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7º Encontro Paulista de Professores de Jornalismo Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Bauru 20 e 21 de maio de 2016 1 Quando o jornal entra para a festa: posturas editoriais e imagens do Brasil na cobertura do The Guardian durante a Copa do Mundo 2014 1 Maria Carolina VIEIRA 2 (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Bauru, São Paulo) Resumo Megaeventos esportivos do porte de uma Copa do Mundo têm como um de seus legados esperados a projeção da imagem (especialmente positiva) de seu país-sede em escala global. A propagação e formação desta imagem passa, por sua vez, necessariamente pela atuação da mídia internacional. Pensando nestas dinâmicas, este artigo propõe o estudo das posturas editoriais do jornal inglês The Guardian durante a cobertura sobre o Brasil na Copa do Mundo 2014, procurando entender suas características, de que forma elas foram se configurando na rotina jornalística e como podem modificar o entendimento do veículo estrangeiro sobre o Brasil e a Copa do Mundo. Palavras-chave Jornalismo internacional; The Guardian; Copa do Mundo; Brasil. A cobertura internacional na prática jornalística Enquanto o jornalismo segue buscando maneiras de lidar com as transformações do mundo contemporâneo, com a editoria internacional não é diferente. Embora a globalização traga maior sentido e importância a este setor especializado da mídia, ele é um dos que mais sofre as consequências do jornalismo de mercado: pouco rentável comercialmente e com um público seleto, os investimentos provindos das empresas midiáticas diminuem ano após ano. Mesmo com problemas em se sustentar financeiramente, contudo, o jornalismo internacional se mantém como uma editoria importante no quadro geral dos veículos de comunicação, muito pelo fato de que “publicar notícias sobre outros países sempre foi associado a prestígio para o veículo jornalístico que as divulgasse” (LINS DA SILVA, 2011, p. 25). Neste contexto, não podemos esquecer da importância do repórter inserido na produção de conteúdo para o noticiário internacional, tão envolto de particularidades que recebe outro nome: correspondente. O correspondente, “jornalista sediado em um país que não o seu de origem com a missão remunerada de reportar fatos e características dessa sociedade em que vive para a audiência da sua nação materna por 1 Trabalho apresentado no GP Produção Laboratorial Impresso, do 7º Encontro Paulista de Professores de Jornalismo, realizado na UNESP-Bauru, em 20 e 21 de maio de 2016. 2 É mestre em Comunicação Social pelo PPGCOM da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP-campus Bauru. Email: [email protected]

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7º Encontro Paulista de Professores de Jornalismo

Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Bauru

20 e 21 de maio de 2016

1

Quando o jornal entra para a festa: posturas editoriais e imagens do

Brasil na cobertura do The Guardian durante a Copa do Mundo 20141

Maria Carolina VIEIRA2 (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Bauru, São Paulo)

Resumo Megaeventos esportivos do porte de uma Copa do Mundo têm como um de seus legados esperados a projeção da imagem (especialmente positiva) de seu país-sede em escala global. A propagação e formação desta imagem passa, por sua vez, necessariamente pela atuação da mídia internacional. Pensando nestas dinâmicas, este artigo propõe o estudo das posturas editoriais do jornal inglês The Guardian durante a cobertura sobre o Brasil na Copa do Mundo 2014, procurando entender suas características, de que forma elas foram se configurando na rotina jornalística e como podem modificar o entendimento do veículo estrangeiro sobre o Brasil e a Copa do Mundo. Palavras-chave Jornalismo internacional; The Guardian; Copa do Mundo; Brasil.

A cobertura internacional na prática jornalística

Enquanto o jornalismo segue buscando maneiras de lidar com as transformações

do mundo contemporâneo, com a editoria internacional não é diferente. Embora a

globalização traga maior sentido – e importância – a este setor especializado da mídia,

ele é um dos que mais sofre as consequências do jornalismo de mercado: pouco rentável

comercialmente e com um público seleto, os investimentos provindos das empresas

midiáticas diminuem ano após ano. Mesmo com problemas em se sustentar

financeiramente, contudo, o jornalismo internacional se mantém como uma editoria

importante no quadro geral dos veículos de comunicação, muito pelo fato de que

“publicar notícias sobre outros países sempre foi associado a prestígio para o veículo

jornalístico que as divulgasse” (LINS DA SILVA, 2011, p. 25).

