidas elucidaram que os elementos da comunidade recusaram admitir ser adoradores da cruz, presumivelmente temendo consequências danosas ou por vergonha mas, segundo outra fonte, os seus antepassados terão sido cristãos de rito grego que se mudaram para a China no período de subjugação mongol. António entregou a Ricci uma carta do regente da sinagoga local, dizendo que em Pequim ele possuía todos os volumes do Antigo e do Novo Testamento.

A observação de outras sociedades produziu um discurso oral e escrito acerca dos factos constatados. Sabemos que as verdades do mundo são «somente as interpretações do mundo.» 9 Delas dependem os relatos que chegaram até nós. Seduz-nos todavia devanear sobre o efeito destes percursos nos viajantes antigos. Do almejo de conhecimento, de uma motivação fulcral específica, os budistas submeteram-se a uma experiência única cujas impressões os não terão deixado indiferentes. Porém, conforme ditam os seus princípios, tudo isso importou

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pouco. «Quando olho para aquilo que experimentei no passado, o meu coração fica involuntariamente comovido e a transpiração aflora. Se encontrei perigos e caminhei por lugares de grande risco, sem pensar nem me poupar, foi porque tinha um propósito definido e, na minha simplicidade e honestidade, em nada mais pensava senão fazer o meu melhor. A razão pela qual expus a minha vida onde a morte parecia inevitável, foi para tentar conseguir apenas uma ínfima parte daquilo que esperançava alcançar». 10

3. Acidentalmente, em 1898, um volumoso e precioso espólio medieval foi encontrado por um monge taoista, numa gruta em Dunhuang, na actual região de Gansu, na China. As datas correspondentes ao inestimável acervo de obras guardadas na cavidade rochosa situam-se entre os séculos IV e X, compreendendo entre trinta e quarenta mil manuscritos, depositados e emparedados no início do século XI. Em 1907, cerca de dez mil exemplares da surpreendente colecção foram adquiridos por Aurel Stein que, dois anos depois, transitaram para Londres. Paul Peliot, em 1908, encaminhou mais quatro mil textos do lote para Paris. Em 1910 o governo chinês remeteu para Beijing cerca de dez mil cópias. Uma expedição japonesa, tutelada pelo religioso budista Kôzui Ôtani (1876-1948), obtém no ano seguinte, uma parte apreciável do conjunto literário. Em 1915, o secretário da Academia das Ciências Russas, S. F. Oldenburg, reuniu e levou para Petrogrado um pecúlio calculado entre os dez e os doze mil títulos. Numa gruta limítrofe, em 1919, descobriu-se uma tonelada de manuscritos tibetanos. O idioma principal desta magnífica biblioteca de Duhuang é o chinês embora constem igualmente obras em sânscrito, uigur, sogdiano, kucheano, khotanês e tibetano. O tratamento deste valioso material foi fulcral e imprescindível para o entendimento mais apurado da civilização chinesa.

Durante o primeiro milénio da era cristã, ocorreu um prolífero intercâmbio de saberes entre a China, a Ásia Central e a Índia, não só no âmbito religioso e filosófico, mas também no domínio científico. Paralelamente à azáfama de recolhas e traduções de originais de índole budista, surgiram algumas descrições de viagens de peregrinação, percursos terrestres e marítimos, alguns desaparecidos mas mencionados noutras fontes documentais, outros fragmentados ou completos. Dos manuscritos extintos consta a «Descrição dos Reinos Estrangeiros» («Waiguozhuan») de Zhimeng (séc. V) e a «Descrição dos Reinos Visitados» («Liguozhuan») de Fayong (séc. V). Em 650 o monge Daoxuan (596-667), redigiu uma obra versando sobre a Índia intitulada «Shijia Fangzhi». Para além dos escritos das várias escolas budistas, a China possuía versões autóctones de textos

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bramânicos concernentes à astrologia, astronomia, medicina e matemática.No que respeita à Europa, num período mais recente (séculos XVIII e XIX),

em 1754, Abraham Hyacinthe Anquetil-Duperron (1731-1805), dirigiu-se para a Índia com o intuito de conseguir os livros sagrados da religião Mazdiana. Aprendeu Zend e Pehlvi, os preceitos sagrados da comunidade Parsi e, em 1762, regressou à capital francesa com 180 manuscritos. Nove anos volvidos, surge publicada sua tradução do «Zend Avesta» («Zend-Avesta: Ouvrage de Zoroastre, contenant les Idées Théologiques, Physiques et Morales de ce Législateur, les Céremonies du culte Religieux qu’il a établi et plusiers traits importans relatifs à l’Ancienne Histoire des Perses»), em três volumes e complementada com um ensaio sobre a cultura persa. Em 1776 foi impressa uma edição alemã traduzida por Johann Friedrich Kleuker (1749-1827). A recepção foi pouco generosa, alvo de controvérsias, sendo Duperron nalguns círculos intelectuais, acusado de fraude, como o fez William Jones, ou de a sua obra ser um disparate. W. Erskine e outros afirmaram que o Zend era uma corrupção do sânscrito, argumento posteriormente refutado por Rask e Burnouf. «Fiz-me soldado aos vinte e um anos para ir à Índia procurar monumentos, as ciências dos persas e dos indianos: de regresso sou ameaçado de prisão, os meus trabalhos são suspensos, os meus manuscritos confiscados, quando ia comunicar à Europa o fruto das minhas vigílias, dos meus tormentos e até do sacrifício do meu património.» 11

A Anquetil-Duperron se deve igualmente a passagem para francês de cerca de meia centena de Upanishads («Oupnek’hat, id est, Secretum Tegendum», Estrasburgo, 1801/1802), segundo a tradução comentada para persa («Sirr-i Akhbar», «O Grande Segredo») efectuada por Muhammad Hanefi Kadiri (Dara Shikoh, 1615-1659) o primogénito do imperador Shah Jahan (1582-1666). Este príncipe, poeta e filósofo traduziu também o «Bhagavad Gita» e o «Yogavashishta Ramayana». Foi executado por heresia em 1659 pelo seu irmão mais novo Aurangzeb (1618-1707). Duperron pertenceu à Académie Royale de Inscriptions et Belles-Letres e desempenhou funções de intérprete do rei. O seu sonho era instituir um centro consagrado à filologia e investigação sobre as culturas asiáticas.

Brian Hodgson, em 1821, no Nepal, convenceu um erudito a reunir cópias dos principais textos budistas existentes nos mosteiros. O copioso resultado desta pesquisa foi dividido por seis bibliotecas, tendo uma das mais substanciais sido transposta para Paris, consultada pelo gramático e orientalista Eugène Burnouf (1801-1851), dela recolhendo dados para escrever «Introduction à l’Histoire du

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Bouddhisme Indien» (Paris, 1844). O mesmo Burnouf verteu para francês alguns textos em sânscrito.

Émile Guimet (1836-1918), mandado ao Japão pelo Ministério da Instrução Pública com a incumbência de estudar a religião, regressou com uma série de livros autóctones.

Laurence Austine Waddell (1854 – 1938) na sua expedição ao Tibete (1903- 1904) relatou ter «protegido» cerca de 450 volumes da biblioteca do senhorio feudal de Changlo para o incluir no património do British Museum.

As bibliotecas de universidades, de museus e institutos da Europa e dos Estados Unidos, principalmente das grandes potências coloniais, estão repletas de material bibliográfico proveniente de países asiáticos por intermédio de doações, compras ou apropriações. A Bodleian Library em Oxford é, actualmente, uma das mais grandiosas do mundo ocidental no que respeita a manuscritos em sânscrito sobre papel ou folha de palmeira. Do acesso a esta documentação pelos especialistas, da examinação e meditação sobre estas fontes, resultaram abundantes ensaios. Com as limitações de conhecimento e os restrições contextuais da época, os Orientalistas dos séculos XVIII e XIX versam-se nas línguas e transliteraram numerosas obras asiáticas, permitindo a sua dedicação, independentemente de quaisquer análises sobre a sensibilidade, a perspicácia e a consistência do produto ou de quaisquer críticas de teor cultural, divulgar nas suas diferentes particularidades algumas das mais belas referências do caudal literário do planeta, como o dramaturgo e poeta Kalidasa, os «Upanishads» e o «Bhagavad Gita», exercendo uma considerável influência no pensamento e vida das elites literatas europeias.

Uma obra notável, condensando essas diligências eruditas e demonstrando a autoridade dos académicos foi «The Sacred Books of the East», em cinquenta tomos, publicada entre 1879 e 1890, realizada sob a direcção de Max Müller (1823-1900) e, sem dúvida, «a mais notável contribuição na revelação ao mundo Ocidental dos tesouros acumulados das antigas religiões do Oriente.» 12

4. Desde que Vasco da Gama contornou pelo Oceano o continente Africano e rumou para a Índia, foi desenvolvido um trabalho pioneiro de conhecimento dos idiomas indígenas e de recolha bibliográfica pelas missões evangelizadoras, das quais a Companhia de Jesus desempenhou um papel preponderante.

Sem querer entrar em grandes detalhes e reflexões acerca do modo como se processaram os contactos, das rivalidades e querelas entre as facções religiosas, dos interesses e ambições das nações nos territórios exógenos, das contradições e equívocos na pregação cristã ou do sucesso dos seus propósitos conversores, iremos somente

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concentrar-nos no envolvimento e zelo de transposição linguística destes homens, alguns dotados de uma rara inteligência, que partiram para estas paragens distantes com o escopo de transformar o pensamento e as tradições destas gentes estranhas.

Motivados por um desígnio mas portadores de um imaginário etnocêntrico, muitos missionários Jesuítas, alguns possuindo uma invulgar erudição, abandonaram os seus países nos séculos XVII e XVIII ao encontro de civilizações requintadas, cujos hábitos e procedimentos não os deixaram indiferentes.

A primeira etapa do exercício pregador da Sociedade de Jesus ocorreu entre 1552 e 1668 com o padroado Português. O monopólio apostólico foi distribuído posteriormente pelos dominicanos (1632) e franciscanos (1633).

Na China, Matteo Ricci (1552-1610) expressou a sua fascinação pelos clássicos confucionistas, realçando o seu esplendor ético, divisando neles resquícios dum cristianismo remoto, mormente no culto ao céu (Tian) ou ao Senhor das Alturas (Shang Di). Na «Doutrina do Meio» ou «do Justo Meio» («Zhong Yong»), atribuída a Confúcio (Kongzi), teorizando sobre metafísica e psicologia, surge referido que «as cerimónias de sacrifícios ao céu e à terra têm como intenção servir o Senhor das Alturas e as cerimónias realizadas no templo ancestral destinam-se ao serviço dos antepassados.» 13

Mas, apesar da admiração, Ricci acaba por fazer um compreensivo diagnóstico pejorativo do confucionismo, não sendo as verdades nele contidas tão perfeitas como as da sua religião.

Para além de enviarem relatórios, relações, cartas e publicações, os membros da Societatis Jesu, levaram para Beijing, no dealbar do século XVII, conhecimentos de cartografia, astronomia, artilharia, geografia, arte, filosofia, medicina e farmacopeia bem como cerca de sete mil livros impressos na Europa. Transferiram para Chinês vários tratados e compilações sobre geografia, hidráulica, astronomia, matemática, filosofia e doutrina Cristã e, para línguas europeias, gramáticas, dicionários, exposições sobre aspectos culturais desta civilização e textos autóctones.

A obra precursora nos estudos nas noções fulcrais da filosofia e religião chinesa pertence a Niccolò Longobardo (1565-1655), redigida numa primeira versão em latim entre 1622 e 1625 («Confucio Ejusque Doctrina Tratatus»), publicada em Paris sob o título de «Traité sur quelques points de la Religion des Chinois» (1701).

As rivalidades e polémicas entre missionários ou ordens religiosas acerca das conceptualizações chinesas eram deduzíveis no quadro da modelação cultural prévia de quem vinha de fora para estudar. O esforço de aprendizagem dos

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missionários e as suas argumentações e interpretações nem sempre exactas para a leitura dos eruditos autóctones podia ser entendido como um factor de descrédito intelectual. Longobardo, que esteve dezassete anos na China, chamou a atenção para este problema, necessário de resolver entre aqueles que se viam como agentes da vontade superior de, com mais ou menos condescendência, cristianizar os habitantes daquela área geográfica. Algumas vezes os padres assumiram a diligência do suborno para corrigir a fé dos que persistiam em não se deixar seduzir pelas suas pregações. Pagam aos homens para eles acolherem a «verdadeira» religião e, para acalmar o zelo e a curiosidade dos mandarins sobre esta actividade conversora, outorgam-lhes presentes.

Constatando indícios de afinidades entre as duas doutrinas, o embate intelectual entre budismo e cristianismo originou buliçosas controvérsias. Os raciocínios denunciavam alternadamente o budismo como uma representação fraudulenta copiada do cristianismo ou este como uma apropriação distorcida das noções do primeiro. As divergências e a desconfiança geraram trocas de acusações e cada facção imputou à outra falta de seriedade e corrupção dos valores genuínos.

A assimilação dos chineses à confissão europeia não foi uma tarefa fácil e as árduas provações a que os padres das ordens religiosas se sujeitaram em lugares remotos causaram frustração e desalento. Numerosos comentários escritos atacando a prática missionária cristã surgiram na China ao longo dos séculos XVII e XVIII. Litígios entre membros da mesma congregação ou entre congregações diferentes eram frequentes. Os franciscanos denunciaram e reprovaram comportamentos ilícitos dos jesuítas de Beijing, evidenciando rumores de usura e investimentos lucrativos em terras, casas de penhores, venda de sal, tabaco e vinho.14

As críticas, acusações e conflitos de interesses pessoais assim como os antagonismos entre as facções mendicantes e jesuítas, entre elementos da mesma ou de nacionalidades distintas, sucedendo num quadro de competição política e comercial entre as nações europeias, não foram vantajosas para o prestígio da difusão da fé católica. Por outro lado, a evangelização geralmente conseguia adeptos entre as camadas mais subestimadas e menos influentes da sociedade e suscitou confusas misturas e adulterações dos saberes e procedimentos considerados quer pelos padres quer pelas crenças autóctones como religiosamente apropriados. À semelhança do que já tinha acontecido no Japão em 1641, o imperador Yongzheng emitiu em 1724 um édito de expulsão para Macau de todos os missionários europeus, excepto aqueles que estavam na sua corte. A propagação do cristianismo foi apontada como uma actividade delituosa, contrária

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à lei e as igrejas adjudicadas pelas autoridades. A pregação dos missionários entrou assim na clandestinidade e, gradualmente, os seus mentores mais cedo ou mais tarde tiveram de abdicar da sua tarefa e abandonar o território.