Neste contexto, não podemos esquecer da importância do repórter inserido na

produção de conteúdo para o noticiário internacional, tão envolto de particularidades

que recebe outro nome: correspondente. O correspondente, “jornalista sediado em um

país que não o seu de origem com a missão remunerada de reportar fatos e

características dessa sociedade em que vive para a audiência da sua nação materna por 1 Trabalho apresentado no GP Produção Laboratorial – Impresso, do 7º Encontro Paulista de Professores de Jornalismo, realizado na UNESP-Bauru, em 20 e 21 de maio de 2016. 2 É mestre em Comunicação Social pelo PPGCOM da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP-campus Bauru. Email: [email protected]

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meio de um veículo de comunicação” (LINS DA SILVA, 2011, p. 15), é por muitos

considerado um orientador cultural. Além disso, o correspondente não fica ileso das

restrições financeiras das empresas midiáticas, o que acaba exigindo uma maior

qualificação deste já especialista. Uma saída mais drástica, mas, ainda assim, cada vez

mais frequente, é o corte do repórter alocado em outro país, que vem a ser substituído

por profissionais que trabalham direto da redação. Mesmo que pareça uma troca

desfavorável ao noticiário internacional, que não terá olhos in loco para cobrir os fatos,

Natali (2004) consegue ser otimista graças ao que ele chama de revolução trazida pela

internet:

Ela fez com que o redator abandonasse seu papel passivo diante dos telegramas das agências. Deu a ele um poder de intervenção inimaginável na elaboração mais pessoal de um texto noticioso. (...) Vejam que o uso da internet não substitui a existência de uma boa rede de correspondentes. Mas a falta dessa boa rede é em parte compensada por profissionais familiarizados com os múltiplos recursos disponíveis na rede mundial de computadores. (NATALI, 2004, p. 57-59).

Mesmo diante de certas mudanças no jornalismo internacional, uma

característica permanece praticamente intacta: sua gigantesca guilhotina da notícia. É a

maneira de Natali (2004, p. 10) de dizer que nenhuma outra editoria precisa utilizar

critérios tão refinados e qualificados de seleção noticiosa, já que, segundo ele, “nem

tudo o que é notícia aparece no noticiário internacional” (NATALI, 2004, p. 12). Então,

quais os grandes valores-notícias que norteariam o jornalismo internacional na

comunicação contemporânea?

O primeiro fator a se considerar é o leitorado dessa editoria. Natali (2004) afirma

que o leitor desta editoria faz parte de um segmento minoritário, metropolitano e mais

bem informado do público, o que consequentemente o faz mais exigente. Outro fator

citado pelo autor é a acessibilidade, tanto geográfica quanto editorial, à notícia. Critérios

de noticiabilidade clássicos como importância, interesse, brevidade, qualidade da

história, uma composição equilibrada do noticiário, material visual disponível,

exclusividade, entre outros listados por Murad (2002) são acompanhados por fatores

que chegam com destaque nos dias de hoje: a atualidade – trazida pelo aumento da

velocidade provinda das tecnologias digitais – e a frequência, que se caracteriza pela

atualização constante das informações, a fim de “promover sua audiência por meio de

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uma continuidade da cobertura informativa” (MURAD, 2002, p. 6).

Por último, mas não menos importante, vemos hoje com certa frequência no

jornalismo internacional um embate entre o interesse público (com significado político,

social, cultural...) e o interesse do público (aquilo que pode despertar curiosidade). Na

maioria das situações, vê-se que o interesse do público acaba ganhando, já que “a

pressão do mercado e da concorrência impõe, muitas vezes, na prática, a subvalorização

da importância, isto é, a subordinação do interesse público ao interesse do público”

(BIANCHI e HATJE, 2006, p. 174). Assim, a partir destas dinâmicas e características é

que se molda o jornalismo internacional hoje: embora passe pelas mesmas mudanças e

obstáculos do jornalismo em geral, consegue visualizar que tem um papel fundamental

em “transformar cidadãos nacionais em cidadãos globais” (LINS DA SILVA, 2011, p.

10), transformação necessária em um cenário que, segundo o autor, exige cada vez mais

que as pessoas estejam informadas, especialmente sobre o que acontece além de suas

próprias fronteiras.

O jornal The Guardian

No cenário do jornalismo inglês, é possível distinguir alguns tipos de

publicações impressas, em especial as consideradas tabloides – mais sensacionalistas e

populares – e de referência – com maior peso jornalístico e qualidade. De acordo com a

classificação de Dalpiaz (2013), o The Guardian encaixa-se no segundo tipo, podendo

ainda ser chamado de quality newspaper (jornal de qualidade), devido à “quantidade de

reportagens sobre política e economia, com qualidade de análise e opinião editorial, que

abordam ainda educação, artes e pautas em discussão” (DALPIAZ, 2013, p. 96). Molina

(2007), vai além da Inglaterra e coloca o The Guardian entre os maiores jornais do

mundo. Este posto é conquistado por uma soma de fatores, desde a relevância atual até a

importância histórica, a influência – normalmente, maior do que o próprio lucro – na

formação da esfera pública e pelo jornal se constituir de um “repertório de informações

que, muitas vezes, os historiadores recorrerão a seus arquivos (hoje, vários já são

digitalizados) para fazer pesquisas” (MOLINA, 2007, p. 12).

O The Guardian foi fundado em 1821, em Manchester, na Inglaterra, e desde

suas origens carrega uma tendência à defesa dos valores liberais. Sua história mostra

que, muitas vezes, ele foi capaz de colocar seus ideais acima de qualquer questão

mercadológica ou de descontentamento do público com suas escolhas jornalísticas,

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consolidando “seu prestígio como um jornal que arriscava a sobrevivência para manter

os princípios” (MOLINA, 2007, p. 356). Uma frase célebre e que reflete os ideais do

The Guardian é creditada ao editor do jornal por 57 anos, CP Scott, que diz: “o

comentário é livre, mas os fatos são sagrados. A voz dos oponentes, não menos do que a

dos amigos, tem o direito de ser ouvida”. Assim, o The Guardian é, inclusive, muitas

vezes visto como um “jornal das minorias”, rótulo que, segundo Molina (2007), estaria

se desfazendo gradualmente para focar no leitor comum.

Transformações recentes acabam surgindo para adaptar a publicação aos novos

leitores e aos tempos da internet, mudança que tem se provado eficiente, já que “sua

edição on-line é a mais visitada entre os jornais ingleses (...) e é considerado o melhor

jornal eletrônico do mundo, melhor do que o do The New York Times e The Washington

Post” (MOLINA, 2007, p. 370). Os investimentos na sua plataforma on-line são

decorrentes da queda das vendas do impresso – nos meses de junho e julho de 2014,

período que esta pesquisa abrange, a circulação da publicação ficou na média de 183

mil exemplares diários, segundo dados da ABC – e de um esforço em ser um jornal que

ultrapasse as fronteiras da Inglaterra, atendendo a um público cada vez mais

internacional.

Esta tendência atual pode ser considerada reflexo de uma forte tradição no

jornalismo internacional no The Guardian, onde “os assuntos internacionais, inclusive a

América Latina e sua luta pela independência, receberam, desde o início, uma boa

cobertura” (MOLINA, 2007, p. 351). Focando no Brasil e em tempos mais próximos, o

The Guardian mantém correspondentes na região desde a década de 90. Hoje, o

correspondente internacional da América Latina do The Guardian é o jornalista

Jonathan Watts. Ele encontra-se sediado no Rio de Janeiro, Brasil, e é o único

correspondente fixo do jornal em todo o território latino-americano. Para a cobertura da

Copa do Mundo 2014, no entanto, o The Guardian, obviamente, mobilizou mais

profissionais além de Watts. Foram listados 20 autores diferentes a escreverem sobre o

Brasil ou os brasileiros no período estudado, entre eles jornalistas que publicavam seus

textos da Inglaterra, correspondentes e enviados especiais que escreviam direto do