Já neste período de ilegalidade aparecem, entre os que persistiram em ficar, casos de delação de condutas debochadas como a que concerne ao franciscano Bernardo Maria Bevilacqua, um indivíduo que, aproveitando-se da sua posição sacerdotal, convencia os devotos e penitentes (mulheres solteiras, casadas e rapazes) a satisfazerem os seus apetites carnais como acto de caridade. Várias queixas de estupro a raparigas menores foram transmitidas por gente da comunidade cristã local. Similares incriminações mas com menor gravidade foram comunicadas sobre Alessio Randanini que tentava subornar mulheres com dinheiro, esperando em troca favores sexuais. 15

Entre os títulos de erudição europeia resultante destes contactos culturais podemos salientar «De Christiana Expeditione apud Sinas» (1615) de Nicolas Trigault (1577-1628), «De Bello Tartarico» (1654) de Martino Martini, «Sapientia Sinica» (1662) de Inácio da Costa e Prosperi Intorcetta, «Relatio Sinae Sectarum» de Antonio Caballero (1602-1669), obra concluída em 1662 mas só publicada em 1701, «China Monumentis» (1667) de Athanasius Kircher (1602-1680), - redigido segundo informações concedidas por membros da Sociedade e outros residentes Ocidentais na China, como Johann Adam Schall, Bento de Goes, Martino Martini, Johann Grueber, Michael De Boym e Heinrich Roth - «Sinarum Scientia Politico Moralis» (1667) de Prosperi Intorcetta (1625-1696), «Doze Excelências da China» ou «Nova Relação da China» (1668) de Gabriel de Magalhães (1609-1677), «Mémoires sur la Chine» e «Nouveaux Mémoires sur l’état presente de la Chine» (1696) de Louis Le Comte, «La Liberdad de la Ley de Dios» (1696) de José Suares, «Traité sur quelques points de la Religion des Chinois» (1701) de Niccolò Longobardo (1565-1655), «De Cultu Celesti Sinarum Veterum et Modernorum» de Joachim Bouvet, provavelmente escrito inicialmente em chinês e traduzido por Hervieu e Prémare em 1706, «Selecta Quaedam Vestigia Praecipuorum Christianae Religionis Dogmatum ex Antiquis Sinarum Libris Eruta» (1712, revisto em 1724) de Joseph-Henri Prémare (1666-1736), «Tabula Chronologica Historiae Sinicae» (1729) de Jean-François Foucquet, sedutora personalidade, responsável pela maior remessa de livros chineses que chegou à Europa (Roma e Paris) até ao século XIX. Pretendeu ele que um literato chinês o auxiliasse na Europa a explicar os 4000 volumes que transportava. A selecção não

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terá sido muito ditosa pois o indivíduo que veio consigo, Jean Hou, era porteiro há três meses na igreja da Propaganda em Cantão (Guangzhou) e nem sequer sabia escrever muito bem. Ao atingirem as costas de França, o homem adoeceu e foi acometido pela loucura, gorando as expectativas nele depositadas.

De referir ainda a «Description de l’Empire de la Chine» (1735) de Jean Baptiste Du Halde, as «Mémoires Concernant l’Histoire, les Sciences, les Arts, les Moeurs, les Usages... etc., des Chinois, par les Missionnaires de Pe-Kin (1779-1780), publicado pelo padre Joseph-Marie Amiot (1718-1793), não esquecendo autores como Ricci, Alonso Sanches, D’Elia, Charles Le Gobien, Philippe Couplet ou Jean-Alexis De Gollet. Prémare traduziu a peça «O Pequeno Órfão da Casa de Zhao», incluída na obra de Du Halde que Voltaire leu e reformulou com o título de «L’Orphelin de la Chine» (representada em 1755).

No seu regresso à Europa (1687) o padre Philippe Couplet vinha acompanhado por Jin Fu Zoung, um nativo chinês de Nanjing tendo como nome de baptismo Michel. Este homem poderá ter sido apresentado ao monarca de França e serviu de fonte de informação para o orientalista Thomas Hyde (1636 – 1703) escrever em Oxford alguns ensaios de teor orientalista.

O franciscano Antonio de Santa Maria Caballero, após estadia no convento de San Francisco em Manila nas Filipinas e de aí ter estudado japonês, seguiu para a China onde permaneceu entre 1633 e 1636 e depois entre 1649 e 1669. Uma tentativa de sistematizar por escrito afinidades e discordâncias entre confucionismo e cristianismo foi realizada em colaboração com Shang Huqing, um letrado chino de Shanyang, província de Jiangsu, baptizado pelo jesuíta Francesco Sambiasi (1582-1649). A obra em chinês «O Modo de Avaliar o Verdadeiro Conhecimento» («Zhengxue Liushi») de 1664, pode ser atribuída à cooperação intelectual entre estes dois homens.

5. As primeiras trasladações de textos chineses incidiram em obras que se julgavam ser de Confúcio. Em 1593, Michele Ruggieri, na Bibliotheca Selecta de Antonio Possevino, mudou para latim a primeira parte do «Grande Saber» («Da Xue», literalmente «Ensinamentos para o Adulto»), clássico sobre metodologia moral, educativa e política, originalmente um capítulo do «Livro dos Ritos» («Li Ji»). O «Confucius Sinarum Philosophus, sive Scientia Sinensis Latine Exposita Studio et Opera Prosperi Intorcetta, Christiani Herdtrich, Francisci Rougemont, Philippi Couplet, Patrum Societatis Jesu» (Paris, 1687), apresenta-nos uma biografia do Mestre e traduz três dos quatro livros canónicos («Si Shu»), assim estabelecidos

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pelos critérios de Zhu Xi (1130-1200), filósofo neoconfucionista do período Song. Zhu Yuan Hui ou Zhu Xi, foi responsável pela controversa sistematização, condensação e comentários das conceptualizações de Confúcio, da sua escola e dos neoconfucionistas, fornecendo-lhe uma nova projecção semântica.

Zhu Xi elaborou uma conformidade doutrinária, elegendo os «Analectos» («Lun Yun»), o «Grande Saber» («Da Xue»), a «Doutrina do Meio» («Zhong Yong») e «O livro de Mêncio» («Mengzi») como modelos. Estes serviram de suporte ao sistema de exames civis entre 1313 e 1909. Os padres Prosper Intorcetta, Christian Herdtrich, François Rougement e Philippe Couplet, estiveram no Sinarum Imperium e traduziram as três obras acima mencionadas, acrescentando-lhes um ensaio preambular (Proëmialis Declaratio), versando sobre o taoísmo, o budismo e o confucionismo. Sobre este último e os seus ideais e premissas, fundamentaram-se nas reformas efectuadas por Zhu Xi e outros filósofos Song como Zhou Dunyi (1017-1073), Zhang Zai (1020-1077), Cheng Hao (1032-1085) e Cheng Yi (1033-1108), compendiados no volume «Xingli Daquan Shu» (1415), preparado por iniciativa do imperador Yong Luo, da dinastia Ming.

«A palavra representa o mundo e a intenção humana que a consigna». 16 «A linguagem é a medida última da sociedade humana. Mais do que qualquer outra das faculdades da vida, é a linguagem que nos diz quem somos, o que queremos dizer e para onde vamos.» 17 Na China, o livro (Shu), corresponde a um dos oito símbolos do sábio. No primeiro aniversário de uma criança, os progenitores colocavam junto a ela vários objectos, entre os quais um livro. Se ela mostrava propensão para o agarrar, a evidência augurava a tendência futura de vir a ser um erudito.

A curiosidade dos missionários pela língua e textos chineses, pela filosofia e religião desta e de outras sociedades asiáticas tinha uma componente egoísta, na medida em que a competência nesse âmbito proporcionava vantagens no emprego de tácticas mais eficazes para argumentar e exprobrar as noções que consolidavam a alteridade dos interlocutores. Por outro lado, o isolamento destes «apóstolos», susceptibilizava ou fragilizava as suas resistências face aos pensamentos locais, deixando-os permissivos à conjuntura dos comportamentos nativos. Cremos que qualquer indivíduo douto, delicado e inteligente, apesar da sua devoção, dos condicionamentos culturais e das pressões dos superiores hierárquicos, não pode ignorar as aptidões, a elegância, a eloquência e as subtilezas das estruturas mentais vigorantes na Ásia, confrontando-se com as prerrogativas de descomprometimento exigidas pelo discurso oficial, para levar a bom termo os desígnios traçados, e o desejo

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espiritual legítimo de penetrar, perceber e inteirar-se do mundo do Outro, ao ponto do indivíduo questionar a sua própria identidade. Uma maneira de sublimar ou atenuar essa atracção, esse deslumbramento acanhado, por vezes inconsciente, foi, talvez, a procura de analogias na disparidade, de conotar um parentesco civilizacional comum. Alguns membros da Sociedade de Jesus, comparando as diferenças, tentaram um acordo entre os contrastes, formulando hipóteses de uma orgânica inata do conhecimento do divino, de invariantes concernentes à atitude religiosa, apesar das autonomias particulares.

Couplet e Le Compte, por exemplo, afirmaram que os chineses veneraram desde a Antiguidade o verdadeiro Deus. Sugeriram uma amplitude e ambiguidade no efeito humano do Sagrado, no modo como o transcendente se manifesta e especifica. Longobardo opunha-se a esta corroboração, classificando os chineses do passado e do presente como ateus e as suas cerimónias como abomináveis ou absurdas falsidades. Joseph-Henri Prémare, nas «Recherches sur les temps antérieures à ceux dont parle le Chou-King», supunha que os princípios cristãos eram observados pelos indivíduos que engendraram a escrita ideográfica e os King. Parece estar à beira de insinuar que, independentemente das exclusividades culturais, existe uma dimensão espiritual no ser humano que anseia por imagens de perfeição, um «espelho para olhar perpetuamente [os nossos] próprios defeitos [com o objectivo de os suprimir].» 18

Gollet associou as especulações místicas da Cabala hebraica aos antigos ideogramas chineses. Foucquet advogou a tese de que os chineses partilharam os ensinamentos evangélicos em épocas recuadas, tendo-os gradualmente depravado. Havia assim um número de missionários que perspectivavam uma propagação, contiguidade e permanência de valores e convicções chinesas e europeias. «Il n’y a aucun mystère dans la religion Chrétienne, aucun dogme dans notre Morale qui ne soit exprimée dans ces livres [do cânone Chinês] avec une clarté suprenante, en une infinité de manières également ingénieuses et sublime et pour l’ordinaire sous les mêmes figures et symboles que dans les Divines Écritures.» 19

Alguns jesuítas sustentaram a alegação da existência de um legislador, de um intérprete, difusor e intermediário moral da superlativa Lei divina que, ao longo dos tempos, geriu e irradiou esse poder. Segundo esta constatação, na Grécia terá sido Hermes, filho de Zeus e de Maia, o arauto do soberano do panteão helénico, transmissor das suas mensagens, mediador entre o céu e a terra. No Egipto foi Thot, o deus patrono dos escribas que presidia às actividades intelectuais, tendo estabelecido

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a escrita, separado as línguas, estando associado ao registo dos anais e das leis. «A sua mestria no domínio dos hieróglifos e das palavras divinas faz dele um formidável mágico, aquele que, pelo conhecimento das articulações criativas da linguagem pode, sem impedimentos, suscitar aquilo que deseja ver nascer; é isso que explica o facto de ele ser considerado pelos teólogos de Memphis como a língua de Ptah, ou seja, a expressão verbal através da qual o Deus dá existência ao universo. Noutros textos e sempre segundo as mesmas ideias, ele é o “coração de Rê”, a própria essência do seu pensamento criativo (sendo o coração o órgão do pensamentos).» 20

Na Pérsia, essa função coube ao profeta Zoroastro, singularizando Ahura Mazda como criador e senhor único do bem universal. No monoteísmo judaico, aparece Moisés com o mérito de ser o mensageiro da obediência a Yahveh e que no monte Sinai aceitou da sua boca a Torah. No «Livro dos Jubileus», Enoch é o receptor e confidente dos arcanos divinos, aquele que precedeu todos os outros na aprendizagem da escrita e no saber. Na Bíblia é um patriarca de gerações que precederam os quarenta dias da pluviosidade diluviana, alguém que, segundo o Génesis, «andou na presença de Deus.»

Para Bouvet, foi Enoch que «formulou e promulgou a Lei em três formas cada uma das quais adequada ao calibre espiritual e intelectual do grupo a que se destinava. Para a inteligência comum compôs “um conjunto de imagens cujas figuras correspondem aos hieróglifos dos sábios, imagens ou emblemas naturais ou sensoriais dos conceitos por si desenvolvidos, nos quais expressa de um modo nobre, vivo e inteligente todas as perfeições de Deus. Estas imagens tomaram, por um lado, a forma de heróis, dotados com virtudes extraordinárias e, por outro, de fábulas, apólogos e histórias edificantes. Tinham como objecto a interpretação das palavras e doutrinas da Lei Sagrada, numa linguagem simples para gente simples». 21

No islamismo coube a Muhammad acolher do anjo Gabriel a ordem de ler e expandir a Palavra de Deus materializada no Alcorão. Edris foi um dos profetas muçulmanos encarregue de uma incumbência análoga.