Brasil, convidados – tanto ingleses quanto estrangeiros – e freelancers, além de

matérias assinadas pelo Staff (o que poderíamos chamar de “direto da redação”) ou por

agências de notícias. Um ponto interessante é que pelo menos uma jornalista foi

declaradamente deslocada para produzir material que fugisse da cobertura do evento

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esportivo em si. É o caso de Hadley Freeman, enviada especificamente para escrever

matérias além do futebol. Em um artigo posterior à Copa, intitulado “Minha improvável

tarefa da Copa do Mundo: ‘hey, foi apenas como a Semana de Moda!” (no original: My

unlikely World Cup assignment: hey, it was just like fashion week!), ela relata a

experiência como a “única correspondente a não saber que a Copa do Mundo era

realizada a cada quatro anos”. Ainda se nota que muitos correspondentes ou jornalistas

escrevem, neste período, sobre temas de sua área de especialidade: Catherine Balson,

por exemplo, é blogger de comida e fala sobre a nova “onda” de restaurantes na favela;

Jonathan Jones é crítico de arte e escreve sobre arte de protesto nas ruas e um ensaio

que compara a derrota do Brasil para a Alemanha por 7x1 nas semifinais do torneio a

um teatro trágico.

Metodologia e corpus de pesquisa

Williams (1992), ao falar sobre métodos para o estudo de cultura, cita a análise

de conteúdo – a qual chama de técnica de observação sistemática – como uma das mais

adequadas para este tipo de pesquisa. Seguindo os argumentos do autor, a escolha de tal

método de análise para este trabalho deve-se à sua capacidade de gerar dados

quantitativos acerca de um problema de pesquisa, em especial um que conta com uma

vasta quantidade de material, ao mesmo tempo em que possibilita a posterior

interpretação dos resultados, baseada no contexto em que eles estão inseridos. Bardin

(1977) afirma que a análise de conteúdo “oscila entre os dois polos do rigor da

objetividade e da fecundidade da subjetividade” (BARDIN, 1977, p. 9), caracterizando-

a como:

Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. (BARDIN, 1977, p. 42).

Desta forma, com o objetivo de estudar a atuação do The Guardian durante a

realização da Copa do Mundo 2014, um megaevento esportivo, a Análise de Conteúdo

foi considerada a metodologia mais adequada. Como ela propõe, em um primeiro

momento foi realizada uma leitura flutuante de todas as matérias publicadas na versão

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impressa do jornal (acessadas no endereço on-line www.theguardian.com, no qual o

jornal impresso é disponibilizado na íntegra e gratuitamente) no período entre os dias 29

de maio de 2014 – duas semanas antes do início da Copa do Mundo – e 20 de julho de

2014 – uma semana após o encerramento da Copa do Mundo – que tivessem alguma

menção sobre o Brasil, chegando a um número de 168 textos. Deste total inicial, porém,

foram consideradas apenas as matérias que não apenas mencionam, mas têm como tema

principal o Brasil e/ou os brasileiros, excluindo-se também aquelas que mantém foco no

relato e resultado de jogos, discussões sobre escolhas e preparação técnicas da seleção

nacional ou resenha dos shows de abertura e encerramento. Levando estes fatos em

conta, o corpus de pesquisa ficou constituído por 53 matérias.

Com o intuito de tornar a pesquisa mais dinâmica e seguindo as propostas da

Análise de Conteúdo em trabalhar com categorias, as 53 matérias foram divididas em

cinco, de acordo com seu tema principal. As categorias, sua descrição e a quantidade de

matérias pertencentes a cada uma delas consta na tabela a seguir:

TABELA 1 – CATEGORIAS DE ANÁLISE

TEMA DESCRIÇÃO Nº DE MATÉRIAS PORCENTAGEM

Aspectos culturais Matérias que dizem respeito à cultura e a manifestações culturais do Brasil, tais quais música, artes, danças, costumes,

dia a dia, etc.

13 24.55%

Aspectos políticos Matérias que dizem respeito à rotina política do país, ao governo, a notícias sobre a situação ou manobras políticas,

etc.

2 3.77%

Aspectos sociais Matérias que dizem respeito a problemas ou situações que vivem o

povo brasileiro, manifestações populares, etc.

11 20.75%

Impressões sobre a Copa

Matérias que dizem respeito à visão do jornal sobre a Copa do Mundo 2014 e

sua realização no Brasil.

10 18.86%

Relação do Brasil e brasileiros com o

futebol

Matérias que dizem respeito à relação que o Brasil e os brasileiros têm com o

futebol e a Copa do Mundo.

17 32.07%

TOTAL 53 100%

Em um primeiro momento, constatou-se que os temas brasileiros que mais se

destacaram na cobertura da Copa do Mundo pelo The Guardian foram (em ordem

decrescente) 1- Relação do Brasil e brasileiros com o futebol os culturais, 2- Aspectos

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culturais, 3- Aspectos sociais, 4- Impressões sobre a Copa e 5- Aspectos políticos. Para

saber a postura do The Guardian diante de cada um deles, foram levantadas unidades de

registro referentes a tais temas, ou seja, “unidades de significação a codificar e que

correspondem ao segmento de conteúdo a considerar como unidade de base” (BARDIN,

1977, p. 104), que podem ser palavras, expressões, temas ou frases, por exemplo.

Enumerando-as de acordo com sua aparição e ocasional frequência, com o cuidado de

relacioná-las a um subtema quando há a necessidade, é possível não só visualizar as

percepções do veículo inglês sobre o Brasil no momento da realização da Copa do

Mundo, mas também observar as escolhas e caminhos editoriais que levaram o jornal a

realizar determinada cobertura, a qual envolve certa seleção de fatos e histórias e suas

respectivas representações.

A postura editorial do The Guardian na Copa do Mundo 2014

Enquanto a realização de uma Copa do Mundo, em um primeiro momento,

possa se classificar apenas como um evento esportivo, alguns autores propõem enxergar

este tipo de megaevento como fenômenos midiáticos. Para Mezzaroba; Messa e Pires

(2011), os megaeventos já são planejados pensando que a maior parte das pessoas terá

acesso a eles pelos meios de comunicação, o que pode trazer consequências à “imagem

externa a ser construída pela mídia internacional” (MEZZAROBA; MESSA; PIRES,

2011, p. 28). De fato, a perspectiva de possíveis legados dos megaeventos, em especial

sobre a imagem do Brasil, ganha um capítulo exclusivo no livro Legados de

megaeventos esportivos, elaborado pelo Ministério do Esporte e publicado em 2008,

Membros do Grupo de Pesquisa e Estudos Olímpicos da Universidade Gama Filho

listam alguns fatores que são esperados em relação às representações do país após este

sediar o torneio esportivo, entre eles a projeção da sua imagem do país e das cidades-

sede dentro e fora de seu território (VILLANO et al, 2008, p. 48).

De uma forma que a magnitude inata destas ocasiões se une aos olhares

mundiais atentos às suas narrativas, não é à toa que Gurgel (2009) enxerga o papel

estratégico de um megaevento esportivo como a Copa do Mundo 2014, denominando-a

de “ápice do processo de construção de imagens espetaculares, que são midiatizadas de

forma massiva” (GURGEL, 2009, p. 204). Mais uma vez colocando a atuação dos

veículos de comunicação em destaque, ele ainda diz que “os espetáculos dos

megaeventos são produzidos duas vezes: uma pelo conjunto de agentes que, de fato,

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atuam na competição esportiva e uma outra por todos aqueles que reproduzem estas

imagens (a mídia)” (GURGEL, 2009, p. 204). Assim, estudar a cobertura de um jornal

estrangeiro neste período não só traz à luz representações e imagens externas sobre o

Brasil, mas também ajuda a entender de que maneira posturas editoriais podem

influenciar nesta construção midiática.

Ao analisar a cobertura do The Guardian sobre o Brasil durante a Copa do

Mundo 2014 por meio de categorias e unidades de registro, chegou-se a três traços

característicos significativos, que acabam por moldar também a postura editorial do

jornal diante do assunto: 1) a pluralidade de temas e representações abordada nas

matérias; 2) a divisão clara entre um The Guardian crítico e um The Guardian torcedor;

e 3) a relação entre o perfil dos jornalistas e as abordagens das reportagens.