Na China, os jesuítas encontraram o exemplo de Fuxi, o mítico monarca que, segundo o neoconfucionista Shao Yong (1011-1077) foi o fundador da Lei. Uma lenda atribui a Fuxi o portento de ter nascido após doze anos de gestação no ventre materno. Ensinou o povo na actividade da pesca, caça e pastorícia, ordenou e civilizou o mundo e, das marcas no dorso de uma tartaruga, inventou oito trigramas (Bagua), a partir dos quais se desenvolveu a filosofia divinatória encerrada no «Livro da Mutações» («Yi Jing»). Este perscruta os ritmos, forças e movimentos

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incessantes do cosmos, tentando percebê-los e interpretá-los.Na Índia hindu, existe Manu (ou Manava), vocábulo derivado da raiz

«Man» («pensar» ou «saber). Manu, literalmente «Homem», foi o pai da humanidade, o primeiro a realizar rituais e austeridades aos deuses, o epónimo e fundador da progénie humana, legislador e autor das «Leis de Manu» («Manavadharmashastra»). Este andrógino, único sobrevivente de uma cheia que cobriu todo o planeta, germinado na eternidade, reproduziu-se, segundo uma versão do mito, a partir de uma das suas costelas. Por outro lado, Sarasvati é a deusa a quem se confere a invenção da língua sânscrita e do alfabeto Devanagari, inspirando com a autenticidade da mensagem védica os sábios ou profetas (Rishis). Ela personifica a fluência verbal, a eloquência, a intuição, tutelando as artes e o conhecimento em geral.

Na obra «The Antiquity of China or a Historical Essay endeavouring a probability that the language of the Empire is the primitive language spoken through the whole world before the confusion of Babel» (1669), de John Webb, infere-se a possibilidade de os chineses serem a prole de uma genealogia radicada em Noé. Depois do Dilúvio, o Génesis Bíblico relata que os filhos de Noé (Shem, Ham e Japheth) e os descendentes destes últimos, dividiram-se por tribos e nações, exprimindo-se numa só linguagem. Foi então que, durante a construção de Babel, Yahveh multiplicou essa língua única numa pluralidade de idiomas, de modo a que os homens não se pudessem entender, disseminando-os por toda a terra. Webb sustentou que, antes dessa repartição de línguas, a china foi povoada por um ramo da estirpe de Noé, ficando, ao contrário do que sucedeu no resto do mundo, preservada a língua bíblica original. Tanto na Índia como na China, existem mitos que falam de uma avita inundação. O «Shatapa Brahmana» e o «Mahabharata» aludem à salvação de Manu da colossal enchente que destruiu todos os seres, devido ao conselho dado por Vishnu encarnando um peixe. A criatura aquática persuade-o a edificar uma embarcação, guiando-a através das águas, até um lugar não submerso onde Manu gera uma mulher que considera sua irmã, com ela acoplando e dela tendo filhos. Na China, persistiram também algumas narrativas acerca de uma calamidade por alagamento. Mêncio (Mengzi, c. 370-290 a.C.) e outros confucionistas colocaram o mais vulgarizado destes mitos no princípio da era humana, quando Yao e Shun governavam o mundo. O caos diluviano foi concertado por Yu, escavando canais para garantir o escoamento da massa de água para o mar, instaurando com a sua proeza uma nova fase no desenvolvimento da humanidade. Assim, segundo Webb,

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como consequência do Dilúvio na China, o mesmo da Bíblia, desapareceram todos os saberes aí vigorantes, vazio apenas colmatado com a chegada do descendente de Noé, identificado com Yao. Alguns jesuítas contemporâneos de Webb opinavam de um modo idêntico, declarando ser a linhagem de Shem a responsável pela propagação da Lei na China, prosseguida por Fuxi. Havia assim uma coesão exordial no cristianismo na qual todas as sociedades participaram.

Kircher admitia um substrato comum nas religiões idólatras, cuja condição actual ele desaprovava, consequente da divinização dos astros siderais. Todas as denominações fictícias para os entes sobrenaturais e respectivas demonstrações de preito firmaram-se na contemplação do firmamento, no enigma e nas expectativas suscitadas pelo sol, pela lua ou pelas estrelas. No entanto, concebendo Deus como uma unidade conciliadora, aceitava a conjuntura de uma essência, de um impulso, de uma disposição psíquica inerente a todas as religiões. «Kircher entende que por detrás da igreja católica e do cristianismo discorre uma corrente religiosa e intelectual que tanto tinha a ver com o Egipto como supunha que o Egipto tinha a ver com a religião hebraica. Porém, o Egipto não era para Kircher apenas a figura de Hermes Trismegisto e as suas revelações cristianizantes, dignas de toda a veneração e respeito, mas era também, pela sua idolatria e politeísmo, a fonte da religião grega e romana, das crenças dos hebreus tardios, dos caldeus e até dos habitantes da Índia, da China, Japão e Américas, territórios, segundo Kircher, colonizados pela progénie de Cam.» 22

Conjecturas e demonstrações estabeleceram nos séculos XVII e XVIII fantasiosos paralelismos entre o Egipto, a China e a Índia. Os nossos conhecimentos e desejos desfiaram-se em teorias explicativas acerca destas grandes civilizações. Por exemplo, Gérard Jean Vossius em «De Theologia Gentili» (Amsterdão, 1641), provou através de um raciocínio na altura convincente para alguns, que os diferentes cultos englobavam como matriz um Deus universal e o Egipto Bíblico. Na asserção do jesuíta Juan Eusebio Nieremberg (1595-1658), em «De Origine Sacrae Scripturae Libri Duodecim» (Lyon, 1641), Moisés e Thot eram a mesma entidade. L. Beurrier no «Speculum Christianae Religionis in triplice Lege Naturali, Mosaïca et Evangelica» (Paris, 1666), abarcou as diferentes religiões do planeta sob a probabilidade de uma fonte primordial, na qual Hermes Trismegisto tivera uma função idêntica à de Fuxi, sendo este último, por seu turno, o próprio Shem. Pierre Daniel Huet na «Démonstration Évangélique» (Paris, 1679) associa o deus Thot a Moisés e ao conceito de Tao. Bouvet e Prémare identificaram Fuxi com Enoch

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e Foucquet com Enoch e Hermes Trismegisto. Samuel Shuckford, na obra «The Sacred and Profane History of the World» (Londres, 1728), concebe Fuxi como sendo o próprio Noé que, após ter desembarcado na Índia, fundou um reino na China, do qual foi monarca.

Max Müller definiu religião como a faculdade espiritual que, suplantando a razão e a sensorialidade, permite ao indivíduo apoderar-se do infinito. Foi talvez com esta consciência que o padre Gabriel de Magalhães se deixa encantar pela cultura chinesa. Na «Nova Relação da China», ele louva as suas crónicas, datando as mais antigas em cerca de dois séculos depois do Dilúvio, bem como os tratados científicos e os dons da literatura em geral. Refere ainda aquilo que «são para eles o que os nossos livros sagrados são para nós», 23 isto é, os «cinco clássicos» (Wu Jing), abarcando o «Livro das Mutações» («Yi Jing» ou «Zhou Yi»), o «Livro dos Documentos» ou «Livro da História», ao qual Magalhães chama «Crónica dos Reis Antigos» («Shu Jing» ou «Shang Shu»), o «Livro da Canções» ou «Livro da Odes» ou «Livro da Poesia» («Shi Jing» ou «Mao Shi»), o «Livro dos Ritos» ou «Memorial dos Ritos» («Li Ji») e os «Anais da Primavera e do Outono» («Chun Qiu»), ao qual Magalhães chama «História do Reino de Lu». O mesmo missionário aponta igualmente os «Quatro Livros Canónicos», descrevendo sucintamente os seus conteúdos. «Todos os nossos religiosos que vêm para esta missão, trabalham e estudam as letras e a língua com as quatro partes deste livro e são dele e dos cinco primeiros que derivam as suas fontes, tantos livros e comentários de diversos autores antigos e modernos, que o número é quase infinito, proporcionando motivos para louvarmos e admirarmos o engenho, o trabalho e a eloquência desta nação.» 24

Longobardo transcreveu no seu tratado (1701) segmentos da «Suma dos Filósofos da Natureza Humana e da Razão» («Xingli Daquan»), resenha anteriormente indicada de filósofos Song e ainda da «Doutrina do Meio», do «Livro da História», dos «Analectos», do «Livro das Odes», do «Memorial dos Ritos» e do «Espelho Polivalente» ou «Compreensivo» («Tong Jian»). Francisco Noël traduziu os seis clássicos chineses, denominando o seu trabalho por «Sinensis Imperii Libri Classici Sex, Nimirum Adultorum Schola, Immortabili Medium, Liber Setentiarum, Mencius, Filialis Observantia, Parvulorum Schola e Sinico Idiomate in Latinum Traducti...» (Praga, 1711), abrangendo o «Grande Ensinamento», a «Doutrina do Meio», os «Analectos», o «Livro de Mêncio», o «Clássico da Piedade Filial» («Xiao Jing») e «Ensinamentos Morais para a

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Juventude» («Xiao Xue») de Zhu Xi.As representações da cultura chinesa devem ser equacionadas e enquadradas na

tripla polaridade de tensões entre uma natural solicitação, a conveniência em propalar a doutrina cristã e o medo do envolvimento, da dissolvência intelectual que pudesse questionar a fé. Porque «aquele que prega para converter tem, em primeiro lugar, de se converter à imagem do ideal do seu interlocutor, definida pelas condições da sua cultura e aceitar alguns dos seus valores.» 25 A aplicação das nossas convicções, do nosso padrão de verdade sobre uma realidade estranha, obrigava o missionário a ter de ser aceite, a ajustar-se, ser integrado na sociedade para onde fora enviado e, para isso acontecer, a ter de se excluir ou a dissociar-se de si, dos seus sistemas simbólicos, da sua atitude de espectador e submeter-se à experiência enriquecedora de abdicar das certezas e sujeitar-se à indeterminação. Tinha de subordinar-se à, por vezes, árdua provação de entrar no palco do Outro, a participar, a confrontar-se e a meditar sobre circunstâncias com as quais não estava habituado. Por isso, também, o entusiasmo de alguns missionários pela rectidão moral proposta pelos pensadores confucionistas, com repercussões na Europa, não deixava de reverberar uma envergonhada denúncia das deficiências patentes nas instituições deste lado do mundo. Muitos tinham consciência de que a sua actividade amiúde parecia mais glorificar a Igreja Romana do que o genuíno cristianismo. A exaltação do idealismo confucionista desvela uma crítica aos dogmas e vícios da sociedade dos comentadores, assumindo uma veia derisória mais desinibida em filósofos como Voltaire ou Montesquieu. Parece-nos sintomática nesta época a literatura sobre utopias. A «Christianopolis» de Johann Valentin Andrea, a «Civitas Solis», de Tommaso Campanella, situada na ilha de Taprobana (Ceilão), a «Oceana» de James Harrington, o «New Moral World» de Robert Owen, a «Utopia» de Thomas More, a «New Atlantis» de Francis Bacon, a «Nova Solyma» atribuído a John Milton ou a Samuel Gott e a utopia cristã do «Reino de Deus na Terra», encontravam um equivalente na finura e correcção moral dos escritos atribuídos a Confúcio. Sobre as qualidades dos actos, normas de conduta e procedimentos cerimoniais, o «Li Ji» propõe uma utopia da «perfeita conformidade» e «maravilhosa felicidade» que os «soberanos da antiguidade souberam por meio das regras estender por toda a parte o reino da justiça e pelo exemplo de uma virtude sincera estabelecer por toda a parte a conformidade (às leis da natureza).»26

Em 1685 Louis XIV ordenou que cinco jesuítas fundassem uma missão francesa em Beijing. Um deles, Joachim Bouvet (1656-1730), quando regressou a Paris em 1697, apresentou um álbum dedicado ao duque de Borgonha com dezanove

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pranchas mostrando imagens do vestuário chinês. Juntamente com os artefactos comercializados, esta obra contribuiu para a saliência do gosto pelas chinoiseries no século XVIII, sucedendo e complementando a moda das turqueries. Jean-Antoine Watteau (1684-1721), François Boucher (1703-1730) e Christophe Huet (1700-1759) foram três artistas favoritos dessa tendência. A China do agrado rocaille era pitoresca e decorativa, um motivo de graciosidade exótica para jardins ou interiores de uma aristocracia afectada e entediada. Uma China de salon, de gabinete ou de camarim, galante e artificial, adorno de espaços nos quais se desenrolavam as intrigas de uma existência hedónica, sensível às coisas insignificante. Um oriente de fantasia explorado também nas festividades e artes de cena.

Sob a protecção dos membros da Societatis Jesu, em 1751 Ko e Yang, dois jovens chineses, atravessaram o oceano para completar a sua educação e «ver o esplendor do cristianismo». Na altura da partida para junto dos compatriotas, o erudito Anne-Robert-Jacques Turgot (1727 - 1781) remeteu-lhes um questionário sobre a China. As respostas auxiliaram-no na redacção da obra «Réflexions sur la Formation et la Distribution des Richesses» (1766). O Escocês Adam Smith terá tido Turgot presente quando dez anos mais tarde publicou «An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations». 27

6. Entre os elementos da Sociedade de Jesus, o proselitismo teve na Índia como expoentes precursores na filologia e tradução Roberto de Nobili (1577-1656), Heinrich Roth, (1620-1668), Constanzo Giuseppe Beschi (1680 - c. 1746), Joseph Tieffenthaler (1710 - 1785) ou Jerónimo Xavier, entre outros.

Numa carta datada de 24 de Outubro de 1583, o jesuíta inglês Thomas Stephens (c. 1549-1619), colocado na Índia entre 1579 e 1619, realçou as afinidades linguísticas entre as línguas que conheceu neste país com o latim e o grego. O mercador florentino Filippo Sassetti (1540-1588) na sua correspondência expedida da Índia, onde ficou entre 1583 e 1589, aludiu à semelhança entre o seu idioma e o sânscrito. Constatações idênticas são observadas nos séculos XVI, XVII e XVIII. Muitos autores insistiram no parentesco linguístico entre o persa, o sânscrito, grego, latim e germânico tais como Bonaventura Vulcanius (1538-1614), Franciscus Raphelengius (1539-1597), o naturalista Abraham van der Mijl (1563-1637), Marcus Zuerius van Boxhorn (1612-1653), Mathurin Veyssière de la Croze (1661-1739), Benjamen Schulze, Claude de Saumaise (1588-1653), Christian Walther, G. S. Bayer, o jesuíta Gaston Laurent Coerdoux (1691-1779), James Burnett (1714-1799), o carmelita Paulinus de Sancto-Bartholomaeo (1748-

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1806), William Jones (1746-1794) ou Nathaniel Brassey Halhed (1751-1830). Nobili chegou a Madurai em 1606, dominou o tamil e o sânscrito, serviu

sobre o Padroado real português, comportou-se como um asceta autóctone num ambiente de desconfiança local em relação à presença portuguesa. Foi acusado de heresia pelos colegas e, para se reabilitar, teve de escrever uma «Apologia». Consultou textos relevantes da cultura indiana para redigir «Informatio de quibusdam Moribus Nationis Indicae» (1613) e «Narratio fundamentorum quibus Madurensis Missionis Institutum caeptum est et hujusque consistit» (1618-1619). «Conhecia sem dúvida os métodos seguidos por Matteo Ricci na China. Decidiu utilizar o mesmo método e ir mais longe. Para conquistar os indianos decidiu fazer-se indiano. Estudou com cuidado os costumes e preconceitos dos brâmanes, e abandonou tudo o que pudesse ofendê-los, tal como comer carne e calçar sapatos de couro. Adoptou o robe ocre (Kavi) do homem santo e até pôde converter-se num Sannyasi Guru, professor que renuncia a todas as formas de ligação com o mundo. Conseguiu dominar o tâmil clássico. Pôde posteriormente aprender telugu e sânscrito. (Foi, crê-se, o primeiro europeu a estudar a antiga língua clássica da Índia). A fim de evitar aquilo que aos olhos dos indianos é a contaminação, afastou-se quase inteiramente da igreja cristã existente.» 28

Recrutados para catequizar, crendo que só há um deus e uma fé, rompendo com os obstáculos culturais, muitos jesuítas facilitaram a comunicação da mensagem cristã optando por uma pedagogia adaptativa, acessível e clara. Porém, os seus métodos geraram polémicas, invejas e conflitos.

Beschi (1680-1746) censurou a falta de cuidado poético na tradução do «Novo Testamento» para tâmil realizada pelo protestante Bartholomaeus Ziegenbalg (1683-1719), seu “émulo” em erudição tâmil. O primeiro encontrava-se em Madurai, no Sul de Tamil Nadu e o segundo dirigia uma missão em Tranquebar (Tharangampadi), porto na costa do Coromandel, fundado por dinamarqueses em 1616. Escreveu uma «Grammatica Latino-Tamulica, in qua de Vulgari Tamulicae Linguae Idiomate Kodun-Tamil dicto fusius tratactur», um «Vulgars Tamulicae Linguae Dictionarium Tamulicum-Latinum» e um dicionário de Português-Latim-Tâmil.

Ziegenbalg obteve e leu textos em tâmil, redigidos em folhas de palmeira ou pagou para que lhe fossem realizadas cópias. Nos dois anos iniciais da sua permanência nesta cidade (1706-1708), ele agregara cento e doze obras em tâmil, entre as quais o «Tiruvachaka» do poeta Manikkavachakar (séc.VIII-IX), brâmane Shivaísta e Ministro do monarca Pandya Arimarttanar e o «Tirukkural» ou «Kural»,

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importante composição em verso, com 133 capítulos de dez dísticos de Tiruvalluvar (séc. II), incidindo sobre a moral, o conhecimento, os deveres individuais, o amor e finanças. Na relação da sua biblioteca, publicada em Português (Tranquebar, 1714), enumeram-se 645 títulos, muitos deles adquiridos na região e escritos no idioma local. Alguns destes tomos foram remetidos ao seu mentor August Herman Francke. Nos arquivos do instituto homónimo (Franckeschen Stiftungen), estão 280 manuscritos em folha de palmeira, dos quais 88 estão redigidos em Tâmil, 188 em Telugu, três em Kerendum e um em Sinhala. O material reunido por Ziegenbald dispersou-se também por Copenhaga.29

Embora fascinado pelas divindades locais, Ziegenbalg considerava o hinduísmo uma forma pervertida de cristianismo, estando os seus adeptos enganados e precisando de salvação, de ser levados para o caminho certo. A dificuldade dos missionários em veicular a sua mensagem, surgia nesta tentativa interesseira de refutar a legitimidade do edifício conceptual dos autóctones, disputando com palavras as crenças, expondo aquilo que consideravam ser incongruências com uma presunção autoritária, havendo dificuldade em perceber que não há verdades intransitivas. Em vez de partilhar saberes, muitos procuraram impor o seu ponto de vista, demonstrar que os outros estavam errados, ao invés de tentar percebê-los, de os encarar como iguais nas dissemelhanças, elevar as suas virtudes e harmonizá-las com a perspectiva cristã. Entender, por exemplo que a «absurda repetição», segundo a qualificação de Kircher, dos Mantras budistas como «Nama Amida Buth» e «Om Manipe Mi Hum», têm um desígnio espiritual equivalente à prece de Hesiacastes a Jesus Cristo.30

Ziegenbalg verteu para Alemão o «Needi Vemba», o «Ulaga Needi», o «Kondrei Venden» (todos em 1708), obras em tâmil versando sobre questões morais. Escreveu uma gramática tâmil («Grammatica Dammulica», 1716) e elaborou ainda as obras «O Paganismo Malabar» («Malabarisches Heidenthun», 1711, só publicado em 1926) e «Genealogie der malabarischen Götter» (1713), um manuscrito expedido para Francke que se opôs à sua publicação, só acontecendo 154 anos depois, justificando a sua decisão pelo argumento de que não competia aos missionários cristãos espalhar o hinduísmo pela Europa.

Na primeira metade do século XVIII muitos manuscritos em tâmil foram enviados pelos jesuítas de Pondichéry (Puducheri, na região de Tamil Nadu) para a biblioteca real em Paris. O avanço missionário implicava para uns a interdição dos sinais tradicionais hindus. A cristianização significava abdicar do legado cultural

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anterior. Para outros, como Nobili, o processo de transformação em decurso admitia uma tolerância dos costumes e práticas comuns entre a população.

Como em alguns trabalhos de jesuítas, a estima e a fascinação depreendida no desvelo das análises de algo que rotulavam de idolatria e superstição, descobre o enlevamento de alguém sensível, com penetração mental, absorvido e deslizando no espaço entre os antípodas culturais, por vezes secretamente perscrutando neles correspondências ou mesmo uma quididade semântica. Um caso interessante é o do jesuíta Henri Doré (1859-1931) que passou 45 anos na China. Apesar do tom reprovador, no que concerne às crenças pagãs, ele redigiu uma importante obra em dezoito volumes, publicados entre 1911 e 1938, sobre uma matéria que refutava, intitulando-a «Recherches sur les Superstitions en Chine». Os tomos seis a doze são retirados da obra «Jishuo Quanzhen» (Xangai, 1879) de um outro jesuíta, Pierre Hoang. Destinada a combater a superstição e, apesar de alguma superficialidade e confusão, ela demonstra um zelo e um rigor que depreende um grande amor pelo assunto, não passando por isso a sua leitura despercebida a qualquer apaixonado por temáticas sinológicas.

No século XVII, Jean-Baptiste Regis traduziu para latim o «Yi Jing», obra enigmática e estimulante para os europeus. No século seguinte, Jean-Baptiste Du Halde traduziu o «Livro de Mêncio». O ensaio de Joseph-Henri Prémare, «Recherches sur les temps antérieurs à ceux dont parle le Chou King», apareceu como introdução à tradução de Paul Gabil do «Shu Jing» (Paris, 1770). Instalado na China desde 1698, o padre Parrenin expediu para França algumas traduções de obras de física, medicina, astronomia e fábulas. Foucquet redigiu um «Essai d’Introduction Préliminaire à l’étude des King» (1726).

Em pertinência com os seus modelos, os missionários contribuíram para aperfeiçoar a Descriptio Mundi e, mesmo quando houve disponibilidade e generosidade para aproximar civilizações, os olhares divergiram, bem como o vocabulário da observação. A Europa recebeu notícias e pareceres sobre realidades exóticas que, implicitamente, apesar de nem sempre ser avocado, ajudou a discernir as nossas limitações e fragilidades. Foi esse, talvez, o testemunho mais importante legado pelos contactos com outros povos. Começámos a ter uma consciência mais perspicaz da relatividade, do «variado juízo das nações», das excepções de um mundo onde estamos porque lhe pertencemos.

7. Warren Hastings (1732-1818) desde 1772 governador-geral da East India Company, recebeu em 1783 o poliglota William Jones (1746-1794) que fundou em

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Calcutá no ano seguinte a Asiatic Society. Jones, um helenista cristão que perseverou na assunção do colonialismo britânico ser crucial para a apreensão das civilizações da Ásia, estudou o sânscrito e projectou-o à categoria de língua de disciplina académica, sustentando nele a importância de uma antiguidade genealógica conectada com o persa, o grego o latim, o celta e o gótico. Promovida e editada por esta sociedade, a publicação «Asiatick Researches», cujo primeiro número saiu em 1788, reunia ensaios sobre as diferentes áreas de abordagem cultural a esta civilização. Outros britânicos como Charles Wilkins (1750-1833) e Henry Thomas Colebrooke (1765-1837) incentivaram este arrebatamento pelas letras indianas com, no primeiro caso, a tradução do «Bhagavad Gita» («Bhagavad-Gita or Dialogues of Kreeshna and Arjoon, in Eighteen Lectures, with Notes, Translated from the Original in the Sanskreet, or Ancient Language of the Brahmans by Charles Wilkins, Londres, 1785), material posteriormente transposto para alemão por Friedrich Majer (1772-1818) e, no segundo caso, com dois textos sobre filosofia e religião védica na «Asiatick Reserches». Jones converteu para latim e depois inglês a peça «Shakuntala» («Abhijnashakuntala») de Kalidasa («Sacontalâ or the Fatal Ring – an Indian Drama by Calidâs», Londres, 1789). A partir desta versão, Georg Foster (1754-1794), amigo de Goethe e de Schiller, publicou a sua tradução germânica (1791) com enorme impacto nos meios eruditos. O teatro sânscrito apareceu assim no mapa das dramaturgias europeias com Kalidasa a par dos seus mais elogiados expoentes. «O romantismo que então nasce na Alemanha reconhece-se e funda-se nesse Oriente que a indiana Shakuntala encarna exemplarmente.» 31 Johann Wolfgang von Goethe interessado desde cedo por textos religiosos, leitor de récitas de viagens como as de Pietro della Valle, Marco Polo, Jean-Baptiste Tavernier, do joalheiro Jean-Baptiste Chardin, Abraham Rogerius e da poesia persa (Saadi e Hafiz) ficou, tal como Jones, maravilhado com a peça de Kalidasa e admitiu o seu autor entre os gigantes da Weltliteratur. Toda a primeira geração do romantismo alemão retém no seu imaginário e sensibilidade traços referenciais das leituras e estudos sobre a Índia, usando-a de um modo mais ou menos singular na filosofia e nas artes. Os românticos anseiam por novas experiências mentais, transpor o comum e captar o essencial. Quase sempre a Índia dos poetas é um motivo feérico, em que a subjectividade se evade ou subtrai de um real falseado pelo calculismo e ganância da burguesia industrial. A nebulosa imagem de um sonho ou de um estado de vidência lírica, o lenitivo para a insatisfação causada por um sentimento de perda, a gratificação para um apetite de autenticidade num presente decepcionante. Uma

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Índia propícia a diletantismos, submetida ao controlo da autoridade intelectual, à emulação e controvérsia entre os sábios do Ocidente, o ingrediente combustivo de especulações metafísicas e ocultistas filtradas pelas várias correntes de pensamento e personalidades do século XIX. O palco no qual era encenada e representada por actores de erudição da época e que, na medida das suas possibilidades e limitações de conhecimento, competiam para brilhar e deleitar com os seus recursos e talentos.

A par do esforço jesuíta do século XVII para decifrar e compreender a identidade indiana, depois de uma década na costa de Coromandel (Cholamandalam, ou «país dos Chola», costa do Sudeste da Índia), o holandês Abraham Rogerius (c. 1573-1639) editou «Porta Aberta para Alcançar o Conhecimento do Paganismo Escondido» («De Open-Deure tot het Verborgen Heydendom», Leyde, 1651) e Philip Baldeus (1631-1671), da mesma nacionalidade publicou em Amesterdão «Da Idolatria dos Gentios das Índias Orientais» («Afgoderye der Cost-Indische Heydenen», 1672). Estas obras originaram a ideia, depois muito disseminada, de uma Índia com uma ancestral «religião natural» mas degradada com o tempo com o politeísmo. Textos ingleses sobre a religião deste território surgiram na segunda metade do século XVIII. O irlandês Alexander Dow (c. 1735-1779) traduziu a obra do historiador persa Muhammad Qasim Firishta (c. 1550 - c.1626 ou c. 1570 - 1612) chamada «Tarikh-I Firishta (c. 1606) em «The History of Hindostan; from the Earliest account of Time, to the Death of Akbar» (1768-1772) acrescentando-lhe o ensaio «A Dissertation Concerning the Religion and Philosophy of the Brahmins», conjunto de reflexões pouco rigorosas nas quais, por exemplo, o termo «Maya» («Maiah» no texto) é trasladado por «afeição» («affection») e «Prakriti» («Pir-Kirti», no texto) por «embraced goodness». Neste trabalho enunciou também, talvez pela primeira vez, um resumo do conteúdo do «Natya Shastra» («Neadirsen Shaster», segundo o texto original).