1. Pluralidade de temas e representações

Assim como o corpus de pesquisa, constituído de 53 matérias, foi dividido em

cinco categorias-base, estas próprias categorias também geraram novas classificações. A

partir delas, podemos perceber que a gama de assuntos abordados pelo The Guardian

sobre o Brasil durante a Copa do Mundo é tão plural e diversificada quanto a

comparação entre favelas e indústria musical. Na tabela a seguir, observamos quais

temas ganharam destaque na cobertura do jornal inglês no período analisado (sem

distinção de qual categoria fazia parte), levando em consideração menções a eles na

forma de unidades de registro:

TABELA 2 – TEMAS SOBRE O BRASIL ABORDADOS PELO THE GUARDIAN

TEMA NÚMERO DE MENÇÕES

RELAÇÃO COM FUTEBOL OU COPA

Relação do Brasil com a Copa e o futebol 54 Sim Infraestrutura e obras da Copa 44 Sim

Atmosfera e apoio à Copa 44 Sim Cidades-sedes 39 Sim

Festas e torcida 32 Sim Estado emocional dos jogadores 31 Sim

Favelas 27 Não Características sociais gerais 26 Não

Protestos 23 Sim Povo/população 21 Não

Avanços econômicos e tecnológicos 18 Não Geografia 17 Não

Greves 14 Não Relação da política com o futebol 14 Sim

Música 13 Não Turismo 12 Não

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Desigualdades 11 Não Visões gerais sobre a Copa 10 Sim

Arte de rua anti-Copa 7 Sim Situação política 5 Não Gastos da Copa 4 Sim

Governo 4 Não Público 4 Sim

Segurança 4 Sim Voluntários 4 Sim

Figurinhas da Copa 3 Sim Idioma 2 Não TOTAL 512 -

A primeira coisa que podemos observar sobre os 27 temas encontrados – além

da própria diversidade em si – é que eles se equilibram entre os que diretamente dizem

respeito ao futebol e à Copa do Mundo (15 deles) e os que não tratam do assunto mais

em voga no momento da cobertura (constituindo-se de 12 temas). Isso mostra,

independentemente da preposição do The Guardian em ampliar sua área de cobertura, a

capacidade que megaeventos esportivos possuem de trazer aos holofotes da mídia

aspectos sobre o país-sede que, muitas vezes, não teriam tanto destaque em outros

períodos.

Por sua vez, as visões encontradas dentro de cada um dos temas também

continuam plurais e, muitas vezes, até contrastantes, gerando, em certos aspectos, uma

imagem de um Brasil que se assemelha a uma “colcha de retalhos” de representações.

Como exemplo, seguem na próxima tabela as representações do tema “Atmosfera e

apoio à Copa”, que variam da ideia de um clima festivo a uma população cética em

relação ao evento:

TABELA 3 – REPRESENTAÇÕES QUANTO À ATMOSFERA E APOIO À COPA

REPRESENTAÇÃO-CHAVE QUANTIDADE DE MENÇÕES Clima festivo, de alegria e diversão 13

Apoio público baixo; clima pouco festivo 8 Ceticismo quanto à Copa 8

Humor conflitante 7 Preparação e decorações tradicionais 4

Animação por conta do turismo 2 Atmosfera doméstica, tipicamente brasileira 2

TOTAL 44

Esta gama de representações segue existindo em outros temas e revela um The

Guardian que propõe uma cobertura diversificada sobre o Brasil. Ainda que algumas

vezes o que se destaque sejam ideias bastante diferentes entre si – em parte, resultante

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da própria complexidade do Brasil como nação – o veículo tentou fugir do foco padrão

apenas no esporte, trazendo assuntos fora deste espectro de atuação.