Os linguistas consagraram as suas energias à análise e à comparação metódica de sistemas. O sânscrito era a matriz desse cotejo. Friedrich Schlegel (1772-1829) durante a sua permanência em Paris, entre 1800 e 1804, estudou persa e depois sânscrito com o escocês Alexander Hamilton (1762-1824). Admirada, imitada e revivida desde a renascença, a cultura greco-latina tinha agora um primórdio indiano. Nela «encontra-se a fonte de todas as linguagens, todas as ideias e poesia do espírito humano: tudo, tudo vem da Índia sem excepção.» 32 Apesar desta sua exaltação, Schlegel viria a ser inconsequente nalguns dos seus projectos orientalistas. Em 1808 publicou em Heidelberg «Sobre o Idioma e a Sabedoria dos Indianos» («Über

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die Sprache und Weisheit der Indier») em três volumes e nesse mesmo ano abraçou o cristianismo. Inseriu nesta obra excertos de traduções do «Ramayana», a parte da criação do mundo contida nas «Leis de Manu», fragmentos do «Bhagavad Gita» e de «Shakuntala». Um dos conceitos indianos centrais (o de Brahman) surgiu, tal como alguns jesuítas antes tinham feito, erradamente substituído para alemão pelo vocábulo «Gott» («Deus»). Na sua «História da Literatura Antiga e Moderna» abordou superficialmente a «literatura dos brâmanes» (Vedas, Upanishads, Manavadharmashastra,) falou levemente de «Shakuntala», do «poema pastoral» «Gita Govinda» (traduzido por William Jones), do «Hitopadesha», do «Bhagavad Gita», do «Bhagavatam» e, sem precisar quais, referiu ainda outras obras que registam relatos orais dos brâmanes. Associou o «Bhagavad Gita» à filosofia neoplatónica («não difere inteiramente dela») e classificou-o de panteísmo poético. Dedicou algum espaço ao budismo, atribuiu a doutrina Nyaya a Gautama Buda, criticou alguns aspectos da religião indiana em paralelismo com as referências cristãs.33

O seu irmão August Wilhelm Schlegel (1767-1845) também indianista e sanscritólogo iniciará em 1820 e durante dez anos a «Indische Bibliotek», versada em estudos indianos conjugando um tom de divulgação mais erudito com um registo mais acessível a um gosto generalizado. Esta publicação veio na sequência de experiências editoriais deste teor sem grande duração como o «Asiatisches Magazin» (nascido em Weimar em 1802) no qual saiu a tradução de Friedrich Majer do «Bhagavad Gita» ou «Fundgruben des Orients» (1805-1815). Majer no segundo volume da «História Cultural dos Povos» («Zur Kultur geschichte der Völker», Leipzig, 1798) intitulado «Sobre a História dos Antigos Hindus e sobre o Alcance de Shakuntala para ela» («Über die geschichte der alten Hindu und den Werth der Sakontala für dieselbe») usa o exemplo indiano para criticar o seu tempo e sociedade.

Franz Bopp (1791-1867) aprendeu persa e sânscrito em Paris e Londres (entre 1812 e 1821) com Antoine Leonard de Chézy e Wilhelm von Humboldt e leccionou filologia e literatura oriental em Berlim durante cerca de cinquenta anos. As suas investigações comparativas de línguas estão reunidas em «Über das Conjugationssystem in Vergleichung mit jenen der Griechischen, Lateinischen, Persischen und Germanischen Sprache», 1816), em «Glossarium Sanscritum» (1830) e na «Gramática Comparada de Sânscrito, Zend, Arménio, Grego, Latim, Lituano, Eslavo, Gótico e Alemão» («Vergleichende Grammatik des Sanskrit, Zend, Griechischen, Lateinischen, Litauischen, Gotischen und Deutschen»,

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Berlim, 1833-1852). Traduziu o episódio de Nala e Damayanti (Londres, 1819), uma parte do «Mahabharata».

Para além de ensaios de mitologia e religião indiana publicados nas revistas da época vários volumes sobre esta temática merecem realce. «Interesting Historical Events Relative to the Provinces of Bengal and the Empire of Industan» (3 volumes, 1765-1671) e «Dissertation on the Metempsychosis» (1771) do irlandês John Zephaniah Holwel (1711-1798), «Über die Religion und Philosophie der Inder» (1778) e «Das Brahmanische Religionssystem…» (1779) de Johann Friedrich Kleuker (1749-1827), que foi o tradutor do «Zend Avesta» para alemão a partir da versão de Anquetil-Duperron (1776-1777), «Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit» (1784-1785) e «Über ein Morgenländisches Drama. Einige Briefe» (1792) esta última sobre «Shakuntala» de Kalidasa de Johann Gottfried Herder (1744 - 1803), «On the Philosophy of the Hindus» (1824) de Henry Thomas Colebrooke, «História dos Mitos do Mundo Asiático» («Mythengeschichte der Asiatischen Welt», 1810) de Josef Görres (1776-1848) ou «Sistema do Mito Indiano» («System der indischen Mythe», 1813) de Johann Arnold Kanne (1773-1824).

Os insistentes relatos de viagem e as transcrições literárias indianas enriqueceram e aliviaram de alguma estagnação os discursos filosóficos europeus. Diligências foram feitas para compreender e exprimir as nossas novas noções sobre as inteligibilizações indianas. Os sábios apossaram-se e adoptaram ao seu modo de raciocinar o pensamento de outra civilização, procurando com novos dados elucidar questões sobre as suas próprias culturas. O «oriental» tinha agora o privilégio de ser definido e clarificado pela vasta sagacidade e dignificadora consistência dos nossos doutos académicos. Alguns textos produzidos vão influenciar o discurso de outros intelectuais, da mesma ou da geração seguinte, mormente, numa primeira fase, no que concerne a uma imagem bucólica, sensual, paradisíaca, serena, delicada, afectuosa e profunda da Índia. Uma Índia quase somente Vedanta, fundamentada por escassas e nem sempre fidedignas fontes, pairava sobre ideias cristãs fortemente arreigadas, servindo para promover disputas, para afirmar a credibilidade e a autoridade da sapiência daqueles que sobre ela debruçavam a sua atenção. Suscitou um certame de artifícios intelectuais no qual os gladiadores da erudição competiam entre si, disputavam a primazia e tentavam obter a aclamação dos pares e destinatários. O conhecimento da língua sânscrita presumia maior agudez, inferia consistência e penetração nas reflexões subsequentes. A eleição do texto escrito e a sua decifração segundo os padrões filológicos estabelecidos nos meios universitários garantia e

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persuadia uma suposta veracidade científica dos estudos em curso. Num horizonte de exploração colonial, a Ásia foi uma arma no jogo de evidenciação e asseveração do pensamento europeu e dos seus ilustres protagonistas. Neste instruído tactear da cultura indiana, os conceitos de transmigração, o sistema de castas, de Brahman, Atman ou Maya são alvo de conjecturas, polémicas, discussões e posições extremadas. Por exemplo, Friedrich Majer verá na organização social deste povo um modelo perfeito. Johann Gottfried Herder e Johann Friedrich Kleuker condenaram-no como nociva superstição. Neste afã transpositor de conceitos nem sempre as opções para as suas formas patenteadas são as mais felizes. August Wilhelm Schlegel que estudou sânscrito em Paris com Antoine Leonard de Chézy e Franz Bopp (entre 1814 e 1816) e leccionou este idioma na universidade de Bona entre 1818 e 1845 traduziu para latim o «Bhagavad Gita» em 1823 e, forçadamente, fez corresponder a palavra «Dharma» a termos como «religio», «pietas», «lex», «officio» ou «gentilitia», o vocábulo «Yoga» a «devoveo», «Brahman» a «numen» e «divinitas». Estes exemplos chegam para desviar completamente o sentido da obra.

8. Sendo em grande parte uma invenção nossa, a Índia subsistiu relativamente intacta e ignota. Enquanto a Europa julgava que a descobria, ela permanecia inacessível, pois o que principalmente se revelava e patenteava eram as coordenadas das estruturações mentais e dos métodos de razoar aplicados a um objecto de estudo. Quanto mais a Índia espelhava e denunciava a mentalidade daqueles que a investigavam mais os sábios europeus pensavam estar a interpretá-la com exactidão. Estas deturpações interpretativas e tendência para estereotipar vão repercutir-se na população autóctone submetida a um jugo estrangeiro. As imagens tidas pelas instituições do colonizador acerca do colonizado vão reflectir-se no segundo. Reduzido à obediência ou dependência o aluno autóctone é moldado segundo a representação oficializada britânica e não pelos parâmetros tradicionais endógenos. A Índia foi entendida como uma nação enfraquecida, esfumada, em decadência, embora com um passado nostalgicamente edénico, foi vista com a admiração e complacência ou com o desdém, a rispidez e a abjecção própria de quem se sente superior.

«O povo indiano com os seus costumes e ideias que pertencem a um mundo bem afastado do nosso, com os seus velhos usos que tão obstinadamente sustenta e com uma organização social que difere completamente da dos outros povos, pode ser visto como um monumento vivo, como uma ruína ainda subsistente do estado da humanidade na alta antiguidade; não o poderemos considerar no estado de degradação em que hoje esmorece sem experimentar um vivo interesse.» 34

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Com afortunada recepção James Mill (1773-1836) apresentou uma perspectiva depreciativa desta cultura em «History of British India» (1817). A sua arrogante atitude de repúdio, fruto de uma soberba ignorância em relação à língua e aos valores indianos vai exercer efeitos nas perniciosas alusões de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), Karl Heinrich Marx (1818-1883) e Maximilian Carl Weber (1864-1920). Curiosamente Hegel sugere que quanto mais pesquisa sobre a Índia menos Índia encontra, depreendendo-se que a sua pesquisa sobre a Índia apenas lhe devolve a sua própria cultura europeia, ilustrando assim essa incapacidade de percepcionar para além do seu mundo restringido.

O cunho de indo-europeu, ainda hoje vigorante, indicando um conjunto de afinidades linguísticas (lexicológicas, morfológicas e sintáxicas) enunciadas por uma população proveniente ou que migrou para a Índia e depois para o Ocidente, apareceu na «Quarterly Review», em 1813, num suposto artigo do médico Thomas Young. Apesar da frequência do emprego deste termo os indo-europeus são «como uma etiqueta para indicar que pelo acaso, por empréstimo ou por conveniências gerais do espírito humano, certos tipos de correspondências me parecem melhor ser explicadas por uma herança comum». 35

Uma nova vaga de usufruto do pensamento indiano foi obtida com a divulgação do budismo entre as elites e o público mais vasto. Francis Buchanan (1762-1829) em 1799, na «Asiatick Researches», inaugurou este interesse dissimilando esta doutrina do bramanismo. Fundador da Société Asiatique (1821) e professor no Collège de France a partir de 1831, Eugène Burnouf (1801-1852) apresentou a «Introduction à L’Histoire du Buddhisme Indien» (Paris, 1844). Mais uma vez as opiniões positivas e negativas dividem os letrados, as atitudes de fascinação e de repulsa procuram captar a cumplicidade dos receptores. Com Burnouf veio estudar em 1845 Max Müller que em Leipzig (1841) aprendera hebreu, árabe e sânscrito com, entre outros, Hermann Brockhaus (1806-1877) e, em Berlim, persa com Friedrich Rückert (1788-1866), gramática comparada com Bopp e filosofia com Schelling. Rückert conhecia igualmente o hebreu e o sânscrito, tendo traduzido o «Gita Govinda» de Jayadeva, extractos dos Vedas, do «Mahabharata» e do «Ramayama». Entre a extensa obra de Müller podemos salientar «Buddhism and Buddhist Pilgrims» (Londres, 1857), prolongando a obra de Burnouf, «History of Ancient Sanskrit Literature, so far as it illustrates the Primitive Religion of the Brahmans» (1859) e as traduções do «Hitopadesha» (1844), do «Rig Veda» (1854, 1856 e 1862), inicialmente tentada em inglês por H. H. Wilson (1786-

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1860) e de os «Upanishads» (1779-1884).Consoante os sujeitos que a abordam verificamos a existência de uma Índia

enquadrada entre o sublime e o vazio, entre o encanto face a uma profusão imaginativa não domesticada, entre uma pureza bárbara e a deterioração, a privação da autonomia individual e do sentido histórico. Uma Índia de defeitos, de louvores e de controvérsia, alvo de uma curiosidade sem paralelo. Ou se apresentava como um espectáculo artificioso e maravilhoso ou era adoptada e sintetizada pelas nossas capacidades para a inteligibilizar e representar. Os estudos mais sérios sobre esta cultura nasceram de uma iniciativa expansionista e colonial, de uma vontade de assimilação, de integrar, de tornar o interlocutor igual. Ao contrário do que aconteceu com os peregrinos chineses e salvo raras excepções, o desejo de compreensão era egoísta e pretensioso. Os europeus não descobriram a Índia com a humildade de quem procura ampliar os conhecimentos. Contemplando as suas águas apenas viram os seus próprios reflexos julgando tratar-se de outra coisa. Por isso a Índia descreve mais as feições e as contorções intelectuais de quem a observa, compõe o nosso próprio modo de entender e, por isso, mesmo quando vulgarizada, mantém-se estranha e indeterminada no seu silêncio.

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Referências:

1 - Richard Gombrich, Etienne Lamotte e Lal Mani Joshi, «Buddhism in Ancient India», incluído no volume «The World of Buddhism», Thames and Hudson, London, 1991

2 - Asvaghosha, segundo a tradução chinesa de «Dharmaraksha», vertida para Inglês por Samuel Beal, incluído no volume «Sacred Books of the East», The Colonial Press, New York, 1900

3 - Idem4 - Paul Demiéville, artigo incluído no «Dictionary of Oriental Literatures», vol. I, Basic Books,

New York, 19745 -M. Filliozat, mencionado por Etiemble, «L’Inde du Bouddha», Calmann-Lévy, Paris, 19686 - Martin Noth, «The Old Testament World», Adam & Charles Black, London, 1977.7 - René Grousset, «Sur les Traces de Bouddha», L’Asiatèque, Paris, 19918 - Guillaume de Rubrouck, Ambassador de Saint Louis en Orient - Récit de son Voyage»

(traduzido do latim por Louis de Backer), Ernest Leroux, Paris, 1877.9 - Tzevtan Todorov, «Fictions et Vérites», «L’Homme», vol.XXIX, nº 111-112, Paris, Juillet

- Décembre 198910 - Faxian, mencionado pelo escriba no final de «The Travels of Fâ-Hien», traduzido por

James Legge, incluído na obra «Oriental Literature - The Literature of China», The Colonial Press, New York, 1900

11 - «L’Inde en Rapport avec l’Europe», Moutardier, Paris, Ano VII da República Francesa12 - Mirza Ahmad Sohrab, «The Bible of Mankind», Universal Publishing, New York, 1939.13 -Mencionado na compilação de Wing-Tsit Chan, «A source book in Chinese Philosophy»,

Princeton University press, Princeton, 1973.14 - David E. Mungello, «The Spirit and the Flesh in Shandong, 1650-1785» Rowan & Littlefield,

Lanham, 200115 - Idem16 - Alain Viaut, «Le Pouvoir Magique de la Langue», «Cahiers Ethnologiques», nº 14,

Université de Bordeaux II, 1992.17 - Steven Roger Fisher, «Uma História da Linguagem», Temas e Debates, Lisboa, 200218 - «Ramayana» tibetano (manuscrito encontrado em Dunhuang, tradução para Francês de

Jagbans Kishore Balbir), Adrien-Maisonneuve, Paris, 1963.19 - Carta de Joachim Bouvet ao abade Bignon, mencionado por Arnold H. Rowbotham, «The

Jesuit Figurists and Eighteenth-Century Religious Thought», incluído no volume «Discovering China: European Interpretations in the Enlightement», University of Rochester press, Rochester, 1992

20 - Georges Posener (direcção), «Dictionnaire de la Civilisation Égyptienne», Fernand Hazan, Paris, 1959.

21 - Mencionado por Arnold H. Rowbothan, opus cit.22 - Ignacio Gómez de Liano, «Athanasius Kircher, Itinerario del Éxtasis o las Imágenes de un

Saber Universal», Ediciones Siruela, Madrid, 199023 - Gabriel de Magalhães, «Nova Relação da China», Fundação Macau, Direcção dos serviços

de educação e juventude, Macau, 1997

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24 - Idem25 - Brijraj Singh, «The first Protestant Missionary to India», Oxford University press, New

Delhi, 199926 - «Li Ki» (Mémoires sur les Bienséances et les Cérémonies), tradução de Séraphin Couvreur,

Tomo I, Segunda Parte, Cathasia e Éditions Sulliver, Paris, 195027 - Henri Cordier, «La Chine en France au XVIIIe Siècle», Henri Laurens, Paris, 191028 - Stephen Neill, «Missões Cristãs», Ulisseia, Lisboa, s.d.29 - Consultar Brijraj Singh, opus cit.30 - Joscelyn Godwin, «Athanasius Kircher, a Renaissance man and the quest for Lost

Knowledge», Thames and Hudson, London, 197931 - Lyne Bansat-Boudon, «Théâtre de l’Inde Ancienne», Gallimard, Paris, 200632 - Schlegel, carta a Ludwig Tieck (1803), mencionado por Christine Maillard, «L’Inde vue

d’Europe», Albin Michel, Paris, 200833 - Friedrich Schlegel, «Histoire de la Littérature Ancienne et Moderne» (Tradução de William

Duckett), 2 Volumes, Th. Ballimore, Paris, 182934 - Idem35 - Georges Dumézil, emissão da France Culture, «Les Lundis de l’Histoire» (23-11-1981),

mencionado por Jean Batany, «Mythes Indo-Européens ou Mythe des Indo-Européens: le Témoignage Médiéval», «Annales», Ano 40, Nº. 2, Armand Colin, Março-Abril de 1985

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SOLTOS

A passividade cubanaperante Guantanamo

Uma das questões mais discu-tidas durante a campanha para as eleições do Presiden-te da Republica dos Estados

Unidos, esteve associada à prisão de Guanta-namo, instalada no enclave norte-america-no em território Cubano, consequência da guerra entre a Espanha e os Estados Unidos, que permitiu que o território norte ameri-cano, integrasse terras espanholas, entre as quais a Ilha de Cuba, reconhecida em 1942 por Cristóvão Colombo. Uma das suas ca-racterísticas deriva das condições politicas impostas pelo colonizador, que utilizou o recurso aos “encomenderos” para organizar a disciplina politica e económica da Ilha.

Um dos “encomenderos”, foi Frey Bar-tolomé de Las Casas, figura que não poucos indianistas consideram, sobretudo a partir da controvérsia de Valladollid, em 1550, um bom defensor dos índios, sujeitos a uma politica genocidiária, como foi sempre a constante espanhola nas Américas. Trata-se sobretudo de um terrível equívoco, pois o “encomendero” dá conta da rápida liqui-dação dos índios, pelo que propôs ele uma solução: dada a sua rápida desaparição, havia que os substituir por africanos, muito mais robustos que eles e capazes por isso mesmo

de assegurar a máxima rentabilidade deste novo território. Pode por isso afirmar-se que coube a Frey Bartolomé propor o recurso aos africanos, o que aumentou amplamente o números de escravos transferidos das terras africanas pelo tráfico negreiro que só esgotou a sua capacidade deletéria, a partir de 1850, em virtude da legislação brasileira proposta pelo Senador Euzébio.

Fracassadas as poucas tentativas de alcan-çar a independência foram os cubanos mas-sacrados pelas guerras internas, que se agra-varam em consequência da guerra com os Estados Unidos, que resultou na derrota dos espanhóis, que renunciaram à ilha de Cuba que, até 1932, foi governada pelos norte americanos. Semelhante situação põe em evidência o apetite colonial dos norte ame-ricanos, visivelmente esquecidos dos prin-cípios aprovados em Filadélfia. A explosão provocada pela derrota do ditador Fulgêncio Batista, resultado da guerra de guerrilha im-posta por Fidel Castro e os seus amigos, par-ticularmente o médico argentino Ernesto Che Guevara. O discurso feérico do guia do “guia” da revolução, o advogado de origem galega Fidel Castro, levou quase toda a gente a esquecer os particularismos sociopolíticos resultantes da pressão colonialista dos espa-

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nhóis, que foram substituídos nessa função pelos norte-americanos.

Deve referir-se o facto de Cuba ter conti-nuado a funcionar, para os espanhóis, como um território que seria impossível abando-nar. Se é certo que a sociedade cubana rece-beu milhares e milhares de africanos, prin-cipalmente de dois grupos, os ba-kongos, muito maltratados pela sociedade cubana e os originários da Costa do Outro e da Costa dos Escravos cuja presença ainda hoje é visível em instituições como as “santerias”. Parece menos visível a contribuição dos ba-kongos, embora M. Barnet tenha posto em evidência a sua participação na estruturação do facto re-ligioso, sempre fundamental na estruturação das sociedades bantas. O racismo espanhol, treinado na península ibérica, e incidindo sobre as minorias árabes e judias, alargou-se um pouco mais tarde quando se tornou in-dispensável importar milhares e milhares de africanos. Fiéis aos seus princípios racistas, os espanhóis, como os portugueses, deram ori-gem a milhares de mulatos, frequentemente bem tratados pelos espanhóis.

A grande viragem cultural cubana regis-tou-se à volta dos anos 30, quando criadores como Nicolas Guillén, decidiram classificar-se como “negros” respondendo aos boletins utilizados no recenseamento. Esta operação revolucionaria integra-se num espaço cultu-ral que se apoia, em Cuba, no “negrismo”, mas que na Europa, ou melhor em Paris, permitiu a emergência da “negritude” que sustentava um projecto cultural que só muito

mais tarde daria lugar a um projecto político. Se, por um lado, os afrocubanos, propu-nham uma revisão drástica da situação, os espanhóis mantiveram um profundo inte-resse por Cuba, como se pode ver nas muitas “havanezas” que se multiplicaram em Espa-nha, assim como no consumo dos “puros”, os charutos da burguesia, tendo-o sido tam-bém dos revolucionários. A emigração gale-ga para Cuba – evocada tanto por Rosalia de Castro como Curro Henriquez – reforçou as relações entre Espanha e os cubanos. Bas-ta, nos dias de hoje, abrir um jornal como o El País para encontrarmos uma nuvem de pequenos anúncios sexuais, nos quais mui-tas mulheres gabam as suas condições físicas, seios e nádegas, salientando-se tratar-se de cubanas.

Nestas circunstâncias, Cuba tornou-se uma colónia dos Estados Unidos, havendo por um lado a produção agrícola normal, assentando na cana-de-açúcar e no açúcar, assim como no tabaco. Encontramos nesta circunstância o selo do facto colonial, já que as produções mais importantes se destinam à exportação, o que provoca sempre a necessi-dade de importar a maior parte dos artigos que caracterizam as sociedades modernas. Não é por isso de admirar que as forças po-liticas cubanas se tenham organizado para eliminar o poder ditatorial de Fulgêncio Batista, substituído por uma “ditadura de-mocrática”. Esta pode parecer perversa, corresponde bem ela ao discurso e à prática de Fidel Castro e dos seus amigos, alguns dos

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quais foram alguns anos depois eliminados politicamente, embora alguns tivessem sido metidos em cadeias destrutoras, ou pura e simplesmente executados. Direi apenas que a herança do “facto colonial” corrompe os sis-temas ideológicos, assim como exige a liqui-dação dos puros revolucionários, pouco ca-pazes de se submeter à vigilância da ditadura.

Esta situação obriga-nos a considerar um aspecto, é certo que particular, mas nem por isso menos importante: os Estados Uni-dos impuseram o bloqueio de Cuba, deve considerar-se a maneira como os cubanos quiserem ver-se livres dos americanos. Con-sultando os documentos da época, podemos verificar que o aparelho político cubano permitiu que, no seu enclave os americanos, fizessem o que queriam. Está-se perante um paradoxo, na medida em que os revolucio-nários, renunciavam à expulsão dos nor-te-americanos, como seria de esperar e foi esperado por milhares de apoiantes do novo regime cubano.

Nem quando a ingenuidade norte-ame-ricana permitiu e apoiou o ataque à “baia de los cerdos”, facilmente repelida pelas for-ças cubanas, se pôs em causa a existência de Guantanamo, que constitui uma surpresa para quantos não dispunham de “dossiers” capazes de lhes fornecer a carniça teórica in-dispensável à nossa antropologia cultural.

Parece útil reflectir a propósito do gosto norte-americano pelas prisões onde os de-tidos são submetidos a tratamentos simples-mente desumanos, a começar pela castração

que resulta das regras prisionais. A sociedade norte-americana encara estas prisões como sendo as fortalezas da ordem. Quem não parou um dia no cais de S. Francisco para admirar a prisão de Alcatraz (o substantivo desapareceu do nosso quotidiano, mas servia para designar os pelicanos; havia um com ar um pouco reformado nos dias em que re-cusei visitar a prisão). Há milhares de presos nas cadeias norte americanas, tendo a gestão de George W. Bush reforçado o contingente interno. Tendo a reacção face ao atentado de 11 de Setembro de 2001 dado nova função a Guantanamo, ao mesmo tempo que ia es-tabelecendo acordos com vários governos, ainda hoje por conhecer, e a CIA criado prisões nos países democráticos europeus.

A pergunta que me parece inevitável, mas que ainda não foi feita à escala universal, é seca mas instrutiva: porque razão não pro-testaram os cubanos contra a transforma-ção do enclave de Guantanamo em prisão política, especializada em tortura, infligida sobretudo aos militantes muçulmanos? E mesmo agora?

Já sob a presidência de Barack Obama, verificamos o mesmo silêncio por parte das autoridades cubanas, mesmo se o Presidente Obama já autorizou a libertação de alguns desses presos, cuja culpabilidade nunca foi demonstrada. O facto de ter havido gover-nos democráticos que autorizaram os nor-te-americanos a criar prisões onde se podia aplicar – e se aplicou – a tortura, não pode deixar de nos impressionar. Quando apa-

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receram em todos os media mundiais as foto-grafias que mostravam soldados americanos em via de maltratar os prisioneiros muçul-manos, podia ter-se chamado a atenção para a banalização da violência e da tortura. Já todos nós assistimos a filmes que propõem as descrições das técnicas utilizadas pelos nor-te-americanos para proceder à domesticação dos soldados, fazendo de um adolescente às vezes meigo, uma besta feroz, capaz de redu-zir os adversários – quase sempre inventados – a uma massa viscosa e fatalmente repelente. A rigidez da organização, a rejeição de qual-quer opção individual, vão no sentido de transformar os militares em puras peças da mecânica da repressão, em autênticos ani-mais selvagens.

Terminarei com uma curiosidade su-plementar, já não estamos em condições de esclarecer a teia de decisões que dizem respeito a Guantanamo em particular, mas que podemos alargar a outras prisões, pois, até agora, os países democráticos que criaram prisões novas ou autorizaram os americanos a servir-se das já existentes, não fornece-ram nenhuma indicação útil. Podemos, de resto, integrar neste quadro repressivo o Presidente da União Europeia, o “nosso” Durão Barroso, que depois de ter servido de moço de recados do primeiro-ministro espanhol, Aznar, parece disposto a manter esta orientação. É evidente que estes com-portamentos remetem para usos e costumes não democráticos. Não é de admirar, pois só muito dificilmente se conseguirá integrar o

Presidente Bush entre os democratas. Não é o facto de não saber muito bem inglês que o desautoriza, embora seja lamentável que um homem político colocado no plinto do po-der, não seja capaz de evitar a tolice, que o faz sorrir. Em situações mais polémicas haveria que considerar o Presidente Bush como um criminoso de guerra. Desgraçadamente as nossas democracias acabam por ser dema-siado flexíveis face a estes criminosos, prefe-rindo meter na cadeia e julgá-los, os antigos dirigentes do Ruanda, do Kosovo e de países deste jaez.

Não é que não o mereçam, mas podia-se esperar uma intervenção internacional menos marcada pela cumplicidade com os grandes criminosos de guerra como Bush.

A.M.