2. Contraste entre o The Guardian crítico e o The Guardian torcedor

Enquanto pudemos perceber um esforço por parte do veículo inglês em trazer

matérias que abordassem diferentes aspectos da realidade brasileira e que, inclusive,

fugissem da sua relação com o futebol ou a Copa do Mundo, foi possível constatar uma

mudança na postura editorial do jornal entre as categorias propostas. Enquanto nas

categorias de análise que não têm relação direta com a Copa ou o futebol (sendo elas

Aspectos culturais, Aspectos políticos e Aspectos sociais) o que predomina é um The

Guardian crítico, nas outras que possuem relação intrínseca com o esporte (Impressões

sobre a Copa e Relação do Brasil e dos brasileiros com o futebol) surge em cena um The

Guardian torcedor.

É possível notar a presença do The Guardian crítico por meio de reportagens

que levantam temas “indigestos” ao leitorado, como é o caso das greves, protestos,

desigualdades, entre outros. Inclusive, assuntos ligados à Copa do Mundo, por exemplo,

gastos, atrasos nas obras e falhas na infraestrutura, recebem uma abordagem mais rígida

e apegada aos fatos. Nestas situações, predomina uma visão que procura colocar os

desdobramentos do acontecimento na realidade local e as questões sociais do país em

primeiro plano, mesmo quando o tema é tão leve quanto música ou arte de rua (nestes

casos, os assuntos foram trazidos como forma de protesto, por exemplo). Assim, dos 27

temas listados na segunda tabela, 20 deles fazem parte das três categorias sem ligação

com o futebol, constituindo-se a maioria.

Já quando o futebol aparece em cena, a postura do veículo é outra. É como se ele

entrasse na festa da paixão pelo esporte – esta que ele retrata, em vários momentos,

como algo tão típico dos brasileiros – e se deixasse levar pela emoção em detrimento da

razão. Nas categorias Impressões sobre a Copa e Relação do Brasil e dos brasileiros

com o futebol, destaca-se uma versão mais envolvida emocionalmente com os fatos,

onde as avaliações sobre o sucesso da Copa têm mais a ver com seu significado

simbólico do que com a eficiência de sua estrutura física; os aspectos sociais ou

políticos e até mesmo os escândalos e altos gastos que rondaram o evento são deixados

de lado em prol do “jogo bonito”; e, por fim, o futebol significa mais do que apenas um

jogo: entre outras representações trazidas, podemos mencionar a de que ele tem o poder

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de mexer com o emocional tanto da torcida quanto dos jogadores, que seus

desdobramentos estão relacionados aos rumos do país ou que ele seria a única forma de

tirar crianças do caminho do crime e violência. Não à toa, nestas duas categorias os

temas são menos diversificados e tendem a relevar aspectos negativos e as

complexidades sociais, econômicas, políticas e/ou culturais do Brasil para focar no

futebol em si, o que resulta em uma imagem mais simplificada do país, assim como uma

cobertura jornalística mais monotemática.

3. Escolha dos jornalistas e suas consequências na cobertura midiática

Assim como o futebol aparentemente exerce influências na maneira como a

cobertura do The Guardian sobre o Brasil na Copa do Mundo 2014 foi realizada, a

escolha dos jornalistas que atuaram nela também são um ponto a produzir mudanças.

Como já dito anteriormente, devido à sua tradição no jornalismo internacional e às

próprias exigências de um evento global de tal porte, o veículo inglês mobilizou um

número considerável de profissionais para reportar sobre o Brasil e o torneio esportivo –

20 autores no total.

Ainda que muitos deles tenham experiência na cobertura esportiva (como é o

caso de Owen Gibson, correspondente-chefe de esportes do The Guardian, autor de 10

textos analisados) ou do Brasil (na figura da escolha óbvia de Jonathan Watts,

correspondente fixo da América Latina pelo jornal), outros nada tinham a ver com o

assunto. “Deslocados” do contexto do futebol, estes jornalistas – por exemplo, Hardley

Freeman e Laura Barton, que são feature writers (que não escrevem hard news);

Jonathan Jones, escritor de arte; Catherine Balston, blogger de comida; Stuart Heritage,

crítico de filmes, música e tevê, etc. – puderam se sentir mais livres para trazer olhares

diferenciados sobre o país. Mesmo os jornalistas vinculados ao futebol ultrapassaram as

fronteiras da cobertura esportiva e escreveram reportagens que traziam à tona aspectos

menos explorados sobre o país na mídia internacional.