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Bento XVI: Um Papa que também vestia a farda das SS

Somos um país católico, que pratica contudo um cato-licismo muito particular, sendo antes um catolicismo

cismático. Não há católico português que não pratique uma forma particular de cisma, que lhe permite multiplicar as infracções. Quando se presta alguma atenção à maneira como o catolicismo, que continua a aparecer com dema-siada frequência como sendo a religião do Estado constitucionalmente laico se desenvolveu, verificamos que se trata de um catolicismo muito especial, que encontra concorrência nas demais re-ligiões praticadas no país – islamismo, protestantismo, religiões ortodoxas e outras – havendo sobretudo que prestar a maior atenção às religiões costumeiras – rejeito o “popular”, que se utiliza so-bretudo quando estas religiões são ana-lisadas pelos etnólogos – tais a feitiçaria, a bruxaria, a adivinhação. Verificamos sobretudo que não se regista a mínima cultura teóloga e que um texto funda-mental como a Bíblia, indispensável entre os protestantes, não encontrou o mínimo eco entre os crentes portu-gueses, incluindo – não sem surpresa

– muitos protestantes.Tal não nos deve impedir de consi-

derar a maneira como se vive entre nós a verdade religiosa, assim como nos de-vemos interessar pela multiplicação dos dogmas que têm feito da religião cató-lica não um franciscanismo, mas uma religião dogmática que dá ao chefe da Igreja uma autoridade que recusa qual-quer fraternidade. Estamos perante uma maneira pouco fraterna de viver a religião, quer no espaço íntimo de cada um, quer nas práticas colectivas que exigem a fraternidade, de que a Igreja actual parece muito separada. Não foi por mero acidente que me referi ao franciscanismo – que alguns dos nossos intelectuais, tais Jaime Cortesão, quise-ram considerar como a nossa religião mais capaz de sacralizar o quotidiano, um pouco no caminho que foi o de Jo-aquim de Fiora.

Interessa agora analisar as condições em que o chefe actual da Igreja, o Papa Bento XVI, antigo cardeal Ratzinger, dirige os destinos de uma instituição presente no mundo inteiro, seja qual for a forma dessa presença, embora seja esse o problema a tratar. A última de-

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cisão tomada pelo Papa, o levantamen-to da excomunhão que fora decretada contra os quatro bispos da Fraternida-de São Pio X. Esta medida provocou no mundo religioso, não só entre os crentes católicos, uma surpresa que se transformou rapidamente em indig-nação, mutação para que contribuiu o Bispo integrista Richard Williamson ao empunhar outra vez o facho do nega-cionismo, afirmando que não houvera Holocausto nos campos de concentra-ção nazis – confunde-se quase sempre os campos alemães com a totalidade dos campos, deixando de lado os campos italianos, assim como a parte que lhes coube no Holocausto.

Os média de todas as classes e cate-gorias empenharam-se em denunciar a facilidade com que agira o Papa, ex-cardeal Ratzinger. Confesso que me perturba esta manifestação de surpre-sa, pois a biografia do Papa, não pode dissimular pelo menos dois compor-tamentos singulares na já longa vida do Papa. A primeira diz respeito à sua re-lação com o nazismo. Numa entrevista concedida ao Le Monde, o teólogo alemão Hans Küng salienta o facto de o Papa, ter sempre vivido em meios eclesiásti-cos, viajando pouco, tendo passado a vida fechado no Vaticano “que é como o Kremlin de antigamente”. Um filósofo também alemão, Kurt Flasch não hesita em afirmar, a respeito de Bento XVI,

“ser claro como a água da fonte que o Papa não tem nada a ver com o racismo nem com o anti-semitismo”. Os dois sábios alemães julgam de forma algo divergente as decisões de Bento XVI, esquecendo todavia, um e outro, pelo menos dois particularismos que nos podem ajudar a compreender a manei-ra como este Papa se empenha em lim-par o sarro teológico que caracteriza os quatro bispos da Fraternidade São Pio X, excomungados por duas razões, uma das quais é raramente posta em evidên-cia: a primeira deve-se ao facto de os bispos desta Fraternidade – que, como se vê, é muito pouco fraterna – não só terem condenado o concílio Vaticano II, mas persistir em antijudaísmo, cir-cunstância que os leva, a todos, a um anti-semitismo que se enraíza na teoria e na prática nazis ou fascistas. É sabido há muito, nos meios eclesiásticos, que a missa em latim – sendo a língua, que Cristo nunca conheceu nem falou, um mero espantalho para assustar os cren-tes – não faz mais do que dissimular a rigidez tanto teológica como existencial destes bispos e dos padres que eles or-denaram.

Não será pois o latim que concorre-rá para tornar mais brutal o balanço do Holocausto. Muitos dos que morreram nesses terríveis campos de concentração conheciam profundamente o latim. O que os matou foi a brutalidade neopagã

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do nazismo, que sempre entendeu mal os filósofos que utilizou como aconte-ceu com Nietzsche. Mas em tudo isto há uma sombra nazi que tem sido cui-dadosamente posta de lado, certamente com receio de que ela venha a provocar o mesmo eco criado pela confissão de Gunther Grass de que tinha acabado a guerra, mau grado a sua pouca idade, nas fileiras das SS. Esta confissão tardia desencadeou uma tempestade, e Grass perdeu algumas das suas medalhas. Ora, a não ser os distraídos, quem não sabe que o Papa Bento XVI foi na sua juven-tude do fim da guerra membro das SS? Não certamente por vontade própria, mas não se ouviu até hoje a menor des-culpa provinda deste teólogo de outros tempos. Não podemos pôr de lado a maneira irónica como Hans Küng julga o passadismo do Papa: “ele não evoluiu e tenho a certeza de que se alguém lhe per-guntasse a razão pela qual divergimos ele diria: “Foi Küng que mudou, não eu!”

Teria apreciado que Küng, quando se refere ao encerramento do Papa no Vaticano, sempre a contas com os mil e uns aspectos de um “Kremlin católico” – com agradecimentos a Küng – nos ex-plicasse qual o foi o sector no qual mais se fez sentir a actividade do cardeal Rat-zinger: nada menos nada mais do que o Santo Ofício! Ou seja o mecanismo que alimentou em carne humana e em di-nheiro, a estrutura repressiva por exce-

lência do catolicismo. Nathan Wachtel, judeu asquenaze nascido em França, e que teve a sorte de escapar à repressão do ocupante nazi, vai a ponto de repetir uma afirmação de António José Sarai-va: “A Inquisição não prendia judeus, criava-os!” Mostrarei a seu tempo e em outro lugar, que tal não foi o caso, pois acredito que os judeus procuraram de-fender, com o corpo e com o espírito, a sua condição de judeus que não nos pode impedir de denunciar a teimosia com a qual a Igreja católica não só quer manter os seus dogmas, como insiste em destruir, física e moralmente, aque-les que considera ou faz seus inimigos.

A longa lista de homens e de mu-lheres presos, torturados e condenados à morte em condições infra-humanas – que não podem deixar de nos lembrar as prisões e os campos de concentração, de que fui contemporâneo, abrigado pelo bloco geográfico formado pela Es-panha e pelo nosso país. Não fui liber-tado da guerra pelo salazarismo anti-se-mita, pois fiquei para sempre marcado pelo que ouvi e li, e que só mais tarde pude ver. E são muitos os meus amigos judeus que ou puderam escapar às ma-lhas das polícias – como o malogrado professor Joseph Gabel que conseguiu fugir de uma esquadra da polícia fran-cesa, que o identificara mau grado ser psiquiatra das forças armadas francesas, a que acrescentarei o olhar melancólico

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de Pierre Vidal-Naquet medindo a fu-maça que bloqueava o horizonte, como se fosse o fumo das fornalhas em que se tinham transformado seus pais, presos e deportados pela Gestapo.

Não sou católico e pertenço a uma família pouco crente e ainda menos praticante, tendo havido alguns meus parentes remotos que entraram para sempre nos cárceres da Inquisição. Já então estávamos do lado contrário à Igreja da Inquisição. Em Paris, choca-me a leitura das placas que em muitos edifícios lembram as rusgas das forças franco-alemãs que, em alguns casos levaram dezenas de pessoas, de que só restam as lembranças gravadas na pedra ou inscritas nos livros sem-razão das prisões, dos comboios – este instrumento tão civilizado, desviado da sua função pelos anti-semitas – que também eram anti-homossexuais, antiloucos, anticiganos, anti-africanos, em função da sua exaltação dos puros arianos que, pelo visto, incluem também o Papa Ratzinger!

A.M.

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LIVROS

Pereira, João Martins – As voltas que o capitalismo (não) deu, Lisboa, Edições Combate, 2008Joaquim Jorge Veiguinha

João Martins Pereira, fale-cido em 2008, notabilizou-se no nosso panorama inte-

lectual com livros paradigmáticos, de que se destacam “Pensar Portugal Hoje”, conjunto de ensaios sobre os últimos anos do regime fascista na sua versão marcelista (1971) e o magnífico “Indústria, Ideologia e Quotidiano” (1974), em que é analisada a estrutura industrial portuguesa em termos de composição tecnológica, o fenómeno da formação de uma taxa média de lucro, em consequência dos diferentes graus de intensidade capitalista dos sectores de actividade económica e as práticas reite-rativas da reprodução de um modo de vida marcado pelo trabalho assalariado e por um processo de acumulação de capital que começava a pôr definitiva-mente em causa o ruralismo salazarista.

Em 1975, após ter pedido a demissão de secretário de Estado do 4º Governo provisório, escreve o ensaio “A transição para o socialismo”, onde faz uma análise do debate soviético sobre a construção de uma economia socializada, dando particularmente destaque à polémica, hoje historicamente datada por ignorar

inaceitavelmente que não é possível construir uma sociedade socialista sem democracia, entre Preobraensky e Bukharine, mas não esquecendo os contributos de autores mais preocupados com a questão política da democrati-zação da sociedade, de que se destaca Gramsci. Provavelmente consciente das insuficiências do debate soviético centrado nesse oximoro preobrajens-kiano da “lei da acumulação socialista primitiva”, publica, em 1980, o seu livro mais sistemático Sistemas económicos e consciência social – para uma teoria do socialismo como sistema global, onde analisa os debates mais fecundos sobre o “socialismo de mercado” e outras perspectivas e critica as teorias neopositivistas sobre o equilí-brio dos mercados. Em 1983, edita No reino dos falsos avestruzes – um olhar sobre a política, em que se confronta com os atavismos dos barões da política portuguesa e seus epígonos. Em 2003, escreve Para a História da indústria em Portugal 1941-65, livro onde analisa a emergência do modelo de industrialização do país no período do Estado Novo.

Em boa hora, foram publicadas em livro uma série de artigos do

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autor, escritos entre 1988 e 1999 no jornal Combate. A sua grande riqueza e perspicácia crítico-analíticas tornam embaraçante a nossa escolha. Optámos pelas análises de João Martins Pereira sobre as relações entre Portugal e União Europeia, bem como pelas suas críticas, sempre fundamentadas e argumentadas, aos atavismos e provincianismos das classes empresarial e política portuguesa. Uma das frases-chave da propaganda oficial é, sem dúvida, a da “moderni-zação” da pátria com a entrada na UE. Mas, em que se baseou a tão propalada “modernização”? A resposta do autor é clara e incisiva: houve uma “moder-nização” pelo consumo, mas não uma modernização dos processos produ-tivos. Portugal, um dos elos mais fracos da divisão internacional de trabalho, vê as suas indústrias exportadoras tradi-cionais em crise profunda e assiste passivamente ao desaparecimento das indústrias básicas (siderurgia, construção naval, metalomecânica pesada) em atraso irreversível relativamente ao novo para-digma tecnológico.

Que restou então? Os padrões e as expectativas de consumo que apenas puderam ser “sustentados” à custa do endividamento crescente das famílias. Mas isso significa que, em geral, os portugueses com os seus computadores de banda larga, telemóveis de 3ª geração e outros gadgets podem ser comparados

aos selvagens – com o devido respeito por estes dignos personagens – fasci-nados pelas contas de vidro que lhes são vendidas a caro preço pelos novos colonizadores. Com a agravante de que quem não produz coisas também não produz ideias e corre o risco de trans-formar-se numa espécie de “reserva índia” da UE “folclórica, simpática e baratíssima para os turistas” (p. 25).

Ao contrário do que tem acon-tecido em Portugal, a “modernização”, conceito ambíguo e pouco claro, passa necessariamente pela produção, pois é aqui que “convergem as capacidades intelectuais e criativas de uma comu-nidade: o nível da educação; o espírito de descoberta, de inovação, de criação; o culto da experimentação e da investi-gação; o gosto pelo trabalho colectivo, etc.” (p. 69). No entanto, nada disto aconteceu! Portugal continua a ser um país onde campeia o individua-lismo irresponsável, o analfabetismo funcional, a iliteracia e a incultura. Paralelamente, a nação foi totalmente incapaz, após a sua adesão à União Europeia, de construir uma base industrial moderna. O clusters da equipa de Michael Porter, centrados nos sectores exportadores tradicionais, não podem constituir uma alternativa viável para o nosso atraso industrial. Basta pensar, por exemplo, como a abolição do Acordo Multifibras, em 1995, que

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protegia a indústria têxtil portuguesa da concorrência de países exteriores à União Europeia, assestou um rude golpe num sector oriundo da primeira Revolução Industrial, que sempre sobreviveu à custa dos baixos salários e da precária qualificação e formação da força de trabalho.

Portugal apesar de ter construído uma “indústria de base”, se bem que de dimensões restritas, não conseguiu acompanhar ou “dar o salto” qualita-tivo para o novo paradigma tecnológico das indústrias móveis da “sociedade da informação e do conhecimento”. Foi perdendo as suas tradicionais indús-trias de base incapazes de se adaptarem aos novos tempos que exigem a fabri-cação de produtos mais leves e meios de trabalho mais elaborados e intensivos em conhecimento e não conseguiu verdadeiramente superar o seu atraso na agricultura e nas pescas, como o provam os défices crescentes das respec-tivas balanças de transacções com o resto do mundo. Onde está então a tão propalada modernização que alguns não se cansam de apregoar aos quatro ventos? Para João Martins Pereira, o que se “modernizou” foram “os padrões de consumo, as expectativas de consumo, nem que seja à custa do cres-cente endividamento das famílias” (p. 82). Tem-se (des)construído, assim, um país “moderno” apenas “à super-

fície, como nos tempos das «indústrias de base», mas produzindo cada vez menos, trate-se de produtos ou ideias” (pp. 82-83). Neste sentido, “de entre o imenso «lixo» supostamente moderno produzido em cada tempo, só o futuro acaba por decidir o que foi verdadeira-mente moderno, porque portador de transformações vindouras” (p. 83).

Outra das lamentações recorrentes é que Portugal perdeu ou vai perder o comboio das novas tecnologias ou da terceira Revolução Industrial. Não é, porém. a distribuição de computa-dores de banda larga pelos alunos das escolas do ensino básico e secundário que poderá por si só contribuir para que Portugal assuma o novo paradigma de desenvolvimento científico e tecno-lógico. No que respeita ao comboio do desenvolvimento, Portugal entrou na estação errada ou enganou-se na linha. O país continua a ser flagelado pelos baixos níveis de formação, nunca apostou verdadeiramente na educação e na cultura e viveu durante séculos à custa de recursos externos, provenientes das colónias, das remessas de emigrantes e, mais recentemente, dos fundos da União Europeia, que apenas têm servido para mascarar o atraso estru-tural e para introduzir novas formas de dependência relativamente ao exterior que o transformam num “país assistido, colonizado ele próprio” (p. 86). Com a

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desindustrialização que nos últimos anos não tem parado de avançar, Portugal é cada vez mais um país de trânsito, em que circulam cada vez mais mercado-rias importadas produzidas por outros e onde proliferam cursos profissionais de marketing para formar pessoas especia-lizadas em impingi-las ao consumidor passivo. Apesar do país produzir rela-tivamente cada vez menos em termos de valor, como o provam os défices crescentes da sua balança comercial, os consumidores nacionais rendem-se cada vez mais ao dinheiro de plástico, aos cartões crédito e débito e ao dinheiro electrónico, formas que expressam a desproporção crescente entre o que se consome acima dos próprios meios e a anorexia produtiva, sobretudo antes da eclosão da actual crise sobre a qual João Martins Pereira já não teve oportuni-dade de reflectir. Perpétuo não ser, o país está a atingir o estádio supremo do consumo passivo sem grandes alterna-tivas no horizonte, já que um número crescente de empresas estrangeiras há muito instaladas em Portugal tendem a deslocalizar a sua actividade para outras paragens, enquanto as chamadas “indústrias de base” desapareceram praticamente e as exportadoras tradicio-nais perdem dia a dia quotas de mercado perante a concorrência estrangeira por não terem conseguido apostar numa nova gama de produtos mais diversifi-

cados e de maior valor acrescentado.Transformados em indígenas para

atracção turística, os portugueses estão cada vez mais reduzidos a uma reserva de trabalho barato e precário para projectos imobiliários faustosos, simpáticos servos da gleba de uma economia rentista, parasitária e anacrónica dominada por alguns senhores, herdeiros renascidos das cinzas das leis do condicionamento industrial do regime fascista-salaza-rista. Mas tudo se passa, apesar das crises recorrentes, de que esta última é o exemplo mais grave e em que, apesar das suas causas externas, as debilidades estruturais do tecido económico e social contribuem para tornar ainda mais difícil a sua superação, como se todos vivêssemos no melhor dos mundos possíveis. Nada se discute, nada se questiona tudo se arrasta a reboque do “aqui e agora” da mutável conjuntura, à espera de Godot ou do novo milagre de Fátima. E que tem feito a classe polí-tica durante este trinta cinco anos que se comemoram em 25 de Abril de 2009? Para João Martins Pereira, não há lugar para grandes optimismos: “Os governos mentem quando anunciam que Portugal se vai aproximar dos «níveis europeus», que vão combater o desem-prego, que vão lançar indústrias novas, que vão «pesar» nas decisões europeias - numa palavra que o «Portugal do século XXI» será outro. Não. Eles vão

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limitar-se a gerir os fundos próprios e europeus de forma eleitoralmente mais rentável, a decidir onde e quando se farão mais umas estradas e pontes e centros culturais (e a inaugurá-los o máximo número de vezes possível), a fazer milhentas reformas da educação, da saúde, da justiça - que deixarão tudo na mesma, ou pior - e a fazer disso anualmente os habituais balanços triu-nfalistas” (p. 82).

Estas considerações foram escritas em Setembro de 1993, na fase decli-nante do segundo Governo de maioria absoluta de Cavaco Silva, uma verdadeira década perdida para a superação do atraso do país. Pode dizer-se que, infe-lizmente, não perderam actualidade, pese embora a ausência total de alter-nativas políticas credíveis à esquerda nos tempos que correm, graças ao atavismo sectário do PCP e ao pretensiosismo politicamente irresponsável do Bloco de Esquerda. Mas isso não significa que se desista de continuar a projectar novos caminhos, que, para parafra-sear o feliz título de uma colectânea de escritos breves do autor publicada em 1993, tenham a ousadia de colocar-se “à esquerda do possível”: “Preferir uma sociedade em que os indivíduos sejam cidadãos, e não apenas ou sobre-tudo, produtores/consumidores, em que a qualidade de vida não signifique a posse (e exibição) de bens ou contas

bancárias, mas um diferente relacio-namento colectivo dos seres humanos entre si e com o mundo. Uma socie-dade de partilha e não de competição desenfreada, desde os bancos da escola.

Só em outra estação será possível, um dia, apanhar um comboio desses. Procurá-la, isso é tarefa de todos os dias” (p. 88).

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Os Charutos de ChurchilBeja Santos

Confesso que iniciei a leitura deste livro mais movido pela curiosidade do que julgava ser uma

bisbilhotice que pela importância do conteúdo. A surpresa é que se trata de uma leitura absorvente, quase mágica, a ponto de nos rendermos à iconografia desses charutos que identificavam o primeiro-ministro britânico na sua luta encarniçada contra Hitler. Lê-se com paixão, tal o encanto da história, só inessencial por se considerar uma bagatela aqueles charutos com que Churchill apareceu em milhares de imagens, projec-tando-o como farol da resistência democrática (“Churchill e os Charutos, uma paixão que atravessou a guerra e a paz”, por Stephen McGinty, Alêtheia Editores, 2008).

No século XIX, o charuto é estatu-tário, um luxo de uma clientela selecta onde se inseria o pai de Winston Churchill, Lord Randolph Churchill. A principal tabacaria londrina do tempo era a Robert Lewis que vendia produtos dispendiosos como ao mais finos charutos cubanos ou os cigarros

Balkan. Em 1900, Churchill, na altura com 25 anos, entrou neste santuário do fumo e iniciou uma relação que só terminaria com a sua morte, em 1965. Nesse primeiro dia, o jovem Winston comprou 50 Bock Giraldas, um pequeno havano, por 4 libras, e uma caixa de 100 cigarros Balkans, que lhe custou mais 11 xelins. A Robert Lewis pertencia ao judeu José de Solo Pinto que soube imprimir ao negócio uma selecção de produtos que tornaram a tabacaria no primeiro estabelecimento londrino do género. Segue-se a história dos hábitos tabá-gicos de Churchill e a sua chegada a Cuba, que o tornou um indefectível apreciador de havanos de alta quali-dade. Entretanto o autor aproveita para nos dar conta da importância do havano e como este se celebrizou a partir do século XIX, graças a marcas que percorreram o mundo inteiro como Upmann, Hoyo de Monterrey e Romeo y Julieta. Como observa o autor, “A aristocracia dos fabricantes de charutos são os enroladores, dos quais se diz que precisam de seis anos para se tornarem competentes,

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dez para serem hábeis e uma vida inteira para chegar à mestria. Estes homens - e em anos mais recentes também mulheres - eram capazes de pegar num monte de folhas e enrolar uma dúzia de charutos numa hora, passando habilmente pela nove fases do processo de fabrico e manufactu-rando um produto acabado com uma boa vitola - o termo utilizado para descrever o equilíbrio entre tamanho, potência, forma e apresentação”.

Em 1926 Churchill e a mulher compram Chartwell uma mansão do século XVI que será o novo lar da família. O charuto, as suas caixas e os seus humidores, marcam presença à escala dos milhares, guardados numa pequena sala do primeiro piso. Nesse tempo Churchill e o charuto já vivem em fusão, o político tinha consciência da imagem que o charuto projectava, uma imagem de confiança descontraída, muito importante para o eleitorado. Escreve o autor: “O charuto era igualmente uma espécie de cata-vento do seu tempestuoso temperamento: podia tirá-lo da boca e agitá-lo no ar realçar um ponto ou, quando estava particularmente furioso rosnar uma ordem com ele entalado entre os dentes. Fazia todo um espectáculo de preparar o seu charuto, riscando várias vezes o fósforo e expelindo várias baforadas de

fumo... Em encontros mais privados, ficava a fumar em silêncio, deixando que a cinza crescesse até representar metade do comprimento do charuto. Os colegas ficavam como fascinados por aquele aparente desafio às leia da gravidade e quase esqueciam o que estava a ser dito...”.

Como não há uma página abor-recida neste livro, em que os havanos entraram irremediavelmente na vida do mais célebre político britâ-nico de todos os tempos, é inevitável chegarmos à Segunda Guerra Mundial e à importância dos charutos de Churchill: as medidas de segurança para evitar o envenenamento do líder britânico; as ofertas vindas de Havana, as ofertas de charutos feitas pelos seus compatriotas e pelos admiradores como o multimilionário Samuel Kaplan, seguem-se as peripécias dos havanos que vinham de Cuba e que o regime de Fidel Castro alterou a via de abastecimento. A partir de 1946 Churchill viaja, numa doce reforma que só interrompe quando volta meteoricamente ao poder, em 1951. Fuma, bebe e come do melhor, é um ídolo consagrado. Tem no milionário cubano Antonio Giraudier um admi-rador incondicional, que o abastece até ao limite das suas posses, quando todos os seus bens são nacionalizados em Cuba.

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A memória de Churchill é indissociável dos seus charutos: as suas relíquias de fumo vendem-se em leilões, há esculturas dos seus charutos, no fundo o seu verdadeiro carburante e que determina a mania churchilliana.

Era inimaginável uma leitura tão estimulante em que o aparentemente insignificante ganha todo o signifi-cado iconográfico. Afinal, aqueles bens de consumo criaram a imagem do político, deram-lhe a vibração e a forma definitiva com que ele passou à História, junto às suas obras, um riquíssimo somatório de grandes vitórias e um número não desprezível de grandes desaires. Um sinal de vitória com dois dedos, um charuto entalado num sorriso, eis um país que aceitou segui-lo em toda a provação quando ele só prometeu “sangue, suor e lágrimas”.

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TEMA PRINCIPAL

O SOCIALISMO DO FUTURO*DOSSIER EUROPAA IDEIA DE REVOLUÇÃOREVOLUÇÃO EUROPEIA VERTIGEM DA PAZO INDIVIDUALISMO E A SOCIEDADE SOLIDÁRIAA EUROPA E A NOVA (DES)ORDEM INTERNACIONALDAS PRESIDENCIAIS AO GOLFODEMOCRACIA OU PARTIDOCRACIA?O REGRESSO DOS NACIONALISMOSA EUROPA À BEIRA DA IMPLOSÃO?O FIM DA POLÍTICA?AMÉRICA! AMÉRICA!A ALEMANHA E A EUROPAA EUROPA, NÓS E OS OUTROSA ESPANHA E NÓSO FIM DE UM CICLOA EUROPA E NÓSVÁRIOS TEMASPOR UMA EUROPA À ESQUERDAO ESTADO-PROVIDÊNCIA; QUE FUTURO?O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU NA ERA DA MUNDIALIZAÇÃOREGIONALIZAÇÃO E O PAÍSO REGRESSO DO POLÍTICODECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM – 50 ANOS DEPOISA GUERRA NO KOSOVO NA VIRAGEM DO SÉCULOO ESTADO E A LIBERDADE RELIGIOSAESTARÁ A DEMOCRACIA EM CRISE NA EUROPA?JUSTIÇA FISCALA GLOBALIZAÇÃO EM QUESTÃOA EUROPA DEPOIS DE NICEA DEMOCRACIA PORTUGUESA NOS INÍCIOS DO �º MILÉNIOO MUNDO EM CRISESER MINORIA, HOJEA ESQUERDA NA ENCRUZILHADAA CRISE MUNDIALUMA CONSTITUIÇÃO PARA A EUROPAO ISLÃO E A MODERNIDADEEDUCAÇÃO: QUE PERSPECTIVAS?OS DESAFIOS ACTUAIS DA ESQUERDA PORTUGUESAESTADOS UNIDOS E EUROPA: AFINIDADES E DIFERENÇASLIBERALISMO E DEMOCRACIAPODER POLÍTICO E SOCIEDADE CIVILA EUROPA DEPOIS DE LISBOAQUE CRISE? QUE SOLUÇÕES? QUE ALTERNATIVAS?

*O Socialismo do Futuro (revista comemorativa do 10º aniversário, confrontando-se os autores com os artigos escritos 10 anos antes, publicados no nº 1)

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Sob a Crise...Eduardo Lourenço

Uma Crise Inesperada mas PrevistaGuilherme d’Oliveira Martins

A Primeira Grande Crise do Século e o Eclipse do LiberalismoPaulo Pedroso

O Festim Está SuspensoJoaquim Jorge Veiguinha

A Crise Financeira Global: O que é Necessário Fazer?Christopher Rude

Uma Estratégia de Esquerda para Enfrentar a CriseAugusto Santos Silva

Perante a Crise: Problemas e Perspectivas do Emprego, do Trabalho e da Equidade em PortugalAntónio Dornelas

Trabalho e Sindicalismo – Os Impactos da CriseElísio Estanque

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A Metodologia Revolucionária de Charles DarwinJoaquim Jorge Veiguinha

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As Voltas que o Capitalismo (não) DeuJoaquim Jorge Veiguinha

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