Outro ponto a favor de uma editoria internacional mais rica do The Guardian

durante o período da Copa do Mundo foi a prevalência de jornalistas que se deslocaram

ao Brasil para realizar as reportagens. Somente assim estes profissionais tiveram a

oportunidade de ouvir fontes locais de informação – que, aliás, foram constantes e

abundantes no material analisado – entrar em contato direto com os acontecimentos e

seu contexto e, assim, criar impressões mais próximas sobre a realidade do país. Como

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consequências destas posturas editoriais que valorizaram uma equipe de trabalho

diversificada e in loco estão a realização de matérias mais aprofundadas, heterogêneas e

com toques locais na redação final – o uso de palavras em português, por exemplo, é um

recurso altamente usado pela publicação inglesa nas reportagens sobre o Brasil.

Considerações

Diante da importância das construções midiáticas para a formação e legado na

imagem internacional de um país, em especial durante megaeventos esportivos, este

artigo propôs, por meio da Análise de Conteúdo, estudar as posturas editorias e suas

respectivas consequências na cobertura sobre o Brasil durante a Copa do Mundo 2014

pelo jornal inglês The Guardian. Em um primeiro momento, trabalhando com

categorias de análise que dividiu o corpus de 53 matérias, foi possível observar que

cinco temas principais sobre o país se destacaram na publicação inglesa, sendo eles (em

ordem decrescente): 1- Relação do Brasil e brasileiros com o futebol os culturais, 2-

Aspectos culturais, 3- Aspectos sociais, 4- Impressões sobre a Copa e 5- Aspectos

políticos.

Diante destes primeiros resultados, pudemos notar a pluralidade de temas que o

The Guardian tratou durante a Copa do Mundo 2014. A tendência continua ao

observarmos os subtemas dentro de cada categoria e também as representações diversas

e, algumas vezes, até contrastantes, de um mesmo assunto. Um exemplo seria as visões

sobre a atmosfera e o clima do torneio esportivo, que passa de cético a festivo e até

conflitante de maneira natural. Ainda que a complexidade brasileira tenha influências

para essa gama de imagens que foram feitas do país, o corpo de jornalistas, que se

mostrou diversificado e também constantemente presente no local dos acontecimentos

relatados, seria um fator-chave para esta tendência.

No entanto, a postura editorial do jornal muda de crítica para “torcedora” a partir

do momento em que o futebol está envolvido. Usando a premissa de que o futebol

significa mais do que apenas um jogo, o The Guardian se envolve emocionalmente na

competição e, uma vez feito isso, gera influências em sua cobertura. Foi observado que

nas categorias de análise diretamente ligadas ao esporte (Impressões sobre a Copa e

Relação do Brasil e dos brasileiros com o futebol), o veículo inglês demonstra uma

tendência maior em relevar os acontecimentos sociais ou políticos por detrás do “jogo

7º Encontro Paulista de Professores de Jornalismo

Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Bauru

20 e 21 de maio de 2016

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bonito”. Isso não acontece nas outras categorias, que priorizaram uma cobertura

diversificada e com olhares diferenciados sobre o país.

Com isso, podemos afirmar que o legado na imagem internacional de um país-

sede está muito mais ligado à postura editorial das mídias estrangeiras do que à

realização do torneio em si. Embora as redações estejam sofrendo cortes e a internet

continue substituindo cada vez mais o envolvimento direto de jornalistas com o fato, a

cobertura internacional do The Guardian, que valorizou o trabalho de correspondentes e

repórteres no local do acontecimento, além de escolher profissionais com experiências e

áreas de atuação variadas, provou que este é um fator que ainda faz diferença. Fugindo

do tratamento padrão com foco no esporte e usando fontes locais de informação, ele

conseguiu trazer um olhar mais próximo da realidade brasileira, diminuindo possíveis

choques culturais ou angulações simplistas e ainda incentivando reportagens que

tiveram temas não-usuais em uma editoria internacional. Uma cobertura plural,

portanto, depende também de jornalistas e fontes plurais, não apenas de um

acontecimento mais rico em fornecer diferentes leituras.

Referências

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